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de John McCann
PERSONAGENS:
(A sala do apartamento de FIONA. O chão está coberto por centenas de folhas de papel
descartadas. Em alguns pontos da sala a quantidade de papel chega a pelo menos alguns
centímetros de altura. Em algum lugar no meio da bagunça há um cesto de lixo
transbordando de papel. Todas as folhas contêm coisas escritas. Algumas foram
descartadas no meio de uma frase ou no meio de um pensamento. Outras foram
amassadas em bolinhas, ou rasgadas mesmo. Quando não tinha mais papel, o autor
começou a escrever nas paredes, nos móveis, nas cortinas, na TV. Um relógio destruído
está precariamente pendurado na parede. Claramente houve atividades frenéticas no
lugar bem recentemente.
Há uma mesa na parte da frente do palco. A única coisa que há sobre ela é uma
pasta/envelope de papel manila colorido. Em meio ao caos do lugar ela parece uma ilha,
um altar.
A campainha toca.
Pausa.
Pausa.
A campainha toca uma terceira vez e uma figura emerge da pilha de papel. Palavras
estão rabiscadas nas roupas dela, nos braços. Um Post-It rabiscado está grudado na
testa dela. Em cada mão ela segura um monte de canetas. Esta é FIONA. Ela está
extremamente grávida. Ela dá uma olhada no lugar.)
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)
FIONA: Merda!
Que merda!
(Ela larga as canetas, espalhando-as pela sala. Ela arranca o Post-It da testa e o joga fora. A
campainha toca novamente.)
Paul?
É você, Paul?
A porta tá aberta.
Tá aberta!
Merda!
(FIONA sai correndo ao mesmo tempo em que MARK entra. Ele veste terno e tem um crachá
laminado brilhante e uma flor típica escocesa na lapela. Ele carrega uma pasta ou sacola de
trabalho, café e um pão-doce (um “Danish”) e uma sacola de presente que parece bem cara.
Colocando as coisas no chão, ele vai até a janela e dá uma olhada na rua, tomando cuidado
para não encostar nas cortinas)
FIONA: Escuta...
Bem pior.
E antes que eu te conte o que fiz, só prometa que não vai gritar, tá?
Eu fumei um cigarro.
Eu sei, eu sei. Mas foi só um. Nem um, na verdade. Eu só dei duas tragadinhas e te juro, me
senti tão culpada que eu quase vomitei.
Mas depois que você saiu, eu ... Bom, pra começar eu não conseguia dormir.
Eu precisava de você.
Mas aí eu pensei, ‘quer saber? Foda-se! Se eu não fizer isso, quem vai fazer? ’
(FIONA entra. Ela está extremamente bem vestida agora, uma transformação completa. Ela
nem olha para Mark e vai direto pro café e pro danish que estão no chão.)
Escuta, Paul, a gente não vai deixar que fiquem nos apressando, tá bom? Não hoje.
Quem é você?
(FIONA se retrai)
MARK: Bom... Considerando que nós estamos tentando abraçar o mundo todo com as pernas, o Partido,
em sua grande sabedoria, decidiu reposicionar alguns ativos: “Pra fazer um uso melhor do
nosso pessoal”, é o que disseram.
MARK: Garantir que estejamos todos no mesmo... que estejamos todos olhando para a frente.
MARK: Quando?
FIONA: É.
FIONA: Não.
Não hoje.
De jeito nenhum.
Deus do céu...
Preciso do Paul.
FIONA: Porque se ele tá querendo tirar um dia pra ficar em casa justo hoje ele vai ver uma coisa.
Se isso for uma espécie de piada, então vocês vão ter que me segurar pra não arrancar o coro
dele, aquele escroto insolente.
MARK: Henderson.
FIONA: Que seja. A sua presença aqui não é necessária. É do Paul que eu preciso. Mande chamar o
Paul.
MARK: Não.
FIONA: “Não”?
O memorando que diz que qualquer merdinha pode entrar aqui e falar comigo desse jeito?
Quer dizer, eu só apenas uma Ministra Sênior de um governo escocês soberano, valha-me
Deus.
