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Resenha

Ideias para adiar o fim do mundo

Michel Mendes1
Universidade Federal de Goiás (UFG)
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0394-8086

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o mundo. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Não é somente pelo título inquietante que Ailton Krenak chama a atenção. O autor,
em 04 de setembro de 1987, durante a Assembleia Constituinte, fez um importante e forte
discurso acerca dos direitos dos povos indígenas. Ao longo de seu curto discurso 2 na tribuna,
vestido em um terno branco, Krenak pinta seu rosto com tinta preta do jenipapo, como
demarcação de uma cultura que vinha (e ainda vem) sendo negligenciada, não valorizada
como constituinte primeira deste país e obrigada, a cada vez mais, ver seu território
destruído e transformado, por exemplo, em áreas para a agricultura, mineração e/ou
pecuária. Nitidamente em seu discurso, Krenak anuncia que uma população que vive em
casas com telhados de palha e dorme em esteiras no chão, não representa uma ameaça aos
interesses econômicos. Embora não anunciado em seu discurso, sabe-se que o modelo

1
Professor no Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática (PPGECM) da Universidade
Federal de Goiás (UFG); Professor no Curso de Ciências Biológicas, modalidade Licenciatura, da UFG, vinculado
ao Departamento de Educação em Ciências do Instituto de Ciências Biológicas. Doutor e Mestre em Educação
pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), Especialista em Gestão do Ensino Superior pela UCS, Licenciado e
Bacharel em Ciências Biológicas pela UCS. E-mail: michel.mendes@ufg.br
2
Pode ser conferido em: https://www.revistas.usp.br/gis/article/view/162846/157198. Acesso em: 18 mar.
2021.
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capitalista e a política brasileira, em especial a atual, evidenciam uma perspectiva inversa da
defendida pelo autor.
Em Ideias para adiar o fim do mundo, publicado em 2019, produto de duas
palestras, ambas proferidas em Lisboa em 2017 e 2019, e de uma entrevista também em
Lisboa em 2017, o autor e líder indígena, ao longo de suas 72 páginas, critica a lógica
cartesiana da dicotomização ser humano e natureza. Nascido na região do Vale do Rio
Doce/MG, território do povo Krenak3, localidade devastada pelo crime da Empresa Samarco
em 2015, Krenak situa sua crítica ao afirmar que uma “*...+ humanidade que não reconhece
que aquele rio que está em coma é também o nosso avô” (KRENAK, 2019, p. 47) reitera essa
lógica que, ao mesmo tempo, é a premissa que origina o desastre socioambiental no
Antropoceno, a atual proposta de nova Época4 geológica.
A obra está organizada em três partes, a saber: a primeira recebe o próprio nome da
obra - “Ideias para adiar o fim do mundo”; a segunda - “Do sonho e da terra”; e a última - “A
humanidade que pensamos ser”. A seguir, apresentam-se alguns elementos do livro e seus
diálogos com o campo da educação ambiental.
Na primeira parte do livro - “Ideias para adiar o fim do mundo” - Krenak inicia sua
reflexão problematizando o entendimento de humanidade, pois aos olhos dos colonizadores,
os brancos europeus eram dotados de uma humanidade que precisava ser compartilhada (e
imposta) sobre aqueles que possuíam “humanidade obscurecida” (p. 11). Esse desejo em
humanizar o mundo considerava uma noção de que existe uma maneira de ser e estar na
Terra, indo de encontro aos costumes dos povos indígenas, por exemplo, que manifestavam
posturas que precisavam ser guiadas por um modo iluminado de ser – eurocêntrico (e
dualista: cultura x natureza), mas que para ele, o autor, é incompatível com seu modo de ser
e estar no mundo: “*...+ fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e
passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a Humanidade. Eu não

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“O nome Krenak é constituído por dois termos: um é a primeira partícula, kre, que significa cabeça, a outra,
nak, significa terra. Krenak é a herança que recebemos dos nossos antepassados, das nossas memórias de
origem, que nos identifica como ‘cabeça da terra’, como uma humanidade que não consegue se conceber sem
essa conexão, sem essa profunda comunhão com a terra” (KRENAK, 2019, p. 48).
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Destaca-se que o autor não utiliza o termo Época, mas Era. Contudo, uma vez que o Antropoceno é uma
proposição de Época geológica, essa é uma alteração conceitual importante a ser realizada.
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percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. *...+ Tudo em que eu
consigo pensar é natureza” (KRENAK, 2019, p. 16-17).
Nesse sentido, segundo o autor:

Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente
alienados do mínimo exercício de ser? A modernização jogou essa gente do campo
e da Floresta para viver em favelas e em periferias, para virar mão de obra em
centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares
de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade. Se as pessoas não
tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que
dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que
compartilhamos (KRENAK, 2019, p. 14).

