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A Visita Da Velha Senhora de Friedrich D
A Visita Da Velha Senhora de Friedrich D
Tradução de
JOÃO BARRENTO
´
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PERSONAGENS
Os Visitantes
Claire Zachanassian (em solteira: Wäscher), multimilionária (Armenian-Oil)
Os seus maridos nos. VII-IX
O mordomo
Toby e Roby, mastigam pastilha elástica
Koby e Loby, cegos
Os Visitados
Alfred Ill
A sua mulher
A sua filha
O seu filho
O Presidente da Câmara
O padre
O professor
O médico
O polícia
Cidadãos de Güllen
O primeiro
O segundo
O terceiro
O quarto
O pintor
Primeira mulher
Segunda mulher
A Luisinha
Os Outros
O chefe da estação
O maquinista
O revisor
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O oficial de diligências
Os importunos
Primeiro jornalista
Segundo jornalista
Repórter da rádio
Operador de câmara
Escrita em 1955
Estreada no Schauspielhaus de Zurique em 29 de Janeiro de 1956
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Primeiro Acto
O PRIMEIRO:
É o «Gudrun», Hamburgo-Nápoles.
O SEGUNDO:
Às onze e vinte e sete passa o «Orlando Furioso», Veneza-Estocolmo.
O TERCEIRO:
O único passatempo que ainda temos: ver passar os comboios.
O QUARTO:
Há cinco anos, ainda o «Gudrun» e o «Orlando Furioso» paravam em Güllen. E o
«Diplomata» e o «Lorelei» também, tudo comboios rápidos importantes.
O PRIMEIRO:
Mundialmente importantes.
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Som de sineta.
O SEGUNDO:
Agora, nem os regionais param. Só dois que vêm de Kaffigen, e o da uma e treze,
de Kalberstadt.
O TERCEIRO:
Estamos arruinados.
O QUARTO:
As fábricas Wagner foram por água abaixo.
O PRIMEIRO:
A firma Bockmann na bancarrota.
O SEGUNDO:
A siderurgia Um Lugar ao Sol chegou ao fim.
O TERCEIRO:
Vivemos do subsídio de desemprego.
O QUARTO:
Da sopa dos pobres.
O PRIMEIRO:
Vivemos?
O SEGUNDO:
Vegetamos.
O TERCEIRO:
Estamos de tanga.
O QUARTO:
A cidade inteira.
O QUARTO:
O «Diplomata».
O TERCEIRO:
E nós, que já fomos uma cidade com pergaminhos culturais!
O SEGUNDO:
Uma das primeiras do país.
O PRIMEIRO:
Da Europa.
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O QUARTO:
Goethe pernoitou aqui, na Estalagem do Apóstolo Dourado.
O TERCEIRO:
E Brahms compôs aqui um quarteto.
Som de sineta.
O SEGUNDO:
Berthold Schwarz inventou aqui a pólvora.
O PINTOR:
E eu, que frequentei com distinção a École des Beaux-Arts, agora pinto faixas para o
desfile!
O SEGUNDO:
Estava na hora de essa milionária chegar. Parece que doou uma fortuna para um
hospital em Kalberstadt.
O TERCEIRO:
E para uma creche em Kaffigen, e para uma igreja na capital.
O PINTOR:
E encomendou o retrato ao Zimt, esse borrabotas naturalista.
O PRIMEIRO:
Dinheiro é o que não lhe falta. É dona da Armenian-Oil, da Western Railways, da
Northern Broadcasting Company e da zona de prostituição em Banguecoque.
O SEGUNDO:
O oficial de diligências.
O TERCEIRO:
Vem para penhorar a Câmara Municipal.
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O QUARTO:
Nem a política escapa à insolvência.
O CHEFE DA ESTAÇÃO, dando o sinal de partida:
Partida!
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
A nossa ilustre visitante vem no comboio de Kalberstadt à uma e treze.
O PROFESSOR:
Vamos ouvir o coro misto, o grupo juvenil.
O Padre:
E a sineta dos bombeiros. Por enquanto, escapou à penhora.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Na Praça do Mercado vai tocar a Banda Municipal, e o Clube de Ginástica fará uma
pirâmide humana em honra da milionária. Depois oferecemos um banquete no
«Apóstolo Dourado», Infelizmente já não há dinheiro para a iluminação da Igreja
Matriz e da câmara Municipal à noite.
O OFICIAL DE DILIGÊNCIAS, saindo da casinha:
Bom dia, Senhor Presidente. Os meus cumprimentos.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Então o que é que o traz por cá, senhor oficial de diligências?
O OFICIAL DE DILIGÊNCIAS:
O Senhor Presidente sabe muito bem o que me traz por cá.Tenho uma missão de
peso à minha frente. Imagina o que é penhorar uma cidade inteira?
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Já lhe digo que na Câmara não vai encontrar nada, a não ser uma velha máquina de
escrever...
O OFICIAL DE DILIGÊNCIAS:
O Senhor Presidente esquece-se do Museu Histórico de Güllen.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Foi vendido para a América já há três anos. As nossa caixa está vazia. Ninguém
paga impostos.
O OFICIAL DE DILIGÊNCIAS:
Tenho de investigar isso. O país vai de vento em popa, e só Güllen abriu falência,
mesmo tendo cá a siderurgia Um Lugar ao Sol.
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O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Estamos todos diante de um autêntico enigma económico.
O PRIMEIRO:
A Maçonaria, foi a Maçonaria que levou tudo.
O SEGUNDO:
Isto é uma maquinação dos judeus.
O TERCEIRO:
E a alta finança à espreita...
O QUARTO:
E o comunismo internacional estende os seus tentáculos.
Som de sineta.
O OFICIAL DE DILIGÊNCIAS:
Eu acabo sempre por encontrar alguma coisa. Olhos de gavião. Vou ver o que se
passa com a receita municipal.
Sai.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Pois que vá. É melhor fazer a pilhagem agora do que depois da visita da milionária.
ALFRED:
Isto assim não está bem, Senhor Presidente, a inscrição é demasiado íntima. Acho
melhor escreverem: «Bem-vinda, Claire Zachanassian».
O PRIMEIRO:
Mas ela é a nossa Clarinha.
O SEGUNDO:
A Clarinha Wäscher.
O TERCEIRO:
Vimo-la crescer.
O QUARTO:
O pai era mestre-de-obras.
O PINTOR:
Bom... então escrevo do outro lado «Bem-vinda, Claire Zachanassian», e pronto. E
se a milionária ficar comovida, podemos sempre virar a faixa para o lado da frente.
O SEGUNDO:
O «Expresso da Bolsa», Zurique-Hamburgo.
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O TERCEIRO:
Sempre pontual, podíamos acertar os relógios por ele.
O QUARTO:
E alguém aqui ainda tem relógio?!
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Meus senhores, a milionária é a nossa única esperança.
O PADRE:
Tirando Deus.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Tirando Deus.
O PROFESSOR:
Mas esse não nos paga as contas.
O PINTOR:
Esqueceu-nos, é o que é.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Você foi namorado dela, Ill, tudo depende de si.
O PADRE:
Mas acabaram por se separar. Ouvi contar vagamente umas histórias... Tem alguma
coisa a confessar ao seu pastor?
ALFRED:
Fomos de facto amigos muito especiais – jovens, fogosos. Afinal, eu estava na flor
da idade, meus senhores, já lá vão quarenta e cinco anos... E ela, a Claire, ainda a
vejo, uma luz a vir ao meu encontro no palheiro do Peter, meio escuro, ou a correr
na mata, descalça, por cima do musgo e das folhas, de cabelos ruivos ao vento,
corpinho ágil, esbelta, doce, uma feiticeira linda, diabólica! A vida separou-nos, a
vida, mais nada, como tantas vezes acontece.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Preciso de alguns pormenores sobre a senhora Zachanassian, para o meu discurso
do jantar no «Apóstolo Dourado». (Tira do bolso um bloco de notas.)
O PROFESSOR:
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Fui ver os antigos registos da escola, e devo dizer que as notas da Claire Wäscher,
infelizmente, foram muito más. E o comportamento também. Um suficiente em
Ciências Naturais, e é tudo.
O PRESIDENTE DA CÂMARA, anotando:
Muito bem. Suficiente em Ciências Naturais. Nada mau.
ALFRED:
Talvez eu possa ajudar o nosso Presidente. A Claire tinha uma verdadeira paixão
pela justiça. Uma vez prenderam um vagabundo, e ela atacou o polícia à pedrada.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Amor da justiça. Nada mau. Faz sempre o seu efeito. Mas é melhor não falar da
história com o polícia.
ALFRED:
E um pendor para a caridade. Partilhava sempre o que tinha, uma vez chegou a
roubar batatas para uma viúva pobre.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Pendor para a beneficência. Isto, meus senhores, não pode faltar no meu discurso.
É essencial. Alguém se lembra de algumn edifício construído pelo pai da Claire?
Não ficava mal no discurso.
O PINTOR:
Acho que ninguém.
O PRIMEIRO:
Diz-se que se embebedava.
O SEGUNDO:
A mulher deixou-o.
O TERCEIRO:
E acabou por morrer no manicómio.
Meu caro amigo, há muito tempo que você é a pessoa mais popular em Güllen. Na
próxima Primavera retiro-me, e já sondei a oposição. E acordámos em propô-lo para
meu sucessor.
ALFRED:
Mas, senhor Presidente...
O PROFESSOR:
Tem o meu total apoio.
ALFRED:
Meus senhores, vamos por partes e vejamos os factos. Primeiro vou falar com a
Claire sobre a nossa desgraçada situação.
O PADRE:
Mas com cuidado, com tacto...
ALFRED:
Temos de agir com inteligência e sentido psicológico. Uma recepção menos feliz
aqui na estação pode deitar tudo a perder. Não basta a Banda Municipal e o Coro
misto.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
O Alfred tem razão. Afinal, este é um momento decisivo. A senhora Zachanassian
pisa o chão da terra natal, regressa a casa, emocionada, lágrimas nos olhos ao olhar
para tanta coisa conhecida. É claro que eu não vou estar aqui em mangas de
camisa, como agora, vou estar de fato preto e chapéu alto, a meu lado a minha
esposa, à nossa frente as duas netinhas, todas de branco, com um ramo de rosas.
Deus queira que tudo corra bem no momento certo.
Som de sineta.
O PRIMEIRO:
O «Orlando Furioso».
O SEGUNDO:
Veneza-Estocolmo, onze e vinte e sete.
O PADRE:
Onze e vinte e sete! Temos quase duas horas para vestir os fatos domingueiros.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
O Kühn e... (apontando para o Quarto) o Hauser encarregam-se de levantar bem
alta a faixa com a inscrição «Bem-vinda, Claire Zachanassian». Os outros, o melhor
é acenarem com os chapéus. Mas, por favor: nada de gritaria, como no ano passado,
quando cá esteve a comissão governamental. O efeito foi nulo, até hoje não
recebemos um cêntimo de subvenção. O que se pede não é euforia, mas alegria
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O ruído do comboio que se aproxima torna impossível compreender o que ele está a
dizer. Travagem a fundo. Em todos os rostos a expressão da maior perplexidade e
espanto. Os cinco que estão sentados no banco dão um salto.
O PINTOR:
O rápido...
O PRIMEIRO:
... pára...
O SEGUNDO:
....em Güllen!
O TERCEIRO:
Na mais miserável...
O QUARTO:
... piolhosa...
O PRIMEIRO:
... desgraçada terreola da linha Veneza-Estocolmo!
O CHEFE DA ESTAÇÃO:
Isto vai contra todas as leis da natureza! O «Orlando Furioso» devia aparecer na
curva de Leuthenau, passar como um relâmpago e desaparecer, já um ponto negro,
no vale de Pückenried.
Claire Zachanassian entra pela direita. Sessenta e dois anos, ruiva, colar de pérolas,
pulseiras de ouro enormes, toda aperaltada, inenarrável, mas precisamente por isso
também com ar de dama do grande mundo, com uma graciosidade invulgar, apesar
de todo o grotesco. Segue-a o seu séquito: o mordomo Boby, de uns oitenta anos,
de óculos escuros; o marido número VII (Moby, alto, magro, bigode preto) com um
equipamento completo de pesca à linha. O grupo é seguido por um maquinista muito
excitado, boné vermelho, sacola vermelha.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Estou em Güllen?
O MAQUINISTA:
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CLAIRE ZACHANASSIAN:
O quê? O regional que pára em Loken, Brunnhübel, Beisenbach e Leuthenau? E o
senhor atreve-se a sugerir que eu me arraste meia hora por uma região como esta?
O MAQUINISTA:
Madame, isto vai sair-lhe muito caro!
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Boby, dá-lhe mil.
TODOS, em surdina:
Mil!
O MAQUINISTA, espantado:
Madame!
CLAIRE ZACHANASSIAN:
E três mil para a Fundação das Viúvas dos Ferroviários.
TODOS, em surdina:
Três mil!
O MAQUINISTA, confuso:
Mas, essa Fundação não existe, Madame.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Então criem uma!
O MAQUINISTA, embaraçado:
Vossa Excelência é a senhora Claire Zachanassian? Ah, perdão! Assim a coisa
muda de figura. É claro que pararíamos em Güllen, se tivéssemos a mais pequena
ideia... Não posso aceitar o seu dinheiro... Quatro mil, meu Deus!
TODOS, em surdina:
Quatro mil.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Pode guardar essa insignificância.
TODOS, em surdina:
Pode guardar...
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O MAQUINISTA:
E Vossa Excelência deseja que o «Orlando Furioso» espere até que tenha
terminado a sua visita a Güllen? A administração teria todo o prazer... Acho que o
portal da matriz merece uma visita. Estilo gótico, com a representação do Juízo
Final...
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Ponha-se a andar com o seu comboio!
MARIDO VII, choramingas:
Mas, e a imprensa, querida, a imprensa ainda não desceu... Os repórteres não
sabem de nada, estão a jantar na carruagem-restaurante, à frente.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Eles que continuem a jantar, Moby. Para já, não preciso da imprensa em Güllen. E
depois eles vêem, vais ver.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Minha Senhora, Excelência: na qualidade de Presidente da Câmara de Güllen, tenho
a honra, ilustre senhora e filha da nossa terra, de...
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Obrigado, senhor Presidente, pelo seu belo discurso.
ALFRED:
Claire.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Alfred.
ALFRED:
Que bom teres vindo!
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Há muito tempo que tencionava vir. Toda a vida, desde que saí de Güllen.
ALFRED, inseguro:
Muito amável da tua parte.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
E tu, também pensaste em mim?
ALFRED:
Claro, sempre, como podes calcular, Claire.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Maravilhosos, esses tempos em que estivémos juntos.
ALFRED, com orgulho:
Lá isso foram. (Para o Professor, baixo) Está a ver, senhor professor, está no papo.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Podes chamar-me como sempre me chamaste.
ALFRED:
Minha gatinha brava.
CLAIRE ZACHANASSIAN, ronronando como uma gata velha:
E mais?
ALFRED:
Minha feiticeirazinha.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
E tu eras a minha pantera negra.
ALFRED:
E ainda sou.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Disparate! Egordaste, tens cabelos brancos e metes-te na aguardente!
ALFRED:
Mas tu estás igualzinha, minha feiticeira.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Qual quê! Também engordei e estou velha. E a perna esquerda foi ao ar. Um
desastre de automóvel. Agora só viajo de comboio rápido. Mas a prótese ficou uma
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beleza, não achas? (Levanta a saia e mostra a perna esquerda.) Consigo mexê-la
muito bem.
ALFRED, limpando o suor:
Nunca me passaria pela cabeça, gatinha brava.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Posso apresentar-te o meu sétimo marido, Alfred? É proprietário de plantações de
tabaco. E temos um casamento feliz.
ALFRED:
Mas, com certeza.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Vem cá, Moby, cumprimentar este senhor. O nome dele é Pedro, mas gosto mais de
Moby. E vai melhor com Boby, que é o mordomo. E mordomo é para toda a vida, os
maridos têm de se adaptar ao nome dele.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Não é um amor, com aquele bigodinho preto? Vá, Moby, pensa lá um bocadinho.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Com mais força!
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Mais força ainda.
