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“ESPÓLIO” (Spoiling)

de John McCann

Tradução: Rodrigo Haddad


“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

PERSONAGENS:

Fiona (40 e poucos anos, escocesa)


Mark (30 e poucos anos, irlandês do norte)

A peça se passa em um apartamento em Edinburgh, no verão de


2015

(A sala do apartamento de FIONA. O chão está coberto por centenas de folhas de papel
descartadas. Em alguns pontos da sala a quantidade de papel chega a pelo menos alguns
centímetros de altura. Em algum lugar no meio da bagunça há um cesto de lixo
transbordando de papel. Todas as folhas contêm coisas escritas. Algumas foram
descartadas no meio de uma frase ou no meio de um pensamento. Outras foram
amassadas em bolinhas, ou rasgadas mesmo. Quando não tinha mais papel, o autor
começou a escrever nas paredes, nos móveis, nas cortinas, na TV. Um relógio destruído
está precariamente pendurado na parede. Claramente houve atividades frenéticas no
lugar bem recentemente.

Há uma mesa na parte da frente do palco. A única coisa que há sobre ela é uma
pasta/envelope de papel manila colorido. Em meio ao caos do lugar ela parece uma ilha,
um altar.

A campainha toca.

Pausa.

A campainha toca mais uma vez.

Pausa.

A campainha toca uma terceira vez e uma figura emerge da pilha de papel. Palavras
estão rabiscadas nas roupas dela, nos braços. Um Post-It rabiscado está grudado na
testa dela. Em cada mão ela segura um monte de canetas. Esta é FIONA. Ela está
extremamente grávida. Ela dá uma olhada no lugar.)
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

FIONA: Merda!

(Ela olha pras mãos e vê as canetas.)

Que merda!

(Ela larga as canetas, espalhando-as pela sala. Ela arranca o Post-It da testa e o joga fora. A
campainha toca novamente.)

Paul?

É você, Paul?

A porta tá aberta.

(Um toque mais prolongado da campainha. Ela se levanta com dificuldade.)

Tá aberta!

(Ela nota os rabiscos nas próprias roupas)

Merda!

(FIONA sai correndo ao mesmo tempo em que MARK entra. Ele veste terno e tem um crachá
laminado brilhante e uma flor típica escocesa na lapela. Ele carrega uma pasta ou sacola de
trabalho, café e um pão-doce (um “Danish”) e uma sacola de presente que parece bem cara.
Colocando as coisas no chão, ele vai até a janela e dá uma olhada na rua, tomando cuidado
para não encostar nas cortinas)

FIONA: Me dá só um minuto, só estou me arrumando.

Não liga pra bagunça.

(Ele dá uma olhada na sala – a bagunça.)

Pelo visto eu continuei depois que você foi embora, né?

Perdi a noção do...

Aliás, que horas são?

(MARK pega uma folha de papel do chão. Ele a desamassa e lê.)

Por que o desespero com a campainha, hein?

Nunca pensei que você fosse desse tipo.

Todo formal de uma hora pra outra.

(MARK larga o papel no chão)


“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

FIONA: Escuta...

Eu fiz uma coisa.

Depois que você saiu.

Pior do que o que estamos planejando fazer.

Bem pior.

(Os olhos de MARK param na pasta que está sobre a mesa.)

E antes que eu te conte o que fiz, só prometa que não vai gritar, tá?

Eu fumei um cigarro.

Eu sei, eu sei. Mas foi só um. Nem um, na verdade. Eu só dei duas tragadinhas e te juro, me
senti tão culpada que eu quase vomitei.

Eu sei que foi errado. Uma coisa horrível.

Mas depois que você saiu, eu ... Bom, pra começar eu não conseguia dormir.

Eu precisava de você.

Mas aí eu pensei, ‘quer saber? Foda-se! Se eu não fizer isso, quem vai fazer? ’

Tá vendo o que acontece quando você me deixa sozinha por um minuto?

Desde quando você se tornou tão indispensável?

Acho que eu não to gostando nada disso.

Acho que eu não to gostando disso nem um pouquinho.

(FIONA entra. Ela está extremamente bem vestida agora, uma transformação completa. Ela
nem olha para Mark e vai direto pro café e pro danish que estão no chão.)

Ah, você é o meu herói.

(Ela dá um gole no café e morde o danish.)

Escuta, Paul, a gente não vai deixar que fiquem nos apressando, tá bom? Não hoje.

A porra do carro pode esperar. Tá bom?

A gente só vai até o final da rua, de qualquer forma.

De repente a gente vai até andando mesmo.


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Ou você pensou melhor e mudou de ideia?

MARK: Pensei melhor sobre o que, Ministra?

(FIONA finalmente olha para Mark)

FIONA: Você não é o Paul.

Quem é você?

(MARK dá um passo em direção a Fiona e estende o braço)

MARK: Henderson, Ministra.

(FIONA se retrai)

FIONA: Não conheço nenhum Henderson.

Eu não estava esperando nenhum Henderson.

Eu estava esperando um Paul.

MARK: Eu não sou o Paul.

FIONA: Isso eu tô vendo.

Mas como eu tenho certeza de que você é um Henderson?

(Ele mostra a ela o crachá)

Há quanto tempo você tá parado aí?

MARK: Não muito.

FIONA: E cadê o Paul?

MARK: Você não soube?

FIONA: Soube do que?

MARK: Bom... Considerando que nós estamos tentando abraçar o mundo todo com as pernas, o Partido,
em sua grande sabedoria, decidiu reposicionar alguns ativos: “Pra fazer um uso melhor do
nosso pessoal”, é o que disseram.

FIONA: E como é que só agora eu fiquei sabendo disso?

MARK: Parece que faz parte da estratégia.

FIONA: Bom, ninguem me disse nada.


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MARK: Garantir que estejamos todos no mesmo... que estejamos todos olhando para a frente.

FIONA: Mas eu nunca soube de nada disso.

Nunca soube de nada disso.

Quando foi que isso aconteceu?

MARK: Quando?

FIONA: É.

MARK: Ontem à noite.

FIONA: Ontem à noite exatamente quando?

MARK: Bem tarde.

(FIONA procura o celular e tenta fazer uma ligação com urgência)

FIONA: Não.

Isso é uma palhaçada.

Eles não podem simplesmente...

Não hoje.

De jeito nenhum.

Nem fodendo eles podem fazer isso.

Deus do céu...

Por que não tá chamando?

MARK: Eu estou aqui pra ajudar, Ministra.

FIONA: Mas eu não preciso de você.

Preciso do Paul.

MARK: O Paul não pode vir hoje.

FIONA: Por que?

Ele disse que tá doente?

MARK: Ele não tá doente.


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FIONA: Porque ele tava ótimo quando saiu daqui.

MARK: Ele não tá doente.

FIONA: Eu sei que ele não tá doente, é isso que eu to dizendo.

Ele perdeu a hora? Foi isso?

MARK: Não, Ministra.

FIONA: Porque se ele tá querendo tirar um dia pra ficar em casa justo hoje ele vai ver uma coisa.

Ou isso é algum tipo de...?

