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FADE IN
IRACEMA
(no telefone)
...mas vocês vem pro almoço? ...já chegou
o socorro aí? ...o socorro, chegou?... E
onde é que vocês estão?
(se vira e faz sinal a Camillo,
gesticula algo)
Camillo, é a Indira!
2.
INDIRA
Alô? Tia, tá me ouvindo?... já tão
resolvendo. ...Polícia?! Ah,
rodoviária... Mas, tia, não precisa...
INDIRA (CONT'D)
(gritando)
Yúlia! Yúliaa!
INDIRA (CONT'D)(OFF)
Oi, tia, desculpa... pode falar: zero,
oitocentos... três, quatro, meia... três,
sete ou sete e três, tia?
MARIA
Dona Aurora? Posso limpar?
AURORA
Quem me limpa são elas... Cadê elas?
AURORA
Cadê minha gata?
MARIA
Na sua perna.
AURORA
(grita)
Cadê!?!
Em frente a uma casa térrea grande, com portão de muro baixo, numa
rua asfaltada, Iracema se abana com um leque. Ao lado dela está
NENÊ, 26 anos, morena.
IRACEMA
Cadê o Zé?
INDIRA
No carro... rezando...
IRACEMA
Hmm... essa aqui é a Nenê, ela vai levar
vocês lá.
IRACEMA (CONT'D)
Eu apareço mais tarde... já fui ontem,
não adiantou, o Camillo também... vamo vê
se ele adianta
NENÊ
(olha para Yulia)
...essa é a Júlia?
INDIRA
(passa mão na cabeça da menina)
Yúlia!
5.
NENÊ (OFF)
...Iúlia?
NENÊ (CONT'D)(OFF)
...diferente.
NENÊ (OFF)
O senhor rezou um terço?
JOSÉ
O rosário.
NENÊ (OFF)
Ah, isso eu sei, a Dona Indira falou, que
o senhor tá desde a estrada...
NENÊ (OFF)(CONT'D)
... quis dizer se o senhor rezou um
terço... porque agora mudou, né? Um terço
é um quarto.
6.
NENÊ (OFF)(CONT'D)
... o Papa mudou: no rosário a gente tem
que rezar um terço de novo... não sei
direito...
NENÊ (CONT'D)
...mas é uma volta que é só pra Maria, eu
acho... Não gostei! Mas quando eu quero
rezar pra Nossa Senhora eu rezo... aí o
terço vira um quarto. (ri levemente)
JOSÉ
(fala sorrindo)
Não, eu rezei um terço... mas eu rezei
pra Maria, em todos os mistérios... é
dela o rosário.
CARLOS (OFF)
Continua aqui, Nenê?
NENÊ (OFF)
Continua... Ali na frente vai ter uma
bifurcação, o senhor entra à direita,
depois tá pertinho...
A cortina balança.
NENÊ (OFF)
Ô Maria!
NENÊ (OFF)
Maria!! ...entra, gente!
NENÊ
Esse aqui é o homem!
AURORA (OFF)
(gritando do quarto)
Maria!
AURORA (OFF)
Quem tá aí?!!
JOSÉ
(suspira)
Que situação...
INDIRA
Senhor quer que a gente vá junto?
AURORA (OFF)
Mariaaa!
NENÊ (OFF)
A gente pode tomar um café enquanto, né
Maria? Passa pra gente?
MARIA
Tô cozinhando o que a Iracema pediu...
mas você pode passar!
AURORA
Quem tá aí?
AURORA
(desconfiada)
É você?
JOSÉ
Sou eu, mãe.
AURORA
Cadê a mancha, de café-com-leite?
AURORA
Por que você demorou?
CARLOS (OFF)
Yúliaa!
CARLOS
(dando a boneca)
Tó. Não fica muito longe...
Yúlia pega a boneca e o olha, pela fumaça que ele expele em seu
rosto.
INDIRA
Fumando outra vez...
NENÊ (OFF)
(gritando)
Maria, Dona Iracema já pode vir?
NENÊ (OFF)
Maria!!
JOSÉ
(entrando na cozinha)
Maria!
JOSÉ (CONT'D)
Tem manga?
MARIA
Ela quer comer?
JOSÉ
Corta pra mim, por favor.
INDIRA (OFF)
E aí, pai?
JOSÉ
Tá paralítica.
INDIRA
...tia Iracema tinha dito.
NENÊ
... e ela falou?... Por que não quer
comer?
JOSÉ
(abrandando)
Não, ela me pediu manga.
12.
NENÊ
Graças a Deus! ...que bom que o senhor
veio.
MARIA
(meio ríspida)
Eu perguntei se era pra ela, o senhor
disse que não.
JOSÉ
É pra ela. Eu só pedi pra cortar.
NENÊ
(apaziguando)
Deixa que eu corto, seu Zé.
JOSÉ
Maria... você viu ela cair?
JOSÉ
Você tá aqui pra cuidar dela... você
sabe.
NENÊ
Maria, Seu Zé tá falando.
MARIA
Você veio pra falar o que eu tenho que
fazer?!
JOSÉ
...você deixou ela cair...?
NENÊ (OFF)
Maria?
MARIA
(de costas)
Vocês veio aqui pra quê?!! Eu que cuido
dela!!
INDIRA
Como é que é?
JOSÉ (OFF)
Só perguntei se viu ela cair.