FIONA: Ele trabalha pra mim, então se eu digo pra ele vir ele tem que vir, porra!
Tá certo. Eu vou ligar pros seus superiores, eles com certeza vão dar um jeito nessa sua...
FIONA: “Eles”?
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)
Quem são “eles”? O que você quer dizer exatamente com “eles”?
MARK: O Partido.
Os seus superiores.
FIONA: E eu não posso ouvir as duas versões? Considerando que é uma ocasião especial e tal?
MARK: Tá certo.
De diversas maneiras.
MARK: Em...
... em mais ou menos uma hora, você, no papel de Ministra Designada de Assuntos Exteriores
Escocesa, irá se encontrar com o seu equivalente inglês pela primeira vez desde o referendo.
Em Holyrood1, perante toda a imprensa internacional, você discursará sobre as emergentes
relações entre a nova Escócia e o que restou do Reino Unido.
Eu estou aqui pra te dar toda a ajuda necessária até que o discurso seja feito.
(FIONA está em silêncio. MARK procura por uma folha de papel em sua sacola)
Se me permite, Ministra.
1
Área de Edinburgh onde fica localizado o Parlamento Escocês, apelido do próprio Parlamento. (N.T.)
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)
Parece que ele foi cortado e alterado um pouco nos últimos dias, mas essa aqui... é a versão
final. Prometo.
MARK: Ah...
Eu trouxe um presente.
FIONA: O que é?
(FIONA pega a sacola que parece extremamente cara e tira de dentro dela uma caixa que
parece extremamente cara. Ela abre a caixa, que está cheia de papel de seda azul e branco,
que é estraçalhado por ela. Após algum tempo ela encontra o presente: uma caneca de
cerâmica barata com a bandeira escocesa).
(Ela volta a atenção para a caixa novamente e encontra um cartão, que ela abre e lê.)
MARK: Não.
MARK: O Partido. Eles estão preocupados que você não siga o roteiro.
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)
FIONA: “Roteiro”?
MARK: Eles esperam que eu ligue pra eles o mais rápido possível se eu achar que há algum problema.
É o discurso, ali?
MARK: Tá certo.
Que seja.
Sejamos justos, é o que estão dizendo. Ela foi um verdadeiro furacão durante a campanha do
referendo. Inspiradora. É a pessoa certa pro cargo, sem sombra de dúvida. Se ela acertar no
discurso agora, então quem sabe ..., mas agora... bem, ela parece diferente.
MARK: “Com a vitória e tudo que aconteceu, esperávamos que ela parecesse um pouco mais feliz. ”
FIONA: OK.
MARK: “Vocês repararam na aparência dela ultimamente? Parece que ela atravessou uma cerca de
arame farpado. E eu fiquei com pena da cerca.”
FIONA: Entendo.
MARK: Um colega do Partido disse até que, e essas foram as palavras dele, não minhas: “Olha só pra
ela. Ela está agindo como se soubesse que tem uma porra de um estrangeiro dentro dela.”
No limite do razoável.
MARK: Isso não me diz respeito, Ministra. Eu estou apenas fazendo o que me pediram.
FIONA: Ah, claro, isso deve ser muito difícil pra você.
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)
MARK: Ter sotaque escocês é um pré-requisito pra todos que queiram fazer parte da nova Escócia?
FIONA: Na Queen´s?
MARK: É.
MARK: É sim.
MARK: Geologia.
FIONA: Geologia?
Estranho.
Política e Geologia.
(MARK tenta passar por ela, mas ela bloqueia o caminho mais uma vez)
O que quis dizer, Ministra, quando disse que fumar um cigarro era pior do que “o que estamos
planejando fazer”?
O que quer que seja eu imagino que não vá impedir que as coisas corram bem hoje.
Porque eu não poderei aprovar nada desta natureza... quer dizer, me sinto na obrigação de dizer
que algo assim seria extremamente improdutivo.
FIONA: Não.
MARK: Não?
FIONA: Ainda não. Eu quero saber o que o Partido planejou para mim.