Se isso for uma espécie de piada, então vocês vão ter que me segurar pra não arrancar o coro
dele, aquele escroto insolente.

Então você pode ir andando, Sr. Anderson.

MARK: Henderson.

FIONA: Que seja. A sua presença aqui não é necessária. É do Paul que eu preciso. Mande chamar o
Paul.

MARK: Não.

FIONA: “Não”?

MARK: Não, Ministra.

FIONA: Desculpa, mas será que eu não recebi o memorando?

O memorando que diz que qualquer merdinha pode entrar aqui e falar comigo desse jeito?

Quer dizer, eu só apenas uma Ministra Sênior de um governo escocês soberano, valha-me
Deus.

Agora faça o que eu disse e vá chamar o Paul.

MARK: O Paul não vem.

FIONA: Ele trabalha pra mim, então se eu digo pra ele vir ele tem que vir, porra!

Tá certo. Eu vou ligar pros seus superiores, eles com certeza vão dar um jeito nessa sua...

MARK: Foram eles que me mandaram.

FIONA: “Eles”?
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Quem são “eles”? O que você quer dizer exatamente com “eles”?

MARK: O Partido.

Os seus superiores.

FIONA: E por que “eles” fariam isso?

MARK: Você quer a versão oficial?

FIONA: Eu tenho escolha?

MARK: Tem também o boato.

FIONA: E eu não posso ouvir as duas versões? Considerando que é uma ocasião especial e tal?

MARK: Tá certo.

O Paul talvez tenha excedido as próprias atribuições.

(Gesticula em direção à barriga de Fiona)

De diversas maneiras.

FIONA: Você só pode estar de palhaçada!

MARK: Bom, esse é o boato.

FIONA: E qual é a versão oficial?

MARK: Em...

(MARK olha pro relógio)

... em mais ou menos uma hora, você, no papel de Ministra Designada de Assuntos Exteriores
Escocesa, irá se encontrar com o seu equivalente inglês pela primeira vez desde o referendo.
Em Holyrood1, perante toda a imprensa internacional, você discursará sobre as emergentes
relações entre a nova Escócia e o que restou do Reino Unido.

Eu estou aqui pra te dar toda a ajuda necessária até que o discurso seja feito.

(FIONA está em silêncio. MARK procura por uma folha de papel em sua sacola)

Se me permite, Ministra.

Eu tenho o novo itinerário aqui.

1
Área de Edinburgh onde fica localizado o Parlamento Escocês, apelido do próprio Parlamento. (N.T.)
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Parece que ele foi cortado e alterado um pouco nos últimos dias, mas essa aqui... é a versão
final. Prometo.

Essa é a sua... a sua cópia.

(Ele oferece o papel a ela, mas FIONA não o pega.)

Tem só alguns pontos que precisamos discutir, Ministra.

(FIONA ainda não pega o papel. Ela nota a sacola de presente.)

FIONA: O que é aquilo?

MARK: Ah...

(Ele pega a sacola de presente.)

Eu trouxe um presente.

E antes que me pergunte, não, o presente não é meu.

Eu sou bom, mas não tão bom assim.

(Ele oferece a sacola a ela)

FIONA: O que é?

MARK: Não tenho a menor ideia.

(FIONA pega a sacola que parece extremamente cara e tira de dentro dela uma caixa que
parece extremamente cara. Ela abre a caixa, que está cheia de papel de seda azul e branco,
que é estraçalhado por ela. Após algum tempo ela encontra o presente: uma caneca de
cerâmica barata com a bandeira escocesa).

(Ela volta a atenção para a caixa novamente e encontra um cartão, que ela abre e lê.)

FIONA: “Isso não é hora para canecas. Não estrague tudo. ”

Isso foi ideia sua, é?

MARK: Não.

FIONA: Qual é o motivo real da sua presença aqui?

(MARK olha pro relógio)

Anda, fala logo.

MARK: O Partido. Eles estão preocupados que você não siga o roteiro.
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FIONA: “Roteiro”?

(MARK chuta alguns papeis do chão)

MARK: Eles tem motivo pra se preocupar?

FIONA: O que eles estão dizendo?

MARK: Eles esperam que eu ligue pra eles o mais rápido possível se eu achar que há algum problema.

FIONA: E se você não ligar?

MARK: Então é porque não tem problema.

O discurso vai ser conforme o planejado.

Ele vai? Seguir o planejado?

(FIONA fica em silêncio. MARK aponta pra pasta na mesa dela.)

É o discurso, ali?

Eu preciso dar uma olhada nele, Ministra.

FIONA: Por que?

MARK: Se você fez alguma alteração, eles precisam saber.

FIONA: O que eles estão dizendo?

MARK: Ministra, não temos tempo.

FIONA: Eu quero saber o que andam dizendo.

Eu tenho o direito de saber.

(MARK olha pro relógio)

MARK: Tá certo.

Que seja.

Sejamos justos, é o que estão dizendo. Ela foi um verdadeiro furacão durante a campanha do
referendo. Inspiradora. É a pessoa certa pro cargo, sem sombra de dúvida. Se ela acertar no
discurso agora, então quem sabe ..., mas agora... bem, ela parece diferente.

FIONA: Diferente como?

MARK: Eles notaram uma mudança.


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FIONA: Fala logo o que foi dito.

(MARK pega um caderninho e lê o que está escrito nele)

MARK: “Com a vitória e tudo que aconteceu, esperávamos que ela parecesse um pouco mais feliz. ”

“Ultimamente ela parece uma reclamona mal-humorada.”

FIONA: OK.

MARK: “Vocês repararam na aparência dela ultimamente? Parece que ela atravessou uma cerca de
arame farpado. E eu fiquei com pena da cerca.”

FIONA: Entendo.

MARK: “A gravidez não combina com ela.”

FIONA: Como é que é?

MARK: Um colega do Partido disse até que, e essas foram as palavras dele, não minhas: “Olha só pra
ela. Ela está agindo como se soubesse que tem uma porra de um estrangeiro dentro dela.”

FIONA: Quem foi o escroto que disse isso?

MARK: Eu poderia continuar.

Então se puder te dar um conselho, Ministra.

Simplesmente siga o roteiro.

Faça o discurso combinado.

Palavra por palavra.

E deixe que eu seja o seu novo Paul.

Nem que seja só durante a próxima hora.

Estou inteiramente à sua disposição.

(Ele aponta pra barriga dela)

No limite do razoável.

FIONA: Você tá se divertindo com isso, né?

MARK: Isso não me diz respeito, Ministra. Eu estou apenas fazendo o que me pediram.

FIONA: Ah, claro, isso deve ser muito difícil pra você.
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

MARK: Difícil? Há!

FIONA: ... Eu nunca te vi antes mesmo, vi?

É o novo conselheiro especial de alguém, aposto.

E esse sotaque não é escocês.

MARK: Ter sotaque escocês é um pré-requisito pra todos que queiram fazer parte da nova Escócia?

Eu posso tentar, se quiser, mas já aviso que não é lá essas coisas.