MARIDO VII:
Mas, querida, não consigo pensar com mais força, não consigo mesmo.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
É claro que consegues. Tenta outra vez.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
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Estás a ver? Conseguiste. Não é, Alfred, ele assim até parece que tem um ar quase
demoníaco. Como um brasileiro. Mas não é nada disso, ele é grego-ortodoxo. O pai
era russo. Foi um Papa que nos casou. Muito interessante. Mas agora quero ver
como está esta terra. (Olha para o casinhoto à esquerda com um lorgnon incrustado
de pedras preciosas) Estas retretes públicas são obra do meu pai, Moby. Trabalho
de primeira, construção perfeita. Quando era pequena, ficava sentada horas a fio em
cima do telhado a cuspir cá para baixo. Mas só quando passavam homens.
O PROFESSOR:
Ilustre senhora, na minha qualidade de Reitor do Liceu de Güllen e amante da nobre
arte da Música, seja-me permitido homenageá-la com uma singela canção popular,
entoada pelo coro misto e pelo nosso grupo juvenil.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Força, senhor professor, venha a sua singela canção popular.
Um Polícia abre caminho através do coro misto e vem pôr-se em sentido diante de
Claire Zachanassian.
O POLÍCIA:
Hahncke, Chefe da Polícia, às ordens de V. Exa.!
CLAIRE ZACHANASSIAN, olhando-o de alto a baixo:
Obrigada. Não quero mandar prender ninguém – mas quem sabe se Güllen não vai
precisar do senhor. O senhor Chefe de vez em quando não fecha um olho a certas
coisas?
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O POLÍCIA:
Com certeza, minha senhora. Senão, como é que me ia aguentar aqui em Güllen?
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Pois então, agora é melhor fechar os dois.
ALFRED, rindo:
A Claire sem tirar nem pôr! É mesmo a minha feiticeirazinha. (Bate nas coxas,
visivelmente divertido).
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
As minhas netas, senhora. Hermínia e Adolfina. Só falta a minha esposa. (Limpa o
suor da cara).
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Os meus parabéns por estes dois amores de meninas, senhor Presidente! Tome lá!
(Põe as rosas nas mãos do Chefe da Estação).
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
O nosso pároco, minha senhora.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Ah, o pároco... E costuma consolar os moribundos?
O PADRE, espantado:
Faço o que posso.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
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O PRESIDENTE DA CÂMARA:
O doutor Nüsslin, médico local.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Interessante! É o senhor que passa as certidões de óbito?
O MÉDICO:
Certidões de óbito?
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Quando alguém morre.
O MÉDICO:
Com certeza.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
A partir de agora, o diagnóstico vai ser: ataque cardíaco.
ALFRED, rindo:
Minha gatinha brava! Tens umas piadas mesmo divertidas!
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Bom, agora vamos dar uma volta pela cidade.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Mas que ideia é essa, senhor Presidente? Eu não posso andar quilómetros a pé,
com a minha prótese!
O PRESIDENTE DA CÂMARA, assustado:
Vamos já tratar disso, imediatamente! O doutor Nüsslin tem automóvel.
O MÉDICO:
Um Mercedes de 1932, minha senhora.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Não é preciso. Desde que tive o acidente só ando de liteira. Roby e Toby, vamos!
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Da esquerda entram dois monstros hercúleos, a mastigar pastilha elástica, com uma
liteira. Um deles traz uma guitarra às costas.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Dois gangsters de Manhattan, condenados à cadeira eléctrica em Sing-Sing. Foram
libertados a meu pedido, para me transportarem na liteira. Um milhão de dólares por
cabeça. A liteira veio do Louvre, oferta do Presidente francês. Um senhor muito
simpático, é igualzinho ao que vem nos jornais. Roby e Toby, levem-me para a
cidade.
OS DOIS:
Yes, Mam.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Mas primeiro vamos ao palheiro do Peter e depois à Mata de S. Conrado. Quero
revisitar com o Alfred os lugares dos nossos antigos amores. E entretanto levem a
bagagem e o caixão para o «Apóstolo Dourado».
O PRESIDENTE DA CÂMARA, de boca aberta:
O caixão?
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Trouxe um comigo. Nunca se sabe se não vai fazer falta. Vamos, Roby e Toby.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Até que enfim! A sineta dos bombeiros!
OS DOIS:
Estamos em Güllen. Este cheiro não engana, este cheiro do ar de Güllen.
O POLÍCIA:
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luxo decadente. Tudo rasgado, cheio de pó, partido, a cheirar mal, a mofo, o estuque
a desfazer-se. O Presidente da Câmara, o Padre e o Professor estão sentados à
direita, em primeiro plano, a beber aguardente e observam o infindável transporte
das malas, que o público deverá imaginar.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Malas e mais malas.
O PADRE:
Aquilo não tem fim. E há pouco levaram para cima uma pantera numa jaula.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Uma fera toda negra.
O PADRE:
O caixão.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Vai ser colocado num outro aposento.
O PROFESSOR:
Coisa estranha.
O PADRE:
As celebridades mundiais têm sempre alguma pancada.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
As criadas são bem bonitas.
O PROFESSOR:
Tudo indica que vai ficar muito tempo por cá.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Tanto melhor. O Alfred já a tem no papo. Gatinha brava, feiticeirazinha, foi assim
que ele a tratou, e vai sacar dela uns milhões. À sua, caro professor. Ao renascer da
firma Bockmann pela mão de Claire Zachanassian.
O PROFESSOR:
E das fábricas Wagner.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
E da siderurgia Um Lugar ao Sol. Se esta arrebitar, arrebita tudo, a paróquia, o Liceu,
o bem-estar público.
Brindam.
O PROFESSOR:
Há mais de duas décadas que corrijo os exercícios de Latim e Grego dos alunos de
Güllen, mas só desde há uma hora, meu caro Presidente, sei o que é o terror.
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O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Sente-se aqui connosco, senhor Chefe.
O POLÍCIA:
Não dá gosto nenhum trabalhar neste buraco perdido. Mas agora a ruína vai voltar a
florescer. Estive agora mesmo no palheiro do Peter com a milionária e o merceeiro
Alfred. Uma cena comovente. Os dois numa contemplação, parecia que estavam
numa igreja. Até me senti pouco à vontade. Por isso os deixei ir sozinhos para a
Mata de S. Conrado. Aquilo era mesmo uma procissão. À frente dois homenzinhos
gordos e cegos, com o mordomo, depois a liteira, atrás dela o Alfred e o sétimo
marido dela, com as canas de pesca.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Devoradora de homens.
O PROFESSOR:
Uma segunda Lais de Corinto.
O PADRE:
Somos todos pecadores. Hans Holbein, Lais de
Corinto
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Gostava de saber o que aqueles dois vão fazer à Mata de S. Conrado.
O POLÍCIA:
O mesmo que no palheiro do Peter. Andam a correr os lugares onde em tempos a
sua paixão... como é que se diz...?
O PADRE:
Se inflamou!
O PROFESSOR:
E que labaredas! Pensamos logo em Shakespeare, Romeu e Julieta. Meus senhores,
que sensação! É a primeira vez que sinto em Güllen o verdadeiro sopro da grandeza
antiga.
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O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Vamos brindar então ao nosso amigo Alfred, que está a fazer tudo o que pode para
nos salvar do nosso destino. Meus senhores, bebo ao mais amado cidadão de
Güllen, ao meu sucessor!
Levantam os copos e brindam.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
E continuam a chegar malas.
O POLÍCIA:
Como é que se pode ter tanta bagagem!
O PRIMEIRO:
Somos pinheiros mansos e bravos, somos faias.
O SEGUNDO:
Somos abetos verde-escuros.
O TERCEIRO:
Musgo e líquenes, maciços de hera.
O QUARTO:
Mato rasteiro e sebe para as raposas.
O PRIMEIRO:
Nuvens que passam, gritos de aves.
O SEGUNDO:
Chão de raízes de cepa germânica.
O TERCEIRO:
Cogumelo venenoso, corça tímida.
O QUARTO:
Sussurro de ramos, sonhos antigos.
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CLAIRE ZACHANASSIAN:
A Mata de S. Conrado! Roby e Toby, parem aqui.
OS DOIS CEGOS:
Parem, Roby e Toby, parem, Boby e Moby.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
O coração, com o teu nome e o meu, Alfred. Quase não se vê, e está deformado. A
árvore cresceu, o tronco e os ramos engrossaram, como nós. (Dirige-se para as
outras árvores.) Um grupo de árvores alemãs. Há tanto tempo que não entrava na
floresta da minha juventude, que não pisava a folhagem caída, a hera roxa. E vocês,
mastigadores de pastilha elástica, desapareçam para trás dessas moitas com a
liteira, já não posso ver as vossas caras. E tu, Moby, vai aqui pela direita até à
ribeira e apanha os teus peixes.
Saem pela esquerda os dois monstros com a liteira. O marido VII sai pela direita.
Claire Zachanassian senta-se no banco.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Olha só, uma corça!
ALFRED:
Estamos na época do defeso. (Senta-se ao lado dela.)
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Beijámo-nos aqui, sentados nesta pedra. Há mais de quarenta e cinco anos. E
amámo-nos à sombra destes arbustos, debaixo desta faia, entre os cogumelos no
musgo. Eu tinha dezassete anos, e tu nem vinte. Depois, casaste com a Matilde
Blumhard, que tinha a loja de retroseiro, e eu com o velho Zachanassian e os seus
milhões vindos da Arménia. Ele encontrou-me num bordel de Hamburgo. Os meus
cabelos ruivos atrairam-no, ao velho escaravelho dourado.
ALFRED:
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Claire!
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Um «Henry Clay», Boby.
OS DOIS CEGOS:
Um «Henry Clay», um «Henry Clay».
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Adoro charutos. Devia fumar os da fábrica do meu marido, mas não confio neles.
ALFRED:
Foi por te amar que eu me casei com a Matilde Blumhard.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Ela tinha dinheiro.
ALFRED:
E tu eras jovem e bela. Tinhas o futuro à tua frente, e eu queria a tua felicidade. Por
isso prescindi da minha.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
E agora esse futuro chegou.
ALFRED:
Se tivesses ficado aqui, estavas tão arruinada como eu.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Estás arruinado?
ALFRED:
Um merceeiro falido numa cidade falida.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
E agora, eu tenho dinheiro.
ALFRED:
Eu vivo num inferno desde que me deixaste.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
E eu agora sou o próprio inferno.
ALFRED:
Eu vivo num inferno com a minha família, que me acusa todos os dias de ser o
responsável por esta miséria.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
E a tua Matilde não te fez feliz?
ALFRED:
O que importa é que tu sejas feliz.
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CLAIRE ZACHANASSIAN:
E os teus filhos?
ALFRED:
Não sabem o que é ter ambições.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Espera, que um dia elas vêm.
ALFRED:
A minha vida tem sido uma coisa triste. Nem desta cidadezinha saí. Uma viagem a
Berlim e outra ao Ticino, e é tudo.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
E para quê? Eu conheço o mundo inteiro...
ALFRED:
Porque sempre pudeste viajar.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Porque ele me pertence.
ALFRED:
Mas agora tudo vai mudar.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Não tenhas dúvida.
ALFRED, fixando-a:
Tu vais ajudar-nos?
CLAIRE ZACHANASSIAN:
É claro que não vou deixar ao abandono a cidade da minha juventude.
ALFRED:
A situação é tal que vamos precisar de milhões.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Coisa de pouca monta.
ALFRED, entusiasmado:
Minha gatinha brava! (Emocionado, dá-lhe uma palmada na coxa esquerda, mas
retira logo a mão, dorida.)
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Isso dói. Bateste numa dobradiça da minha prótese.
30
O Primeiro tira do bolso das calças um velho cachimbo e uma chave enferrujada, e
bate com a chave no cachimbo.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Um pica-pau!
ALFRED:
É como antigamente, quando éramos novos e sem medo, e nos metíamos pela Mata
de S. Conrado nos dias do nosso amor. O Sol por cima dos abetos, um disco de luz.
Nuvens distantes e o canto do cuco, algures no emaranhado das raízes.
O QUARTO:
Cucu, cucu!
Alfred, apalpando O PRIMEIRO:
O cheiro a madeira fresca e o vento nos ramos, um marulhar como as ondas do mar.
Como antes, exactamente como era antes.
Os três que fazem de árvores sopram e mexem os braços para cima e para baixo.
ALFRED:
Se ao menos o tempo parasse, minha feiticeirazinha. Se a vida não nos tivesse
separado...
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Era isso o que querias?
ALFRED:
Era isso, isso e mais nada. Continuo a amar-te! (Beija-lhe a mão direita.) A mesma
mão, fresca e branca.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Enganas-te. É outra prótese, de marfim.
ALFRED, larga-lhe a mão, horrorizado:
Claire, mas afinal o teu corpo são só próteses?
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Quase. Esta é da queda de um avião no Afeganistão. Fui a única que conseguiu sair
dos destroços. Ninguém acaba comigo.
OS DOIS CEGOS:
Ninguém, ninguém.
31
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Esta calorosa salva de palmas foi para si, ilustre senhora.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Foi para os músicos, senhor Presidente, que são maravilhosos a tocar. E antes, a
pirâmide humana dos ginastas foi uma beleza.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Adoro homens em fato de ginástica e calções. Têm um ar tão natural. Faça mais uns
exercícios para eu ver. Balance os braços para trás, senhor ginasta, e depois deixe-
se cair em posição facial.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Maravilhoso, estes músculos! Já alguma vez estrangulou alguém, com a sua força?
O GINASTA:
Estrangular alguém?
ALFRED, rindo:
É impagável, o humor da Clarinha! É de morrer a rir com as suas piadinhas!
O MÉDICO:
Olhe que não sei... Estas piadas até arrepiam.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Posso acompanhá-la até à mesa? (Leva Claire Zachanassian para a mesa ao centro,
e apresenta-a à mulher.) A minha esposa.
CLAIRE ZACHANASSIAN, assestando o lorgnon para ver bem a esposa:
A Aninhas Dummermuth, a melhor da nossa turma!
CLAIRE ZACHANASSIAN:
A Matilde Blumhard! Lembro-me bem de ti, a espiar o Alfred atrás da porta da loja.
Emagreceste muito, estás pálida, minha querida.
ALFRED, em segredo:
Milhões, foi o que ela prometeu!
O PRESIDENTE DA CÂMARA, engolindo em seco:
Milhões?
ALFRED:
Milhões!
O MÉDICO:
Caramba!
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Bom, agora estou com fome, senhor Presidente.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Só estamos à espera do seu marido, minha senhora.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Não precisa de esperar. Ele foi à pesca, e eu estou a divorciar-me.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
A divorciar-se?
CLAIRE ZACHANASSIAN:
O Moby também vai ficar espantado. Vou casar com um actor de cinema alemão.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Mas, ainda há pouco nos disse que tinha um casamento feliz.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Todos os meus casamentos são felizes. Mas era um sonho de juventude: dar o nó
um dia na Matriz de Güllen. E os sonhos da mocidade são para se cumprir. Vai ser
uma grande festa.
33
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Ilustre senhora, caros conterrâneos. Faz agora quarenta e cinco anos que deixou a
nossa cidade, fundada pelo Príncipe Eleitor Hasso, o Nobre, nesta amena
localização, entre a Mata de S. Conrado e o Vale de Pückenried. Quarenta e cinco
anos, mais de quatro décadas, é muito tempo. Muita coisa aconteceu entretanto,
muita coisa terrível. Coisas tristes para o mundo inteiro, e para nós. Mas nunca
esquecemos a senhora, a nossa Clarinha (aplausos.). Nem a si nem à sua família. A
vossa mãe, grande mulher, exuberante de vitalidade e saúde, toda entregue ao seu
matrimónio (Alfred murmura-lhe qualquer coisa ao ouvido), mas infelizmente muito
cedo desaparecida. O vosso pai, homem da melhor cepa, que, com o edifício da
estação, nos deixou uma obra de grande mérito, muito visitada por especialistas e
leigos (Alfred murmura-lhe qualquer coisa ao ouvido) – ambos vivem ainda nos
nossos pensamentos como os melhores, os mais virtuosos de entre nós. E a
senhora, a menina traquinas de tranças loiras (Alfred murmura-lhe qualquer coisa ao
ouvido), de cabelos ruivos, correndo pelas nossas ruas agora tão maltratadas. Quem
a não conhecia? Já então todos sentiam o encanto da sua personalidade,
adivinhavam a ascensão vertiginosa até aos píncaros da humanidade. (Consulta o
bloco de notas.) Ninguém se esqueceu, é um facto. As suas notas na escola ainda
hoje são vistas como um exemplo pelo corpo docente, especialmente nessa
disciplina tão importante que eram as Ciências da Natureza, já então expressão da
sua compaixão para com todas as criaturas e os mais desprotegidos. O seu amor da
justiça e a sua propensão caritativa despertavam já nessa altura a admiração de
largas camadas da população. (Aplausos estrondosos.) É verdade, a nossa Clarinha
conseguiu arranjar comida para uma pobre e velha viúva, comprando batatas com o
pouco dinheiro que ganhara a trabalhar para o vizinho, e salvando assim a pobre
mulher da morte. Isto, para lembrar apenas uma das suas misericordiosas acções.
