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Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem (Org.

)
Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem (Org.)

ANAIS PATRIMÔNIOS EM SILÊNCIO


2021

Maceió/AL
2022
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS

Reitor
Josealdo Tonholo
Vice-reitora
Eliane Aparecida Holanda Cavalcanti
Diretor da Edufal
José Ivamilson Silva Barbalho
Conselho Editorial Edufal
José Ivamilson Silva Barbalho (Presidente)
Fernanda Lins de Lima (Secretária)
Adriana Nunes de Souza
Bruno Cesar Cavalcanti
Cicero Péricles de Oliveira Carvalho
Elaine Cristina Pimentel Costa
Gauss Silvestre Andrade Lima
Maria Helena Mendes Lessa
João Xavier de Araújo Junior
Jorge Eduardo de Oliveira
Maria Alice Araújo Oliveira
Maria Amélia Jundurian Corá
Michelle Reis de Macedo
Rachel Rocha de Almeida Barros
Thiago Trindade Matias
Walter Matias Lima

Coordenação Editorial:
Fernanda lins
A formatação de cada artigo foi da responsabilidade de cada autor
bem como a escolha da sua inserção nos Nós.

Catalogação na fonte
Universidade Federal de Alagoas
Biblioteca Central
Divisão de Tratamento Técnico
Bibliotecária Responsável: Helena Cristina Pimentel do Vale CRB4 - 661

N897 Nós : Caderno do I Congresso Internacional Estudos da Paisagem (2021) : anais


patrimônio em silêncio / [organizado por]: Grupo de Pesquisa Estudos da
Paisagem ; projeto gráfico: Suzany Marihá Ferreira Feitoza e Ana Karolina
Barbosa Corado Carneiro. – Maceió : Edufal, 2022. E-book.
1.699 p. : il.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5624-094-7.

1. Arquitetura. 2. Urbanismo. 3. Patrimônio material. 4. Patrimônio intangível.


5. Silêncio. I. Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem. II. Feitoza, Suzany Marihá
Ferreira. III. Carneiro, Ana Karolina Barbosa Corado Carneiro.

CDU: 711.4

Direitos desta edição reservados à


Edufal - Editora da Universidade Federal de Alagoas
Av. Lourival Melo Mota, s/n - Campus A. C. Simões Editora afiliada:
Centro de Interesse Comunitário - CIC
Cidade Universitária, Maceió/AL Cep.: 57072-970
Contatos: www.edufal.com.br | contato@edufal.com.br | (82) 3214-1111/1113
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA
DE EDIT ORAS UNIVERSITÁRIAS
ORGANIZAÇÃO
ORGANIZAÇÃO GERAL
Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem

COORDENAÇÃO GERAL
Maria Angélica da Silva (PPGAU FAU/UFAL)

COMITÊ ORGANIZADOR
Coord.: Fábio Henrique Sales Nogueira (UNIT/AL, doutorando PPGAU FAU/UFAL,
coordenador do Laboratório de Criação Taba-êtê)

Ana Karolina Barbosa Corado Carneiro (Mestra PPGAU FAU/UFAL)


Arlindo Cardoso (Designer, mestrando PPGAU FAU/UFAL)
Dayse Luckwü Martins (Dau/UFPE, doutora MDU/UFPE)
Karina de Magalhães (Arquiteta e Urbanista, mestranda PPGAU FAU/UFAL)
Louise Cerqueira (Faculdade Pitágoras, doutora PPGAU FAU/UFAL)
Marina Milito (IFAL, doutoranda PPGAU FAU/UFAL)
Suzany Marihá Ferreira Feitoza (Designer, mestranda PPGAU FAU/UFAL)
Taciana Santiago (Arquiteta e Urbanista, doutoranda PPGAU FAU/UFAL)
Tamires Aleixo Cassella (Arquiteta e Urbanista, doutoranda PPGAU FAU/UFAL)
Thalita Melo (UNIT/AL, doutoranda PPGAU FAU/UFAL)

COMITÊ DE ARTE E DESIGN


Coord.: Ana Karolina Barbosa Corado Carneiro (Mestra PPGAU FAU/UFAL)

Arlindo Cardoso (Designer, mestrando PPGAU FAU/UFAL)


Fábio Henrique Sales Nogueira (UNIT/AL, doutorando PPGAU FAU/UFAL,
coordenador do Laboratório de Criação Taba-êtê)
José Rudá Rodrigues Lopes (Graduando FAU/UFAL)
Suzany Marihá Ferreira Feitoza (Designer, mestranda PPGAU FAU/UFAL)
Tamires Aleixo Cassella (Arquiteta e Urbanista, doutoranda PPGAU FAU/UFAL)
Thalita Melo (UNIT/AL, doutoranda PPGAU FAU/UFAL)

COMITÊ DE LOGÍSTICA
Coord.: Marina Milito (IFAL, doutoranda PPGAU FAU/UFAL)

Gibson Melo de Albuquerque (Arquiteto e Urbanista, doutorando PPGAU FAU/UFAL)


Karina de Magalhães (Arquiteta e Urbanista, mestranda PPGAU FAU/UFAL)
Katherine Arestegui (Arquiteta e Urbanista)
Rafael Almeida (Designer, mestrando PPGAU FAU/UFAL)

COLABORADORES
Bianca Machado Muniz (UNIT/AL, doutoranda PPGAU FAU/UFAL)
Camila Ferreira (Graduanda FAU/UFAL)
Jaianny Duarte (Arquiteta e Urbanista, mestre PPGAU FAU/UFAL)
ADRIANA GUIMARÃES

COMITÊ CIENTÍFICO
Doutorado em Arquitetura e Urbanismo - UFAL
Docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - UFAL

ANA CLÁUDIA MAGALHÃES


Doutorado em Arquitetura e Urbanismo - UFAL
Conservadora/restauradora de bens culturais móveis do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN

ANA FLÁVIA MAGALHÃES PINTO


Doutorado em História - UNICAMP
Docente do Departamento de História - UnB

DANIELA KABENGELE
Doutorado em Antropologia - UNICAMP
Docente do Centro Universitário Tiradentes - UNIT

ELVIRA BARRETO
Doutorado em Jornalismo - Universidade Autônoma de Barcelona - UAB
Docente da Faculdade de Serviço Social - UFAL

FERNANDA RECHENBERG
Doutorado em Antropologia Social - UFRGS
Docente do Instituto de Ciências Sociais - UFAL

GABRIELA LEANDRO PEREIRA


Doutorado em Arquitetura e Urbanismo - UFBA / Universidade de Coimbra
Docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - UFBA

JOSEMARY FERRARE
Doutorado em Arquitetura / História do Urbanismo - Universidade do Porto
Docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - UFAL

JULIANA MICHAELLO DIAS


Doutorado em Planejamento Urbano e Regional - UFRJ
Docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - UFAL

LINDEMBERG MEDEIROS
Doutorado em Turismo - Sheffield Hallam University
Docente do Instituto de Geografia, Desenvolvimento e Meio Ambiente - UFAL

LUIZ ANTONIO BAPTISTA


Doutorado em Psicologia - USP
Docente do Instituto de Psicologia - UFF
COMITÊ CIENTÍFICO
LUIZ AMORIM
Doutorado em Advanced Architectural Studies - University College London
Docente do Departamento de Arquitetura e Urbanismo - UFPE

MARCELO TRAMONTANO
Doutorado em Arquitetura e Urbanismo - USP
Docente do Instituto de Arquitetura e Urbanismo - USP

MARGARETH PEREIRA
Doutorado em História - École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS
Docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - UFRJ

MARIA ANGÉLICA DA SILVA


Doutorado em História - UFF / Architectural Association School
Docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - UFAL

PAOLA BERENSTEIN JACQUES


Doutorado em História da Arte e da Arquitetura - Université Paris 1 Pantheon-Sorbonne
Docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - UFBA

PEDRO FIDALGO
Doutorado em Urbanismo - Universidad Politécnica de Madrid
Docente da Universidade de Nova Lisboa

RODRIGO BAETA
Doutorado em Arquitetura e Urbanismo -
UFBA / Università degli Studi di Roma La Sapienza
Docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - UFBA

ROSELINE OLIVEIRA
Doutorado em Arquitetura e Urbanismo - UFBA
Docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - UFAL

VITOR TEIXEIRA
Doutorado em História
Docente da Faculdade de Artes da Universidade do Porto

VLADIMIR BARTALINI
Doutorado em Arquitetura e Urbanismo - USP
Docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo - USP
“Eu nasci. A matéria da qual sou
feito não tem nada de meramente
presente. Eu transmito um
passado ancestral e estou
destinado ao futuro inimaginável.
Eu sou um tempo heteróclito,
inconciliável, não atribuível a uma
época ou a um momento. Eu sou
a reação dos múltiplos momentos
na superfície de Gaia.”

Emanuele Coccia
Tenho a satisfação de apresentar os anais do I Congresso
Internacional Estudos da Paisagem, que ocorreu de 2 a 4 de
junho de 2021, versando sobre o tema “Patrimônios em silêncio”.
Ao tratar destas marcas, materiais ou não, buscou-se
simultaneamente um afinamento com o presente e com as
demandas de se pensar temporalidades na longa duração.
Um foco não só nos objetos, mas no patrimônio da vida, que,
pela pandemia, tornou ainda mais urgente a necessidade de
nos vermos como um coletivo, uma única família: nós.

O evento foi uma realização do Grupo de Pesquisa Estudos da


Paisagem, do Programa de Pós-graduação da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Alagoas e
contou com o apoio do IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil),
da UNIT (Universidade Tiradentes), do Iphan (Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e da Escola Técnica
de Artes de Alagoas.

Desde o início dos trabalhos de organização, desenvolvidos


antes da pandemia, a meta não era só instigar pessoas a
discutir ideias, mas, principalmente, oferecer a oportunidade
de compartilharem experiências concretas. Espelhando a
pauta metodológica do Grupo de Pesquisa Estudos da
Paisagem, tratava-se de realizar um congresso que ocorresse
fisicamente em um dos mais antigos bairros da cidade de
Maceió, no qual parte da programação fosse dispendida no
caminhar pela cidade, mostrando, para além da fachada de
turismo de sol e mar, outras vertentes da capital alagoana,
rumo aos seus próprios “patrimônios em silêncio”.

Com a adoção do formato online, ainda buscamos ativar


alguns recursos que, mesmo através das redes sociais,
possibilitasse a troca entre os participantes, seja sugerindo
uma contribuição na denominação e organização das mesas,
seja buscando conexão através do envio surpresa de
correspondência que, no caso, tratou-se de cartazes e postais
com informações sobre produções audiovisuais locais em
conexão com os temas tratados no evento.
Nesta publicação trazemos os 154 trabalhos completos apresentados no congresso,
que se organizou sob a inspiração das imagens e alegorias trazidas pelas palavras
teias e nós. Teias foi o nome dado a rodas de conversa que ocorreram a partir de
temas pertinentes aos tempos de hoje, como a pandemia e os desastres ambientais.
E os Nós foram apresentados como subtemas para nortear a submissão de
trabalhos ao evento.

Ariadne tecia o seu fio e ele era ao mesmo tempo, prova de amor, referência, apoio
em momento de insegurança e possiblidade de superação de desafios. Era conexão
e sobrevivência. Assim também, os nós, no congresso, buscaram unir pessoas em
trocas acerca das diversas possiblidades que o conceito de patrimônio encerra, ou
seja, o bem comum das sociedades, em um momento crítico deste teste de ruptura
que foi e está sendo a pandemia.

No congresso, foram nós de interesse os patrimônios reconhecidos, mas também os


esquecidos e aqueles que ainda não se configuram como patrimônio nos discursos
oficiais. Nós trataram de silêncios mas também de silenciamentos, de histórias que
foram caladas, de pensamentos ligados a cosmologias negligenciadas, de
patrimônios rasgados, destruídos, desfeitos. Do corpo como patrimônio.
Dilacerado, maltratado, faminto.

Mas, por outro lado, ressaltaram-se os nós de solidariedade, incansáveis contra o


que está posto na atualidade. As resistências, o contraponto, o apesar de tudo: da
floresta, do rio morto, da voz calada, dos saberes esquecidos, das tentativas de
apagamento da ciência e da arte, da fome, da dor, da ruína. A necessidade de
pensar a História como revisita e a Terra como casa.

Seguem abaixo, portanto, os nós que convidaram os autores à escrita dos textos
que temos a alegria de compartilhar para a leitura.

Nó 1: O silêncio do patrimônio reconhecido

Aborda as expressões do patrimônio na dimensão da cidade, da paisagem, dos


bens isolados e de práticas culturais que alcançaram o reconhecimento oficial
através do tombamento ou do registro, mas que passam por algum processo de
silenciamento, desde ocaso físico (abandono, ruína, demolição), usos interrompidos
a práticas fragilizadas no presente, seja pela ausência de repercussão comunitária,
pela colisão com a defesa do meio ambiente ou com os processos velozes da
contemporaneidade.

Nó 2: O silêncio entre vozes em diálogo

A condição de silêncio possibilita ouvir o outro. Abrange narrativas sobre um lugar


de fala, a diversidade de discursos em confluência ou em conflito sobre um mesmo
bem, as reapropriações e as ressignificações do patrimônio. Aborda também as
práticas que se dão através das interfaces promovidas por diferentes universos,
como o da arte, seja através da literatura, cinema, música, dança ou das redes
digitais.

Nó 3: O silêncio como esquecimento e mordaça

Diz respeito a legados e manifestações marcadas por cicatrizes que se relacionam


com traumas e opressão, e seus complexos processos de lembrança e
esquecimento. Busca promover discussões que tangenciem, dentre outros, o tema
da dissipação da memória do passado para fazer cessar uma dor, mas também
para fazer calar a dor do outro e não reconhecer ou reparar o erro. Além disso,
aborda temas do presente: vozes e manifestações vivas que persistem em vir das
margens, das periferias, das minorias e dos oprimidos, que são negligenciados no
fazer-se ouvir ou que sofrem tentativas diretas de se fazerem silenciadas. Como
exemplo citam-se os contextos relacionados a desastres naturais, crimes
ambientais, acidentes e marcas oriundas de guerras e de exploração humana,
episódios de repressão religiosa e cultural, entre outros. Abarca inclusive o nosso
próprio barulho, incomodando o calar da terra, o ritmo da natureza, a calma da
atmosfera.

Nó 4: O silêncio dos silentes, dos mistérios

Coloca-se aberto ao patrimônio e à introspecção, mas também às manifestações


culturais que aludem ao imaginário, ao fantástico, ao sagrado. Pode se referir à
lacuna que abriga o silêncio: a pausa, o esquecimento e o ocultamento que
escapam, intencionalmente ou não, dos processos de representação. Abrange
discussões que envolvem lendas, ritos, religiosidade, ao que tende à
impenetrabilidade institucional. Aborda também o patrimônio na dimensão da
imagem e das sensorialidades; além daquela que pressupõe deciframentos, como
os processos de compreensão das pinturas rupestres, da atribuição de autorias,
dentre outros.

Nó cego

Outros silêncios que não se fazem presentes nos nós anteriores.

Agradecemos a contribuição de todos, a começar pelos autores e ao comitê


científico que nos ajudou no processo seletivo dos trabalhos. O comitê foi composto
por pesquisadores da UFAL e de outras instituições, não só o campo da Arquitetura
e Urbanismo, mas também da História, das Ciências Sociais, da Antropologia, da
Geografia, da Dança, da Psicologia. Contamos com membro do quadro do Iphan,
docentes de instituições nacionais (Universidade Tiradentes, Universidade de São
Paulo, Universidade Federal Fluminense, da Bahia, de Pernambuco, do Rio de
Janeiro) e estrangeiras, como da Universidade Nova de Lisboa e Universidade
Católica Portuguesa, em um total de 21 membros. Estendemos este agradecimento
a tantos outros que uniram seus esforços para que o evento pudesse acontecer,
atuando na organização, na produção ou nos enriquecimentos artísticos que
compuseram o congresso, em tempos tão adversos mas impressionantemente ricos
que atravessamos agora.

Maria Angélica da Silva


Pela comissão Organizadora do
I Congresso Internacional Estudos da Paisagem
SUMÁRIO
NÓ 1 O SILÊNCIO DO PATRIMÔNIO RECONHECIDO

A ARACAJU ECLÉTICA E SUAS FACHADAS APAGADAS DA HISTÓRIA


Camila Rodrigues dos Santos 27

A URBANIZAÇÃO NO SERTÃO CARIOCA DE JACAREPAGUÁ: contradições


em torno da Casa da Fazenda do Engenho d'Água
Gabriel Teixeira Barros, Ulisses da Silva Fernandes 37
AS NUANCES DE ILUMINAÇÃO EM UMA PRAÇA HISTÓRICA FRANCESA
Vivian Dall'Igna Ecker 51
AS RUÍNAS DA IGREJA MATRIZ DO SENHOR DO BOM JESUS DOS AFLITOS:
entre a memória e o esquecimento
Edileuza Barbosa de Amorim, Taise Costa de Farias 62
ARQUITETURA E PRESERVAÇÃO: estudo de caso sobre o estado atual da
Estação Ferroviária Nova de Campina Grande-PB
Anderson Khallyl Farias Gomes, Juliana Leite Evangelista Pimentel,
Juscelino de Farias Maribondo 70

CASARÃO DO VISCONDE DE SÃO LOURENÇO: o processo de


silenciamento e os impasses de uma futura intervenção
Patrícia de Rezende Bragança Ferreira, Rosina Trevisan M. Ribeiro 82
CORETO ART DÉCO EM GOIÂNIA
Marília Mota Rezende, Eline Maria Mora Pereira Caixeta 92
CORPOS SEQUELADOS E NUS: os Santos de Vestir, do protagonismo sacro
à performance no museu
Ana Cláudia Vasconcellos Magalhaes, Maria Angélica da Silva 106

CONSERVAÇÃO DE “RUÍNA PAISAGÍSTICA": uma reflexão a partir da cerca


do convento franciscano de Olinda
Mirela Carina Rêgo Duarte 117

DESDOBRAMENTOS DO PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DO


PATRIMÔNIO CULTURAL NACIONAL: uma análise sobre o cotidiano vivido
no Albergue do Voluntariado - São Luís (MA)
Maria Cecília Machado Faustino, Maria de Fátima Guimarães, Maria
Cristina Rocha Simão, Cleonice Aparecida de Souza 130
DO RECÔNCAVO BAIANO AO BARRACÃO DO NÚCLEO DE ARTES
AFRO-BRASILEIRAS DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Eliany Cristina Ortiz Funari 139

DO USO INTERROMPIDO ÀS PRÁTICAS FRAGILIZADAS: o silenciamento das


formas simbólicas espaciais judaicas na urbe nilopolitana (RJ)
Enderson Alceu Alves Albuquerque, Miguel Angelo Campos Ribeiro 149

FRAGMENTOS DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL URBANO DA REGIÃO DE SÃO


CRISTÓVÃO: reflexões sobre os seus patrimônios silenciados
Raquel Aquino de Araújo 160
INVENTÁRIO URBANO E LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA EM GOIÂNIA-GO:
possibilidades de salvaguarda das paisagens culturais de uma cidade nova
Sandra Catharinne Pantaleão Resende, Arthur Henrique Araújo Vieira 171

LARANJEIRAS/SE: reflexões sobre o patrimônio arquitetônico de uma


“Cidade Monumento”
Erica Andrade Modesto, Fernando José Ferreira Aguiar 182

MARCA-TEXTO
Sergio Augusto Medeiros 192

MONTE BELO DO SUL – PATRIMÔNIO SILENCIOSO REVELADO NO ALTO DA


COLINA
Francine Neumann, Margit Arnold Fensterseifer 201

MUITO MAIS QUE UM CENÁRIO: uma discussão sobre a paisagem cultural e


as formas de preservação da paisagem natalense
Natália Melchuna Madruga, Paulo José Lisboa Nobre 211

O CHAFARIZ DOS CONTOS EM OURO PRETO, MG, BRASIL: do essencial


(1760-1900) ao decorativo (1950-2021)
Raíssa de Keller e Costa, Myriam Bahia Lopes 223

O FORRÓ QUE SILENCIA: impactos do turismo na Vila de Itaúnas (ES)


Maisa Favero Costa, Martha Machado Campos 235
O GUERREIRO ALAGOANO COMO PATRIMÔNIO IMATERIAL: um auto de
resistência?
Catarina Maria Machado Muniz, Carlos Eduardo de Santa Rita Fonseca 246
O LUGAR COMO ELEMENTO DE RECONHECIMENTO E
PRESERVAÇÃO DA PRAÇA DA MANDIOCA EM CUIABÁ
Melissa de Araujo Sousa, Thais Soares Cavalcante Costa 257
O MURO ENTRE A CIDADE DOS VIVOS E A CIDADE DOS MORTOS
Guilherme Lucio dos Santos, Joseane Pivetta 266

O PASSEIO PÚBLICO NA FOTOGRAFIA OITOCENTISTA: imagens de Klumb e


Leuzinger sobre um patrimônio do Rio de Janeiro
Luiza Xavier Pereira 277
O “PORTO NOVO” E A INVISIBILIDADE DA PAISAGEM PORTUÁRIA RECIFENSE
Clara Torres Peres 290

O POVOADO DE VILA VELHA: uma paisagem de história e natureza


Isabelly Lima de Santana Sales, Jônatas Souza Medeiros da Silva, Onilda
Gomes Bezerra, Pedro Henrique Valença Ferreira 300
OS ECOS DE UM SILÊNCIO: o patrimônio cultural de Antônio Prado/RS e a
(in)compreensão do seu valor
Nauana da Costa Reginato, Dirceu Piccinato Junior 312
OS ESPAÇOS DE OBSOLECÊNCIA E INDIFERENÇA: a questão dos antigos
espaços ferroviários na configuração das áreas centrais e de esquecimento
social
Camila Rodrigues dos Santos 324

O SILÊNCIO DO PATRIMÔNIO RECONHECIDO EM RIBEIRÃO PRETO-SP E AS


INICIATIVAS PARA DAR-LHE VOZ NOVAMENTE POR MEIO DE SUA REINSER-
ÇÃO NA DINÂMICA URBANA
Flávia Fernanda Segismundo Vilas Boas, Claudia dos Reis e Cunha 336
O SILÊNCIO TEÓRICO NAS PRÁTICAS DE RESTAURAÇÃO: a intervenção nas
ruínas do Teatro São Pedro em Laranjeiras
Thamires Caroline Leonel de Almeida 348
O SILÊNCIO DA ALMA VERDE DOS CONVENTOS FRANCISCANOS: um
estudo histórico e cartográfico das casas de Lima, Peru e Salvador, Brasil
Katherine Edith Quevedo Arestegui, Maria Angélica da Silva 359

O SILÊNCIO DA SERRA E O TURISMO CRIATIVO EM UNIÃO DOS PALMARES,


ALAGOAS
Mariana Magalhães Cavalcante, Débora de Barros Cavalcanti Fonseca 369

O SILÊNCIO DAS IMAGENS ESCULTÓRICAS PRESENTES NO PALÁCIO


CAPANEMA NA MEMÓRIA COLETIVA
Sandra Branco Soares, William Seba Mallmann Bittar 382
O SILÊNCIO DO PATRIMÔNIO PROTEGIDO: uma avaliação do estado de
conservação das seis UEPs de arquitetura moderna em Maceió-AL
Tamires Aleixo Cassella, Letícia Brayner Ramalho 394
O SILÊNCIO DOS VAZIOS URBANOS: um ensaio de ressignificação das
vacâncias urbanas na poligonal de tombamento do IPHAN em João Pessoa
– PB
Yanna Karla Garcia Silva 406

O SILÊNCIO NAS OBRAS MODESTAS INSERIDAS EM APAC


Cristina de Camargo Barroso 417

PATRIMÔNIO INDUSTRIAL NA CIDADE DE SÃO PAULO: o silêncio da


Companhia Antarctica
Thais Cristina Silva de Souza, Larissa Fernandes de Morais,
Vânia Cristina Feitosa 427

PATRIMÔNIO, MEMÓRIA E SILÊNCIOS: o Palacete Santa Mafalda e a família


Valle Amado em Juiz de Fora
Mariana Cunha de Faria 437

PATRIMÔNIO COM MORTE ANUNCIADA: o caso das Unidades Especiais de


Preservação de Maceió localizadas na área de desastre ambiental dos
bairros Mutange e Bebedouro, Maceió - AL
Jamerson Martins, Rafaela Cristina dos Santos Carvalho 445

PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: uma proposta de retrofit para o Moinho Mataraz-


zo e a Tecelagem Mariângela
Carolina Borges Lisbão, Thais Cristina Silva de Souza,
Mariana Cicuto Barros 457

PATRIMÔNIO E CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM: perceção do sujeito turista


sobre a cidade de Inhambane em Moçambique
Pelágio Julião Maxlhaieie, Antônio Carlos Castrogiovanni 468

PRAÇA DOM PEDRO II: um percurso da paisagem do berço de Maceió


Anna Letícia Castro Diégues de Arecippo, Bianca Machado Muniz 481

PRESERVAÇÃO DE PATRIMÔNIOS CULTURAIS ATRAVÉS DO USO: o caso do


Museu Internacional de Arte Naif do Brasil e o bairro de Cosme Velho/RJ
Clarissa de Paula Senna 490

PROCESSOS DE INTERVENÇÕES EM CENTROS HISTÓRICOS: um estudo de


caso do Beco da Lama, Natal/RN
Wirenilza do Nascimento Lima 500
PROCESSOS E IMPLICAÇÕES DE POLÍTICAS DE REABILITAÇÃO DOS
CENTROS HISTÓRICOS NAS CIDADES LATINOAMERICANAS E DO CARIBE
Edilson da Silva Porto Neto, Wagner Vinicius Amorim 511
RUA LOPES CHAVES: projeto de Restauro e Ampliação do Museu Casa
Mário de Andrade
Gabriel Borges Monteiro, Thaís Cristina Silva de Souza 522
RUÍNAS EM SIMBIOSE COM A NATUREZA: o caso da Ermida e do Forte da
Prainha Branca, Guarujá, SP
Laís Hanson Alberto Lima, Fabiola do Valle Zonno 533
RUÍNAS DA INDÚSTRIA E DA MEMÓRIA: ensaio entre “abandonados” e
“apagamentos”
Douver dos Santos Cruz 544

SILÊNCIOS E FORMAS DE NARRAR A ESCRAVIDÃO NO CENTRO HISTÓRICO


DO PENEDO, ALAGOAS
Luana Teixeira 556

UNIDADE E DESOLAÇÃO DE UM JARDIM PATRIMÔNIO DE BURLE MARX NO


RECIFE: a Praça Ministro Salgado Filho
Wilson de Barros Feitosa Júnior, Pollyana Martins da Silva, Ana Rita Sá
Carneiro, Joelmir Marques da Silva 567
VAZIO LEGAL – REFLEXÕES SOBRE OS ESPAÇOS PATRIMONIALIZADOS NO
CENTRO TOMBADO DE GOIÂNIA-GO
Arthur Henrique Araujo Vieira 578

NÓ 2 O SILÊNCIO ENTRE VOZES EM DIÁLOGO


A PAISAGEM EM DIÁLOGO NA CONSERVAÇÃO DOS ESPAÇOS NATURAIS E
A FORMAÇÃO DE IDENTIDADE NO TERRITÓRIO RIBEIRINHO DA COMUNIDA-
DE DO BODE, RECIFE-PE
Célio Henrique Rocha Moura, Lahys Katarina de Barros Alves, Tomás de
Albuquerque Lapa, Julieta Maria de Vasconcelos Leite 590

A ARQUITETURA MODERNA BRASILEIRA PARA ALÉM DOS ARQUITETOS: as


residências projetadas por não arquitetos na cidade de João Pessoa nos
anos 1960
Surama Batista Vieira da Costa 600

A PAISAGEM DE “UMA ESTRANHA PASSAGEM EM VENEZA”


Maria de Lourdes Carneiro da Cunha Nóbrega,
Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz 610

A POTÊNCIA DO "NÃO-SER" NAS PAISAGENS URBANAS NOTURNAS DOS


FILMES ‘TODA UMA NOITE’ E ‘SÁBADO À NOITE’
Guilherme Henrique Pereira Mariano, Fernando de Mendonça 621
ARQUITETURA PARA OS NOSSOS SENTIDOS E CINEMA PARA NOSSA
IMAGINAÇÃO: o Centro Histórico de São Luís pela estética noir
Larissa Bianca Anchieta, Rose-France de Farias Panet 632
BRASÍLIA EM MOVIMENTO: conexões entre a preservação e a percepção
da paisagem urbana
Liz da Costa Sandoval, Rogério Rezende, Luciana Sabóia Cruz 643
CASAS DE FARINHA: a memória dos saberes populares das comunidades
rurais de Pinhão/SE
Leiliane de Oliveira Silva 656

CORPOS EM MOVIMENTO: (re)tomada de narrativas negras através da


apropriação do espaço no centro histórico de Cuiabá-MT
Thais Soares Cavalcante Costa, Maria Bárbara Thame Guimarães 666

DISTRITO DE PASSO VELHO, NÓ HISTÓRICO DE LIGAÇÃO ENTRE


TERRITÓRIOS
Tainara Meneghel Dal Lago, Margit Arnold Fensterseifer 678

DO JARDIM À PAISAGEM (E VICE-VERSA)


Sergio Luiz Valente Tomasini, Lilian Maus Junqueira 686

ENTRELAÇAMENTOS ARTÍSTICO-GEOGRÁFICOS: por uma geografia das


histórias contadas
Carlos Eduardo Cinelli Oliveira de Campos, Marcos Alberto Torres 698

ENTRE PLANTAS E PRAZERES: notas de uma paisagem sexual do Parque do


Flamengo
Bruno Amadei Machado, Gabriel Santiago Pedrotti 710

ENTRE VÉUS E RODOPIOS: olhares profusos a partir do folguedo Mané do


Rosário
Arlindo da Silva Cardoso, Karina Mendonça Tenório de Magalhães Oliveira,
Paula Louise Fernandes Silva 721

ESPAÇOS INVISÍVEIS NA CIDADE DE UBERLÂNDIA: uma analogia entre a


arte e urbanismo para leitura e identificação de lugares de grupos sem voz
Denise Fernandes Geribello, Glauco de Paula Cocozza 731
FEIRA DE ARAPIRACA: referência para quem?
Camila Gonzaga de Oliveira, Juliana Michaello Macêdo Dias 743
GARÇA TORTA, MACEIÓ: as vozes não ouvidas da tradição
Luiz Antonio Lopes Siqueira 754
LITERATURA, TURISMO E CULTURA: um nó primordial para garantia de
acesso ao direito à literatura
Rosária Cristina Costa Ribeiro, José Felipe da Silva 765

MACEIÓ DA COCÓ DA PESTE: a capital alagoana traduzida no movimento


hip hop
Suzany Marihá Ferreira Feitoza, Maria Victória Silvestre de Souza Bezerra,
Igor Sousa Peixoto 777

NO PORTAL DA ETERNIDADE: um olhar sob o horizonte de Van Gogh


Gabryelle Gois Lopes, Fernando de Mendonça 788

O PATRIMÔNIO ACHADO: a experiência dos inventários participativos em


Ceilândia (DF)
Ana Carolina Lessa Dantas, Vinicius Prado Januzzi 797

O SILÊNCIO POR ENTRE AS FISSURAS: reimaginando o Centro Histórico de


Salvador
Vitória Maria Matos Rodrigues 810
O BURACO DA VÉIA: práticas cotidianas e ambiências na praia da Brasília
Teimosa
Ana Carolina Silva Cordeiro, Clara Torres Peres 818
O CORPO NEGRO EM DIÁSPORA COMO DEBATE DOS PATRIMÔNIOS
PELOTENSES
Naiane Ribeiro Rosa 828
“O POVO NA RUA, Ô PADRE A CULPA É SUA!”: conflitos em torno da festa de
Nosso Senhor dos Passos (Lençóis, Bahia)
Liziane Peres Mangili 837

O QUE NOS DIZEM OS SONS? uma análise da paisagem sonora no metrô


do Rio de Janeiro.
Flora Kuri Milito 848
OS DONOS DO POSTE, OS DONOS DO PODER: usos e disputas na
paisagem urbana em São João del-Rei - MG
Alfredo Nava Sánchez, Liziane Peres Mangili, Maria Clara Oliveira Santos,
Mariana Chaves Monti Souza 858

PAISAGEM SONORA DO PARQUE ECOLÓGICO MUNICIPAL “CLAUDINO


FRÂNCIO” – MT (REGIÃO DA AMAZÔNIA LEGAL): uma proposta de estudo
Cilene Leite de Mello, Taís Helena Palhares 870

PARADOXOS DA SEPARAÇÃO: emaranhamentos como alternativa


Christian Bertrand Oliveira Conce Rocha 889
PATRIMÔNIOS SILENCIADOS E MAPEAMENTO PARTICIPATIVO EM
PEQUENAS CIDADES: uma experiência em Redenção e Acarape
Regina Balbino da Silva, Eduardo Gomes Machado, Rafael Carvalho
Fernandes Pereira 899

PATRIMONIALIZAÇÃO DE PAISAGENS PRODUTIVAS NA UNESCO E NO


IPHAN: uma trajetória e seus efeitos nas políticas patrimoniais
Luciana de Castro Neves Costa, Juliane Conceição Primon Serres 910

PATRIMÔNIO NATURAL E OS CONFLITOS DA GESTÃO: divergências e


convergências entre os atores sobre a mata do Engenho Uchôa, Recife-PE.
Célio Henrique Rocha Moura, Onilda Gomes Bezerra, Tomás de
Albuquerque Lapa, Elisa Soares de Melo 921
RE-DEFININDO PERCURSOS PATRIMONAIS NA LINGUAGEM INFOGRÁFICA
Roseline Vanessa Santos Oliveira, Fernanda Barbosa da Silva Farias 931

NÓ 3 O SILÊNCIO COMO ESQUECIMENTO E MORDAÇA


A LUTA E A IDENTIDADE DE UMA FAVELA CARIOCA: o Vidigal e suas mani-
festações culturais
Thayna Furtunato 945

COVID-19 E MATERNIDADE: relatos sobre gravidez, parto e puerpério


durante a pandemia no Distrito Federal
Leila Saads, Lorrany Arcanjo, Júlia Bianchi 955
DINÂMICA URBANA E PAISAGEM ESQUECIDA: estudo de caso do Parque
Rodoviário de Teresina/PI
Cassandra de Sousa Cunha, Raimundo Lenilde de Araújo 966
DO XANGÔ REZADO BAIXO AO XANGÔ REZADO ALTO: entre silêncios,
silenciamentos, resistências
Carlos Eduardo de Santa Rita Fonseca 977

EFEITOS DA COVID-19 EM ÁREAS DE HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL


NO INTERIOR DO BRASIL
Clivson Ruan Macedo de Souza , Paula Gabrielle Luz Oliveira, Débora de
Barros Cavalcanti Fonseca 988

ENTRE A LONA E A LIDA: o circo é patrimônio do Brasil


Camila Gonzaga de Oliveira, Helga Soares da Silveira Guedes 1000
ESCREVER NO SILÊNCIO: os bairros de Jaraguá e Centro
como cenário da pixação em Maceió
Maria Victória Silvestre de Souza Bezerra 1009

FORDLANDIA: ruína do futuro


Igor Gonçalves Queiroz, Ana Luiza Silva Freire 1018

INVESTIGANDO AUSÊNCIAS: (des) caminhos dos espaços da memória


negra na cidade de Maceió-AL
Fabio Henrique Sales Nogueira, Thalita Carla de Lima Melo 1029

“ISSO JÁ ERA PRA TER ACONTECIDO HÁ MUITO TEMPO...”: silêncios e


infâmias de uma morte urbana anunciada
Lázaro Batista, Leonardo Evangelista de Nardin 1041

LOS CUMBES VENEZOLANOS: la emergencia de la reparación de la


memoria ante el silencio
Juan Carlos Piñango Contreras 1052
LUTAS E RESISTÊNCIAS NO TERRITÓRIO DE IDENTIDADE BAIXO SUL/BA:
(re)descobrimentos
Erivan de Jesus Santos Junior, Marta Raquel da Silva Alves 1062

MACEIÓ: cidade fraturada, submersa, silenciada


Marina Milito de Medeiros, Maria Angélica da Silva 1072

MULHER, FIQUE EM CASA: o espaço doméstico em tempos de Covid-19


Mariana Rocha Silva , Andresa dos Santos Oliveira, Matheus dos Santos,
Pedrianne Barbosa de Souza Dantas 1082

NO SILÊNCIO E NO ASSOMBRO, UMA ESTÉTICA ALÉM DO SAGRADO


Anderson Diego da S. Almeida 1092

"NOS ALICERCES DO TEMPO: o resgate do pátio São José do


Ribamar no Recife-PE."
Josebias Costa do Nascimento Neto, Pedro Henrique Cabral Valadares 1102

O ESTADO ANTE A SUBSIDÊNCIA DO SOLO EM BAIRROS DE MACEIÓ-AL:


responsabilidades no passado, presente e futuro
Caroline Gonçalves dos Santos, Inara Querino de Mendonça, Leandro
Ferreira Marques, Mariana Lima Lopes Lôbo 1112

O COTIDIANO ‘PERIFÉRICO’, E O REDESENHO DA PAISAGEM URBANA


PADRONIZADA
Rochelle Silveira Lima, Rafael Carvalho Fernandes Pereira 1124
O SILÊNCIO DO ESPAÇO PÚBLICO: Sandoval Cajú e a Cidade Sorriso,
Maceió-AL, 1961-1964
Myllena Karla Santos Azevedo 1133

OS MÚLTIPLOS USUÁRIOS DO ESPAÇO URBANO E AS AUSÊNCIAS EM


NARRATIVAS PATRIMONIAIS DE PRÉDIOS HISTÓRICOS EM PORTO ALEGRE
Nicolli Bueno Gautério, Renata Ovenhausen Albernaz 1148

PAISAGEM SILENCIADA: memória, história e paisagem na leitura da Orla do


Educandos
Calina Ramos de Brito Souto, Dra. Tatiana de Lima Pedrosa Santos 1156
PAISAGENS SONORAS DE RESISTÊNCIA: o Rap na Bika e a ocupação da
cidade
Bruna Lúcia dos Santos, Liziane Peres Mangili, Maria Clara Oliveira
Santos1, Wilgner Henrique Thomaz 1167
PATRIMONIOLOGIA: identidade como tática de existência no território
Helena Tuler Creston 1177

SILÊNCIO E ESQUECIMENTO: a toponímia como possibilidade de pesquisa


na paisagem no caso do Parque do Ibirapuera, em São Paulo
Gabriel Aires Peixoto de Lima 1186

TERRITÓRIOS DE RESISTÊNCIA: redes contra a pobreza, o esquecimento e o


silêncio
Débora de Barros Cavalcanti Fonseca, Gustavo Almeida Matos , Jéssica
Muniz Costa 1196

UM CANTO DE GUERRA: a luta pelo direito de apropriação do espaço na


Comunidade Recanto da Paz, Aracaju/SE
Andresa dos Santos Oliveira, Annare Reis Almeida, Lygia Nunes Carvalho,
Matheus dos Santos 1205

UM ESTUDO SOBRE SILENCIAMENTOS PATRIMONIAIS EM MACEIÓ/AL


Patrícia Soares Vieira, Camila Gonzaga de Oliveira, Bianca Machado
Muniz, Laís Máximo Pessoa 1216

VOZES DE UMA CATÁSTROFE URBANA: o que moradores de bairros em


subsidência em Maceió-AL têm a dizer
Júlia Amorim Bulhões, Caroline Gonçalves dos Santos 1227
NÓ 4 O SILÊNCIO DOS SILENTES, DOS MISTÉRIOS
A DIMENSÃO SIMBÓLICA DO MORAR: discutindo a Teoria da Casa a partir
das habitações da comunidade quilombola Volta do Campo Grande- PI
Felipe Ibiapina, Lúcia Leitão, Lia Pereira Sabino 1239
A INVENÇÃO DO BRASIL ENTRE A ADORAÇÃO E A DOMINAÇÃO DO ÉDEN
TROPICAL
Maria Clara Oliveira Santos 1248
A PAISAGEM DOS LUGARES DE MEMÓRIA DO RECIFE
ENCANTADO/MAL-ASSOMBRADO: uma abordagem sobre os bairros de
Santo Antônio e São José dos séculos XIX e XX
Tomás de Albuquerque Lapa, Felipe Moura Hemetério Araújo, Onilda
Gomes Bezerra, Célio Henrique Rocha Moura 1263
A PATRIMONIALIZAÇÃO DA IMAGEM DO ‘OUTRO’ COMO FERRAMENTA DE
VOZ
Rafael Carvalho Fernandes Pereira, André Araújo Almeida 1274
APAGADOS DA PAISAGEM: um estudo sobre arquitetura cemiterial e
hospitalidade
Leonardo Oliveira Silva 1285
CAMINHOS POSSÍVEIS: imagem negra, trabalho e paisagem urbana
Gabriela Leandro Pereira, Thalia Santos Silva 1302

"CERCAMENTOS E HORIZONTES: ampliando imagens de paisagem, patri-


mônio e silêncio"
Luciano Gutierres Pessoa 1316

FOLIA DE REIS, UM NÓ ENTRE O RURAL E O URBANO


Lucas Silva Pamio 1327

NOTAS SOBRE CORPO E GÊNERO NAS ENCRUZILHADAS VIRTUAIS: entre


silenciamentos, resistências e visibilidades
Maurílio Mendonça de Avellar Gomes 1339
O RESGATE E O (RE)CONHECIMENTO DA IMAGEM DA ANTIGA MATRIZ DE
VITÓRIA POR MEIO DE SUA RECONSTRUÇÃO DIGITAL 3D
Joana Segatto Scabelo, Jarryer Andrade de Martino 1351
RITUAL E ENCRUZILHADA: a Encomendação das Almas, o teatro e a cidade
de São João del-Rei
Flora Cunha Lucena, Claúdio Guilarduci 1363
SOLIDÃO E STIMMUNG. A PAISAGEM DE SOLITÁRIOS, DE WERTHER A
ALBERTUS
Esdras Arraes 1376

SUSSURROS DAS FRESTAS: a paisagem nos interstícios da cidade de São


Paulo
Arthur Simões Caetano Cabral 1388

NÓ CEGO OUTROS SILÊNCIOS


A (DES)CONSTRUÇÃO DO CARTÃO POSTAL: Maceió, o bairro da Ponta
Verde e os marcos referenciais da sua imagem
Igor Sousa Peixoto 1399
A FORÇA DA CULTURA POPULAR E A VALORIZAÇÃO DA IDENTIDADE
CULTURAL NO VIVENCIAR O TERRITÓRIO COM AS CRIANÇAS
Jeane Costa Amaral, Lenira Haddad, Maria Assunção Folque 1412

A PAISAGEM SONORA DE PORTO ALEGRE: a Esquina Democrática


Volnei Kuberneke, Celma Paese, Gabriela Ferreira Mariano 1424

A PERCEPÇÃO DA QUADRATURA NA LIDA COTIDIANA


Marilene de Medeiros Aduque, Margarete de Medeiros Aduque 1432

AS COSTURAS E CICATRIZES DE CUIABÁ: construção da imagem da Copa


no Pantanal
Kellen Melo Dorileo Louzich, Evandro Fiorin 1439
AS VOZES DA COMUNIDADE E SILENCIAMENTOS NO TRATO COM O
PATRIMÔNIO DE PATROCÍNIO PAULISTA
Beatriz Alves Goulart Rocha, Claudia dos Reis e Cunha 1450

BANGALÔS: calados pelas mordaças do desconhecimento


Karla Di Giacomo Dias Oliveira dos Santos 1462

CIDADE-MONTAGEM: uma reflexão metodológica sobre uma rede de


significações possíveis
Larissa Ferraz Rios, Milton Luz da Conceição 1472

EM VÃOS
Vladimir Bartalini 1481
ESPAÇOS LIVRES PÚBLICOS NO BAIRRO MORADA DA SERRA EM
CUIABÁ/MT: nós (silenciados) de articulação de lugares e integração da
diversidade
Lucianna Oliveira e Souza, Doriane Azevedo 1491
FAROFA DE IÇÁ COMO PROPOSTA DE BEM IMATERIAL DO ESTADO DE SÃO
PAULO
Fabíola Ventura Traficante, Karla Aparecida Albuquerque dos Santos, Thais
Cristina Silva de Souza 1500
HISTÓRIAS DA SILENTE INFÂMIA DE DOIS CORPOS NA CIDADE
Elton Silva Ribeiro, Lázaro Batista, Luis Antonio dos Santos Baptista 1510
MAPEAMENTO DE UMA HISTÓRIA SILENCIADA: os engenhos de açúcar de
Maceió
Ana Clara Guimarães Dias da Silva, Beatriz Cristina Correia de Sá, Bianca
Machado Muniz 1521
ORGANICIDADE: laboratório corpo-urbano
Elaine Mirelly de Almeida Carvalho, Erivan de Jesus Santos Junior, Fayola
Caucaia (Franklin Pereira da Silva), Janayna Victória Araújo dos Santos
Silva 1531

O SER QUE SE DESENHA NO ESPAÇO


Mateus Espínola de Carvalho Maia 1542
O SILÊNCIO DA PAISAGEM URBANA TRANSMUTADA DE BAURU/SP
Maria Fernanda Serrano Sartori, Fernanda Moço Foloni , Norma Regina
Truppel Constantino 1555
O TIETÊ COMO PATRIMÔNIO DO OESTE PAULISTA
Gabriela Rosa Graviola, Norma Regina Truppel Constantino 1567

"O VESTUÁRIO COMO PATRIMÔNIO FAMILIAR: a transmissão de objetos


entre as gerações "
Laiana Pereira da Silveira, Francisca Ferreira Michelon, Frantieska Huszar
Schneid 1580
PAISAGEM SERTANEJA: um patrimônio esquecido do Nordeste brasileiro
Mariana Santos da Trindade, Fernando José Ferreira Aguiar 1590

PAISAGEM CULTURAL BRASILEIRA: o silêncio na perspectiva de revisão da


chancela
Márcio Zanella, Aline Montagna da Silveira, Ana Lúcia Costa de Oliveira,
Natália Naoumova 1599

PAISAGENS EM ESTADO DE PERFORMANCE: notas introdutórias a


performatividade das paisagens psicossociais em Rubiane Maia
Lindomberto Ferreira Alves 1612
PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE E AS REDES DE NÓS CEGOS: a indústria do
turismo, gentrificação e turismos alternativos
Pasqualino Romano Magnavita, Helena Tuler Creston 1624

QUINTAIS AGROFLORESTAIS: raízes invisíveis na hinterlândia amazônica


Silas Garcia Aquino de Sousa, Maria Isabel de Araújo 1633

RENATO SOEIRO E O IPHAN: uma trajetória silenciada


Carolina Martins Saporetti 1644
RUÍDOS E RASTROS DO SERTÃO: anotações sobre os nós entre a casa, o
sertanejo e o lugar-sertão à luz do desamparo de Freud
Jadson Eugenio da Silva, Lúcia Leitão dos Santos 1653
SILÊNCIO SOBRE A FERROVIA: a estrada de ferro do Porto do Rio Grande
Gladis Rejane Moran Ferreira, Carla Rodrigues Gastaud 1664
SILENTE PATRIMÔNIO
Luciano Mouassab Chalita 1672

UMA ROSA NUNCA MAIS DESABROCHOU: o machismo invisível que no


chão do sertão dorme
Aurora Almeida de Miranda Leão 1683
O silêncio do
patrimônio
reconhecido...
Aborda as expressões do patrimônio, na dimensão da
cidade, da paisagem, dos bens isolados e de práticas
culturais, que alcançaram o reconhecimento oficial
através do tombamento ou do registro, mas que
passam por algum processo de silenciamento, desde
ocaso físico (abandono, ruína, demolição), usos
interrompidos, até práticas fragilizadas no presente
pela ausência de repercussão comunitária, pela
colisão com a defesa do meio ambiente ou com os
processos velozes da contemporaneidade.
A ARACAJU ECLÉTICA E SUAS FACHADAS APAGADAS DA HISTÓRIA
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Camila Rodrigues dos Santos


Arquiteta e Urbanista; Centro de Estudos e Ensino Avançados da Conservação Integrada;
mila_rsantos@hotmail.com.
.

Este artigo é fruto da pesquisa "Patrimônio e memória: inventário da arquitetura eclética de Aracaju",
cujo projeto foi catalogar tais exemplares. Durante a pesquisa observou-se diversas edificações
ecléticas perdidas ou descaracterizadas na cidade, assim surgiu a necessidade de aprofundamento
neste tema com intenção de refletir como esses imóveis são apagados e quais reflexos disso para a
paisagem urbana e memória social da cidade. Primeiramente, a metodologia utilizada foi uma revisão
bibliográfica contextualizando o desenvolvimento do Ecletismo na Europa, Brasil e Aracaju.
Posteriormente, por visitas em campo, análises de conservação e catalogação das tipologias. Assim,
este trabalho pretende identificar as principais formas de desfiguração e abandono destes
patrimônios, pontuando a importância de protegê-los e quais prejuízos, para a comunidade, em perdê-
los.
Palavras-chave: Arquitetura; Patrimônio; Ecletismo; Aracaju.

This article is the result of the research "Heritage and memory: inventory of the eclectic architecture of
Aracaju", whose project was to catalog such samples. During the research, several eclectic buildings
that were lost or uncharacterized in the city were observed, thus the need arose to deepen this theme
with the intention of reflecting how these buildings are erased and what reflexes this has to the urban
landscape and the city's social memory. First, the methodology used was a bibliographic review
contextualizing the development of Eclecticism in Europe, Brazil and Aracaju. Subsequently, through
field visits, conservation analysis and cataloging of typologies. Thus, this work intends to identify the
main forms of disfigurement and abandonment of these assets, emphasizing the importance of
protecting them and what prejudice, for the community, in losing them.
Keywords: Architecture; Heritage; Eclecticism; Aracaju.

27
1 - Introdução
Este artigo é fruto da pesquisa intitulada “Patrimônio e memória: inventário da arquitetura
eclética de Aracaju”, cujo principal produto foi a catalogação desses exemplares arquitetônicos
na cidade. Durante a pesquisa, observou-se enorme quantidade de edificações ecléticas
descaracterizadas ou já destruídas e assim, surgiu a necessidade de se aprofundar no tema deste
artigo, com o objetivo de entender como essa parte da história aracajuana vem sendo apagada
e quais os reflexos disso para a paisagem urbana e memória social da cidade.
A metodologia utilizada foi, a princípio, a revisão bibliográfica e pesquisa documental, seguida
da pesquisa de campo onde foram realizadas análises de conservação, preservação,
características estilísticas das fachadas externas e catalogação dos exemplares. A parte
contextual da pesquisa seguiu um raciocínio de como o Ecletismo se desenvolveu
gradativamente na Europa e Brasil até chegar em Aracaju. Já os exemplares citados neste artigo
estão localizados dentro de um polígono, cujas extremidades são Av. Simeão Sobral ao norte,
Av. Ivo do Prado a leste, Av. Augusto Maynard ao sul e Av. Pedro Calazans a oeste (Figura 1).

Figura 1: Polígono com exemplares catalogados.

Fonte: Autora, 2020.

28
2 - O Ecletismo simbólico na Europa e Brasil
Antes de falar como o estilo se apresenta em Aracaju, é importante explicar como ele marca a
história da arquitetura. Sua origem vem do século XIX na Europa, num momento de retomada
dos estilos arquitetônicos passados, também chamado de revivals. Foi um período de nostalgia
e busca pelo patriotismo das nações e por isso, haviam tantas referências aos períodos clássicos
da arte (PATETTA, 1987).
Outros fatores favoreceram o crescimento do Ecletismo na Europa, o principal foi a revolução
industrial, que gerou grandes mudanças políticas, econômicas e sociais – nesse momento, nascia
a classe burguesa, que se preocupava muito com questões urbanas, de saúde e saneamento, e
sobre os desenvolvimentos das ciências (PATETTA, 1987).
Enquanto na Europa o Ecletismo vangloriava o passado, no Brasil, o estilo chegou no início do
século XX nas grandes capitais, como ferramenta simbólica da modernização política - visto que
o país tinha se tornado república em 1889 (BORGES, 2013). Havia nessa mudança estilística uma
proposta progressista social, política e tecnológica.
O Ecletismo chegou ao país trazendo novas tecnologias construtivas através dos imigrantes, as
novas normas para construção também provocaram novas características a paisagem brasileira,
principalmente onde viviam os burgueses e abastados – são os recuos no terreno e porão alto,
muitas vezes habitável (onde funcionava a área de serviço da morada) com a finalidade de
permitir entrada de luz e ventilação internamente; decorações específicas para demarcar os
ambientes sociais e íntimos; ruas mais largas, arborizadas e com saneamento básico (SÁ, 2002).
Nada disso era comum até então, já que as construções seguiam os padrões do Brasil Colônia.
Este estilo trouxe diversas mudanças arquitetônicas e projetuais que são utilizadas até hoje. Não
foram apenas alterações estilísticas e ornamentais, mais também na forma de pensar o morar e
a cidade, a partir da procura de melhores condições de higiene, conforto e adaptação para os
novos eletrodomésticos tecnológicos trazidos pela era industrial. Apesar disso, por muito tempo
o estilo foi sinônimo de mau gosto, desagradando muitos críticos. A partir desse fato, é possível
perceber que o descaso com o patrimônio eclético – principalmente por parte dos artistas
modernistas – seja reflexo de todo esse preconceito, e por isso, até hoje haja uma maior
dificuldade da proteção desses bens.

29
3 - Representação Eclética em Aracaju
Aracaju foi fundada em 1855 após a transferência da capital administrativa de Sergipe, antes em
São Cristóvão, buscando uma melhor ampliação econômica do Estado. Foi encomendado o
projeto urbano que ficou conhecido na história como “Quadrado de Pirro”, implantado onde
atualmente é o bairro Centro – dando-lhe o status de terceira capital projetada do Brasil,
sinônimo de progresso para a época (NUNES, 2005). Todavia, a modernização só chegou de
verdade no início do século XX, com projetos influenciados pelas grandes obras de São Paulo e
Rio de Janeiro. Na década de 1910 surgiram os bondes, luz elétrica, esgoto e telefone. Foram
feitas também obras de embelezamento urbano – calçamentos, jardins, e as reformas de
prédios públicos com a chegada da Missão Artística Italiana (BARBOZA, 1992).
Novas normas construtivas foram instauradas em Aracaju através do Código de Obras de
Aracaju. Assim, surgiram os recuos e porões habitáveis, que promoveram novas volumetrias às
fachadas e paisagens aracajuanas. Com essas novas regras, criou-se novos espaços nos terrenos
que foram ocupados com jardins e escadarias majestosas. Os mais abastados importaram gradis
de ferros e vitrais, usaram ornamentações que marcaram a história arquitetônica do século XX
na cidade. Ainda que com variedade de adornos e volumetrias, durante a inventariação foi
identificado padrões estéticos nas fachadas externas (Figura 2) do polígono estudado. A partir
desta observação, o inventário foi separado em grupos de acordo com a funcionalidade inicial,
e as residências de acordo com as tipologias 1 de fachada.
Algumas edificações não continham todos os elementos característicos do Ecletismo –
principalmente recuos e porão alto, havendo somente a ornamentação - e análises indicam que
seja por serem edificações pré existentes ao estilo, atualizadas durante o período vigente para
se manter na moda. Mais especificamente nos exemplares residenciais, há casos de serem
edificações pertencentes a famílias de classes baixas, com terrenos pequenos onde não cabia
implementar os recuos, sendo os elementos decorativos a única forma de manter suas
residências na estética em voga.

