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Era uma manhã de sexta

1 INT. CASA DE FILIPE (CORREDOR) - DIA 1


UM BARULHO É OUVIDO.

FILIPE - 7 anos, arrumado para sair - anda pelo corredor


da casa. É um corredor pequeno, que dá para os quartos do
local. Pelo que se pode identificar, todas as portas estão
abertas e os primeiros raios de sol criam pequenas frestas
no chão.

FILIPE segue o BARULHO que, pelo jeito, vem de um dos


quartos. Depois de alguns segundos, chega até uma porta,
que está aberta.
FILIPE olha para dentro, sem entrar no cômodo.

2 INT. CASA DE FILIPE (QUARTO DE HÓSPEDES) - DIA 2


ANA - mãe de FILIPE - está terminando de arrumar a cama.
Sua postura é contemplativa, distante, como se estivesse
fazendo a ação automaticamente. Por mais de uma vez, ela
confere a posição do lençol e a distância da cama até a
parede, sem perceber que FILIPE a observa.
O quarto é pequeno - com apenas a cama, o criado mudo e um
guarda-roupa - e parece não ter sido arrumado desde muito
tempo.
ANA olha para os lados e, finalmente, percebe o menino
parado, observando-a.
ANA
(surpresa)
Oxe, menino... Já terminou o
café?
FILIPE balança a cabeça, negativamente.

ANA
Pois vá terminar, vá, pra não se
atrasar.
Ana confere a cama e olha para o criado mudo.

FILIPE
Isso é pra ele?
Ana olha para FILIPE e, depois, ao redor de onde está.

ANA
É...
Enquanto responde, ANA se aproxima de FILIPE e o pega pela
mão.
2.

ANA
... Agora vá terminar suas
coisas.

Os dois saem do quarto.

3 INT. CASA DE FILIPE (COZINHA) - DIA 3


FILIPE está terminando de tomar café. A mesa, desarrumada,
está cheia de farelos, facas, um prato com um misto-quente
pela metade e dois copos, já sujos. Uma AGENDA também está
por perto, ao lado da garrafa de café. Ao fundo,
encostadas na parede, perto da porta, está uma MOCHILA,
cheia.

Enquanto FILIPE come, ANA, sua mãe, vai e volta. Primeiro,


arruma o que pode da mesa, levando os dois copos para a
pia e passando um pano no local em que estavam. Depois,
tira a AGENDA de onde estava e a coloca na parte da mesa
que acabou de limpar.

Ao fundo, pode-se ouvir o barulho de outro corpo se


movendo apressadamente pelo exterior da casa. O que parece
ser A PORTA DE UM CARRO SE ABRE E SE FECHA.
ANA tira a garrafa de café, a coloca perto da pia e, com
um pano, limpa o local onde ela estava.
FILIPE observa ANA.
ANA
(percebe que o filho a
observa)
Vamo, Filipe. Teu pai tá
esperando.
FILIPE continua comendo e observando a mãe. ANA vai até
perto da pia, pega uma LANCHEIRA e bota onde estava a
garrafa de café, bem perto da AGENDA.
O BARULHO DE PORTA DE CARRO ABRINDO É OUVIDO. OUTRA PORTA
- AGORA DA CASA - SE FECHA.
ANA volta para a pia. FILIPE come rápido, agora olhando
para a LANCHEIRA e para a AGENDA.
MARCO entra, apressado. Com uma mão, ele pega a MOCHILA.
Olha para FILIPE, que o observa.
MARCO nota a AGENDA e a pega com a mão livre. Depois,
volta a olhar para FILIPE, sério.
MARCO
(tentando equilibrar o peso
das coisas)
Vamo.
3.

4 INT./EXT. CARRO DE MARCO - DIA 4


FILIPE está no banco de trás do carro. ANA acomoda a
LANCHEIRA perto do menino e bota o cinto nele. MARCO, por
sua vez, bota a MOCHILA atrás do banco do motorista, fecha
a porta traseira e, por fim, entra no carro.
ANA
(para Marco)
Vê se não vai correr, visse? Tem
tempo.
MARCO sinaliza afirmativamente com a cabeça, enquanto
coloca carteira, documentos e a AGENDA no porta-luvas.
ANA
Tá ouvindo?
MARCO
Tou.
MARCO dá a partida no carro. ANA se despede de FILIPE e
fecha a porta traseira. Depois, vai até a janela do
carona, que está aberta, e olha para MARCO.
ANA
Qualquer coisa, liga.

