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resenha

Futuro e ancestralidade em Ailton Krenak

KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022 (128 págs.).

FELIPE FIGUEIRA*

Nos termos da reportagem: “A suspeita é


de que o réptil tenha ficado preso na
estrutura ao se abrigar em baixo do bote.
De acordo com a Assessoria de Imprensa
da Prefeitura de Porto Rico, o corpo do
animal não apresentava sinais de
violência e os moradores mais antigos,
que presenciaram o fato, acreditam que o
jacaré morreu afogado.” (Portal da
Cidade Loanda, 2023).
O que o parágrafo anterior tem a ver com
“Futuro ancestral”, livro de Ailton
Krenak, publicado em dezembro de
2022? Tudo, afinal, a grande
preocupação do pensador e líder
indígena é com a natureza, algo patente
também em seus outros livros, “Ideias
para adiar o fim do mundo” (2019) e “A
vida não é útil” (2020). No caso, o jacaré
foi morto em razão de uma embarcação.
Um jacaré morreu afogado.
Ao escrever essa resenha, em janeiro de
2023, li algo que me entristeceu: um Em “Futuro ancestral”, cujo título soa
jacaré, animal incomum em minha paradoxal, se vê uma defesa da vida,
região, morreu afogado em Porto Rico, sendo que essa, se for pensada em termos
município paranaense a 170 quilômetros de futuro e progresso, padecerá – como
de Maringá, e que é conhecido pelas tem padecido. Para Krenak, a visão que
praias que atraem milhares de pessoas. a humanidade deveria adotar é outra, o

*
FELIPE FIGUEIRA é professor no Instituto Federal do Paraná (IFPR) campus Paranavaí;
Doutor em Educação pela UNESP de Marília e Pós-Doutor em História pela Universidade Federal de Ouro
Preto (UFOP).

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que faz com que o pensador priorize o conteúdos. Que professor pode se dar
“som das águas” e o “ritmo da terra” em esse “título” se não educar? Nesse
contraposição ao som das cidades e de sentido, as palavras de Krenak acima
sua robotização da vida. É assim que destacadas se encaixam como uma luva
Krenak inicia a presente obra: “Os rios, para a defesa da educação presencial. Por
esses seres que sempre habitaram os outro lado, ainda na seara das críticas, a
mundos em diferentes formas, são quem educação, uma vez mais, é criticada pelo
me sugerem que, se há futuro a ser pensador, porque, em suas palavras,
cogitado, esse futuro é ancestral, porque tantas vezes ela tolhe a potência criativa,
já estava aqui.” (KRENAK, 2022, p. 11). especialmente a infantil,
Para quem leu as demais obras de formando/formatando.
Krenak, a expectativa por um novo Para quem ama a educação e por ela vive,
trabalho é sempre grande. O que ele trará incomoda ouvir as palavras de Krenak,
de novo? Qual som da natureza ele nos mas, daí a jogá-las fora é um absurdo,
fará ouvir dessa vez? Em um misto de pelo contrário, é preciso ouvi-las. Não
ansiedade e calafrio, comprei “Futuro custa lembrar, por exemplo, a crítica de
ancestral” assim que disponibilizado Pink Floyd à educação, na clássica
pela editora. Ansiedade porque ler um música “Another brick in the wall”, que
filósofo profundo é sempre um prazer e se assemelha às críticas de Krenak.
um desafio; e um calafrio porque Krenak Porém, esmiuçando essa dimensão
não alivia em suas críticas. crítica, com um fino trato pedagógico,
É no universo das críticas feitas pelo cabe trazer as palavras de Daniel Pennac,
indígena que se encontram as destinadas em “Diário de Escola”, e Jan
à educação. Como professor, elas me Masschelein e Maarten Simons, na obra
afetam em especial. Krenak declara: “Em defesa da escola: uma questão
pública”, que, sob certo ângulo, se
Tenho percebido que estou me contrapõem às do líder indígena.
expondo demais, abusado dessa
tecnologia, e observado que ela pode Os professores que me salvaram – e
nos induzir a uma grande ilusão de que fizeram de mim um professor –
resultado, de eficácia. Você se não eram formados para isso. Eles
dedica a esse ambiente por horas a não se preocuparam com as origens
fio e acha que está movendo alguma da minha enfermidade escolar. Eles
coisa, mas na verdade podemos ficar não perderam tempo em buscar as
ali a vida inteira e não mover nada. causas nem em me passar sermões.
(KRENAK, 2022, p. 48-49). Eles eram adultos confrontados com
adolescentes em perigo. Eles me
Nos anos mais duros da pandemia de disseram que havia urgência. Eles
Covid-19, 2020 e 2021, tema esse mergulharam. Perderam-me.
também explorado por Krenak, tivemos Mergulharam de novo, dia após dia,
no máximo ensino, não educação. Na mais e mais... Acabaram me tirando
verdade, tanto quanto possível, também de lá. E muitos outros, comigo. Eles
tivemos educação, mas longe de ser a literalmente nos resgataram. Nós
ideal ou a praticada. Para efeitos de lhes devemos a vida. (PENNAC,
2008, p. 33).
visualização, enxergo ensino como a
parte de conteúdos, espécie de educação, Em matéria de assassinato, é bom
uma vez que esta, aqui, é vista como lembrar que, uma vez deduzidos os
gênero, que envolve a pessoalidade, o ataques à mão armada, as rixas na
cuidado, o olhar, o corpo, e, também, os via pública, os crimes hediondos e
os acertos de conta entre grupos

