Você está na página 1de 22

1.

FADE IN

1 EXT. BAMBUZAL - CASA DE AURORA - DIA 1

Em CONTRA-PLONGÉ vemos a copa de bambus balançando, iluminados


pelo céu, no contra-luz.

2 INT. QUARTO - CASA DE AURORA - DIA 2

AURORA, 85 anos, pele branca, cabelo desarrumado, está deitada no


chão e olha em direção à janela.

Aurora está com um vestido simples, de chita florida, e está


deitada com as mãos cruzadas sobre o peito. Seu pescoço está
levemente erguido, pelo travesseiro colocado diretamente no chão.

Por trás da cortina, no parapeito da janela, uma GATA PRETA no


contra-luz, espiando lá fora. O vento suave balança a cortina.

Na porta do quarto, próxima ao batente, MARIA, 70 anos, negra, de


lenço na cabeça, olha para Aurora em silêncio.

3 INT. SALA - CASA DE IRACEMA - DIA 3

IRACEMA, 60, branca, de roupa elegante e florida, está num


telefone com fio. Em torno dela, alguns móveis de madeira e ao
fundo, CAMILLO, 62, seu marido, sentado numa poltrona, faz um
curativo na mão, OUVINDO MÚSICA CLÁSSICA.

IRACEMA
(no telefone)
...mas vocês vem pro almoço? ...já chegou
o socorro aí? ...o socorro, chegou?... E
onde é que vocês estão?
(se vira e faz sinal a Camillo,
gesticula algo)
Camillo, é a Indira!
2.

4 EXT. RODOVIA - DIA 4

Encostada em frente a um CARRO AZUL ESCURO parado no meio da


rodovia com pisca-alerta ligado, INDIRA, 28 anos, morena, magra,
com chapéu bege e vestido, fala ao celular.

Ao fundo vemos VÁRIAS PESSOAS na estrada fora dos carros, por


conta do acidente de trânsito que impede o fluxo: uma VACA morta
na estrada, entre carros parados com pisca alerta.

INDIRA
Alô? Tia, tá me ouvindo?... já tão
resolvendo. ...Polícia?! Ah,
rodoviária... Mas, tia, não precisa...

A porta de trás do carro azul escuro abre e YULIA, de 6 anos,


menina morena, sai correndo pela rodovia interditada, ela vai em
direção a CARLOS.

INDIRA (CONT'D)
(gritando)
Yúlia! Yúliaa!

Yúlia vai até CARLOS, 30 anos, moreno, que está parado em pé na


rodovia. Ele a pega no colo. Os dois olham em direção ao
acidente.

Uma VACA morta na estrada, um carro com a frente amassada e


MOTORISTAS que tentam amarrar cordas no bicho.

INDIRA (CONT'D)(OFF)
Oi, tia, desculpa... pode falar: zero,
oitocentos... três, quatro, meia... três,
sete ou sete e três, tia?

Pela fresta da porta de trás aberta do carro azul escuro vemos


JOSÉ, 58 anos, grisalho, com roupa social, de paletó claro,
rezando um terço católico.
3.

INDIRA (CONT'D) (OFF)


... Ah, não é esse número! Não, não tem
problema... pode falar, pode falar... Um,
nove, oito... Só isso?

José persigna-se concentrado: um sinal-da-cruz pequeno na testa,


faz o mesmo na boca, e repete esse sinal no peito.

5 INT. QUARTO - CASA DE AURORA - DIA 5

A gata negra na barriga de Aurora, se deita aninhada próxima às


mãos da velha que permanecem cruzadas, com compridas unhas.

A gata pára de se lamber e olha em direção à porta.

Maria entra no quarto, ajeita a cortina da janela e prepara um


pano úmido numa bacia. Ela vem em direção a Aurora

MARIA
Dona Aurora? Posso limpar?

A gata se levanta e sai do quarto passando pelas pernas de Maria,


que já está bem próxima a Aurora, encostada na cama.

AURORA
Quem me limpa são elas... Cadê elas?

Aurora se vira em direção ao espelho da penteadeira, onde vemos


Maria, de costas, ajeitando objetos sobre a cama.

