Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
terapêuticos.
Original:
Paljakka, S. (2018). A house of good words: A prologue to the practice of writing poems
as therapeutic documents. Journal of Narrative Family Therapy, Special Release, 49-71.
(Estas são ‘palavras resgatadas’ de Tiffany Saxton durante nossa conversa sobre esse
artigo. A Tiffany vai fazer algumas aparições neste texto assim como meus colegas,
amigos e poetas... Casualmente, a máscara de oxigênio em meus acidentes aéreos.)
Agora eu sei que o escrever poemas relativos às conversas terapêuticas veio até mim
como uma série de assombrosos fantasmas famintos. Os fantasmas pairavam ao meu
redor em uma tarde de neve na biblioteca da universidade quando eu buscava
desesperadamente, ‘modelos’ para escrever melhores cartas para meus clientes. Eu
tropecei em um artigo de Christopher Behan sobre o que ele nomeou Poemas
Resgatados do Discurso e eu fui imediatamente tomada por uma noção de prazer e
fascinação. Me vi pensando sobre como transcrever as palavras do orador dentro de
poemas possibilitaria “resgatar o dito do dizer” (White, 2000). Eu escondi essa ideia e
esse prazer em minha mente.
Bem uns seis meses depois, os fantasmas assistiam enquanto eu sentava debaixo de
uma árvore perto do meu escritório em uma tarde ensolarada. Eu me sentei atordoada,
pensando na pessoa com quem eu tinha acabado de conversar; suas palavras
rodopiavam e ecoavam na minha mente e não me deixavam em paz. Eu pensava de
que forma eu iria escrever uma carta para ela sobre o quão profundo ela me tocou, e
como eu captei um vislumbre do seu espírito, brilhando através da história do problema
que ela me trouxe. ‘Vai ser uma longa carta, cheia de citações’, eu pensei, com certo
pesar, ao considerar a impossibilidade de fazer justiça ao que eu vivenciei se fosse
colocado dentro de uma carta com palavras e citações.
Os fantasmas se agitavam impacientemente nos cantos durante a minha conversa com
meu supervisor, Alan Parry, quando ele me perguntou: “Se a sua frustração pudesse
falar, o que ela diria?”. Agora, olhando em retrospectiva, a pergunta poderia ter a
seguinte emenda: ‘Se a sua frustração pudesse falar, e não pudesse simplesmente te
culpar por não ser uma terapeuta melhor, o que ela diria?”
A resposta para essa pergunta deve ter sido outra pergunta: ‘Se eu não posso reproduzir
os belos mapas de Michael White no meu trabalho, e se eu não tenho a sagacidade
para fazer as belas perguntas de contar histórias como David Epston, o que diabos eu
POSSO fazer?
Cadê as coisas que me são familiares? Como eu posso considerar junto com as
pessoas sobre a vivência de suas vidas de forma a honrar o caráter delas e a ampliar
seus horizontes de possibilidades? Como eu posso demonstrar consideração de forma
convincente? Eu me sinto uma pessoa totalmente idiota sem um conhecimento útil dos
mapas que me mostrasse uma saída do território rodopiante das palavras. Mas, as
palavras! Elas me acompanhavam para casa, me assustavam à noite, continuavam me
seguindo na cozinha e em frente ao espelho do banheiro. ‘Eu quero substituir o deus da
cozinha em nome da minha filha!’ eu ouvia em minha mente todas as vezes que eu
entrava em minha cozinha. ‘eu sou uma grande trouxa!’ eu ouvia quando me sentava
com amigos num bar. ‘Eu sou exagerada!’ eu ouvia ao aguardar em salas de espera
pequenas. ‘Esse é o meu corpo, esse é o seu formato, essas são suas dores, e isso é
a sua cura’ eu ouvia em frente ao espelho no banheiro. Eu me sentia sentada sobre um
tesouro sem saber o que fazer além de sentar, cada vez de forma mais desconfortável.
Quem está acumulando todo esse trabalho?
Eu sentei e pensei que isso parecia e soava como um poema. (Foi quando os fantasmas
devem ter feito “Dããã!” ou dito “Por que demorou tanto?”). em minha defesa, ao menos
eu senti uma forte hesitação sobre continuar ou quebrar essas frases com minhas
perguntas e meus pensamentos. Eu podia ver que ela já tinha expressado o que queria
tanto sobre o problema (descrito ali como as “paisagens familiares”) quanto sobre as
suas intenções para a vida separada do problema (“me mexer, respirar, reconhecer os
ventos, falar”) e que as minhas reflexões não eram necessárias; de fato, qualquer
reflexão minha poderia desviar das suas próprias palavras. E, a última linha, falar até
que a margem tenha fim, era deslumbrante em seu ‘conhecimento’. Portanto – e muito
levada pela pressão do tempo para seguir para a próxima carta – eu pensei que, talvez,
eu daria esse poema para a pessoa que falou aquelas palavras exatamente como
estava e ver o que ia acontecer.