(Aplausos estrondosos.) Ilustre senhora, queridos conterrâneos, as tenras sementes
de tão promissoras plantas cresceram entretanto, fortes, e o diabinho de cabelos
ruivos deu lugar a uma senhora que espalha a sua caridade pelo mundo – lembrem-
se apenas a sua acção social, sanatório para mães e grandes hospitais, apoio a
34
artistas, creches e infantários. Por estas e outras razões, peço uma grande ovação
para a filha pródiga que regressou a casa: Viva a nossa Claire, viva, viva!
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Senhor Presidente, queridos conterrâneos. Estou comovida com a vossa alegria
desinteressada pela minha visita. Na verdade, em criança eu era um pouco diferente
do que pode transparecer do discurso do nosso Presidente, apanhava pancada na
escola, e as batatas para a viúva Boll roubei-as, com o Alfred, não para salvar da
morte essa alcoviteira, mas para poder finalmente deitar-me com o Alfred numa
cama decente, em vez do chão duro e incómodo da Mata ou do palheiro do Peter.
No entanto, para me associar desde já à vossa alegria, declaro que estou disposta a
doar a Güllen mil milhões. Quinhentos milhões para o município e outros quinhentos
para distribuir por todas as famílias.
Silêncio sepulcral.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Com uma condição.
A sala explode num júbilo indescritível. Todos dançam, sobem para as cadeiras, o
ginasta faz exercícios, etc. Alfred bate com as mãos no peito, não cabe em si de
orgulho.
ALFRED:
A Claire! Um amor! Maravilhoso! É de rebentar! A minha feiticeirazinha, sem tirar
nem pôr! (Beija-a.)
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Com uma condição, dizeis, ilustre senhora. E pode saber-se qual é essa condição?
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Vou dizer-vos qual é. Dou-vos mil milhões, e com isso compro a Justiça.
35
Silêncio sepulcral.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
E como é que devemos entender tal condição, minha senhora?
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Tal qual eu disse.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Mas, a Justiça não se compra!
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Pode-se comprar tudo.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Continuo sem perceber.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Chega cá, Boby.
O mordomo vem da direita até ao centro, entre as três mesas, e tira os óculos
escuros.
O MORDOMO:
Não sei se algum de vós ainda me reconhece.
O PROFESSOR:
O Juiz-Presidente Hofer.
O MORDOMO:
Exactamente, o Juiz-Presidente Hofer. Há quarenta e cinco anos eu era Presidente
do Tribunal em Güllen, fui depois transferido para o Tribunal da Relação de Kaffigen,
até que, há vinte e cinco anos, a senhora Zachanassian me fez a proposta de entrar
ao seu serviço como mordomo. Uma carreira talvez um pouco estranha para um
académico, mas o ordenado era de tal modo fantástico...
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Vamos aos factos, Boby.
O MORDOMO:
Como acabam de ouvir, a senhora Zachanassian oferece-vos mil milhões e pede em
troca Justiça. Por outras palavras: a senhora Zachanassian oferece-vos mil milhões
se vocês se dispuserem a reparar a injustiça que foi feita à senhora Zachanassian
em Güllen. Senhor Alfred Ill, por favor.
ALFRED:
O que quer o senhor de mim?
O MORDOMO:
Faça favor de se aproximar.
ALFRED:
Muito bem. (Avança até ficar à frente da mesa da direita. Sorriso embaraçado.
Encolhe os ombros.)
O MORDOMO:
Foi no ano e 1910 [1968, se quisermos actualizar!?]. Eu era Juiz-Presidente aqui em
Güllen e tive de julgar um caso de denúncia de paternidade. Claire Zachanassian, na
altura Claire Wäscher, acusava-o, senhor Alfred Ill, de ser o pai do seu filho.
O MORDOMO:
O senhor negou a paternidade, senhor Ill. E apresentou duas testemunhas.
ALFRED:
Isso são histórias antigas. Nesses anos eu era um rapazola irresponsável.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Toby e Roby, tragam cá o Koby e o Loby.
OS DOIS:
Perguntem e nós respondemos, nós respondemos.
O MORDOMO:
Conhece estes dois, senhor Alfred Ill?
OS DOIS:
Somos o Koby e o Loby, somos o Koby e o Loby.
ALFRED:
Não os conheço.
OS DOIS:
Mudámos muito, mudámos muito.
37
O MORDOMO:
Digam os vossos nomes.
O PRIMEIRO:
Jakob Hühlein, Jakob Hühlein.
O SEGUNDO:
Ludwig Sparr, Ludwig Sparr.
O MORDOMO:
E então, senhor Ill.
ALFRED:
Não me dizem nada.
O MORDOMO:
Jakob Hühlein e Ludwig Sparr, conhecem o senhor Alfred Ill?
OS DOIS:
Nós somos cegos, nós somos cegos.
O MORDOMO:
Reconhecem-no pela voz?
OS DOIS:
Pela voz, pela voz...
O MORDOMO:
Em 1910 [1968?] eu era o juiz e vocês as testemunhas. O que testemunharam
vocês, Jakob Hühnlein e Ludwig Sparr, perante o tribunal de Güllen?
OS DOIS:
Que tínhamos dormido com a Claire, que tínhamos dormido com a Claire.
O MORDOMO:
Foi isso mesmo o que de declararam perante mim. Perante o tribunal, perante Deus.
Era essa a verdade?
OS DOIS:
Foi falso testemunho, foi falso testemunho.
O MORDOMO:
E porquê, Ludwig Sparr e Jakob Hühnlein?
OS DOIS:
O Alfred subornou-nos, O Alfred subornou-nos.
O MORDOMO:
Com quê?
OS DOIS:
Com um litro de aguardente, com um litro de aguardente.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
E agora contem lá o que eu fiz com vocês, Koby e Loby.
38
O MORDOMO:
Contem lá.
OS DOIS:
A senhora mandou procurar-nos, a senhora mandou procurar-nos.
O MORDOMO:
É verdade. Claire Zachanassian mandou procurar-vos. No mundo inteiro. Jakob
Hühnlein tinha emigrado para o Canadá e Ludwig Sparr para a Austrália. Mas ela
encontrou-vos. E o que é que ela fez depois com vocês?
OS DOIS:
Deu-nos o Toby e o Roby. Deu-nos o Toby e o Roby.
O MORDOMO:
E o que é que o Toby e o Roby fizeram com vocês?
OS DOIS:
Castraram-nos e cegaram-nos, castraram-nos e cegaram-nos.
O MORDOMO:
A história é esta. Um juiz, um acusado, duas falsas testemunhas, um erro judiciário
no ano de 1910 [1968?]. É assim, senhora queixosa?
Estou em condições de me permitir isso. Mil milhões para Güllen, se alguém matar
Alfred Ill.
Silêncio sepulcral.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Senhora Zachanassian: por enquanto ainda estamos na Europa, por enquanto ainda
não somos nenhuns selvagens. Em nome da cidade de Güllen, recuso a sua oferta.
Em nome da humanidade. Preferimos continuar pobres a manchar de sangue as
nossas mãos.
Enorme aplauso.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Eu espero.
40
Segundo Acto
ALFRED:
Coroas de flores.
O FILHO:
Vão todas as manhãs buscá-las à estação.
ALFRED:
Para o caixão vazio que está no «Apóstolo Dourado».
O FILHO:
Mas não assustam ninguém.
ALFRED:
A cidade está comigo.
ALFRED:
A mãe vai descer para o pequeno-almoço?
A FILHA:
Diz que fica em cima, que está cansada.
ALFRED:
41
Vocês têm uma boa mãe, meus filhos. Tenho de reconhecer que é mesmo uma boa
mãe. Ela que fique lá em cima, a ver se descansa. Então tomamos nós o pequeno-
almoço juntos, há que tempos que isso não acontece. Dispenso ovos e uma lata de
fiambre americano. Hoje é à grande e à francesa. Como nos bons velhos tempos,
quando a siderurgia Um Lugar ao Sol ia de vento em popa.
O FILHO:
Vais ter de me desculpar. (Apaga o cigarro.)
ALFRED:
Não vais comer connosco, Karl?
O FILHO:
Vou até à estação. Há um operário doente. Talvez precisem de alguém para o
substituir.
ALFRED:
Trabalho nas obras da linha, à torreira do sol, não é trabalho para o meu filho.
O FILHO:
É melhor que nada. (Sai.)
A FILHA (levantando-se):
Eu também tenho de ir, pai.
ALFRED:
Tu também? Bom, e pode-se saber aonde é que vai a menina minha filha?
A FILHA:
Ao Centro de Emprego. Pode ser que haja algum trabalho para mim. (Sai.)
ALFRED (emocionado, espirra para o lenço de assoar):
Filhos como já há poucos, estes meus meninos!
ALFRED:
Bom dia, Hofbauer.
O PRIMEIRO:
Cigarros.
ALFRED:
Como todas as manhãs.
O PRIMEIRO:
Não quero desses, quero dos verdes.
ALFRED:
São mais caros.
O PRIMEIRO:
Ponha na conta.
ALFRED:
Só por ser para si, Hofbauer, e porque temos de ficar todos unidos.
O PRIMEIRO:
Há ali alguém a tocar guitarra.
ALFRED:
É um dos gangsters de Sing-Sing.
OS DOIS:
Bela manhã, Alfred, bela manhã.
ALFRED:
Vão para o diabo!
OS DOIS:
Vamos á pesca, vamos à pesca. (Saem de cena pela esquerda.)
O PRIMEIRO:
Estes vão para a ribeira de Güllen.
ALFRED:
Com as canas de pesca do sétimo marido.
O PRIMEIRO:
Parece que perdeu todas as plantações de tabaco.
ALFRED:
Agora pertencem também à milionária.
O PRIMEIRO:
E vem aí um casamento de arromba com o oitavo. Ontem já foi a festa de noivado.
43
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Estou outra vez completa, as peças todas aparafusadas. Roby, toca aquela canção
popular da Arménia.
Melodia de guitarra.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Era a canção preferida do velho Zachanassian. Estava sempre a querer ouvi-la,
todas as manhãs. Era um homem de tipo clássico, o velho gigante da finança, com a
sua infindável frota de petroleiros e os seus cavalos de corrida, ainda tinha uns bons
milhões nos bancos. Tempos em que um casamento valia a pena. Grande mestre e
grande dançarino, sabia todos os truques e manigâncias, e eu não deixei escapar
nenhum.
PRIMEIRA MULHER:
Leite, senhor Alfred.
SEGUNDA MULHER:
Leve também a minha leiteira, senhor Alfred.
ALFRED:
Ora muito bons dias. Um litro de leite para cada uma das senhoras.
PRIMEIRA MULHER:
Leite integral, senhor Alfred.
SEGUNDA MULHER:
Dois litros de leite integral, senhor Alfred.
ALFRED:
44
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Bela manhã de Outono. Uma neblinazinha nas ruas, um fumozinho prateado, e por
cima um céu azul-violeta, como o pintava o conde Holk, o meu terceiro, Ministro dos
Estrangeiros. Gostava de pintar nas férias. Pinturas horríveis. Aliás, todo ele era
horrível.
PRIMEIRA MULHER:
E manteiga. Duzentos gramas.
SEGUNDA MULHER:
E pão de trigo. Dois quilos.
ALFRED:
Devem ter recebido uma herança, as senhoras, não é?
AS DUAS MULHERES:
Ponha na conta.
ALFRED:
Um por todos, todos por um.
PRIMEIRA MULHER:
E uma tablete de chocolate, de dois e vinte.
SEGUNDA MULHER:
De quatro e quarenta.
ALFRED:
Para pôr na conta?
PRIMEIRA MULHER:
Sim, na conta.
SEGUNDA MULHER:
É para comer aqui, senhor Alfred.
PRIMEIRA MULHER:
A sua loja é o melhor sítio cá da terra, senhor Alfred.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
45
O PRIMEIRO:
Lá está aquela na varanda a tirar fumaças do charuto.
ALFRED:
E sempre marcas caríssimas.
O PRIMEIRO:
Um desperdício. E uma vergonha, com o mundo cheio de miséria como está.
ALFRED:
Saiu-lhe o tiro pela culatra. Confesso o meu pecado, Hofbauer, mas quem é que
nunca pecou? Foi uma partida indecente a que lhe preguei, naqueles verdes anos...
Mas ontem, no «Apóstolo Dourado», quando todos os da terra rejeitaram a oferta
dela, unanimemente e apesar da miséria que passamos, digo-lhe que foi a hora
mais feliz da minha vida!
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Whisky, Boby. Puro.
O SEGUNDO:
Bom dia. Isto hoje vai estar quente.
O PRIMEIRO:
O bom tempo veio para ficar.
ALFRED:
Isto é que é um corrupio de freguesia esta manhã! Durante muito tempo não
aparecia ninguém, e agora é isto, há vários dias.
O PRIMEIRO:
Nós estamos consigo, com o nosso Alfred. Firmes como uma rocha.
AS MULHERES, a comer chocolate:
46
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Vai acordar o novo. Não gosto que os meus homens fiquem a dormir até tão tarde.
ALFRED:
«Três Dez».
O SEGUNDO:
Não é dessa.
ALFRED:
Era a que costumavas beber sempre.
O SEGUNDO:
Quero um conhaque.
ALFRED:
Custa vinte e trinta e cinco. Ninguém pode pagar esse preço.
O SEGUNDO:
Precisamos de fazer o gosto ao dedo de vez em quando.
ALFRED:
Aqui tens.
O SEGUNDO:
E tabaco. Para o cachimbo.
ALFRED:
Muito bem.
O SEGUNDO:
Estrangeiro, se faz favor.
Na varanda aparece o marido VIII, actor de cinema, alto, magro, bigode ruivo, de
roupão. Pode ser o mesmo actor que representou o marido VII.
MARIDO VIII:
Ah, Clarita! Não é maravilhoso? O nosso primeiro pequeno-almoço, já noivos. Uma
varandinha, uma tília sussurrante, o marulhar da fonte do Largo da Câmara, galinhas
a atravessar a rua, as donas de casa com os seus pequenos problemas, e por cima
dos telhados a torre da matriz!
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Senta-te, Hoby, e deixa-te de conversas. Eu não sou cega, também vejo a paisagem,
e pensar não é propriamente o teu forte.
O SEGUNDO:
O marido também já está lá em cima.
PRIMEIRA MULHER, a comer chocolate:
O oitavo.
SEGUNDA MULHER, a comer chocolate:
Belo homem, é actor de cinema. A minha filha viu-o num papel de caçador furtivo,
num filme de aventuras.
48
PRIMEIRA MULHER:
E eu vi-o numa história de Graham Greene em que ele fazia de padre.
O SEGUNDO:
Não há dúvida, o dinheiro compra tudo. (Cospe.)
O PRIMEIRO:
Mas aqui não. (Bate com o punho no balcão.)
ALFRED:
São vinte e três e oitenta.
O SEGUNDO:
Põe na conta.
ALFRED:
Esta semana ainda abro uma excepção, mas no dia um tens de me pagar, quando
vier o subsídio de desemprego.
ALFRED:
Helmsberger!
ALFRED:
Tens sapatos novos! Novos e amarelos!
O SEGUNDO:
Sim, e depois?
ALFRED, olhando para os pés do Primeiro:
E tu também, Hofbauer. Tu também tens sapatos novos. (Olha para as mulheres,
aproxima-se delas devagar, aterrado.) E vocês também. Sapatos novos, amarelos.
Sapatos novos, amarelos.
O PRIMERO:
Não sei o que vês nisto de extraordinário.
O SEGUNDO:
Não podemos andar eternamente com os mesmos sapatos velhos.
49
ALFRED:
Sapatos novos. Como é que vocês puderam comprar sapatos novos?
AS MULHERES:
Mandámos pôr na conta, senhor Alfred, mandámos pôr na conta.
ALFRED:
Mandaram pôr na conta. E aqui também mandaram pôr na conta. Tabaco do melhor,
leite de qualidade, conhaque. Mas, como é que de repente vocês têm crédito nas
lojas?
