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“Donald Robertson

Não é Um
Comediante de
Stand-Up”
de Gary McNair

Tradução: Rodrigo Haddad

Oberon Modern Plays

1
“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Observações pro diretor:


Alguns detalhes que estão no texto deverão mudar conforme a
apresentação, por exemplo, nas boas-vindas ao público o ator deve
utilizar a data e local onde a apresentação estiver acontecendo. A peça
sempre deve se passar no lugar e no momento em que ela está
acontecendo.

Nota do tradutor:
As piadas de adivinhação contadas na peça devem ser ruins mesmo, e
como não tinham tradução literal pro português, foram substituídas
por outras piadas em português tão ruins quanto. A produção deve
ficar à vontade para trocá-las por outras piadas ruins. A única exceção
é a piada dos atores performáticos trocando a lâmpada – esta foi
traduzida literalmente, é boa e deve ser mantida.

Pré-determinações:
A plateia deve ficar em um espaço com mesas redondas que seja
escuro mas ao mesmo tempo acolhedor. Deve parecer um clube de
comédia e o público deve se sentir como se estivesse em um. A
atmosfera deve ser sempre intimista.

Em um dos lados da sala há uma grande parede de tijolos. Em frente a


esta parede fica o palco, com uma altura de uns 50 centímetros. Isso
serve apenas para que o ator seja visto por quem está no fundo da sala,
e não deve ser alto o suficiente para que se crie uma distância entre
ator e plateia.

A plateia entra ao som do álbum “The Best of Tom Jones”. As luzes


ficam baixas sobre o palco, com um único refletor apontado para o
microfone. No palco também há um banquinho e uma garrafa de
cerveja. Apenas isso.

Após a entrada da plateia...

(as luzes se apagam sobre a plateia)

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

PRÓLOGO:
Gary tenta fazer stand-up comedy
VOZ EM OFF: (feita pelo ator, ao vivo, em um microfone fora de cena) Senhoras e senhores, meninos
e meninas: SEJAM BENVINDOS!!! Hoje é 31 de julho de 2014 e vocês escolheram
passar a noite aqui no Traverse Theatre. Temos várias atrações incríveis pra vocês esta
noite. Estão preparados? Eu disse ESTÃO PREPARADOS? É isso aí. Então
aproveitem! Se joguem! Com vocês nossa primeira atração da noite: GARY
MCNAIR!!!!

(As luzes se acendem no palco. GARY entra. Ele tira o microfone do pedestal e coloca
o pedestal no fundo do palco à direita. Quando ele entra no foco, a luz o cega um
pouco. GARY respira fundo e se recompõe, mas ele está visivelmente nervoso durante
todo o prólogo.)

GARY: E aí, cambada de cuzão?

É, foi mal, eu...

Tá todo mundo bem? Então é isso aí, a gente... quer dizer, eu... Vocês já repararam
que... Já notaram a quantidade de caminhão de bombeiro que se vê por ai hoje em dia?

Aí eu fico me perguntando: cadê os incêndios?

(Blackout)

(As luzes se acendem)

Quando eu acordei hoje de manhã eu me olhei no espelho e pensei que o meu rosto tava
desenhado em uma folha de papel. Mas era só impressão.

(Blackout)

(As luzes se acendem)

Eu adoro caçar. Adoro mesmo. Hoje de manhã eu saí pra caçar, caçar uns passarinhos,
e foi incrível. O tempo passou voando.

(Blackout)

(As luzes se acendem)

(Gary tira do bolso um limão. Ele entrega o limão pra alguém sentado na primeira fila
da plateia e fala pra essa pessoa fora do microfone, mas alto o suficiente pra que o
resto da plateia escute)

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Oi, você pode me ajudar com uma coisa? Segura esse limão pra mim? Ai a hora em
que eu disser “um pouquinho de sol” você levanta e fala “Ei, cara, você quer um
limão?” Beleza? Valeu!

(Gary volta a falar no microfone)

Ah, oi, pessoal. Que tempinho que tá fazendo esses dias, né? Já teve de tudo, teve vento,
teve chuva, frio... Até que hoje finalmente apareceu um pouquinho de sol...

(Se tudo der certo a pessoa da plateia vai oferecer o limão nesse momento)

Que foi? Se eu quero um limão? Não, não, valeu, não quero não, quer dizer, de azedo
já basta a vida, né?

(Blackout)

(As luzes se acendem)

Eu tava pensando aqui ... Aquela loja Ikea1 tem um nome engraçado, não tem? Porque
pensa...

(Blackout)

(As luzes se acendem)

Tá legal, deixa eu me apresentar. Meu nome é Gary, eu tenho 28 anos e eu moro com
a minha mãe... (ele rapidamente se dirige a uma mulher ou grupo de mulheres na parte
da frente da plateia) ... e ai, meninas?

(Blackout)

(As luzes se acendem)

Posso fazer uma pausa e falar um pouco sobre as minorias étnicas?

(Blackout)

(As luzes se acendem)

Então o cara tá todo vestido de vermelho e chega o outro pra ele e diz, “Quer dizer
então que você é um comunista filho-da-puta?”

(Blackout)

(As luzes se acendem)

... hmmm, sei lá... o Bill Cosby2?


1
Rede de móveis sueca com lojas espalhada pelo mundo todo, semelhante à Tok Stok brasileira. (N.T.)
2
No original, Jimmy Saville. Ambos são celebridades acusadas de crimes sexuais. (N.T.)

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

(Blackout)

(As luzes se acendem)

(Gary se dirige a um homem sentado na frente) Você é o que? Algum tipo de bicha?
PERDÃO! Olha, me desculpa. Eu não sei nem o que eu to fazendo aqui. Eu não
imaginava que isso aqui seria tão difícil. Pra ser sincero, eu achei que eu fosse me sair
melhor nesse tipo de coisa... Meus amigos me disseram que eu me daria bem, não só
os meus amigos, na verdade, mas o jornal, o The Scotsman3, disse que eu era hilário.

É que é muito difícil saber como começar, entendem? Quer dizer, primeiro atacam os
nervos, depois vem aquela adrenalina. Você imagina, você sonha, na verdade, que é só
subir no palco, abrir a boca e as palavras vão simplesmente... sair. E elas vão ser “o que
tá pegando agora”. Sabe? Coisas incisivas, importantes. Elas serão importantes e
hilárias.

Mas aí você sobe no palco de verdade, e aí o único objetivo é fazer com que as pessoas
gostem de você, não é mesmo? E dá um puta cagaço das pessoas não gostarem de você.
E aí você pensa: “Eu vou chocar todo mundo”, “vou causar”, “vou falar alguma coisa
que ninguém falaria”, enfim, chamar a atenção. E aí quando vê você percebe que
chamou uma plateia cheia de gente legal de “bando de cuzão”, e não é bem isso que
você tinha mente, não é o que você queria ter feito, de jeito nenhum.

Me desculpem.

Será que eu... Posso começar de novo?

Pode ser? Vocês se importam se eu sair, voltar e começar outra vez?

(Blackout)

VOZ EM OFF: (claramente feita pelo próprio GARY no palco e no escuro) Senhoras e senhores,
meninos e meninas: SEJAM BENVINDOS!!! Hoje é 31 de julho de 2014 e vocês
escolheram passar a noite aqui no Traverse Theatre. Temos várias atrações incríveis
pra vocês esta noite. Estão preparados? Eu disse ESTÃO PREPARADOS? É isso aí.
Então aproveitem! Se joguem! Com vocês nossa primeira atração da noite:
GAAAAAARYYYYY MCNAAAAAAAAAAAIR!!!!

3
Jornal escocês. (N.T.)

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

ATO UM:
Uma apresentação peculiar
(As luzes se acendem. GARY está no centro do palco, puxando e esticando um pedaço enorme
de elástico. Ele puxa e estica em todas as direções, como se estivesse tentando arrebentá-lo.
Finalmente, derrotado, ele para.)

GARY: Disseram que eu deveria começar com o meu material mais forte.

(Blackout)

Tá bom, tá bom, desculpa, eu vou parar.

