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ARTE POLÍTICA, FEMINISTA E AMBIENTAL NA EXPOSIÇÃO CONCHA

BARROS, Rodrigo Miranda


Graduando em Artes Visuais – UFPB
COSTA, Maria Vanessa Rodrigues da
Graduanda em Artes Visuais - UFPB
ESPÍNDOLA,Felipe Costa
Graduando em Teatro – UFPB

RESUMO

Este artigo procura relatar os aspectos da exposição Concha, organizada por


docentes da Pinacoteca-UFPB que reuniram obras feitas especialmente por
mulheres. Procura discorrer sobre a importância da inserção de mulheres no
circuito artístico, diante de todo histórico de apagamento destas da História da
Arte, iremos analisar aqui três trabalhos, de três artistas diferentes, Layla
Gabrielle, Mayara Ismael e Maria Cristina, onde são evidenciados os conceitos
trabalhados pelas artistas, que possuem grande teor politico, ambiental e de
feminista.

Palavras-Chave: feminismo, gênero, mulheres, arte, política, ambiente,


fronteira.

Introdução:

Entre os dias 02 de Abril e 07 de Junho de 2019 a Pinacoteca da UFPB recebe


a exposição CONCHA. A mostra coletiva de obras pretende levar ao público
uma reflexão acerca da produção artística de mulheres, que desenvolvem seus
trabalhos na Paraíba e que ainda não estão profundamente inseridas no
mercado da arte, embora a maioria dos nomes apresentados já possua certa
projeção nos diversos cenários de arte contemporânea, desde os meios
convencionais a espaços até os espaços alternativos como exposições
estudantis, plataformas digitais e redes sociais.

A curadoria, realizada por discentes do curso de Artes Visuais da Universidade


Federal da Paraíba, aponta para uma subversão do modelo já profundamente
enraizado nas instituições no Brasil de um modo geral, onde uma figura de
autoridade assume a maior parte do protagonismo de uma ação. Esta escolha
de lidar com as etapas da exposição de forma horizontal e coletiva, embora
naturalmente necessite de mais tempo para uma apreciação satisfatória de
cada momento, torna o processo mais arejado, pois se coloca diante de uma
perspectiva plural, que embora caminhe para um objetivo em comum,
passando por etapas em seguem trajetórias subjetivas completamente
particulares.

Há ainda, como apontado no texto de apresentação da mostra uma recorrência


por materiais de baixo custo - papel, sacolas, material descartado. A exposição
consciente destes materiais todos juntos pode compor uma busca coletiva pela
democratização dos meios de se fazer arte, artistas periféricas em relação ao
mercado, que se inserem nos espaços a partir de composições em materiais
simples e de fácil acesso e a relação que se cria no todo da galeria, torna-se
uma atitude política sem pretender negar a técnica, mas com pouco apego a
ela, como se quisesse aproximar olhos e arte a partir do que não está em
exibição. A obra, que não se encerra quando entregue ao público é convertida
em meio de transmissão, em mídia.

O OLHAR NATUREZA-ARTE NA OBRA DE CRISTINA MEDEIROS

A série vestígios da natureza, da artista Cristina Medeiros, cuja produção faz parte
da coletiva concha, em exposição na pinacoteca da UFPB, se situa nesse território
limítrofe que envolve arte, política, meio ambiente, denúncia social; levanta
importantes questões acerca de um tema recorrente nos debates internacionais, e
que hoje, principalmente no contexto brasileiro, mostra-se como uma questão de
grande atualidade e pertinência: “até onde e de que maneira a ação predatória do
homem deixa vestígios na natureza?” — diz a artista. Seu trabalho é um registro
dessa sensação de ausência; de incredulidade ante algo que se desfigura e deixa de
ser bem diante de nossos olhos — e ao qual aparenta que nada podemos fazer a
respeito.

ASPECTOS PLÁSTICOS DA OBRA

Nessa série a artista opta pelo uso de cores fortes, carregados de uma materialidade
decorrente da consistência pesada da tinta. Isso confere ao trabalho um aspecto
radicalmente gestual e agressivo que dialoga diretamente com o processo de
laceração e desaparecimento dos biomas naturais. Esse rastro de destruição, ao
qual a artista se refere por vestígios, é um testemunho da ação predatória do ser
humano que não mede os impactos ambientais na busca de lucro e benefícios
econômicos a curto prazo.