E pelo amor de Jesus Cristo na cruz, quer parar de olhar pra essa porra de relógio?
Anda, vamos...
Ficar parado aí não vai fazer com que os minutos passem mais devagar.
MARK: Ok.
Está certo.
O tempo é realmente curto, não tenho como frisar isso ainda mais.
FIONA: 53 segundos?
Deus do céu.
É sério isso?
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)
Em um dia normal.
Muito sol?
Vá direto ao ponto.
Há um interesse sem precedentes nisso tudo, no que estamos buscando: o nascimento de uma
nação soberana.
FIONA: Nascimento?
MARK: Oi?
FIONA: Inacreditável.
Por acaso a Escócia não existia antes do Reino Unido, ou sou ou que estou errada?
Jesus.
Se você faz tanta questão de trabalhar aqui, pelo menos poderia ter lido uns livros. Feito a lição
de casa.
FIONA: Porque ajudaria muito se conseguíssemos concordar pelo menos nas coisas básicas.
Fundamentais.
Jesus.
E o que mais?
MARK: Er...
Tá.
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)
É o seu discurso.
MARK: Ah, tem alguns segundos a mais pra que possa haver um bate-papo amigável, piadinhas e tal...
FIONA: É mesmo?
Diga-me uma coisa, Sr. Anderson, com que frequência você vai à casa de alguém e, na frente
da família dele, dos vizinhos, da imprensa do mundo todo, você diz a ele que tem o enorme
prazer de dar as boas-vindas a ele na própria casa dele?
Ele discursar primeiro dá ao mundo a impressão de que eles nos deram a liberdade, como um
presente. Como se eles tivessem nos ajudado a encontrar nossa própria voz. Que eles estão
sendo condescendentes com os plebeus, permitindo que os nativos de merda abram a boca.
Nem a pau.
Fodam-se eles.
Insolente da porra –
MARK: É só que...
FIONA: O que?
É só que o que?
FIONA: Tecnicamente eles não vão foder com a gente. Não hoje.
MARK: Estou simplesmente dizendo que todas as partes querendo enfatizar o tom cordial.
MARK: E sob este aspecto nossos convidados estão perguntando se podemos responder algumas
perguntas em conjunto após os discursos.
Terminamos?
A escolta policial.
Posso?
Aqui.
Olha.
MARK: BBC.
O Povo.
Ah não.
Um comitê as escreveu. Um comitê formado principalmente por gente que não gosta do que
fizemos. Um comitê presidido por Westminster.
Mas a merda que o comitê me enviou não serve nem pra limpar a bunda.
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)
São palavras insipidas. Vagas. Inexpressivas. Privadas de qualquer emoção. Uma paródia.
Resto de aborto.
FIONA: Duvido.
MARK: Se fugir da mensagem planejada isso pode acabar com a sua carreira.
FIONA: Há!
O meu armário está cheio de sacolinhas e canecas com o logo dos organizadores desses
eventos, bolinhas pra apertar e aliviar o stress, sem falar na vergonha que vem depois de cada
transa pós-congresso.
Tem lugares da Escócia em que até hoje eu não tenho coragem de mostrar o rosto.
Ministra, tanto você quanto eu sabemos que muito mais danos às relações internacionais
podem ser causados nos bares e boates mundo afora que em qualquer campo de guerra.
Mas pelo menos nesses casos dá pra por a culpa na bebida. Pelo menos tem uma desculpa.
MARK: O referendo.
Ainda que alguns poucos meses atrás ninguém soubesse sequer o seu nome.
Ninguém sabia de onde você surgiu. Ninguém tinha sequer ouvido falar de você.
Eu me lembro até do frenesi que rolou pra descobrir quem exatamente era você.
O Partido percebeu e aí você foi como um míssil Exocet contra os votos “não”.
MARK: E você foi idealista desde o princípio. Até inocentemente, alguns disseram.
Mas não pra quem realmente importava – o povo. Não. O povo te achou totalmente
convincente. Inspiradora.