(As luzes se acendem.)

Beleza, eu vou contar pra vocês uma história... a história do baixinho4.

Ele é um baixinho engraçado. E por “baixinho engraçado” eu quero dizer que ele é um cara
baixinho que é engraçado. Ele não é engraçado “por ser baixinho”. Ele não é um anão. (ele
olha pra plateia com aquele cara de que “putz, falei merda de novo, desculpa”) Eu sei que
anões não são engraçados. Na verdade nem tem como, afinal eles não tem senso de humor.
Sério, isso é científico. Vocês sabiam que a glândula do humor tá localizada na coxa?
Obviamente nos anões a coxa não é totalmente desenvolvida, e consequentemente o mesmo
acontece com o senso de humor deles. É por isso que você nunca deve tirar sarro de um anão.
Se vocês não acreditam em mim, experimentem contar uma piada pra um anão: vai passar
batido.

Enfim, eu não to dizendo que ele é engraçado porque é baixinho. Ele é baixinho porque ele é
moleque – primeiro eu achei que ele tivesse uns doze anos, mas no fim descobri que ele tem
quinze.

E não é que ele tenha uma cara engraçada ou algo assim, não é isso. Quer dizer, ele é meio
bizarro, tem cabelo encaracolado, usa óculos, sapato preto com meia branca, mas não é isso.
Ele é engraçado porque é engraçado e ponto.

Na verdade ele não era tão engraçado. Pelo menos não quando a gente se conheceu. Não, calma
aí, acho que eu to me adiantando um pouco aqui, melhor eu preparar melhor a história antes,
senão não vai ser tão legal. É.

Então, pessoal, tá todo mundo bem?

Que ótimo!

(ele se dirige a alguém da plateia)

Você aí, de onde você é?

4
No original Gary chama o personagem Donald de “wee man”. Alternativas à tradução “baixinho”
podem ser “pirralho”, “tampinha”, “fedelho”, entre outras. (N.T.)

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

(Antes que a pessoa possa responder, GARY se dirige abruptamente às pessoas sentadas à
direita do palco e fala baixinho no microfone como se ninguém mais conseguisse ouvi-lo, mas
é claro que todo mundo consegue)

GARY DESCONSTROI A COMÉDIA:


Manipulando a plateia

Seguinte, o que eu to fazendo aqui é algo que chamamos de “manipulação da plateia”. É algo
bem comum que fazemos, normalmente no início de um show, e o objetivo é fazer com que a
plateia entre no clima e embarque no espetáculo. Fazemos isso selecionando alguns indivíduos
da plateia pra ridicularizar, tirar um sarro, de coisas tipo a aparência, o que eles fazem da vida,
onde moram, esse tipo de coisa. É sacana, eu sei, mas não é nada pessoal, não é especificamente
pra zoar a pessoa, mas sim pro bem geral, pra fazer com que o resto da plateia se divirta. Então
não se preocupem, isso tudo é algo perfeitamente normal que acontece sempre.

(GARY volta a se dirigir pro individuo da plateia original)

Mas então, você aí, de onde você é?

(Ele espera a resposta. Depois responde com...)

Eu realmente sinto muito você.

(Repete a mesma coisa três vezes, talvez mudando um pouco a resposta pra não ficar
repetitivo. Na terceira vez, antes que a pessoa possa responder ele a interrompe)

Escuta, cara, você pode dizer que é de Bellshill? Pode ser? É que vai me ajudar muito se você
disser que é de lá. Você faria isso por mim?

Então, de onde você é?

(Se tudo der certo a pessoa vai entrar no jogo e dizer que é de Bellshill)

Ah não, isso é muita coincidência. Eu vou pra Bellshill toda hora. Minha namorada é de lá.

(Mais uma vez GARY se dirige abruptamente às pessoas sentadas à direita do palco e fala
baixinho no microfone como se ninguém mais conseguisse ouvi-lo, mas é claro que novamente
todos conseguem.)

GARY DESCONSTROI A COMÉDIA:


Identificando-se com a sua plateia

Bom, isso que eu to fazendo agora é algo que chamamos de “se identificar com a sua plateia”.
Eu na verdade nem tenho namorada, obviamente. Eu só to dizendo isso pra que vocês achem
que eu sou um cara normal, legal, alguém como vocês, e assim vocês podem achar que o que
acontece comigo poderia acontecer com qualquer um de vocês.

É importante que vocês se identifiquem comigo. Então de vez em quando eu vou inventar
alguma coisa sobre mim, pequenas coisas, tipo, eu tenho uma namorada, eu tenho uma hipoteca

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

pra pagar, eu tenho dois filhinhos que vocês nem acreditariam as coisas fofas que eles dizem,
mas vocês acreditam porque vocês também tem dois filhinhos que dizem coisas fofas. Que eu
odeio ficar na fila do banco, que eu tenho um tio que é racista, que eu tenho uma gaveta cheia
de coisas de homem que eu venho acumulando há milhões de anos... Que eu também acho o
nome IKEA engraçado pra cacete. E que eu também fico puto quando os caras do Starbucks
se autodenominam “baristas” quando tudo que eles fazem é esquentar o leite e misturar com o
café e PUTA QUE PARIU como é ridículo quando você tá de férias viajando e ninguém
entende o que você tá dizendo quando você só quer UMA PORRA DE UMA FANTA
LARANJA!!! Enfim, essas coisinhas, nada de mais.

Então não se preocupem, isso tudo é algo perfeitamente normal que acontece sempre.

(GARY volta a se dirigir a toda a plateia)

Sabe, eu conheci a minha namorada quando a gente trabalhava junto numa fábrica. Era uma
fábrica de tecidos, mas isso não vem ao caso.

Uma vez por semana eu visito a minha namorada em Bellshill, e como você sabe bem, ... (ele
se dirige à pessoa que disse Bellshill antes) ... a melhor maneira pra se chegar ou sair de
Bellshill é de...

(ele espera pela resposta, que provavelmente não virá, até que ele quebra o silêncio com...)

... de ônibus, claro, você tem toda razão.

O ônibus 42 que vai pra Bellshill é sempre frio, não importa a época do ano. As pessoas não
conversam. É um ônibus que nem lembra a versão sociável do passado, quando ele levava os
trabalhadores pra cidade no fim-de-semana pra que eles dividissem os frutos do trabalho suado
com as lojas, os bares e as boates. As pessoas costumavam interagir umas com as outras numa
viagem como aquela, tipo “E aí, vai fazer o que na cidade?” ou “Tá indo pra onde? É legal
lá?”, mas hoje em dia você só vai pra cidade se realmente precisa e ninguém tá a fim de falar
com ninguém. As pessoas estão sempre olhando pro chão, ninguém se olha no olho, elas estão
mais preocupadas com o que os outros podem querem delas do que em compartilhar histórias.
Confiança é a primeira coisa que acaba quando os tempos estão difíceis, então o mais próximo
de uma comunicação que acontece nessas viagens é quando alguém escreve na janela
embaçada “VOCÊ É UM IDIOTA” ao contrário – é uma ameaça vazia pra qualquer pessoa
que esteja passando e se dê ao trabalho de tentar ler o que tá escrito na janela. Então o ônibus
é silencioso como um tumulo. Nenhuma interação.

Mas aí aparece o tal do baixinho. O baixinho engraçado que eu mencionei antes.

Ele aparece do nada e interrompe o silêncio, como se não soubesse que o silêncio é parte
integrante do ônibus. E ele não tá simplesmente falando. Ele tá contando piadas pros outros
passageiros.

Tá ele ali, esse moleque baixinho de 15 anos dentro do ônibus nº 42, se aproximando de gente
que ele nunca viu na vida e tentando fazer com que eles deem risada.

Umas piadas tipo...

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

P: O que é um pontinho amarelo no topo de um prédio?


R: Um Fandango suicida.

P: O que o cadarço falou pro tênis?


R: To amarradão em você.

Enfim, um monte de piada velha e ruim. E o pior de tudo é que ele nem sabia contar as piadas
direito. Ele com certeza não contava piadas tão bem quanto eu... não era um profissional.