Uma das grandes influências destacadas pela autora é o artista Frans Kracjberg,
polonês radicado no brasil e cuja obra é marcada pelo ativismo ambiental e pela
reavaliação dos nossos valores humanos para um convívio harmonioso com a
natureza. Produzindo em contato direto com o meio natural, o artista utilizava
materiais como troncos e restos de queimadas em suas obras, construindo um
diálogo poético voltado a conscientização do homem em relação as suas ações,
tanto como agente causador de mudanças como elemento constituinte do mundo
em que vive. Nesse sentido sua arte ultrapassava as fronteiras locais, posicionando-
se como um internacionalista, sua luta assumia um caráter planetário e atemporal,
dizendo respeito enquanto nossa própria condição enquanto seres humanos.

A GLOBALIZAÇÃO E A QUESTÃO AMBIENTAL NO BRASIL

O fenômeno da globalização, tem de certo modo contribuído com o avanço do ritmo


de exploração desenfreada de matérias primas. Com efeito, se pensarmos que a
internacionalização e a expansão crescente dos fluxos comerciais — ainda que não
seja um fenômeno recente — acarretou uma demanda cada vez maior de recursos
naturais, nota-se que alguma instância deveria intervir para minimizar os danos
causados por esse processo. Pois se por um lado essa integração do livre mercado
contribui para uma expansão econômica através do aumento da produção de bens e
serviços; ao mesmo tempo influencia diretamente no controle que as comunidades
locais tem sobre seu modo de vida e espaço, sufocando o estado na criação de
políticas ambientais independentes que leve em conta as especificidades das
regiões.

No brasil, uma das grandes questões ambientais é a destruição da floresta


amazônica, que compõe aproximadamente 60% do território brasileiro além de ser o
maior bioma de floresta úmida do mundo, e que cujas reservas de água doce
compõe cerca de um quinto das reservas mundiais. Essa destruição é, de acordo
com estudo de 2003, causada em grande parte pelo avanço da pecuária,
responsável pela remoção da floresta para criação de áreas de pasto. Existe
também o desmatamento devido ao avanço da malha rodoviária e extração pelo
mercado madeireiro. Porém o que torna viável todo esse processo é a redução de
custos em relação a essa expansão, o que torna a pecuária uma prática altamente
lucrativa, possibilitando o aumento da exploração por essas atividades adjacentes.

Essa influência dos grandes fazendeiros do setor agropecuário é sentida


notadamente na política brasileira através de lobbying praticado pela chamada
“bancada ruralista” — setor político de relativa importância no congresso, que atua
diretamente legislando a favor dos grandes proprietários de terra sobre causas
específicas, na busca de dificultar o avanço de políticas de proteção ambiental e
aumentar a autonomia dos pecuaristas, que na falta de leis poderiam agir livremente
em busca dos próprios interesses financeiros.

A busca por alternativas, portanto faz-se necessária. Esforços vem sendo feito em
direção a práticas como o manejo florestal sustentável, prática que apesar de não
ser tão economicamente atrativa aos setores interessados, revela importantes
benefícios sociais de uma forma geral, além disso é necessário um aumento na
fiscalização, além de iniciativas do próprio mercado na busca de práticas
sustentáveis para que haja a possibilidade de mudanças em relação a esses
problemas.