Essa dinâmica humanizadora e agente de desenvolvimento/progresso, além de impregnar


crenças e costumes estrangeiros, foi aos poucos sinalizando um modelo de bem-estar para o mundo,
um padrão de vida, o que caracteriza as metrópoles como reproduções umas das outras. Com essa
proposta, o distanciamento da terra é inevitável e louvável - uma “abstração civilizatória” (p. 22),
abrindo espaço para a exploração desenfreada dos territórios tradicionais, anulando suas
pluralidades e seus hábitos. Quem sobrou? “A sub-humanidade” (p. 21), os “quase-humanos” (p. 70),
constituídos por uma “*...+ camada mais bruta, rústica, orgânica *...+ uma gente que fica agarrada na
terra. *...+. A organicidade dessa gente é uma coisa que incomoda *...+” (p. 21-22), conforme destaca o
autor:

Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam ficar agarrados nessa terra
são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos
rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. São caiçaras,
índios, quilombolas, aborígenes – a sub-humanidade (KRENAK, 2019, p. 21).

Para Krenak, a principal marca do Antropoceno é a convicção humana a uma ideia


estática de paisagem da Terra e de humanidade:

Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade,


do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande
com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de
dançar, de cantar. *...+ A minha provocação sobre adiar o fim do mundo é
exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso,
estaremos adiando o fim (KRENAK, 2019, p. 26-27, grifo nosso).

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A provocação que move o livro e que finaliza a primeira parte considera que ao
contar histórias está se adiando o fim do mundo, pois significa romper com a dinâmica
historicamente construída de distanciamento da natureza (herança da modernidade -
binômio ser humano-natureza) para viver momentos de circulação intensa pelo mundo, em
conexão com os saberes tradicionais, mantendo “*...+ nossas subjetividades, nossas visões,
nossas poéticas sobre a existência” (p. 33). Implica “suspender o céu” (p. 32), ou seja,
ampliar os horizontes existenciais, enriquecendo as subjetividades dos sujeitos que aceitam
o convite do estar-com, e não contra, pois esse é um tesouro que os atuais tempos estão
consumindo.
Em sua segunda parte - “Do sonho e da terra” - a obra aborda o difícil e complexo
relacionamento histórico entre o estado brasileiro e as sociedades indígenas, no
reconhecimento da legitimidade desses grupos em manter suas culturas e seus territórios: “o
dilema político que ficou para as nossas comunidades que sobreviveram ao século XX é ainda
precisar disputar os últimos redutos onde a natureza é próspera, onde podemos suprir as
nossas necessidades alimentares e de moradia *...+” (KRENAK, 2019, p. 39-40). Ainda,
segundo o autor, “o que está na base da história do nosso país, que continua a ser incapaz de
acolher os seus habitantes originais *...+ é a ideia de que os índios deveriam estar
contribuindo para o sucesso de um projeto de exaustão da natureza” (KRENAK, 2019, p. 41).
A imposição histórica-colonial e o desejo (consumado) do modelo capitalista em
transformar elementos naturais em recursos naturais, povos e territórios em escravos de
uma matriz destrutiva ameaça não mais, e somente, as comunidades originárias, como
também a todos que vivem na Terra. Para o japé yanomami, Davi Kopenawa, com quem
Krenak dialoga em suas páginas, “*...+ o mundo acredita que tudo é mercadoria, a ponto de
projetar nela tudo o que somos capazes de experimentar” (KRENAK, 2019, p. 45). Ou seja, a
demarcação do Antropoceno está impregnada da lógica/cultura do consumo, a exemplo da
mercantilização e intoxicação do rio Doce, a quem os Krenak chamam de Watu (nosso avô -
uma pessoa), e não um recurso. Nessa esteira, o Antropoceno como fenômeno social de
modificação dos ambientes terrestres e do funcionamento do sistema Terra (MENDES, 2019)
precisa ser encarado como um alerta, segundo o autor, pois:
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*...+ se nós imprimimos no planeta Terra uma marca tão pesada que até caracteriza
uma era, que pode permanecer mesmo depois de já não estarmos aqui, pois
estamos exaurindo as fontes da vida que nos possibilitam prosperar e sentir que
estávamos em casa, sentir até, em alguns períodos, que tínhamos uma casa comum
que podia ser cuidada por todos, é por estarmos mais uma vez diante do
dilema a que já aludi: excluímos da vida, localmente, as formas de organização
que não estão integradas ao mundo da mercadoria, pondo em risco todas as outras
formas de viver – pelo menos as que fomos animados a pensar como possíveis, em
que havia corresponsabilidade com os lugares onde vivemos e o respeito pelo
direito à vida dos seres, e não só dessa abstração que nos permitimos constituir
como uma humanidade, que exclui todas as outras e todos os outros seres
(KRENAK, 2019, p. 46-47).