1
As tipologias estão descritas e mapeadas no site da Cartografia do Patrimônio e da Memória. Esta
página foi desenvolvida em parceria com o NUPPE – Núcleo De Projetos Pesquisa e Extensão
Departamentos de Arquitetura e Urbanismo e Design de Interiores da Universidade Tiradentes (UNIT) –
com o objetivo de tornar acessível os resultados inventariados durante a Iniciação Científica. Disponível
em < https://sites.google.com/view/nuppe/atividades-desenvolvidas/cartografia-do-patrimônio-e-da-
memória> Acesso em: 08 mar. 2021.

30
Além da análise estilística das fachadas, a catalogação permitiu observar não só elementos
comuns na arquitetura aracajuana e em tipologias individuais, mas também um padrão
existente entre quais são as edificações descaracterizadas e as bem conservadas, quais são as
mais e as menos vulneráveis às ações humanas de modificações.
Figura 2: Mosaico de fachadas ecléticas de Aracaju.

Fonte: Autora, 2021.

4 - O apagamento de uma história


É possível pontuar a problemática do estado atual da arquitetura Eclética em Aracaju a partir da
análise da funcionalidade. As edificações de origem institucional – órgão públicos, comerciais,
religiosas e educacionais – ou que seguem sendo utilizadas por estes, são as menos vulneráveis
a demolição ou perda agressiva de componentes arquitetônicos, independentemente de serem
tombadas ou não. Porém, uso de anexos destoantes, trocas de revestimentos e esquadrias,
entre outras intervenções, atrapalham a leitura das fachadas.
Os imóveis de origem residencial, são bens efêmeros. A maioria desses exemplares pertenciam
a famílias comuns de classe média do século XX e não possuíam grande porte construtivo. Essa
categoria sofre mais intervenções inadequadas e está sempre na iminência de uma demolição.
A presença de uma residência dessas tipologias só é sentida quando no amanhecer do dia, já foi
destruída para dar espaço a um novo estacionamento privado nas ruas do bairro Centro.
As exceções dessa observação são os palacetes. Diferente das residências comuns, pertenciam
– ou ainda pertencem - a famílias tradicionais e abastadas, grandes personalidades na história

31
do desenvolvimento da capital – seus sobrenomes são destaque na sociedade local, com
homenagens em ruas e avenidas. Esses palacetes têm, em maior parte, tombamento pelo
município e estão sob cuidado e uso do poder público ou outras instituições.
Com isso, constata-se que edificações que continuam possuindo alguma função social, estão em
níveis aceitáveis de conservação. Entretanto, isso não significa que estão necessariamente a
salvo das descaracterizações, causadas muitas vezes pela falta de manutenções periódicas e por
adaptações funcionais para os usos contemporâneos sem muita preocupação com a
autenticidade.
Em números, 16% dos exemplares institucionais e 66% dos residenciais inventariados têm
características em estado precário de identificação. Muitas vezes, é impossível até perceber seus
traços, pois muitos são cobertos por grandes letreiros, revestimentos impróprios e
manutenções equivocadas.
Quando edificações antigas, de classes inferiores e mais frequentes no cotidiano de transeuntes
das ruas do Centro, são tratadas por administradores públicos como bens sem valor histórico ou
cultural para o bairro, o mesmo se reflete no pensamento da população. Esta é uma prática de
silenciar o valor de um patrimônio e adentra diversas camadas de agentes e prejuízos sociais,
sendo o apagamento da identidade local o resultado de todo esse processo. Nos parágrafos
seguintes, serão citadas ações que, atingindo a memória coletiva e o patrimônio material,
provocam este apagamento e seus malefícios para a população.
A ocorrência mais comum dentre as perdas de pequenas edificações antigas do Centro são as
demolições a fim de dar lugar a um estacionamento privado ou uma nova construção genérica
comercial. Não há afeição nos imóveis e nem remorso em destruí-los, pois são só “coisas velhas”
no pensamento comum. Este consenso, propagado dentro da memória coletiva, foi
desenvolvido de acordo com os interesses políticos da classe dominante. A memória (que é, e
como é) enaltecida, é selecionada por esse grupo com intuito de gerar um símbolo identitário e
ufanista num grupo maior – seja ele regional, religioso, dentre outros. Nem sempre, esse
símbolo abarca todos os reais representantes de um local (SILVA, 2020).
Ao ver o desprendimento afetivo em relação às residências populares do século XX, nota-se que
estas não estão inclusas como itens de valor para memórias coletivas relevantes e simbólicas de
Aracaju. Entretanto, ignorar essa parte da história é apagar uma página sobre o
desenvolvimento – urbano e histórico - da capital e da sua população que viveu esse espaço até
tempos presentes. Pois os bens edificados, paisagísticos e urbanos são memórias físicas que, se

32
desfeito, transformam os retratos e diálogos em únicas lembranças possíveis para remontar
aquele contexto – fontes frágeis para conservar uma história (MESENTIER, 2005).
Além disso, a destruição material impossibilita a criação de novas memórias e da
conscientização patrimonial através da convivência de grupos sociais com estes bens no
momento presente, visto que a memória é viva e que são as diversas estruturas de sociedade,
espaço e tempo que as constroem junto dos símbolos (MESENTIER, 2005).
O processo seletivo das memórias coletivas propaga nos grupos excluídos o sentimento de
inferioridade da sua identidade e história em relação aos patrimônios tidos como coletivos. A
maneira como esses símbolos são marginalizados pelo poder público é sutil, como quando
apenas antigas sedes de usos institucionais e palacetes de grandes personalidades afortunadas
são protegidas ou recebem novos usos e restauros para servir museus, memoriais ou até como
sedes institucionais recentes. Enquanto isso, imóveis que contam a história do cidadão comum
são ignorados da relevância histórica (SILVA, 2020).
O que esse processo de construção da identidade e memória coletiva desconsidera é que estes
prédios monumentais não fazem parte da história do morador popular das cidades – de Aracaju,
inclusive – diferente do que acontece com as edificações do cotidiano popular. A diferença dos
patrimônios formais e os bens cotidianos está, principalmente na relação de pertencimento e
reconhecimento dos cidadãos entre eles. Esses sentimentos são primordiais para criar um elo
de proteção sob esses bens imóveis (LIMA, 2017). Mas quando se trata de monumentos
distantes da realidade do indivíduo, isso é inexistente, e assim, não há apelo para que a
população invista afeto e atenção nesses bens – mas também não cabe proteger os bens de
maior afeto emocional, pois como já foi relacionado acima, a construção dessa identidade
coletiva diminui o valor de monumento para um objeto que promova grupos minoritários.
A forma como o bairro Centro foi se desvalorizando a partir da década de 70 é comum em
centros antigos de capitais em todo o Brasil. Em Aracaju, está região tornou-se majoritariamente
comercial (MENEZES, 2008). Como consequência, após os horários padrões de atividade
comercial, ocorre um esvaziamento urbano no bairro. São poucos moradores e serviços
disponíveis, o local fica ocupado pela população marginalizada e carrega uma fama de perigoso,
o que afasta ainda mais possíveis visitantes.
Em outras cidades, o centro antigo tornou-se um local de interesse turístico, porém não é
correto afirmar que se o Centro de Aracaju fosse utilizado de forma turística, seria diferente do
que é hoje. Pois uma característica, infelizmente comum, de centros históricos voltados para o

33
turismo é o abandono por parte da população. Esses centros turísticos tendem a se tornar
cenários cinematográficos, segregados do contexto urbano real – comércios, custos e horários
voltados a pessoas de fora – e que fora da alta estação turística, também sofrem com
esvaziamentos (SANT’ANNA, 2019).
O que se cabe observar que acontece no bairro Centro, mas também nesses centros históricos,
é que uma função única – mesmo que seja de serviço à comunidade, como é o caso do uso
comercial – está fadada ao escoamento populacional (SANT’ANNA, 2019). Empobrecimento de
gente nas ruas e prédios, de símbolo e afeto. E ao chegar neste ponto do texto, já é possível
identificar que o ciclo para o apagamento de um patrimônio se inicia quando a população perde
a sensibilidade de reconhecer sua identidade naquele bem – seja ele material ou imaterial.
Como sociedade, é possível promover ações que impeçam essas perdas históricas em Aracaju.
Por parte do poder público, a atualização do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de
20002, em pautas sobre como preservar e promover novos usos aos bens imóveis – para além
do comercial e museus pouco frequentados pela população, explorando novos horários de usos
e fluxos urbanos. Empresas privadas, coletivos e profissionais independentes podem, e devem,
promover educação cultural e participar da construção da identidade local, integrando a
população do seu entorno.

5 – Conclusão
Ao avaliar a arquitetura Eclética em Aracaju catalogada dentro do polígono em 84 exemplares,
foram analisadas diversas questões quanto à conservação, preservação e vulnerabilidade desses
patrimônios materiais. Conclui-se que os critérios de bens que devem ser protegidos são
seletivos. As edificações residenciais são as mais indefesas em relação a perda de características
ou até mesmo ao risco de perda total de matéria. São tipologias que não provocam associação
imediata quanto a patrimônio de valor histórico ou cultural, mesmo que tenham maior relação
afetiva por estarem mais presentes na vivência da maior parte da população – diferente dos
palacetes e sedes monumentais dos órgãos públicos.
Porém, é importante frisar que a perda de referências ao falar destas edificações vai além do
âmbito material e estético na cidade, mas também histórico, pois perde-se parte do

2
O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Aracaju (PDDU) deveria ter sido renovado em 2010,
mas em 2019 sua nova versão ainda não havia saído do papel como consta na matéria disponível em <
https://www.f5news.com.br/politica/edvaldo-nogueira-diz-que-plano-diretor-de-aracaju-nao-esta-
atrasado_57334/> Acesso em: 08 mar. 2021.

34
entendimento de como a capital cresceu urbanista e arquitetonicamente falando. Ademais, o
silenciamento extrapola o físico e atinge a memória coletiva e individual. Ao retirar elementos
das fachadas urbanas, as lembranças também se tornam vulneráveis, visto que ficam reféns do
que está a salvo na mente de pessoas e em acervos, restritos a um número finito de pessoas.
Com isso, o apagamento desses bens Ecléticos de Aracaju interfere na construção da identidade
histórica e social da cidade e da população, uma vez que ao ser danificada ou destruída, fica
acessível apenas a grupos particulares.
A problemática sobre a conservação desse patrimônio pode ser ampliada para outros
monumentos históricos materiais da capital, e incorpora mais agentes causadores de
apagamentos dos patrimônios imóveis. Apesar disso, a memória coletiva e sua construção, é
peça chave em todo o processo do patrimônio cultural e histórico. Tendo a história cultural,
paisagística e estética da cidade como grandes ferramentas referenciais para sensibilizar
conterrâneos quanto a identidade coletiva e o pertencimento.

Referências
BARBOZA, Naide. Em busca de imagens perdidas: Centro Histórico de Aracaju 1900-1940. Aracaju:
Fundação Cultural Cidade de Aracaju, 1992.

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1926). 2013. Trabalho Final de Graduação (Graduação em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade
Tiradentes (UNIT), Aracaju, 2013.

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educação patrimonial. Orientador: Profª. Drª. Ilka Miglio de Mesquita. 2017. 187 p. Dissertação
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processo de verticalização no bairro Cento da capital sergipana 1951/1991. Dissertação (Mestrado em
Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2008.

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(coordenação). Aracaju e seus monumentos: sesquicentenário da capital 1855-2005. Aracaju. Secretaria
de Estado da Cultura. Gráfica e Editora Triunfo Ltda. 2005.

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Janeiro: SENAC, 2002.

35
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Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Brasília, ed. 40, p. 57-71, 2019.

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São Paulo no século XX. In: INTERNATIONAL CONGRESS OF THE LATIN AMERICAN STUDIES
ASSOCIATION, 38., 2020. Guadalajara (México). Disponível em
<https://www.academia.edu/42741753/O_apagamento_da_memória_como_um_processo_estrutural_
da_urbanização_de_São_Paulo_no_século_XX> Acesso em: 08 mar. 2021.

36
A URBANIZAÇÃO NO SERTÃO CARIOCA DE JACAREPAGUÁ: contradições em torno da Casa
da Fazenda do Engenho d'Água
Nó 1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Gabriel Teixeira Barros


Doutorando em Geografia; UERJ; gabriel.t.barros@gmail.com.

Ulisses da Silva Fernandes


Doutor em Geografia; UERJ; udsfernandes@gmail.com

A Baixada de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, já foi descrita no Plano Piloto de Lúcio Costa para a região
como provável novo coração da metrópole. No início do século XX, tinha como principal função a
agrícola, o que lhe valeu a alcunha de "sertão carioca". A partir de 1960, o processo de urbanização
regido pelo mercado imobiliário em consonância com os governos de Henrique Dodsworth, Negrão de
Lima e Lacerda aumentou a densidade populacional e a verticalização de suas edificações. No centro
dessa paisagem repousa a "Casa da Fazenda do Engenho d'Água", bem tombado pelo IPHAN que hoje
encontra-se silenciado. Por meio da análise histórico-dialética, expusemos as contradições e tensões
emergentes na paisagem urbana em torno desse monumento.
Palavras-chave: Urbanização; Monumento; Jacarepaguá; Planejamento da Paisagem; Geohistória.

The "Jacarepaguá" lowland, in the Rio de Janeiro, was described in the Lúcio Costa`s master plan for
the region as the new heartland of the metropolis. In the early twenties, it had as main function the
agricultural, which gave it the alias of "'carioca's western". From 1970 on, the urbanization process, led
by the real estate market in association with the governments of Henrique Dodsworth, Negrão de Lima
and Lacerda, improved its population density and verticalization. Within this landscape, lies the
"Engenho D'água" farm house, a monument protected by the IPHAN that today finds itself deaf.
Through an historical dialectic analysis, we will highlight and expose the emerging tensions and spatial
contradictions in the urban landscape surrounding this monument.
Keywords: Urbanização; Monument; Jacarepaguá; Landscape planning; Geohistory.

37
Introdução
A Baixada de Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio de Janeiro (RJ), já foi descrita no Plano Piloto de Lúcio
Costa para a região (COSTA, 1969) como provável novo coração da metrópole em expansão. Já no
início do século passado, tinha ainda como principal função a agrícola, o que lhe valeu a alcunha de
"Sertão Carioca", cunhada pelo livro homônimo de Magalhães Costa (1936). De 1970 em diante, o
processo de urbanização - tardio se comparado com o resto da cidade -, regido pelo mercado
imobiliário em consonância com o governo, fez surgir uma gama de edificações subordinadas tanto ao
Central Business District (CBD) quanto à nova polaridade emergente da "Barra da Tijuca". No centro
dessa paisagem repousa a "Casa da Fazenda do Engenho D'água", bem tombado pelo IPHAN (1938),
centro de poder e domínio do território circundante do século XVII ao XVIII (VAN BIENE, 2007) e que
hoje encontra-se silenciado.
Neste artigo exploratório, objetivamos por meio de uma análise histórico-dialética (LEFEBVRE, 1991)
explorar e destacar as contradições espaciais que emergem da paisagem urbana em tela, visando
incentivar novas possibilidades de leitura desse monumento e buscando aproximar-se das causas que
o tornaram atualmente um monumento estático, quase esquecido, e desprovido de qualquer caráter
monumental (FERNANDES, 2006; BERQUE, 1998). Por meio da leitura geohistórica da paisagem urbana
(ABREU, 2010, 2013; CAPEL, 2002), é possível verificar na sua materialidade os diferentes momentos
e formas com as quais as ações da sociedade reagiram com o meio, e assim é possível identificar as
intenções dos atores envolvidos bem como elucidar a atual configuração territorial (SANTOS, 2017;
CORRÊA, 1989).
A legislação urbana e edilícia, dispondo de meios para regular a paisagem urbana como a limitação dos
parâmetros urbanísticos de construção, deveria se apresentar como elemento balizador do processo
de urbanização e verticalização. Porém, por meio da comparação com as diversas leis municipais,
estaduais e federais que regem o entorno da Casa da Fazenda do Engenho D'água chegamos à
conclusão que mesmo os instrumentos legais não foram o suficiente para frear os interesses do
mercado imobiliário, tendo por vezes atuado em consonância com esse (ROLNIK, 2019; LEFEBVRE,
2011; CORRÊA, 1989). Nesse processo também não escapa a natureza, que assim como o patrimônio
histórico-cultural, acaba sendo enclausurada e asfixiada em meio aos edifícios multifamiliares de classe
média, favelas e condomínios de alta-renda da região, quando não já fora destruída por atividades
econômicas do passado.
Por fim, após analisar o desenvolvimento histórico desta paisagem e expor as contradições emergentes
entre seus elementos, a legislação urbana e o entorno, esperamos com a síntese desse estudo

38
contribuir para a construção de uma prática de planejamento, produção e reestruturação da paisagem
urbana mais sustentável e harmônica.

Figura 01 - Casa da Fazenda do Engenho D'água. Gardênia Azul, Rio de Janeiro - RJ.

Nota: A edificação localiza-se nas coordenadas 22° 57' 17" S e 43° 21' 22" O.
Legenda: Varanda frontal da Casa-grande do Engenho d’Água, com seu estilo colonial simples e funcional. À
esquerda, é possível verificar a capela de Nossa Senhora da Cabeça, já anexada ao pátio externo coberto.
Fonte: IPHAN, 2020.

O artigo se dividirá em duas seções: na primeira, denominada “Transformações da paisagem no


Engenho d’Água”, abordaremos o contexto do surgimento desse patrimônio e aspectos sócio-espaciais
de sua existência no século XVII e XVIII. Na segunda seção, denominada “Conflitos com a legislação
urbana”, abordaremos as representações e tratamentos que o patrimônio recebeu em dois momentos
distintos: as políticas urbanas dos governos de Negrão de Lima e Carlos Lacerda, entre 1950 e 1970, e
as leis de preservação e tombamento da paisagem do entorno, como a do Instituto do Patrimônio
Histórico Nacional (IPHAN) em 1990 e o Decreto 38.057/2013 que estabelece o Sítio de Relevante
Interesse Ambiental e Paisagístico da Freguesia. Por meio de análise histórica e dialética, serão
identificadas as principais tensões resultantes do relacionamento dessa legislação com a paisagem do
entorno, visando a retomada do diálogo entre o patrimônio então silenciado e a metrópole
circundante, que o torna hoje verdadeira rugosidade.

1 - Transformações da paisagem no Engenho d’Água


O “Engenho d’água” foi o pioneiro dos engenhos de açúcar na então inexplorada planície para além
do maciço da Tijuca, conhecida pela sua alcunha indígena de “Jacarepaguá”, ou Vale dos Jacarés

39
(MAGALHÃES CORRÊA, 1936), que mais tarde ganharia o nome de “Planície dos Onze Engenhos”
cunhado por Alfonso Várzea. Após os conturbados anos de disputas pelo controle militar do território
com os franceses, em sua empreitada de construir a França Antártica, no século XVI, a área foi dividida
em sesmarias (uma grande, que abrangia desde o Joá até os atuais bairros de Deodoro e Cascadura),
e doada pelo governador Salvador Corrêa de Sá para dois de seus aliados de guerra, em 1567 (PEIXOTO
et LIMA, 2020). Após ter a terra novamente em suas mãos - provavelmente por estarem improdutivas
por muito tempo -, o governador faz nova doação, separando-a em duas glebas para seus filhos: uma
para Gonçalo Correia de Sá, que herdou a parte ocidental, do Camorim, e outra para Martim de Sá,
que herdou parte da porção oriental (incluindo o Engenho d’Água) e outra parte a dividiu com seu
irmão. Após a morte de ambos na década de 1630, Salvador Correia de Sá e Benevides, neto do antigo
governador e também governador do Rio de Janeiro, além de filho do falecido Martim de Sá, compra
de sua tia a parte das terras que pertenciam a Gonçalo, situadas na banda oriental da Baixada (PEIXOTO
et LIMA, 2020). Dessa forma, a partir de 1632 as terras da baixada se encontram divididas entre dois
ramos da família Corrêia de Sá: a banda oriental, correspondente ao Engenho d’Água, e a banda
ocidental, na posse de Vitória de Sá (filha de Gonçalo), que continha o Engenho do Camorim. Com a
morte de Vitória em 1667, a banda ocidental, do Camorim, passou a ser administrada pelo Mosteiro
de São Bento, em nome dos monges beneditinos, enquanto a banda ocidental foi, em parte já loteada
e vendida por Salvador Correia de Sá e Benevides, e parte deixada como morgado para seu filho,
Martim Corrêia de Sá e Benevides, que foi o primeiro a possuir o título de Visconde de Asseca (PEIXOTO
et LIMA, 2020).
Segundo Peixoto e Lima (2020), com base em Abreu (2010), o sítio onde hoje encontra-se a Casa da
Fazenda do Engenho d'Água foi edificado primeiramente em 1590, onde foi erguida uma Ermida em
homenagem à Nossa Senhora da Cabeça. A primeira construção de vivenda era de grande rusticidade,
feita de taipa e adobe e separada da Ermida, provavelmente datada de 1598. Já no século XVIII, sob
propriedade de José Roiz de Aragão, a Casa ganhou sua edificação atual, tendo então sido expandida
e possivelmente anexada à Ermida, que tornou-se capela. Segundo Van Biene (2007, p. 35), em 1779
a fazenda possuía 30 escravos e produzia anualmente cerca de 18 caixas de açúcar e 14 pipas de
aguardente. No século XIX, a propriedade (cada vez menor pelos sucessivos desmembramentos) saiu
da linhagem dos Corrêia de Sá, dos Viscondes de Asseca, e passou a pertencer à família Pinto da
Fonseca, que também era proprietária de outras fazendas da baixada, como a da Taquara, Rio Grande,
e Engenho de Fora. Francisco Pinto da Fonseca Teles, o Barão da Taquara, eminente nobre da corte de
Dom Pedro II, passou então a controlar grandes porções de terra em Jacarepaguá. Em 30 de julho de

40
1938, o bem foi tombado pelo então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) e
inscrito no Livro das Belas Artes, fl. 34.
Como aponta Van Biene (2007), a escolha do sítio e da arquitetura a ser empregada nos engenhos era
assunto primordial. Ao escrever o “Manual do Agricultor Brasileiro” em 1839, Carlos Augusto Taunay
aponta alguns aspectos essenciais que podiam já ser verificados na Casa da Fazenda do Engenho
d’Água, apesar dessa ser muito anterior a este escrito:
O oriente e o sul são as duas exposições mais favoráveis para a frente das casas, por
haver menos sol e melhor viração. O local preferível he huma elevação medíocre, no
centro da planície, com hum declive suave da parte da frente e quase insensível da
banda dos fundos para collocação (sic) das dependências (TAUNAY, 1839, p. 20 apud
VAN BIENE, 2007, p. 146).

Para Peixoto e Lima (2020), porém, a nítida orientação sudeste que possui a edificação é decorrente
do fato de que o principal acesso às terras da Baixada na época se dava ainda por via marítima e
lagunar. Porém, certamente a característica mais marcante da paisagem dessa edificação é a sua
posição estratégica, erguida em um pequeno morro ao lado de um caudaloso curso d’água (chamado
atualmente de Arroio Fundo e à época com toponímia associada ao próprio Engenho d’água, segundo
as “Cartas Topográficas da Capitania do Rio de Janeiro”, feitas por Manoel Vieira Leão em 1767). O rio
Fundo fornecia a força-motriz para a moenda, enquanto o morrete providenciava aos proprietários da
casa-grande uma posição hegemônica imponente e privilegiada para todo o engenho e a baixada. A
esta época, a construção só deveria perder em altura e imponência para a Igreja de Nossa Senhora da
Penna, uma configuração totalmente de acordo com o Concílio de Trento, ao formar a "postura
emblemática do tripé dos poderes do período colonial: Oficial (Real) - Religioso - Econômico", como
bem observa Maria Paula Van Biene (2007, p. 149):
Hoje, já não é possível localizar as outras edificações do complexo agrário manufatureiro do Engenho
d’água, sendo a única construção preservada a própria casa-grande. De acordo com o indicado pelo
“Mappa do Município Neutro", desenhado por E. de Maschek de 1875, é possível que os restos
arqueológicos de algumas das construções ainda se encontrem no entorno da casa. Era comum que
nesses Engenhos houvesse, além do Engenho em si, a casa de moagem da cana-de-açúcar (que deveria
estar localizada às margens do Arroio Fundo), a casa das fornalhas, a casa de purgar, as diversas
senzalas e as casas dos trabalhadores livres (como o Capitão-do-mato).

41
2 - Conflitos com a legislação urbana
Diferentemente de outros engenhos da baixada de Jacarepaguá, situados às margens dos maciços da
Tijuca e da Pedra-Branca, o Engenho d’Água não possuí vocação geomorfológica para a plantação de
café, visto que o seu entorno é de solos arenosos e tiomórficos impróprios para esse cultivo. A cana-
de-açúcar, que prosperou nesta propriedade nos séculos anteriores, é um vegetal de muito maior
resistência e adaptabilidade. Com essa dificuldade e com a população carioca aumentando
consideravelmente após a chegada da família real portuguesa em 1808, as terras pertencentes ao
Engenho d’Água foram sendo loteadas em glebas menores e vendidas como fazendas e sítios, que
produziam cultivos agrícolas destinados a alimentar a crescente capital do Império ou serviam de
veraneio para nobres da corte. Segundo Magalhães Corrêa (1936), em 1933, os produtos de extração
vegetal (frutas - principalmente banana -, madeira-de-lei, lenha e carvão) eram vendidos na Feira de
Madureira, Campo Grande, Irajá, Inhaúma ou Engenho Novo, sendo então já transportados por meio
de caminhões.
Com a expansão das ferrovias a partir de 1870, os principais eixos industriais e residenciais suburbanos
passaram ao largo da baixada de Jacarepaguá, o que lhe concedeu uma condição de pouco
adensamento populacional até a popularização do automóvel, a partir da década de 1920. Abreu
(2013) destaca que por força do Decreto 6.000/1937, que determinava a localização das atividades
industriais, toda a baixada de Jacarepaguá foi deixada de fora dessa zona por estar longe dos principais
eixos de escoamento férreo para Minas Gerais e São Paulo. Nos anos 1940, sob a administração do
prefeito Henrique Dodsworth, foram realizadas intervenções de grande escala na baixada, como o
alinhamento da Avenida Geremário Dantas, Estradas do Pau Ferro, Tindiba, Cafundá, Rio Grande e a
construção de vias intermediárias paralelas, no estilo de urbanismo adotado na França no século XIX e
nas New Towns anglo-saxãs de fins do XVIII (CAPEL, 2002). Ainda, iniciou-se a construção da
Autoestrada Grajaú-Jacarepaguá que, finalizada apenas nos anos 1950, passou a se tornar o principal
acesso à Baixada.
Além do fornecimento de água potável, era importante para a região o fornecimento de lenha - que
reunia uma série de trabalhadores conhecidos como “machadeiros” (MAGALHÃES CORRÊA, 1936) -
madeira-de-lei e carvão. Infortunadamente, se o café não foi o protagonista no desmatamento da
planície, a extração de lenha supriu esse papel, como bem aponta Magalhães Corrêa (1936). Dessa
forma, percebe-se a combinação de dois fatores fundamentais na formação da paisagem: o corte
progressivo das matas (incluindo manguezais) e o loteamento para venda das grandes glebas
remanescentes. Por autorização do Decreto 5.941 de 11/06/1875, é inaugurada pela Companhia Ferro-

42
Carril de Jacarepaguá a primeira linha de bonde da baixada, que ligava o Largo da Freguesia à estação
de trem da E. F. Dom Pedro II em Cascadura, com possibilidade de expandir até a as bandas de
Guaratiba. Esta linha, que foi de tração animal até ser comprada pela Light e eletrificada em 1911
(MORRISON, 2012), servia principalmente para o escoamento da produção agrícola (WEID, 1997). Ela
foi construída primeiramente com destino ao Largo do Tanque (1875-1876) e depois expandida até o
Largo da Freguesia pelo caminho onde hoje é em parte a Avenida Geremário Dantas (c. 1878; RUDGE,
1983). Em 1882 foi inaugurada uma ramificação que, partindo do Largo do Tanque, levava até o Largo
da Taquara, por onde hoje é a Avenida Nelson Cardoso. No fim deste século, a fazenda dos Corrêia de
Sá do Camorim foi arrendada por pouco tempo pela Cia. Engenho Central de Jacarepaguá, que a pagou
como hipoteca ao Banco de Crédito Móvel, em 1891, enquanto a banda oriental do Engenho d’Água
vinha sofrendo sucessivos loteamentos já desde a segunda metade do século XVII, como vimos.
É daqui, portanto, que passaremos a analisar a materialização da paisagem atual a partir de dois
importantes momentos: o primeiro remete às diretrizes dos governos Henrique Dodsworth, Negrão
de Lima e Carlos Lacerda, sob a ação dos órgão, respectivamente: Departamento de Urbanismo da
Prefeitura do Distrito Federal (DUR), Departamento de Estradas de Rodagem (DER), Superintendência
de Urbanismo e Saneamento (SURSAN), Banco Nacional de Habitação (BNH) e a Companhia de
Habitação Popular do Estado da Guanabara (COHAB). Já o segundo corresponde às políticas públicas
de paisagem executadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Nacional (IPHAN), em 1990, e pelo
município do Rio de Janeiro em diversas legislações urbanas (RIO DE JANEIRO, 1989, 2004, 2011, 2013).
Dessa forma, ficarão explícitas as tensões decorrentes da racionalidade modernista, imposta pelos
governantes planejadores da cidade, e a sobrevivência material deste patrimônio na paisagem urbana,
símbolo de um passado colonial que nada interessava aos ideais progressistas dos modernos.
O “Plano de Diretrizes para Vias Arteriais na planície de Jacarepaguá”, ou Projeto de Alinhamento e
Loteamento (PAL) 5596, foi aprovado em 1950 pelo prefeito Mendes de Moraes, e ao se observar a
morfologia de seus logradouros já é possível destacar uma racionalidade planejadora antevista para
essa paisagem. As linhas retas e paralelas contrastam fortemente com as antigas estradas já existentes
provenientes da configuração territorial dos Engenhos e de seus loteamentos. Aqui, destacam-se a
Estrada do Capão, a Estrada do Engenho D’água, a Estrada do Gabinal, o Caminho da Caieira, Estrada
da Estiva, Estrada de Guaratiba (atual Estrada dos Bandeirantes), Rua Edgard Werneck e o distinto
Largo da Freguesia. É importante notar que já neste documento a Casa da Fazenda do Engenho D’Água
não está assinalada no mapa, diferentemente da Igreja de N. S. da Penna, outro imóvel histórico
eminente. Pela quantidade de logradouros existentes, é possível constatar um maior parcelamento do

43
solo na área mais ao norte da Casa da Fazenda do Engenho d’Água, ao pé do Morro que abriga as
Igrejas de N. S. da Pena e a do Loreto, que hoje compreende o bairro da Freguesia, e em direção ao
Pechincha, Tanque e Praça Seca (o caminho do bonde).
Apesar da existência do PAL 5596, em 1969, por decisão do governador da Guanabara Francisco
Negrão de Lima (1965-1971), Lúcio Costa1 é convidado a elaborar o seu próprio plano para a
urbanização das terras promissoramente rentáveis da Barra da Tijuca e de Jacarepaguá. Silva (2020)
aponta na política de Negrão de Lima e na elaboração do Plano Lúcio Costa uma continuidade das
políticas rodoviaristas iniciadas pelo DUR, que produziu o Plano Diretor de 1948 na gestão de Mendes
de Morais, e que foi continuada pelo DER e a SURSAN no governo de Negrão de Lima como prefeito
do Distrito Federal (1956-1958) e Carlos Lacerda, já como governador do Estado da Guanabara (1960-
1965). É sob a tutela do DER e da SURSAN, que contavam respectivamente com verbas do Fundo
Nacional Rodoviário (FNR) e do Fundo Nacional de Obras Públicas (FNOP), criado por Juscelino
Kubitschek, que é então finalizada a construção da Autoestrada Grajaú-Jacarepaguá. No governo
Lacerda é encomendado o Plano Doxiadis (ou Policromático), com diretrizes para construção de
freeways, como no Aterro do Flamengo, seguindo o modelo norte-americano. Porém, é somente com
Negrão de Lima que é construída a Autoestrada Lagoa-Barra, outro importante vetor de adensamento
da Baixada de Jacarepaguá (SILVA, 2020). Apenas entre 1995 e 1996, durante a gestão de César Maia,
é que foi construída a Linha Amarela, preconizada no Plano Policromático e hoje o principal meio de
acesso à baixada. A via se constitui em um importante elemento da paisagem do entorno da Casa da
Fazenda do Engenho d’Água, contornando e abraçando o morrete em que ela se encontra.

1
Lúcio Costa, que já havia trabalhado na concepção de Brasília, era ávido admirador das ideias modernistas do
arquiteto suíço Le Corbusier, que exercia papel de liderança nos Congressos Internacionais de Arquitetura
Moderna (CIAM) desde 1929.

44
Figura 02 - Plano de Diretrizes para Vias Arteriais na planície de Jacarepaguá.

Fonte: PAL 5596, 1950.

Apesar da existência do PAL 5596, em 1969, por decisão do governador da Guanabara Francisco
Negrão de Lima (1965-1971), Lúcio Costa2 é convidado a elaborar o seu próprio plano para a
urbanização das terras promissoramente rentáveis da Barra da Tijuca e de Jacarepaguá. Silva (2020)
aponta na política de Negrão de Lima e na elaboração do Plano Lúcio Costa uma continuidade das
políticas rodoviaristas iniciadas pelo DUR, que produziu o Plano Diretor de 1948 na gestão de Mendes
de Morais, e que foi continuada pelo DER e a SURSAN no governo de Negrão de Lima como prefeito
do Distrito Federal (1956-1958) e Carlos Lacerda, já como governador do Estado da Guanabara (1960-
1965). É sob a tutela do DER e da SURSAN, que contavam respectivamente com verbas do Fundo
Nacional Rodoviário (FNR) e do Fundo Nacional de Obras Públicas (FNOP), criado por Juscelino
Kubitschek, que é então finalizada a construção da Autoestrada Grajaú-Jacarepaguá. No governo
Lacerda é encomendado o Plano Doxiadis (ou Policromático), com diretrizes para construção de
freeways, como no Aterro do Flamengo, seguindo o modelo norte-americano. Porém, é somente com
Negrão de Lima que é construída a Autoestrada Lagoa-Barra, outro importante vetor de adensamento
da Baixada de Jacarepaguá (SILVA, 2020). Apenas entre 1995 e 1996, durante a gestão de César Maia,
é que foi construída a Linha Amarela, preconizada no Plano Policromático e hoje o principal meio de
acesso à baixada. A via se constitui em um importante elemento da paisagem do entorno da Casa da
Fazenda do Engenho d’Água, contornando e abraçando o morrete em que ela se encontra.

2
Lúcio Costa, que já havia trabalhado na concepção de Brasília, era ávido admirador das ideias modernistas do
arquiteto suíço Le Corbusier, que exercia papel de liderança nos Congressos Internacionais de Arquitetura
Moderna (CIAM) desde 1929.

45
Durante o governo de Carlos Lacerda decorrem outros acontecimentos formadores da paisagem do
Engenho d’água. Segundo Machado (2016), é em meio à sua política abertamente anti-comunista, pró-
estadunidense e anti-favela que passam a ocorrer uma série de remoções e desapropriações de favelas
ao longo da Avenida Brasil e principalmente na Zona Sul da cidade. Inspirado na criação do Conjunto
Residencial do Pedregulho (na Gávea), idealizado por Lúcio Costa e Reidy, nas formulações do Plano
Agache (1930) e nos Parques Proletários do Estado Novo, Carlos Lacerda promove a construção de
diversas vilas com habitações estandardizadas como a Vila Kennedy e a Cidade de Deus. Machado
(2016) aponta ainda o financiamento direto pelo Governo estadunidense, por meio do programa US
Alliance of Progress, que tinha como um dos principais motes a criação de conjuntos habitacionais para
diminuir a insatisfação da população mais pobre e erradicar a ameaça comunista das favelas. Com isso,
a união do capital norte-americano, facilitado por Lacerda, a política rodoviarista e o direcionamento
da gestão desse capital para o BNH pelo governo militar impulsionam a criação de conjuntos
habitacionais, geridos pela COHAB, em áreas de baixo valor da terra e afastadas do centro da cidade.
É nesse contexto que começa a habitação da Cidade de Deus, cujos apartamentos esverdeados e casas
baixas podem ser visualizados na paisagem da Casa da Fazenda do Engenho d’água, como na Figura 3
a seguir.
No primeiro plano da imagem, pode-se observar, às margens da Linha Amarela, a favela conhecida
como Vila Nova Esperança, no bairro da Gardênia Azul, cuja ocupação foi iniciada em 1992 (MARTINS,
2007). É interessante ressaltar que a Vila Nova Esperança e a Cidade de Deus são territórios
historicamente controlados por facções criminosas distintas.

Figura 03 - Modelo 3D da paisagem do entorno da Casa da Fazenda do Engenho D'água.

Notas: Posição da câmera em 22º 56' 17" S, 43ª 21' 08" O, a 149 metros de altitude e direção nór-nordeste.
Fonte: Google Earth Web, 2021.

46
A partir de 1989 verificamos um outro momento nas políticas públicas de urbanização para a paisagem
em questão. A Casa-grande do Engenho d’Água já era bem tombado desde 1938, porém, em 1989, em
projeto de lei de autoria do vereador Alfredo Sirkis, determina-se tombado todo o perímetro
compreendido entre Estrada do Gabinal, a Estrada de Jacarepaguá, a Avenida Tenente-Coronel Muniz
de Aragão e a Estrada do Caribu, sendo proibidas inclusive novas construções, acréscimos e retirada
de vegetação natural. Essa lei, porém, nunca chegou a ser regulamentada e foi ignorada pelos
promotores imobiliários e pela Secretaria de Urbanismo, que continuou a autorizar novas construções
na região. Em 1990, por meio da Portaria 003/1990, o IPHAN estabelece parâmetros urbanísticos para
reger as construções do entorno, a fim de preservar a paisagem do bem. Essa prevê limite de
pavimentos nas edificações, de forma a preservar a paisagem resultante do perímetro entre a casa-
grande e a Igreja de N. S. da Pena, circundados pela Estrada do Gabinal, Av. Tenente-Coronel Muniz de
Aragão (antiga Estrada do Capão) e pela Estrada de Jacarepaguá. Apesar disso, os anos 1990 foram de
intensa atividade imobiliária na região, seguido do Plano de Estruturação Urbana (PEU) da Taquara, de
2004, que trouxe medidas menos restritivas para a construção, mas que foi substituído pelo Plano
Diretor de 2011 que trazia um Índice de Aproveitamento do Terreno (IAT) bem menor para os lotes.
Em 2013, sob o decreto 38.057, a área é decretada Sítio de Relevante Interesse Ambiental e
Paisagístico, legislação que impõe mais medidas restritivas às construções, principalmente no que se
refere ao número de pavimentos e ao IAT, além do aumento da taxa mínima de permeabilidade, de
vegetação e taxa máxima de ocupação dos lotes. Porém, devido ao grande número de edificações
residenciais multifamiliares, que chegam a ter 4 pavimentos ou mais (sejam as de origem na política
habitacional dos anos 1960, como na Cidade de Deus, ou os novos empreendimentos particulares dos
anos 1980 e 0) e a ligação da Linha Amarela com a Av. Ayrton Senna, que corta a paisagem levando
diretamente da Zona Norte ao polo comercial e de serviços da Barra da Tijuca, a Casa da Fazenda do
Engenho d’Água hoje se tornou um patrimônio extremamente silencioso, quase não notado pelos
transeuntes da metrópole, mas que carrega todas as marcas da história da produção da paisagem do
Rio de Janeiro. A Linha Amarela, uma via de tráfego rápido e intenso que passa pelos fundos da
edificação, e a Av. Tenente-Coronel Muniz de Aragão, em um trecho de entroncamento com outras
duas vias e que passa muito próxima ao morrete (em ângulo que não permite a visão da Casa) não
favorecem a visualização do patrimônio. Vendida por Francisco Pinto da Fonseca Teles antes da lei
6.000/1937, a Casa abriga hoje a sede de uma firma de segurança particular.

47
Conclusão
A cidade não é um organismo, mas sim o conjunto das formas resultantes de diferentes interações
espaciais e culturais entre os seres humanos, seja de forma individual ou organizada. A técnica, como
aponta Santos (2017), é a responsável por materializar o tempo em sua unicidade, e as diferentes
técnicas são resultantes do compartilhamento de diferentes práticas culturais entre os homens. Dessa
forma, a paisagem urbana se configura em um palimpsesto, para usar o termo de Berque (1998) e
Fernandes (2016), ou em uma série de rugosidades justapostas. A paisagem urbana é não só vista ou
representada, mas também vivida pelos cidadãos, que fazem parte dela, a compõem e a constroem
em um processo móvel, contínuo e dialético (LEFEBVRE, 1991, 2011; CAPEL, 2002).
O ato de preservar, assim como o de construir, é um ato político onde as forças dos diferentes atores
são medidas, e no caso do planejamento urbano da cidade do Rio de Janeiro as forças hegemônicas -
dos empreendedores imobiliários, da elite política, financeira e industrial - vêm sendo vencedoras,
salvo alguns casos isolados de resistência exitosa. O tombamento da Casa da Fazenda do Engenho
d’Água, no século XIX, foi um desses atos políticos que ajudou a preservar um importante documento
imóvel da história e geografia do Rio de Janeiro e a mantê-lo inscrito na paisagem, porém, no equilíbrio
instável das forças políticas, ele foi condenado ao silêncio. Segregado e esquecido no alto do morrete
que já foi a posição mais imponente de toda a planície dos Onze Engenhos, abaixo apenas da Igreja de
Nossa Senhora da Pena, como regia o Concílio de Trento. Atualmente, sua visitação é restrita por se
tratar de imóvel particular.
A racionalidade moderna, que como vimos foi a predominante entre os governantes e planejadores
urbanos cariocas entre as décadas de 1930 e 1960, não fez nascer nesses atores o interesse pela
exaltação de uma Casa-grande de Engenho, símbolo de um passado colonial e atrasado que eles
queriam justamente esquecer - nota-se que o patrimônio também foi silenciado no Mapa do Plano
Piloto de Lúcio Costa para a Baixada da Barra e Jacarepaguá (1969). Porém, por força da lei, também
não o puderam derrubar.
Para futuras investigações, sugerimos adentrar no âmbito das características da relação subjetiva que
os moradores do entorno - notadamente os da Vila Nova Esperança e dos “apês” da Cidade de Deus -
possuem com o monumento, a fim de propor novas formas de uso e interação entre este bem e a
comunidade local, bem como intervenções urbanas que propiciem sua melhor inserção na paisagem
urbana.

48
Referências
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as especificações a serem observadas para quaisquer intervenções nas áreas de entorno da Igreja Nossa
Senhora da Pena, a Casa da Fazenda do Engenho d’Água, a Casa da Fazenda da Taquara e sua respectiva capela
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49
1º de fevereiro de 2011, que instituiu o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável do Município do
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50
AS NUANCES DE ILUMINAÇÃO EM UMA PRAÇA HISTÓRICA FRANCESA
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Vivian Dall’Igna Ecker


Arquiteta e urbanista; doutoranda no PROPAR/UFRGS; vivianecker@gmail.com.

As praças podem ser consideradas uma fração da paisagem urbana, um enquadramento de paisagem.
Neste artigo, objetiva-se apresentar conceitos relativos à sua tipologia e, então, descrever uma
importante praça europeia – a Place des Vosges. O entendimento da praça, como um patrimônio em
silêncio, dá-se por esta ser considerada um bem, de valor patrimonial, que dispõe de um sistema de
iluminação adequado, para a sua valorização paisagística. No entanto, acredita-se que há alguns
pontos, que poderiam ser enfatizados, no intuito de qualificar a sua beleza cênica. Para fundamentar
as análises, aqui apresentadas, a revisão bibliográfica compreenderá conceitos relativos à iluminação
natural e artificial, seguida da descrição do objeto de estudo, constituindo-se de uma reflexão teórico-
conceitual, acerca do tema.
Palavras-chave: patrimônio histórico; iluminação natural; iluminação artificial; praça.

The squares can be considered a fraction of the urban landscape, a framing of that landscape. In this
article, the objective is to present concepts related to its typology and, then, to describe an important
European square – the Place des Vosges. The understanding of this square, as a silent heritage, is due
to the fact that it is considered a property, of patrimonial value, which has an adequate lighting system,
oriented for its landscape enhancement. However, it is understood that there are some points which
could be emphasized, to qualify its scenic beauty. In order to support the analyzes presented here, the
bibliographic review will include concepts related to natural and artificial lighting, followed by the
description of the object of study, based on a theoretical and conceptual reflection, on the theme.
Keywords: historical heritage; natural lighting; artificial lighting; square.

51
1 - INTRODUÇÃO
Nas cidades, a paisagem urbana constitui-se de elementos naturais e construídos, resultantes da
intervenção humana, no ambiente natural. Na sua estrutura, há espaços, de uso coletivo, que
merecem receber destaque. Dentre eles, tem-se as praças como um espaço referencial, cujo projeto
influirá, significativamente, na qualidade da paisagem urbana. Sob o ponto de vista conceitual, a
paisagem pode ser compreendida como um ‘monumento natural, de caráter artístico’ (CAUQUELIN,
2007). Esta afirmativa refere-se tanto à paisagem como um símbolo da natureza, quanto à habilidade
humana de compor elementos, em um espaço, a fim de que este adquira a conotação de paisagem.
Esta consideração é importante, pois difere o conceito de paisagem natural de uma paisagem
intencionalmente projetada, que passará a ter, a partir da ação projetual, qualidades formais e
compositivas que traduzam a sua manifestação, no espaço.

2 - OBJETIVOS
A partir destes pressupostos, o presente artigo tem como objeto de estudo uma importante praça
européia – a Place des Vosges. O entendimento da praça, como um patrimônio em silêncio, dá-se por
esta ser considerada um bem, de valor patrimonial, no tecido histórico de Paris, que dispõe de um
sistema de iluminação adequado, para a sua valorização paisagística. No entanto, acredita-se que
certos elementos, que compõem os seus espaços, poderiam ser enfatizados no nível dos detalhes, de
modo a qualificar a sua beleza cênica. Desta forma, serão descritas, neste artigo, as principais
características da Place des Vosges, e apresentadas considerações, acerca de pontos que poderiam
receber maior atenção, na proposição de sua iluminação. É importante observar que, considerando-
se a praça como um bem, de valor patrimonial, as informações, aqui apresentadas, restringem-se a
uma reflexão teórico-conceitual, que não pretende-se executiva, na sua abordagem. Ou seja, originam-
se, exclusivamente, da seleção de imagens que foi realizada, relativas à praça, não tendo-se efetuado
nenhum levantamento, em específico, no local.

3 - METODOLOGIA
O procedimento técnico utilizado foi o de pesquisa bibliográfica, identificando os principais conceitos
relacionados à temática, e analisando os princípios que nortearam o projeto da Place des Vosges.
Adotou-se como método de pesquisa a consulta à documentação, obtendo-se informações em livros,
trabalhos acadêmicos, artigos e páginas eletrônicas, nos quais encontraram-se dados pertinentes à
pesquisa. Também realizou-se uma seleção de imagens, que foram utilizadas como recurso, para
efetuar as análises apresentadas neste artigo. No intuito de fundamentar a pesquisa, inicialmente será

52
apresentada uma revisão bibliográfica, relativa às influências que a iluminação natural e artificial
exercem para a qualidade da paisagem urbana. A seguir, será analisado o objeto de estudo.
4 - DESENVOLVIMENTO

A praça, delimitada pelas fachadas das edificações que a circundam, é um espaço


pleno de significados e com ambiência própria. Responde espacialmente ao conceito
de volume oco entre edifícios, que servem para defini-la como um lugar particular.
No sentido estrito, praça é um local fechado – ou um interior aberto – ao qual se
aplica a noção de lugar, possuindo alto conteúdo simbólico (MASCARÓ, 2004, p.
153).

As praças podem ser consideradas uma fração da paisagem urbana, um enquadramento de paisagem.
Costuma-se interpretá-las como um espaço, em negativo, no denso tecido urbano. São, ainda, um
importante espaço público que, diferentemente das calçadas e passeios públicos (que destinam-se
exclusivamente à circulação), estão orientadas ao lazer, ao encontro, com forte potencial para o estar
e a permanência. Isto requer com que, nelas, sejam pensadas formas de garantir o conforto, na
utilização dos espaços. Dentre os aspectos a ser considerados, no desenho de praças, tem-se a
qualidade da iluminação, seja ela natural ou artificial. A seguir, objetiva-se apresentar conceitos que
influenciam na iluminação de praças, no intuito de fundamentar as análises relativas à Place de Vosges,
que serão descritas, ao final deste artigo.

4.1 - ILUMINAÇÃO NATURAL

A luz nas cidades desempenha um papel estrutural para o olhar do cidadão: orienta,
destaca, esconde, transforma, integra ou isola. Seu complemento, a sombra,
trabalha em sintonia, para melhor sublinhar ou ocultar, para melhor descobrir ou
dissimular (MIGUEZ, 2003, p. 01).

A luz acompanha a história da arquitetura. A luz é um elemento estruturador da imagem arquitetônica,


que revela seus volumes, formas, cores e texturas. A luz influencia, em grande medida, a percepção
dos espaços, a sua atmosfera. As formas dos objetos são reveladas pela luz. A luz não existe sem a
sombra, e nem a sombra sem a luz, ou seja, formam parte de opostos complementares (SOUZA, 2017).
De acordo com Planinsie & Viennot (2010), o conceito de sombra refere-se à área de escuridão, ou
diminuição da luminosidade, produzida pela interposição entre um corpo opaco, e uma fonte de luz;
refere-se, ainda, à forma ou à figura projetada, em uma superfície, por um corpo opaco iluminado 1.
Durante o dia, tem-se ‘sombras dinâmicas’, que alteram-se conforme o movimento do sol, desde o
nascente, até o poente. Durante a noite, tem-se ‘sombras estáticas’, que estarão subordinadas a fontes

1
Area of darkness or decreased luminosity produced by interposition of an opaque body between it and the light source.
The shape or figure projected on a surface by an opaque body illuminated (PLANINSIE & VIENNOT, 2010).

53
luminosas fixas. No início ou ao final do dia, a projeção de sombras tende a ser paralela ao solo e,
portanto, áreas mais extensas de sombreamento são geradas. Quanto mais próximas ao meio-dia,
maior a perpendicularidade dos raios solares, projetando sombras verticalmente, no solo. Estas
diferenças resultam em sombras mais claras e amenas no início e ao final do dia, e sombras mais
escuras e densas, ao meio-dia.
Nas praças, as sombras exercem um efeito visual significativo. Uma das estratégias para acentuar os
efeitos de luz e sombra, é utilizar-se da vegetação, na composição dos espaços. Se a vegetação for
caducifólia, tem-se a vantagem de, no verão, haver o controle da insolação e, no inverno, a
permeabilidade dos raios solares. As características das sombras geradas pelas copas estão
relacionadas com a densidade de suas folhagens e galhos, e serão mais suaves quando, no projeto,
forem utilizadas estas espécies, que perdem as folhas no inverno. Sobre isto, é interessante citar que
a vegetação caducifólia é desejável em locais com climas de verão quente e inverno de temperaturas
baixas, contribuindo para o conforto humano. De acordo com Sattler (2007), ao receberem os raios
solares, as folhas, assim como qualquer outro corpo, absorvem, refletem e transmitem a energia
incidente. Desta forma, a vegetação pode filtrar o excesso de luz e de calor gerados pela radiação solar
direta, e sua presença criar zonas com diferentes níveis de sombreamento, proporcionando uma
melhor adaptação visual, à luminosidade dos espaços.
Se não possuírem muitos elementos que ocupem tridimensionalmente os seus espaços (objetos
arquitetônicos, monumentos, fontes, esculturas, espécies de vegetação, etc), maior será a parcela de
céu visível nas praças, conceito que, segundo Mascaró (2008), está relacionado com a possibilidade de
acesso direto à insolação, no período diurno. A presença do verde também condicionará o acesso ao
sol, uma vez que as árvores apresentam-se como corpos sólidos, permeáveis à luz (MASCARÓ, 2006).
De acordo com Mascaró (2006), a transmitância luminosa, dependendo da espécie arbórea e do clima
local, varia de 20% a 96%. Este é um importante fator a ser considerado, uma vez que as sombras
geradas podem determinar espaços cuja utilização ficará comprometida, ao acarretar em baixas
condições de conforto.
Nas praças, a vegetação pode ser utilizada nos pontos de encontro, ao final de caminhos, para
arrematá-los, ou como referências espaciais, nas rotas de circulação. Também pode ser utilizada para
prover sombra aos espaços, tirando partido da expressividade dos efeitos visuais. Na análise das
sombras, devem ser considerados o formato, o contorno, a textura das espécies, bem como os cheios
e vazios que os conjuntos formam, e a permeabilidade, que as suas copas geram. Sob as copas da
vegetação, as sombras configuram espaços sombreados, adequados à permanência. Na proposição

54
dos ajardinamentos, as múltiplas graduações de sombras devem resultar em composições que sejam
atrativas ao olhar, ao ressaltar efeitos de luz e sombra. O agrupamento e o porte dos conjuntos
arbóreos denotará sombras de maior densidade, enquanto espécies pontuais terão pouco impacto, no
sombreamento do conjunto. A alternância das estações do ano, as variações climáticas, e o movimento
do sol ao longo do dia, transmitirão a percepção da dimensão do tempo, através da iluminação natural
e de suas nuances, atribuindo significados à luz do lugar.
Um plano de massas poderá definir quais serão as áreas ensolaradas ou sombreadas. O sombreamento
dependerá da proximidade entre as espécies, e será reforçado se estas estiverem ordenadas, por
exemplo, em eixos ou simetrias, configurando visuais em perspectiva, com efeitos sequenciais de luz
e sombra. Se forem propostas espécies arbóreas, a sua maior influência, na projeção de sombras, se
dará pelas copas da vegetação. Quanto mais densas as folhagens, mais dura será sombra, e nítido o
seu contorno, no solo. Quando as copas possuírem folhagens pouco densas, haverá uma maior
permeabilidade dos raios solares, e o contorno de sombras será menos nítido, na sua projeção no solo.
A criação de ritmos e movimentos pode ser acentuada ao estabelecer-se uma relação entre luz e
forma, claro e escuro, enfatizando e revelando a riqueza dos elementos arquitetônicos, criando
dramaticidade (TRAPANO & BASTOS, 2006).

4.2 - ILUMINAÇÃO ARTIFICIAL

A luz artificial é um fenômeno fascinante. Ao contrário da luz vinda do sol, cujas


características são determinadas pela natureza, a luz elétrica é específica, particular.
Podemos modificar a fonte luminosa, sua posição, intensidade, cor, obter efeitos
múltiplos, criando e recriando diferentes climas, em um mesmo espaço (MIGUEZ,
2003, p. 01).