Quando eu estava me preparando para encontrá-la de novo depois da minha semana
de férias, tive muitas perguntas éticas sobre o que eu ia fazer. Eu estava preocupada
em ela se sentir desconfortável sobre suas palavras serem apresentadas daquela forma,
em o poema não representar o que ela quis dizer sobre a sua vida, eu estava inquieta
em pensar que eu poderia imortalizar seus dilemas ao apresenta-los para ela de forma
tão clara, e por ousar chamar aquilo de ‘poema’. Eu admito que esperava que ela não
viesse à consulta para que eu tivesse um pouco mais de tempo para escrever uma carta
adequada para ela. Mas, ela veio. E, depois de uns pedidos de desculpas antecipados
pela estranha forma da ‘carta’ que ela estava esperando e um convite desajeitado de
que, se ela quisesse, ela poderia recusar a carta, eu finalmente li o poema em voz alta.
Para minha total surpresa, eu a vi emocionada durante a leitura. Depois de um longo
silêncio que eu não sabia como preencher (graças a Deus!) ela falou calmamente, “Isso
é tão lindo. Eu não tinha ideia de que eu era assim. Eu não imaginava que eu sabia
isso.”
De fato, após alguns anos e centenas de outros poemas depois, posso dizer que essa
é a reação mais comum das pessoas quando são apresentadas às suas palavras em
um formato poético: um sentimento de surpresa e alegria em ouvir suas palavras e ter
um vislumbre delas próprias falando, de uma maneira ligeiramente diferente.
Essa primeira ‘poetiza’ e eu continuamos com uma conversa muito diferente depois
dessa abertura do encontro com a leitura do seu poema que eu havia elaborado. Ela
disse que, pela primeira vez ela pode reconhecer suas próprias ideias, “falar até que a
margem tenha fim”, como uma estratégia legítima para reagir aos seus dilemas. De
repente, eu a percebi mais animada para me contar outros momentos em sua vida nos
quais ela fez algo neste sentido. E, em seguida, descreveu vários outros passos que ela
iria tomar agora que percebeu sua própria amplitude de conhecimento.
A sua reação ao poema foi um ponto de mutação para nós duas. Para ela, significou se
perceber como alguém que sabe como e o que dizer sobre sua própria vida. Para mim,
me lançou na aventura de escrever Poemas Resgatados do Discurso pra valer. Depois
que ela saiu do consultório, eu sentei e pensei: “E se eu conseguisse inspirar algo similar
em mais pessoas? E se eu pudesse começar mais conversas, não com as minhas
próprias palavras ou perguntas, mas com o que a pessoa soube dizer da última vez em
que conversamos e ver o que pode acontecer então?! E, que os anjos digam amém,
como isso poderia mudar o espírito das minhas conversas com as pessoas que
encontro?”
− Nunca vivenciei um tipo de terapia assim... Me sinto tão bem ouvida: agora
percebo o quanto eu preciso contar a minha história. E você capturou o espírito,
as visões, imagens e valores daquilo que eu preservo.
− Eu amei isso. Você fez tudo parecer tão bom. Quero pendurar isso em algum
lugar. Essas expressões: “iluminar essa vida comum”, “o eu que queria estar lá”
– não eram tão bonitas quando eu as disse. Parece que você escreve o que eu
disse. É difícil lembrar o que nós conversamos. Você criou uma linguagem para
o que aconteceu. É mais fácil lembrar quando criamos uma linguagem juntos.
− Essa é a parte legal: você realmente está ouvindo em sua poesia.
− Você ouviu a minha história, e você a escreveu desde a minha perspectiva. Você
escreveu a alma do que eu expressei...
− Estou surpresa com a ideia de que você gastou seu tempo nisso. Não posso
acreditar que você fez isso para mim. Ouvir isso torna real, e tem algo mais, uma
injeção de amor e cuidado nas palavras...
− Tem algo estranho em oferecer isso: não envergonha. Pela primeira vez na vida
eu não tenho vergonha disso.
− De alguma forma, quando ouvi você declamar minhas palavras, me senti
fortalecida, afirmada, não me sinto defeituosa. Eu fui para dentro, no meu
âmago.
− Faz lembrar. Cada vez que eu ouço isso, (de alguma forma) eu me perdoo
porque parece sensato e racional estar onde estou e ter vivido o que vivi...
− O que mais chamou minha atenção foi a primeira frase. Aqui tudo é reconhecido
de forma total e aberta. Na minha vida, é meu segredo. E aqui está: oh... meu
segredo. Mas, está bem. Como você, está bem.