MARCO
Tá.
MARCO já começa a acelerar quando nota, pelo retrovisor,
que UMA FIGURA dobra a esquina e vem correndo em direção
ao carro. É JÚNIOR - irmão de MARCO e tio de FILIPE.
Desarrumado e despenteado, carregando uma PEQUENA MALA e
com seus ÓCULOS-ESCUROS pendurados na gola da camisa, ele
se aproxima do veículo. ANA e FILIPE também o notam.

MARCO pára o carro.


JÚNIOR fala rapidamente com ANA - trocam dois beijos
rápidos - e entra no veículo, sentando no banco do carona.
JUNIOR
Quase!
MARCO olha para JÚNIOR, sério.
JUNIOR se vira, olha para FILIPE e, desajeitado, passa a
mão na cabeça dele, tentando uma espécie de cafuné.

JÚNIOR
Diz, bigodete.
4.

FILIPE
Oi, tio.
JÚNIOR joga sua PEQUENA MALA no banco de trás e ajeita o
cabelo. Depois, ainda um pouco ofegante, se vira para
MARCO, que continua olhando para ele. JÚNIOR tenta ajeitar
os ÓCULOS-ESCUROS na gola e, ao mesmo tempo, botar o cinto
de segurança.
JÚNIOR
(para MARCO)
Que foi?
MARCO mostra SEU RELÓGIO - que fica com a fivela virada
para fora - para JÚNIOR, fazendo-o ver as horas.

JÚNIOR olha para O RELÓGIO e para MARCO. Em resposta,


também mostra o SEU RELÓGIO, que é bem parecido com o do
irmão.
JÚNIOR (...cont.)
(Irônico)
Eu sei.
MARCO faz uma careta e acelera.
FILIPE observa sua casa se tornando ainda mais distante.

O carro dobra a esquina e continua andando. As ruas da


cidade passam, numa velocidade crescente.

5 INT./EXT. RUA EM DIREÇÃO A BR - DIA [DIRIGINDO] 5

O carro está silencioso. FILIPE observa MARCO E JÚNIOR,


sem se mover. Os dois homens estão calados.
O carro passa então pelo último posto de gasolina antes da
BR principal. FILIPE observa JÚNIOR olhar para o posto,
enquanto o carro continua andando. FILIPE também olha para
o posto.
JÚNIOR olha para MARCO, surpreso.
JÚNIOR
Tu não vai botar gasolina não,
Marquim?
MARCO
Já tinha botado ontem.

JÚNIOR acena afirmativamente com a cabeça. O veículo


continua andando.
O silêncio volta a dominar.
5.

6 INT./EXT. BR I - CONTÍNUO [DIRIGINDO] 6


O carro passa por um POSTO DA POLÍCIA RODOVIÁRIA. Um
POLICIAL, que trabalha fiscalizando os carros que iniciam
viagem, faz sinal para que diminuam bastante a velocidade.
MARCO obedece. O POLICIAL observa o veículo e os três
passageiros com leve interesse, troca um "bom dia"
simpático com MARCO e faz sinal para que voltem a andar
mais rápido.
MARCO acelera e logo o POSTO DA POLÍCIA RODOVIÁRIA fica
distante.
FILIPE tira a LANCHEIRA do colo e coloca perto da PEQUENA
MALA de JÚNIOR.

JÚNIOR
(para MARCO)
Te disseram mais alguma coisa de
painho?
MARCO olha para JÚNIOR e para a estrada. Demora a
responder.
MARCO
Só o endereço novo.
JÚNIOR
E tu já sabe o que fazer?
MARCO
Acho que sim.
JÚNIOR
É fogo. Pra ficar doente, basta
tá bom.
MARCO não responde. Continua dirigindo.
JÚNIOR (...cont.)
... E se ele piorar ai na tua
casa, hein?
MARCO olha para JÚNIOR e, depois, olha para o retrovisor.
Percebe que FILIPE está prestando atenção na conversa.
MARCO, volta a olhar para o irmão e depois pra estrada.
MARCO
Homem, tu vai passar a viagem
todinha fazendo pergunta?