AURORA
Cadê minha gata?

MARIA
Na sua perna.

Aurora descruza as mãos e gruda a unha na perna de Maria.


4.

AURORA
(grita)
Cadê!?!

Maria dá um pulo de susto e deixa cair os panos.

6 EXT. CASA DE IRACEMA - DIA 6

Em frente a uma casa térrea grande, com portão de muro baixo, numa
rua asfaltada, Iracema se abana com um leque. Ao lado dela está
NENÊ, 26 anos, morena.

Passa um carro, Indira e Yulia atravessam a rua. Iracema beija


Indira no rosto. Yulia se agarra na saia de Indira.

Iracema olha Carlos fumando de pé encostado na frente do carro, do


outro lado da rua.

IRACEMA
Cadê o Zé?

INDIRA
No carro... rezando...

IRACEMA
Hmm... essa aqui é a Nenê, ela vai levar
vocês lá.

Indira e Nenê se cumprimentam, dão as mãos.

IRACEMA (CONT'D)
Eu apareço mais tarde... já fui ontem,
não adiantou, o Camillo também... vamo vê
se ele adianta

NENÊ
(olha para Yulia)
...essa é a Júlia?

INDIRA
(passa mão na cabeça da menina)
Yúlia!
5.

Yúlia se esconde na saia da mãe.

NENÊ (OFF)
...Iúlia?

Indira olha em direção ao seu carro, do outro lado da rua.

NENÊ (CONT'D)(OFF)
...diferente.

Indira balança a cabeça negativamente.

Do outro lado da rua, Carlos dá último trago e joga a bituca de


cigarro no chão.

7 INT. CARRO - ESTRADA DE TERRA - DIA 7

José, encostado no vidro, mexe os lábios, rezando sussurrado e de


olhos abertos. Olha pela janela, a paisagem. Beija a cruz do terço
e o guarda no paletó.

NENÊ (OFF)
O senhor rezou um terço?

José se vira para a direita e vê Nenê que o observa, sentada


próxima a outra janela do banco de trás. Yúlia está com uma boneca
negra na mão, entre eles.

JOSÉ
O rosário.

NENÊ (OFF)
Ah, isso eu sei, a Dona Indira falou, que
o senhor tá desde a estrada...

Pelo espelho do pára-sol, na frente do carro, Indira observa José.

NENÊ (OFF)(CONT'D)
... quis dizer se o senhor rezou um
terço... porque agora mudou, né? Um terço
é um quarto.
6.

Indira abre mais a janela e olha o mato da estrada. Carlos,


dirigindo, olha para Indira.

NENÊ (OFF)(CONT'D)
... o Papa mudou: no rosário a gente tem
que rezar um terço de novo... não sei
direito...

Carlos aperta o joelho de Indira e balbucia um "Que foi?" enquanto


a conversa de Nenê acontece. Indira fala um "Nada", em silêncio, e
olha pra fora, pela janela.

NENÊ (CONT'D)
...mas é uma volta que é só pra Maria, eu
acho... Não gostei! Mas quando eu quero
rezar pra Nossa Senhora eu rezo... aí o
terço vira um quarto. (ri levemente)

JOSÉ
(fala sorrindo)
Não, eu rezei um terço... mas eu rezei
pra Maria, em todos os mistérios... é
dela o rosário.

Yúlia apóia a cabeça na boneca, cansada. José a abraça.

CARLOS (OFF)
Continua aqui, Nenê?

NENÊ (OFF)
Continua... Ali na frente vai ter uma
bifurcação, o senhor entra à direita,
depois tá pertinho...

José oferece uma garrafa d'água mineral à Yúlia. Yúlia aperta


forte a cabeça com as mãos e faz que não.

8 EXT. CASA DE AURORA - TARDE 8

A porteira tá aberta e o carro azul escuro chega na casa,


levantando poeira da terra do chão.
7.

A casa é simples, térrea. À esquerda há uma grande área de mato


verde, com bambus e muitas árvores, que se estendem até o fundo,
no quintal da casa.

O carro estaciona frente à entrada da casa.