A PERSPECTIVA DA HISTÓRIA POR LAYLA GABRIELLY

A obra intitulada “III” faz parte de um triplico, onde as duas anteriores trazem
consigo uma trajetória numerológica de início, meio e fim. Na obra “I”, sugere-
se a reflexão sobre o apagamento histórico das mulheres, onde a artista ao
deparar-se com um livro nomeado “Grandes Personagens da História
Universal” que apresentava apenas homens,utiliza-se de um estilete para
estraçalhar o título e ao abrir o livro nos deparamos com um segundo livro,
cravado nas folhas, com lâminas e que ao tirá-lo encontra-se as palavras
“Sangue, Ferro e Fogo” e um prego enferrujado junto a estas, manchadas de
vermelho, evidenciando a conquista dos homens sobre o sangue das mulheres
ao longo dos séculos. A obra que recebeu o título de “II”, seria o meio que
refere-se ao apagamento e repressão das descobertas sexuais das mulheres.
Uma gaveta é posta a disposição do telespectador e possui abaixo de seu
fecho um recorte de dicionário da palavra “clitóris” que é descrito da seguinte
forma: “Clitóris s.m. (Anat.) Protuberância erétil situada na parte superior da
vulva. (Do grego kleitorís)” dando um aspecto reducionista. A gaveta ao ser
puxada traz o intuito da sensação de descobrimento e o dicionario da Língua
Portuguesa serve como suporte. A última obra, nomeada de “III”, seria o fim e
ao debruçarmos o olhar sobre ela nos deparamos com um livro que possui
suas páginas coladas e este está pintado de preto. O aspecto fúnebre torna-se
evidenciado pelas pinceladas duras e marcadas por manuseios violentos, ao
lado direito, em letras pequenas e vermelhas lemos a palavra “morta”. O
suporte encontra-se despedaçado e o livro traz em sua capa quatro buracos
que podem ser lidos como tiros, ao lado alguns fósforos dentro de uma
pequena caixa fazendo referência a perseguição politica, abaixo, escrito em
vermelho, um local e uma data, “Rio de Janeiro, 14/03/18” que refere-se ao
assassinato de Marielly Franco, vereadora do Rio de Janeiro, mulher, negra e
lésbica, seu assassinato teve motivações politicas.

A Artista Layla Gabrielly relata que os materiais utilizados em todas as obras


foram encontrados no lixo, perto da praia em um dia que saiu a deriva pela
cidade e foram pensadas em uma única noite. As marcas de mãos, dedos,
estardalhaços, respingos de tinta vermelha em várias partes fazem parte do
processo onde a artista queria transparecer algo violento, mórbido e marcados
por manejamento descontrolado. Utilizar-se de objetos já existentes nos leva
ao conceito de “Pós-Produção”, descritos por Nicolas Bourriaud, onde ao obter-
se de objetos que foram dados uma forma por outrem e que perdem-se em
utilidades obsoletas oriundas de um sistema capitalista, adquire-se um novo
significado segundo o olhar e intenção do artista.

“(…) inscrever a obra de arte numa rede de signos e


significações, em vez de considerá-la como forma
autônoma ou original. Não se trata mais de fazer tábua
rasa ou de criar a partir de um material virgem, e sim
de encontrar um modo de inserção dos números fluxos
de produção. ‘As coisas e os pensamentos’, escreve
Gilles Deleuze, ‘crescem ou aumentam pelo meio, e é
aí que a gente tem de se instalar, é sempre este o
ponto que cede’. A pergunta artística não é mais: ‘o que
fazer de novidade’, e sim: ‘o que fazer com isso?’. Dito
em outros termos: como produzir singularidades, como
elaborar sentidos a partir dessa massa caótica de
objetos, de nomes próprios e de referências que
constituem nosso cotidiano? Assim os artistas atuais
não compõem, mas programam formas: em vez de
transfigurar um elemento bruto (a tela branca, a argila),
eles utilizam o dado.” (BOURRIAUD, 2009. p.13)
As obras também estabelecem um caráter relacional a partir do momento em
que não está em questão apenas a mera contemplação mas sim o convite para
o público participar da obra. Os trabalhos respectivamente intitulados de “I” e
“II”, permitem a ação direta do telespectador que ao encontrar-se com o objeto
exposto o manuseia, como no caso do livro em que este precisa ser aberto
para que se descubra o conteúdo das lâminas e pregos em volta da tinta
vermelha e a gaveta que precisa ser puxada como num ato de
“descobrimento”. Isso coloca em pauta ainda um dos pensamentos de
Bourriaud, do livro “Estética Relacional”:

“(...) uma exposição criará, segundo o grau de


participação que o artista exige do espectador, a
natureza das obras, os modelos de socialidade
propostos ou representados, um ‘domínio de trocas’
particular. E esse ‘domínio de trocas’ deve ser julgado
de acordo com critérios estéticos, isto é, analisando-se
primeiro a coerência de sua forma e depois o valor
simbólico do ‘mundo’ que ele nos propõe, da imagem
das relações humanas que ele reflete.” (BOURRIAUD,
2008. p.17)

Seguindo por essa perspectiva, a obra apresenta uma visão de mundo, que
envolve a denúncia em relação ao apagamento de feitos históricos de
mulheres, repressão sexual e feminicídio. O trabalho “III” possui uma denúncia
politica em relação ao assassinato de Marielly Franco. Isso pode nos levar a
uma outra reflexão, em torno do contexto que Marielly estava inserida. Em seu
livro “Problemas de Gênero: Femininismo e subversão da identidade”, Butler
aponta:

“Se alguém é uma mulher, certamente isso não é tudo


que esse alguém é; o termo não logra ser exaustivo,
não porque os traços predefinidos de gênero da
”pessoa” transcendem a parafernália especifica do seu
gênero, mas porque o gênero nem sempre se constitui
de maneira coerente ou consistente nos diferentes
contextos históricos, e porque o gênero estabelece
interseções com modalidades raciais, classistas,
étnicas, sexuais e regionais de identidades
discursivamente constituídas. Resulta que se tornou
impossível separar noção de “gênero” das interseções
politicas e culturais em que invariavelmente ela é
produzida e mantida.” (BUTLER, 1990. p.20)

O gênero é construído socialmente, e Butler afirma que esse conceito não pode
ser universalizante pois existem fatores que diferem as diversas vivências de
mulheres. Podemos por assim dizer, ao destacar que Marielly Franco era uma
mulher e que além de mulher ela era uma mulher negra e lésbica traz
diferentes modos de luta para conseguir seus direitos e que as agressões
sofridas por ela eram diferentes de outras mulheres.

A revista Exame publicou em 2015 que segundo o Diagnóstico dos Homicídios


no Brasil: Subsídios para o Pacto Nacional pela Redução de Homicídios,
divulgadas no dia 15 de outubro de 2015 pela Secretaria Nacional de
Segurança Pública, do Ministério da Justiça, mulheres negras possuem o dobro
de chances de serem mortas do que brancas, num dado que mostra para cada
100 mil habitantes, o número é de 7,2 e 3,2 respectivamente. Ainda em
questão, o site Agência Brasil publicou no dia 8 de março de 2018 o primeiro
Dossiê sobre Lesbocidio no Brasil, apontando o crescimento da violência
sofrida por mulheres lésbicas, destacando que entre o intervalo entre 2000 e
2017 foram registrados mais de 180 homicídios de lésbicas e que os anos que
ocorreram maiores registros foram entre 2014 e 2017, somando o total de 126
assassinatos nesse período. E não é apenas as mulheres lésbicas que são
vítimas de violência, o Instituto Patricia Galvão levantou um dossiê em abril de
2019 que relata a violência contra mulheres transexuais, bissexuais e lésbicas
trazendo dados que de acordo com o Relatório sobre Violência Homofóbica no
Brasil (SDH,2013), em 2012, foram registradas 3.084 denúncias referente a
população LGBT no Brasil apresentando um crescimento de 166%. O site de
notícias Correio Brasiliense publicou dados de um relatório de uma ONG
europeia chamada Transgender Europe onde aponta que no Brasil houve 868
mortes de transexuais e travestis nos últimos oito anos liderando o ranking
mundial de assassinatos de transexuais.

Esses dados comprovam que a teoria feminista possui uma necessidade de se


libertar da categoria binária a qual de início foi constituída. “Mulher não tem
sexo.” Essa frase é da filósofa e feminista belga, Luce Irigaray, que exemplifica
que ser mulher vai muito além das características biológicas condicionadas ao
corpo após o nascimento. Existem contextos diversos em que várias mulheres
estão inseridas e que possuem formas distintas de reivindicar seus direitos. Há
múltiplas vertentes, inúmeras vivencias e o nosso maior objetivo no dado
presente é eliminar uma base única voltada para um conceito binário e tomar
como premissa a construção variável da identidade que atue de forma
metodológica e com objetivos políticos. É preciso ampliar os horizontes que
nos cercam e sufocam, estabelecer a ligação da luta de todas as mulheres em
seus contextos distintos sempre buscando no presente histórico formas de
atender os direitos de cada uma de nós.

DOIS QUADROS SOBRE UMA VENEZUELA

Duas das três obras que compõem o "Tríptico tirado de uma notícia de jornal"
de Mayara Ismael estão em exposição na mostra, é um trabalho de pintura
sobre colagem de cédulas de cem bolívares picotadas, que foram retiradas de
circulação pelo governo VEnezuelano de Nicolás Maduro no ano de 2016 sob a
justificativa de combater uma “guerra econômica” que estaria sendo travada
por máfias colombianas envolvidas com tráfico de moeda internacional com a
intenção de desestabilizar a já frágil economia venezuelana.