E o mais estranho, que eu percebi depois, é que ele não tava querendo dinheiro nem nada, não
tava contando piada pra ganhar uns trocados.

Eu no começo pensei que fosse isso, então eu ofereci pra ele uma nota de cinco, porque eu me
senti meio mal pelo cara. Mas ele olhou pra mim com cara de quem não tava entendendo nada,
meio sem jeito, como se eu tivesse oferecido pra ele um cachorrinho morto, sei lá, e se afastou,
foi sentar na outra ponta do ônibus.

Uma pessoa normal teria ficado feliz nessa hora, já que não teria mais que aturar o moleque
estranho enchendo o saco. Mas eu não. Eu tinha que saber porque ele fazia aquilo.

Aquilo não saiu da minha cabeça. Eu tinha que saber. Se eu saísse daquele ônibus sem saber
porque o moleque contava as piadas eu correria o risco de ficar com aquilo na cabeça pro resto
da minha vida.

É o tipo de coisa que ficaria ali, me incomodando, pra sempre, eu ficaria pensando naquilo o
tempo todo. Seria que nem o “caso das colheres”.

O “caso das colheres” é o maior mistério da atualidade. Foi quando eu vi um cara andando pela
Woodlands Road em Glasgow com uma colher em cada mão, outra na boca e mais uma no
bolso da camisa.

Por que?

Por que ele tinha todas aquelas colheres?

Eu não conseguia entender!

Aí vocês me diriam: “É simples, chega pra ele e pergunta ‘Ei, cara, por que você tem essas
colheres todas aí?’”

Ele me responderia, eu ficaria satisfeito, e cada um seguiria a sua própria vida. Ele com as
colheres, e eu sem elas. Pronto. Fácil.

Mas o que aconteceu foi que um amigo meu me dissuadiu de perguntar pro cara, e até hoje eu
me arrependo disso.

Tem dias que eu não consigo dormir por causa disso. Eu nunca vou saber, nunca, jamais!
Provavelmente tinha uma explicação perfeitamente lógica pras colheres, mas eu nunca vou
saber!

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Então eu não podia deixar que a mesma coisa acontecesse de novo.

Eu tinha que saber. Eu tinha que perguntar.

Então eu fui até onde ele tava sentado. Ele tava tentando contar uma piada pro cara sentado do
lado dele, alguma coisa sobre pato, como era mesmo? Ah é: “Tem uma partida de futebol entre
patos. Como ela termina? Empatada.” Eu particularmente prefiro a resposta “Em disPATA de
pênaltis”, mas ei, eu não ia questionar o material de outro comediante, pelo menos não naquele
momento, na frente do público dele.

Eu dei uma gargalhada bem alta e falei “Po, baixinho, você é engraçadão mesmo. Diz uma
coisa... por que você faz isso?”

E ele surtou. Ele começou a andar pelo corredor do ônibus, de um lado pro outro, com uma
cara de louco, eu pensei que ele fosse pular pela janela.

“Desculpa, cara, eu só fiquei curioso. Tá tudo bem, você não precisa responder. Foi mal, fica
calmo aí.”

E ele começou a puxar a cordinha pro ônibus parar, e puxava, puxava, e o sinal tocando, e
tocando, até que ele saiu correndo do ônibus.

E aí todo mundo no ônibus se virou pra mim, e começou a perguntar “Cara, o que você fez
com o moleque?” e tal, e eu “Sei lá, eu não fiz nada...”

Porque eles me viram falando com ele, me viram dando dinheiro pra ele, viram o moleque
surtando e saindo correndo do ônibus, e começaram a achar estranho.

Eles queriam respostas. Então eu respondi o que eu achava que devia responder.

Eu falei “Ei, vocês viram o que o moleque tava fazendo? Vocês ouviram as piadas dele? Eram
uma bosta, não eram? Era tipo o Rain Man5 fazendo stand-up.”

Não me levem a mal, eu me senti mal pelo cara. O que quer que eu tenha dito sem saber tinha
feito o moleque sair correndo do ônibus no meio da noite, assustado. Não tinha nada que eu
pudesse fazer, mas eu não conseguia tirar aquilo da cabeça. Eu não sou um cuzão, sério mesmo
– naquela noite eu fiquei o tempo todo pensando “Porra, só espero que o moleque não tenha
morrido.”

Mas aí eu comecei a pensar “Peraí, se ele morreu, então pelo menos eu fiz a coisa certa. Se eu
tivesse ido atrás dele e ele tivesse morrido, aí provavelmente seria bem fácil me implicarem
pela morte dele. Mas do jeito que a coisa aconteceu, a chance de alguém saber que eu tive
alguma coisa a ver com a história é mínima. Então pelo menos isso.”

Vai saber de onde vem essas vozes que aparecem na nossa cabeça, mas acontece com todo
mundo, não é mesmo?

Não?

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Personagem autista do filme homônimo, interpretado pelo ator Dustin Hoffman. (N.T.)

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Bom, de qualquer forma, nada disso importa, porque o moleque não morreu. Tá bom? Então
todas as minhas ações foram justificadas, minha consciência tá tranquila... Ufa.

Umas semanas depois ele apareceu de novo no mesmo ônibus, e na hora em que ele me viu ele
veio direto na minha direção.

Eu confesso que fiquei um pouco tenso, achei que ele pudesse ter uma faca, sei lá, ele parecia
bravo. Mas ele chegou e disse...

(como Donald) “Desculpa aí, cara.”

(voltando a falar como Gary) E eu respondi “Tranquilo, cara, nem esquenta, tá tudo certo.”

(como Donald) “Que bom... Eu só... Eu pensei que você estivesse rindo de mim ou algo assim”.

(como Gary) “Não, não, claro que não, quer dizer, eu te achei engraçado e tal, as suas piadas,
mas eu não tava rindo DE você.”

(como Donald) “Ah tá, então beleza, é que... bom, é importante que as pessoas não riam de
mim.”

(como Gary) “Claro, tranquilo. Mas então você escolheu o ramo errado, hein? To zoando, eu
entendi o que você quis dizer – não é legal quando as pessoas riem da gente, eu to ligado nisso.”

(como Donald) “Você acha mesmo que eu sou bom?”

(como Gary) “Claaaaro, cara, acho sim.”

(como Donald) “Legal. É que é difícil saber, porque normalmente as pessoas só ficam me
encarando e eu não sei o que elas estão pensando.”

(como Gary) “Ah, bom, provavelmente é porque esse não é um lugar exatamente apropriado
pra comédia, né? As pessoas sempre suspeitam de coisas que fogem do comum. Mas você é
bom sim. Quer dizer, o seu material é bom, quer dizer... tem potencial. Talvez um dia você
encontre o público certo. Que esteja a fim de te ouvir. Que é o que você quer, não é?”

Acho que nessa hora eu fui muito esperto, porque eu basicamente fiz a mesma pergunta de
antes – “por que você faz isso?” – mas perguntei indiretamente. E dessa vez, em vez de sair
correndo, ele me respondeu.

(como Donald) “Não é que eu queria ser um comediante. Eu só preciso me tornar alguém
engraçado.”

(Uma pausa, uma espera, um momento. Um olhar pra plateia que diz “hmmm, agora as coisas
começaram a esquentar” e então GARY se senta no banquinho.)

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

ATO DOIS:
A história de Donald
GARY: Bom, todo mundo faz um pouco de comédia pelos mais diversos motivos, embora
normalmente seja pra fazer com que as outras pessoas gostem mais da gente, e com o Donald
não era diferente. A gente ficou conversando e ele me disse que queria ser engraçado pra
arrumar alguns amigos na escola. Coitado do baixinho, ele não tinha amigo nenhum.

Pior que isso, ele sofria bullying.

(Ele persuade a plateia a fazer som de peninha, tipo “Aaaaaah…” Quando a persuasão
funcionar, ele salta do banquinho com uma postura confrontadora)

É, isso aí, “aaaaaah”, né, seu bando de sacana? Aposto que nenhum de vocês sofreu bullying
na escola, né?