JÚNIOR olha para MARCO e esboça uma resposta, mas se cala.


O silêncio torna a deixar o clima pesado.
FILIPE, pelo retrovisor lateral, percebe a cara de JÚNIOR.

Ninguém mais conversa.


6.

7 INT./EXT. - BR II - DIA [DIRIGINDO] 7


MONTAGEM do carro andando pela estrada. O tempo passa. OS
ÚNICOS SONS são os do motor do carro. Ninguém fala.

8 INT./EXT. - BR III - MEIO DIA [DIRIGINDO] 8


Os três continuam dentro do carro, sem conversar. O sol
está a pino.

FILIPE nota que tanto seu pai quanto seu tio olham para
seus relógios, impacientes.
FILIPE olha para o próprio pulso. Não tem relógio. Tenta
olhar para o relógio do carro, mas não consegue. Também
tenta olhar para o relógio do pai e do tio, sem sucesso.
FILIPE
Que horas são?
JÚNIOR levanta o braço e mostra seu relógio para FILIPE. O
relógio marca meio-dia.
JUNIOR
(amistoso)
Tá na hora de arranjar um relógio
pra tu, visse?

FILIPE volta a olhar para a estrada, que parece não ter


fim. Depois, olha para o lado. A LANCHEIRA está aberta e
seu conteúdo já foi comido. A garrafa de água também está
vazia. A PEQUENA MALA de JÚNIOR já está um pouco remexida
também.
Depois de um tempo, ele vê JÚNIOR tirar algo do bolso e
botar um pen-drive no som do carro.
Começa a tocar THE SMITHS - STILL ILL.

MARCO olha para JÚNIOR, mas não fala nada. Todos


permanecem em silêncio.
Depois de um tempo, MARCO avista um posto de gasolina que
tem um restaurante.

MARCO
Vamo comer.

9 INT./EXT. POSTO/RESTAURANTE - CONTÍNUO 9

O carro pára. JÚNIOR desliga o som. Os três saem e andam


em direção ao restaurante. MARCO carrega a AGENDA e está
com o celular na mão, discando para algum número.
7.

FILIPE
Pai, eu quero ir no banheiro.
MARCO olha para FILIPE e tenta dizer que está com o
celular.
MARCO
Filho, eu --
JÚNIOR
-- relaxa, Marquim. (para FILIPE)
Eu vou contigo, bigodete. Tou
apertado também.
FILIPE olha para MARCO, que faz sinal de afirmativo com a
cabeça enquanto diminui a passada e fala ao telefone.
JÚNIOR e FILIPE continuam andando.
FILIPE, enquanto anda, olha mais uma vez para MARCO. Ele
agora está parado, com a mão na cintura. Parece
preocupado.

10 INT. BANHEIRO - DIA 10


FILIPE sai de uma das cabines do banheiro e vai até a pia.
JÚNIOR está lá, esperando.

JÚNIOR
Lava a mão, sugismundo.
FILIPE começa a lavar a mão. Pouco tempo depois, olha para
JÚNIOR.

FILIPE
Vô tá doente de quê?
JUNIOR fica olhando para FILIPE, sem reação.

FILIPE (...cont.)
Mainha não quis dizer. Ele tá
doente, né.
JÚNIOR
(desconcertado)
Tá... Mas é coisa de velho. Por
isso que a gente vai visitar e
trazer ele pra cidade.
FILIPE não responde.

JÚNIOR (...cont.)
Tá empolgado pra conhecer teu
vovô?
8.

FILIPE
Sei lá... Acho que sim.
FILIPE termina de lavar a mão. JÚNIOR o guia para fora do
banheiro.
JÚNIOR
Vocês vão se dar bem. Agora vamo
indo.