“O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, ordenou


neste domingo (11/12) que as cédulas de 100
bolívares, as de maior denominação, sejam recolhidas.
O intuito é enfrentar supostas máfias colombianas que
armazenam o papel-moeda numa "guerra econômica"
para desestabilizar a Venezuela. (...) Segundo o
presidente venezuelano, uma investigação apontou que
há armazéns, não só em várias cidades da Colômbia,
mas também no Brasil, na Alemanha, na República
Tcheca e na Ucrânia, onde as máfias estariam
acumulando as cédulas venezuelanas.” (DW Brasil,
2016).

O governo bolivariano deu um prazo de setenta e duas horas a partir de onze


de dezembro de 2016 para que a maior nota em circulação no país perdesse
todo seu significado econômico, torne-se assim um capítulo repleto de
significados que servem pra entendermos a história recente da América Latina
e as transformações que testemunhamos hoje.

Diante deste cenário descontrolado, em que uma onda de crises econômicas e


políticas são inflamadas a partir da influência geopolítica direta de grandes
potências capitalistas, que demonstram interesse claro na desestabilização
interna de países em desenvolvimento, a artista localiza seu trabalho. A obra
reflete um posicionamento crítico direcionado a este clima de política autoritária
anti-imigração e de economia decadente que emerge nas nações sul-
americanas e que tem dado o tom na década 2010.

A utilização das cédulas para criação de obras também está presente em


trabalhos, como o do artesão venezuelano Richard Segovia que, de acordo
com matéria da BBC News Brasil de abril de 2018, vive em Cútuca na Colôbia,
cidade que faz fronteira com seu país de origem tem por ofício a confecção de
bolsas, carteiras e sapatos, utilizando como matéria prima, as notas
desvalorizadas de seu país.

“Para uma bolsa ele chega a usar em torno de mil


cédulas. Ele conta que começou a fazer arte com os
bolívares porque atualmente não se consegue comprar
nada com o dinheiro venezuelano. Há 15 anos, diz,
poderia comprar um carro com a quantia utilizada na
fabricação de suas bolsas. ‘Hoje não dá para comprar
nem farinha’, diz, apontando para duas pilhas de notas”
(BBC Brasil, 2018).

Um aspecto importante de ser percebido neste trabalho é a busca por uma


estética urbana, exemplo do pixo, manifestações artísticas que transformam
muros em galerias a céu aberto e que escancaram no meio do movimento
caótico das cidades em si, um sintoma das contradições sociais que
contribuem para um processo cada vez mais excludente e de marginalização
dos corpos periféricos, que encontram nestes meios uma forma legítima de
expressão.
“O ‘ruidoso silêncio da pixação’ na cidade passa a
altear sua voz, a usar a linguagem pactuada com a
finalidade de, junto ao pixo, expressar sua ‘insatisfação
com o capitalismo’, com a propriedade privada, com as
estruturas sociais instituídas: ‘teu muro [...] pode ser
meu também’. É como se de algum modo uma multidão
constituída pela pixação, [...] embora não coligada,
mantendo-se dispersa e múltipla, expusesse a si
mesma nesses episódios, fragmentadamente unificada,
anarquicamente organizada, incoerentemente pactuada
em seus propósitos comuns.” (DIÓGENES, 2017.
P.123).

O quadro de Mayara nos grita em letras afiadas “FRONTEIRAS SÃO


CONSTRUÇÕES IMAGINÁRIAS” e a obra parece estar o tempo todo querendo
desconstruir estas fronteiras as quais ela mesma está inserida, sempre
trabalhando a ideia de que as convenções que separam os seres humanos são
apenas meras abstrações coletivas. As linhas que separam as nações da
América Latina, o valor financeiro [des]atribuído a um pedaço de papel, a
autoridade que é conferida a um chefe de estado.

A imersão desta obra em uma configuração estética de subdesenvolvimento


se dá a partir da busca por uma aproximação com a Glitch-Art, procedimento
artístico intrinsecamente relacionado À manipulação de máquinas e tecnologias
analógicas ou digitais consideradas obsoletas para o padrão hegemônico em
exaustivo processo de evolução.