De acordo com Dugar (2015), as respostas humanas à iluminação estão baseadas na apreciação de um
campo visual, e em uma determinada reação imediata: o que o autor define como ‘o efeito da luz’ e ‘a
afeição da luz’2. O autor associa a iluminação artificial a uma abordagem poética, que enriquece o
campo visual, aumentando os impactos do significado percebido, nos ambientes iluminados. Zumthor
(2005) refere-se ao termo ‘Paisagens Poéticas’, associando-o às formas com que a beleza poderia ser
transmitida: “a beleza exterior, a medida das coisas, as suas proporções, os seus materiais, bem como
a sua beleza interior” 3. De acordo com Dugar (2015), a poética no design de iluminação é a interação

2
People’s responses to light are based on the immediate visual appreciation and human reaction: light’s effect
and affect (DUGAR, 2015).
3
Outer beauty, the measure of things, their proportions, their materials as well as their inner beauty
(ZUMTHOR, 2005).

55
de todos os elementos sensoriais que podem envolver as pessoas, ao ponto de provocar-lhes emoções,
sentimentos e reações 4. Para Martau e Kubaski (2012) “a iluminação tem o papel fundamental de criar
atmosferas, isto é, a sensação que uma pessoa tem de estar imersa em um espaço onde as
características parecem se harmonizar, e gerar sensações, inerentes àquele espaço”.
Nas praças, o sucesso da iluminação está em eleger o que iluminar e o que não iluminar, criando
hierarquias, ritmos, e enfatizando texturas (SOUZA, 2017). Em locais que possuam conjuntos
históricos, é interessante que a iluminação resulte em uma composição com equilíbrio estético,
ressaltando o valor das preexistências, ao mesmo tempo em que destaque os elementos existentes,
sem gerar “aparências estéticas fantasiosas” (MASCARÓ, 2006). A iluminação de edificações deve
considerar a importância histórica e cultural, ressaltando as características de seu estilo arquitetônico.
Os elementos a destacar podem ser saliências, sacadas, frisos, aberturas, balaustradas, colunas,
grades, tetos, etc, e a iluminação deve ser proposta a partir dos ângulos de visão mais interessantes
(MASCARÓ, 2006). Com relação aos elementos urbanos, tem-se, nas praças, os monumentos, as fontes
e as esculturas, os quais costumam ser implantados em pontos de destaque – tais como ao longo de
eixos, ou em espaços centrais. Segundo Mascaró (2006), para iluminá-los, é interessante que a fonte
de luz seja ocultada, e que o feixe de luz esteja direcionado especificamente ao objeto, para que haja
um contraste, em relação ao entorno.
Do ponto de vista paisagístico, a iluminação de praças deve criar atmosferas ao nível do pedestre,
enfatizando os percursos e ajardinamentos. De acordo com Mascaró (2006), projetam-se densas
sombras sobre o passeio à noite, o que dificulta a circulação e a visibilidade, criando uma cena de risco
para o pedestre. Desta forma, a iluminação das rotas de circulação contribuirá para a segurança e para
a orientação nos percursos, valorizando a identidade do lugar e harmonizando-se com o desenho da
praça. Relativo à iluminação dos ajardinamentos, esta deve respeitar o ciclo natural de crescimento
das espécies. De acordo com Mascaró (2006), a maioria das fontes de luz artificial não tem intensidade
para afetar a fotossíntese das espécies. No entanto, o seu crescimento está condicionado à alternância
dos períodos diurno e noturno, e o fotoperíodo influenciará na forma da folha, na textura da superfície,
na formação dos pigmentos, na queda das folhas no outono, entre outros fatores (MASCARÓ, 2006).
Devido a estas questões, sugere-se prever que os feixes iluminem as espécies em direção e intensidade
adequada para não alterar as suas características biológicas, e nem os seus ciclos diurno e noturno. De
acordo com Mascaró (2008), destacar árvores ou plantas, iluminando aquelas frontais, e vistas na

4
The poetics of lighting design is interaction of all the sensory elements that might involve so as to provoke
people's emotions, feeling and reactions (DUGAR, 2015).

56
mesma direção, produzirá uma aparência plana; iluminando-as em forma ascendente, desde o solo,
produzirá efeitos dramáticos. Já as espécies caducifólias terão maior dramaticidade na iluminação de
suas copas – e todas estas nuances, nas formas e texturas, devem ser consideradas.
De acordo com Gonçalves (2006), a iluminação pode transformar a leitura dos campos visuais, criando
novas arquiteturas de luz, imagens, cenografias, ambiências e, conseqüentemente, de percepção do
objeto e do espaço. Em conjuntos históricos, um ponto relevante para o uso da iluminação artificial,
como estratégia para qualificar os espaços, é a possibilidade de esta atuar como um sistema que porá,
em destaque, o lugar, o seu estilo arquitetônico, e particularidades. De acordo com Moisinho Filho
(2008), uma nova forma de abordar a paisagem noturna, quando aplicada a espaços patrimoniais, ao
valorizar elementos de uma época, contribui para a preservação do patrimônio histórico.
Considerando-se estas afirmativas, será descrito, a seguir, o objeto de estudo proposto nesta pesquisa,
a Place des Vosges.

4.3 - PLACE DES VOSGES

As relações entre a luz, o caráter atribuído aos espaços arquitetônicos e as emoções


que estes provocam começam a estreitar-se, na medida em que se avança na
compreensão da importância da percepção dos estímulos visuais produzidos pela
obra arquitetônica, e a interpretação de seu significado (MARTAU & KUBASKI, 2012,
p. 03).

Após apresentar os conceitos relativos à iluminação natural e artificial, será descrito um objeto de
estudo que tem por objetivo elucidar as informações apresentadas. A Place des Vosges é uma praça
parisiense, fundada em 1612, na cidade de Paris, datada do período renascentista, que possui um
conjunto edificado de importância, no seu perímetro. De acordo com Segawa (1996), neste período, a
concentração complexa e caótica das praças medievais passou a ser substituída pela concentração
organizada e elegante dos jardins da Renascença, nos quais a unidade formal era uma das
características marcantes. As praças converteram-se em elementos compositivos de ordenamento do
traçado urbano, com uma rígida geometria. Dentre as mais importantes, tinham-se as places royales
francesas. Estas, caracterizaram os jardins franceses do século XVII que, inicialmente, eram reservados
ao rei e à nobreza e, posteriormente, foram cedidos à população, constituindo os espaços públicos da
cidade. A Place Vêndome e a Place de Vosges são exemplos de places royales, conceituadas como um
espaço aberto, circundado por edificações. Na sua configuração espacial, as places royales
conformavam um pátio, ou claustro, de proporções estudadas, que acentuava a continuidade das
fachadas palacianas, mediante a repetição de elementos arquitetônicos (SEGAWA, 1996).

57
A Place des Vosges possui forma quadrangular de 140 x 140m, e um conjunto edificado de grande
regularidade, que a circunda, em todos os seus quatro lados. A implantação reflete o estilo
renascentista, em seus eixos, simetrias e pontos focais. A arquitetura possui edificações de mesma
altura, e em alinhamento, como um conjunto edificado coeso, que contém arcadas no térreo,
acompanhando todo o seu perímetro, o que aproxima os seus usos, da escala do pedestre. De acordo
com Alex (2008), a Place des Vosges configura um recinto fechado, solene e teatral, com um pátio
interno palaciano. De suas quatro entradas, apenas uma é de acesso direto, as outras três dão-se pelas
arcadas, no térreo das edificações. Alex (2008) afirma que, no período renascentista, a Place de Vosges
tornou-se o local ideal para a realização de grandes espetáculos públicos, graças a suas características:
acesso controlado, solenes e dramáticas entradas centrais sob os palácios reais, circulação distribuída
pelas arcadas, e espectadores acomodados nas janelas.
O projeto da Place des Vosges é marcado pela geometria de espaços e ajardinamentos. No seu centro,
há um maciço arbóreo de forma circular, e uma estátua, em homenagem ao Rei Luís XIII. Em todo o
seu perímetro, há um maciço arbóreo linear, com espécies de grande porte. O afastamento entre estes
dois extremos (o centro e o perímetro da praça), possibilita com que hajam amplas superfícies
gramadas ensolaradas, nos quatro quadrantes – condição que as torna propícias ao lazer, o estar e a
permanência. Do centro da praça, em direção ao seu perímetro, partem caminhos perpendiculares e
diagonais. Em cada um dos quatro quadrantes, os caminhos em diagonal possuem fontes. O contraste,
entre os ‘cheios e vazios’, definido, respectivamente, pelos maciços arbóreos e pelas superfícies
gramadas, possibilita com que haja uma clara distribuição de usos. Graças à incidência da insolação
direta, identifica-se que, nos gramados, há boas condições de conforto diurno.
O fato de que a praça possua cercamento, e seja um espaço circundado por um maciço arbóreo linear,
faz com que esta possua um caráter introspectivo, com usos propício ao passeio e à contemplação.
Este maciço arbóreo exerce uma dupla função: cria uma barreira de proteção e, ao mesmo tempo,
gera áreas sombreadas sob as copas, nas quais há bancos, regularmente utilizados. Nos horários de
início ou ao final do dia – quando as sombras projetam-se com maior extensão no solo –, as superfícies
gramadas não chegam a ser prejudicadas pelo sombreamento dos dois maciços arbóreos existentes
(no centro e no perímetro da praça), pois estes encontram-se em um distanciamento suficientemente
espaçado. A altura do conjunto edificado envolvente também não ocasiona um sombreamento
significativo na praça, considerando-se a largura das vias no entorno.
Os maciços arbóreos, no centro e no perímetro da praça, apresentam sombras muito bem definidas,
principalmente em dias ensolarados. O fato de que hajam grandes contrastes visuais – áreas muito

58
sombreadas, nos maciços arbóreos, e áreas bastante ensolaradas, nas superfícies gramadas –, faz
sentido em locais tais como o clima europeu, que possui invernos rigorosos, e verões amenos. No
verão, a densidade das copas possibilita a interceptação quase total dos raios solares, gerando sombras
marcantes, com alto contraste visual. No inverno, uma vez que as espécies são caducifólias, a ausência
de folhas possibilita a permeabilidade dos raios solares, gerando uma mínima quantidade de sombra.
Por vezes, o sombreamento, sob as copas, pode reduzir os níveis de conforto, ao ocasionar fadiga
visual, e prejudicar a sensação de segurança.
Dos levantamentos realizados, na seleção de imagens relativas à Place des Vosges, identificou-se que
esta é uma praça cercada, que funciona apenas durante o dia. Isto reflete-se em uma maior
expressividade para a sua iluminação diurna, principalmente nos efeitos de luz e sombra gerados pela
presença de vegetação. À noite, a iluminação artificial torna-se um elemento ordenador apenas no
perímetro externo da praça, havendo postes de iluminação nas suas quatro faces. Todos os postes
caracterizam-se por uma luz estática, cuja direcionalidade está orientada de cima para baixo,
iluminando o nível do pedestre. Internamente, os espaços iluminados, pelos mesmos postes, são
apenas os contornos do espaço circular central, e do maciço arbóreo, no seu perímetro (Figura 01). É
interessante citar que estes postes são elementos que possuem qualidade estética, com design
semelhante ao estilo renascentista da praça.

Figura 1: elementos com e sem iluminação artificial na Place des Vosges.

FONTE: produzido pela autora (adaptado de


https://www.arturbain.fr/arturbain/robert_auzelle/biographie/documents/planches/archives_ifa/Encyclop%C3%A9die/Enc
yclopedie,%20plan%20place%20de.jpg) (Acesso em: jul/2020).

59
De acordo com Moisinho Filho (2008), a iluminação pública, inicialmente destinada à função de
iluminar, assumiu o objetivo de enaltecer pontos turísticos, e realçar cenários. Em áreas residenciais,
e com alto valor patrimonial, como a Places des Vosges, é importante considerar a valorização
paisagística dos espaços, a partir de uma disposição cenográfica que acentue as suas belezas e
particularidades, independente de haver um uso contínuo ou não. A partir das informações elencadas,
o destaque a outros elementos, que não estritamente àqueles existentes, poderia dar-se pela
iluminação: 1) da escultura central; 2) dos caminhos perpendiculares e diagonais; 3) das quatro fontes
existentes; 4) e sob as copas dos maciços arbóreos (no centro e no perímetro da praça). De acordo
com Miguez (2013), o caráter decorativo dos pontos de luz pode ser utilizado de várias formas; um
posicionamento ordenado de luminárias sobre uma fachada, um balizamento de jardim, um
alinhamento de postes, são gestos decorativos.

5 - CONCLUSÕES
As praças são espaços públicos usufruídos pelos pedestres, nos seus percursos cotidianos e em
momentos de lazer, elevando o bem-estar e a qualidade de vida. Nesta pesquisa, foram apresentados,
inicialmente, conceitos relativos à sua iluminação natural e artificial. Considerou-se que, durante o dia,
tem-se ‘sombras dinâmicas’, que variam de acordo com o movimento do sol e, à noite, tem-se
‘sombras estáticas’, subordinadas a fontes luminosas fixas. A fim de elucidar estes conceitos, foram
descritas análises de uma importante praça europeia, a Place des Vosges, elencando os pontos
positivos e negativos na qualidade de sua iluminação. A partir das análises realizadas, concluiu-se que,
no período diurno, a praça possui condições luminosas adequadas. Porém, à noite, ainda que hajam
eixos, simetrias e pontos focais, e que a iluminação existente garanta a sua valorização paisagística, a
iluminação das esculturas, caminhos, fontes e maciços arbóreos poderia ser considerada.
Por fim, entende-se que o sistema de iluminação possibilita, não apenas, criar atmosferas, mas
também garante a utilização efetiva de um lugar. No contexto de cidades que possuam bens de valor
patrimonial, estes devem ser considerados como referências espaciais, na proposição da iluminação
urbana. Sob esta abordagem, a iluminação atribuirá um caráter qualitativo aos projetos, a partir de
uma série de fatores que, neste artigo, objetivou-se descrever. Nas praças, um acurado projeto de
iluminação poderá garantir a efetiva utilização dos espaços, enaltecendo o entorno urbano, ao mesmo
tempo em que crie atmosferas que qualificarão os usos existentes, no seu interior. As descrições
apresentadas confirmam a importância das praças como referências nas cidades, e contribuem para
que, no seu projeto, estas contemplem uma iluminação, natural e artificial, que valorize as qualidades
arquitetônicas e paisagísticas, de seus espaços.

60
Referências
ALEX, S. Projeto da praça: convívio e exclusão no espaço público. São Paulo: Editora SENAC. São Paulo, 2008.

CAUQUELIN, A. A invenção da paisagem. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2007.

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Arquitetura. Edição 20. Jun/Jul/2006.

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sentidos. 10° Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design. São Luis do Maranhão, 2012.

MASCARÓ, J. L. Ambiência urbana. Porto Alegre: +4 Editora, 2004.

MASCARÓ, J. L. A iluminação dos espaços urbanos. Porto Alegre: +4 Editora, 2006.

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MIGUEZ, J.C. O potencial cenográfico da iluminação de monumentos e fachadas. Revista Lume Arquitetura.
Edição 61. Abr/Mai/2013.

MOISINHO FILHO, E.F. Patrimônio cutural e iluminação urbana: diretrizes de intervenção luminotécnica no
centro histórico de São Cristóvão, Sergipe. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Graduação em
Arquitetura e Urbanismo). Universidade Presbiteriana Mackenzie. São Paulo, 2010.

PLANINSIE, G.; VIENNOT, L. Shadows: stories of light. More Understanding with Simple Experiments (MUSE
Group). Physics Education Group (PED), European Physical Society (EPS), 2010.

SATTLER, M. A. Habitações de baixo custo mais sustentáveis: a Casa Alvorada e o Centro Experimental de
Tecnologias Habitacionais Sustentáveis. Porto Alegre, RS. Coleção Habitare/FINEP, 2007.

SEGAWA, H. Ao amor do público: jardins no Brasil. Studio Nobel: FAPESP, 1996, São Paulo. Texto original de
1956.

SOUZA, C.D. A percepção da qualidade do sistema de iluminação artificial da Praça Adair Figueiredo.
Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-Gradução em Arquitetura). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2017.

TRAPANO, P.; BASTOS, L.E.B. Luz, espaço e forma na arquitetura contemporânea. Revista Lume Arquitetura.
Edição 22, 2006.

ZUMTHOR, P. Atmospheres. Berlin: Brikhäuser, 2005.

61
AS RUÍNAS DA IGREJA MATRIZ DO SENHOR DO BOM JESUS DOS AFLITOS: entre a memória e o
esquecimento
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Edileuza Barbosa de Amorim


Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Centro Universitário Paraíso do Ceará;
edileuzaamorim@aluno.fapce.edu.br.

Taise Costa de Farias


Mestre em Arquitetura e Urbanismo; Centro Universitário Paraíso;
taise.farias@fapce.edu.br.

As ruínas da Igreja Matriz do Senhor Bom Jesus dos Aflitos, localizada na antiga sede da cidade de Exu-
PE, ao sopé da serra do Araripe, apesar de estar desde 2007, no Cadastro Nacional de Sítios
Arqueológicos do Centro Nacional de Arqueologia (CNA) do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN), encontra-se atualmente em estado de abandono e esquecimento. O artigo
tem por objetivo apresentar as ruínas da Igreja Matriz do Senhor de Bom Jesus dos Aflitos e discutir a
importância da sua preservação para a história e memória local, através de uma pesquisa
historiográfica e documental. Defende-se a ideia de que a edificação em estudo mesmo arruinada
possui um valor histórico, entendida como um patrimônio que precisa ser preservado.
Palavras-chave: Ruínas; Exu; Preservação; Histórico; Patrimônio.

The ruins of the Igreja Matriz do Senhor Bom Jesus dos Aflitos, located in the former headquarters of
the city of Exu-PE, at the foot of the Serra do Araripe, despite being since 2007, in the National Register
of Archaeological Sites of the National Archeology Center (CNA) of the National Historical and Artistic
Heritage Institute (IPHAN), is currently in a state of neglect and neglect. The article aims to present the
ruins of the Igreja Matriz do Senhor de Bom Jesus dos Aflitos and discuss the importance of its
preservation for local history and memory, through historiographical and documentary research. The
idea is defended that the building under study, even ruined, has a historical value, understood as a
heritage that needs to be preserved.
Keywords: Ruins; Exu; Preservation; Historic; Patrimony.

62
1 - Introdução
A atual noção de Patrimônio Cultural remete não só à herança, cultura, criação e produção de um
grupo social em um determinado espaço e tempo, mas também a ideia de um conjunto de bens
baseados em valores simbólicos que lhe são atribuídos e que são constituídos e reconhecidos por uma
sociedade como representativos de sua história e memória. Essa função do patrimônio enquanto
fomentador de uma identidade social é um dos principais aspectos de legitimação de sua preservação.
Partindo desse entendimento, as ruínas arquitetônicas enquanto testemunhas e vestígios da história
e da atividade humana devem ser considerados parte do patrimônio cultural de uma sociedade e por
isso precisam ser preservadas. Cesare Brandi (2004), em sua obra, aborda as ruínas como uma
representação de um passado que não existe mais, em que “ruína será, pois, tudo aquilo que é
testemunho da história humana, mas com um aspecto bastante diverso e quase irreconhecível em
relação àquele que se revestia antes” (BRANDI, 2004, pg. 65). Ou seja, a ruína caracteriza-se por
apresentar lacunas e partes faltantes, associadas a destruição e o abandono ou mais frequentemente
à ação erosiva provocada pelo tempo. É então, esse aspecto incompleto e fragmentado que a define
enquanto ruína.
As ruínas da Igreja Matriz do Senhor Bom Jesus dos Aflitos, localizada na antiga sede da cidade de Exu,
ao sopé da serra do Araripe em Pernambuco, apesar de estar desde 2007, no Cadastro Nacional de
Sítios Arqueológicos do Centro Nacional de Arqueologia (CNA) do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN), encontra-se atualmente em estado de abandono e esquecimento.
O município de Exu tem sua história vinculada a colonização portuguesa dos sertões das capitanias do
norte, através da expansão da pecuária. Tal processo foi marcado pela resistência indígena que
buscava proteger seu território. Diante dos conflitos o Estado Português determina a formação de
arraiais, pontos militares, em áreas estratégicas, que ao longo do século XVIII vão dar origem a muitos
núcleos urbanos no sertão nordestino.
Diante do exposto, o artigo tem por objetivo apresentar as ruínas da Igreja Matriz do Senhor de Bom
Jesus dos Aflitos e discutir a importância da sua preservação para a história e memória local, através
de uma pesquisa historiográfica e documental. Defende-se a ideia de que a edificação em estudo
mesmo arruinada possui um valor histórico, remetendo a um passado e por isso deve ser entendida
como um patrimônio que precisa ser preservado.

2 - As ruínas enquanto objeto de preservação

63
Ao longo da história os remanescentes arquitetônicos em estado de arruinamento tem sido objetos
de diversas interpretações e abordagens nos campos das artes, filosofia, história, arqueologia e pela
própria arquitetura. Sendo para esta última, uma valiosa fonte de registros, e muitas vezes as únicas
evidências físicas de momentos emblemáticos da história, como também de tipologias, estilos e
técnicas construtivas, sendo também testemunhos do processo de destruição dos quais derivam.
No século XIX o conceito de monumento histórico e as maneiras de preservá-lo foi sendo lapidado,
ganhando força no século XX a partir das Guerras Mundiais que se configuraram um desafio no
enfrentamento dos arruinamentos recentes das edificações ou áreas urbanas. Assim, o termo ruína
deixou de ser referência apenas a civilizações antigas e arquiteturas de um passado remoto, para
serem também testemunhas de acontecimentos contemporâneos.
A partir desse momento uma série de documentos internacionais reconhecem e discutem a
salvaguarda do patrimônio. A Carta de Atenas, de 1931, documento elaborado durante a Conferência
Internacional de Atenas sobre o Restauro dos Monumentos, é responsável por chamar a atenção das
nações para os monumentos, trazendo proposições relativas à sua preservação. O documento
relaciona o termo ruína com os monumentos e escavações arqueológicas, cujo pensamento da época
considerava apenas os vestígios da Antiguidade Clássica, e a apresenta como um monumento peculiar
e que precisa de ações de análises específicas, afirmando que:
Quando se trata de ruínas impõe-se uma conservação escrupulosa, recolocando no
seu lugar os elementos originais encontrados (anastilose) sempre que o caso o
permita; os materiais novos necessários a este efeito deverão ser sempre
identificáveis. Quando a conservação de ruínas, trazidas à luz do dia no decurso de
uma escavação for reconhecida como impossível, é aconselhado enterrá-las de novo,
depois de, bem entendido, terem sido feitos levantamentos rigorosos (CARTA DE
ATENAS, 1931, p. 06).

Na década de 1960, esse pensamento muda a partir da Teoria da Restauração (1963) de Cesare Brandi,
bem como as atitudes perante as ruínas. Brandi (2004) afirma que as ações indicadas para a
preservação dos bens arruinados devem ser a sua limpeza, consolidação e conservação, permitindo
que a ruína continue apresentando suas feições arruinadas, ou seja, não recomenda a reconstituição
desses bens ao seu “estado original”. Assim:
[...] devemo-nos limitar a aceitar na ruína o resíduo de um momento histórico ou
artístico que só pode permanecer aquilo que é, caso em que a restauração não
poderá consistir de outra coisa a não ser na sua conservação, com os procedimentos
técnicos que exige. A legitimidade da conservação da ruína está, pois, no juízo
histórico que dela se faz, como testemunho mutilado, porém ainda reconhecível, de
uma obra e de um evento humano (BRANDI, 2004, p.67)

64
Em 1964, o II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos,
organizado pelo ICOMOS (International Council of Monuments and Sites), resultou na Carta de Veneza
que buscou revisar as premissas da Carta de Atenas (1931) e propor novas recomendações ao
patrimônio cultural, sob influência do pensamento de Brandi, ampliando o conceito de patrimônio
cultural, bem como sua preservação.
No entanto, apesar de todas as novas contribuições, a Carta de Veneza discute as ruínas no campo dos
monumentos arqueológicos, como descobertas de um passado distante, trazendo termos comuns à
Carta de Atenas, como a consolidação, conservação e o uso da anastilose.
No que tange às recomendações intervencionistas, os pontos de convergência se relacionam à ideia
de evitar a restauração em favor da conservação da matéria degradada, entendendo o bem como um
documento histórico e evidenciando a necessidade de distinguir as suas características enquanto ruína
das intervenções contemporâneas.
No Brasil, a valorização das ruínas coloniais e provenientes de edificações públicas, sempre se fizeram
presentes nas políticas preservacionistas do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN), e dos órgãos estaduais e municipais. As ruínas tombadas nos anos iniciais do IPHAN compõem
as intenções políticas da época cuja finalidade era a busca por uma memória nacional e única, através
dos bens materiais, imponentes e monumentais, representativos da história colonial, sem maiores
discussões sobre a diversidade cultural existente no país.
Aqui já se apresentavam os problemas entorno da preservação desses bens como: tentativas e pedidos
de recomposição das ruínas, problemas com seu isolamento físico, a invasão da vegetação
circundante, questões imobiliárias, entre outros, e que se delinearam por um longo período (PONTES,
2010).
Quanto à legislação, a defesa das ruínas restringem-se, ao contexto mais amplo da proteção do
patrimônio cultural, presente no decreto-lei nº 25, de 1937, mesmo já havendo discussões
internacionais conforme vimos na Carta de Atenas. Não há, assim, uma legislação particular sobre o
assunto, ou mesmo recomendações técnicas para o tratamento das ruínas. Dessa forma, a preservação
das ruínas é perpassada por ações e interpretações diversificadas, que muitas vezes contribuem para
a ocorrência de ações lesivas e falsos artísticos e históricos. (PONTES, 2010).
Vimos que a ruína não são apenas algo que sucumbiu com o tempo, mas um meio de se obter
conhecimento de um passado. Além de um testemunho do passado, um documento, podemos afirmar
que as ruínas são representações do que foram e do que passaram e do que são, e que pelas suas

65
ausências e fragmentos, pode-se imaginar e interpretar um passado e uma cultura. E é justamente isto
que atribui um valor positivo às ruínas e que remete às ações de sua conservação.

3 - As ruínas da Igreja do Bom Senhor dos Aflitos: negligência e salvaguarda


As ruínas da Igreja do Bom Senhor dos Aflitos estão localizadas na Chapada do Araripe, em
Pernambuco, na antiga cidade de Exu, chamada hoje de Exu Velho. A primeira formação do município
de Exu, data do século XVII, a partir da implantação da igreja do Bom Senhor dos Aflitos pela Ordem
Religiosa dos Jesuítas, oriundos da Matriz da Penha, localizada em Olinda.
Em 2007, as ruínas do velho Exu, entraram no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CNSA e
SGPA), estando descritas como um sítio composto por ruínas de uma edificação religiosa, datada dos
séculos XVIII e XIX. No entanto, há uma dificuldade em seu acesso, estudo e consequentemente
proteção por estar em uma área de propriedade particular.
O Conselho Municipal de Política Cultural da cidade de Exu, elaborou um relatório expondo a
necessidade de tombamento de alguns bens patrimoniais, incluído as Ruínas pertencentes ao Exu
Velho, com o intuito de sua preservação, que foi encaminhado ao IPHAN. Tais bens são mencionados
como patrimônios culturais importantes para a população, turistas e pesquisadores, frisando sua
relevância histórica na formação dos primeiros povos que habitaram a região, justificando a urgência
da sua salvaguarda nas deteriorações causadas pelas ações das intempéries e vandalismo.

Figura 01: Vista das ruínas da Igreja Bom Senhor Jesus dos Aflitos

Fonte: Autor, 2019.

66
O relatório aborda também a necessidade do desenvolvimento de políticas públicas e a salvaguarda
do patrimônio, citando a importância da preservação das ruínas, no âmbito nacional, pela sua relação
com a formação do território e o resgate da história e da memória da tribo Ançu, além de poder
proporcionar o desenvolvimento do turismo local.
Ao reconhecer os riscos que as ruínas sofrem, a política pública municipal busca o efeito do
tombamento para proporcionar a preservação desses bens.
A lei Municipal Nº 1.224/2014 dispõe sobre a preservação do patrimônio cultural e natural do
município. Como foco principal o tombamento visa em primeiro lugar o desenvolvimento do turismo
e a sustentabilidade.
O parecer reconhece a necessidade de tombamento dos referentes patrimônios, onde encaminharam
documentos ao IPHAN, Ministérios Público, Poder Executivo do Município e aos proprietários, para
análise e tomada de medidas de preservação.
Em resposta a Superintendência do IPHAN-PE, cita as leis que dispõe sobre os monumentos
arqueológicos. Estando no referido sítio em agosto de 2018, relatando o difícil acesso com a vistoria
de outras áreas do sítio arqueológico, cita também o péssimo estado de preservação das paredes e
depredação e a não sinalização ou cercamento da área. Recomendando a gestão do município, a
implementação de atividade de Educação Patrimonial, a instalação de placas indicativas de sítio
arqueológico e limpeza e monitoramento do local onde está localizado o sítio arqueológico.
A instituição ofereceu apoio institucional por meio de suporte técnico, voltados à questão educativa,
instalação e sinalização e supressão da vegetação onde for necessário. Quanto às Camarinhas e sítio
arqueológico da tribo Ançu, relatam a falta de indicação nos documentos enviados e a falta de registro,
catalogação e pesquisa desta história.
Em razão disso, o impasse entre os devidos órgãos e as demais entidades a respeito do referido sítio
arqueológico, possibilita uma análise a respeito das ações ainda não realizadas no local. Sem a devida
proteção e preservação, expostas às intempéries e aos danos constantes, os vestígios ainda existentes
correm o risco de desaparecer definitivamente, caso medidas cabíveis não sejam tomadas.
As ruínas da Igreja do Bom Senhor dos Aflitos detêm como importância sua história e memória para a
comunidade local, sendo entendida como um patrimônio que precisa de proteção. O sítio
arqueológico também possui relevância para região, visto que o processo de formação dos núcleos
urbanos das proximidades partiu desta localização.

67
Figura 02: Interior da Igreja Bom Senhor Jesus dos Aflitos

Fonte: Autor, 2019.

4 - Conclusão
Toda cidade guarda suas memórias, e as ruínas da Igreja do Bom Senhor dos Aflitos contam a própria
história diante do tempo, sendo necessário ressaltar sua construção como sendo uma das mais antigas
da região e a falta de preservação está trazendo perdas incalculáveis.
Nota-se que é de grande importância o reconhecimento das ruínas como parte da história da cidade e
dos habitantes, que acabam por compor as narrativas da civilização ali existente e dos arredores, sendo
necessária medidas de proteção e salvaguarda destes ambientes, bem como, seja relacionado o
fomento do ensino da história nas escolas presentes no município devido a importância histórica
reconhecidamente destacada.

Referências
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BRANDI, Cesare. Teoria da Restauração. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004.

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110/2008. Proposta de Tombamento dos Ambientes de Origem e Memória de Luiz Gonzaga em Exu Sua
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PONTES, Ana Maria de Lira. Entre fragmentos: os ditos e não ditos das ruínas patrimoniais. Dissertação de
Mestrado – Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Paraiba. João
Pessoa, 2010. Disponível em: < https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/tede/319/1/arquivototal.pdf >
Acessado em: 20 de março de 2021

RODRIGUES, Antonio. Diário do Nordeste. Bens históricos da cidade de Exu nunca foram tombados. 2018.
Disponível em: <https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/regiao/benshistoricos-da-cidade-de-
exu-n unca-foram-tombados-1.1973060>. Acesso em: 02 jan. 2021.

II CONGRESSO INTERNACIONAL DE ARQUITETOS E TÉCNICOS DE MONUMENTOS HISTÓRICOS, 1964, Veneza.


Carta de Veneza. Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Veneza%201964.pdf>Acessado em: 20
de março de 2021

69
ARQUITETURA E PRESERVAÇÃO: estudo de caso sobre o estado atual da Estação
Ferroviária Nova de Campina Grande-PB
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Anderson Khallyl Farias Gomes


Arquiteto e urbanista; Universidade Federal de Campina Grande; andersonkhallyl@gmail.com.

Juliana Leite Evangelista Pimentel


Arquiteta e urbanista; Universidade Federal de Campina Grande; julianalepimentel@gmail.com.

Juscelino de Farias Maribondo


Dr. em Engenharia Mecânica; Universidade Federal de Campina Grande;
juscelinodefarias@oi.com.br.

O homem encontra-se em processo evolutivo, visto que seu anseio pelo novo o motiva a modificar o
meio urbano. A sua mobilidade teve importante papel nessa jornada, e dentre os meios de transporte
criados pelo ser humano, o trem destacou-se por trazer desenvolvimento cultural, social e econômico.
Em Campina Grande-PB, o trem modificou a paisagem arquitetônica, onde duas estações ferroviárias
atenderam as suas demandas. Assim, esta pesquisa investigou a atual situação da Estação Ferroviária
Nova, estudando fenômenos que afetam sua integridade física e sociocultural, concluindo que a
edificação vem sendo violada. Cabe aos gestores, urbanistas e sociedade, refletirem sobre a
importância de obras em risco de extinção, a fim de propor soluções que resgatem a história do cenário
urbano.
Palavras-chave: Estação ferroviária; Art Déco; Preservação.

Abstract: Man is in an evolutionary process, since his longing for the new motivates him to change the
urban environment. Its mobility played an important role in this journey, and among the means of
transport created by the human being, the train stood out for bringing cultural, social and economic
development. In Campina Grande-PB, the train changed the architectural landscape, where two railway
stations met their demands. Thus, this research investigated the current situation of the Nova Railway
Station, studying phenomena that affect its physical and socio-cultural integrity, concluding that the
building has been violated. It is up to managers, city planners and society to reflect on the importance
of works at risk of extinction, in order to propose solutions that rescue the history of the urban scenario.
Keywords: Train station; Art Deco; Preservation

70
1 - Introdução

Na linha de desenvolvimento percorrida pelo homem durante sua trajetória na história, pode-se notar
a necessidade e o desejo de locomoção. Esta busca proporcionou um gradual acúmulo de
conhecimento presente em aspectos culturais, sociais e construtivos dos territórios, até então
desconhecidos. Com relação à formulação da paisagem urbana, sabe-se da contínua evolução destas
técnicas construtivas, motivadas pelo anseio do homem por progresso.
Durante o processo de modernização do cenário urbano, várias obras históricas foram perdidas em
meio aos escombros, provenientes de demolições irregulares. (URSINO, 2014). Neste sentido, é
possível observar uma profunda perda material e imaterial, resultante da falta de respeito para com a
cultura transmitida pela paisagem histórica urbana. Sendo assim, surge a necessidade de preservação
do patrimônio, visando defender o legado evolutivo de toda sociedade. Fortalecendo esta ideia de
perpetuação de conhecimento, VASCONCELOS (2014), afirma que é necessário ter conhecimento do
passado para registrar o salto evolutivo do indivíduo, e isso pode ser visto por meio do “olhar” do
patrimônio histórico.
Campina Grande-PB, cidade estudada neste artigo, está locada no interior da Paraíba, e como e abriga
um extenso acervo patrimonial histórico em suas construções, dentre os quais, destaca-se o conjunto
no estilo Art Déco, locado em seu centro comercial. Apesar da maior parte das edificações neste estilo
estarem locadas no bairro do Centro, outras localidades também receberam obras deste estilo, que é
o exemplo da Estação Ferroviária Nova, objeto de estudo desta pesquisa. O seu entorno envolve
avenidas movimentadas, residências, comércios, serviços, entre várias outras atividades, o que
caracteriza ser um local de intenso fluxo. Contudo, em meio a um cotidiano agitado, há um espaço
“morto”, esquecido e menosprezado, vítima do descaso governamental e social, que é a Estação
Ferroviária Nova local anteriormente enaltecido e bem frequentado pela população e que hoje
encontra-se em situação de declínio. (AFONSO E ARAUJO, 2015).
Quem passa pelo local e observa atentamente o corpo da obra, consegue visualizar inúmeras marcas
produzidas pelo tempo e pelos vândalos. É notável a sensação de insegurança que circunda o objeto,
que mesmo com constante fluxo de veículos e pedestres em seu entorno, verifica-se ainda, que as
pessoas evitam aproximar-se dele. Isto se dá ao fato, de que o local tem sido alvo constante de
desordeiros. Diante do exposto, surge o seguinte questionamento: Como se deu o declínio social e
urbano da Estação Ferroviária Nova de Campina Grande-PB, mesmo sendo uma obra de inteira
relevância para o contexto de desenvolvimento histórico urbano da cidade?

71
A percepção do descaso para com qualquer obra arquitetônica gera intensa insatisfação nos
profissionais da área, pois, entende-se a totalidade de energias aplicadas na concepção destes espaços.
Quando esses equipamentos urbanos entram em desuso, devido ao surgimento de novas práticas, se
faz necessário que haja intervenção por meio das políticas públicas, ligadas ao envolvimento da
população e dos profissionais responsáveis pelo planejamento urbano, visto que o espaço público
pertence a todos. Sendo assim, é dever da sociedade dar a devida importância aos ambientes coletivos.
Com relação aos ambientes históricos construídos, o abandono aparece de forma mais severa, visto
que, além da apropriação por parte marginalizada da sociedade, as perdas materiais e imateriais são
muitas vezes irreparáveis.
Entendendo a gravidade da situação, já que se trata de uma obra de um período de modernidade e
ascensão, com um estilo arquitetônico ímpar, dotado de detalhes que fazem da obra um exemplar
autêntico do período, surge à necessidade de colocar a propriedade em foco, a fim de apresentá-la
como acervo insubstituível para a história Campinense.
Na atualidade, há uma porção de exemplos de espaços urbanos históricos, que foram restaurados de
acordo com sua originalidade e receberam novos usos. Apesar de muitas vezes estes objetos terem
serviços diferentes dos originais, eles promovem o reavivamento socioeconômico e cultural do
patrimônio herdado. Nestes casos, os profissionais envolvidos, em especial os arquitetos, tiveram um
“olhar” mais amplo, buscando soluções alternativas e criativas, atendendo as necessidades de maneira
eficiente.
É neste contexto, que o presente artigo surge com a premissa de promover conhecimento e sobre o
patrimônio histórico construído. Assim, a pesquisa tem como objetivo geral investigar a atual situação
da Estação Ferroviária Nova de Campina Grande-PB, estudando os fenômenos que afetam sua
integridade física e sociocultural.
Para promover uma compreensão mais abrangente sobre a história retratada pela estação ferroviária,
símbolo do desenvolvimento social, econômico e urbano local, faz-se necessário um rebuscamento
teórico sobre a chegada do trem na cidade e o reflexo da “modernidade” que este fato representou
na época de sua ascendência.
De acordo DE JESUS AZEVEDO et al (2016), a chegada do trem representava um período de
desenvolvimento cultural, urbano e econômico. Campina Grande-PB, destacava-se como forte
exportadora de algodão e a implantação da linha férrea serviu como catalizador para a distribuição do
produto pelo país, tornando o município um polo expressivo no segmento algodoeiro. (AFONSO E
ARAUJO, 2015). AFONSO E ARAUJO (2015), afirmam ainda que a implantação da primeira Estação

72
Ferroviária (figura 01) ocorreu em 1907, e neste período a chegada do trem foi reproduzida
intensamente como marco histórico.
Em função da ascensão econômica e cultural, a sociedade campinense recebeu, depois de cinquenta
anos, a implantação da Estação Ferroviária Nova, na Av. Prof. Almeida Barreto, no bairro do Quarenta.
(figura 02). Mesmo com sua implantação feita em um período indicativo de declínio do sistema
ferroviário no Brasil, a Estação Nova trouxe também contribuição social, cultural e econômica para o
povo da região.

Figura 01: fotografia da inauguração da Estação Velha, em 1907.

Fonte: imagem cedida por Jônatas Rodrigues.

Além das contribuições citadas, as Estações Ferroviárias também ficaram conhecidas na época como
lugares de interação social, onde vários indivíduos tiveram suas vidas interligadas pela história da linha
férrea. Com a concretização do declínio do transporte ferroviário no país, as estações passaram a
deixar de exercer suas funções originais, de abrigo para passageiros, transporte de mercadorias e palco
de encontros e reencontros. (SOUZA E JUNIOR, 2018).

73
Figura 02: fotografia da Estação Nova, nos anos 1990.

Fonte: imagem cedida por Jônatas Rodrigues.

Abordando a questão da proteção as edificações da linha férrea em Campina Grande-PB, é possível


verificar que a Estação Ferroviária Velha, que teve sua inauguração no ano de 1907, passou por um
processo de restauração e hoje funciona como Museu de História e Tecnologia do Algodão. Em 2001,
o acervo deste museu recebeu uma ampliação, sendo vigente e recorrente a política de proteção do
corpo físico desta obra. (DE JESUS AZEVEDO et al, 2016).
Em contrapartida, a Estação Ferroviária Nova, inaugurada posteriormente, encontra-se em estado de
total abandono, com alto índice de depredação, por atos de vandalismo e também pela atuação de
intemperes em sua estrutura. De fato, é no mínimo curioso o fato de que a edificação, mesmo tombada
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba – IPHAEP encontra-se em estado
deplorável. Souza e Júnior (2018) trazem a seguinte reflexão:
Estamos evidenciando o fato de que duas Estações Ferroviárias que contribuíram,
cada uma a seu tempo, para o desenvolvimento da cidade, mas onde, infelizmente,
apenas uma usufrui de reconhecimento. (SOUZA E JÚNIOR, 2018, p. 412)

O esquecimento não está presente apenas com relação a estrutura física da Estação Ferroviária Nova,
a falta de elucidação a respeito da representatividade e relevância daquele espaço também apresenta-
se com característica de abandono cultural. (SOUZA E JÚNIOR, 2018).

2 - Estilo Arquitetônico da Obra


Caracterizado como uma tendência francesa, o Art Déco teve sua expressão empregada no cenário
internacional do Design, sendo destaque no recorte temporal entre 1925 a 1939. O estilo foi aplicado
em diversas ramificações da arte, e foi na arquitetura que se consagrou. Na tectônica das suas obras,

74
o Art Déco é reconhecido por libertar-se do excesso decorativo apresentado no período do Art
Nouveau, dando espaço a superfícies planas que suprimem adornos fantasiosos ou simbólicos.
(AFONSO E ARAUJO, 2015).
O Art Déco surge diante de um clamor por modernidade e no Brasil não aconteceu diferente, de acordo
com Barthel (2015), o estilo foi classificado em três variantes: a Afrancesada, a Escalonada e a
Streamline. A terceira linha de classificação trazida por Barthel (2015), a Streamline, remete a variante
principal encontrada na edificação da Estação Ferroviária Nova. De acordo com o autor, o Streamline
tem um design que lembra a um período industrial, apresentando características de máquinas,
automóveis, aparelhos de rádio ou até mesmo de transatlânticos, com referências náuticas
interpretadas como aerodinâmica, devido a sua concepção formal. De maneira geral, foi inspirado no
Expressionismo, e também marcado pela incorporação da iluminação à arquitetura. (BARTHEL, 2015).
Marcado por fortes princípios de hierarquização expressos por um padrão formal escalonado impresso
nas platibandas e na marcação do acesso principal da obra, tais edificações apresentam também
caráter compositivo volumétrico, resultante da integração de formas geométricas verticais ou
horizontais, o material que começa a ser aplicado nas fundações dessas edificações é o concreto
armado, além do predominante uso de tons rosados.

3 - Metodologia
Este trabalho caracteriza-se como pesquisa exploratória, visto que a mesma possui a finalidade de
aumentar a familiaridade do pesquisador com um determinado ambiente, ato ou fenômeno, de
maneira a clarificar seus conceitos (LAKATOS, 2003). No caso, a abordagem visa contribuir na
visibilidade do patrimônio histórico por meio do olhar de preservação da arquitetura.
Segundo Lakatos (2003), a coleta de medidas da área a ser estudada, seguida de sua análise, caracteriza
a pesquisa como qualitativa. O fato de o trabalho explorar a regularidade de um fenômeno, buscando
descrever um grupo específico, mostra a pesquisa como descritiva, intencional, por ser um estudo de
caso e indutiva já que utiliza ferramentas como a coleta de dados suficientemente constatados em
determinada população, em busca de conclusões a partir do conteúdo colhido e explorado.
A realização da pesquisa será baseada em visitas preliminares para o conhecimento da infraestrutura
e do funcionamento local, onde serão feitas as coletas de dados por meio de levantamento fotográfico.
Os dados coletados foram compilados e convertidos em material gráfico bidimensional, por meio da
ferramenta AUTOCAD, para a apresentação destes dados embasando os resultados da pesquisa.

75
4 - Resultados
Diante dos estudos e pesquisas abordados até aqui, o presente tópico traz artifícios aplicados a
confecções gráficas da Estação Ferroviária Nova, bem como imagens reveladoras, que detalham a
obra, para que a mesma seja compreendida como patrimônio relevante para história de Campina
Grande.
O esquema a seguir (figura 03) trata-se da localização geográfica do objeto, representada de forma
bidimensional pelos respectivos mapas: Brasil, Paraíba, Campina Grande e Bairro do Quarenta.
O conjunto de construções que formam a Estação Ferroviária Nova é composto por cinco blocos de
edificações: edifício de apoio, edifício galpão, edifício estação, edifício escritório técnico e outro
edifício galpão. Este conjunto faz da obra um exemplar autêntico do Art Déco híbrido, ou seja,
apresenta características de mais de uma classificação do estilo no Brasil. A edificação que será
analisada neste trabalho, é o edifício estação. A seguir, serão explanadas imagens gráficas
bidimensionais para análise.

Figura 03: localização do bairro em questão por meio de esquema gráfico.

Fonte: google maps editado pelos autores, 2019.

A figura 04 mostra uma visão bidimensional da face da edificação que está voltada a avenida Prof.
Almeida Barreto. De início, pode-se observar a presença do relógio em uma espécie de torre,
elementos frequentes e típicos de edificações no estilo Art Déco.
Já na figura 05, foram inseridas linhas horizontais, a fim de demonstrar as diferenças de altura entre
os componentes construídos, trazendo a tona mais uma característica própria do Art Déco, que se trata
do escalonamento expresso por meio das platibandas, marquises e degraus. Além disto, quando o
edifício estação aparece junto aos demais, nota-se a hierarquização entre eles, mais um atributo do
estilo em questão.

76
Figura 04: visualização bidimensional da Estação Ferroviária Nova de Campina Grande-PB.

Fonte: acervo pessoal, 2019.

Na figura 06, pode-se identificar o marco de entrada do edifício estação, bem como imensos gradis
geométricos imponentes, destacando a presença do metal e das formas atribuídas ao estilo do edifício.
Além da geometrização presente nos gradis, este aspecto se repete em todo o conjunto do edifício
estação. A figura 07 mostra diferentes formas geométricas abordadas pela identificação em cores.
Quando se fala em formas geométricas, tem-se composição de retangulares, linhas contínuas, curvas,
círculos, proporções diferentes e em alguns momentos, simetria na composição.

Figura 05: visualização com marcação escalonado impresso nas platibandas.

Fonte: acervo pessoal, 2019.

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Figura 06: visualização com marcação do acesso principal da obra.

Fonte: acervo pessoal, 2019.

Como foi explicado anteriormente, o estilo Art Déco foi classificado em três linhas, e é neste contexto
que a Estação Ferroviária demonstra fortes características da classificação denominada como
Streamline. (figura 08). Como se pode comprovar na fotografia a seguir, o formato curvilíneo e os
volumes arredondados remetem à aerodinâmica, a um conceito de velocidade, e até mesmo a
morfologia de alguns transatlânticos. A torre, onde foi implantado um relógio, e acima uma antena
que faz alusão a um mastro, remete também a uma característica desta classificação do Art Déco.

Figura 07: Análise da integração de formas geométricas verticais e horizontais compositivas da obra.

Fonte: acervo pessoal, 2019.

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Figura 08: Análise da integração de formas geométricas verticais e horizontais compositivas da obra.

Fonte: fotografia cedida por Jônatas Rodrigues.

Com relação ao atual estado da edificação, os aspectos formais construtivos do Art Déco demonstram
considerável desgaste. O estado do corpo do edifício é proveniente de diversos fatores, a exemplo dos
desgastes temporais, da falta de manutenção, assim como o suscetível processo de vandalismo, que
intensamente vem descaracterizando-a.
Porém, os problemas não são apenas estes; como citado anteriormente, a sociedade, os urbanistas e
os poderes públicos, não demonstram iniciativas que favoreçam o processo de preservação desta área,
e a cada dia uma parcela da memória coletiva representada pela Estação Ferroviária Nova é “apagada”
e o risco do seu esquecimento total é exponencial.
Os moradores de Campina Grande-PB, constantemente depara-se com esta imagem (figura 09). É
possível constatar o total descaso com a obra, o que anteriormente foi um reflexo de prosperidade e
desenvolvimento, hoje é um símbolo do medo e do abandono. Os atos vândalos demonstram maior
intensificação e o número de pichações cresceu exponencialmente. Além desta prática, é possível
constatar a ausência de diversas portas e janelas que eram componentes do corpo da obra, além do
relógio que é um marco característico da obra em Art Déco.

79
Figura 09: a Estação Ferroviária Nova no ano de 2019.

Fonte: fotografia cedida por Jônatas Rodrigues.

5 - Conclusão
Uma das constatações deste artigo é que a cidade de Campina Grande-PB, apesar de ser reconhecida
por seu acervo construtivo em Art Déco, que em partes é protegido dentro de uma poligonal de
preservação ao patrimônio histórico, apresenta ainda um montante de edificações históricas
desprotegidas. Algumas destas obras se encontram em um estado relativamente interessante de
conservação, porém, não é um quadro que se repete constantemente.
O estudo de caso abordado neste artigo demonstra a preocupação com patrimônio histórico da cidade
e é um alerta para a importância da proteção dos resquícios da Estação Ferroviária Nova, que encontra-
se em intenso estado de degradação. Esta pesquisa vem ainda, no intuito de motivar a produção de
pesquisas científicas dentro da temática. É necessário que seja apresentado o valor que uma obra
histórica tem para a sociedade. Logo, o incentivo de futuras propostas de intervenção e restauro são
essenciais para que não se perca sua essência histórica e cultural.
Aos poucos, a edificação da Estação Ferroviária Nova vem sendo “apagada”. Sua intensidade de
deterioração segue em curva ascendente, e além dos fatores temporais e dos ataques dos vândalos,
as pichações, o furto dos artigos como gradis, relógios, portas e janelas geram uma descaracterização
severa da obra. Todos estes fatores comprometem a estrutura da Estação Nova, e aos poucos as peças
restantes estão sumindo. Cabe aos poderes públicos, gestores, urbanistas e a sociedade, refletirem
sobre a importância de obras que estão nesta situação, para que assim sejam propostas soluções que
preservem a história do cenário urbano.

80
Referências

AFONSO, Alcilia; ARAÚJO, Cinthya. Origem da arquitetura moderna em Campina Grande: obras precursoras e
suas contribuições para a arquitetura regional 1900-1950. SEMINÁRIO IBERO-AMERICANO ARQUITETURA E
DOCUMENTAÇÃO, v. 4, 2015.

BRASIL. Lei de Crimes Ambientais n° 9605/98. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de
condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília.
Publicado em 12 de fevereiro de 1998.

DE JESUS AZEVEDO, Rennam et al. Atos de Vandalismo às Pinturas Rupestres do Sítio Arqueológico em São
Desidério-BA: Uma Análise da Conduta Desviada Frente a um Patrimônio Cultural da Humanidade. CAMPO
JURÍDICO, v. 4, n. 1, p. 61-75, 2016.

DE SOUZA, Mariana Adelino; DE FIGUEIREDO JÚNIOR, Paulo Matias. Memória do urbano: a estação ferroviária
nova de Campina Grande [PB]: a partir dos relatos de ex-ferroviários. Labor E Engenho, v. 12, n. 3, p. 411-424,
2018.

LAKATOS, E. M. FUNDAMENTOS DE METODOLOGIA CIENTÍFICA5ED. São Paulo: Atlas, 2003.


MACIEL, Erick M. et al. ESTAÇÃO FÉRREA DE SÃO BORJA: A IMPORTÂNCIA DA PRESERVAÇÃO PARA A
MEMÓRIA DA CIDADE. 2009.

VASCONCELOS, Camila Brito de. MEMÓRIA GRÁFICA BRASILEIRA: a percepção dos sistemas simbólicos e
linguagens visuais dos ladrilhos hidráulicos em patrimônios religiosos tombados pelo IPHAN na cidade do
Recife (2014).

81
CASARÃO DO VISCONDE DE SÃO LOURENÇO: o processo de silenciamento e os impasses de
uma futura intervenção
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Patrícia de Rezende Bragança Ferreira


Arquiteta e Urbanista; Mestranda no MPPP/FAU/UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro;
patrícia.ferreira@fau.ufrj.br.

Rosina Trevisan M. Ribeiro


D.Sc.; Prof. Titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Mestrado Profissional em Projeto e Patrimônio; rosinatrevisan@gmail.com.

O Casarão do Visconde de São Lourenço é um bem patrimonial construído em 1820 e tombado pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 1938 por ser um importante
exemplar da arquitetura residencial urbana no Rio de Janeiro. Esta edificação sofreu ao longo dos anos
com o descaso e o abandono por parte de seus proprietários e locatários, estando hoje arruinado e
não integrado à ambiência cultural da qual um dia fez parte. Este artigo tem como objetivo apresentar
o processo de arruinamento do bem e os impasses de uma futura intervenção frente ao conflito
existente entre os discursos da legislação, da visão dos órgãos patrimoniais e das teorias
contemporâneas para a realização de um projeto de restauro.
Palavras-chave: Casarão do Visconde de São Lourenço, patrimônio cultural, ruína, intervenção

The Casarão do Visconde de São Lourenço is a heritage property built in 1820 and listed by the Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) in 1938 for being an important example of urban
residential architecture in Rio de Janeiro. This building has suffered over the years with neglect and
abandonment by its owners and tenants, being today in a state of ruin and not integrated with the
cultural ambience that it once made part. This article aims to present the process of ruining the property
and the impasses of a future intervention in the face of the conflict between the discourses of the
legislation, of the view of Organs patrimonial bodies and of the contemporary theories for the
realization of a restoration project.
Keywords: Casarão do Visconde de São Lourenço; cultural heritage; ruin; intervention.