9 INT. QUARTO - CASA DE AURORA - DIA 9

A cortina balança.

Aurora, deitada no chão, repara o som da janela: PORTA DO CARRO


BATENDO e CONVERSA de NENÊ.

NENÊ (OFF)
Ô Maria!

10 EXT. CASA DE AURORA - TARDE 10

José parado frente à porta de entrada da casa. Indira e Yulia vem


vindo por trás. Nenê passa por José e já entra na casa. Ao fundo,
meio desfocado, Carlos fecha o carro.

NENÊ (OFF)
Maria!! ...entra, gente!

Yúlia e Indira se aproximam, José as espera entrar.

11 INT. SALA - CASA DE AURORA - TARDE 11

A sala é simples, com poucos quadros na parede, fotos pintadas


antigas, e outros de motivos religiosos católicos. Da sala dá para
ver a cozinha e um corredor, que liga ao quarto de Aurora.

Indira e Yúlia estão de pé no centro da sala. Nenê fala com Maria


e apresenta a ela José.

NENÊ
Esse aqui é o homem!

José, ainda na porta, terminando de entrar. Acena a cabeça


8.

AURORA (OFF)
(gritando do quarto)
Maria!

Todos se viram em direção à porta do quarto, no corredor.

AURORA (OFF)
Quem tá aí?!!

José passa as mãos no cabelo, segura a nuca com as mãos

JOSÉ
(suspira)
Que situação...

INDIRA
Senhor quer que a gente vá junto?

José olha pra Indira e balança a cabeça negativamente.

AURORA (OFF)
Mariaaa!

José olha pra porta do quarto de Aurora.

NENÊ (OFF)
A gente pode tomar um café enquanto, né
Maria? Passa pra gente?

Indira e os outros vão indo a cozinha, enquanto José fica um tempo


parado na sala, hesitante, olhando-os.

MARIA
Tô cozinhando o que a Iracema pediu...
mas você pode passar!

José olha pro quarto e vai vagarosamente até sua porta.


9.

12 INT. QUARTO - CASA DE AURORA - TARDE 12

José na porta do quarto vê Aurora deitada no chão (com mãos


cruzadas e cabeça erguida, como na primeira cena).

AURORA
Quem tá aí?

José entra e se senta na cama. Olha-a. Aurora o observa.

AURORA
(desconfiada)
É você?

JOSÉ
Sou eu, mãe.

Aurora, que continua deitada igual, o observa mais.

AURORA
Cadê a mancha, de café-com-leite?

José tira o paletó, abre os botões da camisa. Aurora o observa se


despir. José se vira e mostra uma mancha grande, marrom claro: uma
marca (de nascença) nas costas.

AURORA
Por que você demorou?

13 EXT. QUINTAL - CASA DE AURORA - ANOITECENDO 13

As árvores balançam com o vento. Yúlia observa o mato do fundo da


casa. Olha pro limite do quintal onde finda o chão de terra e
começa o mato, com várias árvores e bambus. Yúlia observa atenta
e ouve o RANGIDO DOS BAMBUS.

CARLOS (OFF)
Yúliaa!

Carlos com a BONECA NEGRA na mão, olha em direção à Yúlia. Na


outra mão segura o cigarro que traga.
10.

Ao fundo está a casa de Aurora: a porta externa da cozinha, um


banco de madeira ao lado da porta. Nessa porta dos fundos está
Indira com braços cruzados. Carlos traga o cigarro. Yúlia chega
até ele e ele lhe estende a boneca. A menina olha a mãe ao fundo.
Carlos se vira e vê Indira. Indira entra na casa. Carlos volta, em
direção à Yúlia.

CARLOS
(dando a boneca)
Tó. Não fica muito longe...

Yúlia pega a boneca e o olha, pela fumaça que ele expele em seu
rosto.

14 INT. COZINHA - CASA DE AURORA - ANOITECENDO 14

Indira põe uma xícara de café na pia.

INDIRA
Fumando outra vez...

Maria corta couve e a olha, incomodada. Indira olha Maria com


desprezo, tira o chapéu e se abana, encostada na porta. Ouvimos
Nenê na sala, falando ao telefone.