O SEGUNDO:
Na tua loja também nos vendes fiado.
ALFRED:
E como é que vocês me vão pagar?
ALFRED:
Como é que vocês vão pagar? Como é que vão pagar? Como? Como? (Precipita-se
lá para trás.)
MARIDO VIII:
Há barulho na cidadezinha.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
É a vida de uma pequena cidade.
MARIDO VIII:
Parece que há problemas na lojinha ali em baixo.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Devem estar a discutir o preço da carne.
MARIDO VIII:
Meu Deus, que é isto, Clarita, ouviste?
CLAIRE ZACHANASSIAN:
A pantera negra. Assanhou-se.
MARIDO VIII, espantado:
Uma pantera negra?
CLAIRE ZACHANASSIAN:
50
Do Paxá de Marraquexe. Uma prenda. Anda para cá e para lá no salão aqui ao lado.
Um gatinho grande e bravo, com olhos dardejantes.
O Polícia senta-se à mesa que está do lado esquerdo. Bebe cerveja. Fala devagar e
em tom meditativo. Alfred aproxima-se, vindo de trás.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Podes servir, Boby.
O POLÍCIA:
O que é que bebe, Alfred? Sente-se.
O POLÍCIA:
Está a tremer, homem!
ALFRED:
Exijo a detenção imediata de Claire Zachanassian.
ALFRED:
Exijo essa detenção na qualidade de futuro Presidente da Câmara.
O POLÍCIA, soltando baforadas de fumo:
Ainda não houve eleições.
ALFRED:
Exijo a prisão da senhora, e já.
O POLÍCIA:
O senhor quer dizer que pretende fazer queixa dela. Se ela é presa ou não, isso é a
Polícia a decidir. De que crime a acusa?
51
ALFRED:
Ela exige dos habitantes da nossa cidade que me matem.
O POLÍCIA:
E isso é motivo para eu prender a dita senhora...? (Deita mais cerveja no copo.)
CLAIRE ZACHANASSIAN:
O correio. Carta do Eisenhower. E do Nehru. Mandam parabéns.
ALFRED:
É o seu dever.
O POLÍCIA:
Coisa estranha, muito estranha mesmo. (Bebe mais cerveja.)
ALFRED:
É a coisa mais natural deste mundo.
O POLÍCIA:
Meu caro Alfred Ill, a coisa não é tão natural como você pensa. Analisemos
friamente o caso. A senhora fez essa proposta à cidade de Güllen, a de, a troco de
mil milhões... bom, já sabe do que estou a falar. Tudo bem, eu estava lá e ouvi. Mas
para a Polícia isso não basta para intervir contra a senhora Zachanassian. Afinal, há
leis que temos de seguir.
ALFRED:
Foi incitamento a homicídio.
O POLÍCIA:
Veja bem, Alfred. Só existiria incitamento a homicídio se a proposta de o matarem
fosse feita a sério. Está claro, ou não?
ALFRED:
É isso mesmo.
O POLÍCIA:
Ora aí está. Mas esta proposta não pode ser levada a sério, porque o preço de mil
milhões é claramente exagerado, tem de reconhecer isso. Para uma coisa dessas, o
prémio é, digamos, de mil, no máximo dois mil, mas mais não, pode crer. O que, por
sua vez, prova ainda mais que a proposta não foi feita a sério. E mesmo que fosse
feita a sério, a Polícia não pode levar a sério essa senhora, porque então seria um
claríssimo caso de demência. Está a perceber?
ALFRED:
52
Essa proposta é uma ameaça à minha pessoa, senhor Chefe, quer a dama seja
louca quer não. É lógico, acho eu.
O POLÍCIA:
Ilógico. O senhor não pode ser ameaçado por uma proposta feita por alguém, mas
apenas pela execução concreta dessa proposta. Aponte-me uma única tentativa de
levar à prática essa proposta, um homem que lhe tenha apontado uma arma, e eu
não perderei tempo a actuar. Mas acontece que ninguém quer pôr em prática essa
proposta, muito pelo contrário. A manifestação de solidariedade no «Apóstolo
Dourado» foi extremamente impressionante. Só posso dar-lhe os parabéns por isso.
(Bebe cerveja.)
ALFRED:
Eu não teria assim tantas certezas, senhor Chefe.
O POLÍCIA:
Como assim?
ALFRED:
Os meus clientes compram leite de qualidade, pão mais caro, melhores cigarros.
O POLÍCIA:
Mas isso é uma óptima notícia! Quer dizer que o negócio está a melhorar! (Bebe
cerveja.)
ALFRED:
O Helmsberger comprou conhaque na minha loja, e toda a gente sabe que ele há
anos que não ganha nada e vive da sopa dos pobres.
O POLÍCIA:
Esse conhaque vou prová-lo logo à noite. O Helmsberger convidou-me para ir lá a
casa. (Bebe cerveja.)
ALFRED:
Toda a gente anda de sapatos novos. Amarelos.
O POLÍCIA:
E o que é que o senhor tem contra os sapatos novos. Eu também tenho sapatos
novos. (Mostra os pés.)
ALFRED:
O senhor também!
O POLÍCIA:
53
Está a ver?
ALFRED:
E amarelos! E está a beber cerveja de Pilsen / checa!
O POLÍCIA:
Sabe melhor!
ALFRED:
Mas antes bebia da nossa.
O POLÍCIA:
Era um horror!
Música de rádio.
ALFRED:
Está a ouvir?
O POLÍCIA:
A ouvir o quê?
ALFRED:
A música.
O POLÍCIA:
É «A Viúva Alegre».
ALFRED:
Um aparelho de rádio.
O POLÍCIA:
É do Hagholtzer, aqui ao lado. Devia fechar a janela (Anota qualquer coisa num
caderninho.)
ALFRED:
Como é que o Hagholtzer, assim de repente, tem um rádio?
O POLÍCIA:
Problema dele.
ALFRED:
E o senhor Chefe, como é que vai pagar a cerveja checa e os sapatos novos?
O POLÍCIA:
Problema meu.
O POLÍCIA:
Esquadra da Polícia de Güllen.
54
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Telefona aos Russos, Boby, e diz que aceito a proposta deles.
O POLÍCIA:
Muito bem, vou já. (Volta a pousar o telefone no descanso.)
ALFRED:
E os meus fregueses, como é que me vão pagar?
O POLÍCIA:
A Polícia não tem nada a ver com isso. (Levanta-se e pega na espingarda, que
estava pendurada nas costas da cadeira.)
ALFRED:
Mas eu tenho. Porque é com a minha pessoa que eles vão pagar.
O POLÍCIA:
Ninguém o ameaça. (Começa a carregar a arma.)
ALFRED:
A cidade está cheia de dívidas. Com as dívidas sobe o nível de vida. E com o nível
de vida a necessidade de me matar. E a grande dama só precisa de ficar sentada na
varanda a tomar café, a fumar charutos, à espera. Só precisa de esperar.
O POLÍCIA:
O senhor está a inventar histórias.
ALFRED:
Vocês todos só estão à espera. (Bate com o punho na mesa.)
O POLÍCIA:
O senhor bebeu aguardente a mais. (Continua a tratar da espingarda.) Pronto, está
carregada. Pode ficar sossegado. A Polícia está cá para fazer respeitar as leis, zelar
pela ordem, proteger os cidadãos. E sabe muito bem qual é o seu dever. Se por
acaso surgir, seja lá de onde for, a mais leve suspeita de uma ameaça, ela intervirá,
senhor Alfred Ill, disso pode estar certo.
ALFRED, em voz baixa:
E porque é que o senhor tem um dente de ouro na boca?
O POLÍCIA:
Hã?
ALFRED:
Um dente de ouro novinho, a brilhar.
O POLÍCIA:
55
Alfred repara agora que o cano da arma está voltado para ele, e levanta lentamente
os braços.
O POLÍCIA:
Não tenho tempo de ficar aqui a discutir os seus fantasmas, homem. Tenho de ir. O
lulu daquela milionária extravagante fugiu. A pantera negra. Tenho de lhe dar caça.
A cidade toda tem de entrar nesta batida. (Sai pelas traseiras.)
ALFRED:
A mim é que vocês dão caça, a mim.
MARIDO VIII:
Mas, o teu quinto era cirurgião.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
O sexto. (Abre mais uma carta.) Do dono da Western-Railway.
MARIDO VIII, admirado:
Desse não sei nada.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Foi o meu quarto. Ficou na miséria. As acções que eram dele agora são minhas.
Seduzi-o no Palácio de Buckingham numa noite de lua cheia.
MARIDO VIII:
Mas esse foi o Lord Ismael.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Tens razão, Hoby. Tinha-me esquecido completamente dele, mais o seu castelo em
Yorkshire. Então este que escreve é o meu segundo. Conheci-o no Cairo. Beijámo-
nos à sombra da Esfinge. Foi uma noite memorável. Também de lua cheia. Curioso:
foi sempre na lua cheia.
Muda o cenário à direita. Desce uma tabuleta com a inscrição «Câmara Municipal».
Entra O TERCEIRO, que retira a caixa registadora da loja, desloca o balcão, que
56
ALFRED:
Tenho de falar consigo, senhor Presidente.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Faça favor de se sentar.
ALFRED:
De homem para homem. E na qualidade de seu sucessor.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Então diga.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
A pantera da senhora Zachanassian fugiu. Anda na igreja, a trepar por todo o lado.
Temos de andar armados.
ALFRED:
Com certeza.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Mobilizei todos os homens que têm armas. E as crianças não saem da escola.
ALFRED, desconfiado:
Parece-me um pouco exagerado.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
É caça a um animal selvagem.
Entra o mordomo.
O MORDOMO:
O presidente do Banco Mundial, minha senhora.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Não posso recebê-lo agora. Ele que se meta novamente no avião.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Então, o que é que o preocupa? Fale francamente!
57
ALFRED, desconfiado:
Está a fumar um Havano.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Um «Pégaso dourado».
ALFRED:
Carote!
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Mas de qualidade.
ALFRED:
O senhor Presidente antes fumava outra marca.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
«Rössli cinco»
ALFRED:
Mais barato.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Tabaco demasiado forte.
ALFRED:
E gravata nova?
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
É de seda.
ALFRED:
E pelos vistos também comprou sapatos novos.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Mandei-os vir de Kalberstadt. Curioso, como é que sabia?
ALFRED:
Foi por isso que vim.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Mas afinal o que é que se passa consigo? Está pálido. Anda doente?
ALFRED:
Tenho medo.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Medo?
ALFRED:
O bem-estar geral aumenta...
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Isso para mim é novidade. Era bom, era!
ALFRED:
Exijo a protecção das autoridades.
58
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Ora essa! E para quê, pode saber-se?
ALFRED:
O senhor sabe-o tão bem como eu.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Desconfia de alguma coisa?
ALFRED:
Ofereceram mil milhões pela minha cabeça.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Então dirija-se à Polícia.
ALFRED:
Já estive na Polícia.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Então já deve estar mais tranquilo.
ALFRED:
Na boca do chefe da Polícia há um dente de ouro novo a brilhar.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
O senhor esquece que está em Güllen. Uma cidade com tradição humanista. Goethe
pernoitou aqui. Brahms compôs aqui um quarteto. Estes valores são uma
responsabilidade para nós.
O HOMEM:
A máquina de escrever nova, senhor Presidente. Uma Remington.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Leve-a para o meu gabinete.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Nós não merecemos a sua ingratidão. Só posso lamentar que tenha perdido a
confiança na nossa comunidade. Não esperava de si essas tendências niilistas.
Afinal, nós vivemos num Estado de Direito.
Da esquerda chegam os dois cegos com as suas canas de pesca, de mão dada.
59
OS DOIS:
A pantera anda à solta, a pantera anda à solta! (Saltitam.) Ouvimo-la rugir, ouvimo-la
rugir! (Entram no «Apóstolo Dourado» aos saltinhos.) Vamos ter com o Hoby e Boby,
com o Toby e o Roby. (Saem atrás, ao centro.)
ALFRED:
Então mande prender essa senhora.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Coisa estranha, muito estranha mesmo!
ALFRED:
Foi o que disse também o chefe da Polícia.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Vendo bem, o comportamento da senhora até nem é assim tão incompreensível.
Afinal, o senhor incitou dois rapazes a prestar falsos testemunhos e atirou uma
rapariga para uma vida miserável.
ALFRED:
Uma vida miserável que significa hoje muitos milhões, senhor Presidente.
Silêncio.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Vamos falar francamente.
ALFRED:
Faça favor.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
De homem para homem, como o senhor pediu quando entrou. O senhor não tem o
direito moral de pedir a prisão dessa senhora. E também não serve para Presidente
da Câmara. Lamento muito ter de lhe dizer isto.
ALFRED:
É oficial?
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
É o ponto de vista de todos os partidos.
ALFRED:
Compreendo.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
O facto de condenarmos a proposta da senhora não significa que aceitemos os
crimes que a levaram a fazer tal proposta. E para o lugar de Presidente da Câmara
colocam-se determinadas exigências de ordem moral que o senhor já não preenche.
Espero que compreenda. Mas é claro que isto em nada altera o respeito e a
amizade que temos por si.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
O melhor é não falar mais do assunto. Também pedi ao nosso jornal para não
puiblicarem nada sobre esta matéria.
ALFRED, voltando-se:
Já estão a enfeitar o meu caixão, senhor Presidente! Ficar calado agora é muito
perigoso para mim.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Como assim, caro Alfred? O senhor devia era agradecer-nos por passarmos uma
esponja por cima deste triste episódio.
ALFRED:
Se falar, talvez ainda tenha uma possibilidade de escapar.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Mas onde é que já se viu uma coisa destas? E quem é que o ia ameaçar?
ALFRED:
Um de vós.
O PRESIDENTE DA CÂMARA, levantando-se:
De quem é que desconfia? Dê-me um nome e eu mando investigar o caso. Sem
reservas.
ALFRED:
Qualquer um de vós.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Tenho de protestar solenemente, em nome da cidade, contra uma tal calúnia.
ALFRED:
Ninguém me quer matar, cada um espera que seja o outro, e por isso um de vós
acabará por fazê-lo.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
O senhor anda a ver fantasmas.
ALFRED:
61
Estiou é a ver uma nova planta naquela parede. É o novo edifício da Câmara?
(Aponta para a planta.)
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Meu Deus, ainda podemos fazer planos, ou não?
ALFRED:
Vocês já andam todos a especular sobre a minha morte!
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Meu caro amigo, se eu, como político, não tivesse o direito de acreditar num futuro
melhor sem ter de pensar logo num crime, demitia-me imediatamente, pode crer.
ALFRED:
Vocês já me condenaram à morte.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Mas, meu caro Alfred!
ALFRED, baixinho:
E aquela planta é a prova disso! É a prova disso!
CLAIRE ZACHANASSIAN:
O Onassis também vem. O duque e a duquesa. E o Aga.
MARIDO VIII:
E o Ali?
CLAIRE ZACHANASSIAN:
A tropa toda da Riviera.
MARIDO VIII:
E jornalistas?
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Do mundo inteiro. Quando eu caso, toda a imprensa está presente. Eles precisam
de mim, e eu preciso deles. (Abre mais uma carta.) Do conde Holk.
MARIDO VIII:
Clarita, é a primeira vez que tomamos o pequeno-almoço juntos! E tens de me ler as
cartas dos teus outros maridos?
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Preciso de ter tudo sob controlo.
MARIDO VIII, lamentando-se:
Eu também tenho os meus problemas. (Levanta-se e olha para a cidadezinha lá em
baixo.)
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Tens o Porsche avariado?
62
MARIDO VIII:
Um lugarzinho como este deixa-me deprimido. Está bem, ouve-se a aragem na tília,
os passarinhos cantam, a fonte murmura... Mas há meia hora era a mesma coisa.
Não acontece nada aqui, nem com a natureza, nem com as pessoas... Tudo na mais
perfeita paz, sem problemas, tudo satisfeito, confortável. Não há grandeza, nada é
trágico. O que falta aqui é o espírito de uma grande época!
O PADRE entra pela esquerda, de espingarda a tiracolo. Estende uma toalha branca
sobre a mesa onde antes estivera o Polícia, e põe em cima uma cruz preta. Encosta
a espingarda à parede do hotel. O sacristão ajuda-o a vestir a casula. Escurece.
O PADRE:
Entre, Alfred, aqui para a sacristia.