(Ele aponta pra pasta sobre a mesa)

Aquele é o discurso, Ministra?

FIONA: É o que eles me deram

MARK: E você leu?

FIONA: Até os meus olhos secarem de tanto tédio.

MARK: Se importa se eu der uma olhadinha? Só pra ver como ficou.

(FIONA se posiciona entre Mark e a pasta.)

FIONA: Você estudou por aqui, Henderson?

MARK: Não temos muito tempo, Ministra.

FIONA: Tá tudo bem, eu to ganhando tempo.

Você fez faculdade aqui?

MARK: Na Escócia? Não. Em Belfast.

FIONA: Na Queen´s?

MARK: É.

FIONA: Dizem que é um bom lugar.

MARK: É sim.

FIONA: Estudou Política?

MARK: É tão óbvio assim?

FIONA: Não, é apenas típico.


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MARK: Na verdade eu fiz uma graduação dupla.

FIONA: É mesmo? E qual foi a outra matéria?

MARK: Geologia.

FIONA: Geologia?

Estranho.

MARK: Por que?

FIONA: Imaginei que seria algo como História.

MARK: A Geologia vai mais longe no passado.

FIONA: Até em Belfast?

Política e Geologia.

Uma urna eleitoral numa mão, uma rocha na outra.

MARK: Muito boa, Ministra. Já entendi o que está tentando fazer.

(MARK aponta novamente pra pasta sobre a mesa.)

Mas eu realmente preciso dar uma olhada naquela pasta.

(MARK tenta passar por ela, mas ela bloqueia o caminho mais uma vez)

O que quis dizer, Ministra, quando disse que fumar um cigarro era pior do que “o que estamos
planejando fazer”?

O que quer que seja eu imagino que não vá impedir que as coisas corram bem hoje.

Porque eu não poderei aprovar nada desta natureza... quer dizer, me sinto na obrigação de dizer
que algo assim seria extremamente improdutivo.

FIONA: “Improdutivo”? Há!

MARK: Para todas as partes envolvidas.

FIONA: Que porra isso quer dizer?

MARK: Você fez alguma alteração?

Se fez alguma alteração eles precisam saber.

Deixe-me ver o que está na pasta.


“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

FIONA: Não.

MARK: Não?

FIONA: Ainda não. Eu quero saber o que o Partido planejou para mim.

MARK: Ministra, eu...

FIONA: ... você queria discutir o roteiro, então vamos discuti-lo.

(MARK olha pro relógio)

E pelo amor de Jesus Cristo na cruz, quer parar de olhar pra essa porra de relógio?

Anda, vamos...

Está esperando o que?

(MARK olha pro relógio de novo)

Ficar parado aí não vai fazer com que os minutos passem mais devagar.

Anda, vai... Agiliza.

MARK: Ok.

Está certo.

(MARK pega o próprio roteiro.)

Temos que estar do outro lado daquela porta ao meio-dia. Impreterivelmente.

O tempo é realmente curto, não tenho como frisar isso ainda mais.

Vai ser um inferno se houver qualquer deslize.

Tudo está planejando nos mínimos detalhes...

FIONA: ... Ah, que saco, fala tudo de uma vez.

MARK: (limpa a garganta e lê) Transferência da Ministra até o carro: 75 segundos.

Transferência da Ministra até Holyrood: 4 minutos e 53 segundos.

FIONA: 53 segundos?

Deus do céu.

É sério isso?
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MARK: Normalmente leva 4 minutos e 17 segundos.

Em um dia normal.

FIONA: Por que o atraso então?

MARK: É só uma folguinha. Uma pequena margem.

FIONA: Pra que... ?

MARK: Pra algum imprevisto.

FIONA: Tipo o que?

Muito sol?

Algum manifestante não muito dedicado?

Ou as forças da porra da escuridão vão finalmente dar um oizinho?

MARK: Entrada da Ministra no salão verde: 2 minutos e 27 segundos.

Cabelo da Ministra: 15 minutos.

Encontro da Ministra com o equivalente britânico para um café: 3 minutos e 34 segundos.

Fotos oficiais imediatamente após o café:

Ambos os Ministros ombro a ombro. Pose formal.12 segundos.

Ambos os Ministros ombro a ombro. Pose mais afetuosa e cordial. 12 segundos.

Ministros se cumprimentando. Ao mesmo tempo formal e cordial. 17 segundos.

Ministros se cumprimentando. Sorrindo. 23 segundos.

FIONA: Ele se esfregando na minha perna. 18 segundos.

Ritual de humilhação e autodesprezo: o resto da porra da minha vida.

MARK: Ministra, eu estou apenas...

FIONA: ... chega dessa ladainha.

Vá direto ao ponto.

Fale dos discursos.

Eu quero saber dos discursos.


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MARK: Os discursos serão feitos exatamente um minuto após as 13 horas.

Pra entrar ao vivo bem no início dos noticiários do horário de almoço.

Há um interesse sem precedentes nisso tudo, no que estamos buscando: o nascimento de uma
nação soberana.

FIONA: Nascimento?

MARK: Oi?

FIONA: Você disse “nascimento”.

MARK: Disse. Não disse?

FIONA: Inacreditável.

Por acaso a Escócia não existia antes do Reino Unido, ou sou ou que estou errada?

É um REnascimento, porra. Não um nascimento.

Jesus.

Se você faz tanta questão de trabalhar aqui, pelo menos poderia ter lido uns livros. Feito a lição
de casa.

É o Renascimento de uma nação soberana. Ok?

Estamos claros quanto a isso?

MARK: É claro, Ministra.

FIONA: Quer dizer, de que lado você tá, afinal?

MARK: Não há lados nessa história, Ministra.

FIONA: Porque ajudaria muito se conseguíssemos concordar pelo menos nas coisas básicas.
Fundamentais.

Você não acha?

Jesus.

E o que mais?

Anda. O que vem depois?

MARK: Er...

Tá.
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É o seu discurso.

Você será a primeira a discursar.

Cada discurso deverá durar aproximadamente 7 minutos e meio.

FIONA: Espera aí, por que você disse isso?

MARK: Ah, tem alguns segundos a mais pra que possa haver um bate-papo amigável, piadinhas e tal...

FIONA: Não, não isso. O que você disse antes.

Que eu serei a primeira a discursar.

É óbvio que eu serei a primeira a discursar.

Por que você precisaria frisar isso?

MARK: É que os nossos convidados haviam pedido pra falar primeiro.

FIONA: É mesmo?

Diga-me uma coisa, Sr. Anderson, com que frequência você vai à casa de alguém e, na frente
da família dele, dos vizinhos, da imprensa do mundo todo, você diz a ele que tem o enorme
prazer de dar as boas-vindas a ele na própria casa dele?

Ele discursar primeiro dá ao mundo a impressão de que eles nos deram a liberdade, como um
presente. Como se eles tivessem nos ajudado a encontrar nossa própria voz. Que eles estão
sendo condescendentes com os plebeus, permitindo que os nativos de merda abram a boca.

Nem a pau.

Fodam-se eles.

MARK: Vou repassar a informação.

FIONA: Isso. Faça isso.