11 INT. RESTAURANTE - DIA 11


MARCO, JÚNIOR e FILIPE estão sentados, comendo. O lugar é
desarrumado e um pouco sujo. Depois de um tempo, o
ATENDENTE aparece com uma bandeja com guaraná e copos. Com
o mesmo pano, ele limpa a mesa e enxuga os copos dos três.
FILIPE nota e também observa a cara enojada de JÚNIOR.
O ATENDENTE serve o guaraná e vai embora.
FILIPE
Pai...
MARCO olha para FILIPE e, logo depois, para a comida no
próprio prato.
MARCO
Diga, filho.
FILIPE
Tio Júnior disse que vovô tá
doente de coisa de velho.

MARCO e JÚNIOR se olham. JÚNIOR fita o próprio prato e


suspira. MARCO torna a olhar para FILIPE.
MARCO
É... Mais ou menos.

FILIPE
É por causa dessas coisas de
velho que ele nunca foi visitar a
gente?

Os dois adultos ficam desconcertados.


JÚNIOR MARCO
Ô, bigodete... Não, não...

MARCO para de comer e continua olhando para FILIPE.

MARCO
... Não. Teu avô é meio difícil,
nunca gostou muito de viajar não.
9.

MARCO faz menção de voltar a comer, mas nota que FILIPE


ainda mantém o semblante preocupado. JÚNIOR olha para
MARCO e faz um sinal discreto para que ele fale mais.

MARCO
Mas eu sei que ele tá doido pra
te conhecer e vai gostar de
passar esses dias lá em casa,
falando contigo, contando
história...

FILIPE
E se não gostar?
JÚNIOR
Ele vai gostar! E a primeira
coisa que ele vai dizer vai ser:
"vou cortar esse seu cabelo e
fazer esse bigode azul, meu
neto!"

JÚNIOR passa o dedo no nariz de FILIPE, que ri. MARCO ri


também e volta a comer.

12 INT./EXT. BR IV - TARDE [DIRIGINDO] 12

Agora, quem dirige é JÚNIOR. O som está baixo. FILIPE


continua olhando para a estrada. Nota que MARCO faz a
mesma coisa. Todos aparentam cansaço.
Alguns segundos depois, uma cidadezinha aparece: São
Jerônimo. O carro faz a curva e entra na cidade.

13 INT./EXT. RUAS DE SÃO JERÔNIMO - TARDE [DIRIGINDO] 13


JÚNIOR dirige atento. Por algum tempo, o carro percorre a
rua principal. FILIPE se ajeita no banco. São Jerônimo é
uma cidade pequena, típica do interior da Paraíba.
JÚNIOR
E agora?
MARCO pega a AGENDA, que estava no porta-luvas.

MARCO
Deixa eu ver o endereço...
FILIPE nota que as poucas pessoas da cidade estão olhando
para o veículo deles.

MARCO
... Próxima a esquerda.
O carro vira a esquerda.
10.

14 INT./EXT. RUAS DE SÃO JERÔNIMO II - TARDE [DIRIGINDO] 14


O carro anda por uma rua menor. FILIPE continua olhando
pela janela.

MARCO
Direita agora.

15 INT./EXT. VÁRZEA - TARDE [DIRIGINDO] 15

O carro está em uma rua pouco larga. Anda devagar.


MARCO
(aponta para o lado direito)
Ali.

JÚNIOR para o carro de frente a uma casa modesta. Apita.


Ninguém responde. Apita de novo. Nenhuma resposta. JÚNIOR
olha para MARCO, que sai do carro.
FILIPE fica dentro do veículo com JÚNIOR, que apita mais
uma vez e, por fim, desliga o carro, abre a porta e vai
até onde o irmão está. MARCO bate palmas de frente a porta
da casa de seu pai.
Alguns segundos depois, Uma mulher, DONA HELBA PAULINO,
aparece na porta da casa vizinha. Ela se dirige para MARCO
e JÚNIOR.
DONA HELBA PAULINO
É do povo de seu Medeiros, é?
MARCO
É. Filhos dele. (aponta para o
carro) E neto.
DONA HELBA PAULINO
Olhe, levaram seu pai pro posto.

MARCO
Que posto?
JÚNIOR dá meia volta, entra no carro e dá a partida no
motor.