NENÊ (OFF)
(gritando)
Maria, Dona Iracema já pode vir?

Maria balança o ombro, resmunga baixo: "Quer vir, vem".

NENÊ (OFF)
Maria!!

Maria larga a couve e vai até a outra porta da cozinha responder,


com a faca na mão. Indira põe o chapeú, balança a cabeça e
suspira. Olha pra fora, em direção a Carlos.

Na outra porta, Maria responde a Nenê de modo não muito audível,


resmungado. Maria volta para a pia e pela porta que liga à sala
vem vindo José, de paletó, em direção à cozinha.
11.

JOSÉ
(entrando na cozinha)
Maria!

Indira se vira, em direção a José.

JOSÉ (CONT'D)
Tem manga?

Maria o olha. Aponta com a faca uma manga na fruteira, perto da


pia.

MARIA
Ela quer comer?

JOSÉ
Corta pra mim, por favor.

José se senta à mesa.

INDIRA (OFF)
E aí, pai?

Indira se senta à mesa. José balança a cabeça negativamente. Maria


descasca a manga num prato, na pia. Nenê entra na cozinha, ela
pára na ponta da mesa.

JOSÉ
Tá paralítica.

INDIRA
...tia Iracema tinha dito.

NENÊ
... e ela falou?... Por que não quer
comer?

JOSÉ
(abrandando)
Não, ela me pediu manga.
12.

NENÊ
Graças a Deus! ...que bom que o senhor
veio.

MARIA
(meio ríspida)
Eu perguntei se era pra ela, o senhor
disse que não.

JOSÉ
É pra ela. Eu só pedi pra cortar.

Maria deixa a manga na pia e vai acender a luz de fora, já está


ficando mais escuro. Nenê vai à pia.

NENÊ
(apaziguando)
Deixa que eu corto, seu Zé.

15 EXT. QUINTAL - CASA DE AURORA - ANOITECENDO 15

Maria puxa uns fios próximos à porta e os liga na tomada ao lado


do batente. A lâmpada externa flica e então se acende de vez.
Carlos e Yúlia se aproximam da casa. Lá dentro, à mesa, José e
Indira observam Maria através da porta.

16 INT. COZINHA - CASA DE AURORA - ANOITECENDO 16

Maria vem com um lampião apagado e um pedaço de jornal até a pia


da cozinha. Coloca ao lado de onde Nenê corta a manga, perto da
tábua com couve picada.

JOSÉ
Maria... você viu ela cair?

Maria pega o jornal e o acende na boca do fogão, que está aceso e


com panelas. Leva a chama até o lampião. Indira a observa apagar o
jornal assoprando forte, voando pedaços de jornal queimados na
couve. Lampião aceso, Maria o põe no chão de fora, ao lado da
porta.
13.

JOSÉ
Você tá aqui pra cuidar dela... você
sabe.

Maria mexe nas panelas do fogão. Nenê termina de cortar a manga em


cubos e lava a faca na pia, ao lado do fogão.

NENÊ
Maria, Seu Zé tá falando.

MARIA
Você veio pra falar o que eu tenho que
fazer?!

Maria fica nervosa, remexe as comidas das panelas. Remexe o arroz


com uma colher metálica. Bate a colher fortemente, várias vezes na
panela, pra titar o que grudou na colher.

JOSÉ
...você deixou ela cair...?

NENÊ (OFF)
Maria?

MARIA
(de costas)
Vocês veio aqui pra quê?!! Eu que cuido
dela!!

Maria bufa, alterada, bate a colher novamente no fogão e volta a


revolver o arroz. Indira olha Maria, a estranhando

INDIRA
Como é que é?

JOSÉ (OFF)
Só perguntei se viu ela cair.

Indira olha em direção a José e ouvimos ainda Maria BATER A COLHER


fortemente no fogão, várias vezes.
14.

MARIA (OFF)
(resmungando)
O senhor me dá licença, porque tá
queimando tudo!

JOSÉ
... bom, quando você tiver em condições a
gente conversa...