− Posso levar isso? Quero colar no espelho do meu banheiro. Quero ver isso
quando eu acordo...
− Quando você lê isso, eu percebi que, apesar de eu estar no escuro, apesar de
eu estar no oceano e não ter direção, eu conheço, eu era conhecida. Escuto isso
como música e ela me diz que alguém está comigo, alguém tenta me entender.
Ser conhecida tem um significado profundo.
− Cada vez que leio isso... sei que ‘fogos de artifício’ parece cafona... mas eu sinto
fitas de eletricidade e cores explodindo mais uma vez...
− Talvez eu chegue em outros terapeutas e eles me digam, ‘Sim, eu entendo,
estou com você’, mas não é isso. Um poema pode me tocar. Fiquei sem palavras
quando você declamou, como se algum ponto no meu coração fosse tocado de
uma forma que só uma determinada forma de arte pode chegar, diferente da
linguagem treinada dos terapeutas. Esse é o poder: de repente a minha vida não
é tão miserável, não é tão patética.
As pessoas que vem se consultar com alguém como eu, frequentemente trazem
algumas ideias ou visões (ou metáforas ou imagens mentais) do processo terapêutico.
Nosso contexto cultural dá grande ênfase à imagem do desdobrar da terapia pelas vias
do que Michael White chama de “ética do controle” (White, 1997). Dentro dessa imagem,
é o conhecimento do terapeuta que está no centro da consulta, e há uma noção de que
o terapeuta, colaborando um tanto com a pessoa, vai, de alguma forma, realizar
mudanças na vida dela.
Essa imagem também funciona em mim como terapeuta. Eu percebo sua presença
sempre que me vejo buscando agir ‘de uma só vez’, ou o que Michael White definiu
como “ação eficaz” (White, 1997).
Em suas reflexões sobre as ideias de ‘imagens’ de Wittgenstein, Cressida Heyes (2007)
escreveu que “nós devemos abordar o mundo com alguma imagem, já que somos
prisioneiros da imagem que consiste em linguagem e a linguagem parece repeti-la para
nós, inexoravelmente”.
As imagens que foram impressas em mim como terapeuta podem tomar o formato de
um ‘analista das coisas’, um ‘juiz da normalidade’, um ‘legitimador de experiências’, um
‘entregador de técnicas’, um ‘detector e transformador de padrões’, ‘um estrategista para
o desespero de Natal’, um ‘terapeuta de karaokê’ (esse termo surgiu com Kay
Ingamells), uma ‘cópia de Michael White ou David Epston’, etc.
Vou te contar um segredo: os poemas possivelmente podem resgatar as palavras das
pessoas, e a pessoa que faz terapia comigo pode vivenciar muitas coisas com eles.
Mas, o meu segredo é: escrever poemas me resgata. Me resgata das garras dessa ética
do controle, da pressão de entregar uma solução no formato de uma única ação que
concerte tudo ‘de uma só vez’.
Isso acontece por quatro motivos principais (esta é uma lista preliminar, desde onde me
encontro hoje):
Primeiro, escrever esse tipo de poemas necessita de uma atenção deliberada para as
palavras reais de quem fala. Requer anotações fiéis e me motiva a me deter sobre as
palavras ditas, tanto durante quanto depois da sessão de terapia. Na sessão de terapia,
isso tem efeito imediato na diminuição proposital do ritmo da conversa, da “minha leitura
prévia do que foi dito e busca de esclarecimento”, da “percepção do que ainda não
sabemos (mais do que fazer suposições)”, etc. Quando eu faço anotações com a
finalidade de escrever poemas, é inevitável que surja um espírito de cuidado e propósito
sobre como falamos sobre nossas vidas e que, aparentemente, assume a conversa.
Diga-me, caro leitor e destinatário dessas gostosuras pré-assadas, o que você pensaria
ou sentiria se ouvisse as seguintes frases serem declamadas para você de forma casual
em uma conversa terapêutica:
Isso iria fazer você parar? Você ouve a bela cadência de palavras aparentemente
comuns, quando unidas desta forma? Teria aos olhos da sua mente, o formato de um
comovente poema de três linhas? E ele mudaria sua conversa, ou talvez até a sua vida?
E, só para brincar mais um pouco com esse tema de assar e pré-assar, aqui está outro
vislumbre de palavras faladas que nós, como testemunhas, não queremos que passem
ou se dispersem no éter sem deixar traços:
“Devo te chamar de irmã,
Se eu tivesse um vislumbre da ousadia da sua vida ao lado da minha
Mas não me estranhe
Não me abandone onde correm os trens de carga
Tchu-tchu-tchu
Não vim até você pelas páginas dos livros sagrados
Ou dos contos de fadas
Vim até você diretamente da mercearia
E faço uma pergunta
Revolucionária na vida de uma mulher:
Onde DIABOS está o corredor dos pães?
