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Qual é a diferença entre pornografia e erotismo?

(https://veja.abril.com.br/blog/sobre-palavras/qual-e-a-diferenca-entre-pornografia-e-erotismo/)
Por *Sérgio Rodrigues* - Atualizado em 31 jul 2020, 04h53 - Publicado em 2 dez 2013, 13h24
“Tenho duas dúvidas em uma. De onde vem a palavra pornografia? E qual a diferença entre pornografia e erotismo?”
(Isaías Marques)

A primeira resposta à consulta de Isaías é simples. A segunda, infinitamente complicada.


Pornografia é um termo que nos chegou em fins do século XIX (dicionarizado pela primeira vez em 1899
por Cândido de Figueiredo, segundo a datação do Houaiss) do francês /pornographie/.
Esta palavra tinha nascido cerca de um século antes, em torno de 1800, inicialmente com um
sentido sisudo: estudo (de saúde pública) sobre a prostituição. Foi em meados do século XIX que passou
a ser empregada para designar a arte, em especial aquela produzida na antiguidade – a princípio a pintura
–, que retratava temas obscenos. A raiz do termo francês estava plantada no grego, língua que tinha
palavras como /pórne/, “prostituta”, e /pórnos/, “que se prostitui”, além de /pornographos/, “autor de
escritos sobre a prostituição”. Prostíbulo era /porneion/. Todos esses termos traziam embutida a ideia de
comércio, de compra e venda. Há etimologistas que, cavando mais fundo, veem neles a raiz indo-europeia
/per/, “vender”, a mesma que está presente no latim /pretium/, “preço”. Curiosamente, o vocabulário do
latim clássico (conforme registrado pelo referencial dicionário Saraiva) não tinha nenhuma palavra
derivada de /pórne/. Em seu lugar havia /prostituta/, também um vocábulo de origem comercial, que em
seu sentido literal queria dizer “(mercadoria) exposta”.
No verbete /pornography/, o dicionário etimológico de Douglas Harper oferece um roteiro sucinto
da expansão semântica que levou a pornografia a se tornar o que é hoje: em 1859 o termo já era
empregado (de forma crítica) em referência a certos romances franceses da época; no início do século
XX, chegou às artes visuais contemporâneas.
Quanto ao erotismo, trata-se de uma palavra que também tem origem grega: /erotikós/, que fez
escala no latim /eroticus/ antes de desembarcar aqui ainda no século XVI, significava “que tem amor,
paixão ou desejo intenso”. Termo derivado de Eros, deus grego do amor (Cupido na mitologia romana),
nunca teve a carga negativa das palavras derivadas de /porné/. Também se referia ao desejo sexual, mas
aquele ligado ao amor e não ao comércio. Assim chegamos à segunda dúvida de Isaías. No campo da
indústria cultural, que é aquele em que tais palavras conservam grande relevância no mundo
contemporâneo, nunca será pacífica a fronteira entre o erotismo e a pornografia. O senso comum costuma
traçá-la nas cenas de sexo explícito, que esta teria e aquele não, mas o critério é enganoso: se o erótico
também pode ser explícito, nem sempre o pornográfico o é. Como princípio, pode-se dizer que é erótico
um filme, livro ou pintura que dê a seu tema um tratamento artístico (a arte aqui cumpre o mesmo papel
que o amor cumpria na distinção original), enquanto a pornografia está interessada apenas em excitar o
freguês – e em ganhar dinheiro com isso. Ocorre, claro, que todo tipo de complicação moral e estética
entra em cena na hora de separar uma coisa da outra. O que é erótico para um pode ser – e
frequentemente é – pornográfico para outro.

1. BERNARDO GUIMARÃES PANTAGRUÉLICO

O Elixir do pajé
Que tens, caralho, que pesar te oprime
que assim te vejo murcho e cabisbaixo
sumido entre essa basta pentelheira,
mole, caindo pela perna abaixo?

Nessa postura merencória e triste


para trás tanto vergas o focinho,
que eu cuido vais beijar, lá no traseiro,
teu sórdido vizinho!
Que é feito desses tempos gloriosos
em que erguias as guelras inflamadas,
na barriga me dando de contínuo
tremendas cabeçadas?