DONA HELBA PAULINO


O daqui do centro. De saúde. Foi
o fí de dona Quica que levou ele.
Não faz nem duas horas.

MARCO
Tá certo então. Obrigado, viu?
DONA HELBA PAULINO
De nada!

MARCO entra no carro, que parte.


11.

16 EXT. POSTO DE SAÚDE (PORTÃO PRINCIPAL) - TARDE 16


Antes do carro parar completamente em frente ao portão,
MARCO sai do veículo e entra no posto. JÚNIOR sai também,
mas fica por perto, entre o carro e a entrada.
FILIPE continua no carro, observando a ação. JÚNIOR faz
menção de voltar para o carro, mas, finalmente, silaniza
que vai entrar no posto e que FILIPE continue ali, quieto.
O menino diz que sim. JÚNIOR entra pela mesma portão que
MARCO entrou.
O tempo passa. FILIPE olha para a entrada do posto e para
as pessoas que estão ali perto.
Alguns minutos depois, FILIPE vê MARCO saindo com o
celular no ouvido. Sua expressão é de desolação. Ele fala
com alguem ao telefone.
MARCO olha para FILIPE, mas, antes de chegar até o carro,
pára. Continua conversando. Vira as costas para o carro e
se curva, como se um peso houvesse sido posto em seus
ombros. Finda por entrar mais uma vez no posto, ainda com
o celular no ouvido. FILIPE não sabe o que fazer.
MARCO sai vagarosamente do posto e vai até o carro, ainda
com expressão desolada. Entra e senta no banco do
motorista. Olha para FILIPE.
MARCO
Filho, olhe...
FILIPE olha para o pai, que está com os olhos marejados.

MARCO (...cont.)
... Seja forte, porque você não
vai conhecer seu avô da melhor
forma.

FILIPE
Ele tá muito doente?
MARCO
Só seja forte. Viu?

MARCO liga o carro e dá a volta no posto, parando bem de


frente ao...

17 EXT. POSTO DE SAÚDE(PORTÃO TRASEIRO) - TARDE 17

FILIPE olha para a portão e para MARCO, que parece estar


em choque. O garoto nota que o pai tem as mãos firmes no
volante.
12.

JÚNIOR sai pelo portão. Sua expressão também é abatida.


Logo atrás dele, um ENFERMEIRO vem carregando um VELHO de
barba mal feita, que está sentado em uma cadeira de rodas,
inerte e pálido.

MARCO
(para FILIPE)
Fique quietinho. Se acalme.
MARCO tira sua carteira do porta-luvas, sai do carro e
ajuda JÚNIOR e o ENFERMEIRO. Primeiro eles abrem a porta
do banco do passageiro; depois, colocam o corpo do VELHO -
que é o AVÔ DE FILIPE, MORTO - sentado no banco.
JÚNIOR passa o cinto de segurança no avô e bota seus
ÓCULOS-ESCUROS nele. FILIPE, num espasmo, tenta ajudar o
tio, mas sua mão bate na mão fria do AVÔ e ele, por
reflexo, volta para onde estava. Nota que o AVÔ também tem
um RELÓGIO igual ao de MARCO e JÚNIOR.
MARCO tira dinheiro de sua carteira e entrega ao
ENFERMEIRO, que responde com um "obrigado e meus pêsames".
FILIPE olha para a nuca do AVÔ. De onde o menino está,
parece que o morto apenas dorme. JÚNIOR olha para FILIPE,
que, por sua vez, percebe o enfermeiro pedindo segredo e
apertando a mão de MARCO.

JÚNIOR entra no banco de trás, bota a sua PEQUENA MALA, a


MOCHILA e a LANCHEIRA de FILIPE no colo e fica parado. Sua
cara é de choro. MARCO também entra no carro.
MARCO (...cont.)
(sem olhar para o filho)
Filipe, esse é seu avô. Desculpe.
FILIPE de onde está, olha para o AVÔ. Só vê nuca e
orelhas. MARCO liga o carro. Vão embora.

18 INT./EXT. BR IV - FIM DE TARDE [DIRIGINDO] 18


O silêncio é total. MARCO continua dirigindo e JÚNIOR olha
para a janela. FILIPE alterna sua atenção entre o pai, o
tio e, principalmente o AVÔ. Pelo que consegue ver do
retrovisor lateral, a cabeça do morto virou levemente para
direita.