MARIA (OFF)
(resmungando)
O senhor me dá licença, porque tá
queimando tudo!
JOSÉ
... bom, quando você tiver em condições a
gente conversa...
Por trás de José, Aurora vem em direção à cozinha, num passo curto
e frágil. José demora a perceber e só então se silencia. Maria
continua resmungando e fazendo seus barulhos no fogão. Os outros
olham pra Aurora, atônitos. José se levanta pra ajudá-la.
Aurora levanta o braço, o impedindo com o gesto. Aurora se apóia
na parede, respira um pouco para descansar. Muito esforço.
Aurora volta a se virar pra esquerda, por onde Iracema chega, pela
lateral da casa. De jóias e vestido, vem se abanando com o leque.
Junto dela está Camillo, de terno azul marinho e com a mão direita
enfaixada num curativo. Iracema pára de se abanar.
IRACEMA
(olha Aurora e José)
Zé...
JOSÉ
Não posso levantar agora...
José, sentado, olha pro casal recém-chegado. Aurora olha pro mato.
O mato tá escuro e parado, sem vento.
AURORA
(em tom brando)
... acharam que ía morrer. Elas se
enganaram. Tenho quem protege.
JOSÉ
Quem?
AURORA
As gatas... E elas, já tão ali...(pausa)
Elas limpam a doença... Anota aí, depois
você come. Precisa comer.
16.
JOSÉ
Não tô com fome.
AURORA
Gato filtra... A preta é da minha neta...
ouviu? Da minha neta!
JOSÉ
Aquela é sua bisneta.
AURORA
Não! Ela é minha neta.
IRACEMA (OFF)
... mas que eles tanto conversam?
NENÊ (OFF)
E ficaram um tempão no quarto...
IRACEMA
...e ele também não falou nada?
Nenê, de boca cheia, faz que não com a cabeça. Iracema se abana
com leque, olhando em direção a Aurora.
IRACEMA
...vontade de se aparecer...
YÚLIA
Tá doendo a cabeça...
INDIRA
É o calor, filha.
17.
YÚLIA
Mas tá doendo...
IRACEMA (OFF)
...a Maria veio pegar o prato? Você que
levou?
NENÊ
... quis comer lá dentro...
IRACEMA
Zé!!! Você fez ela andar, Zé!
JOSÉ
...é pra levá-la "num homem de branco"...
a mãe mandou.
IRACEMA
Quem?
JOSÉ
(aponta Yúlia e acarinha a menina)
Num médico... (fala pra Carlos) e não põe
mais o chapéu na cabeça da menina... Não
na frente dela.
CARLOS
(oferecendo uma colher de arroz pra
Yúlia)
Come, é falta de comer.
IRACEMA (OFF)
E esse caderno, Zé? Que ela tanto falou
pr'ocê?
NENÊ (OFF)
Não pode dar um remédio pra ela?
INDIRA
O médico não deixou... ela tava com
suspeita de dengue... mas não era. Ele
falou que não era.
CAMILLO
Dengue?...então tem que levar pro
hospital! IRÁ, liga pro Dr.Moysés
NENÊ (OFF)
Quer sentar aqui, seu Zé?
JOSÉ
Não, obrigado. O prato é pra ela.
INDIRA (OFF)
...mas tá tudo bem, deve ser fígado.. só
pode.
CARLOS
Onde que é o hospital?
CAMILLO (OFF)
A gente leva vocês!
IRACEMA
A Nenê pode levar.
CAMILLO
Liga pro Dr. Moysés, é mais confiável.
IRACEMA
A essa hora?! ...abuso ligar pro Dr.
Moysés... você nem terminou de comer.
CARLOS
Senhor leva a gente, seu Camillo?
NENÊ
(se levantando)
Eu posso levar vocês.
IRACEMA
Quem são "elas"? "...elas querem minha
terra, querem minha casa"?
CAMILLO (OFF)
Irá!
IRACEMA (OFF)
"Elas querem a terra... vieram pra me
tirar daqui..."
CAMILLO
(grita)
Irá!
José olha pra Camillo que entra na casa. Iracema joga o caderninho
na mesa, ao lado do prato que José monta.
IRACEMA
(se levantando)
Não sei quem é pior nessa casa...
Aurora, iluminada por essa luz que flica, olha o mato. OUVE O
CHORO ALTO DA MENINA E NENÊ A CONSOLANDO. O mato escuro se mexe
com o vento. OUVIMOS OS CARROS DANDO PARTIDA E INDO.
Mesmo com a CÂMERA LENTA, percebemos que Aurora vem num passo mais
rápido que o dado dentro da casa. Ela vem em direção ao mato,
esboçando um choro misturado com um sorriso, e vem tirando por
cima o vestido de chita, sem parar de caminhar.
JOSÉ
(grita, mas não ouvimos sua voz)
Mããe!
22.
José continua vindo, já bem perto, vem correndo meio sem jeito,
tentando equilibrar o prato cheio de comida e a manga ao mesmo
tempo. Vem olhando aflitamente pra mãe. José chega no limite do
caminho de terra, e olha em direção a Aurora.
José olha pro mato, aflito, OUVIMOS SUA RESPIRAÇÃO OFEGANTE. Ele
olha a sua volta, olha pra trás, pra casa, mas está sozinho. É o
único.
FADE OUT
FIM