Qual hidra furiosa, o colo alçando,


co'a sanguinosa crista açoita os mares,
e sustos derramando por terras e por mares,
aqui e além atira mortais botes,
dando o co'a cauda horríveis piparotes,
assim tu, ó caralho,
erguendo o teu vermelho cabeçalho,
faminto e arquejante,
dando em vão rabanadas pelo espaço,
pedias um cabaço!

Um cabaço! Que era este o único esforço,


única empresa digna de teus brios;
porque surradas conas e punhetas
são ilusões, são petas,
só dignas de caralhos doentios.

Quem extinguiu-te assim o entusiasmo?


Quem sepultou-te nesse vil marasmo?
Acaso pra teu tormento,
indefluxou-te algum esquentamento?
Ou em pífias estéreis te cansaste,
ficando reduzido a inútil traste?
Porventura do tempo a destra irada
quebrou-te as forças, envergou-te o colo,
e assim deixou-te pálido e pendente,
olhando para o solo,
bem como inútil lâmpada apagada
entre duas colunas pendurada?

Caralho sem tensão é fruta chocha,


sem gosto nem cherume,
lingüiça com bolor, banana podre,
é lampião sem lume
teta que não dá leite,
balão sem gás, candeia sem azeite.
Porém não é tempo ainda
de esmorecer,
pois que teu mal ainda pode
alívio ter.
Sus, ó caralho meu, não desanimes,
que ainda novos combates e vitórias
e mil brilhantes glórias
a ti reserva o fornicante Marte,
que tudo vencer pode co'engenho e arte.
Eis um santo elixir miraculoso
que vem de longes terras,
transpondo montes, serras,
e a mim chegou por modo misterioso.

Um pajé sem tesão, um nigromante


das matas de Goiás,
sentindo-se incapaz
de bem cumprir a lei do matrimônio,
foi ter com o demônio,
a lhe pedir conselho
para dar-lhe vigor ao aparelho,
que já de encarquilhado,
de velho e de cansado,
quase se lhe sumia entre o pentelho.

À meia-noite, à luz da lua nova,


co'os manitós falando em uma cova,
compôs esta triaga
de plantas cabalísticas colhidas,
por sua próprias mãos às escondidas.
Esse velho pajé de pica mole,
com uma gota desse feitiço,
sentiu de novo renascer os brios
de seu velho chouriço!

E ao som das inúbias,


ao som do boré,
na taba ou na brenha,
deitado ou de pé,
no macho ou na fêmea
de noite ou de dia,
fodendo se via
o velho pajé!

Se acaso ecoando
na mata sombria,
medonho se ouvia
o som do boré
dizendo: "Guerreiros,
ó vinde ligeiros,
que à guerra vos chama
feroz aimoré",
- assim respondia
o velho pajé,

brandindo o caralho,
batendo co'o pé:
- Mas neste trabalho,
dizei, minha gente,
quem é mais valente,
mais forte quem é?
Quem vibra o marzapo
com mais valentia?
Quem conas enfia
com tanta destreza?
Quem fura cabaços
com gentileza?"

E ao som das inúbias,


ao som do boré,
na taba ou na brenha,
deitado ou de pé,
no macho ou na fêmea,
fodia o pajé.

Se a inúbia soando
por vales e outeiros,
à deusa sagrada
chamava os guerreiros,
de noite ou de dia,
ninguém jamais via
o velho pajé,
que sempre fodia
na taba na brenha,
no macho ou na fêmea,
deitando ou de pé,
e o duro marzapo,
que sempre fodia,
qual rijo tacape
a nada cedia!

Vassouras terrível
dos cus indianos,
por anos e anos,
fodendo passou,
levando de rojo
donzelas e putas,
no seio das grutas
fodendo acabou!
E com sua morte
milhares de gretas
fazendo punhetas
saudosas deixou...

Feliz caralho meu, exulta, exulta!


Tu que aos conos fizeste guerra viva,
e nas guerras de amor criaste calos,
eleva a fronte altiva;
em triunfo sacode hoje os badalos;
alimpa esse bolor, lava essa cara,
que a Deusa dos amores,
já pródiga em favores
hoje novos triunfos te prepara,
graças ao santo elixir
que herdei do pajé bandalho,
vai hoje ficar em pé
o meu cansado caralho!

Sus, caralho! Este elixir


ao combate hoje tem chama
e de novo ardor te inflama
para as campanhas do amor!
Não mais ficará à-toa,
nesta indolência tamanha,
criando teias de aranha,
cobrindo-te de bolor...