Insolente da porra –

MARK: É só que...

FIONA: O que?

É só que o que?

Anda, desembucha, homem!

MARK: Bom... Tecnicamente, a separação ainda não aconteceu.


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FIONA: Tecnicamente eles não vão foder com a gente. Não hoje.

MARK: Mas nós ainda não somos exatamente soberanos, somos?

Você ainda é a Ministra Escocesa “Designada” de Assuntos Exteriores.

FIONA: Do que você está falando?

MARK: Estou simplesmente dizendo que todas as partes querendo enfatizar o tom cordial.

FIONA: Não me diga?

MARK: E sob este aspecto nossos convidados estão perguntando se podemos responder algumas
perguntas em conjunto após os discursos.

FIONA: Sem chance.

MARK: O Partido está –

FIONA: Você já tem a minha resposta.

Terminamos?

MARK: Só mais uma coisa.

O carro estará aí fora a qualquer momento.

A escolta policial.

FIONA: Podemos simplesmente ir a pé.

MARK: Sim, mas...

(MARK pega o controle remoto da TV.)

Posso?

(FIONA faz que sim. MARK liga a TV.)

Aqui.

Você precisa ver isso.

Olha.

(FIONA fica ao lado de Mark e olha para a TV.)

Isso é do lado de fora do prédio.


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FIONA: Que canal é esse?

MARK: E olha só.

Esse sou eu entrando no prédio.

FIONA: Que canal tá mostrando isso?

MARK: BBC.

(Ele vai mudando os canais.)

ITV. Sky. Al Jazeera. Russia Today. CNN. Fox News.

São os olhares do mundo todo, Ministra.

Então eu acho melhor irmos de carro.

Seguir todos os protocolos.

Vamos começar como se quiséssemos progredir, tudo bem?

O Povo.

Todo mundo lá fora.

Eles estão aqui com um propósito.

(MARK aponta pra pasta sobre a mesa.)

Para ouvir as suas palavras.

FIONA: As minhas palavras?

Ah não.

É aí que você se engana.

É aí que você está profundamente enganado.

Essas não são as minhas palavras.

Um comitê as escreveu. Um comitê formado principalmente por gente que não gosta do que
fizemos. Um comitê presidido por Westminster.

Eles simplesmente me deram as palavras.

O Povo Escocês deveria querer escrever as palavras em guardanapos.

Mas a merda que o comitê me enviou não serve nem pra limpar a bunda.
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São palavras insipidas. Vagas. Inexpressivas. Privadas de qualquer emoção. Uma paródia.
Resto de aborto.

São uma traqueostomia na História, isso sim.

MARK: Deixe-me ler o discurso, Ministra.

Estou aqui pra ajudar.

FIONA: Duvido.

MARK: Não podemos envergonhar nossos convidados.

FIONA: Mas podemos envergonhar a nós mesmos?

MARK: Se fugir da mensagem planejada isso pode acabar com a sua carreira.

FIONA: E se eu disser a merda que me mandaram eu me ferro do mesmo jeito.

É tipo baunilha. Dolorosamente inofensivo.

O Povo Escocês merece mais.

MARK: Existem protocolos estabelecidos, Ministra.

FIONA: Há!

MARK: Protocolos internacionais que somos obrigados a seguir.

FIONA: A sua turminha é ensinada a falar essas merdas?

MARK: Sim. Eles nos mandam para conferências e tudo mais.

Comida grátis. Bebida barata. É ótimo.

O meu armário está cheio de sacolinhas e canecas com o logo dos organizadores desses
eventos, bolinhas pra apertar e aliviar o stress, sem falar na vergonha que vem depois de cada
transa pós-congresso.

Tem lugares da Escócia em que até hoje eu não tenho coragem de mostrar o rosto.

Ministra, tanto você quanto eu sabemos que muito mais danos às relações internacionais
podem ser causados nos bares e boates mundo afora que em qualquer campo de guerra.

Mas pelo menos nesses casos dá pra por a culpa na bebida. Pelo menos tem uma desculpa.

Agora, na nossa situação...

O que quer que seja...


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Deixe-me ler o discurso.

FIONA: Não posso.

(MARK tira o telefone do bolso)

MARK: O referendo.

FIONA: O que tem ele?

MARK: Dizem que foi você que ganhou o referendo.

Ainda que alguns poucos meses atrás ninguém soubesse sequer o seu nome.

Ninguém sabia de onde você surgiu. Ninguém tinha sequer ouvido falar de você.

Eu me lembro até do frenesi que rolou pra descobrir quem exatamente era você.

Mas quando você apareceu... Não.

Quando você entrou em erupção.

O Partido percebeu e aí você foi como um míssil Exocet contra os votos “não”.

Foi uma dose de adrenalina bem no momento certo.

FIONA: O que você tá fazendo?

MARK: E você foi idealista desde o princípio. Até inocentemente, alguns disseram.

Mas não pra quem realmente importava – o povo. Não. O povo te achou totalmente
convincente. Inspiradora.

FIONA: Por que você tá me dizendo tudo isso?

MARK: Então cada vez que você era pessoalmente atacada pelos “Nãos”, o povo sentia como se eles
mesmos também estivessem sendo atacados.

E Deus é testemunha de como os “nãos” foram punidos por isso.

FIONA: Escuta aqui, não sou eu que preciso de uma aula de História.

MARK: Onde eu estava, as pessoas diziam, “Quem quer que esteja mexendo as cordinhas dessa mulher
é um gênio”.

Você era matéria bruta. Sem polimento.

Inabalável por qualquer coisa.


“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

“Ela vai disparar até o topo da pirâmide.”

“É só dar uma aparadinha aqui, outra ali, e quem sabe do que ela pode ser capaz.”
“Ninguem segura essa mulher.”

Mas logo as pessoas perceberam – que não havia cordinhas.

Era você mesmo.

Em erupção.

Eu mesmo confesso que virei seu fã.

FIONA: Há!

MARK: Estão mesmo dizendo que foi você que ganhou.

Se não fosse por você, bem, você não estaria aqui neste momento.

FIONA: Olha, não me leve a mal, cara, mas eu to começando a te achar meio estranho.

MARK: E o seu passado, então, é –

FIONA: Meu “passado”?

MARK: O pai trabalhou nos navios a vida inteira.

O avô desaparecido em um acidente nas minas de Fife.

É verdade que ele ainda tá ali, perdido debaixo de todas aquelas pedras, e que não conseguiram
resgatá-lo?

FIONA: Ok, já chega.

MARK: E aí veio você. Filha única.

Largando um trabalho bom em um escritório pra cuidar da mãe.

Estudando “Cuidados Paliativos” em vez de seguir a sua vocação política.

E a única foto antiga sua que conseguiram achar mostrava você e o seu pai em um protesto
contra um imposto.

Era uma mina de ouro.

Como se você tivesse sido criada em um laboratório.

Nenhuma sujeira escondida embaixo do tapete.

Em lugar nenhum.
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

Você. Isso aqui.

Muita gente foi pega de surpresa.

Não dá pra dizer que você não foi bem recompensada por tudo isso.