82
1 – Introdução
O Casarão do Visconde de São Lourenço está localizado na Rua dos Inválidos, esquina com a Rua
Riachuelo, no bairro da Lapa, área central da cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Essa edificação é um bem
patrimonial construído em 1820 e tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN1) em 1938 por ser um importante exemplar da arquitetura residencial urbana no Rio de Janeiro.
Seu tombamento pelo IPHAN no primeiro ano de criação da instituição demonstra a importância da
edificação como patrimônio cultural do país. O imóvel foi um dos primeiros casarões de três
pavimentos erguidos na cidade no início do século XIX, tendo sido construído para ser a residência do
Visconde de São Lourenço, posteriormente foi uma escola e depois residência multifamiliar.
Esta edificação sofreu ao longo dos anos com o descaso e o abandono por parte de seus proprietários
e locatários. Após diversos incêndios e da queda de uma parede (desabamento parcial) em 1992, o
imóvel foi desocupado e foi realizada a estabilização emergencial. Esta situação foi piorando a cada
dia, estando hoje em estado de ruína, ocupado como estacionamento, não integrado à ambiência
cultural da cidade.
O presente artigo tem como objetivo apresentar o processo de arruinamento do Casarão do Visconde
de São Lourenço e os impasses de uma futura intervenção frente ao conflito existente entre os
discursos presentes na legislação e na visão do órgão patrimonial brasileiro, com as teorias
contemporâneas correntes para a realização de um projeto de restauro.
O roteiro metodológico possui três etapas: o levantamento de dados por meio de pesquisa histórica
do imóvel, baseado principalmente em arquivos do IPHAN do Rio de Janeiro; o estudo da legislação; a
pesquisa teórica conceitual; e, por último, as considerações do silenciamento forçado da edificação. A
partir desta pesquisa são analisados os danos do silêncio, do abandono, com vistas à determinação de
diferentes formas de intervenção arquitetônica neste tipo de patrimônio.
A intervenção em ruínas depende de uma análise detalhada de fatores como a história, o grau de
proteção, a legislação, o estado de conservação e a integração do bem com a paisagem do entorno,
além das intenções do projeto para que o resultado não comprometa o bem patrimonial protegido.

2 – Casarão do Visconde de São Lourenço


O Casarão do Visconde de São Lourenço, localizado na Rua dos Inválidos, 193-203, esquina com a Rua
do Riachuelo no bairro da Lapa na cidade do Rio de Janeiro, é um antigo casarão do início do séc. XIX,

1
O órgão passou por diversas fases em que teve nomenclatura diferenciada e será utilizado nesse artigo
sempre a nomenclatura atual IPHAN.

83
construído para ser residência do senhor Francisco Bento Maria Targini, o primeiro Visconde de São
Lourenço (Figura 01).

Figura 02: Vista do Casarão do Visconde de São Lourenço a partir da esquina da Rua dos
Inválidos com a Rua do Riachuelo. 1941.

Fonte: Autor da fotografia: Eric Hess. Arquivo Noronha Santos, IPHAN

As ruas do Riachuelo e dos Inválidos eram endereços da nobreza, barões e viscondes, na época. Ambas
as ruas possuem grande relevância na história do desenvolvimento urbano do centro do Rio de Janeiro.
O casarão foi uma das primeiras casas de três pavimentos erguidas na cidade no início do século XIX
para ser a residência do Visconde de São Lourenço, que era conselheiro de D. João VI, rei de Portugal,
Brasil e Algarves. A residência era conhecida também como Palácio de São Lourenço e Solar do
Visconde de São Lourenço. O lote foi adquirido pelo Visconde em 1809 e a construção foi realizada
entre 1818 e 1819, como descreve o Guia dos bens tombados do RJ:
No local já tinham sido construídas, no século XVIII, diversas casas térreas com
propriedade do antigo oficial das ordenanças Antônio da Cunha. Em 1809 o Visconde
comprou os terrenos e entre 1818 e 1819 edificou sua residência. Em 1820, as
inscrições constantes dos livros de lançamentos da freguesia de São Jose já
registravam o nome do Visconde como proprietário de uma casa com loja, sobrado
e sótão. (TELLES, 2014)

De acordo com José Pessôa (2014) não há informações sobre o autor do projeto. No entanto, o uso de
arcos abatidos nas portas e janelas e o desenho de gosto pombalino das molduras dos vãos da entrada
e do andar nobre indica se tratar de arquiteto ou mestre de obras português. A residência reflete a

84
transição estilística das casas senhoriais no Rio de Janeiro e aproxima o neoclássico e a linguagem
arquitetônica setecentista, influenciada pela reconstrução pombalina.
Conforme Noronha Santos (1945), o Visconde residiu no local por apenas um ano, pois em 1821 deixou
a cidade do Rio de Janeiro, acompanhando o Rei D. João VI no seu regresso a Lisboa. Entre 1824 e 1825
a casa foi arrendada para o Conde de Palma, Dom Francisco de Assis Mascarenhas.
Em 1830, a propriedade foi transferida para o nome da Viscondessa de São Lourenço, em virtude do
falecimento de seu marido, ocorrido em Portugal durante o ano de 1827, e a partir de 1832 aparece
em nome dos herdeiros da Viscondessa de S. Lourenço: de 1835 a 1849 encontram-se inscritos os
nomes de José Maria Targine e Maria Francisca Madalena. O imóvel esteve cadastrado na Rua
Matacavalos n° 92 até 1838, quando passou para o n° 86; de 1850 a 1853 estavam inscritos, como
proprietários, os nomes de Francisco Bento Maria Targine, José Maria Targine, Josefina de Oliveira
Targine, Maria Francisco Targine e Felipe Targine.
Já em 1853, o imóvel deixou de estar em nome de seus herdeiros e foi transferido para o monsenhor
José Antônio Marinho para sediar o Colégio Marinho. Após a morte do Senhor Marinho nesse mesmo
ano, o Colégio, então, teve como diretor o sr. José Rufino Soares de Almeida. Em 1857, foi transferido
para os srs. José Rufino Soares de Almeida, Joaquim José de Oliveira Mafra e Matias da Silva Chaves.
Em 1863, o prédio passa a ser cadastrado no n° 84-A. Ainda, segundo Noronha Santos (1945), a
edificação abrigou posteriormente o famoso Colégio Tautphoens e teve como diretor o Barão
Tautphoens, José Hermann Tautphoens. Em 1871, o edifico está no nome apenas do sr. José Rufino
Soares de Almeida.
Em 1872, o edifício é comprado por Antônio Gomes de Mendonça, dono de diversas edificações na
Rua dos Inválidos e o cadastro do imóvel deixa de ser na Rua Matacavalos (atual Rua Riachuelo) e passa
a ser o n°117 na Rua dos Inválidos. Em 1884, o imóvel é transferido para Domingos José da Silva Boa e
em 1909 passa para Maria da Silva Boa, após a morte do marido Domingos José da Silva Boa, Gastão
da Silva Boa, e Jorge Zanker, tendo sua numeração modificada para o n° 153. Finalmente, em 1910, o
imóvel recebe a numeração que mantem até os dias atuais, de 193 a 203 na Rua dos Inválidos.
A edificação passou a ter uso residencial multifamiliar antes de 1930, de acordo com informações do
levantamento sócio econômico realizado em 1982, que informa que existiam moradores que já
residiam no imóvel há 52 anos.
Conforme já foi dito, em 1938 a edificação foi tombada pelo IPHAN por ser um importante exemplar
da arquitetura residencial urbana no Rio de Janeiro da transição dos estilos Rococó para Neoclássico,

85
tendo a inscrição 34 no Livro de Belas Artes na data 20 de abril e a inscrição 16 no Livro Histórico na
mesma data.
Quando foi tombada, a edificação ainda não apresentava nenhum anexo. Já em 1941 a partir de
fotografias de Eric Hess e outras fotografias da mesma época é possível perceber que o anexo já está
construído.
Em 1942, os proprietários solicitaram pela primeira vez o cancelamento do tombamento no IPHAN, o
órgão analisou o pedido e deu parecer recusando a solicitação. Em 1948, foi realizada vistoria pelo
arquiteto Lucio Costa, Diretor da Divisão de Estudos e Tombamento do IPHAN que levou ao Despacho
desfavorável de Rodrigo Mello Franco de Andrade do pedido de destombamento formulado por
Alfredo da Silva Boa Filho.
No período de 1955 a 1957, e novamente em 1967, o Casarão passou por obras de restauração
custeadas pelo IPHAN, sendo as primeiras para recuperação do telhado e alvenarias e na seguinte para
restauração dos pisos e forros. No entanto, o proprietário e os inquilinos continuaram não realizando
a conservação da edificação o que novamente levou à deterioração do imóvel.
Em 1976, uma notícia do Jornal Lux do Rio de Janeiro “Moradores desfiguram solar histórico em que
morou um barão na Rua Riachuelo” informa sobre laudo realizado pelos engenheiros Henrique
Osvaldo Gomes de Almeida, Luis Carlos Rodrigues Velho e Cid Junqueira em 1967 sugerindo a
desapropriação do imóvel por causa do perigo de incêndio devido à sobrecarga das instalações
elétricas. A notícia também apresenta trecho de uma entrevista com o sapateiro Antônio Amorim, que
ocupava uma das lojas no térreo da edificação em que relata que o administrador do prédio na época
o repreendeu quando apagou um princípio de incêndio iniciado devido a um curto circuito. Segundo o
sapateiro, o administrador disse “Era melhor deixar queimar. Só assim poderíamos vender o terreno.“
Também foram realizados vários pedidos de desapropriação do imóvel; o primeiro em 1976 pelo
IPHAN e o segundo em 1979 pela a Associação Brasileira de Educação que também solicitou a
restauração do Casarão para abrigar a Sede da Associação e a Academia Brasileira de Educação. Ambas
as solicitações não tiveram resultado.
Em 1982, os proprietários solicitaram novamente o cancelamento do tombamento no IPHAN, o órgão
analisou o pedido e deu parecer recusando a solicitação. Ainda em 1982 e em 1984 foram realizados
levantamentos cadastral e socioeconômico dos moradores.
Em 1991 foi julgada procedente uma Ação Civil Pública que obrigava o proprietário a realizar as obras
de restauração, no entanto, no ano seguinte as obras ainda não tinham sido iniciadas. Após diversos

86
incêndios e da queda de uma parede (desabamento parcial), a defesa civil interditou o imóvel em 1992
e determinou a retirada dos já 500 moradores do casarão.
A notícia “Casarão desaba e 200 ficam desabrigados” do jornal O Globo informa que mesmo assim o
casarão continuou sendo ocupado e que desabou, deixando inclusive os imóveis vizinhos em risco na
época.
Nesse mesmo ano, 1992, foi criada a Área de Proteção do Ambiente Cultural Cruz Vermelha - APAC
Cruz Vermelha, que abrange o local do Casarão.
Em 1993, depois dos últimos sinistros, é realizada a estabilização emergencial e a Justiça Federal entra
com uma nova ação para desapropriação do imóvel. Em 1999 foi realizado novo escoramento.
Em 2002 a edificação passou por um processo judicial e foi autorizado pelo IPHAN a utilização para
estacionamento como forma de impedir a invasão.
Em 2008, o IPHAN solicita a desapropriação do terreno para a construção de um Centro de Referência
da Arqueologia Fluminense. No entanto a desapropriação não saiu e o IPHAN acabou desenvolvendo
o projeto para outro imóvel do centro do Rio de Janeiro.
Em 2019 o alvará para funcionamento do estacionamento foi revogado, no entanto, a proprietária do
estacionamento e algumas outras pessoas continuam utilizando o terreno para estacionar seus carros.
Logo, atualmente o terreno se encontra sem uso oficial e é considerado um patrimônio arruinado.
A edificação hoje é considerada um patrimônio em estado de arruinamento devido aos sinistros
ocorridos na década de 1990 e apresenta apenas parte das fachadas externas e pequenos trechos de
algumas alvenarias estruturais internas conectadas a essas fachadas.
O entorno da edificação também não se encontra totalmente preservado, mesmo o bem fazendo parte
da Área de Proteção do Ambiente Cultural da Cruz Vermelha - APAC Cruz Vermelha, que tem como
objetivo a preservação da ambiência e da paisagem local, assim como estimular o aproveitamento e a
conservação de edificações tombadas ou preservadas. A APAC permite a construção de edificações
nesta quadra com até 40m de altura. Esse alto potencial construtivo permitiu a ocorrência do processo
de verticalização, e consequentemente, a paisagem dessa área passou por muitas modificações. Por
isso também a importância da recuperação do casarão visando a preservação da paisagem local.
O entorno da edificação também não se encontra totalmente preservado, mesmo o bem fazendo parte
da Área de Proteção do Ambiente Cultural da Cruz Vermelha - APAC Cruz Vermelha, que tem como
objetivo a preservação da ambiência e da paisagem local, assim como estimular o aproveitamento e a
conservação de edificações tombadas ou preservadas. A APAC permite a construção de edificações
nesta quadra com até 40m de altura. Esse alto potencial construtivo permitiu a ocorrência do processo

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de verticalização, e consequentemente, a paisagem dessa área passou por muitas modificações. Por
isso também a importância da recuperação do casarão visando a preservação da paisagem local.

Figura 03: Vista do Casarão do Visconde de São Lourenço a partir da esquina da Rua dos Inválidos
com a Rua do Riachuelo. 2019.

Fonte: Autor da fotografia Patrícia Ferreira. Arquivo pessoal.

3 - Abordagens
A questão da preservação patrimonial no Brasil tem início nas primeiras décadas do século XX e se
torna institucional com o Decreto Lei 25 de 1937, com a criação do IPHAN e dos livros de tombo.

Art. 1º Constitue o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens


móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interêsse público,
quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu
excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico. (BRASIL.
1937. p.1).

No entanto, apenas a criação do instrumento do tombamento não garantiu a conservação das


edificações, sendo frequente até hoje os processos de arruinamento em edificações tombadas devido
à falta de uso, ao uso inadequado, à falta de recursos para manutenção e restauração, à má vontade
dos proprietários, à ocorrência de incidentes, entre outros, independentemente da proibição
determinada no Art.17 do Decreto Lei 25 que diz que “As coisas tombadas não poderão, em caso
nenhum ser destruídas, demolidas ou mutiladas sem prévia autorização especial do Serviço do
patrimônio Histórico e Artístico Nacional ser reparadas, pintadas ou restauradas, sob pena de multa
de cincoenta por cento do dano causado.” (BRASIL. 1937. p.4).

88
O imóvel é um bem patrimonial reconhecido e que passou por um processo físico de arruinamento,
devido aos incidentes que ocorreram e devido ao abandono posterior. Logo, o seu valor patrimonial
não é definido pelo estado de ruina em que se encontra.

Segundo Ângela Rodrigues (2014), as ruínas podem ser classificadas em 3 tipos de acordo com a sua
causa: ruinas do tempo (bem que teve seu valor identificado quando já estava em ruinas), ruinas da
incúria (bem com valor identificado que é deixado sem uso) e ruinas do incidente (bem com valor
identificado que sofre algum incidente). A partir dessas categorias, podemos dizer que o Casarão se
encaixa em duas classificações: seja, principalmente, como ‘ruina do incidente’, já que o seu valor
cultural (artístico e histórico) foi comprovadamente reconhecido no tombamento da edificação em
1938 e posteriormente, passou por incidentes catastróficos antrópicos como a demolição parcial e
incêndios, seja como ‘ruína da incúria’ pois após o incêndio em 1992 nada foi feito, a edificação foi
deixada sem uso e se degradando cada dia mais durante quase 20 anos.
[Ruinas do incidente:] aquelas edificações de reconhecido valor cultural que até
pouco tempo conhecíamos de forma íntegra e passaram por algum tipo de incidente
catastrófico causado por fatores antrópicos (guerras, incêndios, colisões, demolições
criminosas, etc.) ou naturais (inundações, terremotos, etc.) que gerou sua destruição
(parcial ou total). (RODRIGUES, 2017, p.215)

[Ruinas da incúria:] edificações integras até o reconhecimento de seu valor cultural


e que posteriormente foram acometidas por processos de arruinamento. A
deterioração ocorre lentamente nos últimos anos por fatores que podem ser
derivados da negligencia com sua manutenção e a falta de um uso continuo.”
(RODRIGUES, 2017. p.63)

A questão das intervenções em ruinas e suas possibilidades na contemporaneidade é bem complexa,


pois “se há fácil consenso em sua identificação e uma aparente necessidade de agir sobre objetos
arruinados, o mesmo não acontece quanto aos tipos de intervenção e seus impactos sobre tão delicada
condição.” (BAETA; NERY, 2017. p.219)
De acordo com José Pessôa (2014), existem diferentes abordagens que podem ser propostas para uma
intervenção em ruinas, já que não existe um pensamento único dentro dos órgãos de tutela sobre
como deve ser realizada a intervenção e cada caso deve ser analisado individualmente.
Para Rodrigo Baeta e Juliana Nery (2017) existem cinco possibilidades de intervenção na ruina, na
contemporaneidade: (1) intervenções que apenas conservam, consolidam ou estabilizam as ruínas em
conjunto com pequenas inserções contemporâneas, (2) escavações que expõem as fundações de
antigos edifícios ou conjuntos urbanos, (3) intervenções que reconstroem o edifício ou áreas urbanas
a partir das ruinas ou dos vestígios remanescentes, (4) recuperação da caixa mural exterior de edifícios

89
arruinados em consonância com a preservação de restos da antiga ruina na parte interna da edificação
e a (5) criação de novos objetos arquitetônicos a partir das ruinas de construções ou áreas urbanas
remanescentes.
A reconstrução, considerada a mais controversa das opções, no caso do Casarão do Visconde se torna
a possibilidade mais adequada visto a importância da arquitetura do casarão para a época em que foi
construído e principalmente em função de toda a luta travada entre o órgão de preservação (IPHAN)
e os proprietários da casa que propositalmente deixaram a mesma ser destruída pois queriam
construir um edifício de vários pavimentos no local, visando o lucro imobiliário. Fica claro que esta
reconstrução deve ser baseada nos preceitos advindos do arquiteto, restaurador e teórico Camilo
Boito (2002) que viveu no século XIX, da distinguibilidade harmônica com o remanescente e a paisagem
ainda remanescente da Rua dos Inválidos.
Assim, as edificações em ruínas podem e devem ser objeto de reflexões sobre as formas de intervenção
no bem para reintegrá-lo à cidade contemporânea e à paisagem local. A escolha dentre essas
diferentes formas de intervenção arquitetônica nas ruínas depende de uma análise detalhada de
diversos fatores como a história, o grau de proteção, o estado de conservação e a integração do bem
com a paisagem do entorno, além das intenções do projeto para que o resultado não comprometa a
“delicada e complexa relação entre valorização, destruição e frequentemente reinvenção dos vestígios
do passado.” (BAETA; NERY, 2017, p.238).

4 – Considerações finais
O artigo analisou de forma detalhada a história, o grau de proteção e o estado atual de conservação
do bem em estudo: o Casarão do Visconde de São Lourenço. Um patrimônio com mais de 200 anos de
história, protegido a nível federal pelo seu valor histórico e artístico e que atualmente se encontra
silenciado, em estado de ruina, não integrado ao contexto urbano.
As pesquisas sobre as abordagens possibilitaram a classificação do imóvel principalmente como uma
ruina do incidente, mas também como uma ruína da incúria, de acordo com as conceituações utilizadas
por Rodrigues (2014) e permitiram a identificação dos tipos de intervenções em ruinas na
contemporaneidade de acordo com as conceituações utilizadas por Baeta e Nery (2017).
Segundo Pontes (2010) “as mudanças e intervenções também fazem parte da história do monumento
pelo fato de que tudo é história – e nada é mais importante para a compreensão atual do monumento
do que sua trajetória histórica.”
A reintegração deste exemplar da arquitetura luso-brasileira na paisagem local é extremamente
importante para a valoração do patrimônio arquitetônico e urbano nacional.

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Referências
BAETA, Rodrigo Espinha; NERY, Juliana Cardoso. Reflexões sobre intervenções arquitetônicas contemporâneas
em ruínas. In: Dossiê Patrimônio Cultural Ibero Americano. Campinas, 2017. p.217-240.

BOITO, Camillo. Os Restauradores. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

BRASIL. Decreto-Lei nº25, de 30 de novembro de 1937 – Organiza a proteção do patrimônio histórico e


artístico nacional. Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/Decreto_no_25_de_30_de_novembro_de_1937.pdf>. Acesso
em: 30 jan. 2021.

CARRAZONI, Maria Elisa (Org.). Guia dos bens tombados Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Expressão e
Cultural, 1987.

CUREAU, Sandra. A proteção do patrimônio cultural: síntese de uma experiência. Disponível


em:<http://www.mpgo.mp.br/portalweb/hp/9/docs/o_mp_na_defesa_do_patrimonio_cultural.pdf>. Acesso
em 03 nov. 2019.

FARJADO, Washington. Guia do Patrimônio Cultural Carioca: Bens Tombados 2014. 5 ed. 2014.

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO ARTÍSTICO E NACIONAL (IPHAN). Processo de Tombamento 027–T-38.


Rio de Janeiro. Acesso em: nov.2019.

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO ARTÍSTICO E NACIONAL - IPHAN. Disponível em:


<http://portal.iphan.gov.br/ans.net/tema_consulta.asp?Cod=1791>. Acesso em: 15 dez. 2019.

PESSÔA, José. Padrões distributivos das casas senhoriais no Rio de Janeiro do primeiro quartel do século XIX. In:
MENDONÇA, I.; CARITA, H.; MALTA, M. (Org.) A Casa Senhorial em Lisboa e no Rio de Janeiro: Anatomia dos
Interiores. Rio de Janeiro: Escola de Belas Artes – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2014.

__________. Quatro sinistros, quatro soluções distintas na reconstrução. In: III Encontro da Associação
Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo. arquitetura, cidade e projeto: uma
construção coletiva. São Paulo, 2014.
PONTES, Anna Maria de Lira. A Vivência do Morto: a preservação de monumentos histórcio-culturais em
ruínas. Domínios da imagem (UEL) , v. 07, p. 45-51, 2010.
RODRIGUES, Angela Rosch. Ruina e patrimônio cultural no Brasil. Tese (Doutorado). São Paulo: FAU/USP,
2017.
__________. Ruínas: algumas significações e abordagens nas políticas do IPHAN. In: XII Congresso
Internacional de Reabilitação do Patrimônio Arquitetônico e Edificado. São Paulo, 2014.
Rua Riachuelo, reforma urbanística de uma referência histórica da cidade. Disponível em:
<http://www0.rio.rj.gov.br/pcrj/destaques/especial/rua_riachuelo.html>. Acesso em 10 nov. 2019.

SANTOS, Noronha. Rua dos Inválidos, ns 193 a 203 (esquina da Rua Riachuelo). In: Processo de Tombamento
27, IPHAN, 1945.

TELLES, Augusto C. Silva. Guia dos bens tombados: Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Expressão
e Cultural, 2014.

91
CORETO ART DÉCO EM GOIÂNIA
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Marília Mota Rezende


Arquiteta e Urbanista (UFG - 2015). Designer de Interiores (Bacharelado - UFG -2010). Mestranda em
Arquitetura e Urbanismo do Programa de Pós-Graduação Projeto e Cidade
(UFG -2019). mariliarezende@gmail.com

Eline Maria Mora Pereira Caixeta


Arquiteta e Urbanista (PUC Goiás - 1986). Especializada em Arte e Cultura Barroca pelo Instituto de
Arte e Cultura (UFOP -1991). Doutora em História da Arquitetura e da Cidade pela Universitat
Politecnica de Catalunya (ETSAB, UPC, 2000). Professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo (FAV –
UFG). Membro do Programa de Pós-Graduação Projeto e Cidade UFG.
eline.caixeta@ufg.br

O Coreto da Praça Cívica de Goiânia (1942) é um exemplar de arquitetura Art Déco tombado pelo
Iphan. Todavia, sofreu diversas alterações físicas ao longo de sua história, tendo sido inclusive
descaracterizado e posteriormente reconstruído, fato muitas vezes ocultado dos registros oficiais. Esse
artigo objetiva a construção de uma historiografia das intervenções arquitetônicas, destacando as
dinâmicas que trouxeram o Coreto à sua configuração atual e as relações entre identidade e memória.
Com os dados obtidos, espera-se auxiliar na compreensão do espaço físico e do seu significado cultural,
enxergar de forma mais ampla e clara as mutações, seus atores e temporalidades, esperando guiar
abordagens futuras responsáveis e cuidadosas, que consigam valorizar e integrar a edificação no seu
contexto urbano e histórico.
Palavras-chave: História de Arquitetura e da Cidade; Patrimônio Arquitetônico; Intervenções em
Preexistências; Art Déco; Goiânia.

The Bandstand of the Civic Square of Goiânia (1942) is an example of Art Déco architecture listed as
brazilian national heritage. However, it had several physical changes throughout its history, having
even been uncharacterized and later reconstructed, a fact often hidden from official records. This article
aims to build a historiography of the architectural interventions, highlighting the dynamics that brought
the Bandstand to its current configuration and the relations of identity and memory. With this data it
is expected to assist the understanding of the physical space and its cultural significance more broadly
and clearly, its mutations, their actors and temporalities. Looking forward to guide responsible and
careful future approaches that will be able to value and integrate the building in its urban and historical
context.
Keywords: Architectural Heritage; Interventions on Preexistence; Art Déco; Goiânia; Bandstand.

92
1 - Memória e Identidade
Goiânia surgiu no início do século XX, num momento de mudanças históricas, nas quais as relações
entre espaço/tempo e passado/presente modificam-se substancialmente, imprimindouma nova e
mais intensa rapidez nas transformações urbanas e um dualismo implacável entre passado e presente
que afeta suas perspectivas de futuro. O processo de amadurecimento da cidade e dos seus espaços
físicos vem ocorrendo nesse ambiente de mutação constante, no qualo que permanece perde seu valor
com grande velocidade e o novo nunca é suficientemente atual. Esse fenômeno criou, e ainda
demonstra, dificuldades na percepção daquilo que deve ounão ser preservado e na maneira com a
qual a cidade se relaciona com seu patrimônio e cria vínculos de memória e identidade.
A falta de uma reflexão crítica desses processos urbanos irrefreáveis, que atingem diretamentea
preservação do patrimônio material e imaterial, agravada pela pouca maturidade urbana, pode estar
levando à perda de parte daquilo que constitui a própria cidade. Se não há tempo para a consolidação
de memórias, como construir uma identidade? Candeau (2014) diz que, aomesmo tempo que somos
modelados pela memória, ela também nos modela. A formação da memória se daria assim na relação
cotidiana, da experiência física com as edificações, do estar e pertencer. Portanto, se sentir parte
integrante e agente do espaço e, ao mesmo tempo, ver acidade como parcela que contribui para a
formação da identidade individual, torna-se necessário. A maturidade do ambiente urbano como um
todo só é possível com soma das experiências individuais através do espaço temporal, que dão
origem a características identitárias específicas e que podem abranger desde modos de morar,
construir e expressar-se através da cultura e da arquitetura, à hábitos vinculados a formas de
apropriar-se dos espaços que relacionam-se com a dimensão política da cidade – ou de civitas, nas
palavras de Ignácio deSóla-Morales (2002) – e que norteiam os valores de convivência. Candeau
(2014) reforça essa relação indissociável entre a memória e a identidade. Para o autor, não existe
construção de identidade sem a memória e no caminho contrário, a construção da memória é
sempre acompanhada pelo sentimento de identidade.
Assim sendo, a perpetuação da memória e a construção da identidade dentro do ambiente urbano
podem ser constituídos por meio do registro e da preservação daquilo que chamamos patrimônio
material – relacionado à fábrica, ao construído – e ao patrimônio imaterial, relacionado aos hábitos,
costumes e valores que envolvem seu uso e apropriação. Para Candeau (2014) a instituição do
patrimônio é consequência do movimento das memórias e acompanha aconstrução das identidades.
Ele diz que sua definição fica mais clara de acordo com o acúmulo de memórias, com as referências e
as fronteiras colocadas pelas identidades, demonstrando certa fragilidade quando ligada a identidades

93
fugazes ou quando simboliza algo que indivíduos buscam se afastar. Em uma cidade tão jovem como
Goiânia que já nasce como cidade moderna,como lidar com seu patrimônio arquitetônico e urbano?
Como identificar os valores simbólicose históricos que devem ser resguardados?
Um ponto de partida, segundo James Keer (2013), é a reunião de evidências documentais e físicas, a
partir de um exame inicial do sítio, que forneça a chave para a correta interpretação doque permanece,
bem como revelam revele informações acerca dos “elementos ausentes e obscurecidos ao longo do
tempo” (KEER, 2013, p.4) e ajude a compreensão da natureza e do nível de significado do lugar,
elaborado através das memórias e a construção de identidades. Em seguida, vem a identificação dos
requisitos necessários para a retenção da significância do lugar e que guiarão as estratégias e as políticas
de preservação; requisitos estes necessários para que a importância do lugar seja “mantida e,
ocasionalmente, revelada” (KEER, 2013, p.22).

Nesse processo, a análise coordenada das evidências, segundo o autor, pode ser feita de diversas
formas considerando:

• O desenvolvimento e usos anteriores do lugar (incluindo seu conteúdoe configuração), particularmente


em relação a fábrica sobrevivente;
• As razões e o contexto das mudanças, incluindo os requisitos dos proprietários e usuários;
• Comparação entre desenvolvimento contemporâneo e tipos de planos similares;
• Qualquer outro aspecto, qualificação ou associação que formará umabase útil para o estabelecimento
de significância; (KERR, 2013, p.9, tradução livre)

Ainda segundo Kerr, os critérios que demonstraram ser pontos úteis na avaliação da natureza e da
importância de edifícios e espaços urbanos e, portanto, para definir as estratégias e políticas de
conservação, são:

• Capacidade de demonstrar [seu significado cultural];


• Vínculos associativos para os quais não há evidências físicas sobreviventes;
• Qualidades formais ou estéticas. (KERR, 2013, p.12, tradução livre)

Considerando esses aspectos, visamos aqui a construção de uma historiografia das intervenções
arquitetônicas no Coreto, dando destaque às dinâmicas que o trouxeram à sua configuração atual. O
resgate histórico desse elemento construtivo, justifica-se por sua importância como símbolo
patrimonial goianiense e que pode auxiliar na compreensão da relação da cidade com a preservação
dos seus bens culturais materiais e imateriais. Enxergar o processo histórico de constituição de bens
tombados, sua relação com a cidade e a construção da memória e da identidade, compreendendo suas

94
nuances, bem como os problemas de preservação e as consequências das intervenções ocorridas para
seu resguardo, são objetivos desse trabalho. Ométodo utilizado é do estudo de caso, como meio de
retomar uma história muitas vezes desconhecida mesmo dentro das áreas relacionadas à preservação
do patrimônio material. Pretende-se com isso, trazer subsídios para que processos de intervenção no
futuro, busquem projetos mais completos e contextualizados sob o viés da interpretação
arquitetônica.

2 - Contextualização Histórica e Construção Formal


O Coreto é projeto do engenheiro e arquiteto goiano Jorge Felix de Souza (SILVA, 2017), que também
assina o Teatro Goiânia – o primeiro teatro da Capital. Ele fez parte do projeto originalda Praça Cívica,
onde se localiza o palácio do Governo Estadual (Palácio das Esmeraldas), que foi – e ainda é – o principal
eixo e centralidade urbana de Goiânia. Foi inaugurado no batismo da cidade, em julho de 1942 e já à
época foi apropriado como marco arquitetônico, palco de concentrações populares, manifestações e
apresentações culturais – fato propiciado por ser uma das únicas estruturas abertas e cobertas da
praça.
A linguagem arquitetônica do Coreto é o Art Déco, fazendo conjunto com o relógio que fica no canteiro
central da Avenida Goiás (Figura 01), obeliscos com luminárias, e com edificações, todoscom referências
ao Art Déco, que se erguem no seu entorno, dentro e fora dos limites da praça, em sua maioria
institucionais. Sua inserção urbana no espaço da praça é um dos aspectos definidores da sua qualidade
formal – arquitetônica e urbana – e que determina seu destaque eimportância. Diferentemente dos
coretos de outras cidades ele não está em uma área central da Praça, mas a sua margem. Ele é a
estrutura que marca o início da esplanada da Praça, ao norte, e que faz sua ligação com a Avenida
Goiás, extensa alameda que corta a parte central da cidade e termina na Praça do Trabalhador onde
fica a Estação Ferroviária, portal de entrada dacidade, ao norte, como vemos na Figura 02.

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Figura 01: Fotografias do Coreto na Praça Cívica na década de 1960 e 1940, e da estrutura ocupada pelopúblico
em um evento esportivo na década de 1950.

Fotos: Autoria desconhecida. Fonte: Acervo MIS|GO

Figura 02: Maquete eletrônica esquemática do Coreto e de sua localização no espaço da Praça em sua
configuração contemporânea. As edificações com destaque em vermelho são tombadas em uma ou mais
esferas governamentais.

Desenho: Marília Rezende.

Os coretos, como parte da estrutura urbana, aparecem em diversas cidades brasileiras e tem origem
no processo de urbanização com influência portuguesa. O surgimento dessas estruturasno espaço
urbano data do século XVIII, na Europa, e sua função estava ligada desde o princípio à eventos públicos
(muitas vezes a celebrações religiosas e da monarquia) e apresentações musicais (NUNES 2012), essas
últimas que dão origem linguística ao termo (relativo a Coro). Seuuso trazia esses eventos à espaços
públicos, atingindo populações de diversas classes e cada vezmaiores, no ambiente urbano. Assim
como tiveram importância nas cidades portuguesas, o mesmo ocorreu com essas estruturas em
território brasileiro, para o qual foram importadas e absorvidas na constituição dos espaços urbanos.
Durante o século XX, as principais praças das cidades tinham protagonismo no lazer e nas atividades
sociais e o papel do coreto era o de palco e abrigo para apresentações musicais, discursos políticos e

96
manifestações religiosas. Sua estrutura basal era geralmente elevada do piso da praça e sua localização
centralizada no espaço, permitindo assim a maior visibilidade doseventos pelo público. No seu auge
como equipamento cultural, é importante lembrar que não existia energia elétrica nem equipamentos
eletrônicos, como rádio e televisão, e mesmo quandopassaram a existir, eles tardaram a se popularizar,
em especial no interior. Realidade que mudaprincipalmente a partir da década de 1950, onde estas
estruturas entram num período de descaso e muitas passam por reconfigurações ou mesmo
demolições.
Ao mesmo tempo que os construtores de Goiânia buscavam inserir na cidade um ar de novos tempos
e modernidade – a partir do seu plano diretor e de estilos arquitetônicos como o Art Déco – é possível
reconhecer elementos de ligação com as cidades tradicionais existentes, como a inserção de um
coreto. Assim, o Coreto de Goiânia surge na década de 1940, quase ao mesmotempo em que muitos
dos coretos de outras cidades iniciam o processo de abandono dessas estruturas, tanto por parte da
população e como do poder público. Pesavento (2005) fala sobre esse ajuste na prática do
pensamento dos produtores de espaço e da sociedade que efetivamente habita e usufrui do mesmo,
a mistura da “cidade que se quer, imaginada e desejada, sobre a cidade que se tem” (PESAVENTO
2005, p.283).
Nesse sentido, é inevitável atentar-se para a presença marcante do coreto da antiga capital do estado,
a cidade de Goiás, localizado na Praça Liberdade no centro da cidade e dialogando comos edifícios
institucionais do entorno: a Igreja da Boa Morte, a catedral Matriz de Sant'Ana e o Palácio Conde dos
Arcos – sede do governo. O Coreto de Goiás ainda hoje desempenha papel social e cultural importante
no contexto daquela cidade, por sua estrutura e dinâmica provincianas. A construção do Coreto em
Goiânia e seu uso nos primeiros anos de ocupação eram justificadas pela relação que se buscava entre
o Coreto, a Praça e sua população, similar ao que ocorria na antiga capital. Eventos públicos,
solenidades cívicas e o footing eram atividades recorrentes, assim como seu uso monumental.

3 - As intervenções
Com o advento da tecnologia e o crescimento urbano, a estrutura do coreto perdeu seu principalpapel
social, mas no caso específico de Goiânia ainda guardou em si uma relação com o contextourbano e com
a população. Uma matéria de jornal da década de 1970 lamenta-se a respeito deuma das intervenções
sofridas pela estrutura, referindo-se ao Coreto original como o “mais tradicional monumento
histórico” da cidade e destacando que “não havia uma única foto panorâmica da cidade em que o
coreto não aparecesse, muito embora estivesse relegado ao abandono e ao descaso” (JORNAL OPÇÃO,
22 abr. 1978). Esse pensamento abre caminho para areflexão de que o Coreto não é apenas uma

97
estrutura de concreto e tijolos, mas que desde sua construção gerou laços imateriais com a cidade,
que permanecem.
É fato que na década de 1960 ele sofria de abandono, vandalismo e problemas estruturais e
construtivos decorrentes de exposição às intempéries. A falta de um trabalho constante de
manutenção ou de ocasionais obras de requalificação contribuíram para essa situação. Na tentativa de
mudar essa realidade, e com projeto de intervenção de autoria do arquiteto Cirineude Almeida, se dá a
busca por uma função social para a edificação. No início da década de 1970,o Coreto foi transformado
em um escritório de representação turística como se vê na Figura 03,reflexo dos anseios políticos de
incentivar o turismo na cidade e da tentativa de dar novo sentidoao edifício, no contexto da praça.
Em uma entrevista para o Jornal O Popular concedida nessa época, Pedro Ludovico Teixeira, fundador
de Goiânia, afirmou: “O primeiro coreto que construímos na Praça Cívica era simples,mas bonitinho.
Esse novo coreto é um monstrengo, sem classificação. Uma ideia errada.” (O POPULAR, 2017) A
intervenção descaracterizou o edifício ao modificar completamente sua concepção espacial e
linguagem arquitetônica, integradas ao contexto urbano, restando como lembrança apenas seu
formato elíptico. O edifício adquiriu nova forma, mas a sua estrutura nãoera adequada para os fins
planejados e a insatisfação com a intervenção foi geral, dentro e forado governo e muitas vezes
manifestada pela imprensa.
Situando historicamente, essa intervenção teve palco seis anos após a publicação da Carta de Veneza
(1964), escrita no II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos,
organizado pelo ICOMOS – Conselho Internacional de Monumentos e Sítios Históricos, que ainda hoje
é um dos mais importantes documentos que trata da preservação dopatrimônio construído. Apesar da
proximidade temporal, é preciso lembrar que os fatos ocorrem em um tempo em que a comunicação
e o afluxo de novas ideias ainda era lento, em comparação aos dias de hoje, e no qual a influência
destes documentos tardava a ter consequências no vasto território brasileiro. Dessa forma a
intervenção não sofre influência da carta e é um reflexo da vontade de ter a cidade moderna, sonhada
e desejada, que já não era refletida pela estrutura abandonada do Coreto. Portanto, não havia ainda
uma vontade e um embasamento teórico suficientes para a busca de outras alternativas de adaptação
da função útil de um edifício histórico, segundo a orientações da Carta, que propunha a adaptação de
edifícios históricos “a uma função útil à sociedade”, com a ressalva de que ela não viesse a alterar sua
“disposição” e “decoração”.

98
Figura 03: Maquetes eletrônicas esquemáticas do Coreto na década de 1960 e da intervenção em 1971,junto
com as imagens desses períodos.

Desenho: Marília Rezende. Fotos: Autoria desconhecida. Fontes: Acervo MIS|GO; O Popular, 2017;Jornal
Opção, 1978 (na sequência).

Após alguns anos, o Centro de Atendimento ao Turista foi fechado e o Coreto foi novamente
abandonado. A estrutura chegou a abrigar uma floricultura e a sede dos Escoteiros de Goiás. A reforma
que pretendia reintegrar a estrutura ao contexto da Praça e da cidade não conseguiu seu objetivo e a
construção passou a ser alvo novamente de pichações e vandalismos. A situaçãopedia uma atitude do
Estado quanto ao destino do bem, surgindo uma pressão por parte da população e imprensa, para a
sua reconstrução de acordo com os moldes originais. É natural e esperado que a cidade se modifique
ao longo dos anos e que haja, em seus espaços, marcas dosvários períodos por ela vividos. Mas uma
modificação radical como a que foi realizada na estrutura do Coreto, descaracterizando
completamente a construção original, seguida de sua reconversão ao original, pode ser comparada a
intervenções decorrentes de grandes eventos como incêndios ou guerras que, ao buscar resgatar uma
estética perdida, podem resultar na construção de um falso histórico.
Brandi (2004), em seu livro “A teoria da Restauração” de 1963, aborda inúmeros aspectos sobreas
dificuldades das intervenções, suas complexidades e as reflexões necessárias para que falsoshistóricos
não sejam transmitidos para futuras gerações. Ele exalta a necessidade de estudos sistemáticos,
reconhecimentos de elementos históricos e estéticos detalhados, defendendo soluções encontradas
a partir da leitura dos próprios fragmentos, sempre com o cuidado atentoao que se preserva ou se
destrói.
O caso do Coreto pode ser relacionado com os casos europeus no pós-guerra, pelo mesmo sentimento
de perda expressado pela sociedade. Porém a opção pela sua reconstrução após a descaracterização,
buscava mais do que somente a recomposição espacial e estética do edifíciooriginal. Fato é que as

99
alterações sofridas influenciaram a experiência do usuário no contexto dapraça e da cidade: perdera-
se um símbolo de sua construção e da relação das pessoas com a cidade, num espaço que havia sido e
ainda seria palco de grandes movimentos sociais. O ato dereconstrução tornou-se, assim, uma ação
política e social de devolver à cidade parte da sua identidade e memória.
Em 1979, na administração do prefeito Hélio Mauro Humbelino Lôbo, foi tomada a decisão de
reconstruir o Coreto, segundo seu projeto original. O fato de o projeto ter sido construído apenas
quarenta anos antes, facilitou o acesso a plantas e desenhos. Além disso, foi possível localizar um dos
pedreiros que trabalhou diretamente da obra, entre os anos de 1941 e 1942. Adolfo Boari, de 76 anos,
ainda possuía algumas fôrmas dos afrescos originais, utilizadas no acabamento e fez todo o
acompanhamento da obra para que ela fosse reconstruída. Essa reconstrução é, primordialmente, o
que temos hoje presente na cidade, como visto na Figura 04.
A recepção positiva da população à reconstrução, celebrada em meios de comunicação, e a crescente
cobrança por ferramentas para a preservação dos bens patrimoniais, levou a movimentação dos
governantes estaduais à confecção de uma Lei, ainda em 1980, que abordasse especificadamente esse
assunto. Essa Lei viria a proteger não somente o Coreto, abrigando diversas edificações em estilo Art
Déco na capital e inclusive em outras cidades do Estado, que corriam o risco de sofrer
descaracterizações e abandono. A própria redação da Lei evidencia o interesse público pelo ato, como
dito no artigo segundo:
Art. 2º - Para os efeitos desta lei, consideram-se bens culturais o conjunto debens,
móveis e imóveis, cuja conservação e preservação seja de interesse público por
evocar fatos memoráveis da história de Goiás, ou pelo seu excepcional valor
arqueológico, etnográfico, bibliográfico ou artístico. (Lei nº8.915 de 13 de outubro
de 1980)

O conjunto de edificações Art Déco que acompanham o Coreto nesse Tombamento foi crescendo em
número ao longo do tempo. Sua importância como conjunto característico da cidade de Goiânia foi
consolidada a partir de registros e estudos mais profundos para oTombamento Federal, realizado no
ano de 2003 – um marco importante para a sua preservação.O Coreto hoje consta no Livro do Tombo
das três esferas públicas tanto estadual (1982), como municipal (1991) e federal (2003), o que mostra
seu reconhecimento como patrimônio da cidade, que guarda a história, o significado e a identidade do
goianiense.

Após a reconstrução e com seu reconhecimento pelo tombamento, ainda 1982, poderíamos esperar
que os anos de abandono tivessem ficado para trás. Porém não foi o que aconteceu nesses quarenta
anos após a primeira lei de proteção. A realidade que vemos especificamente no Coreto é o mesmo

100
isolamento e descaso, repetido em ciclos. Os mesmos problemas que levaram às intervenções de 1971
permaneceram e se agravaram: a estrutura teve seu processode isolamento da Praça e da Avenida
Goiás intensificado pela inclusão de três faixas de rolamento de veículos, de velocidade média a alta,
nas suas laterais Norte-Sul e pelas faixas de ligação da Praça à essa avenida, nas suas laterais Leste-
Oeste. Onde antes haviam locais de estacionamento, fluxo baixo e ruas que atendiam também o
deslocamento de pedestres, passaram a funcionar vias que, impulsionadas pelo formato da própria
praça, transformaram a área em uma grande rotatória de acesso às avenidas que tinham início no
espaço. O Coreto, por se situar à margem da Praça, acaba limitado nas suas quatro laterais, sem
mesmo, por muitos anos, acesso por faixa de pedestres.
Nesse contexto, a edificação ficou sem uso definido, sem iluminação e também sem segurança
adequadas. Uma das primeiras intervenções posteriores (sem data precisa) que podemos observar no
local, foi a criação de uma faixa de calçada no entorno do coreto, que acompanhou o formato irregular
das vias, sem relação com a forma elíptica da sua estrutura, como vemos nas maquetes da Figura 04.
As intervenções superficiais que são mais facilmente identificadas nas fotografias ao longo do tempo,
são as das espécies de vegetação plantadas nos jardins e a iluminação inserido posteriormente.

Figura 04: Maquete eletrônica esquemática do Coreto com a intervenção na década de 1970, e depois
reconstruído em 1980, e com a intervenção paisagística de 2002, junto com fotografias desses últimosdois
períodos.

Desenhos: Marília Rezende. Fotos: autoria desconhecida. Fontes: IPHAN | GO; A Redação, 2018; IPHAN
| GO (na sequência).

Em 2002, houve uma grande intervenção nas suas imediações, quando foi realizada a recuperação do
canteiro central da Avenida Goiás. Nessa ocasião, foram feitas várias tentativaspara integração entre

101
o Coreto e a Avenida, barradas pelas instâncias governamentais, sendo realizada apenas a restauração
da estrutura do Coreto e a inserção de um jardim gramado no seu contorno. Os ciclos assim foram se
repetindo: a estrutura sofre desgaste, é abandonada pelopoder público sendo alvo de vandalismo e,
isolada do pedestre, é apropriada por moradores derua. O governo toma atitude para sua manutenção:
investe recursos, restaura, pinta, troca sua iluminação e tenta reafirmar sua importância.
No início do século XXI, a cidade teve uma grande oportunidade de repensar sua relação com o
patrimônio presente na região da Praça Cívica, pois em 2000 foi realizado um concurso de projetos
para a revitalização da Praça que incluía de forma ampla: edificações, calçamentos e osbens tombados.
Foram diversas as propostas, em sua maioria com a retirada do estacionamentoexistente no interior da
Praça, o resgate desse espaço para uso peatonal e a requalificação de revestimentos, iluminação e
relações entre os espaços internos e limítrofes. Existiram propostasque incluíam a estrutura do Coreto
no contexto da Praça, removendo esse isolamento persistente, assim como de integração mais
presente entre a estrutura do Coreto e do relógio, muito presentes nas fotografias das décadas iniciais,
e hoje bloqueadas por uma grande pista de rolamento de trânsito rápido. Porém nenhuma das
propostas apresentadas foi executada.
Uma reforma efetiva da área só foi ocorrer em 2015, com projeto do escritório de arquitetura Grupo
Quatro, liderado pelo arquiteto Luiz Fernando Cruvinel Teixeira, contratado sem concursopúblico pelo
governo Estadual e fornecido para a prefeitura. O investimento ficou em mais de 13 milhões do
PAC/Cidades Históricas, Programa de Aceleração do Crescimento do Governo Federal que reservou
fundo para reformas de locais Históricos. Foi a maior intervenção sofrida pela praça desde a sua
construção, com a demolição de parte das edificações inseridas posteriormente e a efetivação da
retirada do estacionamento com a troca de toda a pavimentação, além da requalificação das fontes e
jardins e a recuperação de áreas livres da praça, antes ocupadas por edifícios e carros.
Era de se esperar que o Coreto tivesse importância exaltada nesse projeto. Mas já no painel de
apresentação da reforma amplamente divulgado, ele apareceu isolado, sem destaque, como senão
fizesse parte integrante do contexto da intervenção. Até mesmo em matérias de jornal houve
representações esquemáticas da praça onde o coreto foi suprimido do desenho, como se ali não
estivesse, como se não fizesse parte do contexto histórico material e imaterial do espaçoda Praça. Não
teria sido esse momento de grande reforma, uma oportunidade para intervir no sentido de integração
do Coreto? Com esse isolamento físico e até mesmo conceitual, o que podemos esperar da sua
preservação?

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Figura 05: Maquete eletrônica esquemática do Coreto na contemporaneidade, junto com fotografias dopós-
restauro ocorrido em 2020.

Desenho: Marília Rezende. Fotos: autoria desconhecida. Fontes: IPHAN | GO; Portal Curta Mais; RevistaFactual
(na sequência).

Tendo sido excluído do processo de requalificação, pouco tempo depois, em 2018, o Coreto maisuma
vez foi visto como abrigo de moradores de rua, com sua manutenção deixada de lado pelogoverno.
Eram visíveis partes de reboco soltas, cheiro de urina, paredes vandalizadas e jardins de terra vermelha
sem vegetação. Um retrato cíclico do mesmo edifício, agora evidencia-se emcontraste com a Praça
que pouco após a reforma vinha conseguindo manter sua estrutura bempreservada. Em 2019, através
de uma parceria público-privada dentro do programa da Prefeitura de Goiânia “Adote uma Praça”, a
Caixa de Assistência dos Advogados de Goiás (Casag)ficou responsável pela restauração e manutenção,
tanto do Coreto como do Relógio situado a poucos metros, na Avenida Goiás. O restauro no Coreto
custou 400 mil reais e abrigou o reforçoestrutural da sua laje, restauro de reboco, nova coloração de
pintura, piso – incluindo sinalizaçãode acessibilidade - e jardins. Essa obra foi inaugurada no início de
2020. A intervenção, mais umavez, não buscou melhorar a integração entre o coreto e seu entorno e
não possui um plano detalhado de conservação futura.

4 - Considerações Finais
Acreditamos que também é papel da arquitetura o estudo da história de ações realizadas, sua análise
crítica e a proposição ativa de novas maneiras de solucionar essa situação cíclica desde a inauguração
do Coreto. Nenhuma das intervenções já realizadas aparenta ter logrado a real valorização do bem,
nem mesmo com a ferramenta do tombamento. A situação encontrada através dessa pesquisa nos
sugere que seria necessário um plano mais amplo, integrativo, de alcance urbano e com uma
participação maior de arquitetos e os agentes sociais, para que ocorra de fato a valorização do Coreto
e da Praça, bem como de outros espaços urbanos representativos da cidade. Um plano de conservação
destes espaços, que envolva políticas de gestão de conservação e que vá além de decisões meramente
políticas e projetos pontuais.

103
A partir desse trabalho, nota-se a necessidade de um olhar sobre o Coreto, não como bem isolado,
mas como parte de um conjunto. Não só de um conjunto de bens materiais, mas também de um
conjunto de memórias identitárias, que necessitam de cuidados específicos pensados de forma
integrada. Investimentos para manter e restaurar sua estrutura física, sem esse pensamento
integrativo, só reforçam o ciclo temporal de abandono e reconstrução. É necessária a atenção a dois
pontos fundamentais: o resgate da sua integração à praça e um plano de manutenção e conservação
do edifício. Dessa forma estaríamos de acordo com os conceitos defendidos por James Keer (2013) em
seu Plano de Conservação, e assim também mais relacionados com as ideias contemporâneas mundiais
de preservação. Caso reflexões maisprofundas tivessem papel real nas decisões poderíamos responder
de forma concreta à essas questões. Acreditamos que assim seria possível conquistar resultados mais
duradouros e uma relação mais próxima do bem com a sociedade.

Referências
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Disponível em: <https://especiais.novosprodutos.com/goiania84anos/> Acesso em: 10 dedezembro de 2019.

ARQUITETOS ASSOCIADOS. Concurso de Projeto – Proposta para a Praça Cívica. Arquitetos: Alexandre Brasil,
André Luiz Prado, Carlos Alberto Maciel e Danilo Matoso. Goiânia: Arquitetos Associados, 2000. Disponível em:
<https://arquitetosassociados.arq.br/praca-civica/> Acesso em: 10 de dezembro de 2019.

BRANDI, Cesare. Teoria da restauração [1963]. Cotia: Ateliê, 2004.

CANDEAU, Joel. Memória e identidade [1998]. Trad. Maria L. Ferreira. São Paulo: Contexto, 2014.

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<http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Veneza%201964.pdf> Acesso em: 8 de
abril de 2019.

GOIÁS. Lei nº 8.915, de 13 de outubro de 1980. Dispõe sobre a proteção ao patrimônio histórico e artísticoestadual
e dá outras providências. Goiânia: Palácio Do Governo do Estado de Goiás [1980]. Disponível em:
<http://www.gabinetecivil.go.gov.br/leis_ordinarias/1980/lei_8915.htm> Acesso em: 10 de dezembro de 2019.

JORNAL A REDAÇÃO. “Thiago Peixoto lamenta abandono do coreto: "descaso com a nossa memória"“ Goiânia:
Jornal A Redação, edição de 01 novembro 2018.

JORNAL OPÇÃO. “Coreto: idéia infeliz“ Goiânia: Jornal Opção, edição de 22 abril 1978.

KERR, James Semple. Conservation Plan, the 7th edition: A guide to the preparation of conservation plansfor
places of European cultural significance. Australia: ICOMOS, 2013.

KÜHL, Beatriz Mugayar. O papel do patrimônio arquitetônico no projeto da cidade contemporânea. 1 ed. Bauru,
São Paulo: ANAP, 2019.

NUNES, Joana Santos. O coreto na cidade de Lisboa: Reintegração do equipamento no espaço público urbano.
Dissertação de Mestrado - Mestrado em design de equipamento: especialização em design urbano e de
interiores, Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas Artes, Lisboa, 2012.

104
PALLASMAA, Juhani. A imagem corporificada: o imaginário e a imaginação na arquitetura. Porto Alegre:
Bookman, 2013.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. “Muito além do espaço: por uma história cultural do urbano.“ Estudoshistóricos.
Rio de Janeiro, Volume 8, número 16, 1995.

RUSKIN, John. A lâmpada da memória [1849]. Tradução: Maria Lúcia Bressan Pinheiro. Cotia, São Paulo:Ateliê
Editorial, 2008.

SILVA, Nancy Ribeiro de Araújo e.“Desenho de uma vida: crônica sobre Jorge Félix de Souza“. Revista UFG.
Goiânia: Revista UFG, Volume 13, Número 11, Páginas 109-119, 2017. Disponível
em:<https://www.revistas.ufg.br/revistaufg/article/view/48391> Acesso em: 12 de fevereiro de 2021.

SOLÀ-MORALES, Ignasi de. Territorios, Editorial. Barcelona: Gustavo Gili, 2002.

105
CORPOS SEQUELADOS E NUS: os Santos de Vestir, do protagonismo sacro à performance no
museu.
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Ana Cláudia Vasconcellos Magalhães


Arquiteta; IPHAN; ana.magalhaes@iphan.gov.br

Maria Angélica da Silva


Professora titular da FAU/UFAL; mas.ufal@gmail.com

Os santos de vestir foram importantes personagens nos programas iconográficos de igrejas barrocas
enriquecendo, também, a cenografia das procissões. Portando roupas, cabelos, joias, acessórios,
representavam uma cultura religiosa que investia fortemente no envolvimento emocional dos fiéis.
Aqui se discutirá a importância dessa imaginária devocional no antigo convento de Santa Maria
Madalena, em Marechal Deodoro, Alagoas e como, com a sua transformação no atual Museu de Arte
Sacra, essas esculturas passam a ser sobretudo objeto de fruição estética e despidas, perdem
identidade e significados religiosos. Nessa perspectiva, se discutirá quais as repercussões, no
imaginário coletivo quando rostos expressivos de santos, continuados apenas por uma prosaica
armação de madeira ou, no máximo, um corpo de formas simplificadas, são postos à exibição.
Palavras- chaves: convento; santos; devoção; nudez; ausência.