19 INT./EXT. POSTO/RESTAURANTE (VOLTA) - NOITE 19

O carro pára no posto.


MARCO
Vou comprar água. Querem alguma
coisa?
13.

JÚNIOR
Não... Acho que vou no banheiro.
JÚNIOR sai logo. MARCO, antes de sair, olha para FILIPE,
que, depois de encarar mais uma vez a nuca e a mão do AVÔ,
também sai do carro.
JÚNIOR (...cont.)
(para FILIPE)
Vai no banheiro também?

FILIPE responde negativamente. Ele anda um pouco, como se


fosse seguir MARCO, mas fica numa distância média entre o
pai e o veículo.
FILIPE percebe que seu pai faz as coisas automaticamente:
compra a água enquanto fala ao celular. O garoto olha,
então, para o carro, para onde o AVÔ está. Devagar, se
aproxima do vidro lateral. Primeiro vê a face do AVÔ de
lado. Depois, anda e a vê de frente. Volta então ao vidro
lateral e encara o defunto. Vê a boca e a barba; o queixo;
os ÓCULOS-ESCUROS estão fora do lugar. Sua pele é branca e
frágil. As luzes dos carros que passam pela estrada fazem
tudo ficar um pouco mais estranho.
FILIPE continua olhando, até que sente uma mão no seu
ombro. É MARCO. FILIPE olha para o pai, que, por sua vez,
também está olhando para o velho. MARCO dá a água para o
filho e, com outro tapinha no ombro, faz entender que está
entrando no carro. FILIPE o segue. Pouco depois, JÚNIOR
também entra. Seus olhos estão marejados.
Dentro do carro, a atmosfera é pesada. MARCO passa um
tempo apenas segurando na direção. Depois de alguns vários
segundos, ele ajeita a postura do pai morto e dá a partida
no carro.

20 INT./EXT. - BR I (VOLTA) - NOITE [DIRIGINDO] 20

O carro continua em silêncio. E o tempo parece não passar.


Ninguém conversa. A estrada é apenas breu.
A situação continua inalterada até que JÚNIOR, que estava
em silêncio, olhando pela janela, se ajeita.

JÚNIOR
Puta merda.
Eles estão perto do POSTO DA POLICIA RODOVIÁRIA. Existe
uma pequena comoção por lá: carros fazem fila e alguns
policiais param certos veículos.
FILIPE nota que a situação no carro fica tensa. MARCO E
JÚNIOR trocam olhares e se ajeitam. FILIPE olha para o AVÔ
e para a fila de veículos mais a frente.
14.

MARCO dirige devagar e passa por alguns policiais, dando


"boa noite". Um deles - O MESMO POLICIAL DA CENA 6 - olha
para o carro e sinaliza para que encostem. Marco obedece.

O POLICIAL chega até o vidro lateral e fala com MARCO.


POLICIAL
Boa noite...
MARCO
Boa noite.
O POLICIAL acena para JÚLIO e FILIPE. Depois torna a olhar
para MARCO. JÚNIOR continua tenso, olhando para a janela.
POLICIAL
Hmm... (olha para o AVÕ e depois
para MARCO)Documentos, por favor?
MARCO tira os documentos do porta-luvas e os entrega ao
POLICIAL. No meio do caminho, bate sem querer no pai
morto, que não se move. O POLICIAL nota. Olha para os
documentos, para MARCO e para o AVÔ.
POLICIAL
(olhando para o AVÔ)
Que foi que teve com ele?

MARCO exita.
JÚNIOR FILIPE
Ele -- -- Tá morto.

POLICIAL (...cont.)
Hein?
JÚNIOR trava. MARCO olha para O POLICIAL, que fita FILIPE,
o AVÔ, os documentos e, depois, o motorista.
POLICIAL
Viagem longa, né?
MARCO
(Sem olhar para o policial)
É. É.

POLICIAL
(Entrega os documentos para
MARCO)
Podem seguir. Boa viagem!
MARCO responde afirmativamente com a cabeça, liga o carro
e continua a viagem.
15.