Eu na verdade comecei a me preocupar com você, sabia?

FIONA: Posso saber por que?

MARK: Dois motivos.

Sabe, Ministra, o fundo do oceano da política está coberto dos restos dos ossos limpinhos de
gente como você.

FIONA: Gente como eu?

MARK: Vocês raramente chegam tão longe. E nunca tão rápido assim. Porque inevitavelmente alguém
em algum lugar encontra alguma coisa que prova que vocês eram bons demais pra ser verdade.

Era pra você ser uma fagulha, no máximo.

FIONA: Pois é, mas aqui estou eu.

MARK: Exato.

Você foi contra todos os prognósticos. Provou ser a exceção à regra.

Até agora.

(MARK checa o relógio e começa a discar um número no celular)

FIONA: Você disse que eram dois motivos.

Pra se preocupar com gente como eu.

Qual é o segundo?

(MARK para de discar)

MARK: Que vocês realmente comecem a acreditar no que dizem sobre vocês.

FIONA: Entendi.

MARK: E quem te culparia por isso?

Certamente não seria a primeira.


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Mas eu fiquei imaginando se você então começaria a achar que tem um direito divino de dizer
ou fazer exatamente o que quiser.

FIONA: E você acha que é isso que está acontecendo aqui?

MARK: Alguns políticos acham que são feitos de Teflon. Eles chegam tão longe tão rápido. Acham
que podem falar e fazer o que bem quiserem e que nada vai “grudar”. Danem-se as
consequências.

O Partido. Eles não vão deixar que você vá lá e dê uma de Hillary.

FIONA: De Hillary?

MARK: Sim, Hillary Clinton.

Uma das primeiras coisas que ela fez quando se tornou Secretária de Estado.

Ela tinha ido se encontrar com o equivalente russo pela primeira vez.

Sergei Lavrov. Você não terá o prazer de conhece-lo.

A Hillary vinha com aquele papo de normalizar as relações entre o Ocidente e o Oriente.

Ela tinha acabado de começar. Tava há duas semanas no cargo, no máximo. Mas queria causar
impacto logo de cara.

Um olho no cargo que ela tinha, outro já no Salão Oval com o nome dela na porta.

Muita esperta – é o que você pensaria.

Mas ela não conseguiu manter as coisas simples.

Não conseguiu simplesmente conversar com ele.

“Eu vou arrumar um daqueles botões vermelhos enormes,”, ela disse. “Daqueles que os caras
apertam nos submarinos quando vão lançar um míssil nuclear tático, só que em vez de escrever
FOGO no botão, vou pedir pra que escrevam REINICIAR. Aí a gente vai poder dar risada de
tudo que aconteceu e ficará tudo bem, porque todos seremos normalizados. Ficaremos tão
normais que seria como se nada do passado tivesse acontecido. Nada de Guerra Fria. Nada de
Crise dos Mísseis em Cuba. Nada de Afeganistão, de Chechênia. Nada de Iraque. Nada de
desconfiança. Nada de suspeitas. Apenas eu e o Sergei apertando o botão de REINICIAR em
frente às câmeras. Perdoar e esquecer.”

Sabe, certas pessoas jamais deveriam ser autorizadas a usar aqueles dicionários Inglês-Russo.
Porque o grande botão vermelho da Hillary nunca teve a palavra REINICIAR escrita nele. Mas
sim SOBRECARREGAR.

Cabuuum!!

Ela fodeu com tudo.


“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

Deveria ter mantido as coisas simples.

Deveria ter seguido o planejado.

Eu estava torcendo pra que você provasse que os outros estão errados por anos e anos a fio,
Ministra.

Eu realmente estava.

FIONA: Entendo.

MARK: Mesmo?

Entende mesmo?

Porque eu to curioso, Ministra.

Todo aquele lance dos “Cuidados Paliativos”. Eu fico imaginando – tendo testemunhado todo
aquele definhamento, você nunca se sentiu tentada a comtemplar a sua própria deterioração?

Porque agora seria um ótimo momento pra começar.

Você ainda pode ir lá e provar a todos que eles estão errados.

Deixe-me ver o discurso.

Última chance.

(FIONA está em silêncio. MARK começa a discar novamente.)

FIONA: Eu fiz sim uma alteração. No discurso.

(Ele para de discar.)

MARK: Ah é?

FIONA: Apenas uma. Bem pequena. No início. Eu mesmo fiz. Mas não tenho certeza ainda. Talvez
seja um pouco derivativa.

Eu poderia... bem, eu poderia ler pra você. Se quiser.

MARK: Só uma?

FIONA: Só uma. Juro por Deus.

Quer ouvir?

(MARK faz que sim)


“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

Mesmo?

Ok. Ótimo.

(FIONA limpa a garganta, abre a pasta e lê.)

‘Caro Sr. Secretário de Assuntos Exteriores, senhoras e senhores. Uma vez alguém disse: não
pergunte o que o seu país pode fazer por você, mas sim o que você pode fazer pelo seu país.
Olhando aqui pros nossos estimados convidados, essa autêntica nata da escrotice – ‘

(MARK se aproxima dela com o braço esticado)

MARK: Deixe-me ver isso!

FIONA: Não.

MARK: Eu provavelmente já deveria ter te contado o que acontece.

FIONA: Me contado o que?

MARK: O que acontece quando eu ligar para eles.

FIONA: O que acontece então?

MARK: O plano B.

FIONA: Aaaah, então tem um plano B?

MARK: Tem

FIONA: Tem realmente um plano B?

MARK: Alguém faz o discurso no seu lugar.

A sua ausência é justificada por motivo de doença. Parece que alguma coisa contagiosa se
espalhou pela sua equipe, algum vírus, várias pessoas pegaram... Algo assim.

Como parte daquele reposicionamento de ativos que eu havia citado, parece que o Partido,
mesmo num momento tardio como esse, não descarta estender essa gentileza a você.

(MARK checa o relógio)

FIONA: Posso ver?

MARK: Meu relógio?

FIONA: É. Posso?

(MARK mostra o relógio a ela)


“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

Buzz Lightyear?

Não é o que eu esperava.

É fanático por ele, então?

MARK: Não, Ministra, eu não.

Foi um presente de despedida da minha sobrinha. Por eu ter vindo pra cá.

FIONA: Bacana.

MARK: É. Ela adora os filmes.

FIONA: Posso?

MARK: Hmmm, tá.

(FIONA tira o relógio do braço dele e vai até a mesa)

FIONA: Tadinho do Buzz...

Acha que é um astronauta.

Limpa o traje espacial todos os dias até que ele fique brilhando.

Te dizem que você pode voar.

E como você voa.

Você dispara pelo ar.

Pra lugares do universo que você nem sabia que existiam.

E sempre com a promessa de chegar a um lugar mais longe e distante.

Até que um dia...

Um dia, quando dá na telha deles...

Eles te dizem...

Que você não é nada mais que a porra de um brinquedo!

(FIONA arrebenta o relógio diversas vezes com a base da caneca. MARK pega o celular e
começa a discar.)

