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Arte e revolução

Olavo de Carvalho

Diário do Comércio (editorial), 25 de julho de 2008

O estudante sério, como se sabe, é uma espécie da qual presumo haver salvado
da extinção alguns dos poucos exemplares que ainda restam no Brasil, e até
fomentado a geração de uns quantos em proveta, longe daquela raça temível de
predadores que são os pedagogos e os burocratas do Ministério da Educação.

Um daqueles raros sobreviventes envia-me uma pergunta das mais interessantes,


merecedora de resposta em jornal. Quer ele saber se o artista, o poeta, o escritor
infectado de mentalidade revolucionária está irremediavelmente perdido para a
criação artística ou pode, pelo gênio pessoal, transcender nela a mecanicidade
grosseira do pensamento revolucionário.

Se aceitamos a definição croceana da arte como “expressão de impressões” – e


até hoje não vi motivo para rejeitá-la –, a resposta à pergunta torna-se auto-
evidente. A mentalidade revolucionária é essencialmente a inversão do sentido do
tempo, a arrogância psicótica de interpretar o presente e o passado à luz das
virtudes imaginárias de um futuro hipotético. O futuro enquanto tal não pode ser
objeto de impressão, só de conjeturação imaginativa ou de construção mental.
Uso estes dois termos para designar atividades diametralmente opostas: a
primeira consiste em ampliar simbolicamente as impressões do presente e jogá-
las num futuro imaginário, como fizeram George Orwell e Aldous Huxley em
“1984” e no “Admirável Mundo Novo” respectivamente. A segunda inventa o futuro
e remolda à luz dele as impressões do presente. É esta a única via aberta à “arte
revolucionária”. Mas é certo que essa arte já não é mais arte e sim mero
revestimento estético de uma construção conceptual. Cabe aí a distinção que
Saul Bellow fazia entre os “intelectuais” e os “escritores”, estes incumbindo-se do
ofício propriamente artístico de transmitir as “impressões autênticas”, aqueles
tratando de deformá-las segundo uma construção hipotética.

A mentalidade revolucionária é intrinsecamente hostil à criação artística, porque


volta as costas às “impressões autênticas”, reconstruindo o mundo segundo os
cânones de uma “segunda realidade” artificial e artificiosa. O termo “segunda
realidade” é de Robert Musil, e quem o leu sabe do gigantesco esforço que esse
escritor dispendeu para restaurar a arte do romance numa atmosfera cultural em
que as idéias e ideologias pareciam ter sepultado esse gênero sob a grossa placa
de chumbo das construções conceptuais.

Isso não quer dizer, no entanto, que todo artista politicamente comprometido com
uma causa revolucionária permaneça escravo dela no exercício do seu mister
criativo. A história das artes no século XX – e especialmente da literatura – é uma
galeria de consciências dilaceradas entre a fidelidade ao futuro hipotético
oferecido pelas ideologias e a realidade presente das “impressões autênticas”.

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