21 INT./EXT. CASA DE FILIPE - NOITE 21


O carro chega. O silêncio é total. JÚNIOR sai logo e fica
parado, na calçada. ANA sai de casa e dá um abraço em
JÚNIOR. Depois tira FILIPE do carro e o abraça. MARCO fica
no carro. ANA troca olhares com o marido. Não há muito o
que se dizer.
ANA leva FILIPE para dentro de casa. MARCO E JÚNIOR
começam a tirar o defunto do carro.

22 INT. CASA DE FILIPE (SALA) - NOITE 22


Enquanto é levado pela mãe, FILIPE nota que existe um
CAIXÃO disposto no meio da sala.

FILIPE observa o CAIXÃO enquanto a mãe o leva para o


corredor.

23 INT. CASA DE FILIPE (COZINHA) - NOITE 23

FILIPE - arrumado e banhado - está jantando. ANA está


perto, sentada, olhando para o filho. Tudo parece
silencioso.
JÚNIOR aparece na cozinha. Parece ter tomado um banho
rápido, desajeitado. Suas roupas estão molhadas, como se
tivesse esquecido de se enxugar direito. Um pouco alheio e
apressado, não sabe exatamente onde ficar.
JÚNIOR
(Para ANA)
Aninha, vou resolver uns troços
do caixão, funeral... Depois
volto, mais tarde...
ANA
Deixa que eu vou contigo até a
porta.
JÚNIOR
Precisa não...

ANA
(Se levanta)
Vem, vamo. (Para FILIPE) Já
volto, viu?
FILIPE acena positivamente. ANA e JÚNIOR saem da cozinha.

O BARULHO DE UMA PORTA ABRINDO E BATENDO É OUVIDO.


FILIPE passa um tempo comendo.
Um OUTRO BARULHO É OUVIDO. São passos, pequenos
movimentos, que parecem vir de algum ponto no corredor.
16.

FILIPE para de comer, presta atenção no barulho, se


levanta e sai da cozinha.

24 INT. CASA DE FILIPE (CORREDOR) - NOITE 24


FILIPE anda pelo corredor. O BARULHO DE ALGUÉM SE MOVENDO
FICA MAIS FORTE. FILIPE se aproxima do quarto de hóspedes
e entra.

25 INT. CASA DE FILIPE (QUARTO DE HÓSPEDES) - NOITE 25


FILIPE vê que o quarto agora está diferente. O AVÔ está
deitado na cama, nu. MARCO - um pouco cansado e suado
- está debruçado sobre o defunto, se preparando para
barbear e penteá-lo. Ali perto, no criado-mudo, estão
alguns pertences do falecido, incluindo O RELÓGIO. As
roupas que serão usadas no enterro estão penduradas no
guarda-roupa.
MARCO nota o filho.

MARCO
Me ajude.
FILIPE vai até perto do AVÔ. Nota o corpo inerte: Suas
marcas e cicatrizes; seu rosto; também nota no criado mudo
uma pequena bandeja prateada, com água, sabão e navalhas.
MARCO tira seu RELÓGIO e bota perto do RELÓGIO do morto.
Depois, pega uma das navalhas e entrega para FILIPE.

MARCO e FILIPE fazem a barba do morto; ajeitam e penteiam


seu cabelo. MARCO está bem próximo de FILIPE e o ajuda
como pode.
FILIPE percebe quão parecidos são o pai e o AVÔ. Quando
termina de fazer a barba, bota a navalha na bandeja e nota
seu próprio reflexo.
Por fim, ajuda a vestir o AVÔ, passo a passo. Primeiro as
roupas e depois os pertences.
Quando já está quase terminando, FILIPE se levanta, pega o
RELÓGIO DO AVÔ e vai colocá-lo no braço do seu dono. MARCO
impede o filho, delicadamente. Depois, tira o RELÓGIO das
mãos de FILIPE e o coloca no pulso do menino - com a
fivela pra fora, como o seu.
FILIPE olha para o RELÓGIO e para MARCO, que pega o SEU
RELÓGIO, olha as horas e começa a dar corda no agora
relógio do filho.
FIM.

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