O PADRE:
Está escuro aqui, mas pelo menos está mais fresco.
ALFRED:
Não quero incomodar, senhor Padre.
O PADRE:
A casa de Deus está aberta a todos. (Repara no olhar de Alfred Ill, dirigido para a
espingarda.) Não se espante com a arma. A pantera negra da senhora
Zachanassian ainda anda por aí. Ainda há pouco estava lá em cima no telhado,
depois foi para a Mata de S. Conrado e agora parece que está no palheiro do Peter.
ALFRED:
Preciso de ajuda.
O PADRE:
E porquê?
ALFRED:
Tenho medo.
O PADRE:
Medo? E de quem?
ALFRED:
Das pessoas.
O PADRE:
De que as pessoas o matem, Alfred?
ALFRED:
63
ALFRED:
A minha vida está em risco.
O PADRE:
A sua vida eterna.
ALFRED:
Vê-se a riqueza a crescer.
O PADRE:
É o fantasma da sua consciência.
ALFRED:
As pessoas andam todas felizes. As raparigas cheias de jóias. Os rapazes de
camisas às cores. A cidade prepara-se para a festa da minha morte, e eu ando
aterrorizado, não resisto.
O PADRE:
Positivo, muito positivo tudo o que está a sentir.
ALFRED:
É um inferno!
O PADRE:
O inferno está dentro de si. O senhor é mais velho do que eu, e acha que conhece
os homens, mas de facto só nos conhecemos a nós próprios. Lá porque o senhor
traiu uma rapariga por dinheiro há muitos anos, acha que agora as pessoas também
o vão trair a si por dinheiro. Tira conclusões sobre os outros a partir de si mesmo. É
natural. A razão dos nossos medos está no nosso coração, está nos nossos
pecados. Se perceber isto vai conseguir vencer o que o atormenta, vai ter na mão as
armas para o fazer.
ALFRED:
Os Siemethofer compraram uma máquina de lavar.
O PADRE:
Não se preocupe com essas coisas.
ALFRED:
64
A crédito.
O PADRE:
Preocupe-se antes com a imortalidade da sua alma.
Alfred:
E os Stockers têm uma televisão nova.
O Padre:
Reze, reze. Sacristão, a estola.
O PADRE:
Interrogue a sua consciência. Siga o caminho do arrependimento, senão o mundo
ainda ateia mais os seus receios. É o único caminho, não podemos fazer outra coisa.
O PADRE:
Agora tenho de me dedicar à minha missão, Alfred, tenho um baptizado. A Bíblia,
sacristão, a Liturgia, o Livro dos Salmos. A criancinha já está a chorar, temos de a
levar a porto seguro, a única luz que ilumina este nosso mundo.
ALFRED:
A sineta, outra vez?
O PADRE:
O som é excelente, não é? Cheio e forte. Pense positivo, positivo!
ALFRED, gritando:
Até o senhor, Padre! Até o senhor!
O PADRE, atirando-se a Alfred e abraçando-o:
Foge! Nós somos fracos, cristãos e pagãos. Foge, em Güllen tocam os sinos da
traição. Foge, não nos deixes cair em tentação, continuando entre nós.
Ouvem-se dois tiros. Alfred cai por terra, o Padre ajoelha-se a seu lado.
O PADRE:
65
Foge! Foge!
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Boby, ouvi tiros.
O MORDOMO:
É verdade, senhora.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Mas, a que propósito?
O MORDOMO:
A pantera fugiu.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
E atiraram nela?
O MORDOMO:
Está estendida, morta, à porta da loja do Alfred.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Que pena, pobre animal. Roby, toca uma marcha fúnebre.
O MORDOMO:
A gente de Güllen concentra-se para exprimir o seu pesar, minha senhora.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Pois que venham.
O PROFESSOR:
Minha senhora...
CLAIRE ZACHANASSIAN:
O que é que o traz por cá, senhor Professor?
O PROFESSOR:
Fomos salvos de um grande perigo. A pantera negra andava pelas nossas ruas a
anunciar desgraça. Mas agora que respiramos de alívio, sentimos ao mesmo tempo
a perda de uma tão preciosa raridade zoológica. Onde os homens se instalam, o
mundo animal fica mais pobre. Não ignoramos de modo nenhum este dilema trágico.
66
Por isso gostaríamos de cantar uma obra coral. Uma ode fúnebre, ilustre senhora.
Composta por Heinrich Schütz.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Muito bem, vamos então ouvir essa ode fúnebre.
O Professor começa a dirigir o coro. Da direita entra Alfred Ill de arma na mão.
ALFRED:
Calados!
ALFRED:
Um cântico fúnebre! Por que é que estão a cantar uma música destas?
O PROFESSOR:
Mas, senhor Alfred, é pela morte da pantera negra...
ALFRED:
Estão a ensaiar é para a minha morte, para a minha morte!
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Senhor Alfred Ill, por favor, tenha maneiras!
ALFRED:
Fora daqui! Tudo para casa!
As pessoas retiram-se.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Hoby, vai dar uma volta no teu Porsche.
O MARIDO VIII:
Mas, Clarita...
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Desaparece!
O Marido sai.
ALFRED:
Claire!
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Alfred! Porque é que assustas assim as pobres pessoas?
67
ALFRED:
Tenho medo, Claire.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Mas eu até te agradeço. Estou farta destas constantes cantorias. Já na escola
detestava música. Lembras-te, Alfred, quando nós dois fugíamos para a Mata assim
que o coro misto começava a ensaiar na Praça do Município, com a banda?
ALFRED:
Claire, promete que tudo isto é uma comédia tua, que não é verdade aquilo que
pedes às pessoas. Promete!
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Que estranho, Alfred, estas recordações. Naquele tempo, quando nos conhecemos,
eu também estava numa varanda, era uma tarde de Outono como hoje, nem uma
aragem, só de vez em quando se ouvia o murmúrio das árvores no parque, tempo
quente, como talvez esteja também agora, mas nos últimos tempos eu tenho sempre
frio. E tu ali estavas a olhar para cima, sem tirar os olhos de mim. E eu atrapalhada,
sem saber o que fazer. Queria ir para dentro, para o quarto escuro, e não conseguia.
ALFRED:
Estou desesperado, não respondo por mim. Aviso-te, Claire, estou disposto a tudo
se não me disseres agora que tudo isto não passa de uma brincadeira, uma
brincadeira de muito mau gosto. (Aponta a arma para ela.)
CLAIRE ZACHANASSIAN:
E tu sem arredar pé, ali especado na rua, de olhos postos em mim lá em cima, muito
sério, quase zangado, e no entanto os teus olhos só falavam de amor.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
E havia dois outros rapazes contigo, o Koby e o Loby. A arreganhar os dentes, por
verem como tu não tiravas os olhos de mim. Nem me cumprimentaste, nem uma
palavra disseste, mas pegaste na minha mão e saímos da cidade, fomos para o
campo, e atrás de nós, como dois cães de guarda, o Koby e o Loby. E depois tu
apanhaste umas pedras e atiraste-as aos dois, e eles voltaram para a cidade a
guinchar e nós ficámos sozinhos.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
68
Leva-me para o meu quartyo, Boby. Tenho de te ditar uma mensagem. Não me
posso esquecer de que tenho de transferir mil milhões.
OS DOIS:
A pantera negra está morta, a pantera negra está morta.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Bom dia, Alfred.
TODOS:
Bom dia!
ALFRED, hesitante:
Bom dia!
O PROFESSOR:
Então para onde é que vai, de mala feita?
TODOS:
Para onde é que vai?
ALFRED:
Para a estação.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Vamos consigo.
O PRIMEIRO:
Vamos consigo!
O SEGUNDO:
Vamos consigo!
69
ALFRED:
Não é preciso, não é preciso mesmo. Não vale a pena.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
O senhor vai de viagem, Alfred?
ALFRED:
Sim, vou de viagem.
O POLÍCIA:
E para onde?
ALFRED:
Não sei. Para Kalberstadt, e depois sigo...
O PROFESSOR:
Ah, e depois segue...
ALFRED:
De preferência para a Austrália. De alguma maneira hei-de arranjar o dinheiro.
(Continua em direcção à estação.)
O TERCEIRO:
Para a Austrália!
O QUARTO:
Para a Austrália!
O PINTOR:
E porquê?
ALFRED, embaraçado:
Porque... não se pode viver sempre no mesmo lugar, uma vida inteira.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Emigrar para a Austrália? É ridículo.
O MÉDICO:
E para si já é muito perigoso.
O PROFESSOR:
Um dos dois pequenos eunucos, aliás, também emigrou para a Austrália.
O POLÍCIA:
O senhor aqui tem segurança absoluta.
TODOS:
70
ALFRED, baixinho:
Escrevi ao delegado ministerial, em Kaffigen.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
E depois?
ALFRED:
Não tive resposta.
O PROFESSOR:
A sua desconfiança é incompreensível.
O MÉDICO:
Ninguém o quer matar.
TODOS:
Ninguém, ninguém!
ALFRED:
Os Correios daqui não mandaram a carta.
O PINTOR:
É impossível!
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
O funcionário dos Correios é membro do Conselho Municipal.
O PROFESSOR:
Um homem honrado.
O PRIMEIRO:
Um homem honrado!
O SEGUNDO:
Um homem honrado!
ALFRED:
Olhem ali aquele cartaz: «Visite as praias douradas do Sul».
O MÉDICO:
E depois?
ALFRED:
E o outro: «Veja o Mistério da Paixão em Oberammergau»!
O PROFESSOR:
Sim, e depois?
ALFRED:
E tanta construção!
71
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Sim, e depois?
ALFRED:
Vocês estão a ficar cada vez mais ricos, cada vez se vive melhor!
TODOS:
Sim, e depois?
Toca a sineta.
O PROFESSOR:
Está a ver como todos gostam de si?
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
A cidade inteira acompanha-o.
O TERCEIRO:
A cidade inteira!
O QUARTO:
A cidade inteira!
ALFRED:
Eu não vos pedi que viessem.
O SEGUNDO:
Era o mínimo que podíamos fazer, despedir-nos de ti.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Como velhos amigos.
TODOS:
Como velhos amigos! Como velhos amigos!
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Chegou a hora. Por amor de Deus, entre no comboio para Kalberstadt.
O POLÍCIA:
E boa sorte na Austrália!
TODOS:
Boa sorte, boa sorte!
ALFRED:
Por que é que estão todos aqui?
O POLÍCIA:
Mas afinal o que é que o senhor quer?
O CHEFE DA ESTAÇÃO:
Partida!
ALFRED:
Por que é que se concentram todos à minha volta?
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Mas nós não estamos nada à sua volta.
ALFRED:
Deixem-me passar!
O PROFESSOR:
Mas nós deixámo-lo passar.
TODOS:
Nós deixámo-lo passar, nós deixámo-lo passar!
ALFRED:
Um de vós vai-me agarrar.
O POLÍCIA:
Disparate! Só tem que entrar no comboio para ver que isso é um disparate.
ALFRED:
73
Afastem-se!
Ninguém se mexe. Alguns deles ficam onde estão, de mãos nos bolsos das calças.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Não percebo o que o senhor quer. Só depende de si. Entre no comboio.
ALFRED:
Afastem-se!
O PROFESSOR:
Esse seu medo é mesmo ridículo.
ALFRED:
Por que é que estão tão perto de mim?
O MÉDICO:
O homem está doido.
ALFRED:
Querem agarrar-me para eu ficar.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Homem, entre no comboio!
TODOS:
Entre no comboio! Entre no comboio!
Silêncio.
ALFRED, baixinho:
Um deles vai-me agarrar quando eu subir para o comboio.
TODOS, peremptórios:
Ninguém! Ninguém!
ALFRED:
Eu sei.
O POLÍCIA:
Está mais que na hora.
O PROFESSOR:
Ó homem, suba finalmente para o comboio!
ALFRED:
Eu sei, eu sei que alguém me vai agarrar! Um deles vai-me agarrar!
74
O CHEFE DA ESTAÇÃO:
Partida!
O POLÍCIA:
Está a ver no que deu? Já perdeu este!
ALFRED:
Estou perdido!
75
Terceiro Acto
O MORDOMO:
O Médico e o Professor.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Que entrem.
OS DOIS:
Ilustre senhora.
CLAIRE ZACHANASSIAN, observando os dois pelo lorgnon:
Os senhores estão um pouco empoeirados.
O PROFESSOR:
A senhora desculpe, mas tivémos de passar por cima de uma velha charrete.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Resolvi retirar-me para o palheiro do Peter. Preciso de tranquilidade. A cerimónia do
casamento na Matriz de Güllen deixou-me cansada. Afinal, já não sou propriamente
muito nova. Sentem-se no barril.
O PROFESSOR:
Muito obrigado.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Está abafado aqui. Sufocamos. Mas eu gosto deste palheiro, do cheiro do feno, da
palha, da massa de lubrificação dos carros. Recordações. Já cá estava tudo na
minha juventude, as alfaias, a forquilha, a charrete, o carro do feno partido...
O PROFESSOR:
Um lugar para a meditação. (Limpa o suor.)
CLAIRE ZACHANASSIAN:
O Padre fez um belo sermão.
O PROFESSOR:
Coríntios, Primeiro, número treze.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
E o senhor também se saiu muito bem com o coro misto, senhor professor. Solene,
como a ocasião pedia.
O PROFESSOR:
Bach. Da Paixão segundo S. Mateus. Ainda estou emocionado. Todo o grande
mundo estava lá, o mundo da finança, do cinema...
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Os mundos foram todos de abalada para a cidade nos seus Cadillacs. Para o copo
de água.
O PROFESOR:
Minha senhora, não queremos tomar o seu precioso tempo. O seu esposo deve
estar ansioso à sua espera.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
O Hoby? Já o mandei de volta para Geiselgasteig mais o seu Porsche.
O MÉDICO, confuso:
Para Geiselgasteig?
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Os meus advogados já estão a tratar do processo de divórcio.
O PROFESSOR:
Mas, e os convidados da boda, minha senhora?
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Já estão acostumados. Foi o casamento mais curto que tive até hoje, com excepção
da ligação com Lord Ismael, que ainda foi mais rápida. O que vos traz por cá?
O PROFESSOR:
Vimos por causa do assunto do senhor Alfred Ill.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
O quê, não me digam que morreu!
O PROFESSOR:
77
CLAIRE ZACHANASSIAN:
E estão endividados?
O PROFESSOR:
Completamente!
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Apesar dos vossos princípios?
O PROFESSOR:
Somos apenas humanos.
O MÉDICO:
E agora temos de pagar as nossas dívidas.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Já sabem o que têm a fazer.
O PROFESSOR, ganhando coragem:
Senhora Zachanassian, vamos falar francamente. Imagine-se na nossa triste
situação. Há duas décadas que eu tento plantar nesta comunidade empobrecida as
frágeis sementes do humanismo, que o médico da cidade vai tentando, com o seu
velho Mercedes, dar assistência aos doentes tuberculosos e raquíticos. E para quê
estes pesados sacrifícios? Por dinheiro? Nem pensar. A nossa remuneração é
mínima, eu recusei sem hesitar um lugar no Liceu de Kalberstadt, o médico um
contrato para a Universidade de Erlangen. Por puro amor à humanidade? Também
seria exagerado dizer que é isso. Não, ficámos todos estes anos, e connosco toda a
cidade, porque temos esperança, a esperança de que renasça a antiga grandeza de
Güllen, de que alguém descubra de novo as imensas potencialidades que se
escondem neste nosso torrão natal. Há petróleo no vale de Pückenried, minério por
baixo da Mata de S. Conrado. Não somos pobres, madame, apenas fomos
esquecidos. Precisamos de crédito, confiança, encomendas, e a nossa economia e
78
a nossa cultura vão florescer de novo. Güllen tem qualquer coisa a oferecer: a
siderurgia Um Lugar ao Sol.
O MÉDICO:
A empresa Bockmann.
O PROFESSOR:
As fábricas Wagner. Compre-as, faça-se um saneamento financeiro, e Güllen
florescerá de novo. Cem milhões é quanto basta para um planeamento razoável,
com os devidos juros. Não precisamos de esbanjar mil milhões!
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Ainda me restam mais dois mil milhões.
O PROFESSOR:
Não permita que tenha sido em vão esta nossa espera de uma vida. Não pedimos
esmolas, oferecemos-lhe apenas um negócio.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
De facto, não seria mau negócio.
O PROFESSOR:
Caríssima senhora, eu sabia que não nos ia abandonar!
