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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

LETÍCIA FERNANDES PIMENTA


DRE: 118086859

IMAGINÁRIOS BOTÂNICOS:
DA NEGLIGÊNCIA À IDENTIFICAÇÃO

Trabalho final da disciplina


Teoria Literária III, ministrada
por Martha Alkimin.

Rio de Janeiro, 2022 (2022.1)


IMAGINÁRIOS BOTÂNICOS: DA NEGLIGÊNCIA À IDENTIFICAÇÃO

Resumo: A visão botânica é algo presente desde o trovadorismo até os trabalhos mais
contemporâneos na literatura brasileira, entretanto, a intenção objetificada atribuída a esses
seres é pertinente e questionável. Neste artigo, firma-se uma discussão sobre como o ser
humano utiliza dos imaginários botânicos para trazer uma representação antropocentrista à
literatura, e como a obra de Adriana Lisboa vai de encontro a este padrão, entregando uma
perspectiva de identificação através da natureza.

Palavras chave: imaginários botânicos, literatura, poesia, identificação

Durante as diversas eras da literatura brasileira, a natureza sempre esteve presente.


Seja na era do trovadorismo, através do homem medieval e camponês, na ligação aos
fenômenos da natureza através dos textos no romantismo, ou pelas obras naturalistas, onde a
natureza era quem determinava o caráter e as ações dos seus personagens. Sendo assim,
podemos perceber que “(...) a literatura tem natureza de ser uma construção intertextual e
auto-reflexiva” (GIACON, 2009, p. 4), ao qual o homem utiliza de representações naturais
para exprimir pensamentos e opiniões sobre seus sentimentos.
Entretanto, se utilizarmos como exemplo qualquer obra dessas divisões literárias,
veremos que o ponto de vista é sempre humano e que a natureza é quem deve se submeter às
vontades do ser central da história. “As plantas parecem ausentes, como que extraviadas num
longo e surdo sonho químico. Não têm sentidos, mas não estão trancadas em si, longe disso:
nenhum outro vivente adere mais do que elas ao mundo circundante” (COCCIA, 2019, p. 12)
e essa afirmação pode ser notado através do poema analisado a seguir, onde o imaginário
botânico vai de encontro à objetificação da natureza na sociedade, construindo uma ponte
para a identificação na obra de Adriana Lisboa.
No poema “A flor e seu protesto”, pode-se perceber que a perspectiva imposta difere
das adotadas nas antigas escolas literárias, onde o homem recorria à natureza como um
objeto, somente um meio para transmitir seus sentimentos. Nessa obra, a flor é um ser com
opinião, que vai ao encontro do antropocentrismo e a objetificação da natureza pelo ser
humano.
O poema se inicia com os seguintes versos: “tanto já se falou da flor e o seu
protesto/aquela que rompe o asfalto/a que entope os canos dos fuzis” (LISBOA, 2022, n.p) e
neste excerto pode-se visualizar uma flor que, mesmo tão pequena, faz um protesto contra o
crescimento exagerado de metrópoles e da devastação da natureza. Quando uma flor rompe o

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asfalto, quebra-se também todo o padrão descritivo de uma cidade; plantas são mantidas em
vasos, vistas como meros ornamentos e, naturalmente, não crescem através da mão humana,
trazendo consigo o significado de protesto e de quebra de expectativa. As plantas crescem
onde houver espaço e água para crescer, luz para fazer a fotossíntese e ar para respirar, “não
precisam da mediação de outros seres vivos para sobreviver” (COCCIA, 2018, p. 15).
A flor é também um símbolo de beleza e perfeição, e ainda no mesmo verso citado
acima, Lisboa mostra que a flor entope os canos dos fuzis, entregando ao leitor a experiência
de se usar o que é belo para combater o que é ruim e feio, seja qual for a planta, “feia ou
cravo/ou o cocar do amaranto” (LISBOA, 2022, n.p), a flor será uma forma de protesto e de
mostrar que “(...) não precisam de violência para fundar novos mundos” (COCCIA, 2018, p.
17).
Nos versos seguintes vemos uma descrição intrigante: “(semente-bomba sobre os
campos/da Monsanto)” (LISBOA, 2022, n.p), onde a autora descreve uma situação pertinente
na atual situação do meio ambiente: o uso de tóxicos e químicos feitos por fábricas e
empresas que prejudicam a fauna e flora em troca de lucros.
“A Companhia Monsanto é uma empresa multinacional de agricultura e biotecnologia
(...) e é a líder mundial na produção do herbicida glifosato (pesticida/agrotóxico)”
(WIKIPÉDIA, 2021, on-line) e a crítica levantada no poema é que a natureza está cansada de
pesticidas e tóxicos que são usados para afastar insetos, mas que acabam por modificar
geneticamente as plantas, os frutos e diversas outras espécies de vegetais. Essa ocorrência
impõe o sentimento de descarte sobre as plantas e, mais uma vez, de domínio do homem
sobre o ser “inferior”.
A semente-bomba é uma técnica ancestral japonesa que é utilizada para o plantio em
massa, porém, seu propósito vai além de somente plantar, é também um ato político ligado à
jardinagem de guerrilha. Esse movimento consiste em fazer o plantio de culturas alimentares
ou de embelezamento para “(...) promover uma reconsideração da propriedade da terra, a fim
de recuperá-la de negligência ou mau uso e atribuir-lhe um novo propósito” (WIKIPÉDIA,
2019, on-line).
A crítica feita no poema é exatamente essa, a de recuperar o meio ambiente que é
violentamente agredido pelos agrotóxicos da empresa, jogando sementes-bomba sobre um
local onde é promovido o ódio e a poluição do meio ambiente. E isso nos diz muito sobre
como o homem continua vendo a planta e principalmente as flores como algo sem vida, o que