MARK: Então cada vez que você era pessoalmente atacada pelos “Nãos”, o povo sentia como se eles
mesmos também estivessem sendo atacados.
FIONA: Escuta aqui, não sou eu que preciso de uma aula de História.
MARK: Onde eu estava, as pessoas diziam, “Quem quer que esteja mexendo as cordinhas dessa mulher
é um gênio”.
“É só dar uma aparadinha aqui, outra ali, e quem sabe do que ela pode ser capaz.”
“Ninguem segura essa mulher.”
Em erupção.
FIONA: Há!
Se não fosse por você, bem, você não estaria aqui neste momento.
FIONA: Olha, não me leve a mal, cara, mas eu to começando a te achar meio estranho.
É verdade que ele ainda tá ali, perdido debaixo de todas aquelas pedras, e que não conseguiram
resgatá-lo?
E a única foto antiga sua que conseguiram achar mostrava você e o seu pai em um protesto
contra um imposto.
Em lugar nenhum.
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)
Não dá pra dizer que você não foi bem recompensada por tudo isso.
Sabe, Ministra, o fundo do oceano da política está coberto dos restos dos ossos limpinhos de
gente como você.
MARK: Vocês raramente chegam tão longe. E nunca tão rápido assim. Porque inevitavelmente alguém
em algum lugar encontra alguma coisa que prova que vocês eram bons demais pra ser verdade.
MARK: Exato.
Até agora.
Qual é o segundo?
MARK: Que vocês realmente comecem a acreditar no que dizem sobre vocês.
FIONA: Entendi.
Mas eu fiquei imaginando se você então começaria a achar que tem um direito divino de dizer
ou fazer exatamente o que quiser.
MARK: Alguns políticos acham que são feitos de Teflon. Eles chegam tão longe tão rápido. Acham
que podem falar e fazer o que bem quiserem e que nada vai “grudar”. Danem-se as
consequências.
FIONA: De Hillary?
Uma das primeiras coisas que ela fez quando se tornou Secretária de Estado.
Ela tinha ido se encontrar com o equivalente russo pela primeira vez.
A Hillary vinha com aquele papo de normalizar as relações entre o Ocidente e o Oriente.
Ela tinha acabado de começar. Tava há duas semanas no cargo, no máximo. Mas queria causar
impacto logo de cara.
Um olho no cargo que ela tinha, outro já no Salão Oval com o nome dela na porta.
“Eu vou arrumar um daqueles botões vermelhos enormes,”, ela disse. “Daqueles que os caras
apertam nos submarinos quando vão lançar um míssil nuclear tático, só que em vez de escrever
FOGO no botão, vou pedir pra que escrevam REINICIAR. Aí a gente vai poder dar risada de
tudo que aconteceu e ficará tudo bem, porque todos seremos normalizados. Ficaremos tão
normais que seria como se nada do passado tivesse acontecido. Nada de Guerra Fria. Nada de
Crise dos Mísseis em Cuba. Nada de Afeganistão, de Chechênia. Nada de Iraque. Nada de
desconfiança. Nada de suspeitas. Apenas eu e o Sergei apertando o botão de REINICIAR em
frente às câmeras. Perdoar e esquecer.”
Sabe, certas pessoas jamais deveriam ser autorizadas a usar aqueles dicionários Inglês-Russo.
Porque o grande botão vermelho da Hillary nunca teve a palavra REINICIAR escrita nele. Mas
sim SOBRECARREGAR.
Cabuuum!!
Eu estava torcendo pra que você provasse que os outros estão errados por anos e anos a fio,
Ministra.
Eu realmente estava.
FIONA: Entendo.
MARK: Mesmo?
Entende mesmo?
Todo aquele lance dos “Cuidados Paliativos”. Eu fico imaginando – tendo testemunhado todo
aquele definhamento, você nunca se sentiu tentada a comtemplar a sua própria deterioração?
Última chance.
MARK: Ah é?
FIONA: Apenas uma. Bem pequena. No início. Eu mesmo fiz. Mas não tenho certeza ainda. Talvez
seja um pouco derivativa.