Diante disso, são evidentes os dilemas gerados pela crise civilizatória (LEFF, 2010),
crise planetária (MORIN, 2015), as quais alertam para a necessidade de cosmovisões de
respeito, de atos educativos pautados na emoção do amar (MATURANA, 2002), que é o
reconhecimento do outro como legítimo outro na convivência, da negação da competição,
que descaracteriza o humano (MATURANA, 2002). A educação ambiental, nesse contexto,
como ato crítico-político de transformação social, convida e mobiliza ao processo de
reconhecimento do mundo que é habitado, sendo que esse estado de coisas não é, mas está
sendo (FREIRE, 1996). Logo, pode ser modificado.
Na última parte do livro - “A humanidade que pensamos ser” - o autor segue sua
narrativa dando ênfase ao conceito de Antropoceno, que segundo ele “*...+ tem um sentido
incisivo sobre a nossa existência, a nossa experiência comum, a ideia do que é humano. O
nosso apego a uma ideia fixa de paisagem da Terra e de humanidade é a marca mais
profunda do Antropoceno” (KRENAK, 2019, p. 58). O clamor de Krenak é para não desistir e
despertar, pois, inicialmente, os povos indígenas estavam ameaçados de vida ou de viver
conforme os sentidos atribuídos por suas culturas. Agora, contudo, todos estão diante da
Terra não suportar os vorazes desejos dos “grupos humanizados”. Segundo ele, “o fim do
mundo talvez seja uma breve interrupção de um estado de prazer extasiante que a gente não
quer perder” (KRENAK, 2019, p. 60).
Para Krenak, pensar em um outro mundo significa imaginar uma reconfiguração das
relações e dos espaços, em especial daquelas estabelecidas com a natureza. É aqui,
sobretudo, que a educação ambiental encontra seu território de reflexão e ação, podendo,

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conforme Henning (2019, p. 765), “*...+ contribuir com um olhar problematizador a respeito
das nossas heranças”. Afinal, “*...+ o futuro do único lugar onde a vida é conhecida é
determinado pelas ações dos seres humanos. No entanto, o poder que os humanos exercem
é diferente de qualquer outra força da natureza, porque é reflexivo e, portanto, pode ser
usado, retirado ou modificado” (LEWIS; MASLIN, 2015, p. 178; tradução e grifo nosso).
Para finalizar, nas palavras do autor, “não tem fim do mundo mais iminente do que
quando você tem um mundo do lado de lá do muro e um do lado de cá, ambos tentando
adivinhar o que o outro está fazendo” (KRENAK, 2019, p. 62). Diante das emergências
construídas, alguns questionamentos para suscitar reflexões no campo da educação
ambiental: “onde aterrar?”; “Devemos continuar alimentando grandes sonhos de evasão ou
começamos a buscar um território que seja habitável para nós e nossos filhos?”, questiona
Latour (2020, p. 14-15); Rumo ao abismo ou rumo à metamorfose, uma outra ou nova via
para o futuro da humanidade?, convites de Morin (2015); “Por que tanto medo assim de
uma queda se a gente não fez nada nas outras eras senão cair?”, indaga Krenak (2019, p. 62).
A partir disso, fica o convite ao leitor para que aprecie a obra de Ailton Krenak e
para que se deixe provocar pelos questionamentos aventados.

Referências
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo:
Paz e Terra, 1996.

HENNING, Paula C. Resistir ao presente: tensionando heranças modernas para pensar a


Educação Ambiental. Ciênc. Educ., Bauru, v. 25, n. 3, p. 763-781, 2019. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/ciedu/v25n3/1516-7313-ciedu-25-03-0763.pdf. Acesso em: 19
mar. 2021.

LATOUR, Bruno. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. 1. ed. Rio
de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

LEFF, Enrique. Epistemologia Ambiental. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2010.

LEWIS, Simon L; MASLIN, Mark A. Defining the Anthropocene. Nature, 519, 171-180, 2015.
Disponível em: https://www.nature.com/articles/nature14258. Acesso em: 12 jul. 2021.

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MATURANA, Humberto. Emoção e Linguagem na Educação e na Política. 3º reimp. Belo
Horizonte: UFMG. 2002.

MENDES, Michel. A condição humana no Antropoceno: princípios educativos para


horizontes legítimos de convivência. 2019. 111 f. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-
graduação em Educação, Área do Conhecimento de Humanidades. Universidade de Caxias do
Sul, Caxias do Sul, 2019. Disponível em:
https://repositorio.ucs.br/xmlui/handle/11338/5110?locale-attribute=es. Acesso em: 12 jul.
2021.

MORIN, Edgar. A via para o futuro da humanidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2015.

Submetido em: 20-03-2021.


Publicado em: 20-08-2021.

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