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Acontece apenas que é irrealizável. Não posso comprar a Lugar ao Sol, pela simples
razão de que já me pertence.
O PROFESSOR:
A si?
O MÉDICO:
E a Bockmann?
O PROFESSOR:
E as fábricas Wagner?
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Também me pertencem. As fábricas, o vale de Pückenried, o palheiro do Peter, a
cidadezinha, rua por rua, casa a casa. Dei ordem aos meus agentes para
comprarem todo este lixo, e encerrei as fábricas. A vossa esperança foi uma loucura,
a vossa persistência não tem sentido, o vosso sacrifício foi uma estupidez, toda a
vossa vida foi por água abaixo.
Silêncio.
O MÉDICO:
Mas isso é monstruoso.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
79
Quando eu deixei esta cidade, há muito tempo, era Inverno. Saí daqui com um fato à
maruja, tranças ruivas, grávida, e as pessoas olhavam e riam-se de mim. Passei
muito frio no rápido para Hamburgo, mas no momento em que os contornos do
palheiro do Peter desapareciam por detrás dos cristais de gelo decidi que ia voltar
um dia. E agora aqui estiou. Agora sou eu quem dita as condições, quem decide o
negócio. (Em voz alta.) Roby e Toby, voltamos para o «Apóstolo Dourado». O meu
marido número nove já deve ter chegado, com os seus livros e manuscritos.
O PROFESSOR:
Senhora Zachanassian! A senhora é uma mulher ferida, que um dia amou. Pede
justiça absoluta. Vejo-a como uma heroína antiga, como uma Medeia. Mas, dado
que nós compreendemos profundamente a sua situação, dê-nos a coragem de lhe
pedir mais: esqueça esse terrível plano de vingança, não nos obrigue a chegar a
extremos, ajude pessoas pobres, fracas, mas honestas a ter uma vida um pouco
mais digna, e ganhe com isso um estatuto da mais pura humanidade.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
A humanidade, meus senhores, foi criada para a Bolsa dos multimilionários. Com o
poder financeiro de que eu disponho sou capaz de criar uma nova ordem no mundo.
O mundo fez de mim uma puta, agora eu faço dele um bordel! Quem não pode
pagar, tem de aguentar, se quiser entrar na dança. Vocês querem entrar na dança.
Decente é apenas aquele que paga, e eu pago. Güllen por um crime, o progresso
por um cadáver. E agora vamos! (Os dois levam-na e saem pelo fundo.)
O MÉDICO:
Meu Deus, e agora, o que fazemos?
O PROFESSOR:
O que a consciência nos ditar, doutor Nüsslin.
Em primeiro plano, à direita, vê-se a loja de Alfred Ill. Nova tabuleta. Balcão novo, a
brilhar, caixa registadora nova, mercadoria cara. Quando alguém entra pela porta
fingida, ouve-se um toque pomposo de campainha. Atrás do balcão, a mulher de
Alfred Ill. Entra, pela esquerda, O Primeiro, transformado em talhante, com alguns
salpicos de sangue no avental novo.
O PRIMEIRO:
80
Aquilo é que foi uma festa. A cidade inteira estava na Praça da Matriz para ver o
casamento.
A MULHER DE ALFRED:
A Clarinha bem merece esta felicidade, depois da miséria que passou.
O PRIMEIRO:
Actrizes de cinema a servir de damas de companhia. Cada decote, que nem vos
digo!
A MULHER DE ALFRED:
É moda hoje.
O PRIMEIRO:
Cigarros.
A MULHER DE ALFRED:
Dos verdes?
O PRIMEIRO:
«Camel». E um cutelo.
A MULHER DE ALFRED:
De talhante?
O PRIMEIRO:
Exactamente.
A MULHER DE ALFRED:
Aqui tem, senhor Hofbauer.
O PRIMEIRO:
Mercadoria de primeira.
A MULHER DE ALFRED:
E como vai o seu negócio?
O PRIMEIRO:
Contratei pessoal.
A MULHER DE ALFRED:
No dia um também vou admitir um novo.
A MULHER DE ALFRED:
Bom dia, senhor Helmsberger.
O PRIMEIRO:
Esta deve andar cheia de ilusões, para se vestir assim.
A MULHER DE ALFRED:
Uma vergonha.
O PRIMEIRO:
Preciso de um «Saridon». Estive toda a noite numa festa em casa dos Stocker.
O PRIMEIRO:
Isto está cheio de jornalistas.
O SEGUNDO:
Andam a cheirar alguma coisa por toda a cidade.
O PRIMEIRO:
E também vão passar por aqui.
A MULHER DE ALFRED:
Isto aqui é gente simples, senhor Hofbauer. Aqui não há nada que lhes interesse.
O SEGUNDO:
Andam a falar com toda a gente.
O PRIMEIRO:
Acabaram de fazer uma entrevista com o Padre.
O SEGUNDO:
Não vai contar nada, sempre teve pena de nós, gente pobre. Um «Chesterfield».
A MULHER DE ALFRED:
Para pôr na conta?
O PRIMEIRO:
Para pôr na conta. E o seu marido? Há muito tempo que não o vejo.
A MULHER DE ALFRED:
Está lá em cima, a andar de um lado para o outro no quarto. Há dias que anda
naquilo.
O PRIMEIRO:
É o peso na consciência. Nada bonito, o que ele fez com a pobre da senhora
Zachanassian.
A MULHER DE ALFRED:
E eu também sofro com isso.
O SEGUNDO:
Atirou com a rapariga para a desgraça. Coisa feia! (Decidido.) Só espero que o seu
marido não dê com a língua nos dentes quando os jornalistas vierem.
82
A MULHER DE ALFRED:
Com certeza que não.
O PRIMEIRO:
Com o feitio dele...
A MULHER DE ALFRED:
As coisas para mim não estão fáceis, senhor Hofbauer.
O PRIMEIRO:
Se ele quiser denunciar a Claire, contar mentiras, se disser que ela ofereceu isto e
aquilo pela morte dele, coisa que foi apenas uma maneira de mostrar a grande dor
que sente, nós vamos ter de intervir.
O SEGUNDO:
Não é pelos mil milhões, claro.
O PRIMEIRO:
É a indignação do povo. Coitada da senhora Zachanassian, passou as passas do
Algarve por causa dele. (Olha em volta.) A entrada para a vossa casa é por aqui?
A MULHER DE ALFRED:
É a única entrada. Pouco prático, mas na Primavera vamos fazer obras.
O PRIMEIRO:
Vou ficar aqui de sentinela.
O PRIMEIRO vai colocar-se bem à direita, braços cruzados, com o cutelo, sereno,
como um guarda. Entra O PROFESSOR.
A MULHER DE ALFRED:
Bom dia, senhor professor. Que bom, vê-lo também por cá.
O PROFESSOR:
Estou a precisar de uma bebida alcoólica forte.
A MULHER DE ALFRED:
Aguardente «Steinhäger»?
O PROFESSOR:
Um copinho.
A MULHER DE ALFRED:
Para si também, senhor Hofbauer?
O PRIMEIRO:
Não, obrigado. Ainda tenho de ir a Kaffigen com o meu Volkswagen, comprar leitões.
A MULHER DE ALFRED:
E para si, senhor Helmesberger?
O SEGUNDO:
83
Enquanto estes malditos jornalistas não sairem da cidade não bebo uma gota de
álcool.
O PROFESSOR:
Obrigado. (Bebe a aguardente de um trago.)
A MULHER DE ALFRED:
Está a tremer, senhor professor.
O PROFESSOR:
Estou a beber muito ultimamente. Agora mesmo, no «Apóstolo Dourado», se visse o
que eu emborquei! Foi uma autêntica orgia de álcool. Só espero que o meu bafo não
a incomode.
A MULHER DE ALFRED:
Mais um não há-de fazer mal. (Volta a encher-lhe o copo.)
O PROFESSOR:
E o seu marido?
A MULHER DE ALFRED:
Está lá em cima. A andar para lá e para cá.
O PROFESSOR:
Mais um copinho. O último. (Ele próprio se serve.)
Vindo da esquerda, entra o Pintor. Fato novo de fazenda inglesa, lenço berrante ao
pescoço, boina basca preta.
O PINTOR:
Cuidado! Dois jornalistas já me perguntaram onde fica esta loja.
O PRIMEIRO:
É de desconfiar.
O PINTOR:
Fiz que não sabia de nada.
O SEGUNDO:
Bem feito, inteligente.
O PINTOR:
Eles deviam era ir ao meu atelier. Acabei de pintar um Cristo.
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O PRIMEIRO:
Este mulherio!
O SEGUNDO:
Vão ao cinema novo em pleno dia.
O TERCEIRO:
A imprensa!
O SEGUNDO:
Bico calado.
O PINTOR:
Vejam lá se ele não desce.
O PRIMEIRO:
Disso trato eu.
PRIMEIRO JORNALISTA:
Boa tarde, amigos.
OS DE GÜLLEN:
Boa tarde.
PRIMEIRO JORNALISTA:
Primeira pergunta: como é que vocês se sentem, assim em geral?
O PRIMEIRO, atrapalhado:
Estamos naturalmente muito felizes com a visita da senhora Zachanassian.
O TERCEIRO:
Felizes.
O PINTOR:
Emocionados.
O SEGUNDO:
Orgulhosos.
85
O PRIMEIRO JORNALISTA:
Orgulhosos.
O QUARTO:
Afinal, a Clarinha é uma das nossas.
O PRIMEIRO JORNALISTA:
Segunda pergunta, para a senhora ali atrás do balcão: diz-se que o seu marido a
preferiu à senhora Zachanassian.
Silêncio.
O PRIMEIRO:
Quem é que disse isso?
O PRIMEIRO JORNALISTA:
Os dois homenzinhos gordos e cegos da senhora Zachanassian.
Silêncio.
O QUARTO, hesitante:
E o que é que os homenzinhos têm para contar?
O PRIMEIRO JORNALISTA:
Tudo.
O PINTOR:
Raios os partam!
Silêncio.
O SEGUNDO JORNALISTA:
A Claire Zachanassian e o dono desta loja estiveram para se casar há mais de
quarenta anos. É verdade?
Silêncio.
A MULHER DE ALFRED:
É verdade.
O SEGUNDO JORNALISTA:
E o senhor Alfred Ill, onde está?
A MULHER DE ALFRED:
Em Kalberstadt.
86
TODOS:
Em Kalberstadt.
O PRIMEIRO JORNALISTA:
Estamos já a imaginar o romance: Alfred Ill e Claire Zachanassian crescem juntos,
eram talvez vizinhos, vão juntos à escola, passeios na floresta, os primeiros beijos e
por aí fora, até que o senhor Alfred a conhece a si, minha senhora, como algo de
novo, invulgar, a paixão...
A MULHER DE ALFRED:
Foi assim mesmo como o senhor está a contar.
O PRIMEIRO JORNALISTA:
Claire Zachanassian compreende, desiste, naquele seu jeito sereno e nobre, e
vocês casam-se...
A MULHER DE ALFRED:
Por amor.
OS OUTROS DE GÜLLEN, aliviados:
Por amor.
O PRIMEIRO JORNALISTA:
Por amor.
Os dois jornalistas escrevem com ar indiferente nos seus blocos de notas. Da direita
chegam os dois eunucos, trazidos por Roby, que os segura pelas orelhas.
OS DOIS, a gemer:
Nós não contamos mais nada, nós não contamos mais nada.
OS DOIS:
Não batas, Toby, não batas, Toby!
O SEGUNDO JORNALISTA:
O seu marido, minha senhora, de vez em quando não..., quero dizer, seria humano
que ele de vez em quando se arrependesse.
A MULHER DE ALFRED:
O dinheiro só por si não traz a felicidade.
O SEGUNDO JORNALISTA:
Não traz a felicidade.
87
A MULHER DE ALFRED:
O nosso filho Karl.
O PRIMEIRO JORNALISTA:
Um belo rapaz.
O SEGUNDO JORNALISTA:
E ele sabe dessas relações...?
A MULHER DE ALFRED:
Na nossa família não há segredos. O meu marido costuma dizer: o que Deus sabe,
também os nossos filhos devem saber.
O PRIMEIRO JORNALISTA:
Deus sabe...
O SEGUNDO JORNALISTA:
Filhos devem saber.
A MULHER DE ALFRED:
A nossa filha Otília.
O SEGUNDO JORNALISTA:
Encantadora.
O PROFESSOR:
Caros conterrâneos. Eu sou o vosso velho professor. Estive ali sossegado a beber o
meu bagaço, e não disse nada até agora. Mas quero fazer um discurso sobre a
visita da velha senhora a Güllen. (Sobe para o barril, que ficou da cena no palheiro
do Peter.)
O PRIMEIRO:
Ele ficou doido?
O SEGUNDO:
Já chega.
O TERCEIRO:
Desça desse barril.
O PROFESSOR:
88
Gente de Güllen! Vou dizer toda a verdade, mesmo que isso signifique a nossa
eterna miséria!
A MULHER DE ALFRED:
O senhor está bêbado, professor! Devia ter vergonha!
O PROFESSOR:
Vergonha? Tu é que devias ter vergonha na cara, mulher, porque estás pronta para
trair o teu marido!
O FILHO:
Cala a boca!
O QUARTO:
Fora daqui!
O PROFESSOR:
O nosso destino fatal cresceu a olhos vistos! Como o de Édipo: inchou como um
sapo!
A FILHA, suplicando:
Senhor professor!
O PROFESSOR:
Tu desiludes-me, minha filha! Tu é que devias falar, e agora é o teu velho professor
que tem de o fazer com voz de trovão!
O PINTOR, puxa-o e obriga-o a descer do barril:
Queres acabar com esta oportunidade única para a minha arte! Eu pintei um Cristo,
um Cristo!
O PROFESSOR:
Protesto! Protesto diante da opinião pública mundial! Coisas terríveis se preparam
em Güllen!
Os de Güllen atiram-se a ele, mas neste momento entra pela direita Alfred Ill, com a
roupa esfarrapada.
ALFRED:
O que é que se passa na minha loja?
O PROFESSOR:
89
Silêncio.
Os repórteres fotografam.
O PRIMEIRO JORNALISTA:
Muito bem, óptimo.
90
O SEGUNDO JORNALISTA:
Posso pedir-lhe para passar o braço pelos ombros da sua esposa? O seu filho à
esquerda, a filha à direita. E agora, por favor, sorriam, felizes, sorriam, sorriam,
contentes, com um sentimento de íntima e profunda alegria...
O PRIMEIRO JORNALISTA:
Sorriso perfeito.
O SEGUNDO JORNALISTA:
Pronto, é tudo!
O FOTÓGRAFO:
A Zachanassian tem um marido novo! Vão passear para a Mata de S. Conrado.
O SEGUNDO JORNALISTA:
Um novo?
O PRIMEIRO JORNALISTA:
Isso dá uma capa da Life!
Os dois jornalistas saem da loja a correr. Silêncio. O Primeiro continua com o cutelo
na mão.
O PRIMEIRO, aliviado:
Tivemos sorte.
O PINTOR:
Tens de nos desculpar, mestre-escola. Se quisermos resolver o assunto da melhor
maneira, a imprensa não pode saber de nada. Percebes?
Sai. O SEGUNDO segue-o, mas fica ainda um pouco diante de Alfred antes de sair.
O SEGUNDO:
Sensato, muito sensato não começar para aí a dizer disparates.
O TERCEIRO:
De um doido varrido como tu também ninguém ia acreditar numa palavra. (Sai.)
O PRIMEIRO:
91
O PROFESSOR:
Tem de me desculpar. Emborquei umas aguardentes, umas duas ou três.
ALFRED:
Não há problema.
O PROFESSOR:
Eu só quis ajudá-lo. Mas estavam todos contra mim, e também o senhor não quis.
Ah, Alfred! Que gente somos nós? Estes vergonhosos mil milhões incendeiam-nos a
alma. Ganhe coragem, lute pela sua vida, fale à imprensa. Já não tem tempo a
perder.
ALFRED:
Não tenho vontade de lutar.
92
O PROFESSOR, admirado:
Olhe lá, o medo fê-lo perder o juízo?
ALFRED:
Percebi que não tenho o direito...
O PROFESSOR:
Não tem o direito? Contra esta maldita velha, esta grande puta que muda de homem
sem vergonha diante dos nossos olhos, que toma conta das nossas almas?
ALFRED:
Afinal, eu sou culpado.
O PROFESSOR:
Culpado?