Este elixir milagroso,


o maior mimo na terra,
em uma só gota encerra
quinze dias de tesão...
Do macróbio centenário
ao esquecido mazarpo,
que já mole como um trapo,
nas pernas balança em vão,
dá tal força e valentia
que só com uma estocada
põe a porta escancarada
do mais rebelde cabaço,
e pode em cento de fêmeas
foder de fio a pavio,
sem nunca sentir cansaço...

Eu te adoro, água divina,


santo elixir da tesão,
eu te dou meu coração,
eu te entrego a minha porra!
Faze que ela, sempre tesa,
e em tesão sempre crescendo,
sem cessar viva fodendo,
até que fodendo morra!
2. EROTISMO ESCATOLÓGICO: GLAUCO MATTOSO

Do site http://glaucomattoso.sites.uol.com.br/quem.htm,
QUEM É: Glauco Mattoso é poeta, ficcionista, ensaísta e articulista em diversas mídias. Pseudônimo de
Pedro José Ferreira da Silva (paulistano de 1951), o nome artístico trocadilha com "glaucomatoso"
(portador de glaucoma, doença congênita que lhe acarretou perda progressiva da visão, até a cegueira
total em 1995), além de aludir a Gregório de Matos, de quem é herdeiro na sátira política e na crítica de
costumes.
Após cursar biblioteconomia (na Escola de Sociologia e Política de São Paulo) e letras vernáculas
(na USP), ainda nos anos 70, participou, entre os chamados "poetas marginais", da resistência cultural à
ditadura militar, época em que, residindo temporariamente no Rio, editou o fanzine poético-panfletário
Jornal DoBrasil (trocadilho com o Jornal do Brasil e com o formato dobrável do folheto satírico) e
começou a colaborar em diversos órgãos da imprensa alternativa, como Lampião (tablóide gay) e Pasquim
(tablóide humorístico), além de periódicos literários como o SUPLEMENTO DA TRIBUNA e as revistas
ESCRITA, INÉDITOS e FICÇÃO.
Durante a década de 80 e o início dos 90 continuou militando no periodismo contracultural, desde a
HQ (gibis CHICLETE COM BANANA, TRALHA, MIL PERIGOS) até a música (revistas SOMTRÊS,
TOP ROCK), além de colaborar na grande imprensa (crítica literária no JORNAL DA TARDE, ensaios
na STATUS e na AROUND), e publicou vários volumes de poesia e prosa.
Na década de 90, com a perda da visão, abandonou a criação de cunho gráfico (poesia concreta,
quadrinhos) para dedicar-se à letra de música e à produção fonográfica, associado ao selo independente
Rotten Records.
Com o advento da internet e da computação sonora, voltou, na virada do século, a produzir poesia
escrita e textos virtuais, seja em livros, seja em seu sítio pessoal ou em diversas revistas eletrônicas (A
ARTE DA PALAVRA, BLOCOS ON LINE, FRAUDE, VELOTROL) e impressas (CAROS AMIGOS,
OUTRACOISA). Jamais deixou, entretanto, de explorar temas polêmicos, transgressivos ou politicamente
incorretos (violência, repugnância, humilhação, discriminação) que lhe alimentam a reputação de "poeta
maldito" e lhe inscrevem o nome na linhagem dos autores fesceninos e submundanos, como Bocage,
Aretino, Apollinaire ou Genet.
Em colaboração com o professor Jorge Schwartz (da USP) traduziu a obra inaugural de Jorge Luis
Borges, trabalho que lhes valeu um prêmio Jabuti em 1999. Nesse terreno bilíngüe GM tem-se dedicado a
outros autores latino-americanos, como Salvador Novo e Severo Sarduy, e tem sido traduzido por colegas
argentinos, mexicanos e chilenos.
Segundo Pedro Ulysses Campos, "A poesia de Glauco Mattoso pode ser dividida, cronologica e
formalmente, em duas fases distintas: a primeira seria chamada de FASE VISUAL, enquanto o poeta
praticava um experimentalismo paródico de diversas tendências contemporâneas, desde o modernismo até
o underground, passando, principalmente, pelo concretismo, o que privilegiava o aspecto gráfico do
poema; a segunda fase seria chamada de FASE CEGA, quando o autor, já privado da visão, abandona os
processos artesanais, tais como o concretismo dactilográfico, e passa a compor sonetos e glosas, onde o
rigor da métrica, da rima e do ritmo funciona como alicerce mnemônico para uma releitura dos velhos