(se recompõe e volta a sentar)

Enfim, pra ser sincero, se vocês vissem o cara não seria surpresa nenhuma saber que ele sofre
bullying, quer dizer, é só olhar pra cara: ele é um alvo fácil.

Pra piorar, os pais dele não ajudaram nem um pouco, né? Deram pra ele o nome de Donald.
Adolescente saca esse tipo de coisa na hora. Na falta de um gordinho ruivo, quem eles vão
escolher pra zoar? O baixinho com nome de idiota, é óbvio.

É simples assim.

Pra mim o que mais pegava era o cabelo encaracolado. Enfim, a molecada é esperta.

Se você é corajoso o suficiente pra não ligar pra zoeira, talvez até consiga escapar, mas pra
alguém como o Donald, aquilo fica ali, cutucando, até que não dá mais pra aguentar. O lance
é que o problema nem era mais o nome dele. Ele tinha virado aquele cara que é a escória do
colégio, que todo mundo cai em cima. Ele é o cara que até os nerds zoam. Todos os nerds da
escola devem ter chegado no primeiro dia de aula morrendo de medo, até que bateram os olhos
no Donald e respiraram aliviados. “Ufa, ainda bem que eu não sou aquele cara, eu não vou ser
o cara mais zoado da escola.”

Bom, é o que eu pensaria, pelo menos. Não to dizendo que eu me orgulho disso, mas eu to
sendo sincero aqui. O lance é sobrevivência, é matar ou morrer, então você tem que saber quem
você é capaz de matar.

(GARY começa a encarar alguém na plateia e anda até essa pessoa. Ele mantém o olhar,
encarando, até que a pessoa comece a ficar assustada. Então ele volta pro banquinho.)

Enfim, o Donald... Ele começou a pensar: “Como será que eu consigo reverter essa situação?
O que eu preciso fazer pra arrumar alguns amigos de verdade na escola e parar de ser zoado
por todo mundo?”

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Então um belo dia, deitado no chão do banheiro depois de enfiarem a cabeça dele na privada e
darem descarga, ele teve uma visão.

Ele percebeu que todas as pessoas que zoavam com ele, todo mundo que tirava sarro, todos
eles tinham uma coisa em comum: eles se divertiam pra cacete enquanto faziam aquilo.

Ele também reparou que o único som constante que ele sempre ouvia toda vez que faziam
bullying com ele era o som das risadas.

(GARY vai para o centro do palco)

Risadas! É engraçado isso. É um som maravilhoso, mas ao mesmo complicado.


Invariavelmente é a única coisa que temos quando reagimos à uma gama de situações. O
mesmo som serve pra quando estamos nos divertindo com nossos amigos, quando vemos um
bebezinho fazer alguma coisa fofa ou quando vemos um velhinho escorregar na rua.

Então ele pensou que se eles simplesmente queriam rir, de repente ele poderia fazê-los rir.
Pelos motivos certos, e não porque alguém puxou a cueca dele pra cima até arrebentar.

Ele se tornaria um cara engraçado!

Só que o Donald não era engraçado. Nem um pouquinho. Ele nem sabia nenhuma piada. Então
ele foi até a biblioteca, pegou um grande livro de piadas e começou a decorar um monte delas.

E ele começou a me contar como ele fazia pra decorar as piadas: “Basicamente eu uso uma
técnica que eu aprendi num livro do Derren Brown6, o cara é fera e ele -” e de repente ele
surtou e disparou pro andar de cima do ônibus.

Eu pensei que ele estivesse tendo um AVC, sei lá, eu tava prestes a chamar a ambulância, mas
aí de repente um monte de tijolos acertou o ônibus e eu também saí correndo e fui pro andar
de cima!

E olha, pra ser sincero, naquela hora eu me caguei um pouco, e por “um pouco” eu quero dizer,
bom, eu me caguei todo, essa é que é a verdade. E eu não to dizendo um simples sustinho, não,
eu caguei mesmo... na calça.

GARY DESCONSTROI A COMÉDIA:


Primeira-pessoa

(Mais uma vez GARY se dirige abruptamente às pessoas sentadas à direita do palco e fala
baixinho no microfone como se ninguém mais conseguisse ouvi-lo, mas é claro que novamente
todos conseguem)

O que eu to fazendo aqui é um lance conhecido como “falibilidade em primeira pessoa”. É


quando você pega uma demonstração de incompetência que você testemunhou em outra pessoa
e a transfere pra si mesmo. Na verdade foi uma velhinha no ônibus que se cagou toda, mas isso
não é engraçado, isso é de dar dó. Todo mundo que tava no ônibus ajudou de alguma maneira
– eu, por exemplo, dei um saco plástico pra ela -, mas eu transferi esse acontecimento pra mim

6
Ilusionista inglês. (N.T.)

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

pra que eu pareça alguém mais falível e que assim vocês se identifiquem comigo. É uma coisa
que eu aprendi com o Billy Connolly7.

(GARY volta a atenção pra plateia toda, como se o que veio antes não tivesse acontecido)

Eu ameaço ir dar uma lição nos moleques que jogaram os tijolos e me fizeram fazer cocô na
calça (que aliás tava escorrendo pelas minhas pernas), mas o Donald me pede pra deixar quieto,
pra não chamar atenção pra aquela parte do ônibus. E aí que eu entendo porque ele correu pro
andar de cima. Ele não pode deixar os moleques verem que ele tá ali.

“Aqueles moleques são da sua escola?”, eu perguntei.

Pooorra, se ele pretendia contar aquelas piadinhas mequetrefes na esperança de transformar


aqueles animais em amigos dele, ele tava perdido. Os caras iam acabar com ele. A teoria dele
era boa, tadinho, mas tava na cara que aqueles selvagens não seriam conquistados com algumas
piadinhas meia-boca tipo “O que é, o que é?”. Eles iam destruir o coitadinho.

E olha, eu sei que qualquer outra pessoa no meu lugar pararia por ali: eu nem conheço esse
baixinho, melhor não me meter na vida dele. Não dá pra consertar todos os problemas do
mundo, então deixa quieto, deixa ele cuidar da própria vida, lutar as próprias batalhas.

Mas eu não. Eu tentei deixar quieto. Juro que tentei. Mas tinha alguma coisa naquele baixinho...
Ele precisava de ajuda.

Ele precisava de uma estratégia. Ele precisava de um material melhor e precisava de uma
plataforma, um lugar onde usar o material. Quer dizer, não fazia sentido ele gastar aquele
tempo todo, aprender um monte de piadas e praticar naquela porra de ônibus, pra depois não
ter um lugar decente pra contar as piadas pra galera do colégio e atingir o objetivo final de
arrumar alguns amigos.

Alguém tinha que interferir e dar uma força pro moleque.

Ele primeiro sugeriu tentar reativar o cantinho dos discursos na biblioteca, tentar arrumar uns
seguidores ali, mas graças a Deus no fim ele mesmo se tocou de aquilo não seria uma solução
– se bem que o principal motivo pra ele desistir da ideia foi que ele não queria que a biblioteca
começasse a ser um lugar frequentado demais.

Ele não queria muitas pessoas lá. Ele tinha que manter a biblioteca um lugar puro, despovoado.
Era pra lá que ele fugia quando pegavam muito no pé dele. A biblioteca era o porto seguro
dele. Ele disse que era o Castelo de Greyskull dele.

E foi naquela hora que eu soube que aquele baixinho era um cara legal de verdade. Alguns de
vocês podem estar ai pensando “Peraí, tem uma contradição nisso aí, dizer que o Castelo de
Greyskull é um porto seguro não faz sentido, afinal o Castelo de Greyskull é um lugar do mal,
assustador pra caralho.” Mas se você tá pensando isso, então você é um imbecil.

Sabe, eu passei a minha vida toda ouvindo vários idiotas se referindo a lugares que eles odeiam
como Castelo de Greyskull – o escritório, a casa dos sogros, o estádio do time de futebol rival

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Ator e comediante escocês. (N.T.)

