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A casa das boas palavras: um prólogo para escrever poemas como documentos

terapêuticos.

Sanni Paljakka (Calgary, Alberta, Canada) sanni_ilona@hotmail.com

Texto traduzido pelo Interfaci-SP

Original:
Paljakka, S. (2018). A house of good words: A prologue to the practice of writing poems
as therapeutic documents. Journal of Narrative Family Therapy, Special Release, 49-71.

Eu sou uma pessoa correta – às vezes –


ela disse.
Mas, agora, as reações chegam
e eu estou visivelmente ausente,
mais uma vez.
Secretamente,
essas coisas significam muito para mim,
e eu tenho muito a dizer.
Posso dizer mais uma coisa,
com as mãos libertas por sua graça?
Você percebe, não há mais volta.

(Estas são ‘palavras resgatadas’ de Tiffany Saxton durante nossa conversa sobre esse
artigo. A Tiffany vai fazer algumas aparições neste texto assim como meus colegas,
amigos e poetas... Casualmente, a máscara de oxigênio em meus acidentes aéreos.)

Caro David, Caro Tom,


Essa noite, eu tive um sonho. Sonhei que eu era convidada para escrever um texto em
sala de aula. Eu apareci lá carregando uma caixa com itens bem estranhos:
1. uma caneta tinteiro dourada
2. Um quadro do que só pode ser descrito como fantasmas famintos
3. A foto de uma mulher olhando pela janela de um carro para a planície lá fora
4. Uma pilha de cartões amarelados com citações neles
5. Um brilhante dragão de brinquedo.
Mas, quando eu sentei na minha carteira na sala de aula, me pediram para entregar a
caixa com todos os itens e a minha caneta, e me entregaram uma caneta de brinde,
ainda embalada no plástico, para que eu escrevesse com ela. Meu coração ficou
paralisado. Eu olhei para o que estava escrito na caneta, algo como ‘PRD’, talvez as
iniciais de ‘Poemas Resgatados do Discurso’, ou, então, algum péssimo plano de
resgate de dívidas ou a tradução malfeita do francês RSVP.
David, Tom, vocês me pediram para escrever sobre a minha recente apresentação
acerca de escrever poemas relativos às conversas terapêuticas. Me senti honrada com
esse pedido e comecei a ler as anotações que fiz para a tal apresentação. Mas, meus
queridos, cheguei à conclusão que não tem como voltar ao passado! Essa bagunça toda
causou explosões, fogos, e eu estou sentada agora, no meu escritório em casa, em
meio a essas férteis cinzas. Eu prefiro escrever sobre os pensamentos que surgem
neste novo espaço de começo de vida. O que vocês acham?
Eu arriscaria um palpite de que vocês dois, aos risos, fugiriam comigo das canetas de
brinde embrulhadas em plástico e partiriam para desvendar o que está dentro da caixa
de coisas estranhas! Então, vamos lá, vocês e eu ...

1. A caneta tinteiro dourada

Escrever poemas relativos às conversas terapêuticas cresceu dentro de mim de forma


gradual e firme, ao longo do curso da minha vida e do meu trabalho. Isso começa lá
atrás em minha vida, quando eu era pequena e fui para a escola em uma pequena
cidade na Áustria, fora de Viena, onde as crianças ainda escrevem com canetas tinteiro
e aprendem a admirar músicos, artistas e escritores de todos os tipos. A poesia me
cercava: meus pais liam poemas para nós, meus professores liam poemas para nós...
meu professor de alemão durante 6 anos, fazia declamações dramáticas dos poemas
para nós. Ele declamava seus poemas favoritos (muitos dos quais ele lia repetidamente
ao longo dos anos) de forma tão pujante e impressionante que silenciava qualquer turma
de adolescentes bagunceiros e brincalhões. Ele também exigia que a gente escrevesse
redações relativas aos poemas, e discutia sobre o significado de algumas palavras
antigas em nossa vida pessoal. Ele transformava seu incentivo e entusiasmo a qualquer
esforço sincero em escrever tais redações em longas e enormes cartas em nossos
cadernos.
Desde aquele tempo, eu escuto as pessoas dizerem que não ‘entendem’ a poesia e que
todos os seus encontros com a poesia dentro e fora da escola foram tudo, menos
inspiradores. Minha admiração pela paixão ‘maior do que vida’ do meu professor
cresceu junto com a compreensão de como ele me resgatou da sina de ver os poemas
como curiosidades obsoletas que só podem ser acessadas por alguns poucos
escolhidos. Ele abriu meus ouvidos para escutar como linhas escritas há muito tempo
podem renascer de novo e me acompanhar onde quer que eu vá. Minha vida, graças a
ele, foi preenchida com um imaginário rico e pleno: os corvos voando sobre nossas
cabeças nunca foram os mesmos depois de ouvir o poema ‘deles’. A pantera enjaulada
no zoológico, o casal se olhando silenciosamente com suas xícaras de café, a fonte
transbordante, o cachorro que late à noite, o soldado sem sua armadura levando a
bandeira, a mulher que chora – eles todos ganharam vida e me presentearam com
riquezas para viver. Em momentos caóticos, eu ainda me vejo lembrando e repetindo
partes dos poemas - as palavras e seus ritmos me acalmam e consolam.
Quando saí da Áustria e fui para o Canadá, na juventude, minha melhor amiga, que se
sentava ao meu lado durante os seis anos de escola, me deu uma fita com sua
interpretação dos poemas que esse professor leu para nós. O ritmo e a cadência das
leituras dele se misturavam com a voz da minha melhor amiga à medida em que eu
ouvia a fita muitas e muitas vezes durante as minhas viagens por esse enorme novo
país. Os poemas me falavam do ‘lar’, me ensinavam que as palavras podem estar
conosco para suspender nossos maiores momentos de solidão. Eles me deram
esperança de que eu voltaria a pertencer, talvez não em um país em específico, mas
junto das pessoas e suas palavras.
2. Um quadro do que só pode ser descrito como fantasmas famintos
Recentemente, Tiffany e eu nos sentamos para almoçar e pensarmos juntas sobre suas
considerações depois de uma rodada de trabalho em equipe especialmente alucinante,
e ela suspirou: “estou tão faminta...”. Um poema nasceu:

Isso é um trabalho faminto

Com você na mesa


Eu quero comer palavras
Então, sim, por favor
Me dê uma rodada de palavras quebradas
Sua torta de palavras mastigadas
Suas palavras de mel líquido
E me diga, amiga,
Como as palavras penetraram em seu sangue
E efervesceram em suas veias
E se sentaram em bolhas de pensamentos
Que você só tinha que ler com sua boca.
Diga-me
Estou tão faminta.

Agora eu sei que o escrever poemas relativos às conversas terapêuticas veio até mim
como uma série de assombrosos fantasmas famintos. Os fantasmas pairavam ao meu
redor em uma tarde de neve na biblioteca da universidade quando eu buscava
desesperadamente, ‘modelos’ para escrever melhores cartas para meus clientes. Eu
tropecei em um artigo de Christopher Behan sobre o que ele nomeou Poemas
Resgatados do Discurso e eu fui imediatamente tomada por uma noção de prazer e
fascinação. Me vi pensando sobre como transcrever as palavras do orador dentro de
poemas possibilitaria “resgatar o dito do dizer” (White, 2000). Eu escondi essa ideia e
esse prazer em minha mente.
Bem uns seis meses depois, os fantasmas assistiam enquanto eu sentava debaixo de
uma árvore perto do meu escritório em uma tarde ensolarada. Eu me sentei atordoada,
pensando na pessoa com quem eu tinha acabado de conversar; suas palavras
rodopiavam e ecoavam na minha mente e não me deixavam em paz. Eu pensava de
que forma eu iria escrever uma carta para ela sobre o quão profundo ela me tocou, e
como eu captei um vislumbre do seu espírito, brilhando através da história do problema
que ela me trouxe. ‘Vai ser uma longa carta, cheia de citações’, eu pensei, com certo
pesar, ao considerar a impossibilidade de fazer justiça ao que eu vivenciei se fosse
colocado dentro de uma carta com palavras e citações.
Os fantasmas se agitavam impacientemente nos cantos durante a minha conversa com
meu supervisor, Alan Parry, quando ele me perguntou: “Se a sua frustração pudesse
falar, o que ela diria?”. Agora, olhando em retrospectiva, a pergunta poderia ter a
seguinte emenda: ‘Se a sua frustração pudesse falar, e não pudesse simplesmente te
culpar por não ser uma terapeuta melhor, o que ela diria?”
A resposta para essa pergunta deve ter sido outra pergunta: ‘Se eu não posso reproduzir
os belos mapas de Michael White no meu trabalho, e se eu não tenho a sagacidade
para fazer as belas perguntas de contar histórias como David Epston, o que diabos eu
POSSO fazer?
Cadê as coisas que me são familiares? Como eu posso considerar junto com as
pessoas sobre a vivência de suas vidas de forma a honrar o caráter delas e a ampliar
seus horizontes de possibilidades? Como eu posso demonstrar consideração de forma
convincente? Eu me sinto uma pessoa totalmente idiota sem um conhecimento útil dos
mapas que me mostrasse uma saída do território rodopiante das palavras. Mas, as
palavras! Elas me acompanhavam para casa, me assustavam à noite, continuavam me
seguindo na cozinha e em frente ao espelho do banheiro. ‘Eu quero substituir o deus da
cozinha em nome da minha filha!’ eu ouvia em minha mente todas as vezes que eu
entrava em minha cozinha. ‘eu sou uma grande trouxa!’ eu ouvia quando me sentava
com amigos num bar. ‘Eu sou exagerada!’ eu ouvia ao aguardar em salas de espera
pequenas. ‘Esse é o meu corpo, esse é o seu formato, essas são suas dores, e isso é
a sua cura’ eu ouvia em frente ao espelho no banheiro. Eu me sentia sentada sobre um
tesouro sem saber o que fazer além de sentar, cada vez de forma mais desconfortável.
Quem está acumulando todo esse trabalho?

3. A foto de uma mulher olhando pela janela de um carro para a planície lá


fora
Eu sinto certo prazer em imaginar o que os fantasmas estavam fazendo no dia em que
o primeiro poema deslizou para dentro do meu computador. Eu sei que naquele dia a
pressão do tempo e um feliz acidente vieram ajudar. Era meu último dia de trabalho
antes das férias e eu estava sentada em meu consultório com uma pilha de cartas
terapêuticas para terminar. O tempo era essencial já que a luz do entardecer já tinha
passado do escuro para o mais escuro ainda. Já era um hábito antigo começar uma
nova carta depois de ler as anotações das conversas que fiz à mão e, então, transcrever
as citações literais do meu cliente em uma página em branco no computador. A carta
surgia ao redor dessas citações das palavras da própria pessoa, incluindo algumas
perguntas e alguns pensamento meus, frases iniciais e de fechamento, etc.
Naquele fim de tarde, eu comecei, como sempre, a levar citações das minhas anotações
para a nova página, mas, por algum motivo, eu parei e olhei novamente para a
aparentemente aleatória coleção de palavras da pessoa na página:
Me sinto assombrada
Pelo cenário emocional
Vai ao passado e eu vejo
Mágoa, raiva, depressão, ansiedade, letargia
- Paisagens familiares.
Ah, e, então, claro (como eu poderia esquecer?):
Trabalho, trabalho, trabalho.
Mas eu quero me MEXER
Quero RESPIRAR
Com tudo o que fiz
Eu sou capaz
De reconhecer os ventos?
Então, ao invés de levar para dentro
Levar sobre mim
Em silêncio
Eu FALO
Até que a margem tenha fim.