MARK: Só uma?
Quer ouvir?
Mesmo?
Ok. Ótimo.
‘Caro Sr. Secretário de Assuntos Exteriores, senhoras e senhores. Uma vez alguém disse: não
pergunte o que o seu país pode fazer por você, mas sim o que você pode fazer pelo seu país.
Olhando aqui pros nossos estimados convidados, essa autêntica nata da escrotice – ‘
FIONA: Não.
MARK: O plano B.
MARK: Tem
A sua ausência é justificada por motivo de doença. Parece que alguma coisa contagiosa se
espalhou pela sua equipe, algum vírus, várias pessoas pegaram... Algo assim.
Como parte daquele reposicionamento de ativos que eu havia citado, parece que o Partido,
mesmo num momento tardio como esse, não descarta estender essa gentileza a você.
FIONA: É. Posso?
Buzz Lightyear?
Foi um presente de despedida da minha sobrinha. Por eu ter vindo pra cá.
FIONA: Bacana.
FIONA: Posso?
Limpa o traje espacial todos os dias até que ele fique brilhando.
Eles te dizem...
(FIONA arrebenta o relógio diversas vezes com a base da caneca. MARK pega o celular e
começa a discar.)
FIONA: Não pense que eu não sei do que se trata tudo isso.
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)
A sua laia.
MARK: Como é?
A minha laia?
O extremo do império.
E os nossos convidados, se você acha que eles nos olham com desprezo, isso não é nada
comparado com o modo como eles veem vocês.
Pra eles vocês não são nada mais que um motivo de vergonha.
Vocês são como aquele primo brutamontes com quem eles não gostam de ser vistos na rua,
afinal ao menor sinal de um derramamento de sangue ou um fósforo aceso vocês já começam
a babar e a partir pra briga.
A sua laia – vocês não passam de um bando de filhos-da-puta preconceituosos, isso sim
Poderia te colocar no navio mais lento do mundo de volta a Belfast, amigo, pode ter certeza.
MARK: Henderson!
MARK: Mark.
FIONA: Bom, Mark, acho que nós fizemos um grande progresso aqui.
Como foi pra você – dizer uma vez na vida o que realmente pensa – desembuchar – falar tudo
que tava entalado na sua garganta?
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)
FIONA: Me diga.
Quando não se dá a mínima pro fato de uma coisa ser ou não “improdutiva”?
Diz pra mim como é, porque faz tanto tempo que eu não faço isso que eu já nem sei mais como
é o som da minha voz própria.
E se eu deixar mais um momento passar, se eu deixar esse momento passar, então eu juro que
vou esquecer que eu já tive uma voz própria.
Hein, Mark?
Eu sabia.
Eu sabia.
O que quer que tenha ouvido por aí. O que quer que estejam dizendo.
MARK: Fiona.
2
Equivalente a Holyrood, mas em Belfast e relativo à Irlanda do Norte. (N.T.)
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)
MARK: Eu sempre me interesse pelo referendo. Acompanhei cada passo dele. Fiquei tão surpreso
quanto todo mundo com o resultado. Quando soube que precisavam de gente nova pra ajudar
na transição, gente experiente, aproveitei a chance.
MARK: Eu vim várias vezes pra cá durante anos. Senti que conhecia bem o lugar. O suficiente, pelo
menos.
Sempre achei que esse lugar era confiante. Confortável na própria pele. Sabe de onde vem, pra
onde quer ir. O que quer se tornar.
FIONA: A Escócia?
Sério?
FIONA: Uau.
MARK: Eu trabalhei na Assembleia desde antes do início oficial. Desde o nosso referendo sobre o
Acordo de Belfast3.
MARK: Paz?
Por quinze anos eu perdi a conta do número de vezes em que ouvi representantes eleitos de
ambos os lados falarem mais do que deviam e não assumirem a responsabilidade pelas palavras
que disseram ou pelas ações de quem os ouviu.
Eu cresci acostumado com o abuso verbal deles. Todos nós. Pegue uma frase, qualquer frase.