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

– e o pior de tudo é que eles sempre acham que estão abafando e sendo hilários quando fazem
essa comparação,

“Ah não, eu é que não vou entrar no Castelo de Greyskull, Ha Ha Ha Ha Ha Ha”

E ali estava aquele baixinho esquisito por quem ninguém daria nada, e ele entende o espirito
da coisa. “Você tem razão, baixinho, o Castelo de Greyskull não é um lugar do mal que todos
devem temer. Ele é o santuário do He-Man! Onde o mal não consegue penetrar. A premissa
do desenho é o Esqueleto tentando conseguir acesso ao Castelo e não conseguindo. É lá que o
Príncipe Adam, um simples mortal, consegue a Espada do Poder no Hall da Sabedoria e se
torna o único detentor da Esfera Mágica e de todo o conhecimento contido nas paredes das
inúmeras salas e quartos do castelo, que cumulativamente o transformaram no He-Man, o
Mestre da PORRA DO UNIVERSO E QUALQUER PESSOA QUE PENSE DIFERENTE TÁ
COMPLETAMENTE ERRADA, É IDIOTA E CONFUNDIU TUDO, JUNTANDO O
DESEJO DO ESQUELETO DE CONSEGUIR ROUBAR A MAGIA COM O FATO DE O
LUGAR PARECER UM POUCO ASSUSTADOR E CHEGANDO À CONCLUSAO DE
QUE O CASTELO É UM LUGAR DO MAL. MAS NA VERDADE ELAS NÃO
ENTENDEM O QUE AQUELE LUGAR REALMENTE É – UMA FORÇA DO BEM NESSE
MUNDO. ESSAS PESSOAS JUNTARAM 2 + 2 E SE CAGARAM TODAS AO MESMO
TEMPO EM QUE TINHAM UM AVC!

(GARY se recompõe, olha pros lados e volta pro banquinho meio encabulado. Ele fala
baixinho.)

Naquela hora eu notei que algumas pessoas tavam olhando, meio incomodadas com o barulho
que a gente tava fazendo, então a gente ficou em silêncio por um tempo.

Foi tipo quando o professor dá uma bronca na sala de aula e aí você e o seu amigo se olham
rapidinho e dão uma risadinha, só pra continuarem sendo os donos da situação.

(como Donald) “Você é engraçado”.

(como Gary) Eu deveria deixar claro que eu sei que provavelmente não vale a pena ficar tão
exaltado por causa de coisinhas insignificantes da vida só pra que crianças em um ônibus me
achem engraçado - mas eu pessoalmente vivo pra esse tipo de coisa, então o meu orgulho tava
lá em cima. Eu senti que era o momento de oferecer pro moleque um pouco da minha
sabedoria, então eu disse pra ele que o que ele tava achando engraçado era a minha raiva.

“Donald, tem verdade na raiva, e isso nos ajuda a nos identificarmos uns com os outros.”

E dali em diante ele passou a se agarrar a tudo que eu dizia. Não tinha como eu não ajudar o
moleque.

“Escuta, baixinho, eu... Você é legal, e divertido, mas eu acho que a gente tem que trabalhar
um pouco essas suas piadas.”

(como Donald) “Mas como assim? Essas piadas são clássicas.”

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

(como Gary) “Pois é, elas são boas, mas são velhas. Todo mundo já ouviu. Mas elas são boas
pra treinar. Vamos começar com o seu timing. Você tá atropelando a pergunta com a resposta.
Você não dá um tempo entre a preparação da piada e golpe final.”

(como Donald) “Eu não to entendendo.”

(como Gary) “Seguinte: você tem que seguir a regra de três. Preparar, reafirmar e atacar.”

(como Donald) “Atacar?”

(como Gary) “É. Você prepara a piada, fazendo a pergunta. Aí você dá um tempinho pra gente
tentar adivinhar a resposta e reafirma o que a gente já sabe. E aí você ataca com a surpresa.

Por exemplo, pega aquela piada dos patos que você me contou. Você tá fazendo a pergunta
mas tá dando a resposta muito rápido, então a gente só consegue raciocinar depois que você
entregou a piada.

Tem que fazer assim:

‘“Tem uma partida de futebol entre patos.’ Pausa curtinha, porque agora vem a pergunta.
‘Como ela termina?’

Ai você dá uma pausa maior, pra dar tempo da pessoa pensar. Não muito, só o suficiente pro
cérebro da pessoa trabalhar um pouco e tentar achar uma resposta, e antes que ela perceba, o
cérebro começa a fazer associações entre patos e futebol e tentar achar uma alternativa –
futebol, patos, será que tem a ver com o resultado, será algum time, um estádio talvez...?

E aí, bem na hora em que a pessoa começar a ficar irritada com ela mesma por não conseguir
chegar a uma resposta que faça sentido, é que você dá o golpe final, com a resposta.

‘Termina empatada.’

‘Ah, seu espertinho safado.’

E aí você se delicia com a sua própria glória. Você foi mais esperto que a outra pessoa, fez
com que ela se achasse idiota, e é tudo questão de timing, carinha. É tudo... questão... de timing.

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

INTERVALO
(Há uma mudança clara de tom agora, de modo que tudo parece mais relaxado. Deve parecer
que estamos realmente em um clube de comédia e que ele está totalmente em casa, à vontade.
Ele dá uns goles na cerveja que ficou intocada o tempo todo ali, ele usa o pedestal do
microfone de modo casual. Esta parte deve parecer improvisada, embora não seja.)

Bom, essa é a hora do intervalo. Mas a gente vai ficar por aqui mesmo, se vocês não se
importarem, afinal o espetáculo já é bem curto.

Só pra eu ter uma ideia – a proporção entre comédia e teatro propriamente dito tá funcionando
pra vocês?

Quem veio aqui achando que era um show de comédia tá um pouco decepcionado? Será que
ajudaria se eu contasse algumas piadas, só pra prender a atenção de vocês mais um pouco?
Beleza, aqui vai uma piadinha pra quem veio aqui pra ver um show de comédia.

P: Por que é que tem tanta gente na China?


R: Porque eles comem com dois pauzinhos.

E agora uma pra quem veio aqui pelo teatro, só pra vocês não se sentirem deslocados.

P: Quantos artistas performáticos são necessários pra se trocar uma lâmpada?


R: Não sei, eu fui embora depois de quatro horas de espetáculo.

Bom, esse foi o intervalo. Vamos continuar com a peça.

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

ATO TRÊS:
Surge uma oportunidade
(O tom da performance deixa de ser mais relaxado e volta a ser totalmente no controle da situação)

GARY: Na vez seguinte em que eu encontro o Donald ele vem correndo na minha direção.

(como Donald) “Aconteceu uma coisa que é ao mesmo uma solução e um grande problema”

(como Gary) Acho que ele quis dizer algo como a vez em que um amigo meu tentou apagar
um incêndio com gasolina.

Mas olha, timing é realmente tudo nessa vida. Tinham colocado um cartaz na escola do Donald:

“Tem algum talento? Que tal compartilhá-lo com seus colegas? Sabe onde? No Show de
Talentos da escola!”

Tá, o slogan do cartaz era uma bosta. Mas deu pra pegar a ideia da coisa.

Era uma oportunidade, uma plataforma, uma chance pra que ele vencesse socialmente. Ele
anotou a data do show e o prazo que ele tinha pra se inscrever com o Sr. Ahmed.

Então é simples, eu disse pra ele. Vá falar com o Sr. Ahmed, diz pra ele que você quer fazer e
pronto: você faz o show, conquista todo mundo e se torna o novo rei do recreio.

Beleza.

Ele disse que tava nervoso pra caralho quando foi falar com o Sr. Ahmed, mas conseguiu se
controlar um pouco, pelo menos.

(como Donald) “Eu vim conversar sobre o show de talentos.”

(como o Sr. Ahmed) “Ah, então está pensando em se apresentar para nós, meu jovem rapaz?”