Eu sentei e pensei que isso parecia e soava como um poema. (Foi quando os fantasmas
devem ter feito “Dããã!” ou dito “Por que demorou tanto?”). em minha defesa, ao menos
eu senti uma forte hesitação sobre continuar ou quebrar essas frases com minhas
perguntas e meus pensamentos. Eu podia ver que ela já tinha expressado o que queria
tanto sobre o problema (descrito ali como as “paisagens familiares”) quanto sobre as
suas intenções para a vida separada do problema (“me mexer, respirar, reconhecer os
ventos, falar”) e que as minhas reflexões não eram necessárias; de fato, qualquer
reflexão minha poderia desviar das suas próprias palavras. E, a última linha, falar até
que a margem tenha fim, era deslumbrante em seu ‘conhecimento’. Portanto – e muito
levada pela pressão do tempo para seguir para a próxima carta – eu pensei que, talvez,
eu daria esse poema para a pessoa que falou aquelas palavras exatamente como
estava e ver o que ia acontecer.
Quando eu estava me preparando para encontrá-la de novo depois da minha semana
de férias, tive muitas perguntas éticas sobre o que eu ia fazer. Eu estava preocupada
em ela se sentir desconfortável sobre suas palavras serem apresentadas daquela forma,
em o poema não representar o que ela quis dizer sobre a sua vida, eu estava inquieta
em pensar que eu poderia imortalizar seus dilemas ao apresenta-los para ela de forma
tão clara, e por ousar chamar aquilo de ‘poema’. Eu admito que esperava que ela não
viesse à consulta para que eu tivesse um pouco mais de tempo para escrever uma carta
adequada para ela. Mas, ela veio. E, depois de uns pedidos de desculpas antecipados
pela estranha forma da ‘carta’ que ela estava esperando e um convite desajeitado de
que, se ela quisesse, ela poderia recusar a carta, eu finalmente li o poema em voz alta.
Para minha total surpresa, eu a vi emocionada durante a leitura. Depois de um longo
silêncio que eu não sabia como preencher (graças a Deus!) ela falou calmamente, “Isso
é tão lindo. Eu não tinha ideia de que eu era assim. Eu não imaginava que eu sabia
isso.”

De fato, após alguns anos e centenas de outros poemas depois, posso dizer que essa
é a reação mais comum das pessoas quando são apresentadas às suas palavras em
um formato poético: um sentimento de surpresa e alegria em ouvir suas palavras e ter
um vislumbre delas próprias falando, de uma maneira ligeiramente diferente.
Essa primeira ‘poetiza’ e eu continuamos com uma conversa muito diferente depois
dessa abertura do encontro com a leitura do seu poema que eu havia elaborado. Ela
disse que, pela primeira vez ela pode reconhecer suas próprias ideias, “falar até que a
margem tenha fim”, como uma estratégia legítima para reagir aos seus dilemas. De
repente, eu a percebi mais animada para me contar outros momentos em sua vida nos
quais ela fez algo neste sentido. E, em seguida, descreveu vários outros passos que ela
iria tomar agora que percebeu sua própria amplitude de conhecimento.
A sua reação ao poema foi um ponto de mutação para nós duas. Para ela, significou se
perceber como alguém que sabe como e o que dizer sobre sua própria vida. Para mim,
me lançou na aventura de escrever Poemas Resgatados do Discurso pra valer. Depois
que ela saiu do consultório, eu sentei e pensei: “E se eu conseguisse inspirar algo similar
em mais pessoas? E se eu pudesse começar mais conversas, não com as minhas
próprias palavras ou perguntas, mas com o que a pessoa soube dizer da última vez em
que conversamos e ver o que pode acontecer então?! E, que os anjos digam amém,
como isso poderia mudar o espírito das minhas conversas com as pessoas que
encontro?”

4. Uma pilha de cartões amarelados com citações neles


Desde aquele dia do primeiro poema, eu fiquei muito curiosa sobre os ‘efeitos reais’ da
escrita de poemas na vida das pessoas que recebem tais poemas. Alguns desses
‘efeitos’ vêm na forma de palavras, na expressão das pessoas ao ouvirem um poema.
Outros efeitos tais como uma mudança na minha relação com a pessoa ou a mudança
no espírito da conversa, continuam um pouco mais intangíveis, mais sentidos do que
falados.
Em uma conversa recente com Tiffany, ela me disse: “Você se lembra, Sanni, quando
levava umas três sessões para uma pessoa sentir que tinha conseguido, consegui
entender o que eles tentavam dizer e tenho certa confiança nisso? Você percebeu como
os poemas saltaram duas sessões inteiras, e as pessoas chegam lá assim que ouvem
o primeiro poema?”
Então, talvez os poemas saltem. Talvez eles moldem a confiança. Talvez eles tragam
mensagens secretas nas entrelinhas, mensagens de uma sabedoria esquecida, ou de
uma união, ou a interrupção da vergonha e a coragem à noite.