temas mattosianos (a fealdade, a sujidade, a maldade, o vício, o trauma, o estigma), reaproveitando
técnicas barrocas e concretistas (paronomásia, aliteração, eufonia e cacofonia dos ecos verbais) de mistura
com o calão e o coloquialismo que sempre caracterizaram o estilo híbrido do autor. A fase visual vai da
década de 70 até o final dos anos 80; a fase cega abre-se em 1999, com a publicação dos primeiros livros de
sonetos."
Um estudável "glossário mattosiano" incluiria necessariamente algumas características de sua obra,
identificadas e rotuladas pelo próprio GM:
DATILOGRAFFITI: Assim o autor designa a linguagem chula dos grafitos de banheiro
transportada para o papel através da máquina de escrever, esta empregada também como ferramenta de
poesia visual — processo que resultou na diagramação artesanal das páginas do JORNAL DOBRABIL,
cujos ícones alfabéticos, caricaturando "fontes" ou "famílias" tipográficas, foram batizados por Augusto
de Campos como "dactylogrammas".
COPROFAGIA: Assim o autor designa sua estratégia literária na época em que editava o JORNAL
DOBRABIL, ou seja, uma releitura escatológica da "antropofagia" de Oswald de Andrade. A concepção
de GM foi explicada, no livro MANUAL DO PODÓLATRA AMADOR, nestes termos: "uma proposta
estética que credenciava meu trabalho, a COPROFAGIA. Fiz a apologia da merda em prosa & verso, de
cabo a rabo. Na prática eu queria dizer pra mim mesmo e pros outros: 'Se no meio dos poucos bons tem
tanta gente fazendo merda e se autopromovendo ou sendo promovida, por que eu não posso fazer a dita
propriamente dita e justificá-la?'. A justificativa era a teoria da ANTROPOFAGIA oswaldiana. Já que a
nossa cultura (individual & coletiva) seria uma devoração da cultura alheia, bem que podia haver uma
nova devoração dos detritos ou dejetos dessa digestão. Uma reciclagem ou recuperação daquilo que já foi
consumido e assimilado, ou seja, uma sátira, uma paródia, um plágio descarado ou uma citação apócrifa.
Essa postura 'intertextual' agradou a crítica, e cheguei a ser qualificado como um 'enfant terrible' de
Oswald de Andrade." Quem qualificou foi o professor Jorge Schwartz, num ensaio sobre o JORNAL
DOBRABIL. Segundo outro professor, Steven Butterman, doutorado nos Estados Unidos com uma tese
sobre GM, "Mattoso's preoccupations begin where Oswald's end: if the anthropophagist has eaten
somebody, our cannibal will undoubtedly experience a bowel movement."
PODORASTIA: Assim o autor designa sua obsessiva atração pelo pé masculino como objeto sexual
e estético, ou antes, antiestético, já que se trata de pés grandes ou chatos, sujos ou malcheirosos. No livro
MANUAL DO PODÓLATRA AMADOR e em centenas de poemas GM faz referências a termos
específicos para o fetichismo dos pés, mas particularmente no soneto "Ensaístico" cunha o qualificativo
"podorasta" que ser-lhe-ia aplicável, bem como o adjetivo "podosmófilo", que aparece no soneto
"Bizarro". Confira os referidos poemas acessando os tópicos "Erotismo e pornografia" e "Forma e
conteúdo" no TEMÁRIO MATTOSIANO:
PORNOSIANISMO: Assim o autor designa, na poesia, o apuro formal como suporte do impuro
conteúdo, ou, como diria o folclorista Miguel de Barros Toledo, a avacalhação do soneto camoniano,
lapidado na forma e dilapidado no fundo, este "mais imundo que a putaria de Bocage". Segundo o
professor Butterman, "Once again, Mattoso picks up where Bocage left off."
XIBUNGUISMO: Assim o autor designa a temática recorrentemente autoflagelatória que adota ao
glosar motes correntes ou desentranhados por ele mesmo de versos alheios. Sendo o glosismo, em sua
vertente mais fescenina (apelidada "poesia de bordel"), um gênero tão tradicional quanto a poesia de
cordel, que não comporta inovações na forma, GM introduz-lhe a inovação na voz poética, que encarna
um inusitado papel de anti-herói. No dizer de Barros Toledo, GM envenena a glosa "com sua visão