The dressing saints were important characters in the iconographic programs of Baroque churches, also
enriching the scenography of the processions. Wearing clothes, hair, jewelry, accessories, they
represented a religious culture that invested heavily in the emotional involvement of the faithful. Here
we will discuss the importance of this devotional imaginary at the Convent of Santa Maria Madalena,
in Marechal Deodoro, Alagoas, and how, with its transformation into the present Museum of Sacred
Art, those sculptures become, mostly of all, objects of aesthetic fruition and, stripped, they lose identity
and religious meanings. From this perspective, it will be discussed which are the repercussions in the
collective imagination, when the expressiveness of the faces of the saints, continued by a prosaic
wooden frame or, at most, a body of simplified shape, are exposed in exhibition.
Keywords: convent; saints; devotion; nudity; absence.

106
1 - Os santos de vestir em um Convento abandonado...
No final do século XIX, em meio às andanças por uma cidade decadente, um homem adentra no
Convento Franciscano de Santa Maria Madalena e se perde em meio a corredores escuros e labirínticos
que levam a celas desocupadas. Entre estranhamento pelo vazio e melancolia, ele se maravilha diante
de “vultos perfeitíssimos, de tamanho natural”, os únicos habitantes daquele lugar antes vitalizado por
frades, cerimônias, devoções (MACIEL, 2013, p. 80).
Trata-se de Manoel, personagem de um romance escrito em 1889 pelo jornalista Pedro Maciel,
intitulado Traços e Troças, no qual se evidencia esta narrativa acerca da condição de abandono na qual
se encontrava a edificação secular. Ele não se detém em tratar das condições físicas do prédio, mas
das sensações que tais condições lhe provoca, que ganham um certo viés estético, ao aproximar o
convento da ambiência romântica que acolhe o apreço às ruínas à época.
Ora, o abandono constatado por Manoel é resultado de um processo de desestabilização das ordens
religiosas no Brasil, que dominara toda a segunda metade do século XIX, e que tem suas repercussões
também no convento de Santa Maria Madalena, fazendo-o definhar devido à proibição da admissão
de noviços.1 Possivelmente, naquele ano de 1889 já não houvesse mais nenhum frade ocupando a
grande casa franciscana, daí a facilidade com que o personagem do romance passeia livremente por
lugares que, no passado, eram acessíveis apenas aos religiosos.2 A narrativa, portanto, acontece em
um momento decisivo no qual tais edifícios, construídos ao longo de décadas e investidos de um
caráter fundamental para garantir a vida urbana, inclusive para além da religião, vão sofrendo um
longo e inexorável recuo desta preponderância que usufruíram no passado. Um mundo laico,
moderno, retira destas edificações o seu antigo papel e elas irão agora abraçar um outro estatuto: o
de monumento histórico, com outras decodificações, incumbências e tratos urbanos.3
Construído a partir de 1660, o convento franciscano se constitui, arquitetonicamente falando, de igreja
da Ordem Primeira, capela da Ordem Terceira, moradia dos frades, adro e cerca conventual. A cartela
com a inscrição 1793 colocada na torre sineira da fachada anuncia a data do término da obra marcando
o fim de um longo percurso que começou na primitiva capela-mor, se estendeu pelo corpo do edifício,
que foi crescendo e se alargando, até chegar a um frontispício elegante, que se destacou no núcleo
urbano da capital da Província das Alagoas, hoje cidade de Marechal Deodoro.

1
Contribuiu muito para a decadência do convento, a proibição de sepultamentos no seu interior, retirando
dele parte significativa dos recursos financeiros necessários à sua sobrevivência. Cf. MAGALHÃES, 2018.
2
De acordo com SANTANA (1970, p. 33), em 1879, apenas 7 pessoas viviam no convento, sendo 3 religiosos e 4
escravizados. Em 1882, apenas o guardião permanecera.
3
Em 1964 o edifício foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN.

107
Figura 1: Fachada do Convento de Santa Maria Madalena, Marechal Deodoro, Alagoas.

Fonte: Maria Angélica da Silva, 2011.

Mas quem seriam essas figuras, que Manoel qualifica como perfeitíssimas, ao tempo em que destaca
a pobreza das suas vestes e o abandono no qual se encontravam? Certamente, ele se referia aos santos
de vestir que, no passado, representavam com excessivo realismo, a partir de troncos de madeira
esculpidos, homens e mulheres que, lembrados por suas virtudes em vida pretérita, eram venerados
pelos fiéis.
Elas participaram do processo no qual o espaço interno do convento foi depurado esteticamente e
acrescido de elementos artísticos integrados à arquitetura, imaginária, alfaias e paramentos
adequados ao culto divino. O programa iconográfico necessário à realização das atividades litúrgicas e
catequéticas não era considerado acessório, mas, tão essencial quanto o espaço que abrigava as
celebrações, notadamente quando se tratava da igreja. Tal aparato esteve crescentemente presente,
dotando aquele lugar sagrado dos instrumentos necessários para assegurar a comunicação divina.
O Barroco representa, ao mesmo tempo, um estilo e um momento fundamental da edificação, onde
se assiste a uma aceleração no papel desta linguagem iconográfica que não sussurra, mas brada em
alto tom a mensagem do edifício. Paredes se cobrem de ouro, a talha se arrepia, os anjos e santos
fixam seus olhares em quem lhes procura, a pintura do teto, como um grande aparelho panóptico,
acompanha o fiel sem lhe dar tréguas. A dobra redobra-se, não há canto de sossego nas partes do
edifício consideradas mais engajadas nos atos litúrgicos e religiosos. Estas se concentram na fachada
principal da igreja e seus interiores, na sacristia, refulge em detalhes na Sala do Capítulo. Por outro
lado, como um castigo ou destempero, o resto do convento se apresenta nu. As celas dos frades são

108
simples, bem como os cômodos de estadia comum. No máximo, o brejeiro de alguma flor que se
cultivava em tablados que bordejavam as janelas.
A historiografia registra a quantidade e variedade de peças destinadas a compor a ambiência dos
espaços religiosos, sem as quais os objetivos evangelizadores ficariam comprometidos. Parte
significativa desse aparato será constituída da imaginária devocional. As representações de santos,
presença indispensável em todas as igrejas, capelas e conventos, foram defendidas no II Concílio
Ecumênico de Nicéia, ocorrido em 787:
Devem expor-se as venerandas imagens sacras, manufaturadas com tintas, com
mosaicos e com outras matérias idôneas, nas igrejas consagradas a Deus, nos vasos
e paramentos sagrados, nas paredes e nos retábulos, nas casas e nas ruas; e isso
aplica-se tanto à imagem do Nosso Senhor Deus e Salvador Jesus Cristo e à Nossa
Senhora Imaculada, bem como às imagens dos veneráveis anjos e de todos os
homens santos e piedosos (BERNADET, 1997, apud BOY, 2001).4

Nesse quesito, se destacam os conventos franciscanos, cujos apelos artísticos, ultrapassando os limites
de uma arquitetura que, por si só, já era sofisticada, invadiam tetos, paredes, pisos, através de forros,
retábulos, púlpitos, painéis de azulejos, mas também de corpos, ou seja, a dimensão mais aproximada
do próprio fiel. Lá estão os santos no altar, com todos os seus ícones que permitem a necessária
distinção dentre a longa galeria de seres humanos ungidos pelo sagrado, clamando pelo nome de cada
um. As feições são sofridas ou piedosas. A dimensão é bem estudada para que, ao mesmo tempo que
pareça natural, ligeiramente amplie sua proporção colocando-se para além do homem e mulher
comuns. Usualmente, olham do alto.
Essa ornamentação de natureza sagrada contribuía fortemente para a divulgação e afirmação dos
mandamentos da Igreja, além de incentivar as devoções, cumprindo o papel pedagógico/religioso que
lhe cabia, e se somava ao controle de uma sociedade em ebulição, cujo apaziguamento era, do ponto
de vista dos que a comandavam, imprescindível à manutenção da ordem social.
As expressões artísticas eram exploradas de modo a obedecer normas transmitidas através de
constituições, concílios, cartas, entre outros instrumentos de comunicação usados pela Igreja. Pode-
se afirmar que no Brasil colonial o barroco foi, por excelência, a linguagem que mais amplamente se
prestou a essa função, pela sua própria natureza, embalada pelas premissas da Contrarreforma, mas,
também, pelo cenário cultural peculiar que germinava no Novo Mundo. Em terras cuja boa parte dos
habitantes era apartado, por origem, da cultura de matriz europeia, é de se pressupor que o culto aos
santos tenha sido um dos fenômenos que mais contribuíram para a imposição da religião católica.

4
Posteriormente, também o Concílio de Trento (1545/1563) reafirma a importância da representação visual de
santas e santos católicos nas igrejas e demais espaços religiosos.

109
Os frades menores desenvolveram uma iconografia especialmente rica, claramente retratada na forma
como recheavam seus conventos com uma grande variedade de símbolos e representações religiosas,
com predileção pela temática mariana e pelos temas da crucificação. Há de se destacar o apreço
franciscano pela Paixão de Cristo, que é usada com toda a sua força, no sentido de emocionar, mas,
também de fazer temer. A crucificação será responsável pela intensificação da representação de um
corpo sofrido, perfurado por espinhos e pregos, que sangra e falece. Ele estará sempre presente dentro
dos conventos e na sua porta, ao saudar a cidade com a cruz estampada no adro.
Mas além da incumbência que assumem no interior das igrejas, estes Cristos e santos também saem
de dentro delas e invadem os locais da vida comum, deslocam-se dos seus retábulos e nichos e se
mostram nas ruas. Quando não são especificamente projetados para estas exibições no espaço
urbano, como os santos de procissão.
É nesse contexto que se destacam as imagens de vestir.5 Dentro do conjunto formado pela imaginária
religiosa, essas esculturas tinham um papel muito especial nas celebrações. Ecoando desde outros
capítulos da história do teatro do período medieval, quando se representava a vida dos santos por
meio de bonecos vestidos (FLEXOR, 2005), elas foram, nos programas iconográficos de igrejas barrocas
brasileiras, um dos elementos mais expressivos devido à intensa carga emocional que a sua simples
contemplação provocava, acionada pelos olhos de vidro, perucas de cabelos naturais, ferimentos e
cortes, gotas de sangue e de lágrimas quase reais, roupas cuidadosamente confeccionadas,
gestualidade e expressões tão humanas que era difícil não ver ali, diante dos olhos, o santo como se
vivo fosse.
Apesar de não necessariamente serem feitos apenas para as procissões, eram os protagonistas desse
tipo de cortejo, especialmente aqueles relacionados às celebrações penitenciais da Quaresma, a
exemplo da Procissão das Cinzas. Para melhor se adequarem a este uso, eram construídos leves, de
modo a serem facilmente adaptados aos andores que eram levados por ruas tortuosas e acidentadas
de vilas e cidades, convocando os fiéis à reverência. Também por serem articulados, permitiam a
exploração de gestualidades diferentes, segundo o calendário litúrgico, ou com a cena que se queria
representar.
Apoiado em São Francisco, o franciscanismo sempre acentuou a importância da aproximação de Cristo
pela via do sofrimento. Nesse sentido, a Procissão das Cinzas, diretamente relacionada ao “martírio,
eremitismo, cenobitismo, autoflagelações, penitências e chagas” era associada à própria vivência

5
De acordo com Coelho e Quites (2014, p. 44), as imagens de vestir são classificadas de acordo com a estrutura
formal apresentada, a qual pode ser: cortada ou desbastada; de corpo inteiro ou anatomizada; de corpo
inteiro/roca; de roca.

110
franciscana e por isso era realizada pelas suas Ordens Terceiras, também ela formada por penitentes
(CASIMIRO, 2012, p. 139). Tamanha era a importância conferida a esse tipo de cortejo que supõe-se
que os conventos eram construídos de modo a dispor de adros - o espaço de transição entre igreja e
urbe - como local propício para serem iniciadas e concluídas.
A Procissão das Cinzas, a mais famosa, havia sido realizada pela primeira vez no lugar em 1751, como
parte das atribuições da Venerável Ordem Terceira de São Francisco (JABOATÃO, 1859, p. 613). A
descrição, a cenografia processional contava com vinte representações de santos da devoção
franciscana (FONSECA, 1942, p. 18). Apesar de não ser mencionado tratar-se especificamente de
santos de vestir, presume-se que, pelo menos, grande parte o fosse, já que a imaginária de madeira,
de talha inteira, tinha a característica de ser mais pesada, o que dificultava o transporte. Além disso, a
grande impressão que causava no piedoso público que a acompanhava contribuía para fortalecer
sentimentos de veneração e temor.
O Convento de Santa Maria Madalena teve várias dessas esculturas e, naquelas que sobreviveram ao
tempo, se observa que, conforme era usual, o escultor esmera-se apenas nas partes do corpo que
ficam expostas aos olhos dos fiéis e as partes a serem cobertas pelas vestimentas são executadas de
forma mais simplificada, às vezes simplesmente no formato da armação conhecida como roca.
Inversamente, o emprego de olhos de vidro, cabelos naturais, dentes, joias, lágrimas e sangue,
somados a roupas cuidadosamente confeccionadas e adornadas com bordados e rendas, os
transformavam em seres quase dotados de vida.
Com o passar do tempo, acompanha-se o ocaso de parte significativa dos tradicionais cortejos
realizados na cidade. Com a decadência da vida em clausura o convento deixa de ser uma casa de
frades e, a partir de 1902, passa a ter outras funções. A igreja se manteve, mas a parte conventual
transformou-se em seminário e depois abrigo para órfãos, e, finalmente, em 1984 nele instalou-se um
museu de arte sacra (Cf. O Convento Franciscano de Marechal Deodoro: Santa Maria Madalena, 2012).
Com esta mudança, essas esculturas passam a integrar o programa expositivo e a ser,
preponderantemente, objetos de fruição estética.
O processo museológico adota o discurso da espetacularização do acervo, tanto no projeto implantado
em 1984, quanto na nova instalação de 2019. Se por um lado, com o acesso dos visitantes a casa e o
acervo ganham nova vida, por vezes deixa que os apelos mais contundentes do edifício se silenciem,
frente a uma proposta cenográfica comprometida a entreter o público com o máximo de interpelações
possíveis. Assim, a função prévia de casa conventual é silenciada, embora seus cômodos ainda
pudessem narrar este uso. Parte expressiva da trama barroca é desfeita. Os santos saem dos altares e

111
perfilam em ampolas de vidro organizadas em sequência. Os Cristos Crucificados, reunidos em uma
única sala, restringem a emoção ao estatuto comparativo entre possíveis expertises dos vários artistas.
Marias, Franciscos, Antônios, Beneditos, se perdem em meio ao burburinho de vitrines e placas sem
que a força da espiritualidade que os adotaram em vida, e que era a meta da imaginária, possa ser
vislumbrada.

Figura 2: São Benedito com e sem acessórios (túnica franciscana)

Fonte: Ana Magalhães, 2005 e 2011.

Nas diversas campanhas de recuperação do acervo e do edifício, alguns santos foram encontrados
sequelados. Ou seja, perderam partes do seu corpo. A exemplo de uma escultura de Santa Maria
Madalena, localizada nos anos 80 envolta em um cupinzeiro, que estava sem as mãos, partes mais
fáceis de serem apartadas do conjunto. Um delicado processo de restauração recuperou parte da sua
legibilidade estética, optando, porém em não lhe restituir as mãos.

Figura 3: Imagem de Santa Maria Madalena

Fonte: Maria Angélica da Silva, 2011.

112
No que diz respeito aos santos de vestir, uma das estratégias utilizadas no museu foi expô-los sem suas
roupas, o que amplia o caráter de surpresa ao mostrar o avesso da dramaticidade e eloquência
barroca. Esta nudez deixou entrever as tramas de madeira bruta, contrastada violentamente com os
rostos quase humanos dos santos. O processo da desconstrução cenográfica, em busca de um outro
efeito dramático, também destitui uas figuras dos santos dos seus cabelos.
As imagens de roca ou articuladas agora se mostram sem suas túnicas, e mantos, e
véus, e perucas, e brincos e colares. Mostram-se carecas e nuas, como estranhas
personagens, expostas à curiosidade alheia, com suas vergonhas aparentes. O que
agora aparece é o seu processo construtivo – as ripas das armações e as articulações
–, que foram feitas para ficar ocultas sobre os cabelos e as sobreposições dos tecidos.
Não foram construídas para se apresentar sem suas roupas e complementos. (FILHO,
2011, p. 79, apud LUZ e GOMES, 2018, p. 22).

A imagem de vestir, “como define o próprio nome, é uma categoria escultórica que vai sempre possuir
o têxtil” (COELHO; QUITES, 2014, p. 44). Portanto, sua nudez desfaz um longo processo que teve nas
vestes um dos seus maiores destaques e importante fonte de significado. O santo perde o hábito. E o
hábito, como diz o ditado, faz o monge.

Figura 4: Senhor dos Passos, com e sem acessórios (roupa, peruca, resplendor)

Fonte: Arquivo da Secretaria de Estado da Cultura de Alagoas, anos 70 / Ana Cláudia Magalhães, 2010.

“É no contexto da vida monástica que o termo habitus [hábito] – que em sua origem significa “modo
de ser ou agir” e, no estoicismo, se torna sinônimo de virtude (...) tende cada vez mais a designar o
modo de vestir.” (AGAMBEN, 2014, p. 25). Assim, a roupa, que neste caso corresponde a uma
exterioridade mais que o cuidado com o corpo, revela um modo de vida. Cada parte da mesma
comunica uma virtude ou atitude.

113
Assim todo um discurso pode ser lido a partir da veste indicando posturas a serem tomadas pelo
religioso e, ao mesmo tempo, divulgadas entre os fiéis através da veste. O cinto fala da castidade, a
estola, da obediência (AGAMBEN, 2014, p. 29).
Todo este envoltório de significados vai se perdendo no passar dos séculos, mas não totalmente,
chegando resquícios no século XVIII no Brasil. A legislação canônica continua a afirmar os cuidados
necessários com a decência das vestes. Além dos valores subjetivos, a roupa e demais acessórios são
biográficos e, portanto, indicadores da identidade e da devoção.
A exposição das esculturas completamente desnudas no museu provavelmente impactou uma
comunidade pequena e caracterizada por uma religiosidade apaixonada, como é o caso da de
Marechal Deodoro. Contudo, por outro lado, a demanda dos fiéis hoje se mistura a várias outras às
quais se submete um monumento, inclusive para garantir-lhe a sobrevivência. A própria cidade de
Marechal Deodoro, cada vez mais imersa nas redes do turismo, também se transforma criando novas
contextualizações para os seus monumentos.

Figura 5: Representação feminina, não identificada, com e sem acessórios (roupa, véu, peruca )

Fonte: Ana Cláudia Magalhães, 2005 e 2010.

No encalço de fantasmas na análise da proposta museológica adotada no convento, este artigo


perpassou pelos veios do sagrado e da devoção, inclusive aqueles relacionados ao espaço conventual,
também ele repleto de códigos agora rompidos, quando algumas ausências se destacam mais que as
presenças. A casa conventual também se desfez dos seus sigilos, para se exibir, em vez de casa de

114
morada do sacro, como casa de visita. Rompeu-se todo um protocolo de mesuras, gestualidades e
fronteiras típicos dos ambientes de clausura. Convento e igreja, outrora unidos, tiveram destinos
diversos. Como também os seus santos. Os da igreja, reverenciados, os do convento/museu, em
exposição como obra artística. O que fica em silêncio é, novamente, talvez o mais singular e recôndito:
as articulações que faziam do prédio- pedras, tijolos, madeira, tintas, folhas de ouro - o lugar do
sagrado e do segredo.
Até a romântica visita a ruinas, como fez Manoel, foi engolida pelo tempo. Temos agora o ingresso e a
visita ao espetáculo bem controlada, e que silencia o que também poderia ser contado – a estranha
história da vida de homens que se recolhiam do mundo, numa casa conventual.
Nessa perspectiva, também os acervos do convento, denominados como bens culturais móveis, mais
especificamente os santos de vestir, carecem de atenção quanto à proteção de suas partes
formadoras, esculpidas, pintadas, tecidas, bordadas. Some-se a isso a essencial atribuição de sentidos
que poderia ser obtida por meio de um espaço museográfico que possibilitasse experiências de
reconstrução de afetos e de significados outrora destinados a eles.
Cabe finalmente uma pequena reflexão sobre corpos e a nudez. De fato, a modernidade simplificou o
vestuário e o nu recebeu um outro estatuto. Talvez por isto, por uma demanda por transparência e
“autenticidade”, também os corpos dos santos foram submetidos ao constrangimento semelhante ao
que o vidro exigiu do espelho: deixar de refletir para ser literalmente atravessado. A transparência
afastou a parede opaca, fiel à demanda por uma verdade, que se buscou encontrar numa essência
interna, que, para ser conhecida, deveria romper com as camadas externas, suas roupas. Mesmo que
a custa de, talvez, silenciar a sua mais potente mensagem.

Referências
AGAMBEN, Giorgio. Altíssima pobreza. São Paulo: -1 Editora, 2014.

BOY, Renato Viana. A Doutrina Cristã no Ocidente Através das Representações Artísticas do Ocidente.
Comunicação apresentada no V Congresso de Ciências Humanas, Letras e Artes, promovido pelas IFES
Mineiras/Ouro Preto, 2001.

O CONVENTO FRANCISCANO DE MARECHAL DEODORO: SANTA MARIA MADALENA. Coleção Grandes Obras e
Intervenções. Org: Ana Cláudia Magalhães, Josemary Ferrare, Maria Angélica da Silva. Brasília: Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2012.

CASIMIRO, Ana Palmira B. S. A Procissão de Cinza dos Terceiros Franciscanos da Bahia, uma expressão religiosa,
pedagógica e barroca no mundo colonial. Campinas/SP: Librum Editora/Navegando Publicações, 2012.

COELHO, Beatriz; QUITES, Maria Regina Emery. Estudo da Escultura Devocional em Madeira. Fino Traço: Belo
Horizonte, 2014.

115
FERRARE, Josemary; MAGALHÃES, Ana Cláudia; SILVA, Maria Angélica (Orgs.). O Convento franciscano de
Marechal Deodoro: Santa Maria Madalena. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
2012. (Coleção Grandes Obras e Intervenções)

FLEXOR, Maria Helena Ochi. Imagens de roca e de vestir na Bahia. In: Revista Ohun. Salvador: UFBA, Ano 2, nº
2, 2005.

FONSECA, Pedro Paulino da. A velha cidade das Alagoas: recordações de suas antigas festas – 1895. In:
Revista do Instituto Histórico e Geográphico de Alagoas, vol. XXII, anos 1942/1943, Maceió, pp. 18-26.

LUZ, Gabriela Carvalho da; GOMES, Paulo. Imagem em Procissão. In: Revista Seminário de História da Arte,
Volume 01, Nº 07, 2018, pp. 22.

JABOATÃO, Frei Antonio de Santa Maria. Novo Orbe Seráfico Brasílico ou Chronica dos Frades Menores da
Província do Brasil, Parte 2ª, Vol. II, Livros I e II, Rio de Janeiro: Typographia Brasiliense de Maximiano Gomes
Ribeiro, 1859.

MAGALHÃES, Ana Cláudia. Igrejas, Conventos, Cemitérios: o lugar dos mortos configurando a paisagem
urbana e arquitetônica da cidade colonial Marechal Deodoro, Alagoas. Tese de Doutorado. FAU/UFAL,
Maceió, 2018.
MACIEL, Pedro Nolasco. Traços e Troças. Crônica Vermelha, leitura quente. Armazém da Cultura: Fortaleza,
2013.

SANTANA, Moacir Medeiros de. O Patrimônio Cultural de Uma Velha Cidade (Marechal Deodoro). Maceió,
1970

116
CONSERVAÇÃO DE “RUÍNA PAISAGÍSTICA": uma reflexão a partir da cerca do
convento franciscano de Olinda
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Mirela Carina Rêgo Duarte


Arquiteta e Urbanista pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Mestra em
Desenvolvimento Urbano na linha de pesquisa Conservação Integrada (MDU-UFPE);
Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo na linha de pesquisa Paisagem e Ambiente (FAU-
USP); Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo e pesquisadora do Laboratório
da Paisagem, ambos da UFPE; mirela.duarte@ufpe.br

O convento franciscano de Olinda remonta ao século 16 e é composto por um espaço construído


associado a um sistema de espaços livres formado por adro, claustro e cerca. Este texto trata da
cerca, uma área vegetada que, tendo perdido sua função produtiva e resguardada pelos muros
do convento, torna-se oculta para a comunidade. Apesar da atual salvaguarda, a situação de
esquecimento e uso interrompido caracteriza este espaço livre como uma “ruína paisagística”
onde opera a força da natureza silva, demandando abordagem específica para se pensar sua
conservação. O presente texto propõe uma reflexão neste sentido, partindo de uma breve
revisão histórica sobre o convento franciscano e sua cerca, desdobrando-se numa discussão
inicial à luz da teoria da conservação.
Palavras-chave: Conservação do patrimônio; cerca conventual; ruína paisagística; convento
franciscano de Olinda.

The Franciscan friary of Olinda dates back to the 16th century and consists of a built space
associated with a system of open spaces formed by churchyard, cloister and enclosure. This text
deals with the enclosure, a vegetated area that, having lost its productive function and protected
by the walls of the friary, becomes hidden from the community. Despite the protection, the
current situation characterizes this open space as a “landscape ruin” where the force of the wild
nature operates, demanding a specific approach to think its conservation. This text proposes an
initial reflection, starting from a brief historical review of the Franciscan friary and its enclosure,
and ending with a discussion through heritage conservation theory.
Keywords: Heritage conservation; Enclosure; landscape ruin; Franciscan friary in Olinda.

117
1 – Introduzindo a questão
Quando caminhamos pelo sítio histórico de Olinda, com os pés nos paralelepípedos das ruas e
os olhos no casario, não imaginamos a existência da natureza densa por trás das pedras, dos
muros. Algumas ladeiras nos encaminham a pontos de mirante de onde nos deparamos com
essa natureza tão bem harmonizada com as edificações. Mas apenas vemos de longe, sem
entender, da linha do chão, onde essa natureza se esconde. Na caminhada, se chegamos aos
adros dos conventos e atravessamos a igreja, e depois o claustro e as dependências internas do
convento, entenderíamos que, em Olinda, parte considerável dessa natureza se esconde atrás
das edificações, nos quintais.
O quintal do convento chama-se “cerca”, um extenso espaço livre cercado pelos muros que
delimitam a propriedade religiosa dentro da cidade e que no período colonial servia à produção
alimentar e medicinal para suprimento dos religiosos. Hoje, destituídas de sua função
primordial, as cercas dos conventos de Olinda encontram-se esquecidas e tomadas pela
vegetação que se desenvolve à revelia da vontade humana, podendo-se afirmar que são estratos
da natureza no sítio histórico reconhecido como patrimônio cultural da humanidade pela
UNESCO. Por um lado, a salvaguarda do sítio em diversas esferas garante uma relativa proteção
das cercas, o que não significa que elas estejam conservadas, mas por outro lado, a perda da
função e o esquecimento conferem às cercas um estado de ruína, que aqui chamamos de “ruína
paisagística”.
Este texto apresenta uma reflexão inicial sobre a conservação de cercas conventuais entendidas
como bens culturais em ruína. Toma-se emprestado a imagem da ruína em Simmel (1998), para
quem o papel da natureza é central na discussão filosófica, e adota-se como recorte a cerca do
convento franciscano de Olinda, o Convento de Nossa Senhora das Neves. Dentre os conventos
de Olinda, este foi o único que incluiu a cerca como parte do conjunto tombado pelo SPHAN
ainda em 1938 (IPHAN, 2013), e foi o primeiro conjunto conventual brasileiro a receber um Plano
Diretor de Conservação, elaborado pelo Centro de Estudos Avançados da Conservação
Integrada, CECI, em 2006. Trata-se, portanto, de um objeto paisagístico que está presente no
Brasil há mais de quatro séculos, com período de ascensão e de declínio, e, ainda assim, é pouco
investigado no campo da conservação e do paisagismo.
Para esta reflexão, o texto se organiza em três partes: inicia com uma breve revisão histórica
sobre os franciscanos e a instalação do convento em Olinda, depois apresenta a situação atual
da cerca do convento e desdobra-se numa discussão inicial à luz da teoria da conservação sobre

118
esse patrimônio esquecido, com uso interrompido, em processo de “ruína paisagística”, sem
apropriação da comunidade, mas que exige conservação.

2 - A cerca como espaço livre utilitário


O conjunto franciscano de Olinda remonta ao século 16 e é composto por um espaço construído,
que inclui as dependências do convento e da ordem terceira, e por um sistema de espaços livres
formado por adro, claustro e cerca (Figura 01). Nesta organização espacial, comum aos
conventos e mosteiros, o adro estabelece a interface entre a edificação e a cidade, sendo de
acesso público. Já o claustro e a cerca são comumente destinados às atividades dos religiosos,
de acesso privado, sendo o claustro cercado pela própria edificação, e a cerca pelos muros da
propriedade religiosa.
Esse tipo arquitetônico e paisagístico se desenvolveu ainda no período medieval, por volta do
século 5, em decorrência do desenvolvimento de um modo de vida monástico nos domínios dos
mosteiros beneditinos, onde a vida estava baseada no isolamento comunitário e na plena
dedicação à religiosidade com ênfase nos trabalhos manuais e no trabalho no campo como
forma de oração (PANZINI, 2013). Do ponto de vista funcional, o princípio do isolamento tornava
necessário o cultivo da terra também para garantir a autossuficiência alimentar e medicinar dos
religiosos, e, por essa razão, desenvolveu-se um programa de necessidades para os espaços
livres das propriedades, que incluía hortas, pomares, herbários, viveiros e os hortus conclusos
ou jardins fechados propícios à meditação, ao descanso e ao estudo (op. cit.). Assim, a cerca
conventual configura-se como uma área ajardinada e de agricultura.

Figura 01: Conjunto Franciscano de Olinda com indicação dos espaços livres associados.

Fonte: Google Earth, 2021, 3D editado pela autora.

119
Convém esclarecer, antes, que diferentes ordens religiosas se desenvolveram a partir de
distintos modos de vida que implicavam distintos modos de habitar o mundo: reunidos em
comunidade nos mosteiros afastados da cidade, mas também sozinhos e isolados em grutas, ou
mesmo itinerantes e mendicantes que percorriam as cidades e buscavam abrigo temporário nos
conventos construídos nas proximidades e até dentro das cidades (SILVA, 2017, 2019a). Este
último, é o caso dos franciscanos nos períodos iniciais de suas atividades ainda por volta do
século 13, muito antes de se estabelecerem no Brasil.
Entretanto, ao chegarem no Brasil, as ordens não encontraram distinções territoriais entre
cidade e campo e acabaram por se igualar quanto ao modo de habitar o (novo) mundo.
Mosteiros e conventos se instalaram onde se fazia necessário, segundo os planos dos donatários
das capitanias, é “a força religiosa e o poder real que vão construindo o território” (SILVA, 2019b,
p. 390), seja materialmente com as edificações religiosas, seja imaterialmente, por exemplo,
com a prática das procissões e da catequização de povos nativos (op. cit.).
Em Olinda, as ordens se instalaram bordeando o núcleo da vila e formando um sistema no qual
os adros eram conectados pelas ruas, enquanto as cercas resguardavam toda a propriedade
religiosa conformando espaços privados vegetados (Figura 02). A disposição das ordens não foi
aleatória, já que respondiam à necessidade da presença da Igreja como braço da coroa
portuguesa em solo brasileiro para civilização dos colonos, controle de conflitos com os povos
nativos e até proteção da vila contra invasões (REIS FILHO, 1968). Além disso, a presença de
diversas ordens em Olinda se deve ao fato de que era a principal vila da capitania, a sede do
poder, onde estava o donatário Duarte Coelho e onde deveria residir o vigário geral, a quem os
vigários das demais capitanias se reportavam. (LOUREIRO, 2019).
Relatos do padre jesuíta Manuel da Nóbrega de 1549, “evidenciam que as ordens religiosas
possuíam determinados critérios para a escolha do sítio” (LOUREIRO, 2019, p.300), atento à
necessidade de se fazer horta na escolha do lugar mais apropriado para o colégio jesuíta de
Salvador: “Está sobre o mar, tem água ao redor do Collegio, e dentro dele tem muito logar para
hortas e pomares” (NÓBREGA, 1988, p.83 apud LOUREIRO, 2019, p.300). No caso dos
franciscanos, que chegaram em Olinda no ano de 1585, a terra foi doada por uma beata viúva e
sem herdeiros, Dona Maria Roza (ALVES, 2017), mas já dispunha da conveniência de ter uma
bica com água para rega das hortas e pomares.
Pesquisas em fontes primárias, até momento, não identificaram relatos específicos sobre o
funcionamento da cerca do convento franciscano de Olinda, como há, por exemplo, sobre as

120
hortas cultivadas na cerca do convento franciscano de Ipojuca: “pela parte de cima corre por
huã levada, que se abrio, outra agoa (água) [...] que nasce ao pé do monte da Povoação da parte
poente, com a qual se rega a horta” (JABOATÃO, 1861, p. 481 apud ALVES, 2017, p. 175); e na
cerca do convento franciscano de Paraguaçu na Bahia: “Hoje apenas vem alguã (água), e pouco
limpa por hum rêgo, que se fez pela terra, e só serve para o cultivo da horta” (JABOATÃO, 1859,
p. 541-542 apud ALVES, 2017, p. 175). Os relatos apontam a função produtiva das cercas, que
eram então espaços livres utilitários.

Figura 02: Indicação na cor verde da cerca do convento franciscano em mapa e vista de Olinda no século
17.

Fonte: Mapa de Olinda do acervo do National Library of the Netherlands. Disponível em:
<https://commons.wikimedia.org/wiki/File:AMH-7285-KB_Map_of_Olinda.jpg> Acessado em 05 mar.
2021. Vista de Olinda publicada por Joannes de Laet. Disponível em:

121
<http://www.mowic.org/images/Cartography%20(2).jpg> Acessado em: 05 mar. 2021. Mapa e vista
adaptados e editados pela autora.

Na Figura 02 é possível perceber como a delimitação das áreas ocupadas pelos conventos é bem
marcada e representada com mancha que indica solo natural em torno da vila. Especialmente
as áreas dos conventos dos jesuítas (B) e dos franciscanos (C) é possível visualizar a clara
delimitação da cerca conventual. Numa carta do padre jesuíta Fernão Cardim em que relata sua
passagem pelo convento dos jesuítas em Olinda em 1583, portanto um pouco antes da
instalação dos franciscanos, vemos uma detalhada descrição das características da cerca:
À tarde fomos merendar à horta, que tem muito grande, e dentro nela um
jardim fechado com muitas ervas cheirosas, e duas ruas de pilares de tijolo
com parreiras, e uma fruta que chama maracujá, sadia, gostosa e refresca
muito o sangue em tempo de calma tem ponta d’azedo, é fruta estimada.
Tem um grande romeiral de que colhem carros de romãs, figueiras de
Portugal e outras frutas da terra. E tanto melões, que não a esgotá-los, com
muitos pepinos e outras boas comodidades. Também tem um poço, fonte e
tanque, ainda que não é necessário para as laranjeiras, porque o céu as rega:
o jardim é o melhor e mais alegre que vi no Brasil, e se estivessem em
Portugal se pudera chamar jardim. (SOUTO MAIOR; DANTAS SILVA, 1993,
p.21 – grifos nossos).

Esse relato indica, para além da função produtiva, a função contemplativa da cerca, e endossa
o programa para as cercas dos mosteiros do período medieval, mencionado por Panzini (2013).
A necessidade de cultivo da terra para sustento dos religiosos instalados no Brasil no período
colonial justifica a função produtiva e, portanto, a utilidade da cerca conventual, enquanto a
própria prática religiosa justifica a função contemplativa, especialmente no caso dos
franciscanos que são reconhecidos pelo amor à natureza instituído a partir de “um modo de
fraternidade não só entre os humanos, mas com os seres do mundo” (SILVA, 2019a, p.150).
É o próprio Francisco de Assis quem institui essa visão de mundo, e deixa registrado no cântico
das criaturas seu louvor ao sol, à lua e às estrelas, ao ar, à água, ao fogo e à Terra “que nos
sustenta e governa, e produz variados frutos, com flores coloridas, e verduras”15. Como reforça
Alves (2017), na cerca do convento franciscano a natureza torna-se alimento, mas ela também
é proteção, funcionando como uma zona de amortecimento para o sagrado em meio ao
profano. Assim, apesar das necessárias incursões dos religiosos nos espaços profanos da vila

15 < https://www.capuchinhos.org/franciscanismo/sao-francisco-de-assis/fontes-franciscanas/cantico-das-
criaturas>

122
colonial, há sempre um espaço sagrado para onde retornar e estar em contato com a natureza,
protegida por muros.

3 - A cerca como espaço livre protegido e esquecido


Do contexto colonial ao contexto contemporâneo, com a laicização da sociedade e o
crescimento das cidades brasileiras, muitas cercas dos conventos sucumbiram tornando-se
parte da malha urbana das cidades. Esse processo não foi exclusivo do Brasil, atingindo
conventos de cidades em outros países, a exemplo do que Silva (2017) apresenta sobre os
conventos franciscanos em Portugal, especialmente os de Lisboa. Entretanto, diferente dessa
realidade, a cerca do convento franciscano de Olinda resistiu por mais de quatro séculos, e hoje
a sua área de aproximadamente 2,5 ha representa mais da metade da área total do conjunto,
segundo levantamento do CECI (2006).
Apesar da resistência, Alves (2017, p. 179-181) demonstra como houve subtrações na área da
cerca em relação ao período colonial, principalmente por conta das construções que hoje se
acomodam entre a faixa de praia e o conjunto franciscano, e entre a cerca jesuíta e a cerca
franciscana (ver na Figura 01). Esse processo dicotômico de resistência e subtração, decorre
também da legislação incidente sobre o sítio histórico de Olinda, e ocorreu ao longo do século
20, demonstrando a “complexidade da gestão da conservação de sítios históricos em situações
marcadas pela escassez de recursos financeiros, humanos e descontinuidade política e
administrativa” (ZANCHETI; MILET, 2006, p. 14).
Do ponto de vista patrimonial, o conjunto franciscano foi tombado como monumento em 1938,
logo após a criação do SPHAN, hoje IPHAN, e inscrito no Livro Belas Artes. Diferente do
tombamento de outros conventos no mesmo período, no do conjunto franciscano foram
incluídos os espaços livres, ou seja, o adro, o claustro e a cerca como partes integrantes do
conjunto protegido. Além da proteção individual do conjunto, todo o Sítio Histórico de Olinda
foi tombado pelo IPHAN em 1968 como “conjunto urbano, paisagístico e arquitetônico”, tendo
seus limites ampliados em 1979, e reconhecido pela UNESCO em 1982 como “patrimônio
cultural da humanidade”.
Segundo levantamento do CECI em 2006, nota-se que foi a partir de 1979 que as legislações
federal e municipal passaram a reforçar a relevância da área vegetada da cerca franciscana e do
seu entorno ao setorizar sua localização como:

123
• Setor C (Área verde de preservação rigorosa); Sub-setor C3 (área especial de
proteção florestal); pela legislação federal na Rerratificação do Polígono de
Tombamento do Município e seu Entorno, por meio da Notificação de nº.
1155/79.
- Determina que as obras ou novas formas de ocupação não impliquem em
alterações de vegetação existente, e não ultrapassem a taxa máxima de
ocupação de 5% da área e gabarito máximo de 01 pavimento.
• Zona de Especial Proteção Cultural (ZEPC1); Setor Verde 1 (SV 1), área de
grande densidade de vegetação e solo virgem que envolvem monumentos
tombados; pela legislação municipal de proteção, Lei n° 4.849/1992.
- Determina, no artigo 26º, que não seja aumentada a taxa de ocupação
existente e que as novas obras não podem ultrapassar 01 pavimento e nem
impliquem em alteração da vegetação existentes.

Além disso, a “Proposta de inscrição na lista do patrimônio mundial apresentada pelo Brasil” à
UNESCO aponta a relevância das cercas dos conventos na conservação da natureza no sítio
histórico quando descreve “a vegetação exuberante [...] dos conventos, com árvores frutíferas
frondosas, mangueiras, fruta-pão, jaca, sapoti e coqueiros conferem ao sítio o valor dominante
de um núcleo urbano emoldurado por uma massa verde” (IPHAN, 1981, s/p).
Mas apesar do reconhecimento, da salvaguarda como patrimônio e da resistência da cerca
franciscana ao longo do tempo, nota-se que a perda da sua função produtiva para a
autossuficiência do convento desencadeou um processo de esquecimento deste espaço livre,
em contraste com a situação da casa conventual franciscana de Olinda, que passou por alguns
restauros ao longo do século 20 (CECI, 2006), mantendo o uso religioso além do educativo e do
turístico incorporados. Sabe-se que os processos de restauração, ao contrário do efeito
desejado, podem contribuir para a descaracterização do bem e desfavorecer seu processo de
conservação. Mas aponta-se que a cerca conventual nem mesmo chegou a ser incluída como
objeto de restauro, havendo, portanto, um natural ofuscamento de vestígios que possam
elucidar sua antiga constituição e encontrando-se hoje em estado de “ruína paisagística”
(Figuras 03 e 04).

124
Figura 03: Trilha aberta em meio à vegetação da Figura 04: Ruína da antiga bica em meio à
cerca do convento franciscano de Olinda. vegetação da cerca do convento franciscano de
Olinda.

Fonte: Edmar Melo / JC Imagem para Jornal do Commercio. Disponível em:


<https://jc.ne10.uol.com.br/canal/cidades/geral/noticia/2014/10/19/bosque-franciscano-aberto-ao-
publico-em-olinda-151561.php> Acesso em 20 de fev. 2021.

Utiliza-se aqui o termo “ruína paisagística” fazendo alusão à ruína arquitetônica, termo mais
comumente empregado para designar edificações que perderam o uso e significativos
elementos da sua estrutura material. Os motivos do incidente definem tipos distintos de ruínas.
Rodrigues (2017) distingue ruínas do tempo, ruínas do incidente e ruínas da incúria. Já De
Martino (2018) discerne entre ruínas de mortes por causa natural, por causa acidental ou dolosa,
e como fenômeno de abandono. Excetuando os casos de arruinamento causado diretamente
pela ação humana, como nos casos de bombardeios em guerras, na maioria dos demais casos,
trata-se de um fenômeno em que a natureza que se impõe à obra humana, num embate entre
a força da natureza e a vontade do espírito, sem que este se sobreponha àquela (SIMMEL, 1998).
Na cerca do convento franciscano de Olinda, o que um dia foi um espaço livre utilitário,
produtivo e contemplativo, onde a obra humana se desenhava por meio de plantio e cultivo,
hoje opera a força de uma natureza silva, sem interferência humana. Na imagem da ruína em
Simmel (1998), a natureza opera como potência formativa e não como força destruidora,
gerando uma nova unidade com significação metafísica além da significação estética própria da
obra humana.
Entende-se que esta nova unidade que aqui denominamos “ruína paisagística” demanda
abordagem específica para se pensar sua conservação do ponto de vista patrimonial. Apesar de
ser um patrimônio já reconhecido enquanto parte do conjunto franciscano, resguardada pelos
muros do convento, além de estar em estado de ruína, torna-se oculto para a comunidade.

125
4 - Reflexões sobre conservação da cerca como “ruína paisagística”
A interrupção ou renovação do uso dos bens é um dos problemas mais constantes na prática de
conservação do patrimônio cultural no Brasil e no mundo. Quando a interrupção de uso
desencadeia um longo processo de esquecimento e consequente processo de ruína do bem,
outro problema se sobrepõe ao problema inicial. Se esse bem em estado de ruína é uma horta,
um pomar, um jardim histórico cuja matéria compositiva é viva, um terceiro problema se junta
aos anteriores. E se desse bem, que é monumento vivo, não se conhece desenho, projeto, relato
histórico que possam guiar as tomadas de decisões no processo de conservação, como no caso
da cerca do convento franciscano de Olinda, tem-se um quarto problema.
O desenvolvimento do Plano Diretor do Conjunto Franciscano de Olinda (CECI, 2006) que pensou
a conservação do bem a longo prazo, apesar de se dirigir mais para o espaço construído do que
para o espaço livre, foi o mais se aproximou de uma tentativa de responder aos problemas
colocados acima. Pontua a necessidade de realização de pesquisa histórica sobre as áreas livres
e aponta diretrizes como conservação do estoque de árvores existentes, replantio a partir da
identificação de espécies em pesquisa histórica e realização de projeto de parque botânico
histórico sobre a cultura de pomares dos franciscanos aberto à visitação pública. Apesar de
parecer coerente, especialmente na tentativa de estreitar relações entre a comunidade e a cerca
a partir de um processo educativo, colocar essas diretrizes em prática não é uma tarefa simples
diante da necessidade de, antes, compreender a significação metafísica e estética dessa nova
unidade a que se refere Simmel (1998).
Falar de significação é reconhecer a dimensão do significado das coisas, que no âmbito do
patrimônio cultural é abordado como significância do bem e incorpora o juízo dos sujeitos. Lira
(2020, p.2) afirma que “a teoria da conservação tem passado por um processo de ampliação do
seu escopo e de amadurecimento que pressupõe a superação de valores absolutos, estando
profundamente vinculada à relação estabelecida entre o sujeito (homem, comunidade) e o
objeto (bem cultural)”. Portanto, significados passados e presentes de um bem definem o
conjunto de valores que determinam a sua significância num processo dialético que considera a
subjetividade do sujeito, ou melhor, a intersubjetividade de diversos sujeitos, pois “os valores
são o fruto de um acordo tácito entre sujeitos para os quais cada objeto significa algo” (MUÑOZ
VIÑAS, 2004, p. 154, apud LIRA, 2020, p. 16).
Mesmo os valores histórico e estético, que podem ser compreendidos como valores intrínsecos
a um bem devido ao tempo e ao fato de ser uma obra de arte, são também atribuídos por

126
sujeitos que podem ser os especialistas. Esses têm um papel importante tanto na construção da
significância cultural como na avaliação das condições de autenticidade e integridade do bem,
“noções com teores técnico e filosófico complexos” (LIRA, 2020, p.17). É a partir dos resultados
desse processo que considera a indissociabilidade entre autenticidade, integridade e
significância que será possível definir as ações de conservação para um bem (LIRA, 2020).
Em relação à cerca do convento dos franciscanos de Olinda, trata-se de um bem patrimonial
paisagístico associado a um bem arquitetônico. Ou seja, monumento arquitetônico e
monumento vivo - para usar o termo da Carta de Florença - formam uma só unidade que tem
dimensão urbanística se considerarmos o sistema formado pelos demais conventos de Olinda.
Segundo Silva (2020), “ao considerarmos a vegetação a principal matéria do jardim histórico, e
sendo ela capaz de transmitir sua imagem, a integridade visual é considerada, até então, a mais
indicada para a verificação e, consequentemente, a conservação da ideia [princípios de
composição] de quem o projetou” (SILVA, 2020, p.29), não sendo tão relevante a autenticidade
da matéria vegetal que, por ser viva, é perecível.
Mas seria possível considerar a cerca do convento franciscano de Olinda como jardim histórico
segundo os termos da Carta de Florença? De que tipo de monumento vivo estamos tratando?
Como encontrar o melhor caminho possível para pensar e praticar a sua conservação?
Na busca de um sentido ontológico do jardim, Serrão (2008) discerne três níveis de relação entre
homem e natureza e, portanto, três possibilidade de compreensão da natureza: 1) a natureza
primeira, silva e inexplorada, perigosa e secreta; 2) O terreno agrícola, trabalhado e útil, que
interpretamos como segunda natureza; 3) o jardim de fruição ou terceira natureza.
Com o levantamento histórico sobre o convento franciscano de Olinda, é possível afirmar que a
cerca acomodou, no período colonial, uma segunda e uma terceira natureza, transformando
uma natureza primeira que os portugueses encontraram no Brasil. Entretanto, com a perda da
função produtiva, a dimensão material do jardim muda de natureza, e o que hoje chamamos de
“ruína paisagística” trata-se do retorno da natureza primeira, mas agora como uma nova
camada no palimpsesto. É esta natureza primeira presente no sítio histórico de Olinda, tão
harmonizada na paisagem a partir dos pontos de mirante, que hoje se configura como bem
cultural a ser conservado. Fica o desafio metodológico de se compreender o significado de
elementos aparentemente estranhos aos sujeitos contemporâneos, habitantes de lugares
urbanos: natureza, ruína e paisagem.

127
Referências
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Dissertação de Mestrado. Programa de pós-graduação em arquitetura e urbanismo/UFAL. Maceió, 2017.

CECI. Plano Diretor do Conjunto Franciscano de Olinda. 2006. Disponível em: <http://www.ct.ceci-
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128
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<https://www.gestaoderestauro.org/textos-para-discussao> Acesso em mar. 2021

129
DESDOBRAMENTOS DO PROCESSO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL
NACIONAL: uma análise sobre o cotidiano vivido no Albergue do Voluntariado - São Luís (MA)
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Maria Cecília Machado Faustino


Tecnóloga em Conservação e Restauro de Bens Imóveis (IFMG) e Mestranda no Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu em Educação; Universidade São Francisco (USF); maria.faustino@usf.edu.br.

Maria de Fátima Guimarães


Graduada em História (UNICAMP), Mestra em Biblioteconomia (PUC-Campinas), Doutora em
Educação (UNICAMP); Universidade São Francisco (USF); fatima.guimaraes@usf.edu.br.

Maria Cristina Rocha Simão


Arquiteta e Mestra em Geografia (UFMG), Doutora em Urbanismo (UFRJ); Instituto Federal de Minas
Gerais (IFMG); cristina.simao@ifmg.edu.br.

Cleonice Aparecida de Souza


Graduada em Biblioteconomia e Mestre em Ciência da Informação (PUC-Campinas), Doutorado em
Educação (UNICAMP); Universidade São Francisco (USF); cleonice.souza@usf.edu.br.

Este artigo indaga as múltiplas sensibilidades envolvidas no reconhecimento social para com o
patrimônio cultural brasileiro institucionalizado, investigando indícios de tensões e conflitos de
interesses. Abordaremos a preservação do patrimônio associada ao exercício da moradia enquanto
demandas de direito e interesse social coletivo. Exploramos a potência de transformação social
atribuída ao patrimônio, compreendido como instrumento na construção e consolidação de valores
por determinados segmentos populares em detrimento de outros, mais vulneráveis, responsáveis por
inúmeras formas de exploração e exclusão social. Apresentamos como estudo de caso o Albergue do
Voluntariado, localizado no Centro Histórico de São Luís do Maranhão, compreendendo a
representatividade do patrimônio como fomento ao exercício cotidiano de resistência aos valores
culturais historicamente impostos e naturalizados em nossa sociedade.
Palavras-chave: Patrimônio Cultural. Reconhecimento Popular. Moradia. Sensibilidades. Valores
Culturais.

This article investigates the multiple sensitivities involved in social recognition towards the
institutionalized Brazilian cultural heritage, investigating signs of tensions and conflicts of interest. We
will address the preservation of heritage associated with the exercise of housing as demands for
collective rights and social interests. We explore the power of social transformation attributed to
heritage, understood as an instrument in the construction and consolidation of values by certain
popular segments to the detriment of others, more vulnerable, responsible for innumerable forms of
exploitation and social exclusion. We present as a case study the Albergue do Voluntariado, located in
the Historic Center of São Luís do Maranhão, comprising the representativeness of the heritage as
fostering the daily exercise of resistance to the cultural values historically imposed and naturalized in
our society.
Keywords: Cultural heritage. Popular Recognition. Home. Sensitivities. Cultural Values.

130
1 - Apresentação
O ponto de partida da presente discussão dá-se a partir de questionamentos relativos às tensões
sociais, disputas simbólicas e conflitos de interesses mobilizados no transcorrer do processo de
identificação, análise e seleção do patrimônio cultural brasileiro. Entendemos que seja necessário um
olhar crítico sobre as questões que norteiam tal processo e garantem a preservação de determinados
bens e a degradação de outros.
Baseando-se em teorias contemporâneas do campo da preservação cultural, entendemos que o
processo de patrimonialização de um bem deve considerar, para além de sua materialidade e
características histórico-artísticas, sua inserção significativa no cotidiano da população, levando-se em
conta as sociabilidades, sensibilidades e memórias que sua fruição conecta junto aos diferentes
segmentos sociais, tomando-se por pressuposto que a valorização de um patrimônio se constitui no
processo diário e permanente de sua ressignificação social (VIÑAS, 2004).
O conceito de patrimônio cultural, assim como qualquer outro, acolheu e ainda acolhe algumas
divergências e modificações no âmbito de seu significado e implicações sociais, dado que todo e
qualquer conceito é datado historicamente e traz as marcas do lugar social daquele que o enuncia ou
problematiza. Nesta perspectiva, tomamos como base as definições do patrimônio brasileiro sob o
ponto de vista legislativo1, compreendendo o papel desse processo histórico na implementação das
ações e ideais preservacionistas em território nacional.
Optamos por organizar nosso artigo em 6 tópicos distintos, investigando o quanto as relações desiguais
que envolveram o processo de seleção do patrimônio brasileiro denunciam o silêncio do patrimônio
institucionalizado frente aos anseios e demandas sociais. A título de exemplificação, será exposto,
brevemente, o caso do Albergue do Voluntariado, localizado na cidade de São Luís, capital do estado
do Maranhão, que relaciona a conservação de edifícios de relevância cultural nacional ao
reconhecimento e apropriação popular. Dessa forma, aliamos teoria e empiria para que, por fim, seja
realizada uma análise fundamentada em um caso concreto.

1
O art. 1 do Decreto-Lei 25/1937 (BRASIL, 1937) caracteriza e denomina o patrimônio brasileiro de acordo com
seus aspectos históricos e artísticos, noção essa ampliada no art. 216 da Constituição Federal de 1988, que atribui
ao patrimônio um caráter mais abrangente de acordo com uma dada carga cultural, considerando “[...] os bens
de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira [...]” (BRASIL, 1988).

131
2 - A conformação da imagem do patrimônio cultural nacional e a ineficácia das leis de proteção
A par de tais ideias, chamamos a atenção para o processo de identificação, análise e seleção do
patrimônio histórico e artístico, que se deu em um momento de agitação da cena cultural brasileira
pelo movimento modernista, baseando-se, sobretudo, na tipologia colonial portuguesa. É neste
mesmo momento em que, para viabilizar tais anseios preservacionistas, o grupo modernista cria o
Serviço do Patrimônio Histórico Nacional (SPHAN) com o intuito de promover “[...] em todo o País e
de modo permanente, o tombamento, a conservação, o enriquecimento e o conhecimento do
patrimônio histórico e artístico nacional” (BRASIL, 1937, art. 46).
Conforme citado anteriormente, os conceitos referentes ao patrimônio foram submetidos, desde a
publicação do Decreto-lei nº 25 de 1937 até a Constituição Federal de 1988, até hoje vigente, a
importantes reformulações normativas; sendo que a última amplia a responsabilidade da proteção
dos bens culturais do âmbito exclusivamente federal para uma esfera de participação social nos
processos decisivos.
Apesar de representar grande avanço do ponto de vista da valorização do reconhecimento social
para com o patrimônio, na prática, as políticas públicas preservacionistas ainda são baseadas em
um modelo que é resultado de décadas de práticas pautadas, principalmente, na materialidade e
imobilidade dos bens. Ou seja, os instrumentos vigentes até os dias de hoje no processo de
proteção do acervo de interesse cultural baseiam-se na autonomia de decisão do Estado na
patrimonialização dos bens.
É a partir dessa ideia que introduzimos a problemática do grande número de imóveis tombados ou
alvo de interesse histórico e cultural abandonados e, até mesmo, em estado de ruína no cenário
nacional - em especial aqueles localizados nos grandes centros urbanos e capitais do país. Ora, se
esse é o cenário atual, qual o nível de efetividade dos meios e instrumentos legais referentes à
proteção do patrimônio cultural? E, mais que isso, existem outras possibilidades ou meios de
preservação do patrimônio?