Jane (2008) escreve que:


Talvez essa forma de trabalhar chamou a minha atenção porque são
nestes momentos de receber os documentos poéticos, ou na experiência
de ouvir as versões poéticas de suas experiências serem declamadas
para eles, que eu testemunhei de forma mais consistente as pessoas que
eu atendo pisarem em um espaço que torna exótico o doméstico, o
cotidiano, o que já é conhecido e o que não é questionado em suas vidas.
É dentro deste contexto que eu testemunhei de forma mais regular as
pessoas se posicionando como co-pesquisadores ou antropólogos
curiosos, engajados na busca de tornar o conhecido em suas vidas,
desconhecido. (p. 94)
Inspirada por essas declarações, eu comecei recentemente a juntar e categorizar as
reações das pessoas ao ouvirem seus poemas serem declamados para eles. Abaixo
estão alguns trechos desse trabalho de ‘categorização’, com títulos retirados dos meus
poemas favoritos para mostrar a possibilidade de temas para os efeitos dos poemas. As
citações são as transcrições das respostas das pessoas às minhas perguntas sobre:
Como foi para você ouvir isso? O que você pensa ao ouvir isso? O que te tocou? Você
sorriu – por quê? Você reconhece suas palavras?

Venha Agora, Este Mundo É Mais Sábio Do Que Você Pensa

− Eu não tinha ideia de que eu sabia isso...


− Quando você lia isso, eu me senti entendendo mais profundamente as
mudanças pelas quais estou passando...
− Eu não teria lembrado nada disso porque essas coisas são difíceis de lembrar;
o problema me oprime...
− Isso é tão comovente. Me surpreende ouvir isso – surpreender no bom sentido.
Não senti que tinha compartilhado tudo isso, e agora, estou tão surpreso...
− Quando você declamou, senti uma expansão. Isso expandiu a minha
consciência, uma nova dimensão, e eu penso: ‘Será que eu realmente fui lá?
Será que eu realmente sei o que eu disse?’
− Nem sempre eu falo de forma tão positiva. Essas palavras são tão mais bonitas...
− Você faz parecer tão bonito (choro). Você é uma chata! Eu me maquiei hoje! Não
era para chorar...
− Ajuda a encapsular meus sentimentos. Eu lembro que passei quase toda a
sessão chorando e agora, quando escuto de novo, eu penso: ‘por que isso é tão
comovente?’. Penso que há lágrimas de reconhecimento, sinto a seriedade
dessas lições...

Alcançar o Instante Todo-Colorido

− Nunca vivenciei um tipo de terapia assim... Me sinto tão bem ouvida: agora
percebo o quanto eu preciso contar a minha história. E você capturou o espírito,
as visões, imagens e valores daquilo que eu preservo.
− Eu amei isso. Você fez tudo parecer tão bom. Quero pendurar isso em algum
lugar. Essas expressões: “iluminar essa vida comum”, “o eu que queria estar lá”
– não eram tão bonitas quando eu as disse. Parece que você escreve o que eu
disse. É difícil lembrar o que nós conversamos. Você criou uma linguagem para
o que aconteceu. É mais fácil lembrar quando criamos uma linguagem juntos.
− Essa é a parte legal: você realmente está ouvindo em sua poesia.
− Você ouviu a minha história, e você a escreveu desde a minha perspectiva. Você
escreveu a alma do que eu expressei...
− Estou surpresa com a ideia de que você gastou seu tempo nisso. Não posso
acreditar que você fez isso para mim. Ouvir isso torna real, e tem algo mais, uma
injeção de amor e cuidado nas palavras...

Você Não Ia Me Enforcar? Achei Que Não.

− Tem algo estranho em oferecer isso: não envergonha. Pela primeira vez na vida
eu não tenho vergonha disso.
− De alguma forma, quando ouvi você declamar minhas palavras, me senti
fortalecida, afirmada, não me sinto defeituosa. Eu fui para dentro, no meu
âmago.
− Faz lembrar. Cada vez que eu ouço isso, (de alguma forma) eu me perdoo
porque parece sensato e racional estar onde estou e ter vivido o que vivi...
− O que mais chamou minha atenção foi a primeira frase. Aqui tudo é reconhecido
de forma total e aberta. Na minha vida, é meu segredo. E aqui está: oh... meu
segredo. Mas, está bem. Como você, está bem.

Minta Comigo, Coragem, À Noite

− Posso levar isso? Quero colar no espelho do meu banheiro. Quero ver isso
quando eu acordo...
− Quando você lê isso, eu percebi que, apesar de eu estar no escuro, apesar de
eu estar no oceano e não ter direção, eu conheço, eu era conhecida. Escuto isso
como música e ela me diz que alguém está comigo, alguém tenta me entender.
Ser conhecida tem um significado profundo.
− Cada vez que leio isso... sei que ‘fogos de artifício’ parece cafona... mas eu sinto
fitas de eletricidade e cores explodindo mais uma vez...
− Talvez eu chegue em outros terapeutas e eles me digam, ‘Sim, eu entendo,
estou com você’, mas não é isso. Um poema pode me tocar. Fiquei sem palavras
quando você declamou, como se algum ponto no meu coração fosse tocado de
uma forma que só uma determinada forma de arte pode chegar, diferente da
linguagem treinada dos terapeutas. Esse é o poder: de repente a minha vida não
é tão miserável, não é tão patética.