MARK: Já chega, cansei disso!

FIONA: Não pense que eu não sei do que se trata tudo isso.
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

A sua laia.

Eles odeiam o que nós fizemos aqui.

(MARK para de discar)

MARK: Como é?

A minha laia?

FIONA: A Irlanda do Norte.

O extremo do império.

Os seis condados ocupados.

“Eu não acredito que não estamos na Grã-Bretanha”.

Ou qualquer porra de nome que vocês prefiram.

Vocês odeiam o que nós conseguimos.

Nunca imaginaram que isso fosse acontecer, não é mesmo?

Vocês dizem que nós os deixamos de fora.

Que transformamos Ulster no Leste do Paquistão.

Que todo mundo que votou “SIM” é um traidor.

Alguns de nós ainda recebemos balas de revolver pelo correio.

E os nossos convidados, se você acha que eles nos olham com desprezo, isso não é nada
comparado com o modo como eles veem vocês.

Pra eles vocês não são nada mais que um motivo de vergonha.

Vocês são como aquele primo brutamontes com quem eles não gostam de ser vistos na rua,
afinal ao menor sinal de um derramamento de sangue ou um fósforo aceso vocês já começam
a babar e a partir pra briga.

A sua laia – vocês não passam de um bando de filhos-da-puta preconceituosos, isso sim

MARK: Quer saber de uma coisa? Foda-se.

Foda-se isso tudo.

Eu realmente pensei que isso aqui fosse ser diferente.


“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

Que você fosse diferente.

Mas se é assim que as coisas vão ser...

Não, não foi pra isso que eu vim pra cá.

Você é... Você é farinha do mesmo saco que todos eles.

Você não é melhor que aquele bando de escrotos de onde eu vim.

Deixe-me dizer uma coisa, Ministra. Não dá pra viver de bandeiras.

Quanto mais cedo você entender isso, melhor.

Vá lá e diga a porra que quiser. Eu não to nem aí. Não mais.

Pode enfiar a bandeira da Escócia onde bem entender!

(Ele vai em direção à porta de saída)

FIONA: Não se atreva a dar mais um passo!

MARK: Pode me demitir, se quiser.

FIONA: Ah, eu poderia, se quisesse.

Poderia te mandar pra onde eu bem entendesse.

Poderia te colocar no navio mais lento do mundo de volta a Belfast, amigo, pode ter certeza.

MARK: Que seja.

(MARK se aproxima da porta)

FIONA: Qual é o seu nome?

MARK: Henderson!

FIONA: Não. O seu primeiro nome. O seu nome mesmo.

MARK: Mark.

FIONA: Bom, Mark, acho que nós fizemos um grande progresso aqui.

MARK: Como assim?

FIONA: Como foi pra você, Mark?

Como foi pra você – dizer uma vez na vida o que realmente pensa – desembuchar – falar tudo
que tava entalado na sua garganta?
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

MARK: Peraí, então você... ?

FIONA: Me diga.

MARK: Então você me provocou deliberadamente?

FIONA: Como é não ter que seguir protocolos?

Quando não se dá a mínima pro fato de uma coisa ser ou não “improdutiva”?

Diz pra mim como é, porque faz tanto tempo que eu não faço isso que eu já nem sei mais como
é o som da minha voz própria.

E se eu deixar mais um momento passar, se eu deixar esse momento passar, então eu juro que
vou esquecer que eu já tive uma voz própria.

Você pareceu tão... tão... entusiasmado.

Diz pra mim como você se sentiu.

Você se sentiu bem?

Hein, Mark?

(MARK faz que sim.)

Eu sabia.

Eu sabia.

Onde você trabalhava antes de vir pra cá, Mark?

(MARK fica em silêncio)

Eu não sou o inimigo, Mark.

Eu quero que entenda isso.

O que quer que tenha ouvido por aí. O que quer que estejam dizendo.

MARK: Na Assembleia da Irlanda do Norte. Eu trabalhava em Stormont2, Ministra.

FIONA: Pode me chamar de Fiona.

MARK: Fiona.

FIONA: Então como é que você veio parar aqui?

2
Equivalente a Holyrood, mas em Belfast e relativo à Irlanda do Norte. (N.T.)
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

MARK: Eu sempre me interesse pelo referendo. Acompanhei cada passo dele. Fiquei tão surpreso
quanto todo mundo com o resultado. Quando soube que precisavam de gente nova pra ajudar
na transição, gente experiente, aproveitei a chance.

FIONA: Mas por que aqui, Mark?

MARK: Eu vim várias vezes pra cá durante anos. Senti que conhecia bem o lugar. O suficiente, pelo
menos.

Sempre achei que esse lugar era confiante. Confortável na própria pele. Sabe de onde vem, pra
onde quer ir. O que quer se tornar.

FIONA: A Escócia?

Sério?

MARK: Achei que era o exato oposto do lugar de onde eu vim

FIONA: Uau.

Aposto que adoraram ouvir essas coisas na sua entrevista.

MARK: Eu trabalhei na Assembleia desde antes do início oficial. Desde o nosso referendo sobre o
Acordo de Belfast3.

FIONA: Um mantenedor da paz?

MARK: Paz?

Por quinze anos eu perdi a conta do número de vezes em que ouvi representantes eleitos de
ambos os lados falarem mais do que deviam e não assumirem a responsabilidade pelas palavras
que disseram ou pelas ações de quem os ouviu.

Menos “Juntos É Melhor” e mais “Juntos é Pior”.

Eu cresci acostumado com o abuso verbal deles. Todos nós. Pegue uma frase, qualquer frase.
Pode soar inocente. Mas se ouvir com mais atenção, logo você enxergará como cada sílaba é
recheada de ódio.

E isso foi antes do referendo.

O que aconteceu depois... Ih, foi bem pior. Mais inteligente. Mas ainda assim pior.

Poluição. Pura e simples.

O fedor atingiu todos os lugares.

3
Ou “Acordo da Sexta-Feira Santa” (N.T.)
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

Até mesmo nos lugares onde crianças brincavam, as palavras espalhavam bosta de cachorro
nas gangorras e nas correntes dos balanços.

Aquilo não era paz. Era uma disfunção mutuamente assegurada.

Então em 2012 começaram os protestos sobre o momento em que a bandeira da União deveria
sobrevoar a Prefeitura de Belfast.

Aquilo foi a gota d´água pra mim.

Meu carro foi destruído uma noite quando eu voltava do trabalho pra casa. Eu virei a esquina
e tinha uma manifestação na rua. A rua tava bloqueada. Eu tentei dar ré. Que estupidez a minha,
hoje eu sei disso. Eles simplesmente passaram por cima do meu carro.

Eu já tava cansado daquele lugar.

E ainda por cima foram crianças.

FIONA: Crianças o que?

MARK: Que me puxaram pela janela, botaram fogo no meu carro e me encheram de porrada. Molecada.
Os adultos só ficaram assistindo. Dando risada.

Sabe, naquele momento, se eu tivesse uma arma, teria tranquilamente dado um tiro em cada
uma delas.

Aquele não era eu. Por isso eu tinha que sair de lá.