negativa da cegueira e sua descarada inclinação para a inferioridade assumida (contrariando todas as
tendências a dignificar os desfavorecidos) e, o que é pior, desafiando o mais arraigado dos valores que
honram a reputação de cantadores e cordelistas: a virilidade (apelidada, no caso, de 'cabramachismo').
Que o repertório dos repentistas nunca se pejou de colocar em dúvida a masculinidade do adversário,
disso o cancioneiro abunda em exemplos. Mas colocar-se, na primeira pessoa, como vítima de abuso
sexual desde a infância, resignar-se diante da humilhação continuada e ainda alardear masoquisticamente
sua condição de agradado na degradação cumulativa do cego estuprado — isso é coisa inusitada na
cultura nordestina, rural ou urbana, árida ou polida."
BARROCKISMO: Assim o autor designa, no soneto, o aspecto mais abrangente envolvendo os
diversos contrastes formais e conteudísticos de sua caudalosa produção. Na análise do professor Pedro
Ulysses Campos, "Independentemente dos reflexos neobarrocos entre as literaturas latino-americanas,
GM tem sua própria interpretação do que seja uma estética barroca na poesia: conciliando o esmero
formal (com seus malabarismos léxicos, semânticos e fonéticos) e as transgressões temáticas da
contracultura, o poeta rotula de 'barrockismo' a transgênese de linguagens entre o underground e o
construtivismo estilístico. Não apenas no livro GELÉIA DE ROCOCÓ: SONETOS BARROCOS (1999),
mas em toda sua safra de sonetos, GM parafraseia ou relê procedimentos preciosistas que, ao
contrastarem com a vulgaridade da matéria trabalhada, desempenham uma das características mais
intrínsecas ao barroco: o paradoxo."
TRANSFICCIONISMO: Assim o autor designa, numa parcela de sua produção sonetística, a
paráfrase de contos alheios ou a releitura, em verso, de consagrados "plots" ficcionísticos. A maior parte
dos contos "sonetizados" por GM está reunida no livro CONTOS FAMILIARES: SONETOS
REQUENTADOS. Segundo Pedro Ulysses Campos, "Ao embarcar, com armas e bagagens, na aventura
de dar forma de soneto a contos, GM toma por 'mote' argumentos já tematizados por grandes nomes
internacionais, de Mishima a Maupassant, e alguns nacionais, de Machado de Assis a Lima Barreto.
Naturalmente é apenas a sugestão da trama o que serve de estopim para os versos mattosianos, pois aquilo
que o autor batiza de 'transficcionismo' pressupõe, a par da 'transcriação' poética, um desvio — senão
total redirecionamento — do percurso narrativo. Resta sempre, como de resto na própria prosa tomada
por fonte, a imprecisa impressão de que aquela história já foi lida algures."
DESUMANISMO: Assim o autor designa sua incursão, em prosa ou verso, nos terrenos mais
socialmente incômodos e politicamente incorretos, como a tortura, o trote estudantil, o seqüestro, a ultra-
violência entre territórios do rock ou entre torcidas do futebol — temas tratados com sarcasmo e humor
negro, mas sempre evidenciando o inconformismo diante das opressões e injustiças duma suposta
"civilização". No dizer de Pedro Ulysses Campos, GM pode ser considerado um poeta engajado, mas "é
personalíssimo na maneira de abordar as misérias humanas: em seu autodenominado 'desumanismo', põe
o dedo (sujo) na ferida e infecciona as chagas com a crueza e a crueldade do livre-pensador, tão libertino
quanto libertário."
Antologia
Soneto Assumido [509]
Mattoso, que nasceu deficiente,
ainda foi currado em plena infância:
lambeu com nojo o pé; chupou com ânsia
o pau; mijo engoliu, salgado e quente.
Escravo dos moleques, se ressente
do trauma e se tornou da intolerância
um nu e cru cantor, mesmo à distância,
enquanto a luz se apaga em sua lente.
Tortura, humilhação e o que se excreta
são temas que abordou, na mais castiça
e chula das linguagens, o antiesteta.
Merece o que o vaidoso não cobiça:
um título que, além de ser "poeta",
será "da crueldade" por justiça.