5. Um brilhante dragão de brinquedo.

As pessoas que vem se consultar com alguém como eu, frequentemente trazem
algumas ideias ou visões (ou metáforas ou imagens mentais) do processo terapêutico.
Nosso contexto cultural dá grande ênfase à imagem do desdobrar da terapia pelas vias
do que Michael White chama de “ética do controle” (White, 1997). Dentro dessa imagem,
é o conhecimento do terapeuta que está no centro da consulta, e há uma noção de que
o terapeuta, colaborando um tanto com a pessoa, vai, de alguma forma, realizar
mudanças na vida dela.
Essa imagem também funciona em mim como terapeuta. Eu percebo sua presença
sempre que me vejo buscando agir ‘de uma só vez’, ou o que Michael White definiu
como “ação eficaz” (White, 1997).
Em suas reflexões sobre as ideias de ‘imagens’ de Wittgenstein, Cressida Heyes (2007)
escreveu que “nós devemos abordar o mundo com alguma imagem, já que somos
prisioneiros da imagem que consiste em linguagem e a linguagem parece repeti-la para
nós, inexoravelmente”.
As imagens que foram impressas em mim como terapeuta podem tomar o formato de
um ‘analista das coisas’, um ‘juiz da normalidade’, um ‘legitimador de experiências’, um
‘entregador de técnicas’, um ‘detector e transformador de padrões’, ‘um estrategista para
o desespero de Natal’, um ‘terapeuta de karaokê’ (esse termo surgiu com Kay
Ingamells), uma ‘cópia de Michael White ou David Epston’, etc.
Vou te contar um segredo: os poemas possivelmente podem resgatar as palavras das
pessoas, e a pessoa que faz terapia comigo pode vivenciar muitas coisas com eles.
Mas, o meu segredo é: escrever poemas me resgata. Me resgata das garras dessa ética
do controle, da pressão de entregar uma solução no formato de uma única ação que
concerte tudo ‘de uma só vez’.

Isso acontece por quatro motivos principais (esta é uma lista preliminar, desde onde me
encontro hoje):
Primeiro, escrever esse tipo de poemas necessita de uma atenção deliberada para as
palavras reais de quem fala. Requer anotações fiéis e me motiva a me deter sobre as
palavras ditas, tanto durante quanto depois da sessão de terapia. Na sessão de terapia,
isso tem efeito imediato na diminuição proposital do ritmo da conversa, da “minha leitura
prévia do que foi dito e busca de esclarecimento”, da “percepção do que ainda não
sabemos (mais do que fazer suposições)”, etc. Quando eu faço anotações com a
finalidade de escrever poemas, é inevitável que surja um espírito de cuidado e propósito
sobre como falamos sobre nossas vidas e que, aparentemente, assume a conversa.
Diga-me, caro leitor e destinatário dessas gostosuras pré-assadas, o que você pensaria
ou sentiria se ouvisse as seguintes frases serem declamadas para você de forma casual
em uma conversa terapêutica:

“Venho de uma longa fileira


De TUDO o que foi comprado nas lojas.
Mas fui assado recentemente.”

Isso iria fazer você parar? Você ouve a bela cadência de palavras aparentemente
comuns, quando unidas desta forma? Teria aos olhos da sua mente, o formato de um
comovente poema de três linhas? E ele mudaria sua conversa, ou talvez até a sua vida?
E, só para brincar mais um pouco com esse tema de assar e pré-assar, aqui está outro
vislumbre de palavras faladas que nós, como testemunhas, não queremos que passem
ou se dispersem no éter sem deixar traços:
“Devo te chamar de irmã,
Se eu tivesse um vislumbre da ousadia da sua vida ao lado da minha
Mas não me estranhe
Não me abandone onde correm os trens de carga
Tchu-tchu-tchu
Não vim até você pelas páginas dos livros sagrados
Ou dos contos de fadas
Vim até você diretamente da mercearia
E faço uma pergunta
Revolucionária na vida de uma mulher:
Onde DIABOS está o corredor dos pães?
Porque as mercearias são entediantes
Para aquelas de nós
Que não brincaram com forninhos.”

E, então, você acreditaria em mim se eu te dissesse que estou sentada em frente a


dezenas de poemas, todos eles ligados a essa ideia de ‘assar’, cada um deles mais
penetrante e arriscado do que o outro? E, o que você pensa que acontece comigo se,
em qualquer tarde de domingo, eu me pego assando algo? Fora da sessão de terapia,
percebo que escrever poemas me ajuda a me manter no trilho de evitar as ideias de
controle. Quando uma pessoa sai do meu consultório, posso me sentir sobrecarregada
com alguns problemas viciantes e contextos opressivos. Eu posso me sentar e perceber
aquela noção de ‘ah se eu soubesse TODAS as respostas no mundo’. Mas, então, eu
lembro: eu tenho as palavras da pessoa! E dentro destas palavras, sempre têm letras
que caminham para iniciativas, desejos que ousam falar, perigos arrastados para serem
vistos, esperanças sussurradas sonhando existir, protestos contra juramentos
quebrados, perguntas sobre questões da vida que surgem. O que hoje percebo é que
só me é exigido que eu tenha fé e siga os rastros daquelas palavras enquanto escrevo.
O segundo motivo: a poesia ganha uma forma única e específica no papel. Ela se
oferece para a transcrição do diálogo em estrofes, seguindo pausas, silêncios e ênfases
na fala. Portanto, pode ser acessada de forma mais rápida do que o modo limpo da
prosa da maioria das transcrições. Além disso, os poemas, por falta de uma melhor
descrição, saem da sala do lado certo do papel. Eles ‘respiram’, eles não exigem
histórias completas ou sentenças fechadas, eles permitem múltiplas vozes e complexas
descrições de temas aparentemente sem relação. Christopher Behan diz isso da
seguinte forma: “A poesia tem espaço para descrever a multiplicidade, as tentativas e a
ambiguidade, e talvez seja mais adequada para tornar visível aquelas histórias sutis das
conversas terapêuticas” (Behan, 2003, p.1). Caro leitor, talvez um poema deixe essas
ideias mais claras para você:
Você já ouviu uma história de desejo
De uma alma desejando ser desejada?

Essa é uma história de precipício


Contada tendo ao fundo palavras terríveis
Como ‘pecador’ e ‘abominação’ e ‘ilegal’
Ou somente ‘doente’.