Porque as mercearias são entediantes
Para aquelas de nós
Que não brincaram com forninhos.”
Como uma alternativa para a ‘ética do controle’, Michael White propõe uma ‘ética da
colaboração’ que pode estimular as pessoas a co-investigar aquelas ações facilmente
negligenciadas que “contribuem para a criação de bases de possibilidade na vida de
uma pessoa” (White, 1997). Sheridan Linnell (2004), ao se debruçar sobre o trabalho de
Couze Venn, escreve sobre uma metáfora da “busca de aprendizado dos outros” como
uma possibilidade de compreender sua própria ‘constituição ética’ em seu trabalho.
Essa metáfora sugere que o self é formado sempre em relação aos outros, não apenas
pelo aprendizado e reflexão, mas por uma experiência de conexão. A outra metáfora é
“uma forma resgatada de ‘account-ability1’” (não a responsabilização como uma técnica
de self neoliberal), mas, literalmente, a “habilidade de relatar” (ability to account) –
“nossas formas de falar sobre esse trabalho, as habilidades e práticas envolvidas na
produção ampla e multifacetada de relatos...” (Linnell, 2004, p. 51).
Eu não sabia
Que o poder pode ser aproveitado
1
Nota da tradutora: Esse é um jogo de palavras no qual o termo accountability (responsabilidade), ao ser
repartido em account-ability toma diferente significado e gera novas possibilidades, qual seja, a
habilidade de relatar. Optamos por manter a versão original da palavra para que o jogo de palavras fique
evidenciado.
-Como as palavras são usadas
O que é dito
E quem fala.
Imagine uma casa de boas palavras! Imagine uma ‘habilidade de relatar’ (ability to
account)! Tais ideias imprimem diferentes metáfora em mim como terapeuta: ‘uma
socorrista de palavras’; ‘uma testemunha’, uma ‘aprendiz’, ‘uma poetisa’, ‘uma
especialista em fogos de artifício’, ‘uma pessoa com habilidade de relatar’, ‘um artífice’,
‘uma pessoa que visa contribuir para criar possibilidades na vida dos outros’, etc.
Se tudo isso parece um tanto quanto vago ou excessivamente teórico, deixe-me
compartilhar um poema que poderá lançar luz sobre o que quero dizer. Esse poema foi
escrito por um amigo e colega – Kerri Marray – em um Encontro Narrativo de terapeutas
em Calgary. Neste encontro, eu fui entrevistada sobre ‘a ética que me trouxe a este
trabalho’ e Keri resgatou minhas palavras no poema a seguir:
E chorei.
Eu chorei e olhei para fora da janela
E não disse nada.
Em minhas sessões de escrita, tarde da noite, as palavras ditas para mim em meu
consultório ganham urgência: construir, descontruir e reconstruir a sessão de mais cedo
naquele dia, encontrar as palavras da própria pessoa, considerar o contexto político e a
grande quantidade de narrativas dominantes do nosso tempo, envolver as autoridades
suspeitas e mostrar, da forma mais convincente possível, a luta substancial e bela do
seu cliente com as questões morais atemporais. “Contra-Ironize os leões com formas
de homens brancos”, disse uma mulher, - os “leões com formas de homens brancos”
são os executores e representantes das narrativas dominantes, ou, em outras palavras,
dos conhecimentos dominantes.
Considere a seguinte tentativa:
Esse foi o tema da minha vida:
Fazer o que “não posso” fazer.
Recentemente, isso significava
Dizer Sim
Quando quero e
Abro meus punhos
Para tocar o outro:
Digo Sim ao invés de “Não posso”.
Sanni
Você deve ser cuidadosa com você
Se não prestar atenção
Se você se demorar
Com algo que alguém acabou de conquistar
Muito em breve
Você vai se ver imaginando
Toda uma vida.
Na última estrofe, Alan está parafraseando Vladimir Nabokov (1972). A versão original
do conto ‘Coisas Transparentes’ (Transparent Things) diz:
Nas palavras irreverentes de uma música de Cat Empire, eu digo: “Peixinhos, sejam
bem-vindos ao meu anzol...”
Referências
Behan, P. C. (2003). Some Ground to Stand On: Narrative Supervision. Journal of
Systemic Therapies 22(4). 29-42.
Heyes. J. C. (2007). Self-Transformations: Foucault, Ethics, and Normalized Bodies.
Oxford University Press.
Linnell, S. (2004). Towards a ‘poethics’ of therapeutic practice: Extending the
relationship of ethics and aesthetics in narrative therapies through a
consideration of the late work of Michel Foucault. The International Journal of
Narrative Therapy and Community Work, 4, 42-54.