GARY DESCONSTROI A COMÉDIA:


Questionando as suas percepções

Bom, o que eu to fazendo aqui se chama “questionar as percepções da plateia”. Sejamos


sinceros: vocês estão achando que eu fiz um sotaque racista quando interpretei o professor. To
certo? Bom, vocês estão errados – na verdade essa foi a minha imitação do cantor Tom Jones.
O fato é que toda vez que eu faço a minha imitação do Tom Jones as pessoas dizem que eu
pareço um asiático. Logo, quando surgiu a oportunidade de interpretar um personagem
asiático, em vez de arriscar um sotaque tosco e estereotipado, eu achei melhor usar a minha
voz do Tom Jones.

Então o meu sotaque não é racista. Vocês é que são.

(como o Sr. Ahmed) “Ah, então está pensando em se apresentar para nós, meu jovem rapaz?”

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

(como Donald) “Talvez. Qualquer coisa eu te aviso.”

(como o Sr. Ahmed) “Está bem, meu rapaz, só não deixe pra fazer isso em cima da hora. Não
é incomum que as pessoas deixem pra última hora e eu ainda tenho que ver o seu teste.”

(como Donald) “Ah, mas... é que eu... tá, claro...”

(como Gary) Qualquer pingo de calma e compostura que ele tinha conseguido manter aquele
momento tinha obviamente desaparecido.

(como Donald) “Um teste? Um teste? Como eu ia saber que eu teria que fazer um teste? Isso
não tava nos planos!”

(como Gary) “Eu sei, Donald, mas talvez ele só queira manter um mínimo de qualidade no
espetáculo. Talvez ele esteja preocupado com você. Talvez ele queira ter certeza de que todo
mundo tem condições de apresentar o que quer que pretendam apresentar antes de deixar que
subam naquele palco e cometam suicídio social.”

(como Donald) “Eu já fui assassinado socialmente anos atrás! Eu não tenho nada a perder. Mas
eu não posso fazer um teste! Ele não vai entender. Não vai ter plateia. Não vai parecer
verdadeiro e eu não vou conseguir fazer. Tem que ser só na hora, a primeira vez tem que ser a
primeira vez de verdade. Seria como ter uma transa-teste antes de perder a virgindade – não
vai funcionar... Por que você ta rindo?

(como Gary) “Porque você tá me fazendo rir, baixinho. Raiva – é engraçada porque é
verdadeira. Lembra? Vai lá na sala dele e diz pra ele exatamente o que você me disse. Talvez
seja melhor pular a parte sobre perder a virgindade, mas vá lá, fale isso pra ele, você vai fazer
o cara rir e não vai ter teste melhor do que esse.”

A coisa toda não era sobre o quão boas as piadas dele eram, mas era uma batalha contra a
escola toda. Era sobre ele conseguir sair do monte de merda onde ele se encontrava e tentar
ganhar alguma aceitação pela primeira vez na vida dele. Ele contando umas piadas pro Sr.
Ahmed na aula de teatro, só os dois depois da aula, não iria refletir o que a apresentação dele
seria de verdade.

E aí eu me liguei numa coisa.

“Olha, Donald, vá lá e faça o Sr. Ahmed rir, mas depois você vai ter que fazer com ele te dê a
palavra dele de que não vai contar pra ninguém que você vai se apresentar. Pra sua missão ser
bem sucedida, a sua apresentação tem que ser uma surpresa. Você tem que pegar todo mundo
desprevenido. Porque se eles só souberem que você vai se apresentar quando você for
anunciado pra subir ao palco, não vai dar tempo de ninguém decidir de antemão que você vai
fracassar. Se eles não souberem, você pode surgir do nada e atacar todo mundo. O elemento-
surpresa é a chave aqui.

Ele fez que sim com a cabeça. Acho que ele entendeu. Então lá foi ele fazer o Sr. Ahmed rolar
de rir.

Pensando agora, talvez não tenha sido o melhor conselho do mundo, falar pra ele ir lá e gritar
com um professor. Talvez não tenha sido a melhor coisa pra um mentor dizer, mas eu senti que

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

ele precisava de um empurrãozinho. Senão, ele simplesmente iria voltar pra vidinha dele, no
fundo daquele monte de merda, e aquilo tava partindo o meu coração.

Ei, eu não sou o sacana aqui. Além disso o cara tem que cometer alguns erros pra aprender.

Enfim, na semana seguinte o Donald reapareceu no ônibus e algo nele parecia diferente. Ele
parecia mais duro, mais sério. Ele não contou nenhuma piada. Ele na verdade mal abriu a boca.

(como Gary) “E aí, baixinho, tá tudo certo?”

(como Donald) “Tá sim, cara, tá mais do que certo.”

(como Gary) “Como foi com o Sr. ...?”

(como Donald) “Com o Sr. Ahmed? Uma tragédia.”

(como Gary) “Ele não caiu na sua?”

(como Donald) “Ah não, ele caiu sim. E ele prometeu manter tudo em segredo também. O que
ele conseguiu fazer. Por um dia e meio.”

(como Gary) O Donald foi falar com o Sr. Ahmed e contou pra ele toda a teoria. O cara pareceu
concordar com ele. Talvez o professor tenha enxergado que o Donald era um cara desesperado
e quis dar a ele toda ajuda que conseguisse. Enfim, ele deu a palavra de que não contaria nada
pra ninguém.

Mas é claro que assim que o Donald saiu da sala, o Sr. Ahmed se viu num dilema. Ele tava
sentado sobre uma mina de ouro. Por um lado, ele tinha os deveres dele como professor. O
Donald, aluno dele, tinha pedido a ele pra manter um segredo. Por outro lado, o baixinho
Donald Robertson ia fazer stand up. Era bom demais pra não dividir com os outros, certo?

Aquela ânsia. Que surge do mesmo lugar de onde sai aquela curiosidade mórbida que faz com
que a gente queira ser o primeiro a contar pros amigos que uma celebridade morreu. A gente
quer ser o dono daquele momento, se conectar a ele. Ei, às vezes a gente busca a glória em
qualquer lugar em que ela possa estar. Mesmo que seja às custas de outra pessoa. Eu já fiz algo
assim, tenho certeza de que vocês também já fizeram.

E o Sr. Ahmed... Ele também fez.

O Donald percebeu o que o professor tinha feito no segundo em que ele entrou na aula do Sr.
Ahmed no dia seguinte. Cochichadas e risadinhas se transformaram em silêncio absoluto no
momento em que o Donald entrou na sala e todos o encararam ao mesmo tempo, pra em
seguida avançarem sobre ele com uma excitação descomunal.

Eles foram brutais. Empurraram, puxaram, agarraram. Depois de algum tempo eles
conseguiram colocar o coitado sobre a mesa dele e começaram um corinho “PI-A-DA!!! PI-
ADA!!! PI-A-DA!!! PI-A-DA!!!”

E aí, como em diversas outras ocasiões anteriores, o Donald – ficou em silêncio. Ele mordeu
a língua e tentou isolar o som que eles faziam. Pode ter parecido covardia ele não aproveitar

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

aquele momento pra brilhar, mas ele não ligava. Porque ele sabia de uma coisa: aquele não era
um ambiente propício a risadas. Ele sabia que os colegas não queriam realmente que ele fosse
um grande comediante e os fizessem rir. Eles queriam que ele fracassasse. Então ele não
entraria no joguinho deles.

Eles provocaram, provocaram, mas ele se manteve lá, forte, impassível, e tava funcionando:
ele tinha adquirido uma nova habilidade, a de não escutar nada do que os outros gritavam. E
ele nunca tinha se sentido tão forte. Ou pelo menos foi o que ele pensou – na verdade a sala
tinha realmente ficado em silêncio, porque o Sr. Ahmed tinha acabado de entrar na sala.

(como o Sr. Ahmed, para a sala) “E aí, macacada?” (pro Donald) Ei, o que está acontecendo
aqui?

(como um dos colegas) “Ele tava fazendo a gente rir, professor.”

(como o Sr. Ahmed) “Isso é verdade, meu jovem? Você é engraçado mesmo, é?”

(como um dos colegas) “Não exatamente engraçado, professor. Ele tava contando umas piadas
e elas eram todas sujas, professor, cheias de palavrões e coisas nojentas.”

(como o Sr. Ahmed) “Isso é verdade, meu jovem?”