Essa é uma história com companhias


Que vêm à minha casa tarde da noite
E ficam a palmos da TV enquanto meus pais dormem.
Vêm até mim nas páginas dos livros da biblioteca
E nas páginas escondidas no fundo da minha gaveta trancada.

Essa é uma história com muitas vozes.


Uma delas, a minha:
Quinta-feira, 24 de janeiro, às 9h20
Me sentei no armário com Karen
E disse
“Não vou ver Mel Gibson porque sou gay.”
E a voz da Karen se juntou com segurança à minha:
“Não estou rindo. Você não é o único.”
E Charlie.
Posso ouvir sua voz clara como o dia
Aquele dia quando eu fiquei fora da igreja
Charlie e a mesa redonda.
Você me salvou Charlie.
Você e minha raiva naquele dia.

Essa é uma história de desejo


Um desejo que cresceu dentro de mim como uma semente
Não importando como me chamassem.
É um desejo que sabia
De uma vida
De um amor
De uma transformação
De um desejo
Na mesa redonda
E sob a beleza de bilhões de estrelas.
Essa é uma história de desejo
Que quis que eu me arriscasse
A colocar meu coração em risco
Pelo perigo certo.

Essa é uma história de desejo.


E ainda não terminou:
Posso senti-la
E fico assustado e encorajado.

Você vê, meu desejo está na porta agora


Rindo
Acenando
Dizendo
“Venha agora
Não estou rindo
Você não é o único.
Porque laranjas não são as únicas frutas, querido.”

Como uma alternativa para a ‘ética do controle’, Michael White propõe uma ‘ética da
colaboração’ que pode estimular as pessoas a co-investigar aquelas ações facilmente
negligenciadas que “contribuem para a criação de bases de possibilidade na vida de
uma pessoa” (White, 1997). Sheridan Linnell (2004), ao se debruçar sobre o trabalho de
Couze Venn, escreve sobre uma metáfora da “busca de aprendizado dos outros” como
uma possibilidade de compreender sua própria ‘constituição ética’ em seu trabalho.
Essa metáfora sugere que o self é formado sempre em relação aos outros, não apenas
pelo aprendizado e reflexão, mas por uma experiência de conexão. A outra metáfora é
“uma forma resgatada de ‘account-ability1’” (não a responsabilização como uma técnica
de self neoliberal), mas, literalmente, a “habilidade de relatar” (ability to account) –
“nossas formas de falar sobre esse trabalho, as habilidades e práticas envolvidas na
produção ampla e multifacetada de relatos...” (Linnell, 2004, p. 51).

Na sequência, uma entrega de um cliente meu sobre a ideia de uma ‘habilidade de


relatar’ (ability to account):

Por tanto tempo, vivi antecipando que as palavras seriam ruins


Porque aprendemos:
Aprendemos
A seriedade e o poder das palavras.

Eu não sabia
Que o poder pode ser aproveitado


1
Nota da tradutora: Esse é um jogo de palavras no qual o termo accountability (responsabilidade), ao ser
repartido em account-ability toma diferente significado e gera novas possibilidades, qual seja, a
habilidade de relatar. Optamos por manter a versão original da palavra para que o jogo de palavras fique
evidenciado.
-Como as palavras são usadas
O que é dito
E quem fala.

Mas, agora eu sei


Posso viver em uma casa de boas palavras.
Então escrevemos poemas
No chão
Nas vigas das paredes
Nas paredes dos quartos.
Poemas sobre comer e beber, sobre amizade e gansos selvagens
E ternura
- valeu a morte da lapiseira.

O lar não existe em chão e teto


Mas em apoio mútuo
Escrevendo nossas intenções pela casa toda.
O lar não é lugar para ver TV
Mas de viver as nossas conexões.
O lar é uma casa de palavras,
Dos seus amigos, seus poetas, os desconhecidos que encontramos,
De nós mesmos.

Por muito tempo estive preso em outra casa


E bobo na minha inquietude:
Não posso suportar isso.
Mas agora não estou com medo de navegar
Até uma casa de boas palavras no horizonte.

Imagine uma casa de boas palavras! Imagine uma ‘habilidade de relatar’ (ability to
account)! Tais ideias imprimem diferentes metáfora em mim como terapeuta: ‘uma
socorrista de palavras’; ‘uma testemunha’, uma ‘aprendiz’, ‘uma poetisa’, ‘uma
especialista em fogos de artifício’, ‘uma pessoa com habilidade de relatar’, ‘um artífice’,
‘uma pessoa que visa contribuir para criar possibilidades na vida dos outros’, etc.
Se tudo isso parece um tanto quanto vago ou excessivamente teórico, deixe-me
compartilhar um poema que poderá lançar luz sobre o que quero dizer. Esse poema foi
escrito por um amigo e colega – Kerri Marray – em um Encontro Narrativo de terapeutas
em Calgary. Neste encontro, eu fui entrevistada sobre ‘a ética que me trouxe a este
trabalho’ e Keri resgatou minhas palavras no poema a seguir:

Penso sobre como me sento em meu consultório


Depois que uma pessoa sai.
E como eu me pergunto:
‘Com qual noção de si ela saiu daqui?’
‘O que desejo para essa pessoa?’
E, então, eu me lembro
Uma conversa que tive há tempos.

Eu vivi o tipo de humilhação ritual da qual eles falam.


Ele queria falar sobre o meu corpo
Ele perguntou sobre números
Pediu para ver as cicatrizes
E se meus pais me amavam.

E, num instante, eu me tornei outro cliente resistente


Para ele.
Não respondi nada
Olhei para fora da janela.

E chorei.
Eu chorei e olhei para fora da janela
E não disse nada.