Soneto Classicista (187)


Os gregos e latinos são modelo
e herança do poeta gozador.
Difícil não nos é fazer humor;
difícil é deixarmos de fazê-lo.
Partindo de Aristófanes, que fê-lo
em fase de apogeu e de esplendor,
passando a Juvenal, onde o sabor
picante em Marcial ganha cabelo...
A sátira é fatídica ao poeta.
E se me perguntarem se é difícil
fazer a poesia mais direta,
Direi que são os ossos do meu vício.
De duas, uma: ou fácil seja a meta,
ou é quase impossível nosso ofício.

Soneto beletrista (394)


Na história da poesia brasileira
Gregório, como um sátiro, desponta.
Dirceu canta Marília, que não conta.
Gonçalves Dias trepa na palmeira.

Rabelo é Zé, não tem eira nem beira.


Escravo, ao Castro Alves, vira afronta.
Bilac eleva e leva a lavra em conta.
Delfino é preso ao pé, mas mal o cheira.

Augustos são vanguarda: Alguém os siga!


Oswald e Mário apupam: Pau no apuro!
Drummond, Bandeira, ombreiam, bons de briga.

Cabral é cabra cru, cerebral, duro.


Se Piva quer viver na Grécia antiga,
Mattoso, em trevas, vive no futuro.
Manifesto obsoleto (1981)
(pros poetas ditos "sujos" que nunca
esquecem o modess e trocam de meia
de meia em meia hora)
Isso não é poesia que se escreva,
é pornografia tipo Adão & Eva:
essa nunca passa, por mais que se atreva,
do que o Adão dá e do que a Eva leva.
Quero a poesia muito mais lasciva,
com chulé na língua, suor na saliva,
porra no pigarro, mijo na gengiva,
pinto em ponto morto, xota em carne viva!
Ranho, chico, cera, era o que faltava!
Sebo é na lambida, rabo não se lava!
Viva a sunga suja, fora a meia nova!
Pelo pelo na boca, jiló com uva!
Merda na piroca cai como uma luva!
Cago de pau duro! Nojo? Uma ova!

Soneto orogenital (41)


"Fellatio" é a quintessência do prazer,
assim diz o tratado de erotismo.
Lição que humilha as fãs do feminismo,
no esforço que a mulher tem de fazer:
Chupar calada até satisfazer;
garganta mais profunda que um abismo;
e língua calejada em "balanismo",
premissas basilares vêm a ser.
No pé já muda a coisa de figura:
em vez de sebo e mijo, tem chulé,
frieira e calo, além de mais largura
Os cegos, que são bons de picolé,
superam a mulher na zona impura,
palavra de quem chupa o pau num pé.

Soneto discricionário (130)


Ouvindo "Chupa aqui!", o cego cede.
"Assim que eu gosto!", escuta, em tom de ralho.
A língua sente o gosto do caralho.
Narinas perceberam que ele fede.
Sebinho acumulado espalha, adrede,
a glande na saliva, e dá um trabalho
que a própria chupeteira, no serralho,
recusa, mesmo quando o freguês pede.
O cego, todavia, não escolhe.
Vergado, vai chupando e se engasgando,
até que a porra escorra e o gogó molhe.
Ofega e geme, em vão, de quando em quando.
Por fim, seu agressor o pau recolhe,
dizendo: "Aqui sou eu que enxergo e mando!".

Soneto oroerótico (ou oroteórico)


Segundo especialistas, a chupeta
depende da atitude do chupado:
se o pau recebe tudo, acomodado,
ou fode a boca feito uma boceta.
Pratica "irrumação" o pau que meta
e foda a boca até ter esporrado;
Pratica "felação" se for mamado
e a boca executar uma punheta.
Em ambos casos, mesma conclusão.
O esperma ejaculado na garganta
destino certo tem: deglutição.
Segunda conclusão: de nada adianta
negar que a boca sofra humilhação,
pois, só de pensar nisso, o pau levanta.

Soneto higiênico (143)


Se o orifício anal é um olho cego,
que pisca e vai fazendo vista grossa
a tudo que entra e sai, que entala ou roça,
três vezes cego sou. Que cruz carrego!
Porém não pela mão me prende o prego,
mas pela língua suja, que hoje coça
o cu dos outros, feito um limpa-fossa,
e as pregas, como esponja escrota, esfrego.
O "beijo negro" é o último degrau
desta degradação em que mergulho,
maior humilhação que chupar pau.
Sujeito-me com náusea, com engulho,
ao paladar fecal e ao cheiro mau,
e, junto com a merda, engulo o orgulho

Soneto chupeteiro (308)


A boca que coloca a voz e o canto
é a mesma que perpetra o mais nojento
e torpe gesto humano, que já enfrento
nas trevas, entre o estupro e o próprio pranto.

