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SEXUALIDADE E GÊNERO
NA EXPERIÊNCIA TRANSEXUAL
Berenice Bento
Copyright © dos autores
e-mail: editora@garamond.com.br
Coordenação Editorial
Julieta Roitman
Revisão
Shirley Lima
Argemiro Figueiredo
Editoração Eletrônica
Miguel Papi [Letra & Imagem]
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
DO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
B42r
Bento, Berenice
A reinvenção do corpo : sexualidade e gênero na experiência transe-
xual / Berenice Bento. - Rio de Janeiro : Garamond, 2006
256p. - (Sexualidade, gênero e sociedade)
Inclui bibliografia
ISBN 85-7617-100-7
PREFÁCIO 11
INTRODUÇÃO _19_
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Com base em uma leitura que identifica no patriarcado a expressão
única, ou primordial, da subordinação feminina, acabou-se por, em
boa medida, essencializar o feminino e tendeu-se a construir um outro
radical, absoluto: os homens.
Foram os estudos mais detidos sobre as relações entre os gêneros
que apontaram os limites dessa concepção binária. Passou-se a observar
que masculino e feminino se constroem relacionalmente, em contínuas
disputas de poder. Portanto, foi a partir dos estudos de gênero que se
pôde avançar na desnaturalização e na dessencialização das identidades
de gêneros.
No entanto, qual o espaço que se reservou, nessas reflexões articuladas
durante décadas sobre as relações de gênero, para as travestis, os/as tran-
sexuais, as lésbicas, os gays, os transgêneros, e tantas outras experiências
identitárias? Onde habitavam esses sujeitos nessas teorias e investigações?
Eles tenderam a não fazer parte deste universo conceitual.
Retomo aqui um pergunta que Berenice Bento se faz: até que ponto
o silêncio da Sociologia não contribuiu para a patologização dos gêneros
e das sexualidades que se organizam em divergência às normas de gênero
e à heteronormatividade? E até que ponto nossas dificuldades, de mu-
lheres dominantemente heterossexuais e hegemônicas no movimento
feminista inicial, as quais perduraram por muitos anos, não se refletiram
na construção acadêmico-científica das relações de gênero como objeto
de estudo nas Ciências Humanas?
De que lugar eu falo? Do lugar de feminista – movimento social/
inaugural militante – que, com muita luta, conseguiu transformar uma
“militância” em “objeto científico”. Falar de relações de gênero no início
dos anos 80, na Academia, era motivo de chacota.
Pois Berenice conseguiu, duas décadas depois desse nosso esforço
feminista inicial, dar um salto paradigmático. Ela indica novas possibili-
dades de reflexão sobre sexo, gênero e opção sexual. Porque seu trabalho
garante, com competência, que são lugares distintos. Nós, feministas,
partimos da opressão das mulheres. Fato histórico incontestável. Porém,
a autora avança: a opressão se dá não apenas sobre as mulheres, mas há
lugares infinitos de interlocuções/diálogos/possibilidades entre esses três
lugares: fato sociológico incontestável. Não se pode pensar gênero sem
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O sujeito localiza suas dores exclusivamente em sua subjetividade, não
conseguindo perceber os dispositivos sociais que atuam na produção
dessa verdade/lugar.
Para a autora, a despatologização da transexualidade significa politizar
o debate, compreender como o poder da medicalização/biologização das
condutas sexuais e dos gêneros ressignifica o pecaminoso no anormal,
deslocando o foco de análise do indivíduo para as relações hegemônicas
de poder, as quais constroem o normal e o patológico.
A eficácia das tecnologias discursivas é apresentada ao longo de todo
o livro. As falas dos informantes contam da impossibilidade da existência
de sujeitos que não se reconhecem em seus corpos. Bicho-de-sete-cabe-
ças, macho-fêmea, aberração da natureza... são algumas expressões que
os entrevistados utilizam para tentar encontrar uma nomeação para seus
sentimentos de descontinuidade. Nomear-se transexual não resolve o
problema totalmente.
Ao longo de três anos, Berenice Bento entrevistou transexuais no Bra-
sil, em Madri, Valência, Barcelona. O que poderia parecer um excesso,
justifica-se quando vemos emergir narrativas que remetem a uma mul-
tiplicidade de significações para a transexualidade. Se um dos objetivos
da autora era desconstruir a idéia de um sujeito transexual universal,
consagrado pelo dispositivo da transexualidade, ela logrou êxito. Alguns
pontos de unidade entre os sujeitos que vivem a experiência transexual,
tais como, o desejo de realizar a cirurgia de transgenitalização, não per-
mitem concluir a existência de uma “identidade transexual” (genérica,
absoluta, única).
A autora prefere falar de posições identitárias, apegos identitários
temporários, identidades rizomáticas, diversidade dos gêneros. Tran-
sexuais lésbicas, transexuais gays, transexuais que querem casar e re-
produzir o modelo de mulher subalterna ou de homem viril, mulheres
transexuais feministas, mulheres transexuais despolitizadas, transexuais
que acreditam que a cirurgia os conduzirá a uma humanidade negada,
transexuais que não querem a cirurgia e a denunciam como um engodo,
transexuais que reivindicam exclusivamente a mudança do nome e do
sexo nos documentos.
Desconfiar do conceito de identidade generalizante e problematizar a
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A REINVENÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E GÊNERO NA EXPERIÊNCIA TRANSEXUAL
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binarismo, como são as travestis, os transexuais, as transexuais, os
transgêneros.
Durante séculos, nós, mulheres, fomos prisioneiras do império
biológico. Dizia-se que não podíamos ocupar os espaços de poder no
mundo público porque éramos o que nosso útero determinava. Afir-
mava-se que nossa estrutura biológica nos conformava às tarefas de
pouca complexidade. Nós, feministas, politizamos o discurso médico,
apontamos o caráter ideológico de suas verdades inexoráveis. Por sua vez,
movimentos que se organizaram em torno da diversidade sexual também
articularam contra-discursos à heteronormatividade, desvinculando a
sexualidade da reprodução.
Nessas disputas, o que está em jogo é o próprio conceito de huma-
nidade. Não nos interessava pensá-lo como uma categoria abstrata,
universal, mas feita de carne, osso e sangue e que encontra sua mate-
rialidade no conceito de cidadania. A humanidade pode encontrar na
cidadania a possibilidade de existência, ou de inteligibilidade, como
afirma Berenice. Direito ao trabalho, à educação e também à identidade
de gênero, ao próprio corpo.
Há vários pontos de unidade entre o discurso feminista e o transe-
xual. O principal, ao meu ver, é a luta pelo direito ao próprio corpo. Às
mulheres, até hoje, no Brasil, é negado o direito ao aborto, por exem-
plo. Na questão reprodutiva, ainda somos escravas do nosso “destino
biológico”. Os/as transexuais também lutam para sair de um destino
existencial orientado pela genitália.
Trabalho de campo sem teoria é casa de palha. Ao primeiro vento
forte, sucumbe. Esse perigo aqui não existe. Berenice Bento foi buscar
nos teóricos queer campo de estudo e aportes teóricos pouco difundido
entre nós, brasileiros. A teoria da performance, de Judith Butler, articu-
lada, criativamente, com a teoria praxiológica de Pierre Bourdieu, com
as reflexões de Foucault sobre sexualidade e biopoder, a radicalidade
do pensamento de Beatriz Preciado, além de um intenso debate com
as formulações de outras teóricas feministas como Simone de Beauvoir
e Scott, resultam em um denso rigor interpretativo e criativo em in-
terlocução.
Não existe uma hierarquização entre teoria e trabalho de campo,
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