Depois de um longo silêncio


Ele mudou e disse,
“O que você sonha para a sua vida?”
E pensei
ESSA é uma conversa que eu POSSO ter
E comecei a falar com ele
Sobre meus sonhos de ir para a universidade
De como eu queria escrever, como eu pensava em escrever, e aprender.
Falei sobre meu desejo de ter relacionamentos diferentes com homens,
Meu sonho de ter filhos.

Ele ouviu por um bom tempo.


E quando eu terminei
Depois de um longo silêncio
Ele perguntou:
“você pode me prometer que vai seguir em frente e fazer todas essas coisas que você
acabou de contar
E nunca mais voltar aqui?”
Eu olhei para ele
E disse: “Sim”.

Acordamos sobre isso.

Seja lá o que ele pensou de mim em uma conversa


Não aconteceu na conversa anterior.
Saí
Com uma noção de respeito por minha vida.
E ele me deixou ir
Com uma noção de respeito por minha vida.

Então, quando você me pergunta


Sobre a ética que me trouxe a este trabalho

Penso no meu desejo de que as pessoas


Deixem meu consultório
Com uma noção de respeito por suas vidas
Sob seus pés.
O terceiro motivo é que, devido à sua forma pouco convencional (a falta de exigências
para chegar à brilhante plenitude de sentenças e ideias do texto em prosa), esses
poemas abriram um caminho singular para que eu brinque com as ideias. Escrever na
forma poética me permite contrapor as histórias dos problemas, horríveis e
aterrorizantes, com a confecção de ideias de uma contra-história possível sem
necessidade de seguir a sequência ordenada das experiências da vida ou o fluxo da
conversa terapêutica. De fato, eu diria que os poemas suavemente me supervisionaram
por um território estranho em minhas sessões de terapia: não posso mais não-ouvir ou
desviar dos dicionários únicos das pessoas ao descrever a vivência de suas vidas nem
posso recusar convites para ver os dilemas de dramas fantásticos que acontecem em
padarias, consultórios de ginecologia e quartos bem comuns. Devido a essa estranha
supervisão, faço perguntas estranhas, nas quais todas as palavras contam: mas O QUE
você assou? Pode ser importante saber se foi um bolo de limão ou um pão de centeio.
O sabor de um bolo de limão, eu acabei descobrindo, tem a magia de um santuário para
a mulher, ao passo que um pão de centeio a coloca em contato com seus ancestrais.
Mas O QUE você roubou do jardim deles? Faz muita diferença se foram beterrabas e
cenouras para alimentar duas crianças fugindo dos horrores de casa ao invés de
vandalismo aleatório.

Um poema ganha vida somente nos nítidos e insubstituíveis substantivos e verbos da


vida de uma pessoa – vejam que não mencionei adjetivos nessa lista, já que,
atualmente, estamos vivendo tempos de seca dos adjetivos em nossas conversas uns
com os outros. Eu me arriscaria a dizer que, quanto mais inigualável o vernáculo de uma
história, tão mais ela soa universalmente reconhecível e prazerosa, mesmo para
ouvidos de desconhecidos.
Considere o poema a seguir, no qual o patriarcado é deliciosamente renomeado como
esforços de ‘lixar’ e ‘domesticar’:

Eu perambulo por um mundo suave


E me sinto estranha e recortada
Veja, tentei ser suave
E quase morri por isso.

Cada dia, eu ainda recebo


Lixas para suavizar a minha pele
Só agora eu declinei.
Já sofri muito
Vi essa vida,
A escravidão da vida domesticada
Nesta cidade de pessoas miseráveis,
Que pensam que lixar é solução.

Sabe o que eu fiz, então?


Fui nadar sem roupas
Dentro da minha pele não-lixada
E ouvi.
Quando fiquei realmente quieta
Pude ouvir meu coração batendo
Só para mim
E meus filhos.
Pude sentir meus membros crescendo;
Minhas pernas dão passos
E meus braços me envolvem
E meu corpo que carregou meus filhos
Está cheio de magia e vida.
Sou uma mulher neste planeta
E minha respiração tem várias cores diferentes.
Estou no mar
E ele me provoca
Me chama:
Me dê suas ideias,
Suas ideias revolucionárias.

Essa é minha casa primordial.


Seja bem-vinda em casa, filha minha.

Em minhas sessões de escrita, tarde da noite, as palavras ditas para mim em meu
consultório ganham urgência: construir, descontruir e reconstruir a sessão de mais cedo
naquele dia, encontrar as palavras da própria pessoa, considerar o contexto político e a
grande quantidade de narrativas dominantes do nosso tempo, envolver as autoridades
suspeitas e mostrar, da forma mais convincente possível, a luta substancial e bela do
seu cliente com as questões morais atemporais. “Contra-Ironize os leões com formas
de homens brancos”, disse uma mulher, - os “leões com formas de homens brancos”
são os executores e representantes das narrativas dominantes, ou, em outras palavras,
dos conhecimentos dominantes.
Considere a seguinte tentativa:
Esse foi o tema da minha vida:
Fazer o que “não posso” fazer.
Recentemente, isso significava
Dizer Sim
Quando quero e
Abro meus punhos
Para tocar o outro:
Digo Sim ao invés de “Não posso”.

Meu Sins todos desde dezembro contam uma novíssima história


Sobre mim e o que posso fazer, sim.
Eu quase nem sinto que sou uma nova pessoa, sim.

Meus Sins vieram até mim


De forma inesperada e surpreendente ontem à noite:
Eu não podia mais
Deixá-lo fazer o que quisesse e me negligenciar.
Então
Ao invés de fingir
Ao invés de agradar
Ao invés de ser quem eu “deveria ser”
-a linda menina que sempre diz Sim ficando quieta
Eu disse Não.
E era a maior verdade.