Por trás de José, Aurora vem em direção à cozinha, num passo curto
e frágil. José demora a perceber e só então se silencia. Maria
continua resmungando e fazendo seus barulhos no fogão. Os outros
olham pra Aurora, atônitos. José se levanta pra ajudá-la.
Aurora levanta o braço, o impedindo com o gesto. Aurora se apóia
na parede, respira um pouco para descansar. Muito esforço.

17 EXT. QUINTAL - CASA DE AURORA - NOITE 17

Aurora, sentada no banco de madeira, olha pro mato.

Já está bem mais escuro, e pouco se enxerga fora o iluminado pela


luz externa da casa e o lampião.

Yúlia, próxima ao batente da porta, olha as gatas, nos pés de José


e Aurora. José está sentado ao lado de Aurora, no banco de
madeira. Carlos põe a mesa que estava na cozinha do lado de fora
da casa. Nenê estende uma toalha sobre a mesa. Indira arrasta
cadeira e se senta próxima à mesa, se abanando com o chapéu.

Carlos entra na casa e sai com mais cadeiras e Maria leva as


panelas, passando por Yúlia, que continua no batente encostada,
enquanto eles passam. Aurora, olhando pro mato, sussurra no ouvido
de José. José segura o prato com cubos de manga numa perna e na
outra José anota o que ela fala num CADERNINHO. Aurora pega os
cubos com os dedos de unhas grandes. Vira um pouco e olha pra
Yúlia de soslaio. Yúlia recua, se encosta mais na parede, se
escondendo, e aperta a própria cabeça na parede, se apertando com
a boneca.
15.

Aurora volta a se virar pra esquerda, por onde Iracema chega, pela
lateral da casa. De jóias e vestido, vem se abanando com o leque.
Junto dela está Camillo, de terno azul marinho e com a mão direita
enfaixada num curativo. Iracema pára de se abanar.

IRACEMA
(olha Aurora e José)
Zé...

Aurora olha pro mato. José mostra o prato e o caderno.

JOSÉ
Não posso levantar agora...

Iracema se aproxima e dá um beijo em José. Camillo o cumprimenta


num aperto de mão. Iracema passa a mão suavemente no ombro de
Aurora, acarinhando-a. Aurora a encara séria e fica olhando pra
mão de Iracema, até ela parar com o gesto.

Os outros, na mesa. Maria faz um prato e entra na casa, sem falar


com quem chegou. Nenê se serve, Carlos põe Yúlia à mesa e Indira
fica de pé, esperando pra cumprimentar. Iracema vem e os
cumprimenta, junto de Camillo.

José, sentado, olha pro casal recém-chegado. Aurora olha pro mato.
O mato tá escuro e parado, sem vento.

AURORA
(em tom brando)
... acharam que ía morrer. Elas se
enganaram. Tenho quem protege.

JOSÉ
Quem?

AURORA
As gatas... E elas, já tão ali...(pausa)
Elas limpam a doença... Anota aí, depois
você come. Precisa comer.
16.

JOSÉ
Não tô com fome.

AURORA
Gato filtra... A preta é da minha neta...
ouviu? Da minha neta!

Aurora aponta Yúlia que está sentada no colo de Carlos, na ponta


da mesa. Ao fundo, Iracema olha pra Aurora.

JOSÉ
Aquela é sua bisneta.

AURORA
Não! Ela é minha neta.

Yúlia encosta a cabeça na mesa. Iracema olha em direção a José.


Indira pára de se abanar e põe o chapéu na mesa.

IRACEMA (OFF)
... mas que eles tanto conversam?

NENÊ (OFF)
E ficaram um tempão no quarto...

IRACEMA
...e ele também não falou nada?

Nenê, de boca cheia, faz que não com a cabeça. Iracema se abana
com leque, olhando em direção a Aurora.

IRACEMA
...vontade de se aparecer...

Yúlia passa mal, faz cara de dor e se recusa a comer a mandioca


frita que Indira lhe serve. Carlos pega o chapéu da mesa e abana o
rosto de Yúlia. A menina continua enjoada.

YÚLIA
Tá doendo a cabeça...

INDIRA
É o calor, filha.
17.