FIONA: Imagino que não tenha mencionado isso na sua entrevista.

MARK: Tá na hora. A gente realmente precisa ir.

Posso ler o discurso?

Por favor, Fiona.

FIONA: O discurso não é esse, Mark.

Isso é outra coisa, completamente diferente.

Isso aqui é o que o nosso convidado principal planeja dizer.

Eu quero ler pra você.

MARK: Mas eu conheço o discurso dele. Eu já li.

FIONA: Não essa versão aqui.

MARK: Esse discurso não é da minha conta.


“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

FIONA: Bom, deveria ser da porra da sua conta.

Você precisa ouvir o que esse babaca de Eton tá planejando dizer.

Só o que o você precisa fazer é ouvir.

Você consegue fazer isso, Mark?

Apenas ouça.

(FIONA tira uma folha de papel de dentro de uma gaveta)

“Estamos todos cientes das questões extraordinárias, mas hoje queremos assegurar a todos que
todos estes assuntos podem e serão abordados. Nós dois desejamos demonstrar nosso
comprometimento com este processo e com o espirito com que estas discussões acontecerão.”

“Nós não estaríamos aqui hoje se não houvesse princípios fundamentais, melhor ainda,
universais, que nos unem.”

“Acho que falo pelos dois quando digo que há um grande otimismo quanto ao modo como
continuaremos a celebrar, nutrir e sustentar a nossa comunidade.”

“Que não haja confusão. O referendo nunca foi sobre desintegração, desmembramento ou
afastamento.”

“E as chamadas “conversas sobre os acordos” não são para por os pingos nos ‘is’ ou cruzar os
‘tês’ da Independência Escocesa. Estamos trabalhando em conjunto para atingir a expressão
mais concreta da soberania: a interdependência.”

“Mais do que nunca, estes últimos dias, meses e anos nos ensinaram algo: que é somente
explorando as nossas diferenças que descobrimos o quão inexoravelmente ligados nós
realmente estamos.”

Tá vendo, Mark? É com isso que estamos trabalhando.

MARK: Que porra é essa?

FIONA: E eles esperam que eu simplesmente fique ali ouvindo.

Mantenha o rosto impassível enquanto estas palavras são lidas.

Um bate-papo amigável em seguida, pras câmeras.

Aqueles tapinhas nas costas...

Foda-se tudo isso.

É claro que os nossos convidados querem falar primeiro.

Filhos-da-puta.
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

MARK: Você acha que é isso mesmo que eles irão dizer?

FIONA: Ah, eu tenho certeza disso.

Cada sílaba.

MARK: Isso não pode... Essa não é a versão que eu li

FIONA: Eu sei.

Parece que os nossos convidados andaram mexendo na versão deles também.

MARK: Deixa eu ver isso.

FIONA: Fique à vontade.

(MARK pega as páginas e lê.)

MARK: Onde exatamente você conseguiu isso?

FIONA: Com uma fonte.

MARK: As pessoas não votaram como votaram pra ouvir esse tipo de coisa.

O Partido jamais permitirá uma coisa dessas.

De jeito nenhum.

FIONA: Será que não?

MARK: Eles precisam saber disso.

Quer dizer, será que eles...

Será que eles leram isso?

(Ele começa a discar no telefone.)

FIONA: Você tá desperdiçando o seu tempo.

Você tá desperdiçando o seu tempo, Mark.

MARK: O Partido tá sabendo disso?

FIONA: É claro que eles sabem, porra!

MARK: Eu ... Eu não fazia ideia.

FIONA: Você não sabe da missa a metade.


“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

Nossos estimados convidados estão nos punindo nas conversas sobre os acordos neste exato
momento e o único motivo para isso é porque eles podem.

O Partido – o Partido tá se cagando de medo de que eu vá lá hoje, fale mais do que devo e com
isso dê carta branca pra que os nossos convidados sejam ainda mais rigorosos.

Nós votamos pela independência, Mark, mas a verdade é que não somos donos de nós mesmos.

Não somos independentes. Temos obrigações.

E então, ainda tá animado pra fazer o que te trouxe aqui?

Será que eu devo ir lá e fazer a mesma coisa?

Sabe, nunca pensei que em questão de meses depois de vencer nós seriamos um bando de
covardes.

Eu só quero fazer o que é certo, Mark.

MARK: Eu realmente pensei que...

FIONA: Eu também, Mark. Eu também.

(MARK faz que sim. Ele guarda o celular no bolso do paletó)

Bem-vindo à caixa de brinquedos, astronauta.

(Uma ideia começa a se formar na cabeça de MARK)

MARK: Onde está o discurso novo? O seu discurso.

FIONA: Hmmm...

MARK: Eu quero ouvi-lo.

Deixe-me ouvir o que você realmente quer dizer.

Se ele passar pelo meu crivo eu ligo pro Partido e digo a eles que eles não tem nada com o que
se preocupar.

FIONA: Você faria isso?

MARK: Anda, deixe-me ouvi-lo.

Cadê ele?

FIONA: Bom...

(FIONA aponta pra massa de papel espalhada pelo chão.)


“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

Aqui.

MARK: É isso aqui?

(FIONA faz que sim.)

Tudo isso?

FIONA: É.

MARK: Há!

FIONA: Tá tudo...

Quer dizer, tá definitivamente por aqui.

Em algum lugar.

É só que... Você sabe.

Um começo.

(MARK se ajoelha e pega uma folha de papel qualquer. Ele a oferece para Fiona.)

MARK: Comece por aqui.

Sem filtros. Sem protocolos.

Vá em frente.

Entre em erupção.

Fique entusiasmada.

(Pausa. FIONA pega o papel. Ela o desamassa.)

O que você vai dizer?

FIONA: (lendo) O cervo prendeu a respiração e deu um salto.

MARK: Legal.

FIONA: Obrigada.

(MARK passa para ela mais uma folha de papel. Ela lê.)

O povo da Escócia não caiu no conto do Projeto Medo.

(MARK dá a ela mais uma folha.)


“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

Ao contrário do que os nossos convidados querem que vocês achem, tudo isso nunca foi pra
estabelecer a porra de um califado de kilt.

(Mais uma folha.)

A Secretária de Estado para Assuntos Internos Britânica tinha razão quando disse que uma
Escócia independente estaria mais vulnerável a atos de terrorismo.

Mas as conversas sobre os acordos nos ensinaram que os verdadeiros inimigos da Escócia estão
um pouquinho mais perto de casa.

Porque não era do Talibã que ela estava falando, mas sim da porra dos Tories4.

Sendo assim, o que eu digo aos nossos “convidados”...

(Mais uma folha)

Nós precisamos de tempo. Tempo para passar por cima de todo o lixo nojento que foi dito
sobre o porque nós não poderíamos, conseguiríamos ou deveríamos dar este salto.

(Mais uma folha)

Vou dizer a eles que nós adquirimos uma espinha dorsal, então eles não podem nos ligar a cada
5 minutos pra nos lembrar aonde deixamos o controle remoto.