ALFRED:
Eu fiz da Claire o que ela é, e de mim próprio o que sou, um merceeiro sujo e
leviano. O que hei-de eu fazer, senhor professor de Güllen? Fingir que sou
inocente? É tudo obra minha, os eunucos, o mordomo, o caixão, os mil milhões. Não
posso fazer nada por mim, nem por vocês.
O PROFESSOR:
Fiquei sóbrio. De um momento para o outro. Tem razão, completamente. A culpa é
toda sua. E agora vou dizer-lhe uma coisa. Alfred Ill, uma coisa fundamental. (Põe-
se muito direito em frente de Alfred, oscilando muito levemente.) Vão matá-lo. Sei
isto desde o início, e você também já sabe há muito tempo, ainda que em Güllen
ninguém mais tenha consciência disso. A tentação é muito grande, e a nossa
miséria amarga de mais. Mas eu sei mais. Também eu vou entrar nisso. Sinto que
me transformo a pouco e pouco num assassino. A minha fé no humanismo é
impotente. E como sei isto, comecei a beber. Também eu tenho medo, Alfred, como
você. E sei ainda que um dia uma velha senhora virá, um dia, e que então vai
acontecer connosco o que agora acontece consigo. Mas em breve, talvez dentro de
poucas horas, já o não saberei. (Silêncio.) Dê-me mais uma garrafa de aguardente.
Alfred dá-lhe mais uma garrafa, o Professor hesita, mas depois decide-se e fica com
ela.
O PROFESSOR:
Ponha na minha conta. (Sai lentamente.)
93
Regressa a família. Alfred olha à sua volta para a loja, como se estivesse a sonhar.
ALFRED:
Tudo novo. Tudo tão moderno nesta loja! Limpo, até apetece estar aqui. Uma loja
assim foi sempre o meu sonho. (Pega na raquete de ténis da filha.) E tu agora jogas
ténis?
A FILHA:
Já tive umas lições.
ALFRED:
E logo de manhã, não é, em vez de ires ao Centro de Emprego!
A FILHA:
As minhas amigas todas jogam ténis.
Silêncio.
ALFRED:
Vi-te num automóvel, Karl, lá de cima, do meu quarto.
O FILHO:
É só um Opel Olympia, não são assim tão caros.
ALFRED:
E quando é que tiraste a carta?
Silêncio.
ALFRED:
Em vez de procurares trabalho na estação, debaixo de sol.
O FILHO:
Às vezes vou. (Embaraçado, o filho leva para fora de cena, pela direita, o pequeno
barril em que o Professor esteve sentado.)
ALFRED:
Andei à procura do meu fato de domingo, e encontrei este casaco de peles.
A MULHER DE ALFRED:
Veio à experiência.
Silêncio.
A MULHER DE ALFRED:
94
Todos estão a fazer dívidas, Alfred, só tu é que estás histérico. O teu medo é ridículo.
É claro que as coisas se vão compor de forma pacífica, sem que ninguém te toque
num cabelo. A Clarinha não leva as coisas até ao fim, eu conheço-a, tem um
coração grande de mais.
A FILHA:
É verdade, pai.
O FILHO:
Está à vista de qualquer um.
Silêncio.
ALFRED, lentamente:
É sábado. Gostava de andar no teu carro, Karl, uma única vez. No nosso carro!
O FILHO, inseguro:
Queres mesmo?
ALFRED:
Vistam-se como deve ser, vamos todos dar uma volta de carro.
A MULHER DE ALFRED, insegura:
Eu também? Não é lá muito próprio...
ALFRED:
E por que é que não havia de ser? Veste o casaco de peles, é uma boa ocasião
para o estreares. Entretanto eu faço a caixa.
A Mulher e a Filha saem pela direita, o Filho pela esquerda. Alfred ocupa-se da caixa.
Da esquerda entra o Presidente da Câmara com a espingarda.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Boa tarde, Alfred. Continue com o seu trabalho, eu só quero dar uma olhadela aqui
na loja.
ALFRED:
Faça favor.
Silêncio.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Trago-lhe uma espingarda.
ALFRED:
Obrigado.
95
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Está carregada.
ALFRED:
Não preciso.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Hoje à noite reune a Assembleia Municipal. No «Apóstolo Dourado, na sala do teatro.
ALFRED:
Lá estarei.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Vão estar todos. Vamos discutir o seu caso. Estamos numa situação difícil.
ALFRED:
Também acho.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Vamos com certeza recusar a proposta.
ALFRED:
É possível.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Mas também posso estar enganado.
ALFRED:
Claro.
Silêncio.
Silêncio.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Vou tentar dar a entender à imprensa que a senhora Zachanassian – provavelmente
– irá criar uma Fundação, e que o senhor, enquanto amigo de infância, foi o
mediador dessa Fundação. E até é verdade e sabido que foi o senhor que interviu.
Assim, pelo menos para os de fora, o senhor está limpo, aconteça o que acontecer.
ALFRED:
Muito amável da sua parte.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Mas olhe que, para ser franco, não é por si que o faço, é pela família honrada e
decente que tem.
ALFRED:
Percebo.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Tem de reconhecer que estamos a fazer jogo limpo. Até agora, o senhor ficou
calado. Tudo bem. Mas, vai continuar calado? Se estiver disposto a falar, então não
precisamos de Assembleia Municipal.
ALFRED:
Percebo.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Então, em que ficamos?
ALFRED:
Ainda bem que finalmente alguém me faz uma ameaça clara.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Não sou eu que o ameaço, Alfred, o senhor é que nos ameaça. Se decidir falar,
então nós teremos de agir. Antes.
ALFRED:
Não vou abrir a boca.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Seja qual for a decisão final da Assembleia?
ALFRED:
Aceito-a, seja qual for.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
97
Muito bem.
Silêncio.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Fico muito satisfeito por ver que se submete à decisão do tribunal da comunidade,
Alfred. É sinal de que ainda há em si um resto de honestidade. Mas não seria melhor
se não tivéssemos de recorrer a esse tribunal?
ALFRED:
E o que quer dizer com isso?
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Disse-me há pouco que não precisava desta arma. Mas, vendo bem, talvez venha a
precisar dela.
Silêncio.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Nesse caso, podíamos dizer à senhora que o condenámos, e recebíamos o dinheiro
na mesma. Foram noites sem dormir até chegar a esta conclusão, pode crer. Mas de
facto o seu dever seria o de pôr termo à vida, assumir as consequências do seu acto,
como homem honrado que é, não acha?
Que mais não seja, por sentimento de comunidade, por amor à terra natal. Sabe
bem que estamos na maior miséria, sem saída, crianças com fome...
ALFRED:
Mas agora todos vivem bem.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Alfred!
ALFRED:
Senhor Presidente! Eu passei por um inferno. Vi-os todos a endividarem-se, a cada
sinal de abundância via a minha morte mais perto. Se vocês me tivessem poupado a
estes receios, a este medo terrível, tudo teria sido diferente, e nós podíamos falar de
outra maneira, até podia aceitar esta arma. Por amor de vocês todos. Mas agora
fechei-me em mi, e venci o medo. Sozinho. Foi difícil, mas está feito. Não há
retrocesso. Vocês vão ter de me condenar. E eu aceito a vossa sentença, qualquer
que ela seja. Para mim, isto é justiça, para vocês não sei o que seja. Queira Deus
que não se arrependam da sentença que ditarem. Podem matar-me, não me vou
queixar, não vou protestar, não me vou defender – mas o que fizerem vai ficar
convosco.
98
ALFRED:
Que chique, Matilde!
A MULHER DE ALFRED:
Astracã.
ALFRED:
Como uma grande dama.
A MULHER DE ALFRED:
É um bocadinho caro.
ALFRED:
Que lindo vestido, Otília! Um pouco ousado, não achas?
A FILHA:
Ora, pai! Então se visses o meu vestido de noite!
ALFRED:
Belo carro! Eu andei uma vida inteira a tentar amealhar algum dinheiro que se visse,
para ter algum conforto, um carro como este, por exemplo. E agora que o temos
aqui quero ver como é essa sensação de ter carro. Nós vamos atrás, Matilde, e a
Otília vai ao lado do Karl.
O FILHO:
Isto dá cento e vinte.
ALFRED:
Mais devagar! Quero ver a paisagem, a cidade onde vivi quase setenta anos. Tudo
limpinho nestas vielas antigas, muita casa renovada. Um fumo cinzento sobre a
99
chaminé, gerânios nas janelas, girassóis, rosas nos jardins junto da Porta de Goethe,
risos de crianças, pares de namorados por toda a parte. E quye moderna, esta
construção na Praça Brahms.
A MULHER DE ALFRED:
O Café Hodel está em obras.
A FILHA:
E o médico agora tem um Mercedes 300.
ALFRED:
A planície, e as colinas ao longe, hoje parecem douradas. Sombras enormes, e
depois outra vez luz. As gruas das fábricas Wagner no horizonte, e as chaminés da
Bockmann, parecem gigantes.
O FILHO:
A Câmara vai comprá-las.
ALFRED:
O quê?
O FILHO, mais alto:
A Câmara vai comprá-las. (Toca a buzina.)
A MULHER DE ALFRED:
Que carros mais esquisitos.
O FILHO:
São Messerschmidts. Qualquer aprendiz hoje quer ter um.
A FILHA:
C'est terrible.
A MULHER DE ALFRED:
A Otília está a fazer um curso de especialização em Francês e Inglês.
ALFRED:
Muito prático. Olha, a tasca do Kübler. Há muito tempo que não saía para estes
lados.
O FILHO:
Vai ser um restaurante de arromba.
ALFRED:
A esta velocidade tens de falar mais alto.
O FILHO, mais alto:
Vai ser um restaurante de arromba. Claro, tinha de ser o Stocker, a ultrapassar
todos com o Buick!
A FILHA:
Novo rico.
ALFRED:
100
Faz o caminho pelo vale de Pückenried. Pela margem do pântano e a alameda dos
plátanos, em volta do pavilhão de caça do Príncipe Hasso. Que castelos de nuvens
no céu, altas como no Verão. Bela terra esta, banhada pela luz da tarde. Hoje
parece que estou a vê-la pela primeira vez.
A FILHA:
Uma atmosfera de Adalbert Stifter.
ALFRED:
De quem?
A MULHER DE ALFRED:
A Otília também estuda literatura.
ALFRED:
Coisa fina!
O Filho:
Lá vem o Hofbauer com o seu Volkswagen. Vem de Kaffigen.
A FILHA:
Com os leitões.
A MULHER DE ALFRED:
O Karl conduz bem. Muito elegante a fazer as curvas. Não precisamos de ter medo.
O FILHO:
Primeira, que agora é a subir.
ALFRED:
Eu ficava sempre de língua de fora quando a subia a pé.
A MULHER DE ALFRED:
Ainda bem que trouxe o casaco de peles. Está a ficar fresco.
ALFRED:
Enganaste-te no caminho. Esta é a estrada para Beisenbach. Tens de voltar para
trás e depois à esquerda, pela Mata de S. Conrado.
O PRIMEIRO:
Voltamos a ser abetos e faias.
O SEGUNDO:
Pica-pau, cuco e tímida corça.
O TERCEIRO:
Catedrais de hera, escuros bolores.
O QUARTO:
Como em poemas do princípio do mundo.
101
O Filho apita.
O FILHO:
Outra corça. E nem sai da estrada, a bicha.
A FILHA:
Nem se assustam. Já ninguém caça.
ALFRED:
Pára ali debaixo daquelas árvores.
O FILHO:
Está bem.
A MULHER DE ALFRED:
O que é que vais fazer?
ALFRED:
Quero andar um pouco na floresta. (Levanta-se.) Que bonito, os sinos a tocar lá
longe em Güllen. Hora de largar o trabalho.
O FILHO:
Quatro sinos. Agora sim, é que soa bem.
ALFRED:
Está tudo a amarelecer, agora é que chegou mesmo o Outono. As folhas no chão
parecem montinhos de ouro. (Bate com os pés andando na mata.)
O FILHO:
Esoperamos por ti lá em baixo, junto da ponte.
ALFRED:
Não é preciso. Atalho caminho pela mata até à cidade. Vou à Assembleia Municipal.
A MULHER DE ALFRED:
Então nós seguimos até Kalberstadt, Alfred, vamos ao cinema.
A FILHA:
So long, Daddy.
A MULHER DE ALFRED:
Até logo, até logo!
A família desaparece com as cadeiras. Alfred fica a olhar para eles. Senta-se no
banco de madeira, do lado esquerdo.
102
CLAIRE ZACHANASSIAN:
A Mata de S. Conrado. Roby e Toby, parem.
Claire Zachanassian desce da liteira, observa a floresta pelo lorgnon, passa a mão
pelas costas do Primeiro.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
O escaravelho da casca. Esta árvore vai morrer. (Repara em Alfred.) Alfred! Ainda
bem que te encontro. Vim fazer uma visita à minha floresta.
ALFRED:
Então a Mata de S. Conrado também já te pertence?
CLAIRE ZACHANASSIAN:
É verdade. Posso sentar-me?
ALFRED:
Claro que sim. Acabei de me despedir da minha família. Foram ao cinema. O Karl
comprou um carro.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
É o progresso. (Senta-se à direita de Alfred.)
ALFRED:
A Otília começou a estudar literatura, e Inglês e Francês.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Estás a ver? Afinal sempre têm os seus ideais. Zoby, chega cá, cumprimenta este
senhor. O meu nono marido. Prémio Nobel.
ALFRED:
Muito prazer.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Este fica muito estranho quando não pensa. Zoby, tenta não pensar.
MARIDO IX:
Deixa-te disso, querida...
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Vá lá, não te faças rogado.
MARIDO IX:
103
ALFRED:
E os dois eunucos?
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Começaram a dar com a língua nos dentes. Mandei-os para Banguecoque, para um
dos meus antros de ópio. Aí podem fumar e sonhar. E em breve o Mordomo também
vai. Já não preciso dele. Boby, dá-me um «Romeu e Julieta».
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Também queres um, Alfred?
ALFRED:
Aceito.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Então tira um. Boby, lume!
Fumam os dois.
ALFRED:
Cheira muito bem.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Nesta mata fumámos muitas vezes os dois, lembras-te? Cigarros que tu compravas
na loja da Matilde. Ou roubavas.
104
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Lá está outra vez o pica-pau.
O QUARTO:
Cucu, cucu!
ALFRED:
E o cuco.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Queres que o Roby toque uma musiquinha na guitarra?
ALFRED:
Pode ser.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Ele toca bem, o facínora amnistiado. Preciso dele para os meus minutos de
meditação. Odeio grafonolas e rádios.
ALFRED:
«No desfiladeiro africano marcha um batalhão».
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Era a tua canção preferida. Ensinei-lha.
Silêncio. Ambos fumam. Ouve-se o cuco, etc. Rumorejar da floresta. Roby toca a
balada.
ALFRED:
Tu tiveste – quero dizer, tivemos um filho.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
É verdade.
ALFRED:
E era menino ou menina?
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Uma menina.
ALFRED:
E que nome lhe deste?
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Geneviève.
ALFRED:
Bonito nome.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
105
ALFRED:
E morreu em casa de quem?
CLAIRE ZACHANASSIAN:
De umas pessoas, já me esqueci do nome.
ALFRED:
E morreu de quê?
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Meningite. Talvez também tivesse qualquer outra coisa. Recebi um postal das
autoridades.
ALFRED:
Em casos de morte eles nunca falham.
Silêncio.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Falei-te da nossa menina. Agora fala-me tu de mim.
ALFRED:
De ti?
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Sim, como eu era com dezassete anos, quando me amavas.
ALFRED:
Uma vez andei muito tempo à tua procura no palheiro do Peter, e encontrei-te na
charrete, só em camisa e com uma palhinha comprida entre os lábios.
106
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Tu eras forte e atrevido. Uma vez andaste à pancada com o ferroviário que andava
atrás de mim. E eu limpei-te o sangue da cara com a minha combinação vermelha.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Acabou a balada.
ALFRED:
Gostava de ouvir também «Não há terra como a nossa».
CLAIRE ZACHANASSIAN:
O Roby também sabe essa.
ALFRED:
Agora acabou-se tudo. Estamos aqui sentados pela última vez na nossa mata
assombrada, cheia de cucos e rumor do vento.