(como um dos colegas) “Professor, o que é clitóris?”

(como o Sr. Ahmed) “Donald Robertson! Muito bem, rapaz, já que você é um comediante muito
bem informado, por que você não conta pra sala toda o que é um clitóris?”

(como Gary) E aí, naquele momento, alguma coisa aconteceu com o Donald. Ele não sabe de
onde exatamente surgiu aquele impulso, mas é o que pareceu certo fazer naquela hora. Com
mais tempo pra pensar talvez ele tivesse agido diferente, mas ele não tinha tempo.

(como o Sr. Ahmed) “Não tem nada a dizer? É o que eu imaginava mesmo. Bom, vamos tomar
uma providência a este respeito.”

(como Donald) “Mas professor... Eu sei o que é um clitóris.”

(como o Sr. Ahmed) “Ah é? Então por favor conte pra sala.”

(como Donald) “Bom... o senhor é um clitóris, professor.”

BZZZBZBZBZBZB (som estranho que vem do microfone)

(como Gary) Os segundos seguintes da vida daquele baixinho passaram como se fossem em
câmera lenta. A terra parou e embora o corpo dele estivesse paralisado de medo, ele se sentia
incrível! Um formigamento ia dos pés ao pescoço dele. Alguma coisa tinha acordado nas veias
dele, algo que ele nunca tinha conhecido: excitação? Adrenalina? Testosterona? Vai saber... A
única certeza que ele tinha é que ele tava se sentindo o fodão. Aquela sensação era sensacional!
Ele nunca tinha se sentido menos como ele mesmo, nunca tinha se sentido tão vivo.

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Claro que logo a adrenalina começou a diminuir e ele começou a sentir os neurônios dele se
agitando e entrando em modo de emergência transmitindo uma mensagem interna pro resto do
corpo: (baixinho) “Fuuudeeeeeuuuu!”

Conforme a excitação dele se transformava em pânico, ele precisava de alguma garantia de


que não tava morto ou prestes a morrer.

E foi ali, em meio àquele silêncio, que um som estranho penetrou o ar e aquele sentimento de
pavor que fazia com que o tempo parasse. Era o som de risadas. Risadas de verdade,
gargalhadas na verdade, e elas não eram dirigidas a ele, mas sim geradas por ele, pelo que ele
tinha dito, pelo que ele tinha feito. A galera adorou o que ele disse pro Sr. Ahmed.

(como Gary) “Tá vendo, Donald? Agora a coisa ficou séria.”

(como Donald) “Como assim?”

(como Gary) “Porra, você tem que ter percebido o que aconteceu. Você acabou com o cara e a
galera adorou. É isso que você tem que fazer, e não aquelas piadinhas de “o que é, o que é?”.
Escuta, desculpa, Donald, mas eu vou ser sincero com você: as suas piadas, elas são uma bosta.
Quer dizer, elas são legais pra um almoço de família ou pra mandar pelo whatsapp, mas se
você quer conquistar aqueles caras, você tem que ser mais agressivo.

(como Donald) “Eu não posso simplesmente fazer os caras rir? Não é suficiente?”

(como Gary) “Não, Donald, porque não é assim que as coisas funcionam. Olha, comédia é
difícil – é uma luta constante ente você e a plateia, na melhor das hipóteses, é matar ou morrer,
e a sua plateia já chega querendo que você morra. Você tem que ser durão. Se você for se
apresentar com as piadinhas do livro que você decorou, você só vai dar mais munição pra
aqueles bárbaros te destruírem, e eles vão acabar com você até que você saia da escola. Você
não enxerga isso, Donald? Eles não querem rir das suas piadas. Você não vai mudar o mundo
com energia positiva. Eles são um bando de monstros e tão atrás de sangue, então se você não
quiser que seja o seu sangue, é bom oferecer o sangue de outra pessoa. Do mesmo jeito que
você fez com o Sr. Ahmed.”

(como Donald) “Mas eu me senti mal pelo que fiz com o Sr. Ahmed. Eu odeio quando as
pessoas são maldosas.”

(como Gary) “Olha, o filho-da-puta mereceu. Essa é a lei, Donald – o cara enfiou uma faca nas
suas costas e você se acabou com ele por isso. Entendeu?”

(como Donald) “Bom…”

(como Gary) “E me corrija se eu estiver errado, mas quando todo mundo riu, não foi a primeira
vez que você se sentiu conectado a alguém?

Exato! Se você quer se juntar ao bando, você vai ter que se transformar naquilo que odeia, e
isso é triste, mas é a real, é a vida, Donald. É o lento processo pra você se tornar aquilo que
mais odeia. Agora é a hora da decisão, Donald: você tá dentro? Ou tá fora?

Ótimo!”

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

ATO QUATRO:
Preparando-se pra batalha
GARY: (como Gary) “Eu quero que você comece fazendo uma lista de todas as coisas que te deixaram
puto na escola, das pessoas que te sacanearam, fizeram bullying com você, mentiram pra você,
tiraram proveito de você. Eu sei que essa lista vai ser longa, mas tente se ater aos infratores
principais.

Depois, eu quero que você liste as coisas que chamam a atenção nessas pessoas. Coisas
superficiais, tipo gagueira, um tique nervoso, uma cicatriz, cabelo encaracolado... Se a família
é pobre e eles tem um carro de merda... Se o pai tá preso... Melhor ainda: se o pai e a mãe
morreram. Olha, Donald, eu sei que isso pode parecer cruel, mas essas são as coisas de que
vamos precisar – a gente vai ter que voar na jugular deles. Vamos ver como esses desgraçados
lidam com algo sobre a morte dos pais deles.

Você trouxe o seu caderno? Certo, a gente vai ter que te armar com uma série de insultos pra
você usar contra eles. Xingamentos que misturam palavras são uma boa. Você pega um
palavrão qualquer e junta com uma palavra aleatória... tipo nariz-de-porra ou cara-de-caralho.”

Olha, eu vou contar uma coisa pra vocês: ele precisou de uma forcinha, mas depois que ele
pegou o jeito da coisa, o lado criativo dele começou a aflorar e saiu cada coisa genial...

(como Donald) “Porco-punheteiro! Cabelo-de-mijo! Pintor-de-porra!”

(como Gary) A lista era enorme. Acho que eu nunca vou entender o significado de “foguete-
de-vulva”.

“É isso aí, baixinho! Agora a gente só precisa trabalhar na sua presença de palco. A gente ter
que ter certeza de que você vai ser o dono daquele palco. Todos os outros dias da sua vida você
foi um estranho nos domínios de outra pessoa, mas aquele palco vai ser o seu domínio, então
é só você chegar e tomar conta do lugar, fazer com que todos saibam que aquele palco é seu e
de mais ninguém e que são eles que terão que te escutar.

Então, de quem é o palco?”

(como Donald) “O palco é meu!”

(como Gary) “E quem vai ter que te escutar?”

(como Donald) “Todo mundo!”

(como Gary) “E o que você vai fazer?”

(como Donald) “Vou acabar com todos eles!”

(como Gary) “Como é que é? Ah, isso aí, acabar com todos eles. É isso aí. É que eu senti um
pinguinho de hesitação no seu olhar, Donald, por isso fiquei na dúvida. Mas é isso aí, você vai
destruir todos eles.”
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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

(como Donald) “Você tem certeza que eu preciso matar alguém?

(como Gary) “Claro. É triste, mas tem que ser feito, você vai ter que matar alguém pra mostrar
que não tá mais no fundo do poço. O mundo não é perfeito, mas é o que nos resta.”

(como Donald) “Beleza. Valeu.”

(como Gary) “Disponha, baixinho.”

E foi isso, A gente se cumprimentou, se despediu e lá foi ele, se apresentar na frente de todo
mundo, enfrentar aquela batalha. Se ele se sairia bem? Não faço a menor ideia, mas pelo menos
ele ia mostrar que não aceitaria mais tudo quietinho e com a cara no chão.

(como Gary) “Acaba com eles, baixinho.”

(como Donald) “Fica tranquilo. Eu vou acabar com eles. Ou pelo menos vou morrer tentando.”