3 - O Albergue do Voluntariado - São Luís (MA)


Concomitante à problemática dos imóveis abandonados, observamos o número expressivo de
cidadãos sem acesso à moradia adequada, denunciando uma realidade do crescente quadro do
déficit habitacional do Brasil. Nossa intenção é integrar duas demandas de interesse social coletivo,
que, além de apresentarem-se como direitos sociais fundamentais do cidadão, materializam-se a
partir da ineficácia de políticas públicas no âmbito habitacional e patrimonial.

132
Dentre os complexos aspectos que envolvem essa discussão, perpassando por questões de natureza
burocrática, política e econômica, focalizamos uma análise que privilegia o ponto de vista das
relações sociais desiguais que se instauram na identificação ou não de um bem digno de ser
tombado, compreendendo sua posição nos conflitos de interesses existentes no meio urbano.
O estudo de caso escolhido refere-se a um imóvel localizado no Beco da Pacotilha, nº 36,
popularmente conhecido como Albergue do Voluntariado, no centro histórico de São Luís, capital
do estado do Maranhão. Foram vários os imóveis contemplados pelo tombamento a nível federal
entre as décadas de 1940 e 1960 naquela região e, com o tombamento federal de seu Conjunto
Arquitetônico e Paisagístico no ano de 1974, foram desenvolvidas iniciativas visando a elaboração
de estudos e projetos envolvendo pautas como a preservação e revitalização dos bens tombados.
Nesse contexto, também se popularizaram debates que propunham a revitalização do centro
histórico da cidade. A partir do Programa de Preservação e Revitalização do Centro Histórico de São
Luís (PPRCHSL), que buscava o desenvolvimento das primeiras ações preservacionistas e de
adequação dos bens e do conjunto tombado, em geral, à dinâmica da cidade urbana, foram
propostas
[...] a manutenção do uso residencial nas áreas do Centro Histórico;
intensificar a diversidade de usos; incentivar as manifestações culturais e
educacionais; restaurar e preservar o Patrimônio Arquitetônico e Ambiental
Urbano do Centro Histórico; promover a revitalização econômica do comércio
varejista; adequar as redes de utilidades, serviços e logradouro; dinamizar as
atividades portuárias tradicionais; garantir um processo permanente de
avaliação crítica do Programa de Preservação e Revitalização do Centro
Histórico de São Luís e assegurar o compromisso político da administração
pública quanto à inclusão dos temas relativos à restauração e à conservação
dos bens culturais no plano de Governo Estadual e Municipal. (GONÇALVES,
2006, p. 41).

O programa visava, principalmente, a fixação da população de baixa renda residente no Centro


Histórico de São Luís, incentivando o uso habitacional de imóveis subutilizados e em estado precário
de conservação.
O intuito principal do projeto foi abrir perspectivas para a realização de um
intensivo programa de habitação capaz de garantir a recuperação de dezenas
de sobrados para fins residenciais e, ao mesmo tempo, promover a elevação
do padrão de qualidade de vida de algumas famílias residentes no Centro
Histórico de São Luís. (GONÇALVES, 2006, p. 42)

Chamamos a atenção para o Projeto Piloto de Habitação, que ocorreu entre os anos de 1991 e 1994,
primeira ação que buscou integrar essas questões de forma prática. Tal projeto não buscava alterar

133
os hábitos dos moradores, mas o sucesso de sua realização era primordial para que futuras ações
no mesmo âmbito fossem desenvolvidas.
Cerca de uma década depois, no ano de 2006, o imóvel encontrava-se em “péssimo estado de
conservação, principalmente na parte interna da edificação” (GONÇALVES, 2006, p. 43). De acordo
com GONÇALVES, 2006, esse resultado deu-se pelo fato do projeto não ter promovido a diversidade
de uso e, através de entrevistas com os moradores, concluiu-se que as famílias que abrigavam o
imóvel não tinham renda o suficiente para realizarem as manutenções necessárias ao
funcionamento e integridade do edifício e, muito menos, amparo e fiscalização pelo poder público,
responsável pela realização do projeto.

4 - A função social da propriedade e a preservação do patrimônio como direitos fundamentais do


cidadão
Quando falamos de uma certa função social que toda propriedade deve cumprir, aliada à questão
da preservação do patrimônio como aspectos que compõem o feixe dos direitos fundamentais do
cidadão, é preciso que sejam retomadas questões de natureza jurídicas.
Toda propriedade, seja ela de posse pública ou privada, está diretamente vinculada à sua função
social - elemento intrínseco ao exercício da propriedade. Isso porque a Constituição de 1988
assegura que todo cidadão tem garantia ao direito da propriedade e que, essa propriedade, deve
cumprir sua função social (artigo 5º, inc. XXII).
Através da manutenção de interesses públicos e coletivos, o conceito de função social, assegurado
juridicamente inclusive por legislações posteriores2, pretende o bem-estar e a existência digna dos
habitantes diante da problemática da propriedade. Compreende-se, então, que a propriedade deve
beneficiar todos aqueles que integram a sociedade e não somente o proprietário em si.
A Constituição Federal de 1988, ao definir o patrimônio nacional, acrescenta ainda que “a proteção
ao patrimônio cultural [está] dentre as limitações ao exercício do direito de propriedade, tutelando
coletivos dignos de proteção e efetivando o princípio constitucional da função social da
propriedade” (LEÃO, 2016, n.p).
É nesse momento que integramos a questão da preservação do patrimônio cultural à função social
dos imóveis tombados ou de relevância cultural. Ou seja, a partir do momento em que

2
A ideia da função social está presente no Estatuto da Cidade quando “estabelece normas de ordem pública e
interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo” (BRASIL, 2001).

134
consideramos a preservação do patrimônio como uma manifestação do direito coletivo ao passado
e à memória, o Poder Público restringe a propriedade ao abandono de seu caráter individual, de
modo que possa adequar-se à questões comunitárias, exercendo sua funcionalidade social.
Ao retomar o fato de que a “[..] moradia e preservação do patrimônio são direitos sociais
fundamentais, partícipes do feixe de direitos que compõem o direito à cidade” (SIMÃO, 2016, p.
32), defendemos que a aliança entre as esferas da proteção ao patrimônio e do planejamento
urbano social possa abrir caminhos ao cumprimento da função social de propriedades de relevância
cultural ao considerar e atribuir relevância a duas questões de valor coletivo e legislativo.
Embora o nosso foco de análise esteja nas relações sociais desenvolvidas para com o patrimônio, é
de extrema importância que sinalizemos o papel fundamental do Poder Público na manutenção e
incentivo à preservação dos bens. Contudo, buscamos trilhar caminhos em que possamos criar
alternativas a essas questões de forma mais independente e coletiva.

5 - Desdobramentos de um processo histórico na vivência cotidiana


Enxergamos a presente discussão como um motor de múltiplos interesses: ao mesmo tempo que
pensamos propostas relacionadas à conservação do patrimônio, buscamos, também, possíveis
soluções que possam, no mínimo, amenizar a problemática da desigualdade habitacional.
Apropriando-se do caso do Albergue do Voluntariado em analogia às ideias apresentadas por Milton
Santos (2012) em relação ao espaço banal, que é de direito a todos, lidamos com a edificação
estudada enquanto direito à preservação e funcionalidade social, questionando a relação entre as
significações que foram desencadeadas ao longo da história com o atual processo de vivência
cotidiana.
As relações desiguais presentes no processo de escolha e institucionalização do patrimônio, isolado
dos anseios e valores da população, resulta em uma relação igualmente desigual e conflituosa do
ponto de vista do reconhecimento popular para com esse patrimônio. Ao situar o estado precário
de conservação do imóvel, resultado de anos de abandono, é possível rastrear algumas formas de
silenciamento tanto provindas da esfera popular quanto da esfera do poder público enquanto
legalmente responsável por sua seleção e proteção.
Quando a representação do patrimônio não é confrontada por uma memória conflituosa, não
compreende-se que ele é fruto desses vários conflitos. Ao ignorar a importância de mantê-los vivos
no nosso presente, tais conflitos desaparecem de nossa memória, e o patrimônio, da forma que é

135
organizado, se transforma, cada vez mais, em um patrimônio consensual que nem nos representa
nem nos faz pensar sobre as mazelas sociais existentes até os dias de hoje (RIBEIRO, SIMÃO, 2009).
Ao entender essa essência conflituosa, torna-se possível interpretar os “[...] esquecimentos,
omissões, os trechos desfiados de narrativa [como] exemplos significativos de como se deu a
incidência do fato histórico no quotidiano das pessoas” (BOSI, 2003, p.18), que se reverberam no
presente.
Diante desse contexto, fica clara a inconsistência da atuação do poder público na proteção dos bens
tombados, denunciando a desproporcionalidade prática dos instrumentos legais responsáveis em
relação à onda de patrimonialização dos bens culturais nacionais. Pensamos nessa questão, ainda,
a partir de dois vieses: mesmo que o tombamento tenha contribuído para a manutenção da
existência desse bem, seu processo de seleção, que deu-se de forma excludente, criou um objeto
idealizado, desconsiderando a história local e afastando a população de seus valores.
Consideramos essa questão como uma importante influência na preservação patrimonial ao
compreender que a salvaguarda de bens históricos e de relevância cultural origina-se da relação
afetiva que as pessoas mantém com os objetos ou espaços (Parschen, 2017), entendendo ainda que
“a perspectiva da preservação é invertida, ou seja, é a partir do olhar dos sujeitos que se justifica a
permanência dos bens” (SIMÃO, 2016, p. 46).
Além da problemática da preservação, o conjunto dos desdobramentos do processo histórico
reflete, ainda, questões que contribuem para a desigualdade habitacional ao considerarmos que
essas questões levaram o imóvel a não cumprir sua função social. Compreendemos, nesse sentido,
que o reconhecimento e a preservação do patrimônio poderiam ser capazes de sanar tal defasagem.
O silêncio do poder público e dos agentes responsáveis pela proteção do patrimônio fica ainda mais
evidente quando nos deparamos com o insucesso do projeto de revitalização habitacional do
imóvel. Considerando que a população alvo do projeto não dispõe nem de orientações nem de
demais recursos que possibilitem a manutenção da integridade do imóvel, o auxílio legal e
financeiro por parte dos gestores e poderes públicos responsáveis assume não apenas um caráter
essencial, mas de obrigatoriedade perante a dívida histórica decorrente do processo de segregação
social.

6 - Caminhos possíveis para a preservação de um patrimônio cultural brasileiro representativo


Diante desse cenário,
[...] coloca-se o desafio intelectual e político de como lidar com a memória
social e com o patrimônio cultural. Sabemos desde Halbwachs (1976) a

136
importância da organização social do espaço e dos lugares de memória para
a construção e a dinâmica de identidades individuais e sociais. (VELHO, 2006,
p. 244)

Além da reestruturação das políticas públicas preservacionistas consolidadas visando um cenário


de adequação dos bens tombados à realidade contemporânea, associados à heterogeneidade e
complexidade da vida social, pensamos em formas alternativas de potencializar a preservação do
patrimônio a partir do reconhecimento popular.
Ao compreender determinado patrimônio cultural enquanto representante das diversas identidades
e memórias, perpassando pelo olhar e vivência da população que o usufrui, a presente investigação
está vinculada às sensibilidades de segmentos populares, o que pode possibilitar o rastreamento de
valores e relações existentes em determinado segmento social para com o patrimônio e as questões
urbanas.
Compreender a preservação do patrimônio e da memória como um exercício contínuo e cotidiano
implica o reforço dos valores individuais ou coletivos locais em contrapartida aos valores culturais
historicamente impostos e, até então, sacralizados. Propomos que esse exercício possa ser pautado
na educação patrimonial enquanto instrumento de desconstrução do patrimônio cultural incutido no
imaginário popular; em conjunto com uma dada educação das sensibilidades (GUIMARÃES, 2013), ao
questionar o que distingue a cultura letrada e escolarizada da cultura marcada pela oralidade em
termos de aprendizagem e, ainda, quais os sentidos envolvidos na valorização de um dado repertório
de bens e práticas culturais em detrimento a outros.
São essas as questões, que na maioria das vezes se dão de forma oculta, que pretendemos
desnaturalizar e evidenciar a partir dessa discussão. O espaço urbano é submetido à imposição de
consensos sociais, nos quais a existência de conflitos é rejeitada e, até mesmo, encoberta. Entendemos
que assumir a cidade e o patrimônio cultural enquanto produtos e produtores de disputas, tensões e
conflitos sociais, é parte fundamental do processo de construção e busca pelo comprometimento com
a representatividade identitária e cultural de grupos sociais menos valorizados e privilegiados.

Referências
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estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Brasília, Câmara dos Deputados,
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BRASIL. Decreto-Lei nº25, de 30 de novembro de 1937 – Organiza a proteção do patrimônio histórico e


artístico nacional.

137
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:
Senado Federal: Centro Gráfico, 1988, 1ª edição.

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138
DO RECÔNCAVO BAIANO AO BARRACÃO DO NÚCLEO DE ARTES AFRO-BRASILEIRAS DA
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO: os Encontros de Artes Afro-brasileiras: percorrendo políticas
institucionais e vivências entre famílias
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Eliany Cristina Ortiz Funari


Doutoranda em História Social; Universidade de São Paulo; eliany.funari@usp.br

Apresentamos uma leitura dos Encontros de Artes Afro-brasileiras, promovido pelo Núcleo de Artes
Afro-brasileiras da Universidade de São Paulo, sob uma perspectiva que recompõe historicamente seu
contexto de criação erigido sobre a história de migrações e trânsitos culturais envolvendo um
contramestre de capoeira angola, Mestre Pinguim, seu Mestre e seu Grupo de Capoeira Angola
Guerreiros de Senzala. Histórias que fazem emergir trocas com mestres e mestras da capoeira, do
maculelê, do samba de roda da região do Recôncavo Baiano. Partindo dessas subjetividades históricas
que conferem certa “identidade” ao evento seguimos um fluxo interpretativo que o conecta com uma
atmosfera das festas populares como experiência epistêmica de trocas de saberes, partilha e
renovação de laços.
Palavras-chave: Encontros de Artes Afro-Brasileiras; Recôncavo Baiano; capoeira angola; samba de
roda; patrimônio.

We present the cultural event called Encontros de Artes Afro-brasileiras, carried out by the Afro-
Brazilian Arts Center of the University of São Paulo, by elaborating its context of creation in a historical
perspective involving migration histories of a Capoeira Master called Pinguim, his Master and his
Capoeira Angola Group called Guerreiros de Senzala. These histories also emerge from a cultural
interchange with local masters of capoeira, maculelê, samba de roda, from communities known as
Recôncavo Baiano. By considering these historical subjectivities that in a certain way provides an
identity to the Encontros de Artes Afro-brasileiras we connect our interpretation of this cultural event
with the atmosphere of popular feasts as epistemic experience of exchanging and sharing knowledge
and renewing ties.
Keywords: Encontros de Artes Afro-Brasileiras; Recôncavo Baiano; capoeira angola; samba de roda;
heritage.

139
1 - Introdução
A história da diáspora africana no Brasil contempla também os processos migratórios em massa
envolvendo o eixo nordeste-sudeste do país. Dessas migrações surgem encontros que marcam a cena
cultural negra em São Paulo e criam novos “braços de rio”, conectando regiões e pessoas. É nesse
movimento de fluxo e contrafluxo de repertórios culturais que surge a relação entre um mestre de
capoeira angola e seu discípulo, respectivamente Mestre Gato Preto e Mestre Pinguim1.
Ambos nascidos no estado da Bahia, se mudaram para São Paulo na segunda metade do século XX,
cidade onde se conheceram e estabeleceram uma relação de ensino-aprendizagem de capoeira
angola. Foi por meio da capoeira que Mestre Pinguim se estabeleceu na Universidade de São Paulo
com seu Grupo de Capoeira Angola Guerreiros de Senzala 2, ainda que sem vínculo formal, dando aulas
desde 1997. É a partir dessa história de trânsitos nacionais de reminiscências africanas que surge o
evento Encontros de Artes Afro-brasileiras, que acontece no Núcleo de Artes Afro-brasileiras da
Universidade de São Paulo.
A partir do microcosmo do evento buscaremos localizar as diferentes camadas de relações entre os
agentes da cultura e agentes institucionais investigando possíveis pontos de contato entre políticas
patrimoniais para registro/tombamento do Samba de Roda do Recôncavo Baiano e os Encontros de
Artes Afro-brasileiras. Ao observar as quatro edições desse evento como quem olha uma “fotografia”,
nosso método de análise parte de questionar quem são aquelas pessoas que integram a paisagem dos
Encontros de Artes Afro-Brasileiras e como chegaram até ali. Observada essa “fotografia” em seus
detalhes interessa-nos destrinchar as histórias de seus personagens e os caminhos pelos quais eles
estabeleceram relações nas esferas pessoais e institucionais, angariando elementos para uma possível
cartografia dos Encontros de Artes Afro-Brasileiras envolvendo a cidade de São Paulo e o Estado da
Bahia.3

1
Luiz Antonio Nascimento Cardoso, conhecido como Mestre Pinguim, recebeu o certificado de Contramestre
de Capoeira Angola em 2001 pelas mãos de Mestre Gato Preto. Por ser considerado Mestre por alunos/as,
apoiadores/as e inclusive por Mestres e Mestras do Recôncavo Baiano, o chamaremos de Mestre Pinguim.
2
O Grupo de Capoeira Angola Guerreiros de Senzala foi fundado por Mestre Pinguim no bairro Jardim D´Abril,
zona oeste de São Paulo. Posteriormente o Grupo integrou seus alunos de capoeira do Sesc Ipiranga, na década
de 1990, quando já era discípulo de Mestre Gato Preto, e também alunos da Universidade de São Paulo e
comunidade externa à USP.
3
Consideramos importante situar no texto a informação de que a autora é membro do Grupo de Capoeira
Angola Guerreiros de Senzala e como tal tem participado na organização dos Encontros de Artes Afro-
Brasileiras. Fala-se, portanto, do lugar de quem vivenciou o evento e a produção em suas quatro edições. Ao
assumir essa subjetividade trazemos à análise também a dimensão política que permeia os discursos das
pesquisas etnográficas e históricas quando pensamos a relação pesquisador/pesquisado (FERNANDES, 2020).

140
Fontes documentais como cartazes, documentos administrativos da Universidade, reportagens,
correspondências mostram que a primeira edição dos Encontros de Artes Afro-brasileiras data de
2012, e desde então está em sua quarta edição, trazendo os seguintes temas: Tradições Orais e Artes
Corporais (2012), Iê, Viva meu Mestre! (2015), Educação e Saberes Tradicionais (2017) e Diversidade
e Resistência Cultural do Recôncavo (2019). O evento testemunha esse trânsito de repertórios culturais
que Diana Taylor chama de saberes incorporados (TAYLOR, 2013), pelo qual manifestações
consideradas patrimônios culturais imateriais, como o samba de roda e a capoeira angola 4, podem ser
vistas como epistemes criadas e recriadas no corpo por meio da ação e repetição.

2 - Mestre Pinguim, Mestre Gato Preto e os Guerreiros de Senzala: o tripé de uma Extensão
Universitária na USP
Natural de Salvador, Bahia, Mestre Pinguim migrou com a família para São Paulo, cidade onde
conheceu Mestre Gato Preto quando trabalhava na Cia. de Dança Batá Kotô na década de 1990. Foi
discípulo de Mestre Gato na prática de capoeira angola, apesar de já ter se iniciado na capoeira
anteriormente com Mestre Pato. Formado Contramestre de capoeira angola por Mestre Gato Preto
em janeiro de 2001, na cidade de Salvador, bairro do Engenho Velho da Federação, Mestre Pinguim
ensina capoeira na Universidade de São Paulo desde 1997, sem vínculo formal, vivenciando situações
de vulnerabilidade que vão desde as barreiras sociais e raciais de acesso às dependências da
Universidade à constante possibilidade de perda do seu local de trabalho, visto que se trata de uma
Ocupação de um barracão abandonado no campus da Universidade5. As alianças estabelecidas com
alunos(as) e docentes da Instituição fortaleceram a permanência de Mestre Pinguim e de seu Grupo
Guerreiros de Senzala na Ocupação, por meio da criação do Núcleo de Artes Afro-Brasileiras da USP
em 20076, que veio a ser as vestes institucionais desse trabalho na Universidade para fins de evitar o

4
O Samba de Roda do Recôncavo Baiano foi reconhecido pela UNESCO como Obras-Primas do Patrimônio Oral
e Imaterial da Humanidade em 2005. Em 2008, a roda de capoeira foi inscrita no Livro de Registro das Formas
de Expressão do IPHAN e o ofício de mestre de capoeira inscrito no Livro de Registro de Saberes. A capoeira foi
reconhecida como patrimônio mundial pela UNESCO, em 2014.
5
Sua permanência na Universidade de São Paulo há pelo menos 20 anos nessa condição tem sido possível,
entre outras coisas, pela potencialidade de seu trabalho em desdobrar-se não só em atividades que na
argumentação com a Universidade são chamados de cursos de difusão cultural (capoeira, maculelê, dança afro,
percussão), mas também em campo de estudo para a produção científica de pesquisadores acadêmicos e
experimentações artísticas. Uma lista de produções científicas de alunos e alunas do Núcleo de Artes Afro-
brasileiras pode ser acessada em https://sites.usp.br/nucleoartesafrobrasileiras/pesquisas/ Acesso em
22.02.2021.
6
Resolução nº 5418, de 31 de outubro de 2007, publicado no Diário Oficial do Estado em 07/11/2007, dispõe
sobre a criação do Núcleo de Artes Afro-brasileiras.

141
despejo. Nesse sentido, a criação do Núcleo de Artes Afro-Brasileiras alivia parcialmente as tensões
envolvendo a Ocupação do Grupo Guerreiros de Senzala e a gestão administrativa da Universidade.
Conhecer a origem de Mestre Gato Preto é fundamental para se compreender a relação de Mestre
Pinguim e dos Guerreiros de Senzala em São Paulo com famílias no Recôncavo Baiano. Nascido em
Santo Amaro, município que integra a região do Recôncavo Baiano, Mestre Gato começou a aprender
capoeira desde os oito anos de idade com seu pai Eutique, depois com seu tio João Catarino, e também
com Mestre Leó7. Mudou-se para Salvador, onde treinou capoeira com Mestre Cobrinha Verde, Mestre
Waldemar e foi responsável pela bateria na Academia de Mestre Pastinha. Viajou à África em 1966
como integrante da Delegação do Brasil para o Primeiro Encontro de Arte Negra de Dakar, Senegal, e
como mestre de capoeira também atuou na cidade de São Paulo, retornando a Salvador onde faleceu
em 2002.
Vale dizer que nossa compreensão de Recôncavo Baiano, para além de sua localização física na baía
de Todos os Santos, dialoga com a visão apresentada no Dossiê do Samba de Roda do IPHAN, onde o
Recôncavo configura também um conceito histórico que nasce das relações impostas pelo sistema
escravista, integrando municípios pelas relações econômicas e relações culturais das populações
locais, predominantemente negras. “Por isso, trata-se de uma unidade regional que foi concebida e é
situada por dentro da história dos engenhos de cana, da escravidão e da indústria açucareira no Brasil”
(DPI/IPHAN, 2006, p.25). 8
No final da década de 1990, Mestre Pinguim inicia um processo que ele chama de “reimigração” ao
buscar o reencontro com familiares na Bahia. Durante essas viagens, reforçava o vínculo mestre-
discípulo com Mestre Gato Preto, a quem visitava durante as férias de fim de ano com seus alunos(as).
Em entrevista, Mestre Pinguim fala sobre Mestre Gato Preto como uma figura paterna
Não sei, ele foi um pai que eu não tive. Ele não foi só um mestre, Mestre Gato foi
uma pessoa que eu tive uma relação... que eu ia pra casa, me levou, me mostrou as
coisa que ... essa coisa que minha mãe contou aí, eu não sabia, me mostrou uma
coisa que eu não sabia, “Pinguim você é um baiano criado em São Paulo, não sabe
das suas origem. Você é um baiano criado em São Paulo, não sabe onde você está”.9

A ideia de “ser um baiano criado em São Paulo” reaparece na fala de Mestre Gato Preto durante uma
visita aos local de treino dos Guerreiros de Senzala na Universidade de São Paulo

7
Entrevista “Mestre Gato Preto, a voz da experiência”, em Revista Capoeira. Arte e Luta Brasileira. Ano II #4.
8
Acrescentaríamos também a essa localização histórica do conceito de Recôncavo pela perspectiva dos
sistemas de trabalho, a interação da população local com a faixa litorânea da região como sustento por meio
da pesca e mariscagem e a produção de fumo.
9
Entrevista de Mestre Pinguim para o Documentário Trabalho de Mestre. O Ensinar de Mestre Pinguim. 2015.

142
Colônia, Aliança, Usina Santa Elisa, São Bento de Inhatá, Muraê, Banga,
Capanema, São Braz, Santo Amaro, Acupe, Vila de São Francisco, Saubara,
Itapema... cê cair dentro daquela região toda ali (...) cê aprende mesmo,
aprende sim. Agora ficar aqui só fazendo esses cursos, tudo bem faz com
Pinguim, cinco, seis anos... Cê pensa que sabe de capoeira, não sabe não.
Você é observador da capoeira, não é capoeirista.10

Registros fotográficos e audiovisuais mostram que Mestre Pinguim e seu Grupo percorreram as
cidades de Salvador e Santo Amaro na companhia de Mestre Gato Preto. Em Salvador visitaram a roda
de capoeira de fim de ano do Pelourinho, o Zoogodô Bogum Malê Rundó (Terreiro do Bogum, onde
alguns alunos iniciaram vínculos religiosos), o bairro da Liberdade a Associação Brasileira de Capoeira
Angola, e a própria casa de Mestre Gato Preto, onde praticavam canto e berimbau e se almoçava em
família. Em Santo Amaro, conheciam pontos de referência da cidade, ao mesmo tempo em que
também eram levados a lugares mais afastados do círculo central, como o atual Ilê Axé Yá Omin
(terreiro de Mãe Edinha)11, o mangue do vilarejo de São Braz e as casas de alguns moradores da
comunidade. Entre essas visitações pela Bahia, Mestre Gato apresentou os Guerreiros de Senzala a
seu filho mais velho, hoje conhecido como Mestre Góes, com quem Mestre Pinguim e seus alunos e
alunas mantiveram contato para aprendizado após o falecimento de Mestre Gato Preto, e que
desempenhou um papel relevante para a criação dos Encontros de Artes Afro-Brasileiras da USP.

3 - O Registro do Samba de Roda do Recôncavo Baiano e a criação da Associação de Sambadores e


Sambadeiras do Estado da Bahia
O samba de roda do Recôncavo Baiano foi inscrito no Livro de Registro das Formas de Expressão do
Instituto Patrimônio Histórico e Artístico (IPHAN) em 2004 e reconhecido pela UNESCO como Obras-
Primas do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade em 2005. A pesquisa que fundamentou o
registro do Samba de Roda do Recôncavo Baiano no Livro de Registro das Formas de Expressão do
IPHAN foi conduzida por uma equipe de duas etnomusicólogas, um antropólogo, uma pesquisadora
em dança e um documentarista, todos docentes universitários, gerando um Dossiê 12. Como

10
Relato informal de Mestre Gato Preto final da década de 1990, exibido no Documentário 15 Anos de Senzala
(os cinco primeiros lugares com áudio prejudicado). Nesse trecho Mestre Gato cita o nome de algumas
localidades do Recôncavo Baiano, dentre as quais ele menciona o nome de usinas, como “Colônia”, “Aliança”
“Santa Elisa”, onde podemos ver um diálogo com a ideia de Recôncavo Baiano como um conceito
historicamente marcado pela produção açucareira.
11
Edna Maria Santana, yalorixá conhecida como Mãe Edinha, é, por parte da família materna, irmã de Mestre
Góes, filho de Mestre Gato Preto.
12
DPI/IPHAN. Samba de Roda do Recôncavo Baiano. Brasília, DF: IPHAN, 2006. Dossiê 04.

143
desdobramento foi criado o Plano de Salvaguarda do Samba de Roda cuja ação inicial foi viabilizar a
criação do que veio a ser a Associação dos Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia (ASSEBA)
em 2005, e a instalação de sua sede, a Casa do Samba de Santo Amaro, em 2006.
Documentos em processos administrativos da Universidade indicam que pelo menos desde 2009 há
uma aproximação institucional entre o Núcleo de Artes Afro-Brasileiras da USP e a Associação de
Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia visando parcerias entre ambas as instituições 13. No
entanto, essas trocas institucionais ganham força quando o filho mais velho de Mestre Gato Preto,
Mestre Góes, passa a exercer função administrativa na Casa do Samba de Santo Amaro. A figura de
Mestre Góes acaba sendo uma ponte entre os Guerreiros de Senzala e os mestres e mestras do Samba
de Roda da região. Góes esteve presente em todas as edições dos Encontros de Artes Afro-Brasileiras,
sendo que nos anos de 2012 e 2017 participou diretamente na seleção sambadores e sambadeiras que
estiveram presentes no evento. Para além do universo da capoeira angola santoamarense apresentada
por Mestre Gato Preto, esses novos contatos com o universo do samba de roda deram amplitude a
trabalho de Mestre Pinguim na Universidade.
Em 2012, o Núcleo de Artes Afro-brasileiras foi contemplado em dois editais de fomento da
Universidade de São Paulo 14 que proporcionaram o aprofundamento dessas relações com as
comunidades de Santo Amaro, pois ambos previam a pesquisa de campo no Recôncavo Baiano. Nesse
período formaliza-se um trabalho parceiro entre Núcleo de Artes Afro-brasileiras da USP e a Associação
de Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia (ASSEBA), como mostra trecho do projeto
Laboratório de Dança Cacimba de Aruanda.
Considerando que o edital ao qual submetemos este projeto propõe apoiar
financeiramente ações de intercâmbio nas áreas de cultura e extensão, e
considerando ainda que a equipe proponente já vem realizando viagens de campo
ao Recôncavo Baiano, optou-se por desenvolver o projeto em parceria com uma das
instituições mais representativas da tradição afro-brasileira dessa região: a
Associação dos Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia (ASSEBA) 15.

13
Ofício nº 64/2009/ASSEBA, de 10 de julho de 2009, assinado pela coordenação geral da ASSEBA, na figura de
Rosildo Moreira do Rosário.
14
O Projeto Laboratório de dança Cacimba de Aruanda foi aprovado no edital Programa de Intercâmbio de
Atividades de Cultura e Extensão, de 2012, e previa um processo de criação em dança e criação de espetáculo.
O Projeto 15 Anos de Senzala previa a realização de um documentário sobre os 15 anos do Grupo de Capoeira
Angola Guerreiros de Senzala na Universidade de São Paulo e foi fomentado pelo edital Memória USP, também
em 2012.
15
Trecho do Projeto de Laboratório de Dança Cacimba de Aruanda que consta no Processo administrativo para
Auxílio Financeiro nº 12.1.27524.1.2 , aberto em novembro de 2012 pela Universidade de São Paulo.

144
A Casa do Samba de Santo Amaro se torna ponto de referência da cidade, local de encontro de mestres
e mestras e também um dos locais de pouso para Mestre Pinguim e alunos(as) durante as viagens pelo
Recôncavo, assim como o terreiro de Mãe Edinha, também em Santo Amaro, a casa de Dona Zélia do
Prato em São Braz, e a casa de Dona Joanice, em Acupe. Dessas trocas surgem relações de amizade,
relações religiosas e as relações institucionais.

4 - Os Encontros de Artes Afro-Brasileiras: festa, partilha e saberes na Universidade de São


Paulo
A existência formal do Núcleo de Artes Afro-brasileiras na Universidade de São Paulo afeta
diretamente a permanência de Mestre Pinguim e seu Grupo na Universidade. Se faz necessário “jogar”
com a instituição universitária (para utilizarmos um termo da capoeira). A seu favor, Mestre Pinguim
tem os resultados do seu próprio trabalho, que nasce da capoeira e se expande para o que ele chama
de “seus parentes”: a dança afro, o maculelê, o samba de roda, a percussão, e como ele diz “a
ancestralidade”. Todo esse repertório epistêmico onde a prática reiterada refaz os saberes e eles
voltam a acontecer num movimento espiralar por onde transita o conhecimento (MARTINS, 2003) está
presente nas ações de ensino, pesquisa e extensão do Núcleo de Artes Afro-Brasileiras, e reaparece
condensado nos Encontros de Artes Afro-Brasileiras, onde este representa um microcosmo do
cotidiano desse Núcleo e de suas referências culturais e epistemológicas, porém com aspecto festivo
mais acentuado, e com a presença de convidados de outras localidades. Um momento de renovação
de laços de Mestre Pinguim e seu Grupo com os visitantes do Recôncavo 16. A essas presenças, em
todas as edições do evento somaram-se também mestres e mestras de São Paulo e outras localidades,
que acabavam compondo as rodas de conversa, de samba e de capoeira que aconteciam durante os
Encontros.
Os Encontros de Artes Afro-Brasileiras ganham, então, uma programação com horários definidos,
exposições, lançamento de documentário, apresentações artísticas, vivências, entretanto, em

16
Entre esses visitantes citamos os mestres sambadores Mestre Primeiro, de Santo Amaro, BA (2012), Mestre
Ecinho, de Acupe, BA (2017 e 2019), Mestre Paião, de Teodoro Sampaio, BA (2017), Mestre Nelito, de Santiago
do Iguape, BA (2017), Mestre Aurino, morador de Maracangalha, BA (2017), Mestre Eloi, de Acupe (2019), as
mestras sambadeiras Dona Nicinha, de Santo Amaro (2015), Dona Zélia do Prato, de São Braz, BA (2017 e
2019), Dona Joanice, de Acupe (2012 e 2019), Dona Zilda, de Acupe BA (2019) e Dona Maria do Rosário (2019).
Em relação à capoeira, Mestre Góes participou com aulas de musicalização da capoeira em todos os anos de
evento, enquanto que seu irmão Mestre Zeca participou em 2015 e 2019. Das referências do maculelê de
Santo Amaro, estiveram presentes Mestre Guegueu e Mestre Valmir (2015). Guegueu e Valmir são filhos de
Mestre Vavá, que por sua vez era filho de Mestre Popó do Maculelê, de Santo Amaro, a quem é atribuído a
sistematização do Maculelê enquanto manifestação cultural que expressa uma luta de grimas (bastões de
madeira) dançada ao toque dos atabaques e que remete ao trabalho nos canaviais.

145
nenhuma das edições o evento seguiu à risca a sua programação e cronograma planejados, indicando
que ele também se constrói no seu próprio fazer. A abertura costuma ser feita com apresentações e
performances de música e dança dos alunos e alunas de Mestre Pinguim, seguidos da roda de conversa
com os(as) mestres(as). As cadeiras inicialmente organizadas para a mesa redonda, em algum
momento são retiradas e abrem espaço para a expansão corporal dos participantes, que podem então
experimentar dançar, cantar, jogar, tocar, jogar. Às vezes na forma de vivências (de berimbau, de
maculelê, da expressão corporal do Nego Fugido de Acupe), ora na forma de roda (de capoeira, de
samba), ou na forma de show (Grupo Musical Baobá de Malê). O preparo coletivo e oferecimento de
comida, com destaque para pratos da culinária afro-brasileira, como o caruru, o acarajé, a feijoada
baiana, são marcas dos Encontros de Artes Afro-Brasileiras. Em 2019, por exemplo, foi oferecido um
Caruru de Cosme e Damião antecedido da Esmola Cantada conduzida pelo Grupo de Samba de Roda
Raízes de Acupe. Entra em cena seu caráter de “Festa”.
Apesar de acontecer no espaço urbano, sobretudo universitário, elementos das festividades rurais da
religiosidade popular se sobressaem nos Encontros de Artes Afro-Brasileiras. O fazer dinâmico do
evento assume formas de organização marcadas pela oralidade, experimentação corporal,
(con)vivência, festa e partilha, reproduzindo em certa medida referências festivas do Recôncavo
Baiano que desembocam no samba, como o Caruru de Cosme 17 que acontece anualmente em
setembro, ou as festas de caboclo nos terreiros de candomblé da região, ocasiões em que a partilha
da comida, a música e a bebida se fazem presentes. Entende-se esse conjunto de aspectos – música,
dança, religiosidade, comida – como constituintes do que chamamos de oralidade nas ações e eventos
do Núcleo de Artes Afro-Brasileiras.
Observando a dinâmica festiva dos Encontros de Artes Afro-Brasileiras enquanto evento que evoca o
“ajô”, que em yorubá tem uma conotação de “união”, pensamos os Encontros como uma ocasião em
que os rituais proporcionam a renovação de laços sociais. Apesar desse evento não configurar uma
ocasião festiva religiosa, o estudo de Carlos Rodrigues Brandão nos parece oportuno para uma leitura
em que a Festa sugere a abolição temporária do trabalho e a possibilidade, de outra forma de
organização social. Para o autor,
[...] possivelmente esta será a qualidade mais essencial da festa de santo, ou
seja, a capacidade de, ao invés de propor uma “forma de oposto” à sociedade
cotidiana, produzir situações de extremos de solidariedade, coletividade e
celebração, depois de excluir dela o tipo de relações mais diretamente

17
Embora o Caruru de Cosme seja oferecido em setembro em homenagem aos santos católicos Cosme e
Damião, ele evoca reminiscências do culto aos orixás Ibejis.

146
produtor de suas divisões e contradições: o trabalho. (BRANDÃO, 1985, p.
203)

5 - Considerações finais

Procuramos aqui fazer uma leitura do evento Encontros de Artes Afro-Brasileiras promovido pelo
Núcleo de Artes Afro-Brasileiras da Universidade de São Paulo, organizado pelo Grupo de Capoeira
Angola Guerreiros de Senzala, como ação resultante do trabalho de Mestre Pinguim na Universidade
de São Paulo envolvendo as práticas de capoeira angola, maculelê, dança afro, percussão e samba de
roda, que tomou proporções de um trabalho de cultura e extensão universitária, apesar de Mestre
Pinguim seguir em uma relação informal com a Universidade, mesmo centralizando o protagonismo
das atividades desse Núcleo há mais de duas décadas.
Um primeiro levantamento de fontes documentais nos levou a propor uma reconstrução histórica das
relações entre Mestre Gato Preto, Mestre Pinguim e os Guerreiros de Senzala de modo a esboçar uma
cartografia preliminar de intercâmbios culturais dos Encontros de Artes Afro-Brasileiras. Nessa
reconstrução, passamos brevemente pelos processos de constituição do Núcleo de Artes Afro-
Brasileiras e da Associação de Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia, e vimos como essa
relação entre instituições e agentes da cultura se dá no microcosmo do evento estudado. Buscamos
mostrar que os Encontros de Artes Afro-Brasileiras, em suas quatro primeiras edições, tem sido um
evento carregado de aspectos das festas populares, com uma identidade histórica que remete ao
Recôncavo Baiano.
Os Encontros de Artes Afro-Brasileiras constituem um evento feito por meio da mobilização coletiva,
onde “cada um dá o que pode”, seja oferecendo sua casa para hospedagem dos convidados da Bahia,
seja por meio de doações de alimentos para a Festa, ou então com mão de obra voluntária para sua
produção e divulgação. Diante da dimensão que a Festa acabou tomando, podemos dizer que é
realizado com muito pouco recurso institucional, em meio ao qual se destaca o pagamento de escassos
pró-labores por parte da Universidade que são repassados e divididos entre os mestres e mestras
vindos da Bahia, e que não contemplam todos(as) os(as) convidados e tampouco os demais custos do
evento. Sendo assim, a participação coletiva, e não a institucional, é a força motriz de realização, como
também vemos acontecer, por exemplo, nos Encontro de Samba de Roda anualmente realizado no
mês de julho em Acupe e que integra diversos grupos de samba de roda do Recôncavo.
Apesar do reconhecimento do Samba de Roda do Recôncavo Baiano e da Roda de Capoeira e Ofício de
Mestre de Capoeira como patrimônios culturais imateriais do Brasil, a vida dos mestres e mestras do
Recôncavo Baiano e, o exemplo de Mestre Pinguim, cuja dedicação a essas práticas as manteve vivas,

147
tem nos mostrado que a roupagem de patrimônio dada pelo reconhecimento institucional pouco
mudou a situação financeira dos mestres e mestras, bem como dos recursos dos quais dispõem para
manter-se ativos na transmissão de seus saberes.

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15 Anos de Senzala. Direção: Thiago Mendes, Luiz Antonio Nascimento Cardoso, Eliany Cristina Ortiz Funari.
Produção: Núcleo de Artes Afro-Brasileiras; São Paulo; 2014. DVD

148
DO USO INTERROMPIDO ÀS PRÁTICAS FRAGILIZADAS: o silenciamento das formas
simbólicas espaciais judaicas na urbe nilopolitana (RJ)
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Enderson Alceu Alves Albuquerque


Doutor em Geografia; UERJ; endersonalbuquerque@yahoo.com.br.

Miguel Angelo Ribeiro


Doutor em Geografia (UFRJ); Professor Associado do IGEOG/PPGEO-UERJ; mamikisi@gmail.com

A partir de 1928, judeus de origem polonesa e russa migraram para o município de Nilópolis, localizado
na Baixada Fluminense, Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Em razão de sua cultura, esses
imigrantes construíram espaços sociais e religiosos para manter suas tradições. Desse modo, nosso
objetivo consiste em analisar a construção desses espaços, considerando sua relação com os
moradores locais. Posto isso, o artigo apontou que esses espaços, embora tenham sido marcas
territoriais de relevância social e econômica da presença dessa colônia no passado, atualmente
encerram apenas manifestações de natureza memorísticas no espaço nilopolitano.
Palavras-chave: Formas simbólicas espaciais; Baixada Fluminense; Nilópolis; Cultura judaica; Sagrado.

From 1928, Jews of Polish and Russian origin migrated to the municipality of Nilópolis, located in the
Baixada Fluminense, Metropolitan Region of Rio de Janeiro. Due to their culture, these immigrants
needed to build social and religious spaces to maintain their traditions. Thus, our goal is to analyze the
construction of these spaces considering their relationship with residents. That said, the article pointed
out that these spaces, although they were territorial marks of social and economic relevance of the
presence of this colony in the past, currently contain manifestations of a memorable nature only in the
Nilopolitan space.
Keywords: Spatial symbolic forms; Baixada Fluminense; Nilópolis; Jewish culture; Sacred.

149
1 - A formação da colônia judaica em Nilópolis
No dia 20 de junho de 1947 Nilópolis se emancipou de Nova Iguaçu. As atividades comerciais
promovidas na localidade, em paralelo à diminuição do poder econômico e político da elite iguaçuana
ligada à citricultura, possibilitaram maior força política aos promotores imobiliários e agentes da
burguesia comercial e industrial nascentes em Nilópolis. Entre esse grupo comercial que
refuncionalizou o espaço econômico nilopolitano estiveram os judeus, que começaram a chegar à
localidade no final dos anos 1920. Nesse período, Nilópolis ainda era distrito de Nova Iguaçu. A parada
de trem inaugurada em 1914 ajudou sobremaneira a alterar a dinâmica econômica local. Sobre este
processo, Segadas Soares (1962, p. 172) identifica que
a constituição espontânea de núcleos em torno das estações ferroviárias é a forma
mais antiga pela qual começou a se realizar a dilatação do espaço urbano do Rio de
Janeiro em direção à baixada. Ao lado de cada estação, casas iam-se dispondo
espontaneamente, algumas lojas surgiam, uma pracinha tomava forma e aos poucos
iam crescendo esses aglomerados que, de início, tinham forma longitudinal,
alinhando-se às margens dos trilhos, para só depois crescerem num sentido
transversal à linha férrea.

A comunidade judaica foi de notória relevância para o processo mencionado pela autora.
Considerando o espaço nilopolitano, os semitas intensificaram o adensamento populacional ao mesmo
tempo que promoveram o desenvolvimento de novas atividades econômicas na localidade.
A escritora Esther London (1999), judia-polonesa que se erradicou em Nilópolis em 1939, agregando
“pesquisa e lembranças dos anos vividos em Nilópolis”, escreveu o livro Vivência Judaica em Nilópolis.
Para ela, a partir da inauguração da parada de trem em Nilópolis no ano de 1914, os semitas que
aportavam na cidade do Rio de Janeiro “passaram a ter mais uma opção de vida ao lado dos generosos
trilhos da Central do Brasil: Nilópolis” (LONDON, 1999, p. 40). Ainda no início de sua urbanização,
Nilópolis apresentava características eminentemente rurais. Mery Baran, em seu relato ao
documentário Novos Lares – A História dos judeus em Nilópolis, lembrou a impressão de sua mãe ao
chegar à localidade: “ela ficou muito decepcionada quando chegou ao Porto do Rio, depois ela veio
pra Nilópolis. Nilópolis naquela época era uma cidade sem luz, era uma cidade quase que rural, eu
diria. Era roça. Eu me lembro de boiada passando na rua” (VIEIRA, 2009).
Considerando a atual configuração territorial da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e da Baixada
Fluminense, Nilópolis é a primeira parada de trem após a cidade do Rio de Janeiro e, em razão do preço
dos lotes e de suas dimensões, permitia a construção de moradia mais digna que os cortiços da Praça
Onze, já densamente ocupados. London (1999, p. 105) compilou depoimentos dos primeiros judeus
que se fixaram na cidade baixadiana e, em relação a essa questão, Frida Buksman relatou que “os

150
anúncios da venda de terrenos em Nilópolis, por preços módicos e a prazo, atraíram muitos recém-
chegados imigrantes judeus, como meu pai [...] Saímos do cortiço da Praça Onze para morar mais
humanamente em Nilópolis, que já tinha muitos habitantes judeus”.
Judeus oriundos da terceira onda (1933-1945), período no qual o antissemitismo grassou na Europa,
também se destinaram a Nilópolis. Sobre essa conjuntura, Rachel Morgenstern relatou que “na Polônia
a crise era constante e o medo do nazismo crescente apavorava os judeus. Com dinheiro no bolso e
endereço decorado, chegamos ao cais do porto do Rio de Janeiro, onde nossos tios nos esperavam.
Fomos direto para Nilópolis” (LONDON, 1999, p. 107).
A integração dessa comunidade estrangeira à comunidade local se efetivou sem problemas de ordem
xenofóbicas. Excetuando-se algumas provocações de grupos integralistas e as campanhas
difamatórias, esse agrupamento étnico passou a estabelecer relações de natureza simbólica e material
com Nilópolis, passando a contabilizar cerca de 300 famílias na cidade. Quanto à sua origem, além de
judeus oriundos de países como a Hungria, Áustria, Romênia, Ucrânia e Alemanha, a comunidade
hebraica local “foi formada em grande parte por imigrantes judeus de origem polonesa e russa,
pertencentes ao grupo dos asquenazitas, maior contingente de imigrantes judeus para terras
brasileiras” (RAPOSO, 2014, p. 29).
Para Claval (2012, p. 105), “ao se congregar em torno de preceitos comuns, os grupos abolem as
distâncias psicológicas que existem entre os seus membros, o que lhes permite triunfar sobre a
dispersão associada frequentemente às necessidades da vida”. Desse modo, considerando a natureza
simbólica dessa relação, essa população que necessitou emigrar por imposições alheias à sua vontade
pôde manifestar livremente sua religião, língua e tradições em Nilópolis e, por esse motivo, recriaram
na cidade baixadiana a atmosfera de seus vilarejos de origem. As notícias que chegavam à Polônia
referindo-se a Nilópolis enfatizavam que “lá, diziam muitos, tudo é ídiche. Quem mora em Nilópolis
não sente saudades do shtetl na Polônia” (LONDON, 1999, p. 110).
Em ídiche, a palavra shtetl significa cidadezinha, porém, “quando um judeu se refere a um espaço
como um shtetl, isso quer dizer que ele está impondo uma conotação emocional, pois esse espaço o
faz relembrar de seu lugar de origem” (RAPOSO, 2014, p. 30). Esse sentimento de “sentir-se em casa”
também se devia, em larga medida, às estruturas culturais construídas pela comunidade semita, entre
as quais constavam, além da Sinagoga e o Cemitério Israelita, fixos sociais analisados neste artigo, uma
escola israelita, S. An-Ski, e um centro comunitário. Desse modo, o centro Israelita “era um teto
protetor para todas as faixas etárias da comunidade. Sinagoga para os mais velhos, Clube para a
juventude e Escola para as crianças” (LONDON, 1999, p. 59). Cumpre ainda registrar que o primeiro

151
livro em ídiche do Brasil, “Novos Lares”, escrito por Adolfo Kischinhevsky em 1932, foi editado e
publicado em Nilópolis (SOARES, 2014, p. 69).
Embora no distrito de Olinda houvesse lojas de proprietários hebreus, a coletividade judaica se
concentrou na rua então nomeada Lázaro de Almeida, e, pelo fato de os estabelecimentos de
propriedade dos semitas ficarem na parte de baixo e as famílias residirem nos sobrados ou nos fundos,
esse logradouro ficou conhecido popularmente como a rua dos judeus. Entretanto, apesar dessa
identificação com o espaço e da criação de estruturas e ambientes condizentes com suas práticas
religiosas, ao conseguirem melhorias financeiras, os membros da comunidade judaica foram
paulatinamente deixando o município. Soares (2014, p. 81) indica que, em virtude do êxodo verificado
em Nilópolis, a comunidade local deixou de ter rabino e pessoas contratadas “para oficiar as orações
e, não se tinha mais o serviço prestado de nenhum dos três shoichet 1 que havia na “rua dos judeus”.
Com isso, tornou-se uma tarefa muito difícil manter a tradição judaica sem todo suporte que antes
houvera”.
Os judeus passaram a se dirigir para bairros das zonas sul, norte e oeste da cidade do Rio de Janeiro,
sobretudo aqueles de melhor infraestrutura. Alguns, após o fim da perseguição antissemita,
retornaram à Europa, e outros migraram para Israel após a criação desse Estado. O último
estabelecimento comercial de um judeu em Nilópolis encerrou suas atividades em 2007.
Judeus ilustres viveram em Nilópolis. Entre eles se destacaram a artista plástica Fayga Ostrower,
nascida na Polônia, que passou a residir no município em 1934, e o cantor e ator Agnaldo Rayol, que
nasceu no bairro de Bonsucesso, zona norte do Rio de Janeiro, e posteriormente se mudou com a
família para a cidade da Baixada Fluminense. Entre os judeus nascidos em Nilópolis, três se destacaram
na arte e na sociedade, o médico oncologista Jacob Kligerman, o estilista Tufi Duek – proprietário das
marcas Forum e Triton – e a atriz Tereza Rachel. A atriz está sepultada no Cemitério Israelita de
Nilópolis.
Além dessa necrópole semita na qual a ilustre nilopolitana está sepultada, os judeus locais também
construíram uma Sinagoga para ser centro de suas atividades religiosas. As duas edificações são
exemplos de formas simbólicas espaciais, as quais, entre outros atributos, consistem em “criar ‘lugares
de memória’, cuja função é a de estabelecer ou manter a coesão social em torno de um passado
comum” (CORRÊA, 2007, p. 10). A discussão sobre o conceito geográfico de formas simbólicas espaciais
contemplando os dois monumentos citados será empreendida na parte seguinte deste trabalho.

1
Especialista que abate galinhas segundo os ritos judaicos.

152
2 - Geossímbolos judaicos no espaço/paisagem nilopolitano
Diferentemente dos libaneses cristãos que chegaram a Nilópolis na década de 1920, os judeus, em
virtude das suas práticas religiosas, registraram sua presença no município por meio da construção dos
dois fixos religiosos citados. A Sinagoga Tiferet Israel, em português Glória de Israel ou Beleza de Israel,
começou a ser construída em 1928, ano da chegada dos primeiros semitas à localidade, e foi
inaugurada em 1936. Em 1984 houve a última celebração no templo (PERES, 2015). Após esse período,
o espaço sagrado foi abandonado, conforme atesta a figura 1. Em contraste com o precário estado de
conservação da Sinagoga, a necrópole judaica de Nilópolis, construída em 1934, está em perfeitas
condições de conservação.

Figura 01: Fachada e interior da Sinagoga Tiferet Israel.

Fonte: SOARES (2014, p. 66 e 82).

Para Claval (2012, p. 103), “os homens inscrevem, nos monumentos que erigem e nas inscrições que
fazem aqui e ali, a ordem de significações que os motivam”. Nessa perspectiva, as duas edificações
constituem-se em formas simbólicas em grande medida devido aos significados que elas transmitem.
Dessa maneira, tanto a Sinagoga quanto o Cemitério compreendem “signos construídos a partir da
relação entre as formas, os significantes, e os conceitos, os significados” (CORRÊA, 2018, p. 224).
Todavia, todo objeto é, em maior ou menor grau, uma forma simbólica, uma vez que ele pode produzir
intentos que transcendem sua funcionalidade. Nesse sentido, “um dos desafios da análise geográfica
reside em identificar processos visíveis correlatos aos valores simbólicos que presidiriam à
estruturação funcional de tais lugares” (MACIEL, 2015, p. 10).

153
Em termos geográficos, essas construções materiais dotadas de simbolismo se metamorfoseiam em
formas simbólicas espaciais
quando constituídas por fixos e fluxos, isto é, por localizações e itinerários,
apresentando, portanto, os atributos primeiros da espacialidade. Palácios, templos,
cemitérios, memoriais, obeliscos, estátuas, monumentos em geral, shopping
centers, nomes de logradouros públicos, cidades e elementos da natureza,
procissões, desfiles e paradas, entre outros, são exemplos correntes de formas
simbólicas espaciais. (CORRÊA, 2007, p. 8)

Cumpre mencionar que o conceito de formas simbólicas espaciais emprega a dimensão geográfica ao
fenômeno em tela e, assim sendo, “as relações entre formas simbólicas e espaço são complexas, de
mão dupla. Como tais, as formas simbólicas espaciais se realizam, em grande parte, em razão da
localização ou do itinerário que cada uma apresenta” (CORRÊA, 2018, p. 227). Nesse sentido, a partir
de sua localização, essas edificações ganham sua geograficidade tornando-se geossímbolos
(BONNEMAISON, 2002). Centrando-se na questão locacional aludida por Corrêa (2018), o autor aponta
que os geossímbolos apresentam uma dimensão relativa e relacional. Considerando a Sinagoga e o
Cemitério, essas formas simbólicas espaciais possuem notáveis distinções entre si.
A figura 2 expõe a centralidade da localização da Sinagoga construída pela comunidade hebraica.
Edificada acerca de 220 metros do “marco zero” do então distrito iguaçuano, o templo judaico exprime
sua condição de localização relativa, que, segundo Corrêa (2007, p. 9), associa-se “à visibilidade, mas,
sobretudo, à acessibilidade face a toda a cidade ou espaço regional ou nacional”. Com efeito, a escolha
espacial da Sinagoga considerou sua visibilidade e acessibilidade para a sociedade local.
Os judeus que chegaram a Nilópolis na segunda metade da década de 1920 se instalaram na incipiente
área central da localidade e, com suas atividades, ajudaram a fortalecer a centralidade das ruas locais.
Com essa localização, os hebreus marcaram na paisagem nilopolitana sua identidade e, para esse
propósito, a acessibilidade do local de culto consiste em “um dos meios mais importantes para que as
formas simbólicas possam transmitir as mensagens que delas se espera” (CORRÊA, 2007, p. 9).
Corrêa (2018, p. 228-229) menciona ainda que os geossímbolos
apresentam uma localização de natureza relacional, isto é, a localização delas se faz,
de um lado, em áreas da cidade dotadas de certos atributos sociais e políticos,
visando à emissão de mensagens dirigidas para certos grupos sociais. De outro lado,
a localização se dá em relação a outras formas simbólicas localizadas em outros
locais e que refletem interesses semelhantes ou divergentes. A natureza relacional
da localização associa-se à prática da repetição em locais distintos, de formas
simbólicas emitindo mensagens semelhantes, ou em prática de constratação, com
formas simbólicas emitindo mensagens antagônicas e situadas em locais próximos.