Nunca soube que ao dizer Sim


O meu Não mudaria de lugar
E cresceria firme.
Na história de todas as meninas bonitas
Que tiveram coragem de dizer
Sim ou Não
Com essa intenção?
Ou, mais ainda:
Quem algum dia perguntou a uma menina
O que ela realmente queria, se interessando pela resposta?
Vez ou outra eu me arrependia no dia seguinte
Mas hoje eu me sinto livre.
Gostaria que ele entendesse a diferença quando eu realmente quero
Ele não deveria curtir quando eu não quero.
O contato físico é uma conversa.
E não seria algo totalmente novo e
Maravilhosos se eu falasse Sim
Quando eu realmente quisesse?

Um exemplo final para demonstrar a honra e o privilégio que sinto ao acompanhar as


pessoas nestas conversas de busca:

A guerra ensinou meu avô


Queimando imagens em sua alma
E meu avô ensinou meu pai
Queimando punições em suas mãos
E meu pai me ensinou
Gritando as últimas queimaduras
Sobre nossas cabeças.
Sinto o batimento do meu coração
Na mesa,
O olhar do meu pai
Ao ver os cotovelos dos meus filhos na mesa
E ouvir o glub-glub da água –
Estas são as ruínas
De uma antiga guerra
Oprimindo sobre e dentro dos nossos corpos.
Estes são os persistentes efeitos
Da humanidade invadida
Daqueles que foram grandes e fortes.
A doçura do meu pai não é para ser vista
Ainda assim eu vislumbrei
Na violência normatizada
Ele viveu.
Não preciso de um sinal, sou mulher
Respiro em cores
Cresci em um jardim secreto
Recentemente batizado em águas salgadas
E meus braços são lar e alívio
Para os feridos.
Sou grande e forte
Grande e forte
O suficiente
Para expressar doçura.
E parar essa guerra
E esse ódio
Nesta mesa
À noite
E em todas as noites que virão.

O quarto motivo é que, escrever esses poemas me convida a entrar no universo da


imaginação. Recentemente, Alan Parry conduziu minha mente em uma grande
excursão pela história desta atividade esquecida e tão deixada de lado: a imaginação
crescente. Eis aqui um trecho dessa conversa:

A imaginação sofreu um esquecimento


No Ocidente
Tão próxima a tudo o que é educacional, teórico, empírico
E seco.
Temos que voltar a nos familiarizar.
Onde está Platão quando precisamos dele?
Para onde foram os Sufis?

A emissora nos fala que conduzimos nosso pensamento


Mas isso é ilusão
Os pensamentos vêm até nós
E nós os lavamos
E os embelezamos.
Assim construímos ou destruímos nossas histórias.
Não se aproxime
Não demonstre raiva
Não exista
Temos que escapar do fardo destas histórias.

Mas, como conseguimos ceder?


E se a imaginação fosse uma fonte legítima de informação?
E se fossemos imaginar
Que nossas vidas são conduzidas com plenitude de alma?
E se toda forma de “E se” chegasse até nós de novo
E vivêssemos em um mundo “e se”

Sanni
Você deve ser cuidadosa com você
Se não prestar atenção
Se você se demorar
Com algo que alguém acabou de conquistar
Muito em breve
Você vai se ver imaginando
Toda uma vida.

Na última estrofe, Alan está parafraseando Vladimir Nabokov (1972). A versão original
do conto ‘Coisas Transparentes’ (Transparent Things) diz:

Uma fina camada de realidade imediata é espalhada sobre a matéria


natural e artificial, e quem quer que deseje permanecer agora, com o
agora, no agora, por favor, não quebre a tensão desta camada. Senão o
milagroso trabalhador experiente não vai conseguir mais andar sobre as
águas, mas descerá direto para junto dos peixes que olham.

Nas palavras irreverentes de uma música de Cat Empire, eu digo: “Peixinhos, sejam
bem-vindos ao meu anzol...”

Caro David, Caro Tom,


Acho que essa longa carta vai gerar várias outras perguntas – e acho que não terei
respostas. Mas, talvez, vou viver as perguntas e, também, o meu caminho até as
respostas. Ou, então, eu soube desde pequena, parada, ouvindo as poesias
declamadas por um professor entusiasmado, que os poemas podem fazer nossas
mentes se elevar. Os poemas podem nos revelar nosso mundo. Eles podem pedir que
nos posicionemos ao viver nossas vidas. Os poemas podem nos convidar a deixar o
fardo da nossa solidão um pouco. Podem fazer pertencer. Como o som de um violino
em um prédio agitado pode acalmar o coração de um homem e lhe dizer: “Seja bem-
vindo Jessie. Onde você esteve? Vou te ouvir. E, juntos, vamos imaginar para onde
você irá.”

Referências
Behan, P. C. (2003). Some Ground to Stand On: Narrative Supervision. Journal of
Systemic Therapies 22(4). 29-42.
Heyes. J. C. (2007). Self-Transformations: Foucault, Ethics, and Normalized Bodies.
Oxford University Press.
Linnell, S. (2004). Towards a ‘poethics’ of therapeutic practice: Extending the
relationship of ethics and aesthetics in narrative therapies through a
consideration of the late work of Michel Foucault. The International Journal of
Narrative Therapy and Community Work, 4, 42-54.

Nabokov, V. V. (1972). Transparent things. London: Penguin Classics.


Speedy, J. (2008). Narrative inquiry and psychotherapy. Basingstoke: Palgrave
Macmillan.
White, M. (1997). Narratives of therapists’ lives. Adelaide, South Australia: Dulwich
Centre Publications.
White, M. (2000). Reflections on narrative practice. Adelaide, South Australia: Dulwich
Centre Publications.

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