(Ele fica parado por um tempo, até que lentamente se dirige ao banquinho para...)

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

ATO CINCO:
Reflexão
GARY: (como Gary) Eu tava super empolgado na semana seguinte quando peguei o ônibus. Eu tive
uma visão do Donald chegando no andar de cima do ônibus que poderia perfeitamente fazer
parte de um filme do John Hugues. Ele ainda coberto de confetes depois da festa que deram
pra ele, o novo rei do recreio. Talvez ele até me trouxesse um presente, quem sabe? Ou pelo
menos preparado um pequeno discurso de agradecimento. O que mais eu poderia ensinar pra
ele? Como fingir ser alguém que manja de futebol?

Mas quando o ônibus parou no ponto onde ele normalmente entrava, ele não tava lá.

Nem na semana seguinte, e nem na outra.

Aquele suspense tava me matando, tanto que eu acabei pegando o ônibus todas as noites
durante várias semanas.

Ele tinha me deixado na mão. Pelo menos foi o que eu achei. Pensei que nunca mais fosse ver
aquele baixinho. Pensei que fosse ser que nem a porra do tigre no final daquele filme “As
Aventuras de Pi”. Era o “caso das colheres” se repetindo.

Aí, algumas semanas depois, eu tinha voltado a pegar o ônibus só uma vez por semana e eu
tava sentado ali, no fundo do ônibus. Já tinha perdido a esperança de reencontrar o baixinho.
Ai de repente cai uma chuva de tijolos sobre o ônibus.

(resmungando pra si mesmo enquanto se levanta do banquinho)

“Ah, eu vou dar uma lição nesses animais, isso não pode continuar assim.”

Eu me levanto e me viro pro bando de adolescentes que atirou os tijolos no ônibus e tá do lado
de fora, pra tirar satisfação...

(ele para de repente, na frente do palco. Ele viu alguma coisa.)

... e quando eu olho, no meio da molecada, adivinhem quem eu vejo? O Donald. Porra,
funcionou, ele tá lá, ele é um dos caras! Eu fico com vontade de acenar pra ele, dar um oi, mas
me contenho – afinal eu não posso acabar com a dignidade dele -, mas mesmo assim eu quero
fazer alguma coisa, mostrar que eu to orgulhoso. Então eu dou só uma acenadinha com a
cabeça. Mas os amigos dele me veem. E eu penso, “Ah, que merda, vão pegar no pé dele por
causa disso, eu estraguei tudo, devia ter deixado quieto. Foi mal, baixinho.”

Mas aí, ele manda muito bem.

Bem calmo e tranquilo, como tem que ser, ele simplesmente ergue a mão na minha direção e
me mostra o dedo do meio.

O baixinho sacana tá me zoando!

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

E aí, enquanto os amigos dele dão risada de mim e tapas nas costas dele, ele dá uma olhada na
minha direção, como se dizendo...

(como Donald) “Valeu!”

(como Gary) E ai ele pega um tijolo e arremessa no ônibus. Arrebenta uma janela. E acerta
uma mulher grávida bem no rosto.

Naaah, to zoando com vocês, ele não fez isso! O tijolo na verdade ricocheteou na lataria do
ônibus e eles saíram correndo, pulando, gritando, se divertindo.

(Gary pega o pedestal e o coloca no meio do palco. Encaixa o microfone de volta no pedestal.
E termina bem ali.)

Moleques, né?

Ei, eu sei que vocês podem dizer que eu criei um monstro. Mas deixa eu dizer uma coisa pra
vocês: eu teria dado qualquer coisa, qualquer coisa, pra ter uma vitória como aquela quando
eu tinha a idade dele.

Eu só espero que quem quer que ele tenha matado aquela noite tenha merecido.

(Gary dá um tempo e sai do palco,)

(As luzes vão se apagando até quase um blackout, restando apenas um pouquinho de luz sobre
o microfone. Há um silêncio também, o suficiente pra que a plateia ache que a peça terminou
e comecem a aplaudir. E então...)

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

EPÍLOGO:
Donald, comediante de stand up
VOZ EM OFF: (como o Sr. Ahmed) Muito bem, meninos e meninas, acalmem-se, por favor. Eu
gostaria de agradecer mais uma vez ao grupo Canteen Riot Squad e à versão um tanto
diferente que eles deram pra canção “Delilah”.

Eu só queria entender porque, porque todo ano alguém canta essa música.

Bom, nossa próxima atração é um jovem rapaz que vem aqui pra dizer algumas coisas
pra vocês.

Senhoras e senhoras, meninos e meninas, por favor uma salva de palmas para Donald
Robertson, comediante de stand up.

(DONALD, um garoto de 14 anos, entra, bem devagar. Ele está visivelmente muito
nervoso. Ele vai até o lugar iluminado do palco, mas o microfone está mais alto que
ele, já que estava na posição deixada por Gary. Ele reposiciona o microfone meio
sem jeito. Há um silencio desconfortável, até que...)

DONALD: E aí, cambada de cuzão?

Hmmm, foi mal, eu... eu não... Vamos lá, cara, você consegue fazer isso.

P: Tem uma partida de futebol entre patos. Como ela termina?


R: Em uma disPATA de pênaltis.

P: O que é um pontinho amarelo no topo de um prédio?


R: Um Fandango suicida.

P: O que o cadarço falou pro tênis?


R: To amarradão em você.

Olha, eu só queria dizer que...

Será que eu poderia começar de novo? Vocês se importam? Eu só tava


experimentando com essas... Eu tinha que experimentar, só pra saber se elas
funcionavam.

Enfim, me desculpem. Tudo bem se eu recomeçar? Vocês não se importam, né?

(Blackout)

Ok.

(luzes se acendem)

(Donald continua nervoso, mas vai em frente)

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“Donald Robertson Is Not a Stand Up Comedian”, de Gary McNair Tradução: Rodrigo Haddad (fev/2015)

Ok. Eu queria falar pra vocês desse cara que eu conheci. Ele era um cara engraçado,
e por “engraçado” eu não to querendo dizer “engraçado ha ha ha”, ele não era um
comediante. Ele era o tipo de cara que a sua mãe e o seu pai não gostariam de ver
conversando com você.

E não é que ele tivesse uma aparência engraçada. Se bem que a aparência dele não era
das melhores... cabelo encaracolado, uma malha de lã meio puída... mas enfim, não
era isso.

Indo direto ao ponto, o cara era meio esquisito. Ele ficava tentando me dar uns
conselhos de vida, esse tipo de merda. Pra falar a verdade ele era um cara bem
esquisito.

E o mais esquisito de tudo é que ele sempre me falava que tinha uma namorada que
ele tinha que ir visitar, mas eu nunca vi os dois juntos. E cá entre nós, eu acho que ele
não enganava ninguém, quer dizer, o cara parecia uma mistura do Jonathan Creek8
com a Shirley Temple, nem a pau ele tinha uma namorada.

Ele ficava repetindo o tempo todo que ele sabia que era engraçado. Disse que saiu
uma crítica sobre ele uma vez no The Scotsman dizendo que ele era “hilário”, mas eu
pesquisei a matéria no Google e o que ela dizia, na verdade, era que “embora às vezes
seja engraçado, falta direção ao espetáculo e no fim das contas é uma decepção.”

Total foguete-de-vulva.

(Ele tira o microfone do pedestal e põe o pedestal de lado. Está ficando mais
confiante.)

O cara tinha problemas. Ficava dizendo umas merdas tipo “A vida é uma batalha,
cara, é matar ou morrer.” E olha, eu vou dizer pra vocês, eu acho que ele matou
mesmo! E provavelmente mais de uma vez. É bem capaz que ele tenha centenas de
cadáveres no porão da casa dele. Deve ser o lugar mais assustador do mundo. Deve
ser tipo, sei lá, tipo... o Castelo de Greyskull.

(Ele agora se dirige à mesma pessoa que foi manipulada pelo Gary no início)

Mas e aí, cara, de onde você é?

(Blackout)

8
Personagem de uma série inglesa, que tem cabelo encaracolado. (N.T.)

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