Tal ato é a felação. Sabe Deus quanto


um homem desce ao ponto onde me agüento!
O pênis me penetra cem por cento,
e já nem sei se chupo ou se garganto!

Pareço mentiroso, mas não minto:


embora a contragosto, vivo pronto
a dar bucal prazer a qualquer pinto.
Se julgam que é mentira, dou desconto:
até o prepúcio, sou eu que consinto;
dali ao coito fundo, aumento um ponto

Soneto utópico (287)


No fundo, o grande sonho masculino
é conseguir chupar a própria tora,
coisa que o chimpanzé faz toda hora,
e o homem tenta, em vão, desde menino.
Seja porque seu membro é pequenino,
ou porque o corpanzil não colabora,
o fato é que o machão lamenta e chora
o irônico, anatômico destino.
Parece que a utopia nua e crua
resume-se numa autofelação,
quem sabe a autofagia, que jejua..
O jeito vem a ser masturbação,
e o sonho sensual se perpetua,
enquanto a mulher crê que dá tesão.

Soneto do roto e do esfarrapado


[a G. Bush e S. Hussein]
O pênis preguiçoso e porco invade
a boca caprichosa dum viado,
e quanto mais estúpido e abusado
mais acha nesta a dócil humildade.

A língua estabelece intimidade


total com o prepúcio fimosado,
e até que o folgazão tenha gozado
a boca topa tudo que lhe agrade.

Depois do gozo, a boca cospe fora


a gosma que o sebento lhe esguichara.
Pergunta o pau: "Que nojo é esse, agora?"

A boca enjeita: "Fiz por pura tara,


mas quero algum asseio!" O pau se arvora:
"Mais sujo é quem chupou! Nem se compara!"

Soneto nojento (10)


Tem gente que censura o meu fetiche:
lamber pé masculino e o seu calçado.
Mas, só de ver no quê o povo é chegado,
não posso permitir que alguém me piche.

Onde é que já se viu ter sanduíche


de fruta ou vegetal mal temperado?
E pizza de banana? E chá gelado?
Frutos do mar? Rabada? Jiló? Vixe!

Café sem adoçar? Feijão sem sal?


Rã? Cobra? Peixe cru? Lesma gigante?
Farofa de uva passa? Isso é normal?

Quem gosta disso tudo não se espante


com minha preferência sexual:
lamber o pé e o pó do seu pisante.

Soneto substancial (861)


No corpo tanta coisa é fabricada
que quase toda a indústria ali se arrola:
o ouvido produz cera; o nariz, cola;
a pele produz óleo; o olho, pomada.

O couro cabeludo é uma avançada


fábrica de sabão; de aroma, a sola;
prepúcio é queijaria; até a cachola
se presta a criar coisa reciclada.

Guardando tudo em potes, dentro em breve


teremos nosso próprio suprimento
e contas no comércio ninguém deve.

Embora o rendimento seja lento,


não há risco de quebra nem de greve
se as glândulas trabalham cem por cento.

Soneto hindu (46)


Na Índia a felação é tão falada
que tem nos "Kama Sutra" um texto inteiro.
Lá diz que um servo, como chupeteiro,
resolve quando a fêmea não quer nada.

Me contam que na mais baixa camada


os cegos são mantidos em puteiro
e, em troca de comida ou por dinheiro,
batalham pra chupar gente abastada.

Queria fazer parte desta casta


e, além de chupar rola, ser forçado
a toda a obrigação dum pederasta:

Após ao superior o cu ter dado,


ralar a língua vil na sola gasta
e suja (Vou gozar!) de seu calçado.

Soneto putanheiro (306)


Putana, prostituta, marafona,
rameira, pistoleira, meretriz...
Além do que o sinônimo nos diz,
existe uma perita em cada zona.

Nem tudo na mulher é mera cona:


há a bunda, o seio, a rótula, o nariz...
Cliente mais exótico, feliz,
a velha zona erógena abandona.

É o caso do podólatra, que quer


o pé dela em sua boca e no seu falo,
ou pôr seu pé na boca da mulher.

Do fetichista cego já nem falo,


pois seu desejo não é pé qualquer,
mas o que tem chulé, frieira e calo

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