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rivais, cerca de 80% dos crimes de representar, nada nos propor, queríamos
sangue têm como quadro o ambiente não ter futuro, não queríamos ser úteis
familiar. É sobretudo em suas casas para nada, confortavelmente estendidos
que os homens se matam uns aos no limiar do presente – e estávamos.
outros, sob os seus tetos, na
Como éramos felizes!” (NIETZSCHE,
fermentação secreta de seus lares, no
coração de sua própria miséria.
2003, p. 58-59). Masschelein e Simons
Fazer passar a escola por um lugar (2019, p. 25), no trabalho já citado,
gerador de crimes é, em si, um crime também destacam a escola (skholé)
insano contra a escola. (PENNAC, enquanto lugar do “tempo livre”,
2008, p. 192). “adiamento” e do “descanso”, nos
termos nietzschianos, de inutilidade.
Basta um professor – um só! – para
nos salvar de nós mesmos e nos Krenak, segundo a minha compreensão,
fazer esquecer dos outros. é um pensador que vai na direção da
(PENNAC, 2008, p. 205). inutilidade, aqui vista como algo
fantástico, quase mágico, que se opõe ao
A escola cria igualdade
utilitarismo e ao capitalismo. Como
precisamente na medida em que
constrói o tempo livre, isto é, na desprezar, então, as críticas de Krenak?
medida em que consegue, Impossível.
temporariamente, suspender ou Além do apelo educacional, Krenak
adiar o passado e o futuro, criando, também cuidou, em poucas, mas
assim, uma brecha no tempo linear. profundas palavras, de tratar de temas
O tempo linear é o momento de
essenciais para a vida, o que o faz por
causa e efeito: “Você é isso, então
você tem que fazer aquilo”, “você meio de cinco capítulos: “Saudações aos
pode fazer isso, então você entra rios”, “Cartografias para depois do fim”,
aqui”, “você vai precisar disso mais “Cidades, pandemias e outras
tarde na vida, então essa é a escolha geringonças”, “Alianças afetivas”, e “O
certa e aquela é a matéria coração no ritmo da terra”. E que temas
apropriada”. Romper com esse seriam esses? A natureza, as cidades, as
tempo e lógica se resume a isso: a pandemias, a cidadania (e a fundamental
escola chama os jovens para o tempo “florestania”), a economia, dentro
presente (“o presente do indicativo” outros. Tudo é dito de modo cuidadoso e
nas palavras de Pennac) e os libera visceral, fruto de décadas de reflexão.
tanto da carga potencial de seu
Não se trata de eruditismo, antes, de
passado quanto da pressão potencial
de um futuro pretendido planejado preocupação com a vida em seus
(ou já perdido). (MASSCHELEIN mínimos detalhes. É por causa dessa
& SIMONS, 2019, p. 36). preocupação com detalhes que não são
mínimos que eu pude sentir semelhanças
E por que eu disse que também era entre Krenak e Manoel de Barros, pois
preciso ouvir as críticas de Krenak? este criou poemas cheios de vida,
Porque é evidente que a educação, ou, olhando para as coisas minúsculas como
melhor dizendo, um tipo de educação, grandezas: “O homem se arrasta/ de
não forma, ou, não educa para a vida, árvore/ escorre de caracol/ nos vergéis/
antes, torna tudo abstrato e despreza a do poema.” (BARROS, 2010. p. 33).
imaginação. Nietzsche, em sua época de Abaixo destaco alguns trechos que
estudante, criou uma sociedade, a trazem a potência do pensamento de
Germânia, em que quanto mais inútil Krenak:
alguém fosse, melhor seria: “Não
queríamos significar nada, nada