(Mais uma folha)

Eu direi que a Escócia pede desculpas sem reservas pelo papel que desempenhou no Império
Britânico.

A Escócia pede desculpas sem reservas pelo papel que desempenhou no comércio de escravos.

A Escócia pede desculpas pelo papel que desempenhou na crise financeira global.

A Escócia pede desculpas pelo papel que desempenhou na colonização de Ulster.

Porque se tem uma coisa que a História nos ensinou, é que podemos ser filhos-da-puta famintos
quando nos cabe.

(MARK tenta dar mais uma folha para Fiona.)

Sim.

Estas palavras...

Estas palavras irão...

4
Ou “Conservadores”. (N.T.)
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

MARK: Irão o que?

FIONA: Estas palavras irão falar diretamente aos Reivers5.

Aos que largaram a escola.


Aos que pedem esmola.

Aos Kirkers6.
Aos Burkers7.
Aos que vivem nas sombras.

Aos filhos do Mança8.


Aos que são tímidos demais pra dança.

Aos plebeus e às celebridades.

Aos que tem tudo.


Aos que não tem nada.

Aos especuladores.
Aos acumuladores.
Aos aniquiladores.

Aos banqueiros.
Aos porteiros.
Aos carpinteiros e aos tintureiros.

Aos ariscos.
Aos que correm riscos.

Aos pais e mães.


Aos filhos e filhas.

Aos...

(FIONA para de repente no meio da frase.)

MARK: Que foi?

FIONA: Sua vez.

MARK: Minha?

FIONA: É. Sua.

5
Exploradores da fronteira da Escócia e da Inglaterra. (N.T.)
6
Provavelmente antigos habitantes da Escócia. (N.T.)
7
Idem a 4. (N.T.)
8
Tradução livre para uma antiga casa com fins religiosos, habitada por ministros presbiterianos ou
metodistas (N.T.)
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

Você vive aqui também, não vive?

(Ela aponta pra flor na lapela dele)

Você é um de nós agora.

Pra quem estas palavras devem falar diretamente?

Vamos lá, Mark.

Não temos o dia todo.

Pra quem estas palavras devem falar diretamente?

MARK: (baixinho) Pros Teuchters...

FIONA: Pra quem?

MARK: (um pouco mais alto) Pros Teuchters...

FIONA: Não to te ouvindo.

MARK: Pros Teuchters9...

FIONA: Mais alto!

MARK: Estas palavras falam diretamente aos Teuchters e aos contritos!

Aos Cavaliers10 e aos Jacobitas11!

FIONA: Aos que fumam cigarro eletrônico e aos que fingem que não fumam!

MARK: Aos tímidos e aos que se acham!

FIONA: Aos adaptados e aos que não se encaixam!

MARK: Aos que reclamam na internet!

FIONA: Aos que fogem do caixão!

MARK: Aos que foram pro caixão!

FIONA: Aos que dizem “Nem começa!”

MARK: Aos que dizem “Eu te disse!”

9
Termo usado para se referir a moradores das terras altas escocesas, pode ser considerado ofensivo.
Pronuncia-se “tjuxters”. (N.T.)
10
Nome usado por Parlamentaristas para se referir aos Realistas defensores do Rei Charles I. (N.T.)
11
Seguidores do movimento dedicado à volta dos reis da dinastia Stuart. (N.T.)
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

FIONA: Aos que dizem “Poderia ser pior!”

MARK: Às massas em desordem.

FIONA: Às classes que não se batem.

MARK: Aos ricos.

FIONA: Aos pobres.

MARK & FIONA: À porra dos Tories.

(os dois vão ao chão, exaustos, em meio à papelada)

MARK: O que você vai dizer lá afinal?

FIONA: Ninguém vai por palavras que eu não queira na minha boca.

MARK: Acha que eu não sei disso?

FIONA: Vou dizer que eu quero por a porra de um fiorde entre nós e eles.

(FIONA leva a mão à barriga. Uma subida e aguda dor. Ela faz uma careta.)

MARK: Tá tudo bem?

FIONA: Tá sim.

MARK: Isso foi uma péssima ideia. Sinto muito. Eu não deveria ter feito você dizer tudo aquilo.

FIONA: Não foi você.

MARK: Quer que eu chame alguém?

FIONA: Tipo quem?

MARK: Não foi concepção imaculada, foi?

FIONA: Idiota.

MARK: Quando nasce?

FIONA: Não hoje.

(mais uma pontada na barriga)

MARK: Isso não é nada bom.

FIONA: Já disse que to bem.


“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

Tá só me lembrando que tá aqui. Puxou o pai.

Ele sabe, aliás. Ele sempre soube. Eu não sou uma vadia completa.

Eu não queria nada dele. Eu não precisava de nada dele. E ele ficou mais do que feliz com isso.

Só que agora ele deu pra fazer exigências.

De uma hora pra outra decidiu que quer “se envolver”.

Disse que sempre achou que a gente poderia ter “algo mais”.

MARK: Entendo.

Como vocês se conheceram?

FIONA: Durante as conversas sobre os acordos.

Digamos que tem lugares nesse país em que eu também não ousaria por os pés novamente.

MARK: Ele é inglês?

FIONA: É. E vai estar na plateia quando eu fizer o discurso.

E não, uma coisa não tem nada a ver com a outra, tá?

MARK: OK.

FIONA: Não tem mesmo.

MARK: OK.

(O telefone de Mark começa a tocar. Ele não atende. O telefone para depois de um tempo.)

Acho que não dá pra enrolar mais.

FIONA: Acho que você tem razão.

(MARK se levanta e se ajeita. Depois ele ajuda Fiona a se levantar.)

MARK: O que você vai dizer?

FIONA: Tenho certeza de que as palavras vão surgir.

MARK: Ministra?

FIONA: Sim, Sr. Henderson?

MARK: Tente não estragar demais as coisas, tá?


“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

(FIONA sorri. A campainha toca. MARK tira da sacola uma flor igual à que está na lapela
dele.)

Pra você.

Posso?

(MARK prende a flor na lapela do paletó de Fiona)

Os fiordes são um fenômeno geológico, sabia? Foram formados durante a era do gelo.

É.

Mas o lance é que eles só se revelam de verdade depois do degelo.

E os fiordes, eles podem ser profundos, mas eles não são muito amplos.

Dá pra olhar pro outro lado da água, ver alguém que esteja do outro lado e saber que tem
alguém ali.

E se o fiorde estiver entre países sem costa marítima, a água será fresca. Dá pra beber. Glaciar.
Pura.

Os dois lados podem beber da mesma fonte.

E se o vento soprar com força sobre o fiorde, pode causar uma certa turbulência, mas não se
engane. No fundo há sempre calmaria.

(MARK termina de prender a flor.)

Pronto.

(Ele dá um passo para trás)

FIONA: Como eu estou?

MARK: Acho que estamos prontos.

(O telefone de MARK toca. A campainha toca. Há batidas firmes e intermináveis na porta.)

O que você vai dizer?

O que você vai dizer, Ministra?

BLACKOUT
“SPOILING”, de John McCann Tradução: Rodrigo Haddad (abr/2015)

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