YÚLIA
Mas tá doendo...

Carlos abana Yúlia com o chapéu. Ao fundo, Aurora olha em direção


aos da mesa. José se levanta e vem com o caderninho.

IRACEMA (OFF)
...a Maria veio pegar o prato? Você que
levou?

NENÊ
... quis comer lá dentro...

Iracema faz uma cara de desdém, continua a se abanar com leque,


olhando em direção a Aurora.

Yúlia começa a chorar, apertando a cabeça. Carlos a abana com o


chapéu e a assopra. José se aproxima.

IRACEMA
Zé!!! Você fez ela andar, Zé!

JOSÉ
...é pra levá-la "num homem de branco"...
a mãe mandou.

IRACEMA
Quem?

JOSÉ
(aponta Yúlia e acarinha a menina)
Num médico... (fala pra Carlos) e não põe
mais o chapéu na cabeça da menina... Não
na frente dela.

José aponta Aurora discretamente quando fala a última frase.


Indira pega o chapéu do marido. A menina chora baixo, meio
manhosa.
18.

CARLOS
(oferecendo uma colher de arroz pra
Yúlia)
Come, é falta de comer.

Yúlia abre a boca e come a colher de arroz com cara enjoada.


Indira segura a mão dela.

IRACEMA (OFF)
E esse caderno, Zé? Que ela tanto falou
pr'ocê?

José dá o caderno para Iracema e toma um copo de suco.

NENÊ (OFF)
Não pode dar um remédio pra ela?

INDIRA
O médico não deixou... ela tava com
suspeita de dengue... mas não era. Ele
falou que não era.

CAMILLO
Dengue?...então tem que levar pro
hospital! IRÁ, liga pro Dr.Moysés

Iracema lê o caderninho. José começa a preparar um prato.

NENÊ (OFF)
Quer sentar aqui, seu Zé?

JOSÉ
Não, obrigado. O prato é pra ela.

INDIRA (OFF)
...mas tá tudo bem, deve ser fígado.. só
pode.

Aurora, ao fundo, está apontando para o mato e falando sozinha.


19.

AURORA olha o mato e sussurra uma prece incompreensível. Algumas


árvores balançam de leve. YÚLIA CHORA INTENSAMENTE, escorre um fio
de sangue de seu nariz.

CARLOS
Onde que é o hospital?

CAMILLO (OFF)
A gente leva vocês!

IRACEMA
A Nenê pode levar.

CAMILLO
Liga pro Dr. Moysés, é mais confiável.

IRACEMA
A essa hora?! ...abuso ligar pro Dr.
Moysés... você nem terminou de comer.

Carlos se levanta nervoso e puxa Indira, com Yúlia no colo. Yúlia


chora gemendo, sem muita força, deixa cair a boneca no chão.
Indira pega a boneca caída, veste o chapéu

CARLOS
Senhor leva a gente, seu Camillo?

NENÊ
(se levantando)
Eu posso levar vocês.

Iracema continua sentada, lendo o caderno e se abanando com o


leque. José a olha, enquanto monta o prato.

Carlos vem com com Yúlia no colo. Aurora os olha de soslaio,


quando passam pela porta. Em seguida passa Indira.

Camillo se levanta e acompanha Nenê, que se levantou e foi também


indo pra casa. José monta o prato devagar, corta o bife em
pedacinhos. Iracema pára de se abanar com o leque e olha José.
Permanece sentada.
20.

IRACEMA
Quem são "elas"? "...elas querem minha
terra, querem minha casa"?

José não responde, balbucia uma reza. Só levanta os ombros e


continua a fazer o prato.

CAMILLO (OFF)
Irá!

Iracema, se abanando, encara José, depois olha pra Camillo, ao


fundo, na porta da casa que dá pra cozinha. Ao lado de Camillo,
Aurora sentada olha pro mato.

IRACEMA (OFF)
"Elas querem a terra... vieram pra me
tirar daqui..."

A gata preta continua sentada no chão. A gata clara caminha em


direção ao mato. Aurora a observa.

CAMILLO
(grita)
Irá!