Numa tradição que remonta a obras de, entre outros,


Nam June Paik, John Cage e Waldemar Cordeiro,
artistas começaram a se apropriar dessas falhas
digitais para compor suas obras de arte. Por vezes, as
falhas são apropriadas e apresentadas sem maiores
intervenções por parte dos artistas, através de
processos de apropriação que vagamente nos remetem
aos ready-made duchampianos. Em outros casos, os
artistas desenvolvem técnicas que viabilizam o
surgimento desses glitches, ou seja, criam métodos
que forçam as máquinas a produzirem essas falhas.
(Marino, 2017. P.12)

Ismael reconhece suas limitações autoimpostas e o que ela propõe é uma


“aproximação manual-analógica” que, embora o resultado seja visível nos seus
quadros, é muito mais conceitual e pode ser encarado como uma metáfora
para a América Latina na década de 2010, tendo em vista que a Glitch-Art
existe do ruído, do erro das máquinas e de uma nostalgia da experiência de
utilizar objetos obsoletos de dez ou trinta anos atrás que já foram sinônimo de
ápice da modernidade em sua época e que hoje em dia são facilmente
descartados por um mundo em constante transformação, esta condição de
existência, quando posto à luz do debate sobre a condição humana numa
latino-américa despontando em crise no século XXI em um recorte preciso de
uma Venezuela devastada por jogos de dominação internos e externos nos
provoca a refletir sobre qual o nosso papel dentro disso tudo? Como estamos
lidando com estas transformações tão acirradas que caracterizam esta
década? E quais são as fronteiras que nos separam para além das linhas
cartográficas ?

Mayara então consegue fazer uma síntese da América Latina em emergência a


partir de uma obra feita de recortes acerca um recorte específico na história
recente da Venezuela, sem necessariamente trazer uma prática artística nova
em sua forma, mas atribuindo camadas de significados inerentes a seu
posicionamento de mundo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto chegamos à conclusão de que se faz necessário evidenciar


a importância da Exposição Concha ao dar visibilidade a mulheres artistas, que
estão se iniciando no circuito da arte e que possuem uma trajetória imensa pela
frente, diante de todo apagamento das mulheres na História da Arte. As obras
aqui citadas trazem uma reflexão que percorrem por um contexto politico,
ambiental e de caráter representativo interligando-se a pensadores e
pensadoras contemporâneos que nos trazem uma visão da arte inserida no
mundo globalizado envolto de um sistema capitalista. A arte contemporânea
permite ao artista se desvincular da mera contemplação e trazer um conceito
em suas obras que chegam a ser uma ação direta, mostrando mundos
alternativos que possam ser ocupados e maneiras diversas de se pensar a
vida.
ILUSTRAÇÕES

I.

bloco de madeira (38 cm x 37 cm),


livro (28,5 cm x 23 cm), caderno, tinta acrílica,
lâmina, prego, lápis grate, caneta nanquim
preta.

II.

gaveta (35 cm x 26 cm x 9 cm), dicionário (35 cm x 26 cm), bloco


de madeira (17,5 cm x 17 cm), tinta acrílica, cola branca e veludo
III.

bloco de madeira (45 cm x 35 cm), livro (23 cm x 16 cm), tinta acrílica, cola branca,
pregos, caixa de fósforos, palito de fósforo queimado.

Cristina Medeiros

Vestígios da natureza, 2018

Tinta offset sobre papel fotográfico, 60 x 40


REFERÊNCIAS

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2003.

BBC BRASIL. Notas sem valor viram 'bolsas de dinheiro' na Venezuela. 2018.


Disponível em: <https://www.notibras.com/site/artesao-usa-cedulas-da-moeda-
venezuelana-para-fazer-bolsas/>. Acesso em: 05 maio 2019.

BOURRIAUD, Nicolas. Estetica Relacional. 2. ed. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2008.
143 p. Cecilia Beceyro y Sergio Delgado.

BOURRIAUD, Nicolas. Pós-Produção: Como a arte reprograma o mundo contemporâneo.


São Paulo: Martins Editora Livraria Ltda, 2009. 110 p. Denise Bottmann.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão de identidade. Rio de


Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2003. 235 p.

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Disponível em: <http://especiais.correiobraziliense.com.br/brasil-lidera-ranking-mundial-de-
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DIÓGENES, Glória. Arte, Pixo e Política: dissenso, dissemelhança e


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DW Brasil. Maduro manda retirar notas de 100 bolívares de circulação. 2016.


Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/maduro-manda-retirar-notas-de-100-bol
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GALVÃO, Instituto Patrícia. VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES LÉSBICAS, BIS E


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