154
Figura 02: Área central histórica de Nilópolis.

Fonte: Elaborado pelos autores a partir do site Google Earth

A condição relacional das formas simbólicas explica a espacialidade do “Cemitério dos judeus”. No
contexto nilopolitano, os espaços cemiteriais estão instalados em um bairro periférico, precisamente
o bairro do Paiol. Desse modo, o cemitério judeu foi instalado ao lado do cemitério público municipal
cristão, conforme atesta a figura 3. Assim, o Cemitério Israelita, enquanto forma simbólica, emite uma
mensagem de “interesse semelhante”, assim como alude Corrêa.
O Cemitério judaico exprime sua condição de semelhança em relação ao cristão considerando sua
espacialidade e sua temporalidade: a necrópole cristã foi inaugurada em 12 de novembro de 1932, e
a judaica iniciou suas obras em dezembro de 1933. Ao mesmo tempo, o geossímbolo hebraico reafirma
uma forma simbólica espacial “divergente”, pois, conforme sustenta Figueiredo (2019, p. 156), “o
cemitério reflete os costumes funerários, mentalidades a respeito da morte, valores, identidades,
religiosidade, estilo arquitetônico e memória das comunidades que os criaram”.
Na cidade do Rio de Janeiro no início do século XX existiam cinco necrópoles nas quais os israelitas
poderiam ser sepultados. Os Cemitérios dos Ingleses (Santo Cristo), o do Catumbi, o São João Batista
(Botafogo), o de São Francisco Xavier (Caju) – no qual foi criada uma quadra para “não católicos” – e o
de Inhaúma – primeiro destinado exclusivamente para sepultamento de mulheres judias e
denominado de “cemitério das polacas”, em referência ao fato de ter sido fundado a partir de uma
instituição criada por mulheres judias rejeitadas pela comunidade israelita por exercerem a
prostituição. Até 1916 as “polacas” eram sepultadas em uma parte separada no São Francisco Xavier
(ROITBERG, 2015).

155
Figura 03: Cemitérios cristão e judeu – geossímbolos “semelhantes” e “constratantes”

Fonte: Elaborado pelos autores a partir do site Google Earth

Desse modo,
até 1920 estas eram as opções para enterros judaicos: ao lado das prostitutas e
cafetões, figuras tratadas como párias em vida, ou junto de cristãos. Então para os
imigrantes europeus as opções existentes eram inaceitáveis e se tornava necessário
um cemitério próprio. Tentaram obter um terreno junto à prefeitura do Rio de
Janeiro, que respondeu negativamente, declarando que já existia um cemitério
judaico municipal, o de Inhaúma. (ROITBERG, 2015, s.p)

Diante desse impasse com a prefeitura do Rio de Janeiro, um segmento da comunidade judaica
adquiriu em 1920 um terreno no bairro de Vila Rosali, atualmente pertencente ao município de São de
Meriti na Baixada Fluminense. A construção desse cemitério é anterior à chegada de judeus em
Nilópolis e, dessa forma, diferentemente da necrópole judaica nilopolitana, que foi construída para
atender a comunidade hebraica local, o espaço cemiterial da Vila Rosali se destinava aos
sepultamentos de judeus sediados na cidade do Rio de Janeiro, uma vez que não havia colônia judaica
no referido bairro.
Com efeito do rito diferente no momento da morte, a comunidade judaica em Nilópolis necessitou ter
seu próprio espaço cemiterial para atender suas tradições. Por esse motivo, essa forma simbólica

156
espacial exprime uma condição contrastante. A análise comparativa entre os dois geossímbolos
retratados na figura 3 indica parte dessas distinções.
Outra questão destoante entre essas formas simbólicas religiosas no contexto nilopolitano diz respeito
à conservação. O cemitério cristão, apesar de ser o segundo local mais sagrado para essa religião, tem
sua fachada, seus muros e a parte interna extremamente mal conservadas pela municipalidade. Em
contrapartida, o geossímbolo israelita apresenta-se impecavelmente conservado, possuindo cerca
elétrica em seus muros e vigilância patrimonial 24 horas por dia.
Para Claval (2012, p. 99), “se a geografia cultural se dedica à experiência que os homens têm do mundo,
da natureza e da sociedade, ela deve partir daquilo que os seus sentidos lhes revelam”. Partindo desse
pressuposto, a necrópole judaica revela um sentido de “distanciamento” entre a população do seu
entorno, a qual, de acordo com o Censo Demográfico do IBGE de 2010, está instalada em um dos
setores censitários de menor renda domiciliar média do município. Assim sendo, devido à sua
imponência relativa, o Cemitério judaico comunica, em alguma medida, uma espécie de “enclave” aos
moradores locais, tanto assim que para alguns residentes o critério diferencial entre os dois espaços
cemiteriais é o social e não o religioso. As duas formas simbólicas, judaica e cristã, respectivamente,
são popularmente alcunhadas como cemitério dos ricos ou dos gringos e cemitério dos pobres.

3 - Considerações finais
Considerando os imigrantes que aportaram no município nilopolitano, embora os libaneses tenham
vindo em menor número – apenas duas famílias, os Abraão David e os Sessim David –, esse grupo
étnico deixou registros mais notórios na paisagem da cidade do que a colônia judaica. Essa constatação
deriva do fato de eles terem se entranhado na política e terem permanecido em Nilópolis após
obterem ascensão econômica. Para efeito de comparação, de acordo com Albuquerque e Ribeiro
(2018), na municipalidade existem onze logradouros públicos em homenagem a personalidades de
origem libanesa e apenas dois em referência a judeus que viveram na cidade: a escola pública de artes
plásticas Fayga Ostrower e a rua Júlio Berkowitz, proprietário da gráfica onde foi impresso o primeiro
jornal local.
A cultura judaica agoniza na memória da população local. O território cultural nilopolitano é
notadamente marcado pela presença da Escola de Samba Beija-Flor no campo profano e pela massiva
presença cristã (evangélica e católica) no campo do sagrado. Territorialidades simbólicas robustas que
“sufocam” identidades culturais pretéritas, concorrendo para o apagamento das contribuições semitas
para a localidade. A esse quadro de âmbito simbólico se somam a inoperância da administração

157
municipal e a indiferença da própria comunidade judaica em relação ao estado precário de
conservação da Sinagoga. Considerando a necrópole judaica, o Cemitério nilopolitano provavelmente
não se configura hodiernamente como a primeira opção para as famílias israelitas mais abastadas e,
por essa razão, os judeus sepultados em Nilópolis correspondem, em última instância, àqueles que os
ascendentes tiveram alguma relação com a comunidade local ou àqueles que não possuem jazigos
próprios em cemitérios da cidade do Rio de Janeiro e no de Vila Rosali.
Tal fato sugere que, assim como a Sinagoga nilopolitana, a necrópole judaica é preterida por essa
comunidade. Todavia, uma vez que a Sinagoga encerrou suas atividades na década de 1980, apelando
a um jogo semântico contraditório, é na forma simbólica espacial reservada à morte que a tradição
judaica permanece viva em Nilópolis na conjuntura atual.

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158
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Acesso em 21 de junho de 2020.

159
FRAGMENTOS DO PATRIMÔNIO AMBIENTAL URBANO DA REGIÃO DE SÃO CRISTÓVÃO:
reflexões sobre os seus patrimônios silenciados
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Raquel Aquino de Araújo


Geógrafa e Mestre em Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural; COC / Fiocruz;
raquelaquinoaraujo@yahoo.com.br

Situada na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, a região de São Cristóvão possui uma diversidade
de patrimônios que compõe o ambiente urbano do lugar. Além da sua importância histórica e cultural
para a cidade, esta região dispõe de alguns patrimônios tombados como o coreto no Campo de São
Cristóvão, a igreja Nosso Senhor do Bonfim e os reservatórios de água da Quinta da Boa Vista e do
Pedregulho que estão silenciados em meio a vitalidade do local. Inquietações sobre o abandono destes
patrimônios se fazem presentes frente a um lugar dinâmico e constituído de vigor. O patrimônio é vivo
e é necessário o seu uso para favorecer a sua preservação.
Palavras-chave: Patrimônio ambiental urbano; São Cristóvão; patrimônios abandonados.

Located in the North Zone of the city of Rio de Janeiro, the region of São Cristóvão has a diversity of
heritage that makes up the urban environment of the place. In addition to its historical and cultural
importance for the city, this region has some heritage sites such as the banstand in Campo de São
Cristóvão, the chuch Nosso Senhor do Bonfim and the water reservoirs of Quinta da Boa Vista and
Pedregulho that are silenced in means the vitality of the place. Concerns about the abandonment of
these assets are present in the face of a dynamic and constituted place of vigor. The heritage i salive
and its use is necessary to favor its preservation.
Keywords: Urban environmental heritage; São Cristóvão; abandoned heritage.

160
Introdução
Geograficamente favorecida por se localizar limítrofe às regiões Central e Portuária da cidade do Rio
de Janeiro, a região de São Cristóvão situa-se na Zona Norte desta urbe. Fazem parte da VII Região
Administrativa de São Cristóvão os bairros Vasco da Gama, Benfica, Mangueira e São Cristóvão, este
último que deu nome à região. A região de São Cristóvão é significativa para a história e o
desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro. Além disso, esta região possui uma diversidade de
patrimônios que compõe o ambiente urbano do lugar. Este estudo se refere ao abandono de
fragmentos do patrimônio ambiental urbano da região de São Cristóvão.
O escopo desta pesquisa é apresentar determinados patrimônios abandonados que formam a
paisagem urbana da região de São Cristóvão. Especificamente propõe-se apresentar determinados
patrimônios tombados que se encontram silenciados e que constituem o patrimônio ambiental urbano
desta região.
A intensa dinâmica territorial desta contemporaneidade possibilita muitas vezes que alguns bens
culturais sejam mais valorizados e referenciados do que outros, independentemente da sua
proximidade espacial, e com isso muitos patrimônios reconhecidos se tornam esquecidos. Esta região
como fragmento da cidade, vivencia na atualidade o abandono de alguns dos seus patrimônios que
em alguma época foram enérgicos. Do ponto de vista das rugosidades da paisagem urbana de São
Cristóvão, alguns patrimônios tombados como o Coreto no Campo de São Cristóvão, a Igreja da
Irmandade do Nosso Senhor do Bonfim e os Reservatórios de água da Quinta da Boa Vista e do
Pedregulho estão silenciados em meio a vitalidade da região.
Justifica-se esta pesquisa no sentido de fortalecer, (re)conhecer e valorizar esses patrimônios
tombados que se encontram abandonados, frente aos desafios das transformações urbanas que estão
inseridas no campo de (des)interesse social-político e urbano. Estes (des)interesses constantemente
priorizam revitalizar e/ou construir objetos modernos ao invés de também preservar os antigos, o que
poderia então constituir a preservação da ambiência e do entorno de bens culturais e de sítios
históricos. Neste sentido, em virtude da incessante dinâmica territorial das cidades, chama a atenção
as rugosidades da paisagem urbana, bem como as inquietações sobre o abandono de diversos
patrimônios localizados bem próximos de novas construções e/ou construções revitalizadas. Tais
observações se fazem presentes nos lugares constituídos de vigor.
Milton Santos (2012) define por “rugosidades ao que fica do passado como forma, espaço construído,
paisagem, o que resta do processo de supressão, acumulação, superposição, com que as coisas se
substituem e acumulam em todos os lugares. As rugosidades se apresentam como formas isoladas ou

161
como arranjos.” (SANTOS, 2012, p.140). Sobre paisagem urbana, esta possui marcas naturais e
culturais produzidas num determinado período e contexto. As marcas naturais correspondem aos
elementos em que o homem não alterou, como as montanhas, por exemplo. As marcas culturais dizem
respeito a acumulação de elementos do patrimônio cultural e histórico, representados em dimensões
materiais como igrejas, arquiteturas, mobiliários urbanos, monumentos, bibliotecas, museus e outros,
e, em perspectivas intangíveis como vivências, interações e atividades sociais, costumes e etc. Dentro
da perspectiva da compreensão de paisagens urbanas, por rugosidades da paisagem urbana entende-
se por bens materiais e intangíveis que são substituídos ou acumulados em determinados lugares, e
que então se apresentam como arranjos na paisagem, através do resultado da junção de marcas
pretéritas de elementos naturais e culturais.
A ótica do patrimônio ambiental urbano - que é extensamente discutido entre geógrafos, arquitetos,
urbanistas e antropólogos, é importante para o conhecimento das cidades. Em face disso, Castriota
(2007) propõe refletir as dimensões históricas e culturais que tem a paisagem urbana em seu conjunto,
considerando não somente determinado monumento destacado, mas principalmente “perceber as
relações que os bens naturais e culturais apresentam entre si, e como o meio ambiente urbano é fruto
dessas relações” (CASTRIOTA, 2007, p.17). Nesta perspectiva, o autor considera importante “conservar
o equilíbrio da paisagem, pensando sempre como inter-relacionados a infra-estrutura, o lote,
edificação, a linguagem urbana, os usos, o perfil histórico e a própria paisagem natural” (CASTRIOTA,
2007, p.17). Do mesmo modo, Yázigi (2012) complementa ao definir que:
O patrimônio ambiental urbano é constituído de conjuntos arquitetônicos, espaços
urbanísticos, equipamentos públicos e a natureza existente na cidade, regulados por
relações sociais, econômicas, culturais e ecológicas, onde o conflito deve ser o menor
possível e a inclusão social uma exigência crescente. Portanto, ele acompanha o
processo social, assumindo todas as modernidades necessárias. É reconhecido e
preservável por seus clássicos valores potencialmente qualificáveis: pragmáticos,
cognitivos, estéticos e afetivos, de preferência sem tombamentos. Geograficamente,
podem se manifestar sob forma de manchas urbanas ou formações lineares, sem
limites perenes, mas sempre transcendendo unidades de significado autônomo. O
conceito se reporta tanto a um conjunto existente como a um processo em
permanente construção, ou seja, patrimônio ambiental deve se configurar como o
ser e o porvir. (YÁZIGI, 2012, p.28)

Para este presente estudo, este autor ainda destaca que “as intervenções urbanas são inevitáveis
restando-nos apenas a possibilidade de debater seu sentido.” (YÁZIGI, 2012, p.28). Nesta perspectiva,
para a contínua transformação urbana, deve-se considerar a prática da preservação dos bens culturais
em conjunto da construção de novos bens, levando em conta a ambiência e o entorno como melhor
solução. Para isso, é imprescindível o diálogo constante entre as políticas públicas e as políticas de

162
preservação, contando ainda e principalmente com a participação da população local, dos geógrafos,
arquitetos e urbanistas, do poder público e dos especialistas em preservação do patrimônio.

1 - Patrimônios tombados da região de São Cristóvão: uma análise sobre o abandono de


determinados fragmentos do seu patrimônio ambiental urbano
A região de São Cristóvão possui muitos patrimônios materializados e intangíveis que constituem o seu
patrimônio ambiental urbano. Estes patrimônios se apresentam como as rugosidades da paisagem
urbana do lugar. A exemplos, têm a Quinta da Boa Vista e o Museu Nacional; o Museu do Primeiro
Reinado - Solar da Marquesa de Santos; o Pavilhão de São Cristóvão e a Feira Nordestina; o Museu de
Astronomia e Ciências Afins (Mast) e o Observatório Nacional; o estádio de futebol do Clube de Regatas
Vasco da Gama em São Januário; as tradicionais escolas de samba Estação Primeira da Mangueira e
Paraíso do Tuiuti; entre outros. Determinados patrimônios têm muito mais visibilidade que outros,
como os objetos modernos que são priorizados para serem revitalizados ao invés de também propor
a revitalização dos bens antigos. Na época atual, alguns patrimônios desta região se encontram
silenciados, mesmo sendo importantes para a história e memória do lugar, como o Coreto no Campo
de São Cristóvão, a Igreja da Irmandade do Nosso Senhor do Bonfim, e os Reservatórios de água da
Quinta da Boa Vista e do Pedregulho. Mesmo abandonados, esses patrimônios se fazem presentes na
paisagem urbana do lugar, considerando sua própria ocupação no território, seu silêncio e apagamento
diante da vivacidade do local. Constata-se que na efervescência da cidade é que certos patrimônios
menosprezados se fazem observados pelo seu processo de deterioração, pelo seu desuso e/ou pela
inquietação do porquê tal herança se encontra em estado de degradação. À vista disso, como é possível
ignorar uma herança que está visível, desconsiderando tal patrimônio como o entorno de outro bem
que se revitaliza ou constrói? As transformações urbanas estão inseridas no campo de (des)interesses
social-político-urbano, onde é necessário um diálogo constante entre as políticas urbanas e as políticas
de preservação do patrimônio cultural para a permanência ativa do bem cultural.
Sobre o abandono de patrimônios tombados, no caso da região de São Cristóvão, este fato assume o
sentido da forma social, onde a destruição dos bens está vinculada a indiferença pelo poder público.
Deste modo, José Reginaldo Gonçalves (2015) argumenta que:
“(...) a noção de “perda”, insinua-se o espectro da “destruição”, contra a qual se
posicionam os esforços coletivos no sentido de proteger e preservar os bens culturais
ameaçados. (...) Essa destruição (...) configura-se sempre como uma espécie de
inimigo externo a ser combatido. No entanto, podemos perguntar em que medida
esse inimigo não convive internamente com as próprias práticas da preservação, não
somente enquanto ameaça, mas simultaneamente como fonte de criação. Sendo

163
assim, no ato mesmo da preservação seria necessário observar o que é
necessariamente destruído ou esquecido.” (GONÇALVES, 2015, p.220, 221)

O Coreto do Campo de São Cristóvão é uma construção de 1906 que então compôs a urbanização do
amplo Campo de São Cristóvão na gestão de Pereira Passos. Considerado o maior coreto da cidade, foi
edificado em forma octogonal em alvenaria de pedras expostas que forma seu primeiro piso com sete
janelas e uma porta de entrada. Ainda, possui escada dupla que conduz ao patamar que é revestido
por ladrilhos hidráulicos, e sua cobertura é sobre colunas de ferro fundido (PCRJ, 2014; INEPAC, 2021;
INVENTÁRIO..., 2021). Desde a década de 1970, jornais já noticiavam que o Coreto “já mostra sinais de
depredação: a balaustrada que acompanha os acessos duplos de escadas estão com a grade de ferro
solta e retorcida.” (O maior..., 1973, p.22). Além disso, publicavam no ano de 1985 que o pedido do
seu tombamento partiu da Associação de Moradores do bairro, com o apoio do Museu do
Observatório Nacional e do Museu do Primeiro Reinado. A partir disso, o então Departamento de
Cultura da Secretaria de Ciência e Cultura do Estado - atual Instituto Estadual do Patrimônio Cultural
(Inepac), realizou o projeto de tombamento provisório de 14 coretos em todo o Estado do Rio de
Janeiro (A nova..., 1985).
Este patrimônio tombado tem como vizinho o monumental Pavilhão de São Cristóvão, projeto de
arquitetura moderna de 1957-60, de Sérgio Bernardes, que inicialmente foi projetado “para abrigar,
de forma temporária, exposições e eventos, sendo dotado de escala monumental e tecnologia
avançada que determinou a forma parabolóide de sua cobertura – fato que o transformou num marco
da paisagem local.” (CARLOS; SAMPAIO, 2017, p.55). O Pavilhão também vivenciou tempos sombrios
de abandono, mas após décadas de luta dos feirantes nordestinos que se fixavam no entorno do
Pavilhão, em 2003 este patrimônio e o seu entorno foram revitalizados para abrigar no seu interior a
Feira Nordestina (NACIF, 2007; BORJA; DESTRI, 2017). Chama a atenção que o Coreto estando
localizado ao lado do Pavilhão não foi contemplado com a revitalização do entorno do bem. Até hoje
continua sem preservação, mesmo tendo como modelo para sua restauração, parte do seu guarda
corpo em ferro fundido, que está depositado nos órgãos de conservação de monumentos e chafarizes
da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (INVENTÁRIO..., 2021).
A Igreja da Irmandade do Nosso Senhor do Bonfim e Nossa Senhora do Paraíso foi edificada em terreno
perto do cemitério do Caju, na segunda metade do século XIX, em estilo neoclássico com elementos
do barroco tardio, fachada simples com frontão triangular e uma torre sineira, considerando que a
segunda torre não foi concluída. A região de São Cristóvão sofreu sucessivos aterros e afastou a Baía
de Guanabara, possibilitando a construção de importantes vias expressas, como a Avenida Brasil

164
inaugurada na década de 1940, que ali se inicia. A Igreja do Bonfim, como popularmente é conhecida,
teve seu tombamento em 2007 pelo município do Rio de Janeiro - atual Instituto Rio Patrimônio da
Humanidade (IRPH), que considerou sua importância arquitetônica, histórica e cultural para a cidade
(PCRJ, 2014; BITTAR, 2020).
Esta igreja é pertencente a irmandade do mesmo nome, a qual é uma instituição privada que possui
autonomia sobre os seus bens. As irmandades religiosas do Rio de Janeiro, receberam no século XIX
diversos bens imóveis por doação de seus ricos fiéis católicos. A Arquidiocese do Rio de Janeiro
legalmente não pode agir sobre esses imóveis, quando muitos são patrimônios históricos e culturais e
estão em processo gradual de destruição (Da ruína..., 2020; Peça..., 2021).
A Igreja do Bonfim está abandonada a décadas e por inúmeras vezes foi alvo de invasões e saques. Em
2018, jornais destacavam que bandidos tentaram furtar o sino da igreja, que é de origem inglesa, mas
por causa do seu peso, o abandonaram no local. Nesta ocasião, a Igreja Matriz de São Cristóvão se
pronunciou em redes sociais informando sobre a ciência de que muitos bens da Igreja do Bonfim já
haviam sido roubados. Imediatamente os responsáveis da Igreja de São Cristóvão foram ao local e
acionaram a Arquidiocese do Rio de Janeiro, que prontamente solicitou a guarda de algumas imagens
que ainda se encontravam no local. Após este incidente, o sino foi transportado para o Museu
Arquidiocesano de Arte Sacra do Rio de Janeiro (Fiéis..., 2018; Bandidos..., 2018). Após várias tentativas
de furtos e invasões, no ano de 2019 houve uma movimentação da população, e a partir de então a
titularidade da igreja passou para a Mitra Arquiepiscopal do Rio de Janeiro (Em defesa..., 2019; BITTAR,
2020). No ano de 2021, jornais noticiaram que policiais federais em Brasília, encontraram e
apreenderam uma pia de mármore em estilo eclético com traços barrocos, de 1862, pertencente a
Igreja do Bonfim, no Rio de Janeiro. Conforme as autoridades policiais, o objeto seria vendido num
leilão de antiguidades. Além disso, foi noticiado que a Arquidiocese do Rio de Janeiro já havia
conseguido a autorização para ter a salvaguarda da peça, e assim que ela retornasse a cidade, seria
exposta no Museu de Arte Sacra (Peça..., 2021).
A Igreja do Bonfim se localiza ao lado da Av. Brasil, que é uma das mais importantes vias expressas da
cidade. A Av. Brasil iniciou em 2015 obras para a implantação do trecho do Bus Rapid Transit (BRT)
TransBrasil que ligará o Centro à Deodoro – que ainda se encontra em construção. Com isso, constata-
se novamente a prioridade em construir objetos modernos, e relega-se a restauração de bens culturais
antigos. A Igreja do Bonfim como patrimônio tombado “assiste” lentamente a chegada do seu vizinho,
enquanto que em conjunto, ela poderia ser restaurada para compor a revitalização do entorno da
região de São Cristóvão. Este patrimônio permanece sem preservação, à espera de ser visto e ouvido,

165
enquanto o seu silêncio “grita” por socorro para sobreviver diante a dinâmica da cidade. Não somente
para este patrimônio é observável a falta de conservação, mas também para muitos outros bens
históricos da cidade.
Como a ótica da proteção ambiental é fundamentada na necessidade de se conhecer para preservar,
é questionável como muitos patrimônios tombados estão abandonados e necessitam de preservação.
O descaso com os patrimônios muitas vezes provém do uso interrompido, como ocorreu com os
reservatórios de água da Quinta da Boa Vista e do Pedregulho, bens tombados pelo Inepac, e de
propriedade da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), do Rio de Janeiro. Hoje se encontram
desativados e necessitando de restauração. Localizados no alto de morros da região de São Cristóvão,
possuem valor histórico como marcos da engenharia desenvolvida no Rio de Janeiro. Como muitos
outros reservatórios da cidade, estão em processo de deterioração e sem projetos de revitalização.
O Reservatório da Quinta da Boa Vista também chamado de São Cristóvão ou do Barro Vermelho, foi
edificado em 1867 no alto do morro do Barro Vermelho, ao lado da Quinta da Boa Vista. Este
reservatório era alimentado pelo Sistema Rio D’Ouro e abastecia o palácio imperial, e atualmente se
encontra em ruim estado de conservação. O Reservatório da Quinta da Boa Vista possui caixas d’água,
jardins e residências como componentes do seu sítio. Construído em forma octogonal, “em alvenaria
de tijolos e assentado sobre patamar também octogonal, formado por paredes duplas de blocos de
pedra.” (FRANCO, 2013, np). Possui duas escadarias com gradis, duas portas e passagem constituída
com peças de mármore branco e preto. Em vistorias técnicas nos anos de 2006 e 2013, técnicos do
Inepac identificaram muitas perdas dos elementos construtivos como gradis, pórticos, esquadrias de
madeira e o telhado. Ainda foi identificado o abandono dos jardins e do antigo chafariz, bem como a
descaracterização na residência que recebeu a construção de uma piscina no terreno (FRANCO, 2013).
A região de São Cristóvão vivenciou décadas de esquecimento e declínio, porém somente a partir da
revisão de políticas urbanas como o Plano de Estruturação Urbana (PEU) de 2004 é que se planejou as
ações para o desenvolvimento físico-urbano, objetivando a revitalização econômica desta região.
Desde então, surgiram interesses dos agentes imobiliários pela região, e novos empreendimentos
foram edificados, principalmente no entorno da Quinta da Boa Vista, pois o PEU 2004 possibilitou a
verticalização de novas edificações com até doze pavimentos, que antes não era permitido. A
vizinhança da Quinta da Boa Vista recebeu melhorias urbanas, porém o Reservatório de São Cristóvão
não foi beneficiado com revitalização que contribuísse para a preservação do ambiente cultural da
região de São Cristóvão. Atualmente o bem tombado permanece sem restauração, aguardando
políticas públicas efetivas que almejem a sua preservação como patrimônio cultural da cidade.

166
O Reservatório do Pedregulho foi inaugurado em 1880 no alto do morro do Pedregulho, na presença
do Imperador D. Pedro II, para abastecer o bairro de São Cristóvão e adjacências. Este reservatório
está situado acima do Conjunto Habitacional Prefeito Mendes de Moraes, projeto de arquitetura
moderna de Afonso Eduardo Reidy. Edificado em cantaria e alvenaria de pedra, o Reservatório do
Pedregulho “é composto de 2 caixas em níveis diferentes, entre as quais existem 4 cascatas para
arejamento da água.” (FERRAZ et al., 2006, np). Possui reservatório, postos de manobra, torre e
residências como elementos do seu sítio. Em auditorias técnicas nos anos de 1998 e 2006, profissionais
do Inepac constataram que o estado de conservação do conjunto é regular, que apresenta infiltrações
em seu teto, perdas e danos na cobertura, nos gradis e nas esquadrias (FERRAZ et al., 2006).

O Reservatório do Pedregulho situa-se bem próximo do Conjunto Habitacional Prefeito Mendes de


Moraes, mais conhecido como Conjunto do Pedregulho ou Minhocão, que foi revitalizado em 2015,
após anos de espera. Com este fato, constata-se novamente a questão de mais um patrimônio
abandonado que não foi beneficiado com a revitalização do entorno de um bem modernista. Ainda na
época atual continua sem preservação, aguardando por revitalização como muitos outros patrimônios
da região.

Considerações finais
Pretende-se não criticar pela construção e/ou revitalização de patrimônios modernos, pois
compreende-se que a cidade está em constante mudança e deve ser entendida como um todo. Deste
modo, propõe-se fomentar o fortalecimento de valores históricos e culturais, bem como revitalizar e
“olhar” para os patrimônios antigos que se encontram abandonados, enquanto também poderiam ser
revitalizados para compor a revitalização do entorno da região de São Cristóvão. Indica-se refletir na
revitalização do entorno, considerando a possibilidade de uso e preservação do tradicional e do
moderno.
Ao analisar sobre o abandono e silêncio do Coreto do Campo de São Cristóvão, da Igreja do Bonfim, e
dos reservatórios de água da Quinta da Boa Vista e do Pedregulho, percebe-se claramente que as
políticas públicas relacionadas ao turismo, mobilidade urbana e especulação imobiliária não dialogam
com as políticas de preservação do patrimônio cultural. A consequência de não se “olhar” ou “escutar”
para a deterioração de bens culturais tombados, pode acarretar na perda da história, da memória e da
identidade não só do bem, mas também do lugar. Além disso, questões como o por quê tal patrimônio
tombado está abandonado, o que se pode fazer para reverter a deterioração do bem, e quais os

167
agentes que podem atuar efetivamente para preservar a herança cultural, devem ser amplamente
discutidos como providência para a salvaguarda do patrimônio ambiental urbano dos lugares.
Preservar o patrimônio ambiental urbano de São Cristóvão, pressupõe não somente classificar sua
herança histórica e patrimonial, sua particularidade funcional e sua posição referente na estrutura
urbana, mas principalmente, estabelecer o porquê de se fazer necessária à sua preservação diante das
transformações urbanas que são necessárias para sua vitalidade. Do mais, é necessário refletir e
discutir sobre a salvaguarda dos seus patrimônios tombados, independentemente de ser um
patrimônio tradicional ou moderno, em face ao essencial e vigente desenvolvimento urbanístico do
qual a região depende para a sua manutenção física e permanente valorização.
Para o enfrentamento dos desafios da preservação do patrimônio ambiental urbano, considera-se
importante que se reflita conjuntamente a transformação urbana e a permanência ativa dos
patrimônios antigos que constituem as rugosidades da paisagem urbana do lugar. O Rio de Janeiro,
como outras grandes cidades, possui complexidades em decorrência da transformação do espaço que
tornam ainda mais profundos os desafios para a preservação do patrimônio ambiental urbano.
Entretanto, as modificações no espaço urbano devem considerar também a revitalização dos
patrimônios tombados abandonados, para que assim o retorno ao uso e função do bem proporcione
a sua preservação. Deste modo, inserir determinado patrimônio que se encontrava abandonado na
vida cotidiana da sociedade por intermédio da sua revitalização em conjunto do fomento do seu uso
contínuo, significa afirmar que o patrimônio é vivo, pois a vivência do bem é que permite o
conhecimento sobre ele e sobre o lugar ao qual está inserido. O patrimônio ambiental urbano de São
Cristóvão deve ser mais valorizado, preservado como um todo, pois sua história, arquitetura, formas,
usos e atividades são que permitem dar continuidade entre o passado, o presente e o futuro.

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YÁZIGI, Eduardo. “O patrimônio ambiental urbano: uma conceituação ampliada e aperfeiçoada”. Revista
Hospitalidade. São Paulo, 2012, Vol. IX, n. 1, pp. 22-51.

170
INVENTÁRIO URBANO E LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA EM GOIÂNIA-GO:
possibilidades de salvaguarda das paisagens culturais de uma cidade nova
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Sandra Catharinne Pantaleão Resende


Doutora em Arquitetura e Urbanismo; PUC – Goiás e UEG; sandra.resende@ueg.br

Arthur Henrique Araújo Vieira


Mestrando (MP-CECRE); UFBA; arthurvieira494@gmail.com

O inventário urbano ultrapassa sua função inicial de catálogo e passa a atuar como diagnóstico
articulado às dinâmicas contemporâneas, às políticas urbanísticas e patrimoniais. Esse artigo
discorre sobre conceitos que ampliam as possibilidades de salvaguarda do patrimônio cultural
edificado, visando, não apenas o “congelamento” do edifício, mas sua integração e atualização
na dinâmica da cidade, tendo em vista o objeto de estudo: a cidade de Goiânia e o dossiê de
tombamento do conjunto Art Déco. O presente artigo aponta uma reflexão sobre o dossiê de
tombamento, visando ressaltar aspectos entre a legislação urbanística e outros instrumentos de
preservação considerando discussões que ampliam a visão de patrimônio no âmbito da cidade
e que estejam incorporadas ao planejamento urbano.
Palavras-chave: Inventário Urbano, Paisagem Urbana, Patrimônio Cultural, Goiânia.

The urban inventory goes beyond its initial catalog function and begins to act as a diagnosis
articulated to contemporary dynamics, urban and heritage policies. This article discusses
concepts that expand the possibilities of safeguarding the cultural heritage built, aiming not only
the "freezing" of the building, but its integration and updating in the dynamics of the city, in view
of the object of study: the city of Goiânia and the dossier of tipping the Art Deco set. This article
points out a reflection on the tipping dossier, aiming to highlight aspects between urban
legislation and other preservation instruments considering discussions that broaden the view of
heritage within the city and that are incorporated into urban planning.
Keywords: Urban Inventory, Urban Landscape, Cultural Heritage, Goiânia.

171
1 - INVENTÁRIO URBANO E PLANEJAMENTO URBANO
As discussões sobre patrimônio têm sido ampliadas. Perspectivas que abarcam questões sociais,
econômicas e culturais são incorporadas, levando à ampliação do conceito de patrimônio. Não
obstante, tem-se novas ações, estratégias e instrumentos para as políticas de preservação,
salvaguarda e inserção dos bens materiais no contexto contemporâneo. As práticas de
preservação e o conceito de paisagem cultural passam também a ser diretrizes para o
planejamento urbano.
Apesar dos avanços e da ampliação de conceitos, percebe-se a disparidade entre o discurso e as
práticas uma vez que há um distanciamento entre a teoria e a salvaguarda desses bens, sejam
eles materiais ou imateriais. Castriota (2007) afirma que esse distanciamento teórico-prático,
no Brasil, parte da falta de compreensão do conceito ampliado e contemporâneo de patrimônio,
bem como dos modelos e perspectivas de como preservá-lo.
Persiste ainda a importância dada ao processo de tombamento como recurso da prática de
preservação com pouca articulação a outros instrumentos e, especificamente, em se tratando
de bens materiais, no âmbito arquitetônico, exalta-se a ideia de monumento e menos a
articulação urbana.
Para Reis (2011), o crescente escalada das intervenções urbanísticas corrobora para a
aproximação entre as políticas públicas patrimoniais e planejamento urbano, ressaltando
processos de mudanças nas posturas da esfera federal e a criação de órgãos estaduais ou
municipais especializados e responsáveis pelas implementações dos programas setoriais. Dessa
forma, as ações de preservação se deslocavam do tombamento em prol de formas mais
abrangentes de atuação, ainda que outros interesses estejam presentes como, por exemplo,
interesses econômicos. Há, portanto, a necessidade de uma articulação eficiente entre as
políticas de preservação e as de renovação, mediante planos específicos relacionados à
legislação urbanística municipal.
O inventário urbano, como instrumento de interpretação e diagnóstico, possibilita uma
articulação com ações do planejamento urbano, sendo discussões presentes nas Cartas
Internacionais mais atuais que, muitas vezes, estabelecem relações e o rebatimento da cultura
no ambiente construído e seu papel na formação da identidade local, por meio da conservação
integrada. Conceitos como estes ampliam as possibilidades de salvaguarda do patrimônio

172
cultural edificado e sua inserção no tecido urbano, visando, não apenas o “congelamento” do
edifício mais sua integração e atualização na dinâmica da cidade.
Trata-se de uma abordagem do patrimônio cultural edificado como paisagem. Um sistema de
signos e símbolos interdependentes e passíveis de leitura, em que o conjunto sobrepõem o
objeto isolado, revelando especificidades das várias camadas históricas que constituem o
espaço urbano. Desse modo, o inventário urbano ultrapassa sua função inicial de catálogo, como
ocorre com o tombamento, e passa a atuar como diagnóstico, considerando aspectos da
urbanidade que, até então, eram ignorados pelas ações do planejamento urbano.
Após a criação SPHAN em 1937, a utilização do inventário promoveu a documentação das
principais obras arquitetônicas no território nacional e de todo o acervo dos museus federais1.
Motta (1987) reconhece esse trabalho de grande valia para o conhecimento público, que além
de evidenciar a existência de um patrimônio nacional evitava a sua lapidação. No entanto, essa
abordagem seguia os parâmetros da “coleção de objetos”, pautando-se nos critérios de
unicidade e excepcionalidade. Desse modo, o inventário por meio de uma visão orientada,
documentava objetos isolados na cidade prevendo a sua preservação por meio do tombamento.
Essa abordagem permaneceu até as décadas de 1960 e 1970, a partir das Cartas Patrimoniais de
Veneza (1964) e de Amsterdã (1975) que apontam, segundo Choay (2002), uma ampliação
tipológica, cronológica e geográfica abarcando conjuntos urbanos e cidades inteiras, bem como
estilos e manifestações populares, antes ignoradas. No Brasil, essas ampliações são
compreendidas pelo SPHAN, entretanto o uso do inventário como simples mapeamento de
monumentos históricos, por meio das fichas inventariais, permanecendo ainda como
instrumento central das políticas de preservação.
Cabe mencionar, no entanto, que mesmo as práticas que adotam o monumento isolado são, por
si só, relativistas. As fichas de inventário de bens levantam apenas questões estéticas referentes
às fachadas, não havendo uma preocupação com o interior do edifício, os modos de ocupação
ou entorno imediato, distanciando mais ainda o patrimônio edificado da cidade e, por
consequente, dificultando sua conservação.
Essa ruptura entre a teoria e a prática estimulou tentativas de redirecionar o enfoque dessas
políticas, do monumento histórico para o conjunto urbano, incorporando nestas o conceito
ampliado e contemporâneo de patrimônio cultural.

1
CASTRIOTA, Leonardo, op.cit.

173
O uso do inventário urbano como instrumento de planejamento urbano, por meio do
reconhecimento de aspectos presentes na paisagem cultural, introduzindo aspectos culturais
para intervenções que visam a salvaguarda de conjuntos históricos. Assim, é necessária uma
revisão das fichas de inventário a fim de incluir efetivamente aspectos da estrutura ativa como
os lugares culturais, celebrações e manifestações locais, bem como a dimensão urbana.
Mediante essas questões, cabe refletir sobre o tombamento do Art Déco e as tratativas de
alavancar o inventário urbano como instrumento de conservação integrada. Verificam-se as
limitações e restrições propostas pelo IPHAN ao Centro Expandido e a valorização dos bens
imóveis como monumentos e expressão do ideário moderno como gênese da própria cidade.
O inventário urbano, como instrumento de reconhecimento de conjuntos históricos vem sendo
utilizado desde a década de 1930, no Brasil. Voltado para o mapeamento dos monumentos
históricos e aspectos físicos da paisagem de interesse histórico-artístico, se tornou um grande
aliado junto às políticas patrimoniais. Contudo, Castriota (2007) aponta seu uso apenas como
“prática acessória” antecedendo o marco legal do tombamento.

2- GOIÂNIA, CIDADE NOVA E CONJUNTO ART DÉCO


Goiânia é uma cidade planejada cuja proposta urbanística expressa a circulação e difusão das
ideias modernas. Sua origem está influenciada pela Marcha para Oeste e sua concepção
urbanística revela seu viés político, tendo em vista a ascensão do poder por grupos sociais
inclinados à vida urbana em oposição aqueles mais relacionados ao ambiente rural. Como
represente daquele grupo, tem-se Pedro Ludovico Teixeira, que, após ser nomeado interventor
federal por Getúlio Vargas, deu início à proposta de transferência da capital. A partir de 1932,
foram emitidos diversos decretos, visando a construção da capital: desde a definição do local,
seguido pelo lançamento da pedra fundamental em 24 de outubro de 1933 e a transferência
definitiva em 1937 por meio do decreto nº 1816 (PREFEITURA DE GOIÂNIA, 1942).
O local, escolhido para a construção da nova capital, foi o sítio entre as Fazendas “Crimeia”,
“Vaca Brava” e “Botafogo” às margens do Córrego Botafogo, após o relatório técnico revisado
pelo engenheiro Armando Augusto de Godói, conforme decreto nº 3359 de 18 de maio de 1933.
Em seguida, o arquiteto-urbanista Attílio Corrêa Lima foi nomeado para desenvolver o projeto
urbano da capital e os edifícios públicos, visto sua formação na França e os referenciais
modernos em voga. A concepção da cidade é orientada pela influência do urbanismo
academicista, isto é, respaldado pela composição estética presente na Beaux-Arts, somadas às

174
soluções modernistas de setorização e infraestrutura articulada ao sítio. Os edifícios públicos,
definidos em conjunto com a planta urbanística, apresentava traços modernos e pretendia
reforçar a motivação de sua construção: exercer a função de sede administrativa do Estado de
Goiás. Caberia a Attílio Correa Lima reforçar essas posturas e, consequentemente, favorecer a
atração de pessoas para a região. Trata-se de um discurso de negação da tradição colonial ao
afirmar as condições insalubres de Vila Boa, a capital do Estado à época. Para tanto, a gênese de
Goiânia concentra-se em acompanhar as transformações urbanísticas presentes nos grandes
centros urbanos, favorecendo a ocupação do interior.
O projeto iniciado por Attílio Correa Lima e, depois, associado às contribuições de Armando
Augusto de Godói e da atuação do escritório Coimbra Bueno, detinha diversas ideias modernas,
representadas, por exemplo, pelo zoneamento funcional e por um estilo arquitetônico que
reforçaria o desejo de modernidade – o Art Déco (MANSO, 2018) (figuras 1 e 2).

Figura 4: Delimitação da área para construção Figura 5: Plano piloto projetado por Attílio Corrêa
de Goiânia. Lima em 1933.

Fonte: DINIZ, 2007. Fonte: acervo dos autores, 2017.

Goiânia é resultado de um projeto urbanístico idealizado, proposto e alterado por um grupo de


profissionais, sendo uma das representantes das cidades novas criadas ao longo do século XX.
O projeto da cidade e sua implantação são resultantes da contribuição de vários profissionais
cuja intenção foi impor um espírito de modernidade em pleno sertão (MANSO, 2018). Sua
historiografia é datada pelo batismo cultural, ocorrido em 1942, quando foi lançada uma

175
publicação com o intuito de reforçar o papel da cidade e oficializar sua história. Mais tarde,
juntamente com os documentos de sua fundação, teve-se, por parte do IPHAN, o
reconhecimento desse discurso por meio do tombamento federal (MANSO, 2010) do conjunto
arquitetônico Art Déco e do traçado pioneiro da cidade (figura 3).

Figura 6: Área do Tombamento Federal - Poligonal de tombamento do centro de Goiânia - GO.

Fonte: SEPLAM, 2019.

No entanto, Goiânia registra um crescimento vertiginoso e espraiamento do seu território desde


meados dos anos 1950, revelando dinâmicas urbanas para além do núcleo pioneiro com a
formação de subcentros, observados desde os anos 1960 e legitimados nos anos 1990, quando
foi reconhecido o processo de urbanização da capital do Estado de Goiás e sua fisionomia,
resultando no Plano de Desenvolvimento Integrado (PDI) de 1992. Este, por sua vez, resultou na
legislação urbanística da cidade vigente entre 1994 e 2006 (GOIÂNIA, 2008). No diagnóstico da
cidade atribuíram-se seis subcentros e o núcleo pioneiro, vistos como centralidades visto suas
especificidades e a definição de ações necessárias para torná-los polos de desenvolvimento
urbano, a saber: o Núcleo pioneiro, a Vila Novo Horizonte, o Setor Jardim América, o Setor
Campinas, o Setor Vila Nova, o Setor Pedro Ludovico e o Jardim Novo Mundo (figura 4).
O PDI (GOIÂNIA, 1992) definiu a estrutura urbana por áreas pela densidade de ocupação, sendo
a primeira delas o centro original da cidade, por possuir uma estrutura urbana consolidada e por
apresentar os maiores adensamentos e concentração das atividades e atração de demanda; as
demais áreas apresentavam baixa ocupação, vistas como áreas suscetíveis à expansão urbana
ou à ocupação futura. Observa-se o destaque da área central e dos subcentros para a

176
estruturação urbana da cidade e a definição de diretrizes para o ordenamento territorial, mas
desarticulada de ações que o articulassem às políticas de preservação da paisagem.
O PDI refere-se ao reconhecimento do Patrimônio Histórico da Cidade, assinalando a
necessidade de preservação dos monumentos históricos e as legislações urbanísticas municipais
que já definiam áreas de interesse histórico e cultural (GOIÂNIA, 1992). Consta que, mesmo
sendo uma cidade jovem, Goiânia possui elementos importantes associados às suas origens. O
diagnóstico do PDI aponta que o Plano Urbanístico inicial detém elementos de destaque que
expressam a história da cidade, recomendando o tombamento dos bens a nível federal, já que
alguns deles foram tombados a nível estadual em 1980. Segundo o documento, o tombamento
estadual ocorreu para salvaguarda dos bens imóveis de Goiânia de modo isolado, ainda que
inseridos no Núcleo Pioneiro.

Figura 7: Subcentros conforme diagnóstico do Plano de Desenvolvimento Integrado de 1992.

Fonte: Goiânia (1992) com modificações dos autores, 2015.

177
Em 2000 foi estabelecido, pela prefeitura de Goiânia, sob responsabilidade da Secretaria
Municipal de Planejamento – SEPLAM, o grupo de trabalho GECENTRO (Grupo Executivo de
Revitalização do Centro), cujo objetivo estava em definir ações e projetos de revitalização da
área central. Entre outros, foram elaborados: o projeto Cara Limpa, o concurso de revitalização
da Avenida Goiás e o tombamento a nível federal do conjunto Art Déco do núcleo pioneiro, além
do tombamento do traçado inicial da cidade (figura 6).
Ao analisar o dossiê de tombamento, observa-se que há pouca articulação entre a proposta de
tombamento do traçado pioneiro e os bens imóveis uma vez que esses são apresentados em
separado, em que constam o bem protegido, o perímetro da área de tombamento, o perímetro
da área do entorno e a subárea com restrições de ocupação. Ao especializar esses componentes,
nota-se que não são observadas as continuidades e outras expressões culturais seja nas
subáreas ou nos intervalos entre elas. Um exemplo ocorre ao longo da Avenida Anhanguera,
que desempenhou papel de estruturação urbana, pois era a principal via de ligação com
Campinas, cidade que serviu de apoio para construção da nova capital, sendo parte do traçado
tombado.

Figura 8: Bens tombados e constituintes do conjunto Art Déco de Goiânia.

Fonte: Valim, 2018.

178
No entanto, entre os bens imóveis essa articulação não se efetiva e tampouco são consideradas
as demais manifestações culturais que demonstram a heterogeneidade de ocupação da cidade,
reverberando inclusive a migração e a dinâmica de diferentes heranças culturais presentes na
paisagem urbana.
Observa-se que os bens foram inventariados individualmente, definindo o perímetro da área de
entorno de cada um deles, além do traçado viário tombado. No entanto, no documento
submetido ao pedido de tombamento, são exaltados o papel de Goiânia como cidade nova,
articulada ao projeto nacional de colonização do sertão e, por outro lado, a crise de identidade
pelo reconhecimento em 2001, da antiga capital, Vila Boa de Goiás, atual cidade de Goiás, como
patrimônio da humanidade para a Unesco.
Reforça-se nesse trecho a afirmação do ideário moderno que subsidiou a implantação de
Goiânia e a importância em destacar seu conjunto Art Déco como expressão da goianidade e
tidos como testemunhos deste feito histórico, reforçando o discurso oficial. Sob este aspecto,
percebe-se que o estilo foi tomado como referência de modernidade e exaltação da ação pública
em dominar territórios e demarcá-lo com edifícios administrativos, totalizando vinte bens
imóveis. Paulo Bertran, em seu parecer, retoma esse discurso oficial ao relatar que:
O homem do cerrado [...] é essencialmente, um construtor de cidades e de
capitais, refletindo a intensidade de transfigurações com que a história nos
tratou. Pela ordem, três capitais planejadas: Goiânia, Brasília e Palmas,
alterando a gravimetria do país e consolidando de vez sua territorialidade.
(MANSO, 2010, p. 80)

São questões que trazem à tona não só as intenções desse tombamento, como também a
necessidade de articular as políticas de salvaguarda e preservação do patrimônio cultural à
legislação urbanística que abranja não só esse estilo arquitetônico, mas as nuances de outras
expressões culturais que conformam os perímetros urbanos tombado: núcleo pioneiro de
Campinas e núcleo Pioneiro de Goiânia. Isso porque devem ser mais bem definidas as restrições
e uso e ocupação do solo permitidos e os critérios de construir no construído de modo a conciliar
a preservação à dinâmica própria da contemporaneidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A somatória de todos esses aspectos gera um vetor de interesse e, ao longo deste, áreas de
intervenção para a conservação integrada do patrimônio cultural edificado, visando a adoção de

179
instrumentos que abarquem as ações de preservação e ordenamento territorial. Essa
abordagem considera a cidade como um sistema de símbolos interdependentes que são
entendidos, apenas, dentro do seu conjunto.
Isso porque o Dossiê de tombamento, mais forja uma identidade ao reforçar e ressaltar o desejo
de modernidade presente na construção de Goiânia, mas insuficiente para abranger as diversas
manifestações que conformam a paisagem urbana heterogênea da cidade planejada. Essa
afirmativa se comprova pois o documento não considera os sujeitos e representações sociais
que lhe atribuem significado, principalmente ao verificar os núcleos Pioneiros tombados de
Campinas e Goiânia. Ademais, poucas foram as ações efetivas do ponto de vista da gestão
pública em definir instrumentos e estratégias específicas que permitissem articular as políticas
de preservação às especificidades das áreas definidas como de especial interesse histórico. Ao
que parece, o tombamento é tido como ponto final e não como início para que esse diálogo
ocorra efetivamente entre os bens imóveis e a conservação integrada.
De modo geral, à guisa de uma conclusão e futuros desdobramentos de pesquisa, a história
oficial de Goiânia, a expressão de modernidade e a antítese às características coloniais da antiga
Capital moldam o próprio Dossiê de tombamento, ressaltando a dialética entre antigo e novo.
Essa constatação apoia-se no fato de que as duas cidades estiveram em voga: a cidade de Goiás
por ser considerada patrimônio cultural da humanidade pela UNESCO em 2001 e, logo em
seguida, a solicitação da municipalidade pelo tombamento do conjunto Art Déco.
De modo geral, o discurso do documento reforça as permanências e pouco elucida as
transformações urbanas próprias de uma cidade planejada e suscetível a adaptações à medida
que houve mudanças do traçado proposto, pela demolição de conjuntos arquitetônicos ou ainda
pela verticalização de determinados pontos do centro, notadamente no limite leste e oeste,
permitindo afirmar as dinâmicas urbanas presentes em Goiânia
Desse modo, o inventário do patrimônio urbano e cultural, como diagnóstico, reafirma vínculos
entre patrimônio edificado e a cidade, não podendo, assim, ser analisado isoladamente dentro
de uma perspectiva de conservação.

Referências
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Patrimônio: amb. constr. e patr. Sust., Belo Horizonte, v. 1, n.1, set./dez., 2007.

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180
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181
LARANJEIRAS/SE: reflexões sobre o patrimônio arquitetônico de uma “Cidade
Monumento”
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Erica Andrade Modesto


Arquiteta e Urbanista, mestranda em Arqueologia; Universidade Federal de Sergipe;
ericaandrademodesto@gmail.com.

Fernando José Ferreira Aguiar


Doutor em Educação, mestre em História Social; Docente da Universidade Federal de Sergipe;
historaguiar@gmail.com.

Este artigo apresenta reflexões sobre a transição dos processos de silenciamento do conjunto
arquitetônico da cidade de Laranjeiras/SE, dentro da relação de um patrimônio reconhecido
oficialmente, que passou por um longo processo de arruinamento de suas edificações,
caracterizando o silenciamento do patrimônio por abandono e, em um segundo momento, o
silenciamento pela ausência de repercussão comunitária da população diante das políticas
públicas preservacionistas implantadas na cidade. Por conta da pandemia do Covid-19, não foi
possível a realização de entrevistas atualizadas com os moradores de Laranjeiras, como previsto
inicialmente. Desse modo, como complemento, a investigação do trabalho baseou-se em
analisar o histórico dessas ações preservacionistas e se esses registros apontam para ações que
tiveram um diálogo ou silenciamento da comunidade local.
Palavras-chave: Laranjeiras/SE; patrimônio arquitetônico; ações patrimoniais.

This article presents reflections about the process of silencing upon the architectonic complex
in the city of Laranjeira/SE, where the officially recognized heritage went through a long process
of ruination of its built environment, marking the silencing of this heritage, at first through
abandonment and then, in a second stage, through the lack of community participation
regarding the public conservation politics implemented in the city. Due to the Covid-19
pandemic, it was not possible to do new interviews and attempt face-to-face communication
with the city inhabitants, as it was initially predicted. Therefore, as a complement, this work’s
investigation is based on analyzing the history of those conservative actions and checking
whether the records demonstrate actions which were discussed with the local community or
the actual silencing of this community.
Keywords: Laranjeiras/SE; architectural heritage; conservative actions.

182
1 - Introdução
Este artigo apresenta reflexões sobre o significado do silenciamento do conjunto arquitetônico
da cidade de Laranjeiras/SE, dentro da relação de um patrimônio reconhecido oficialmente e o
que reverbera na comunidade local. Esse silenciamento pode ser dividido em dois momentos: o
primeiro caracteriza o silenciamento do patrimônio por abandono – caracterizado pela migração
populacional da elite da cidade, e por conseguinte, arruinamento dos trapiches e grandes
casarios; e o segundo momento, o silenciamento pela ausência de repercussão comunitária da
população laranjeirense diante das políticas públicas de tombamento e salvaguarda do
patrimônio cultural da cidade.
Desse modo, para entender a transição dos silenciamentos descritos acima, será
contextualizado o panorama da evolução urbana de Laranjeiras, entendendo as transformações
urbanas que levaram Laranjeiras até os status de “Cidade Monumento” e “museu à céu aberto”.
Destaca-se aqui, que devido a pandemia do Covid-19, as entrevistas com a população de
Laranjeiras, anteriormente previstas para a realização desse artigo, foram canceladas. Por
conseguinte, foi optado nesse artigo, por uma reflexão investigativa sobre as ações patrimoniais
implantadas em Laranjeiras e se estas trazem conexões com a comunidade laranjeirense.