Pode soar inocente. Mas se ouvir com mais atenção, logo você enxergará como cada sílaba é
recheada de ódio.
O que aconteceu depois... Ih, foi bem pior. Mais inteligente. Mas ainda assim pior.
3
Ou “Acordo da Sexta-Feira Santa” (N.T.)
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)
Até mesmo nos lugares onde crianças brincavam, as palavras espalhavam bosta de cachorro
nas gangorras e nas correntes dos balanços.
Então em 2012 começaram os protestos sobre o momento em que a bandeira da União deveria
sobrevoar a Prefeitura de Belfast.
Meu carro foi destruído uma noite quando eu voltava do trabalho pra casa. Eu virei a esquina
e tinha uma manifestação na rua. A rua tava bloqueada. Eu tentei dar ré. Que estupidez a minha,
hoje eu sei disso. Eles simplesmente passaram por cima do meu carro.
MARK: Que me puxaram pela janela, botaram fogo no meu carro e me encheram de porrada. Molecada.
Os adultos só ficaram assistindo. Dando risada.
Sabe, naquele momento, se eu tivesse uma arma, teria tranquilamente dado um tiro em cada
uma delas.
Aquele não era eu. Por isso eu tinha que sair de lá.
Apenas ouça.
“Estamos todos cientes das questões extraordinárias, mas hoje queremos assegurar a todos que
todos estes assuntos podem e serão abordados. Nós dois desejamos demonstrar nosso
comprometimento com este processo e com o espirito com que estas discussões acontecerão.”
“Nós não estaríamos aqui hoje se não houvesse princípios fundamentais, melhor ainda,
universais, que nos unem.”
“Acho que falo pelos dois quando digo que há um grande otimismo quanto ao modo como
continuaremos a celebrar, nutrir e sustentar a nossa comunidade.”
“Que não haja confusão. O referendo nunca foi sobre desintegração, desmembramento ou
afastamento.”
“E as chamadas “conversas sobre os acordos” não são para por os pingos nos ‘is’ ou cruzar os
‘tês’ da Independência Escocesa. Estamos trabalhando em conjunto para atingir a expressão
mais concreta da soberania: a interdependência.”
“Mais do que nunca, estes últimos dias, meses e anos nos ensinaram algo: que é somente
explorando as nossas diferenças que descobrimos o quão inexoravelmente ligados nós
realmente estamos.”
Filhos-da-puta.
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)
MARK: Você acha que é isso mesmo que eles irão dizer?
Cada sílaba.
FIONA: Eu sei.
MARK: As pessoas não votaram como votaram pra ouvir esse tipo de coisa.
De jeito nenhum.
Nossos estimados convidados estão nos punindo nas conversas sobre os acordos neste exato
momento e o único motivo para isso é porque eles podem.
O Partido – o Partido tá se cagando de medo de que eu vá lá hoje, fale mais do que devo e com
isso dê carta branca pra que os nossos convidados sejam ainda mais rigorosos.
Nós votamos pela independência, Mark, mas a verdade é que não somos donos de nós mesmos.
Sabe, nunca pensei que em questão de meses depois de vencer nós seriamos um bando de
covardes.
FIONA: Hmmm...
Se ele passar pelo meu crivo eu ligo pro Partido e digo a eles que eles não tem nada com o que
se preocupar.
Cadê ele?
FIONA: Bom...
Aqui.
Tudo isso?
FIONA: É.
MARK: Há!
FIONA: Tá tudo...
Em algum lugar.
Um começo.
(MARK se ajoelha e pega uma folha de papel qualquer. Ele a oferece para Fiona.)
Vá em frente.
Entre em erupção.
Fique entusiasmada.
MARK: Legal.
FIONA: Obrigada.
(MARK passa para ela mais uma folha de papel. Ela lê.)
Ao contrário do que os nossos convidados querem que vocês achem, tudo isso nunca foi pra
estabelecer a porra de um califado de kilt.
A Secretária de Estado para Assuntos Internos Britânica tinha razão quando disse que uma
Escócia independente estaria mais vulnerável a atos de terrorismo.