ALFRED:
Esta noite reune-se a Assembleia Municipal. Vão condenar-me à morte, e um deles
há-de matar-me. Não sei quem será nem onde acontecerá, só sei que termina aqui a
minha vida sem sentido.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Eu amei-te em tempos. Tu traíste-me. Mas não esqueci o sonho de viver, de amar,
de confiar, esse sonho real de um tempo perdido. Quero voltar a realizá-lo com os
meus milhões, mudar o passado acabando contigo.
ALFRED:
Agradeço as coroas de flores, os crisântemos e as rosas.
ALFRED:
Ficam bem no caixão, no «Apóstolo Dourado». Muito elegante.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
107
Vou levar-te para Capri no teu caixão. Já mandei construir um mausoléu no parque
do meu palácio. Rodeado de ciprestes. E com vista para o Mediterrâneo.
ALFRED:
Só conheço de fotografias.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
É de um azul profundo. Um panorama grandioso. Vais ficar ali, ao pé de mim.
ALFRED:
Pronto, acabou também a balada «Não há terra como a nossa».
O Marido IX regressa.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
O Prémio Nobel. Vem de estudar a sua ruína. E então, Zoby?
MARIDO IX:
Paleocristão. Destruído pelos Hunos.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Pena. Dá-me o braço. Roby e Toby, tragam a liteira.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Adeus, Alfred.
ALFRED:
Adeus, Claire.
A liteira é levada para o fundo, Alfred continua sentado no banco. As árvores baixam
os ramos. De cima desce o proscénio de um teatro, com os habituais panos e
cortinados, e a inscrição «A vida é séria, a arte é alegre». Do fundo entra o Polícia
com uma farda nova, sumptuosa, e senta-se ao lado de Alfred. Entra um repórter da
rádio, começa a testar o microfone, enquanto os habitantes de Güllen afluem. Toda
a gente de fato novo, festivo, de fraque. Muitos fotógrafos de imprensa, jornalistas,
câmaras de filmar.
O LOCUTOR DA RÁDIO:
Minhas senhoras e meus senhores! Depois da reportagem na casa da senhora
Zachanassian e da conversa com o Padre local, estamos agora a assistir a uma
reunião da comunidade. Chegamos ao ponto alto da visita que Claire Zachanassian
108
fez à sua terra natal, de gente simpática e ambiente acolhedor. É certo que esta
celebridade não está presente, mas o Presidente da Câmara fará em seu nome uma
importante declaração. Encontramo-nos na sala do teatro do «Apóstolo Dourado», o
hotel onde Goethe pernoitou em tempos. No palco, que normalmente serve para
eventos das associações e recebe as companhias visitantes do Teatro Municipal de
Kalberstadt, estão reunidos os homens. Segue-se uma velha tradição, como acaba
de nos dizer o Presidente da Câmara. As mulheres sentam-se na plateia - também
isto de acordo com a tradição. O ambiente é de festa, a tensão grande, temos aqui
as actualidades cinematográficas, os meus colegas da televisão, repórteres do
mundo inteiro, e agora o Presidente da Câmara toma a palavra.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Dou as boas-vindas aos munícipes de Güllen, e declaro aberta a Assembleia.
Ordem de Trabalhos: um único ponto. Tenho a honra de anunciar que a senhora
Claire Zachanassian, filha do nosso ilustre conterrâneo, o arquitecto Gottfried
Wäscher, decidiu doar a esta cidade mil milhões [de Euros?].
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Quinhentos milhões para o município e quinhentos milhões a distribuir por todos os
cidadãos.
Silêncio.
O PROFESSOR:
Caros concidadãos, temos de ter consciência de que a senhora Zachanassian tem
uma intenção muito clara com esta doação. E que intenção é essa? Será que quer
tornar-nos felizes dando-nos dinheiro? Sanear as fábricas Wagner, a siderurgia Um
Lugar ao Sol, a firma Bockmann? Sabeis todos que não se trata disso. Os planos da
senhora Zachanassian visam algo de mais importante. Pelos seus milhões, ela pede
em troca justiça, a justiça. Pretende que a nossa comunidade se transforme numa
comunidade justa. Esta exigência deixa-nos perplexos. Então nós não fomos uma
comunidade justa até agora?
O PRIMEIRO:
Nunca o fomos!
O SEGUNDO:
Tolerámos entre nós um crime!
O TERCEIRO:
Uma sentença viciada!
O QUARTO:
Falso testemunho!
VOZ DE MULHER:
Um patife!
OUTRA VOZ:
Isso mesmo!
O PROFESSOR:
Gente de Güllen! É esta a amarga realidade dos factos: nós tolerámos a injustiça!
Reconheço agora perfeitamente as possibilidades materiais que nos são oferecidas
por estes milhões. De modo nenhum me esqueço de que a pobreza é a causa de
tanta desgraça e tanta amargura. E no entanto digo-vos: não se trata de dinheiro
(estrondosos aplausos), não se trata de riqueza e bem-estar, não se trata de luxo –
trata-se de saber se queremos fazer justiça. E não apenas disso: trata-se também
de manter vivos os ideais pelos quais os nossos avós viveram, que defenderam e
pelos quais morreram. Os valores que são a base deste nosso mundo ocidental!
(Estrondosos aplausos.) Está em jogo a liberdade quando se atinge o amor do
próximo, se despreza a obrigação de proteger os mais fracos, se ofende a instituição
do matrimónio, se engana um tribunal e se atira para a desgraça uma jovem mãe.
(Gritos de «Uma vergonha!») Agora, em nome de Deus, temos de levar a sério estes
nossos ideais, muito a sério. (Estrondosos aplausos.) A riqueza só faz sentido
quando dela nasce a riqueza do perdão: mas só pode ser perdoado quem aspira ao
perdão. Tendes vós, cidadãos de Güllen, esta fome do espírito, e não apenas a
110
outra, a profana, a do corpo? É esta a questão que eu, enquanto reitor do Liceu de
Güllen, vos quero colocar. Só se não puderdes suportar o mal, só se não puderdes
de modo algum viver num mundo de injustiça, só nestas condições podereis aceitar
os milhões da senhora Zachanassian e concretizar a condição associada a esta
doação. Peço-vos, cidadãos de Güllen, que penseis bem nisto.
Aplauso ensudercedor.
O REPÓRTER DA RÁDIO:
Estão a ouvir os aplausos, minhas senhoras e meus senhores. Estou siderado. O
discurso do Reitor foi exemplo de uma grandeza moral que hoje – infelizmente – já
raras vezes podemos testemunhar. O discurso apontou corajosamente situações
negativas gerais, injustiças, como as que acontecem em qualquer comunidade, em
qualquer parte onde haja seres humanos.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Alfred Ill...
O REPÓRTER DA RÁDIO:
O Presidente da Câmara volta a tomar a palavra.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Alfred Ill, tenho uma pergunta a fazer-lhe.
O REPÓRTER DA RÁDIO:
E agora a voz do homem que sugeriu a criação da Fundação Zachanassian, a voz
de Alfred Ill, o amigo de juventude da benfeitora. Alfred Ill é um homem bem
conservado, com cerca de setenta anos, um homem da cepa antiga de Güllen,
naturalmente emocionado, cheio de gratidão, cheio de uma serena felicidade.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Por sua causa foi-nos proposta esta doação, Alfred Ill. Tem consciência disso?
O REPÓRTER DA RÁDIO:
O senhor tem de falar mais alto, bom homem, para os nossos ouvintes entenderem
o que diz.
ALFRED:
111
Sim.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Vai respeitar a nossa decisão sobre a aceitação ou rejeição da doação de Claire
Zachanassian?
ALFRED:
Respeitarei a vossa decisão.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Alguém quer fazer alguma pergunta a Alfred Ill?
Silêncio.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Alguém tem alguma observação a fazer sobre a doação da senhora Zachanassian?
Silêncio.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Talvez o senhor Padre?
Silêncio.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
O senhor doutor?
Silêncio.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
A Polícia?
Silêncio.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
A oposição política?
Silêncio.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Assim sendo, vamos proceder à votação.
112
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Aqueles que, em boa consciência, desejam que se faça justiça, levantem o braço.
O REPÓRTER DA RÁDIO:
Silêncio e recolhimento em toda a sala. Um mar de mãos levantadas, como uma
poderosa conspiração por um mundo melhor e mais justo. Apenas o velho homem
se deixou ficar como estava, dominado pela sua alegria. Alcançou o seu objectivo,
vai nascer a Fundação graças à sua generosa amiga de juventude.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
A doação de Claire Zachanassian foi aceite. Por unanimidade. Não pelo dinheiro...
TODA A COMUNIDADE:
Não pelo dinheiro...
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
... mas pela justiça...
TODA A COMUNIDADE:
... mas pela justiça...
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
... e pela força da consciência.
TODA A COMUNIDADE:
... e pela força da consciência.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Pois não podemos viver tolerando entre nós um crime...
TODA A COMUNIDADE:
Pois não podemos viver tolerando entre nós um crime...
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
... que temos de extirpar...
TODA A COMUNIDADE:
... que temos de extirpar...
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
... para que as nossas almas não sofram...
TODA A COMUNIDADE:
... para que as nossas almas não sofram...
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
113
O OPERADOR DE CÂMARA:
Que pena, senhor Presidente. A iluminação falhou. Peço-lhe que repita a votação
final.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Outra vez?
O OPERADOR DE CÂMARA:
É para as actualidades da semana.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Mas, naturalmente.
O OPERADOR DE CÂMARA:
Os projectores estão em ordem?
UMA VOZ:
Tudo em ordem.
O OPERADOR DE CÂMARA:
Então vamos lá!
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Aqueles que, em boa consciência, desejam que se faça justiça, levantem o braço.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
A doação de Claire Zachanassian foi aceite. Por unanimidade. Não pelo dinheiro...
TODA A COMUNIDADE:
Não pelo dinheiro...
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
... mas pela justiça...
114
TODA A COMUNIDADE:
... mas pela justiça...
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
... e pela força da consciência.
TODA A COMUNIDADE:
... e pela força da consciência.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Pois não podemos viver tolerando entre nós um crime...
TODA A COMUNIDADE:
Pois não podemos viver tolerando entre nós um crime...
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
... que temos de extirpar...
TODA A COMUNIDADE:
... que temos de extirpar...
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
... para que as nossas almas não sofram...
TODA A COMUNIDADE:
... para que as nossas almas não sofram...
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
... nem os nossos mais sagrados bens.
TODA A COMUNIDADE:
... nem os nossos mais sagrados bens.
Silêncio.
Silêncio.
O POLÍCIA:
Tu ficas! (Obriga Alfred a sentar-se de novo.)
ALFRED:
Querem acabar com isto ainda hoje?
O POLÍCIA:
Naturalmente.
ALFRED:
Pensei que o melhor era ser em minha casa.
O POLÍCIA:
Vai ser aqui mesmo.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Já não há ninguém na sala?
O TERCEIRO:
Ninguém.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
E nas galerias?
O QUARTO:
Estão vazias.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Fechem as portas. Ninguém mais pode entrar na sala.
O TERCEIRO:
Está fechada.
O QUARTO:
Está fechada.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Apaguem as luzes. A lua cheia entra pelas janelas da galeria. É quanto basta.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Formem duas alas.
Os homens de Güllen formam uma rua em duas alas. Na ponta final está o ginasta,
agora de calças brancas elegantes, com um lenço vermelho sobre o fato de
ginástica.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Senhor Padre, faça favor.
O PADRE:
Bom, Alfred, chegou a sua hora.
ALFRED:
Um cigarro.
O PADRE:
Um cigarro, senhor Presidente.
O PRESIDENTE DA CÂMARA, afectuoso:
Mas com certeza. Dos melhores.
Dá o maço ao Padre, que o estende a Alfred. Este tira um cigarro, o Polícia dá-lhe
lume, o Padre volta a dar o maço ao Presidente.
O PADRE:
Como já disse o profeta Amós...
ALFRED:
Por favor, não. (Fuma.)
O PADRE:
Não tem medo?
ALFRED:
Nem por isso. (Fuma.)
O PADRE, sem saber o que fazer:
Vou rezar por si.
ALFRED:
Reze por Güllen.
O PADRE:
Que Deus tenha piedade de nós.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Levante-se, Alfred Ill.
Alfred hesita.
O POLÍCIA:
Levanta-te, filho da puta! (Puxa-o e levanta-o no ar.)
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Senhor Chefe, tenha maneiras!
O Polícia:
Desculpe. Passei-me!
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Venha, Alfred Ill.
Alfred deixa cair o cigarro, apaga a beata com o pé. Depois vai lentamente até ao
meio do palco, de costas voltadas para o público.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Entre nas filas dos homens.
Alfred hesita.
O POLÍCIA:
Vai, estás à espera de quê?
JORNALISTA I:
118
O MÉDICO:
Ataque cardíaco.
Silêncio.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Não aguentou, de alegria.
JORNALISTA I:
Não aguentou, de alegria.
JORNALISTA II:
A vida escreve as mais belas histórias.
JORNALISTA I:
Vamos ao trabalho.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Tragam-no aqui.
Roby e Toby trazem uma maca, colocam Alfred na maca e pôem-no aos pés de
Claire Zachanassian.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Ponham-no no caixão.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Boby, leva-me para o meu quarto. Manda fazer as malas. Vamos para Capri.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
Senhor Presidente.
CLAIRE ZACHANASSIAN:
O cheque. (Dá-lhe um papel e sai com o Mordomo.)
CORO I:
Coisas portentosas acontecem
120
Violentos terramotos
Montes que cospem fogo, vagas vindas dos mares
Guerras também, tanques arrasando campos de trigo
O cogumelo solar da bomba atómica.
CORO II:
Mas nada é mais terrível que a pobreza
Que não quer saber de aventuras
Mas cerca o desolado género humano
Alinhando um a um os dias, num deserto.
AS MULHERES:
Impotentes, as mães vêem os seus mais queridos
Ir morrendo aos poucos.
OS HOMENS:
O homem, esse
Rumina a revolta
Pensa em traições.
O PRIMEIRO:
Arrasta-se com os seus sapatos velhos
O TERCEIRO:
Charuto mal cheiroso entre dentes
CORO I:
Pois os lugares de trabalho, que antes davam o pão
Estão vazios
Coro II:
E os comboios rápidos já não param aqui
TODOS:
Mas graças a Deus
A MULHER DE ALFRED:
Que um destino favorável
TODOS:
Tudo veio mudar.
AS MULHERES:
Agora, já vestidos decentes
Nos envolvem os corpos delicados
O FILHO:
E o rapaz conduz o carro desportivo
OS HOMENS:
E o comerciante a sua limusine
121
A FILHA:
A rapariga corre atrás da bola na terra vermelha
O MÉDICO:
Na nova sala de operações, o médico, feliz, opera
TODOS:
O jantar
Fumega na casa. Satisfeitos
Bem calçados
Todos saboreiam a erva fina de bons charutos.
O PROFESSOR:
Sedentos de saber aprendem os sedentos de saber.
O SEGUNDO:
O eficiente industrial acumula tesouro sobre tesouro
TODOS:
Rembrandt segue-se a Rubens
O PINTOR:
A arte sustenta plenamente o artista.
O PADRE:
No Natal, na Páscoa e no Pentecostes
A igreja enche-se de fiéis
TODOS:
E os comboios, refulgentes,
Deslizam céleres por carris de ferro
De cidade em cidade, unindo os povos,
Com paragem certa aqui.
O REVISOR:
Güllen!
O CHEFE DA ESTAÇÃO:
Comboio rápido Güllen-Roma, embarque imediato! Carruagem de luxo à frente!
Do fundo chega Claire Zachanassian na sua liteira, imóvel, como um ídolo de pedra
antigo. Passa entre os dois coros, acompanhada do seu séquito.
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
A benfeitora
122
TODOS:
que nos arrancou à miséria
A FILHA:
vai partir
TODOS:
com os seus nobres acompanhantes!
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
Bem haja, a nossa protectora.
TODOS:
Leva consigo um bem precioso que lhe foi confiado.
O CHEFE DA ESTAÇÃO:
Partida!
TODOS:
Que nos seja dado conservar
O PADRE:
– Que Deus o queira –
TODOS:
Nestes tempos vertiginosos e difíceis
O PRESIDENTE DA CÂMARA:
A prosperidade
TODOS:
Que Ele proteja os nossos sagrados bens,
mantenha a paz,
garanta a liberdade.
Longe fiquem as trevas –
Que nunca mais desçam sobre a nossa cidade,
Renascida das cinzas, esplendorosa,
Para, felizes, podermos desfrutar desta felicidade.
FIM