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Eu acho engraçado que tem gente não humanos. (KRENAK, 2022, p.
que aceita com naturalidade 101).
considerar um rio sagrado desde que
ele esteja lá na Índia, e saiba de cor
“Futuro ancestral” é um livro que deve
que ele se chama Ganges, enquanto ser lido em qualquer curso de graduação,
ousa saquear o corpo do rio ao lado, em qualquer pós-graduação, na verdade,
cujo nome desconhece, para fazer deve ser lido por todo aquele que quiser
resfriamento de ciclos industriais e ir além do pré-estabelecido. Sua
outros absurdos. (KRENAK, 2022, linguagem é simples e direta, traz
p. 20). histórias que mexem com o leitor e, por
A urbanização do Brasil é tardia. isso, quem sabe, têm a capacidade para
Ainda nas décadas de 1960 e 1970, provocar mudanças. Para retomar uma
havia campanhas para as pessoas imagem de “Ideias para adiar o fim do
saírem do campo e irem para os mundo”, “Futuro ancestral” é um
centros urbanos, o que acarretou um “paraquedas colorido” (KRENAK,
grande êxodo rural. Muita gente saiu 2020, p. 63).
da zona rural para liberar a área para
o agronegócio e foi passar fome nas
cidades. Ainda segundo Viveiros de Referências
Castro, o Brasil se especializou na
BARROS, Manoel. Gramática expositiva do
produção de pobres. Nossa
chão. São Paulo: Leya, 2010.
tecnologia para produzir pobreza é
mais ou menos assim: a gente pega KRENAK, Krenak. Futuro ancestral. São
quem pesca e colhe frutos nativos, Paulo: Companhia das Letras, 2022.
tira do seu território e joga nas _______________. Ideias para adiar o fim do
periferias da cidade, onde nunca mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
mais vai poder pegar um peixe para Jacaré aparece morto em orla de Porto Rico.
comer, porque o rio que passa no Acesso em 11 de janeiro de 2023. Disponível em:
bairro está podre. Se você tira um https://loanda.portaldacidade.com/noticias/regia
Yanomami da floresta, onde ele tem o/jacare-aparece-morto-em-orla-de-porto-rico-
água, alimento e autonomia, e bota 5701
em Boa Vista, isso é produção de MASSCHELEIN, Jan & SIMONS, Maarten. Em
pobreza. Se expulsa o pessoal da defesa da escola: uma questão pública. Belo
Volta Grande do Xingu para fazer Horizonte: Editora Autêntica, 2019.
uma hidrelétrica, mandando para um
beiradão de Altamira, você NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Sobre o
futuro dos nossos estabelecimentos de ensino.
convertendo-o em pobre.
Trad. de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de
(KRENAK, 2022, p. 56-57). Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003.
Nossa sociabilidade tem que ser PENNAC, Daniel. Diário de Escola. Trad. de
repensada para além dos seres Leny Werneck. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.
humanos, tem que incluir abelhas,
tatus, baleias, golfinhos. Meus
grandes mestres da vida são uma Recebido em 2023-01-11
constelação de seres – humanos e Publicado em 2023-03-13

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