Mas as conversas sobre os acordos nos ensinaram que os verdadeiros inimigos da Escócia estão
um pouquinho mais perto de casa.
Porque não era do Talibã que ela estava falando, mas sim da porra dos Tories4.
Nós precisamos de tempo. Tempo para passar por cima de todo o lixo nojento que foi dito
sobre o porque nós não poderíamos, conseguiríamos ou deveríamos dar este salto.
Vou dizer a eles que nós adquirimos uma espinha dorsal, então eles não podem nos ligar a cada
5 minutos pra nos lembrar aonde deixamos o controle remoto.
Eu direi que a Escócia pede desculpas sem reservas pelo papel que desempenhou no Império
Britânico.
A Escócia pede desculpas sem reservas pelo papel que desempenhou no comércio de escravos.
A Escócia pede desculpas pelo papel que desempenhou na crise financeira global.
Porque se tem uma coisa que a História nos ensinou, é que podemos ser filhos-da-puta famintos
quando nos cabe.
Sim.
Estas palavras...
4
Ou “Conservadores”. (N.T.)
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)
Aos Kirkers6.
Aos Burkers7.
Aos que vivem nas sombras.
Aos especuladores.
Aos acumuladores.
Aos aniquiladores.
Aos banqueiros.
Aos porteiros.
Aos carpinteiros e aos tintureiros.
Aos ariscos.
Aos que correm riscos.
Aos...
MARK: Minha?
FIONA: É. Sua.
5
Exploradores da fronteira da Escócia e da Inglaterra. (N.T.)
6
Provavelmente antigos habitantes da Escócia. (N.T.)
7
Idem a 4. (N.T.)
8
Tradução livre para uma antiga casa com fins religiosos, habitada por ministros presbiterianos ou
metodistas (N.T.)
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)
FIONA: Aos que fumam cigarro eletrônico e aos que fingem que não fumam!
9
Termo usado para se referir a moradores das terras altas escocesas, pode ser considerado ofensivo.
Pronuncia-se “tjuxters”. (N.T.)
10
Nome usado por Parlamentaristas para se referir aos Realistas defensores do Rei Charles I. (N.T.)
11
Seguidores do movimento dedicado à volta dos reis da dinastia Stuart. (N.T.)
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)
FIONA: Ninguém vai por palavras que eu não queira na minha boca.
FIONA: Vou dizer que eu quero por a porra de um fiorde entre nós e eles.
(FIONA leva a mão à barriga. Uma subida e aguda dor. Ela faz uma careta.)
FIONA: Tá sim.
MARK: Isso foi uma péssima ideia. Sinto muito. Eu não deveria ter feito você dizer tudo aquilo.
FIONA: Idiota.
Ele sabe, aliás. Ele sempre soube. Eu não sou uma vadia completa.
Eu não queria nada dele. Eu não precisava de nada dele. E ele ficou mais do que feliz com isso.
Disse que sempre achou que a gente poderia ter “algo mais”.
MARK: Entendo.
Digamos que tem lugares nesse país em que eu também não ousaria por os pés novamente.
E não, uma coisa não tem nada a ver com a outra, tá?
MARK: OK.
MARK: OK.
(O telefone de Mark começa a tocar. Ele não atende. O telefone para depois de um tempo.)
MARK: Ministra?
(FIONA sorri. A campainha toca. MARK tira da sacola uma flor igual à que está na lapela
dele.)
Pra você.
Posso?
Os fiordes são um fenômeno geológico, sabia? Foram formados durante a era do gelo.
É.
E os fiordes, eles podem ser profundos, mas eles não são muito amplos.
Dá pra olhar pro outro lado da água, ver alguém que esteja do outro lado e saber que tem
alguém ali.
E se o fiorde estiver entre países sem costa marítima, a água será fresca. Dá pra beber. Glaciar.
Pura.
E se o vento soprar com força sobre o fiorde, pode causar uma certa turbulência, mas não se
engane. No fundo há sempre calmaria.
Pronto.
BLACKOUT
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)