Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Eu me lembro de quando tudo começou. De quando o mundo decidiu treinar meu espírito
indefeso, uma vida atrás, uma outra realidade, um outro mundo, um outro tudo.
De quando um jovem teve tudo, teve sorte, talento e trabalhou duro. De quando em si
mesmo acumulou todo que aquela realidade tinha a oferecer.
De um mortal fui aos poucos me tornando um lorde, valorizando apenas o poder que me era
concedido. De um lord vídeo um rei. De um rei imperador e de imperador me tornei um
Deus.
Foram séculos vagando por uma imensidão sem fim até chegar à prisão do Arbítrio.
As correntes que o prendiam a um poste poderia ser rompidas facilmente, os fios que
sugavam sua vida, os cortes que compartilhavam seu poder com o mundo, qualquer um
desses poderiam ser resolvidos facilmente se ele assim o desejasse. Mas coisa que
realmente prendia o ser mais forte do universo eram os seus próprios ideais.
A verdadeira liberdade existe dentro do seu próprio poder. Da sua capacidade de ser
inconsequente, de ser absoluto e ser inabalável. Minha liberdade é não ser livre, minha
vontade é não ter vontade e meu desejo é não ter desejo. É também liberdade abrir mão de
si, para que todos outros sejam livres.
Eu não podia para de olhar para o ser mais poderoso do universo para saber que aquele
paradoxo deveria ser superado algum dia.
Um dia a sua liberdade verdadeira vai chegar, mas mantenha-se rei, guiando todo mundo
com sua lei, permitindo que cada um faça as próprias escolhas.
Antes de partir na minha jornada final eu precisava moldar meus princípios, meus ideias. O
Arbítrio me ensinou que a liberdade era o poder de escolher, escolhendo até mesmo não
ser livre. Eu quero escolher, mas quero saber como fazer isso.
– Pintor, achei que chegasse semana que vem. – Disse ele, um dos ápices desse mundo,
incapaz de organizar a própria agenda.
– Posso entrar? – Ele era um ser tão peculiar, era melhor perguntar, mesmo que estivesse
me olhando com a porta aberta em um gesto convidativo.
– Justamente, nunca se sabe o que vai acontecer, por isso estou aqui.
Enquanto me guiava ou se perdia comigo pela própria bagunça ele começou a me explicar.
Enquanto andávamos pela casa, paredes mudavam de lugar e portas surgiam. Não foi
surpresa nenhuma quando me vi dentro de uma adega. Os ciclos e suas bebidas.
– Mas como saber qual a melhor ordem? Como saber se eu vou precisar de tijolo ou telha
antes de saber se vou fazer uma parede ou um telhado.
A adega era perfeitamente organizada. Os vinhos organizados por ano, nome, cor, tipo,
uva, região. Tudo em um lugar perfeito.
— A ordem não é o importante, não há ordem perfeita. Importante é sempre lembrar que
pode voltar ao caos e reconstruir tudo de novo.
Juro que vi ele sorrir naquele momento, como se pelos seus olhos tivessem passado a
visão cômica de alguém construindo uma parede de telhas.
— E qual a proporção perfeita entre ordem e caos? — Perguntei enquanto ele colocava
apenas uma taça de vinho. Ao piscar, me vi do lado de fora, olhando a casinha pacata de
quem organiza as três dimensões e o tempo de nosso universo.
Não tive como não sorrir, a visão cômica de uma parede inteirinha feita de telhas como
quem dizia "não tenha medo de tentar."
Poder escolher, sem medo de tentar. Gravei apenas isso na minha alma antes de me lançar
nesta jornada. Abandonei a alcunha de pintor e de ciclo do fim. Lancei-me em mundos,
inventei lendas sobre mim. O ciclo da ordem, e seu caos, o ciclo da liberdade e a sua
prisão, o ciclo do fim e seus recomeços.