José olha pra Camillo que entra na casa. Iracema joga o caderninho
na mesa, ao lado do prato que José monta.

IRACEMA
(se levantando)
Não sei quem é pior nessa casa...

José balança a cabeça negativamente, ainda balbuciando a reza


inaudível. Iracema vai em direção à casa. José os olha e volta a
montar o prato, corta mandioca em pedaços.

Iracema entra na casa e ouvimos ela indo embora com Camillo,


RECLAMANDO. Pela porta da cozinha vemos MARIA chupando uma laranja
na pia, observando a movimentação da casa. A LÂMPADA da PORTA
começa a flicar e MARIA observa.
21.

Aurora, iluminada por essa luz que flica, olha o mato. OUVE O
CHORO ALTO DA MENINA E NENÊ A CONSOLANDO. O mato escuro se mexe
com o vento. OUVIMOS OS CARROS DANDO PARTIDA E INDO.

Aurora olha a gata que pára no limite entre o fim de terra e o


mato. COM O SILÊNCIO, OUVIMOS OS SONS DE INSETOS, BAMBUS RANGENDO,
VENTO NAS FOLHAS.

TODA A IMAGEM FICA EM CÂMERA LEVEMENTE LENTA (MUITO SUTIL)

Aurora ouve esses SONS, olhando pro mato. Levanta. Se vira em


direção à mesa e vê que José está de costas, de pé, ainda
preparando o prato. Aurora caminha em direção ao mato.

A Gata preta continua fixa, sentada e olhando Aurora caminhar.


Aurora olha pro mato que se mexe com o vento. OUVE OS SONS MAIS
INTENSOS DOS BAMBUS, DAS FOLHAS E DE AVES NOTURNAS QUE COMEÇAM A
PIAR.

Mesmo com a CÂMERA LENTA, percebemos que Aurora vem num passo mais
rápido que o dado dentro da casa. Ela vem em direção ao mato,
esboçando um choro misturado com um sorriso, e vem tirando por
cima o vestido de chita, sem parar de caminhar.

Ao fundo, levemente desfocado, vemos também José, que se vira e


então percebe a corrida da mãe. José vem com o prato na mão e uma
parte de manga cortada na outra. E os dois vem em direção ao mato,
mas assim que Aurora PASSA PELA CÂMERA com o busto desnudo - logo
que tira o vestido -, passamos a acompanhar apenas a corrida de
José, que vem com as comidas na mão. E vem gritando, mas não o
ouvimos.

JOSÉ
(grita, mas não ouvimos sua voz)
Mããe!
22.

Vestido de chita é jogado no chão e as pernas nuas de Aurora


passam pela gata, que a segue assim que sua dona entra no mato.
Aurora, DE COSTAS PRA VISÃO DA CÂMERA, toda nua, passa pelas
árvores, adentrando o mato.

José continua vindo, já bem perto, vem correndo meio sem jeito,
tentando equilibrar o prato cheio de comida e a manga ao mesmo
tempo. Vem olhando aflitamente pra mãe. José chega no limite do
caminho de terra, e olha em direção a Aurora.

Dentro do mato escuro, Aurora já está distante e entre as árvores


ela vira apenas um vulto de uma senhora nua que anda, longe, de
costas pra quem a olha, e sai do campo de visão ao passar pelo
tronco grosso de uma árvore.

José olha pro mato, aflito, OUVIMOS SUA RESPIRAÇÃO OFEGANTE. Ele
olha a sua volta, olha pra trás, pra casa, mas está sozinho. É o
único.

José olha pro vestido de chita, jogado no pé da árvore assim que


se passa o limite do chão de terra. José se aproxima e põe o prato
com comida e a manga sobre este vestido, no chão. José olha pro
mato, mas não chega a entrar muito nele. Pára logo que chega nas
primeiras árvores, se apóia num bambu.

A IMAGEM VOLTA AO NORMAL

Dentro do mato, José já não vê mais ninguém. Apenas as árvores que


se mexem com o vento, os bambus que balançam, e os SONS SOTURNOS
da mata que vão se intensificando.

FADE OUT

FIM

Você também pode gostar