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é completamente equivocado, pois, além de serem umas das principais fontes de oxigênio,
elas também “(...) destroem a hierarquia topológica que parece reinar sobre o cosmos.
Demonstram que a vida é uma ruptura da assimetria entre continente e conteúdo” (COCCIA,
2018, p. 17).
O poema segue tratando de como a flor é objetificada pelo homem: “tanto já se usou
a flor/em rima pobre em rima rica/ou de classe média/canções e coroas fúnebres/e nos
altares às dúzias/e nos falsos pedidos de desculpas” (LISBOA, 2022, n.p). Coccia em A Vida
das Plantas (2018) mostra como essa descrição feita por Lisboa é verdadeira, onde as plantas,
por mais que sejam utilizadas como objetos decorativos em diversos tipos de ocasiões, não se
deixam abalar por essa negligência, pois demonstram uma indiferença grande pelo mundo
humano; enquanto há alternância de reinos e épocas, elas permanecem as mesmas e aderentes
ao mundo que as circunda.
Do mesmo modo entende-se que as flores, comumente associadas ao amor e ao
romantismo, também são usadas de forma errada, sendo associadas ao erro humano. Quando
o homem sente-se culpado, compra flores para desculpar-se com a outra criatura, como se a
flor fosse um meio de apaziguar o erro, pousando sobre a natureza a necessidade de depositar
a culpa de seus erros e narcisismos.
Embora essas faltas contínuas contra a natureza ocorram, é necessário interrogar:
qual realmente é o significado de uma flor no mundo? A planta “(...) é o observatório mais
puro para contemplar o mundo em sua totalidade” (COCCIA, 2018, p. 13), possuindo não
apenas beleza, mas também relação direta com à Terra e com as origens do mundo. E o
poema finaliza dizendo “mas o que diz a flor/quando não a tomamos emprestada/para lutas
lutos amores/ou metáforas/o que será uma flor/sem significante/nem significado?” (LISBOA,
2022, n.p), e essa questão do poema pode ser respondida pela própria imagem das plantas.
Sua beleza, forma e trabalho são presentes em todos os lugares e sem elas o planeta não
sobreviveria. As plantas “transformam tudo o que tocam em vida, fazem da matéria, do ar, da
luz solar o que será para o resto dos seres vivos um espaço de habitação, um mundo”
(COCCIA, 2018, p. 15).
Com isso, pode-se concluir que o ser humano negligencia as plantas, pois ele não se
identifica com sua fragilidade e pequenez, assim como também faz com os animais,
visualizando apenas a animalidade grotesca e implicando o narcisismo humano sobre sua
visão. O imaginário animalesco e botânico sob a ótica literária possui sua importância, pois

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quebra paradigmas criados em culturas primitivas, salientando o estranho e o bárbaro através
do animal, promovendo a sensibilidade e o pensar através da botânica. Esse exercício
contemporâneo foge do pensamento egocêntrico e narcisista dos seres humanos e conecta,
mais uma vez, a criatura feita do barro com à Terra.

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Referências:
LISBOA, Adriana. O vivo. Rio de Janeiro: Relicário, 2021.
COCCIA, Emanuele. A vida das plantas: uma metafísica da mistura. Rio de Janeiro: Cultura
e Barbárie, 2018.
GIACON, Eliane Maria de Oliveira. NATUREZA E FUNÇÃO DA LITERATURA. Web
revista página de debates: questões de linguística e linguagem, [s. l.], ed. 7, 2009. Disponível
em: http://www.linguisticaelinguagem.cepad.net.br/EDICOES/07/07.htm. Acesso em: 25 jul.
2022.
WIKIPÉDIA: Monsanto (empresa). [S. l.], 27 maio 2021. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Monsanto_(empresa). Acesso em: 20 jul. 2022.
WIKIPÉDIA: Jardinagem de guerrilha. [S. l.], 15 outubro 2019. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Jardinagem_de_guerrilha. Acesso em: 23 jul. 2022.

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