2 - Evolução urbana de Laranjeiras: do apogeu ao declínio


A evolução urbana de Laranjeiras se inicia entre as povoações ao longo do Vale do Cotinguiba,
que foram de grande importância na consolidação da Província de Sergipe Del Rey (atual estado
de Sergipe), estando Laranjeiras em destaque por conta de sua posição geográfica privilegiada
e da fertilidade do solo, propício para a plantação da cana-de-açúcar (AZEVEDO, 1975a; COSTA,
2013; FEITOSA, 2012). Por volta de 1606, foi construído um pequeno porto fluvial, tornando-se
a base para o início de uma ocupação efetiva do solo e o estabelecimento de grupos residenciais
(AZEVEDO, 1975a).
A povoação foi então, alavancada pelo porto e pelos grandes engenhos de cana de açúcar, em
um crescente destaque econômico, dos séculos XVI ao XVIII. Já no século XIX, a povoação de
Laranjeiras se consolidou como centro econômico, social e de grande desenvolvimento cultural
e intelectual, onde, Laranjeiras foi considerada como a “Athenas de Sergipe”, por ser uma
espécie de centro cultural do estado, bem como, mantinha a posição de cidade onde as letras e

183
as artes se desenvolviam, justificando-se com quinze publicações entre jornais e periódicos
(AZEVEDO, 1975b).
Nessa época, Laranjeiras contava também com casas térreas, sobrados, trapiches pontes, igreja
matriz e cemitério, conforme descrito em memorial justificativo de projeto para a construção
da Cadeia de Laranjeiras, do ano de 1847 (Azevedo, 1975a). Por conseguinte, em 1848, como
apresenta Feitosa (2012, p. 107), “Laranjeiras tem seu mais valioso reconhecimento político: o
Distrito então é elevado à categoria de cidade”. Sucedido por um grande dinamismo
arquitetônico e econômico, atendendo às residências fixas ou de apoio aos grandes
comerciantes do açúcar, que construíram seus sobrados próximo aos trapiches e casas
comerciais. Desse modo, Laranjeiras tornou-se, no passado, a cidade mais importante da
província de Sergipe, vivendo seu apogeu durante o século XIX, considerado como o século de
ouro da cidade (AZEVEDO, 1975a; FEITOSA, 2012).
Sendo assim, nessa época, por notável estrutura econômica, política e geográfica, Laranjeiras
chegou a ser cotada para se tornar a nova sede de Sergipe Del Rey. No entanto, o presidente da
província, optou por transferir a sede – que era a cidade de São Cristóvão – para a povoação de
Aracaju. “Não se tem convicção dos motivos da preferência por Aracaju: os historiadores apenas
apontam que a mudança não fora feita numa lógica razoável, haja vista o excelente momento
pelo qual passava Laranjeiras” (FEITOSA, 2012, p.128).
Ao que se sucede, do final do século XIX e início do século XX, Laranjeiras sofreu perdas
comerciais para a sede Aracaju, que por ser banhada pelo mar permitia o tráfego de maiores
embarcações. Ademais, a abolição da escravatura fez decair a economia local de Laranjeiras, na
qual, os pequenos engenhos tornaram-se fornecedores de cana-de-açúcar ou foram
gradativamente anexados à usina Pinheiro, pertencente à grupos econômicos mais consolidados
(AZEVEDO 1975b). Assim, o patrimônio edificado de Laranjeiras e sua estrutura urbana típica de
uma sociedade do Ciclo do Açúcar já não eram mais erguidos pela classe dominante dos
latifundiários e, ao longo do século XX, a cidade já passava por um processo de deterioração do
seu patrimônio arquitetônico colonial.
Com esses fatores, houve por todo o século XX, uma grande migração de intelectuais, políticos,
comerciantes e moradores jovens de 20 a 29 anos, em busca de melhores condições de vida, já
que Laranjeiras apresentava um mercado de trabalho pouco vasto, havendo uma redução de
quase metade dos seus habitantes. Em vista disso, com a migração da classe econômica alta

184
para a capital, permaneceu em Laranjeiras a população economicamente de classe média e
classe baixa, sendo o grupo populacional laranjeirense classificada, por Azevedo (1975b, p. 8),
“como uma pequena aglomeração quase adormecida”.
Os processos descritos acima, ocasionaram no patrimônio arquitetônico de Laranjeiras do
século XX, um silenciamento e a representação de uma dinâmica urbana elitista que já não
reverberava mais com a comunidade que vivia em Laranjeiras. Os trapiches e grandes casarios
passaram à condição de monumentos, assumindo locais de memória (NORA, 1993), onde a
memória se transformou em história.

3 - Do arruinamento ao tombamento: ações patrimoniais


Nessa mesma época, do século XX, diante da necessidade de conservação dos monumentos para
o fortalecimento de uma política de homogeneização da cultura brasileira (NORONHA, 2006), o
Estado passa a decidir o que seria preservado, garantindo essa ação através da política cultural
de patrimônio do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN37, Decreto-lei n.
25/1937, o qual passa a promover “o tombamento, a conservação, o enriquecimento e o
conhecimento do patrimônio histórico e artístico nacional” (BRASIL, 1937, art. 46).
Desse modo, na década de 1940, o acervo cultural de Laranjeiras passou a ter reconhecimento
nacional através do tombamento, conforme a legislação vigente no Brasil, de monumentos
isolados da cidade, para preservar seu acervo arquitetônico. Foram tombados: a Igreja Matriz
do Sagrado Coração de Jesus, no centro da cidade; a Igreja Nossa Senhora da Conceição, situada
nas terras Comandaroba, que havia sido construída pelos jesuítas; a capela do Engenho Jesus,
Maria e José; a casa grande do Engenho Retiro com o anexo da capela de Santo Antônio, que
também tinham sido propriedade dos jesuítas.
Azevedo (1975c) destaca que esses monumentos foram tombados, mas que até o ano de 1975,
só a igreja de Comandaroba que havia passado por restauração, estando as demais igrejas mal
cuidadas, bem como outros monumentos (que não são igrejas) estavam sem tombamento ou
qualquer proteção legal. Houve, nesses tombamentos, a atribuição de valor e a legitimação
desses bens como patrimônio, no entanto, ainda dentro de uma visão seletiva de monumentos
religiosos e/ou de importância econômica para os anos passados de apogeu da cidade. Nesse

37
Atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

185
momento, o contexto urbano ficou aquém, e por consequência, a relação das pessoas com esses
novos bens patrimoniais.
Prosseguindo sobre o patrimônio arquitetônico de Laranjeiras, a cidade foi, na década de 1970,
contemplada com o título de “Museu a céu aberto” pelo ministro da Educação da época
(DANTAS, 2015). Bem como, foi elevada à categoria de “Cidade Monumento” por Decreto
Governamental nº 2.048, de 12 de março de 1971, passando a ter proteção de Tombamento
Estadual da Cidade (BRASIL, 2005). O ato de tombamento de conjuntos urbanos, como ressalta
Silva (2012), evidencia uma nova orientação nas políticas de salvaguarda de sítios históricos,
permitindo manter a unidade arquitetônica de uma série de bens patrimoniais.
Com esses progressos no campo patrimonial, Laranjeiras foi inserida no Programa Integrado de
Reconstrução de Cidades Históricas do Nordeste, implementado a partir de 1973, pelo
Ministério do Planejamento, cujo objetivo era o desenvolvimento de cidades históricas em
diálogo com o desenvolvimento regional a partir da dinamização econômica pelo melhoramento
da infraestrutura básica e da indústria do turismo. A análise físico urbanística da situação de
Laranjeiras, classificou o seu acervo arquitetônico como subutilizado, se fazendo necessário
reutilizar as edificações ociosas da cidade (Azevedo, 1975c). Assim sendo, houve a elaboração
do Plano Urbanístico de Laranjeiras, em 1975, a partir da catalogação das edificações de
interesse cultural da cidade, bem como de uma setorização uniforme, com indicações de novos
usos para as edificações dentro das categorias de uso institucional, comercial e residencial.
Esse Plano Urbanístico gerou um material detalhado, desde o histórico da evolução da cidade
até a realização de mapas, bem como a catalogação das edificações por meio de fichas
cadastrais, direcionando diretrizes de como os moradores poderiam alavancar o turismo na
cidade. Entretanto, após o fim da intervenção, não se tem registros de se esse material foi
passado das autoridades para a comunidade laranjeirense, nem sobre incentivo financeiro para
a restauração das edificações. Nesse momento, o patrimônio que estava anteriormente
silenciado pelo arruinamento, ganha notoriedade ao passo que a comunidade é silenciada por
não fazer parte efetiva da execução do plano. A comunidade passa a ser coadjuvante da
protagonista “cidade monumento”.
Posteriormente a isso, em 1996, o Conjunto Arquitetônico e Paisagístico de Laranjeiras passa
por tombamento federal. As ações físicas de intervenção e restauro no conjunto tombado de
Laranjeiras aconteceram a partir de 2004, quando Laranjeiras é contemplada com para o

186
desenvolvimento de ações preservacionistas a partir do programa de recuperação sustentável
do patrimônio histórico urbano brasileiro, denominado por “Monumenta”, conforme a lista de
prioridades de conservação elaborada pela Comissão especial do Ministério da Cultura em
outubro do ano 2000 (SILVA, NOGUEIRA, SANTOS, 2017).

4 - O Programa Monumenta em Laranjeiras


No ano de 2005, o diagnóstico do Monumenta para o perímetro tombado de Laranjeiras, sobre
o estado geral de conservação do sítio e de seus imóveis foi de decadência, embora ainda se
notasse o antigo esplendor que a cidade já vivera, pois o seu conjunto arquitetônico
representava o estilo de vida de uma época passada e “conservam em linhas gerais seu traçado
original, calcado nos padrões do colonizador português, hoje em estado de conservação precário
motivado pelos desgastes naturais do tempo e à ação do agente humano” (BRASIL, 2005, p.
395). Sobre os moradores laranjeirenses, o referido programa citou que “a comunidade local é
consciente da importância cultural da Cidade, mas não existe uma mobilização para atuação na
área, talvez desestimulada pela falta de recursos financeiros”, do mesmo modo, acrescenta que
“o setor privado ainda não se sensibilizou para investir nos projetos de preservação fora de sua
propriedade” (BRASIL, 2005, p. 397).
A atuação do Monumenta não foi padronizada, pois seguiu o contexto histórico e o caso a caso
do diagnóstico de cada cidade contemplada. Como explicitam Nery e Baeta (2012), em
Laranjeiras, a área de restaurações do programa se concentrou no núcleo central, com o intuito
de reverter o avançado estado de arruinamento, em que se encontrava o patrimônio
arquitetônico de Laranjeiras.
Devido ao avançado estado de arruinamento que se encontrava alguns desses
edifícios, era fatal o aspecto de abandono do espaço urbano. Em busca de
reverter essa situação, a Unidade Executora de Projeto (UEP) – braço do
Monumenta na cidade (cuja especialista em patrimônio era a arquiteta
Juliana Nery), o Instituto de Patrimônio Artístico e Histórico Nacional (IPHAN)
e o grupo de professores e alunos do Curso de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Tiradentes (UNIT – Aracaju) que desenvolveu as propostas de
intervenção, optaram – dentro das várias ações definidas pela oficina de
planejamento (com envolvimento da comunidade local) que precedeu a
implantação do Programa – por concentrar os recursos do Monumenta no
conjunto da Praça Samuel de Oliveira devido à excepcionalidade do espaço e
à urgência de sua recuperação, bem como pelas características históricas,
morfológicas e estéticas de Laranjeiras (NERY E BAETA, 2012, p.3).

187
Ademais, os arquitetos acrescentam o fato de que a Praça Samuel Oliveira estava em pior estado
de conservação, contemplando uma área muito grande de antigos trapiches em estados de
ruínas, bem como, por Laranjeiras já ter um histórico anterior da intervenção do Plano
Urbanístico de 1975, em que as diretrizes pautaram no desenvolvimento turístico da cidade, no
entanto, foi uma vertente que não alavancou na cidade. Desse modo, a vertente do Monumenta
em Laranjeiras guiou-se na escolha de edifícios que conseguissem abrigar o programa de
necessidades de um Campus da Universidade Federal de Sergipe – UFS (NERY e BAETA, 2012).
Consta-se que a implantação do campus tinha o intuito de criar uma dinâmica urbana que
integrasse a revitalização dessas edificações com o uso da população. O projeto original do
campus contemplava uma proposta aberta e permeável, em que houvesse uma troca de
visualizações com o exterior e o interior através de uma permeabilidade visual, incentivando o
morador de Laranjeiras a adentrar o campus e usufruir do patrimônio restaurado: “mais do que
um mero atrativo turístico, a estratégia do Projeto Laranjeiras foi pensar a intervenção como
um foco radiador de novas práticas, fazendo com que a população pudesse trazer vida ao espaço
da cidade através da sua utilização” (NERY e BAETA, 2012, p. 3).
No entanto, durante a execução das obras de restauração, houve muitas modificações no
projeto arquitetônico e de restauro, sem consulta previa e sem comunicação com os arquitetos
autores do projeto. Como os próprios arquitetos expõem (NERY e BAETA, 2012), a solução final
da restauração deu lugar a uma edificação socialmente fechada em torno de si mesma, com
pouca permeabilidade visual e escassa conectividade direta com a população local. Há também
uma crítica, em que houve uma troca dos cursos de licenciatura pela implantação dos cursos
bacharelados de Arquitetura e Urbanismo, Arqueologia e Museologia. De licenciatura foram
implantados os cursos de Dança e Teatro.
Pontua-se aqui, que o Campus de Laranjeiras da Universidade Federal de Sergipe trouxe
movimentação para a cidade de Laranjeiras ao passo que oferta os cursos bacharelados durante
o dia e ofertavam os dois cursos de licenciatura durante a noite. No entanto, os cursos noturnos
de Teatro e Dança foram, em 2014, retirados da cidade de Laranjeiras e transferidos para o
campus sede da universidade na cidade de São Cristóvão/SE.
Os autores deste artigo, na figura uma discente e um docente do Campus Laranjeiras da
Universidade Federal de Sergipe desde os anos de 2014, possuem experiência pessoal com
alguns dos dilemas apresentados acima sobre o referido campus. A Universidade traz

188
dinamismo urbano e econômico para a cidade de Laranjeiras, à medida que abrigam cursos
integrais com discentes utilizando o comércio da cidade e, em alguns casos, residindo também
em Laranjeiras. No entanto, realmente o campus se apresenta como um local majoritariamente
de estudantes que não são naturais de Laranjeiras. Além disso, os cursos de teatro e dança, por
serem noturnos, traziam engajamento para a Praça Samuel Oliveira, na qual fica localizado o
campus, com intervenções e apresentações interativas com a população local.
A retirada desses cursos do campus, na época, por questão de segurança aos discentes do
período da noite, aumentou a lacuna entre a relação da universidade com a comunidade.
Relação esta, que procura ser atenuada com trabalhos acadêmicos e pesquisas científicas sobre
a cidade de Laranjeiras, com o intuito de haver um retorno à comunidade local e haver a
democratização do conhecimento científico.

5 – Considerações finais
A cidade de Laranjeiras possui um rico conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico que
passou, ao longo dos séculos, por mudanças econômicas que a levaram do apogeu até o título
de uma “cidade monumento” que estava em vias de desaparecimento pelo grau de
arruinamento de suas edificações. Entretanto, Laranjeiras foi ganhando notoriedade histórica e
teve seu patrimônio arquitetônico reconhecido por tombamento federal, bem como, foi
contemplada cm ações de preservação e restauro. O primeiro momento do silenciamento do
patrimônio de Laranjeiras aconteceu quando ele esteve em arruinamento e esquecimento, no
entanto, esse silencio foi rompido a partir das ações de proteção ao patrimônio implementadas
na cidade.
A partir de então, o patrimônio de Laranjeiras passa a ir além de pedra e cal. Porém, considera-
se ainda muito forte o status de “cidade monumento” que Laranjeiras possui, ao passo em que
ainda não há um grande engajamento entre a comunidade e o patrimônio. Há, nesse segundo
momento, um silenciamento desse patrimônio por uma falta de repercussão comunitária. As
ações preservacionistas sempre citam em seus registros que houve uma consulta e participação
prévia da comunidade nos planos de intervenção, mas não explicitam se durante a implantação
dessas ações houve a integração da população local em um trabalho de educação patrimonial,
de apresentar a importância dessas ações ou dar diretrizes e recursos físicos reais para a
continuidade da manutenção desses patrimônios.

189
Ademais, o campus Laranjeiras da UFS pode ter um papel grande de contribuição nas reflexões
sobre o patrimônio laranjeirense junto à comunidade, a partir da democratização do
conhecimento, ações de intervenção, artigos acadêmicos, entre outros. Por fim, ressalta-se que
em trabalhos que envolvem diretamente a comunidade, como é o caso deste artigo, é de grande
importância ouvir diretamente o que a comunidade tem a dizer e refletir sobre seus discursos e
anseios. Espera-se, que em um próximo artigo dessa temática, já seja possível a realização desse
contato direto com a comunidade, aprofundando a problemática e obtendo resultados que vão
além do campo da reflexão.

Referências
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Salvador: GRAU, 1975a. v. 1.

AZEVEDO, Paulo Ormindo David de. (Coord.). Plano Urbanístico de Laranjeiras - aspectos
socioeconômicos. Salvador: GRAU, 1975b. v. 2.

AZEVEDO, Paulo Ormindo David de. (Coord.). Plano Urbanístico de Laranjeiras - análise da estrutura
urbana. Salvador: GRAU, 1975c. v. 3.

BRASIL. Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do patrimônio histórico e


artístico nacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0025.htm. Acesso
em: 09 mar. 2021.

BRASIL. Sítios históricos e conjuntos urbanos de monumentos nacionais: norte, nordeste e centro-oeste.
Brasília: Ministério da Cultura, Programa Monumenta, 2005.

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arquitetônico: a "restauração do quarteirão dos trapiches" de Laranjeiras-SE. Dissertação (Mestrado em
Arqueologia) – Universidade Federal de Sergipe. Laranjeiras, 2013. Disponível em:
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DANTAS, Beatriz Góis. “O Encontro Cultural de Laranjeiras segundo uma observadora participante”.
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FEITOSA, Alan Rafael Veiga. Memórias da cidade: as ruínas da histórica Laranjeiras/SE. Dissertação
(Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal de Sergipe. São Cristóvão, 2012. Disponível em:
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Khoury. São Paulo, 1993.

NERY, Juliana; BAETA, Rodrigo. Entre reflexões e práticas: A experiência do Programa Monumenta em
Laranjeiras/SE. II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e

190
Urbanismo – Teorias e práticas na Arquitetura e na Cidade Contemporâneas. Natal, 2012. [Anais].
Disponível em: <https://cecre.ufba.br>. Acesso em: 27 nov. 2020.

NORONHA, Raquel Gomes. Visualidade, patrimônio e a construção do imaginário no centro histórico de


São Luís-MA. Encontro Anual da ANPOCS, 30º. Minas Gerais, 2006. [Anais]. Disponível em:
<https://www.anpocs.com/index.php/papers-30-encontro/gt-26/gt10-20/3308-rnoronha-
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(Orgs.). Patrimônio cultural: políticas e perspectivas de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Muad X:
FAPERJ, 2012. pp. 269-279.

191
MARCA-TEXTO
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Sergio Augusto Medeiros


Doutorando em Artes Visuais pelo PPG-Artes da Universidade Federal de Minas Gerais;
Bolsista da CAPES; augustomedeirossergio@gmail.com.

No exercício de grifar como instrumento de leitura, o trabalho investiga em imagens,


instituições, bibliografias e demais registros impressos assuntos relacionados à réplica de
monumentos, especificamente de um grupo de esculturas atribuídas ao Antônio Francisco
Lisboa - Aleijadinho (Ouro Preto, 1738-1814). Detectando a formação de um suposto sistema de
moldes reconstruído temporalmente, utilizando-se de métodos de catalogação, foi
desenvolvido, uma espécie de inventário com aproximadamente setenta (70) réplicas analisadas
em diferentes localidades: Ouro Preto (MG), Congonhas (MG) e Santa Rita (MG). Interdisciplinar,
a pesquisa apresenta a conservação de uma representação em transformação e marca
informações que presenciam esse tipo de forma, que, por consequência, parece ser autônoma,
pública e autogeradora.
Palavras-chave: Fluorescente; Leitura; Réplica; Falso.

In the griffon exercise as a reading instrument, the work investigates in images, institutions,
bibliographies and other printed records subjects related to the replica of monuments,
specifically of a group of sculptures attributed to Antônio Francisco Lisboa - Aleijadinho (Ouro
Preto, 1738-1814). Detecting the formation of a supposedly rebuilt mold system, using
cataloging methods, a kind of inventory was developed with approximately seventy (70)
replicates analyzed in different locations: Ouro Preto (MG), Congonhas (MG) and Santa Rita
(MG). Interdisciplinary, the research presents the conservation of a representation in
transformation and mark information that witness this type of form, which, consequently,
appears to be autonomous, public and self-generating.
Keywords: Fluorescent; Read; Replica; False.

192
O ex-diretor Aníbal Mattos pediu que fizessem réplicas dos profetas Jonas, Joel e Amos, com o
objetivo inicial de mostrar cópias extraordinárias aos estudantes e de despertar interesses pelo
patrimônio regional, como as obras do mestre Aleijadinho. Ao todo, as fundições encomendadas
incluíam: Jonas (estuque); Amós (cimento com pó de arenito); Joel (cimento com pó de arenito);
Naum (arenito); Abdias (arenito); Ezequiel (gesso) e Daniel (gesso); e bustos de Amos, Naum,
Abdias e Joel (gesso).
Dentre as inúmeras significações, a palavra mestre deriva de muitas temporalidades: designa
um indivíduo que possui um domínio e que ensina uma arte, ciência ou técnica; uma pessoa que
tem o título acadêmico (mestrado); uma personalidade proeminente do passado que exerceu
autoridade; ou o indivíduo que, por ser exímio em seu ofício, exerce-o de modo independente
e emprega de artífices e aprendizes. A importância de grifar essa palavra nada mais é de que a
tentativa reestruturar seus significados, pois, o grifo é o menos contestável dos ex-libris, é um
gesto que reproduz o sublinhar sobre a página manuscrita, a fim de assinalar aquilo que poderia
estar em itálico (COMPAGNON, 1996, p.18). O grifo na leitura é a prova preliminar da citação e
da escrita em uma determinada localização visual, que institui o direito do olhar sobre o texto,
contudo, o grifo é uma marcação e sobrepõe sua tipografia, inaugurando uma nova diagramação
feita ao ritmo do leitor.
Neste trabalho, essa marcação foi realizada com a finalidade de investigar sobre os possíveis
certificados atribuídos ao conjunto significativo de réplicas relacionadas às obras de Aleijadinho
e pela constituição das histórias associadas a essas replicações. A pesquisa reside na
problematização às figuras que representam de forma coletiva as dinâmicas memorísticas,
associações personificadas e diversos tipos de conservação patrimonial. Em geral, esse texto é
um fragmento de uma série de proposições acerca da cópia real, uma matéria presente nas
superfícies das referências e no reposicionamento do olhar na linha do texto. Seria aqui, uma
remarcação que busca sentidos aparentes aos fatos, com finalidade de contabilizar os moldes e
de grifar uma narratividade já registrada e documentada.
Essas concepções foram assinaladas em diversos ensaios de Barthes, no livro O efeito do real de
1968, o autor direciona a escrita para uma noção do real, como uma referência básica nos
discursos narrativos, históricos e ficcionais, em que o real apenas se reposiciona, “aqui, Barthes
demostra, linha a linha, como Balzac falava: não de uma linguagem a um referente, mas de um
código para outro” (FOSTER, p.171). Nessa mesma percepção, o desafio dessa investigação se

193
dá nas matrizes teórico-práticas e questiona: como catalogar um sistema de códigos
representacionais predominantemente atrelados a um molde historicamente modificado?
Ao preparar um modelo para execução de um molde, a utilização de um pincel é o necessário
para aplicação do agente desmoldante. A solução aquosa de sabão neutro é um produto ideal
que não degrada o original e é de fácil remoção, também, podem ser usados vaselina industrial,
óleo ou azeite, no entanto, esses produtos são difíceis de remover e interferem na cor da
superfície do modelo. A preparação do gesso é feita em uma tigela com água até que atinja a
borda, deixando descansar por alguns minutos. A massa deve ser espessa e ter uma consistência
pastosa, assim que pronta é aplicada a primeira camada, em seguida, uma camada contínua na
peça até cobrir toda a superfície do objeto, dando a devida atenção a parte superior com
acabamento em linha reta e plana, pois ao ser retirada, esta parte será colocada sobre a mesa
para ser tratada. Vale lembrar que, o "berço" do gesso depende de seu tamanho e
complexidade, pode precisar ser reforçado peça por peça com madeira, sisal, carbonato ou
barra de ferro. Após a Secagem completa, pode ser retirado o molde e modelo referente.
A investigação também foi baseada nos diversos modelos referentes: a primeira, na coleta de
materiais em diferentes formatos (cartões postais, artigos, livros, estatuetas e demais peças
associadas às réplicas), e a segunda parte, foi projetada uma instalação, tendo como principal
objetivo evidenciar as relações possíveis com a temática. A pesquisa foi realizada em três
cidades de Minas Gerais. Na seleção dos lugares, foram considerados os elementos geradores
da temática em suas múltiplas relações com o espaço, representação e identidade, sendo esses
lugares privilegiados em diferentes proporções: a) Ouro Preto (MG), pela aparição constante de
réplicas em diferentes formatos e em diversos empregos representacionais, comunicativos e
artísticos; e b) Congonhas (MG), principalmente pela dinâmica de proximidade geográfica dos
originais e a suposta interação com o museu indutor. Em contraste, a cidade Santa Rita (MG) foi
escolhida como controle da análise, devido à distância geográfica do núcleo predominante,
contudo, apresenta uma forte relação com o material bruto dos objetos em análise, a pedra
sabão.
O instrumento de coleta consistiu-se de uma catalogação desenvolvida em uma estrutura
formal, dividida em nove áreas principais de conteúdo: 1) identificação; 2) contexto; 3)
descrições de conteúdo e conhecimento; 4) descrição física; 5) condições de montagem e
registro; 6) uso e restrição legal; 7) preservação; 8) origem relacionada; e 9) descrição de área

194
de controle. Cada área inclui um conjunto de elementos, que podem ser subdivididos. O
objetivo da inserção de informações em cada campo da descrição é gerenciar, processar,
recuperar e salvar os registros. A coleta marca a subdivisão de três codificantes: a)
documentação, com fotografias, cartões postais e outros materiais, ou seja, os itens
referenciais; b) bibliografia escrita, com artigos, ensaios e demais descrições sobre as cópias
envolvidas; e c) moldes, com trabalhos desenvolvidos por outros artistas de cada região
percorrida. Essas variantes favorecem a compreensão dos moldes, que apresentam sinais de
gradações sobre a representação. No total, foram catalogadas 70 réplicas que foram divididas
em três grupos. Cada grupo foi novamente subdivido em subgrupos geográficos, ou seja, cada
local percorrido.

Figura 01: Marca-texto.

Fonte: Acervo Laboratório de Fotodocumentação Sylvio de Vasconcelos Fotografia de Marcos de


Carvalho Mazonni.

195
Ao desenvolver a questão sobre as réplicas referentes surgem sensações bastante desafiadoras,
visto que, os variados estudos sobre o tema aparecem acompanhados por pesquisas que
envolvem aspectos de teórico-práticos específicos, com isso, desenvolver essa investigação
pressupõe considerar tais variações categóricas, que podem atravessar lugares referentes às
articulações do histórico e da preservação.
Esta categoria designa aquele conjunto de atividade, associadas à preservação,
restauração e recriação de objetos, prédios, conjuntos arquitetônicos, cidades
antigas, que sejam representativos de períodos históricos, épocas, ou que
mantenham vínculos com indivíduos célebres, heróis nacionais e
acontecimentos históricos. A categoria recriação, vale assinalar, pode estender-
se e incluir também a reencenação dramática de eventos históricos ou mesmo
do dia-a-dia de determinados períodos históricos (GONÇALVES, 1988, p. 269).

Dentre esses aspectos, Gonçalves (1988) destaca uma relação presente e ativa da reencenação
histórica através da noção de recriação, com isso, estabelece uma interação metonímica entre
proprietário e propriedade de monumentos patrimonializados. Essa encenação aos eventos
históricos também é marcada nos textos de Barthes (1969), no qual o autor estaria assinalando
algumas noções do discurso histórico-narrativo construído por uma estrutura preditiva,
esquematizada e com numerosos rodeios, atrasos, mudanças e decepções, impondo
institucionalmente cada articulação do sintagma narrativo. O autor elucida que a representação
permitiria que o sentido resista, tornando efetiva a dicotomia novo/antigo em um único sistema
representacional, do qual o estudo de construção do novo verossímil é muito diferente do
antigo, pois não se refere às leis do gênero, nem mesmo sua máscara, mas provém da intenção
de alterar a tripartida do signo, a fim de marcar o puro encontro de um objeto e de sua
expressão. A representação pura ou simples do real relaciona o que é e o que aparece ser, de
certo modo, é também a resistência do próprio sentido, confirmando a grande oposição da
ideologia do tempo, em que há uma tentativa de referência obsessiva ao concreto mesmo
sempre armado como uma máquina contra o sentido (BARTHES, 1969).
Em análise, a articulação promotora da referência ou do sentido obsessivo estaria passível de
mutações representacionais atrelados a esse efeito. Nesse pensamento, não é favorável
retomar ao barroco, ao contrário, deve-se voltar para uma das noções de kitsh1 como um dos

1
“Nesta era de espetáculo exacerbado e vigilância generalizada, o kitsch é uma forma relativamente
inócua de persuasão cultural e manipulação política, quase ultrapassada. ” (FOSTER, 2021, p.25)

196
agentes constituintes na porcentagem significativa das réplicas catalogadas. Em um percentual
equivalente, muitas das estatuetas estariam sendo projetadas para outros suportes,
especialmente para estantes ou cantos de uma sala expositiva esquecida, talvez, lembradas nos
centenários do mestre.
Na mesma ideia de Missamóvel (2000) de Nelson Leirner ou até mesmo podendo ser
interpretadas como reprodutibilidade técnica em uma visão beijaminiana, o conjunto de réplicas
apontam diferentes mecanismos, que dependem de sustentabilidade, permanência e
disposição de status representacionais, subjetivos ou simplesmente simbólicos. O molde antes
de tudo, é finito e famoso. “A técnica tem má fama e pode ser destituída da alma. Mas não é
assim que é vista pelas pessoas que adquirem nas mãos um grau alto de capacitação” (SENNET,
2009, p.169). Essa habilidade coloca a réplica como artífice, que também estaria centrado em
padrões objetivos vinculados apenas à autorepresentação. Nesse caso, o artífice
frequentemente enfrenta padrões destinados a própria excelência, bem como, os conflitantes
no desejo projetivo do “benfeito”, explorando dimensões da habilidade, empenho e validação,
como principais especificidades e obtendo uma relação simulada entre mão e cabeça. Também,
Sennet (2009) marca essa simulação contínua no mundo do artífice, provocando a sentença
dicotômica, de que precisamos de um negativo para imprimir um positivo “real”, possivelmente,
um efeito atrelado ao simulacro industrializado.
O original como cópia é uma versão contemporânea do dilema pós-moderno, que aponta para
um desmoronamento da distinção das coisas e do mundo, do negativo e do positivo ou do real
e do fictício. A coisa viva pode ser reproduzida e substituída à vontade, então, perde sua
inscrição única e irreprimível, seu tempo é que dá vida e sentido. É exatamente nesse ponto que
a documentação se torna indispensável, inscrevendo a existência de um objeto na história
independente dele ser original ou artificial, a diferença entre esses dois polos é exclusivamente
narrativa, “a documentação de arte, seja ela real ou fictícia, é, ao contrário, primeiramente
narrativa e, por tanto, evoca a irrepetibilidade do tempo da vida” (GROYS, 2015, p.780).
Remarcando algumas especificidades nos documentos referentes às réplicas coletadas, havia
junto um lote com diversa documentação sobre cópias referentes à história da arte (egípcia,
clássica, renascentista, gótica) e outros fragmentos que também foram encontrados. As fichas
patrimoniais datadas entre 1952 e 1969, que foram utilizadas com o intuito de inventariar
objetos, apresentavam informações referentes aos moldes como ano e data de compra, nome

197
do fornecedor, descrição do objeto e um número patrimonial. São mencionadas nas fichas de
1957, as cópias dos bustos dos profetas Naum e Habacuque, todos apresentam o nome de
Aristocher B. Meschessi como fabricante e selo Maison Bonnet.

Figura 02: Marca-texto.

Fonte: Acervo Laboratório de Foto documentação Sylvio de Vasconcelos Fotografia de Marcos de


Carvalho Mazonni.

Esse trabalho provoca o entendimento dos constituintes das estruturas conduzidas pelo código
anunciante, o original para a cópia. Diante da documentação grifada, há uma leitura frente às
dinâmicas interacionais atreladas à reprodutibilidade, patrimônio e narração. Para atingir essa
compreensão, buscou-se identificar e marcar impressos dedicados as réplicas referentes ao
Aleijadinho, que demandou a feitura de uma catalogação. Então, a alta adesão referente ao
espaço geográfico e de imagens de cunho memorístico foi marcada, principalmente, devido ao
histórico e, consequentemente, da reconstituição do artificie como principal protagonismo
representativo. Restringindo-se a coleta de materiais de cada cidade selecionada, observou-se
itens centrais que referenciam a réplica, os moldes e os históricos. Com isso, o estudo foi

198
realizado como uma marcação desse conjunto reprodutivo, no exercício de grifar não somente
os referentes, mas todo seu sistema de códigos históricos, narrativos e visuais.

Figura 03: Marca-texto.

Fonte: Acervo do autor.

Referências

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Editora UFMG, 1996.

199
FOSTER, Hal. O que vem depois da farsa? São Paulo: Ubu Editora, 2021.

GONÇALVES, José Reginaldo Santos. “Autenticidade, memória e ideologias nacionais: o problema dos
patrimônios culturais. ” Estudos Históricos. São Paulo: Vértice, Vol.02, pp. 264-275.

GROYS, Boris. Arte, poder. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.

LARRAYA, Tomas Gutierrez. Técnicas de la escultura. Barcelona: Editorial Molino, 1953.

PÉRET, Luciano Amédée. Aleijadinho na Escola de Arquitetura. Belo Horizonte: Escola de Arquitetura,
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SINNET, Richard. O artífice. São Paulo e Rio de Janeiro: Editora Record, 2009.

WITTKOWER, Rudolf. Escultura. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

200
MONTE BELO DO SUL – PATRIMÔNIO SILENCIOSO REVELADO NO ALTO DA
COLINA.
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.
Francine Neumann
Arquiteta e Urbanista, pela UCS – Universidade de Caxias do Sul;
arq.francineneumann@gmail.com.

Margit Arnold Fensterseifer


Arquiteta e Urbanista, pela UFRGS - Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Mestre em
História, pela UCS - Universidade de Caxias do Sul; Doutoranda em História pela UCS –
Universidade de Caxias do Sul; Professora Universitária desde 2007; mafenste@ucs.br.

Situado num dos pontos mais altos da região da Serra Gaúcha, próximo do Vale dos Vinhedos –
roteiro turístico de Bento Gonçalves reconhecido nacionalmente – fica o pequeno município de
Monte Belo do Sul. Monte Belo, como é carinhosamente conhecida, é uma cidade construída
sobre um platô topográfico cercado por deslumbrantes paisagens naturais e vitícolas, que
concentra no seu centro urbano um aglomerado de edificações históricas do período da
imigração italiana, que escondem em suas paredes os vibrantes acontecimentos sociais e
econômicos ocorridos ali. Com objetivo de resgatar e registrar parte desta história,
disponibilizando ao Poder Público material para incrementar a divulgação da história local, tanto
aos habitantes quanto aos visitantes, foi que este artigo foi escrito.
Palavras-chave: Monte Belo do Sul; Paisagem Natural; Vinhedos; Imigração; Vozes.

Located in one of the highest points of the Serra Gaúcha region, close to Vale dos Vinhedos – a
nationally recognized tourist route for Bento Gonçalves – is the small municipality of Monte Belo
do Sul. Monte Belo, as it is affectionately known, is a city built on a topographic plateau
surrounded by stunning natural and wine-growing landscapes, which concentrates in its urban
center a cluster of historic buildings from the period of Italian immigration, which hide in its walls
the vibrant social and economic events that took place there. In order to rescue and record part
of this history, providing the Public Power with material to increase the dissemination of local
history, both to inhabitants and visitors, this article was written.
Keywords: Monte Belo do Sul; Natural landscape; Vineyards; Immigration; Voices.
.

201
1 - INTRODUÇÃO
O pequeno sítio histórico do município de Monte belo que se encontra no Alto das Colinas, na
região serrana do Rio Grande do Sul é um patrimônio reconhecido, no entanto, silencioso pois
a maior parte dos visitantes e mesmos moradores desconhecem a história que ali ocorreu. Esta
é marcada pelo traçado de comércio da região serrana que encaminhava os produtos agrícolas
até o Vale do Taquari (onde está o município de Santa Tereza – PatrimônioNacional do IPHAN).
Estas mercadorias eram então conduzidas por via fluvial à capital PortoAlegre.
Para que fosse possível registrar estas informações foi preciso pesquisar a bibliografia
existente sobre a região em especial ligada à de Bento Gonçalves, pois Monte belo era distrito
deste município. No entanto, as memórias orais permitiram conhecer detalhesque ainda estão
silenciados. Por isso, tornou-se importante entender a metodologia de captação de história
oral através da metodologia apresentada por Alberti. O manual orientaque o pesquisador
apresente algumas perguntas (já baseadas no estudo preliminar da história local) e que após
respondidas são selecionadas a partir das similaridades e ainda respaldadas na bibliografia
existente. (ALBERTI,2004).
O interesse por este sítio também tem sido instigado pela proximidade com o Vale dos
Vinhedos que serve de acesso principal ao alto da colina. A paisagem exuberante,marcada
pelas torres da Igreja denota que este é o ponto mais alto de toda esta região serrana que é
lindeira aos municípios de Bento Gonçalves e Garibaldi.
Em primeiro lugar será explanado o contexto geográfico do local e na sequência a história
levantada para entender as ligações ainda fortes das edificações ali existentes com o passado.

2 - CONTEXTO GEOGRÁFICO
Situado à nordeste do estado do Rio Grande do Sul, na região do Vale dos Vinhedos, Monte
Belo do Sul faz divisa atualmente com os municípios de Cotiporã (ao norte), Bento Gonçalves
(ao sul e a leste), e, Santa Tereza (a oeste); distando 143 km da capital do estado, Porto Alegre.
O município, que faz parte da Região Metropolitana da Serra Gaúcha (AUNE), integra a
Associação dos Municípios da Encosta Superior do Nordeste do Rio Grande do Sul(AMESNE),
criada em 1966, assim como, o Conselho Regional de Desenvolvimento da Serra Gaúcha
(COREDE Serra), criado em 1991, estando vinculado à Região Funcional de Planejamento 3
(RF3). (Perfil Socioeconômico – COREDE Serra, 2018).

202
Segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE),Monte Belo do
Sul possui uma população de aproximadamente 2.689 habitantes (em 2017), distribuídos
numa área total de 69,598 km², com uma densidade demográfica de 39,05 hab/km² (em 2010).
Ainda, conforme o Censo Demográfico de 2010, 28,8% da população é residente em área
urbana, a qual compreende 1,71 km² do território. (IBGE, 2018).

Figura 01 – Mapa de Monte belo, Vista Torres Igreja e Casa Família Franzoni

Fonte: Google Maps adaptado pela autora, Igreja Site da Prefeitura, Casa Família Franzoni
(autora, 2018)

203
Como característica geográfica, o relevo do município apresenta-se bastante acidentado, com
grande número de serras, vales, arroios e riachos. As elevações situam-se principalmente na
extremidade norte, junto ao Rio das Antas, que também configura o limite norte do município.
A altitude média é de 640 metros (UFRGS, 2015). A ocupação do centro urbano acontece em
território de cimo de morro, na porção mais ao sul dos limites municipais.Esse aspecto dá a
paisagem urbana uma característica marcante, que vai além das sensaçõesde mirante da
sede para os vales do entorno, para a tornar visível e identificável a longas distâncias devido às
imponentes torres da igreja.

3 - PROCESSO EVOLUTIVO
O final do século XIX e o início do século XX, foram marcados por novas ondas do processo
migratório que deslocou uma grande quantidade de Europeus para a América. O Rio Grande
do Sul, que em 1824 já havia recebido os primeiros imigrantes, alemães, que se assentaram na
encosta da serra (WEIMER, 2004, p. 142), agora recebia uma leva de agricultores italianos, em
busca de melhores condições de vida.
O contexto da Itália neste período caracteriza-se por uma nação unificada, de acentuado
crescimento demográfico, e, em transformação das suas formas feudais pelo modelo do
capitalismo industrial. Os grandes latifúndios em terras férteis estavam nas mãos de poucos,
e, a maioria da população precisava sobreviver em pequenas propriedades nas montanhas
improdutivas e insuficientes para as grandes famílias. Todo esse cenário desencadeou uma
crise agrícola sem precedentes, e, o governo italiano viu na emigração uma forma de resolver
seus problemas (MONTE BELO DO SUL, 2018, p. 01). Contudo, o maior problema da Itália não
era demográfico, mas, esse juntava-se a outros:
[...] o problema da população não pode ser isolado dos outros fatores:
disponibilidade de capitais ou capacidade de mobilizá-los e usá-los, estado da
tecnologia, estrutura político-social do país e assim por diante. É falsa, pois, a
colocação oficial do problema demográfico italiano, certamente destinada,
sobretudo no exterior, a comover a opinião pública para satisfazer a “fome de
emigração” dos grupos econômicos que desfrutam os benefícios da
expatriação em massa. O verdadeiro ponto de partida não é, porém, a
superpopulação, mas é a miséria. Esta, agravada pelo baixo nível de instrução,
leva ao aumento não racional da população. (IANNI apud CAPRARA; LUCHESE,
2005, p. 12).

204
O Brasil, por sua vez, estava passando por uma fase de adaptação ao capitalismo internacional,
mudando sua política de mão-de-obra e de terras. A Província do Rio Grande do Sul, afetada
pela Revolução Farroupilha e pela Guerra do Prata, enfrentava uma crise na produção agrícola,
e, umas das alternativas encontradas pelo governo brasileiro foi povoar as terras desabitadas,
denominadas terras devolutas (CAPRARA; LUCHESE, 2005, p. 14).
Com a progressiva diminuição da entrada de alemães, houve o incentivo da imigração italiana.
Segundo Caprara e Luchese, “estes receberam terras na encosta da serra e tiveram como único
auxílio o lote sendo vendido a crédito” (2005, p. 19).
Em 1870, por Ato de 24 de maio, o Presidente da Província, João Sertório criou as colônias
Conde d’Eu e Dona Isabel numa área de 32 léguas cedidas pelo Governo Imperial. Nesse mesmo
ano, no uso de sua autoridade o presidente da Província determinava ao Major Palmeiro a
responsabilidade de discriminar e iniciar a medição e demarcação de lotes nas colônias Dona
Isabel e Conde d’Eu. Em 1875, foi criada a colônia Fundos de Nova Palmira posteriormente
denominada Caxias. Nos anos seguintes, outros núcleos foram criados pelo Governo Provincial.
(CAPRARA; LUCHESE, 2005, p. 19).
Dentre as colônias que foram ocupadas pelos imigrantes italianos, a colônia Dona Isabel tem
neste trabalho maior relevância, pois ela transformou-se, posteriormente, no município de
Bento Gonçalves, do qual Monte Belo do Sul foi emancipado em 20 de março de 1992. Ainda
enquanto colônia, as terras a serem habitadas foram divididas em 15 linhas. No entanto, pela
falta de ligação com os centros populacionais, nos primeiros anos esta não recebeu imigrantes.
Vindo a ter sua efetiva ocupação, por levas numerosas de imigrantes, a partir de 1875, através
de contratos e incentivos governamentais (CAPRARA; LUCHESE, 2005, p. 20).
O progresso da Colônia Dona Isabel, mediante seu numeroso povoamento, crescimento e
desenvolvimento da economia, vida urbana, comércios e manufaturas, resultou em 1884, no
Decreto n 9183 de 12 de abril, que a elevou à condição de povoação comum, tornando-se o 4º
Distrito de São João de Montenegro (CAPRARA; LUCHESE, 2005, p. 56).
Mas, foi o Ato nº 474 de 11 de outubro de 1890, assinado pelo General Cândido da Costa, então
Governador do Estado, que declarou a emancipação política das colônias Dona Isabel e Conde
d’Eu, que passaram a conformar juntas, o município de Bento Gonçalves (CAPRARA; LUCHESE,
2005, p. 62). Após a emancipação, a organização do território se fez através da divisão em cinco

205
distritos: Vila, Zamith (futura Monte Belo do Sul), Palmeiro, Conde d’Eu, e, Azevedo de Castro
(MONTE BELO DO SUL, 2018, p. 04).
Em dezembro de 1892, os distritos de Bento Gonçalves passaram a ser três: Vila, Conde d’Eu,
e, Zamith. Em 1894, Zamith foi suprimido, passando a fazer parte do primeiro distrito, Vila. No
entanto, três anos depois, voltou a ser o 3º distrito, denominando-se Montebello.
No ano de 1900, o distrito de Conde d’Eu emancipou-se de Bento Gonçalves, tornando-se o
município de Garibaldi. Passando por uma nova organização distrital, Bento Gonçalves passou
a contar, em 1906, com os seguintes distritos: Vila, Montebello, e, Linha Jansen. Durante os
seguintes anos, novas alterações aconteceram, entre elas a criação de novos distritos e a
emancipação de Farroupilha. Mas de 1934 até 1962, o município permaneceu dividido nos
distritos: Vila, Montebello, Pinto Bandeira, Santa Tereza, e, Faria Lemos. Ao longo do tempo o
distrito Zamith, recebeu diversos nomes, sendo eles: Linha Zamith, Montebello, Caturetã, e,
Monte Belo, vindo a ser denominado Monte Belo do Sul, quando emancipado de Bento
Gonçalves, pela Lei nº 9564, em 20 de março de 1992 (RAZADOR, 2005, p. 09). No município é
respeitada a distribuição geográfica conforme as linhas que lhe deram origem e suas
respectivas capelas, que hoje conformam as comunidades,sem qualquer outra divisão distrital
(Figura 02).
A sede de Monte Belo do Sul, onde encontra-se o centro urbano, objeto do estudo de caso
desta produção, ocupa parte da área pertencente aos lotes nº 61, 62, 63 e 64, da Linha Zamith.
As primeiras famílias que ali se estabeleceram foram a Armanini e a Zancanella, que assim o
fizeram ao deixar a linha Faria Lemos Baixa pelo excesso de animais (insetos, porco- espinho,
ratões e outros) e pelo clima impróprio para plantações devido à proximidade do rio. “Alguns
anos após, este local apresentava um desenvolvimento superior aos outros povoados. Possuía
uma concentração comercial e de serviços” (CAMPAGNOLO et al., 1996, p. 41).
Já em 1894, destacavam-se no aglomerado urbano, hoje sede municipal: alfaiataria, açougue,
casas de comércio, fábrica de cerveja, casas de pouso, fábricas de doces e mandolatos. A
família Franzoni possuía casa de comércio, cantina de vinhos e licores, fábrica de queijos,
salames, serraria e tropa de 40 mulas para transporte de mercadorias. Pedro Migliorini era
médico prático e possuía fábrica de celas e arreios. Artur Beltrame era proprietário do Cartório
Distrital. Além disso, havia parteiras, ferreiros, tanoeiros, gaiteiros, banda de música,
sapateiro, costureiros e barbeiro (CAMPAGNOLO et al., 1996). Todas essas atividades

206
contribuem para demonstrar o importante caráter que a sede tinha comocentro urbano,
desde seus primeiros anos.
Em abril de 1898, instalaram-se na comunidade as Irmãs do Imaculado Coração de Maria, que
deram origem a Escola Sagrada Família, onde atualmente localiza-se a Prefeitura Municipal.
Em fevereiro de 1899, é oficialmente criada a Paróquia de São Francisco de Assis,que teve sua
igreja antiga substituída a partir de 1955, sendo a Igreja Matriz, com suas famosas torres de
30 metros, inaugurada em 1963 (RAZADOR, 2005, p. 22).
No ano de 1930, a família Scanzili construiu uma cantina de vinhos, e, também funcionou uma
agência do Banco Pelotense. Em 1943, Daniel Simonetto, Paulo Turri e Luis Albanese fundaram
a Cooperativa Agrícola Monte Belo, que mais tarde foi incorporada à Cooperativa Santa Tereza
(RAZADOR, 2005, p. 23). Os anos seguintes foram de avanços nas comunicações e
infraestrutura, no que diz respeito a serviços de correio, rádio, telefone público, televisão, e,
energia elétrica.

Figura 02 – Mapa de demarcação em Linhas das terras pertencentes a Monte Belo do Sul

Fonte: Monte Belo do Sul constrói sua história, 1996. Adaptado pela autora.

207
Atualmente, o município tem uma característica predominantemente rural, voltada a
produção de uvas e indústria vinícola. Mas, mantém vivas as marcas da imigração, através das
pessoas, gastronomia, usos, costumes, construções antigas, igrejas, capiteis, festas populares
e, belezas naturais, que fazem do município uma “pequena Europa no Brasil” (CERIOTTI, 2018).
Para preservar as tradições culturais tornou-se importante a contemplação do patrimônio
histórico na revisão do Plano Diretor Municipal. Neste empreendimento serão compreendidas
as edificações de valor histórico a serem inventariadas para um futuro tombamento. Também
serão listados os visuais do local que precisam ser preservados, cujas futuras edificações não
interfiram na paisagem urbana, característica do município.

4 - PARTICULARIDADES DE ALGUMAS EDIFICAÇÕES


A história de algumas edificações, a seguir descritas, foi fruto de um trabalho de levantamento
técnico para auxiliar a prefeitura na elaboração do plano diretor e consequente preservação e
adequação das novas construções aos já existentes e de valor cultural. Estes dados estão
silenciados, pois fazem parte de trabalhos acadêmicos. No entanto, o poder público tem
interesse na divulgação educativa e turística destes.
No centro histórico, encontra-se a Igreja, em frente a praça construída entre 1955 e 1965, no
lugar antes ocupado pela Igreja Matriz primitiva. As torres de 30 metros de altura podem ser
vistas a longas distâncias, tornando-se um dos pontos principais da paisagem cultural
Montebelense. Ao lado desta o SALÃO PAROQUIAL – PARÓQUIA SÃO FRANCISCO DE ASSIS
Inaugurado em 1952, abrigou os tradicionais festejos em honra ao padroeiro da cidade.
Também foi utilizado na realização das cerimônias religiosas enquanto a atual igreja estava em
sendo construída. Este salão em estilo protomoderno tem similares nas cidades serranas de
Cotiporã e Fagundes Varela. ANTIGA CASA DE COMÉRCIO ORESTES FRANZONI Construída na
década de 1920, originalmente abrigava uma casa de comércio que vendia de tudo o que podia
se imaginar, desde tecidos, produtos alimentícios, cutelaria, louças, etc. Também funcionava
como uma espécie de banco das comunidades, onde as pessoas depositavam dinheiro e
pagavam juros; além de ser o ponto de entrega dos jornais no fim de semana, as pessoas iam
para a missa e passavam para retirar o jornal. Atualmente, tem uso apenas residencial. Em
bom estado de conservação ainda persistem várias residências do século XIX e duas

208
edificações comerciais que são os pavilhões de uma vinícola e ANTIGA COOPERATIVA
AGRÍCOLA MONTE BELO.
Construída em 1943, funcionava originalmente na edificação a Cooperativa de Trigo e Milho
de Monte Belo. Possuía um moinho. Antigamente, na sexta-feira de tarde a rua em frente ao
estabelecimento se enchia, pois, pessoas de todas as comunidades vinham para a cidade, moer
o trigo e o milho, fazer compras, etc. Atualmente funciona como uma agropecuária. Junto a
este conjunto encontra-se um bar que ainda serve de ponto de encontro dos moradores para
tomar vinho e jogar cartas. Ainda no conjunto existe o HOTEL BRUSCHI que sempre acolheu
os visitantes e que na atualidade foi adquirido por um grande grupo investidor que entendeu
a potencialidade do local.
A totalidade deste conjunto revela a importância comercial do município que naatualidade
investe no turismo e na educação patrimonial. O levantamento de todos estes dadosquebra
um silêncio escondido nas edificações revelando de forma diferenciada a característicadeste
sítio.

5 - CONCLUSÃO
Esta pesquisa possibilitou a compilação de informações que estavam silenciadas por alguns
moradores residentes há mais de 50 anos no local.
O município agregou todos estes dados para melhorar a atuação turística aliando as edificações
históricas pois tem sido considerado um local de riqueza cultural e histórica nata e ainda
presente em todos eventos sociais que ali ocorrem.
Ainda há muitas vozes a serem ouvidas neste cenário de incomparáveis paisagens naturais.
Esta pesquisa inicia um ciclo de novas investigações que poderão valorizar ainda mais este sítio
histórico com mais de 35 edificações de interesse de preservação. A prefeitura consegue
através deste trabalho divulgar de forma material através de placas instrutivas e na atualidade
com indexação em códigos digitais que ampliam a divulgação da história para os moradores e
visitantes, incentivando a memória e identidade local. Assim o silêncio setransforma em voz
ativa nas paredes e ruas desta colina inigualável.

6 - Referências
ALBERTI, Verena. Manual de história oral. 2.ed. Rio de Janeiro: FGV, 2004.234 p.

209
CAMPAGNOLO, Ivana Coelho et al. Monte Belo do Sul constrói sua história. Porto Alegre: Evangraf,
1996.

CAPRARA, Bernardete S.; LUCHESE, Terciane Ângela. Da colônia Dona Isabel ao município de
Bento Gonçalves 1875 a 1930: história. Bento Gonçalves, RS: Fundação Casadas Artes, 2005.

CAPRARA, Bernardete S.; LUCHESE, Terciane Ângela; BENTO GONÇALVES (RS). Bento Gonçalves:
história e memória: distrito do Vale dos Vinhedos. Bento Gonçalves, RS: Fundação Casa das Artes,
2001.

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Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural do Município e dá outras providências. Monte Belo do
Sul. Disponível em: <http://leisnaweb.com.br/mostrar-ato/?ato=331&
host=montebelodosul&search=patrim%C3%B4nio%20hist%C3%B3rico>. Acesso em: 29 abr.
2018.

MONTE BELO DO SUL. Lei n° 370/2001, de 02 de Maio de2001. Cria o Conselho Municipal do
Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural do Município e dá outras providências. Disponível em:
<http://leisnaweb.com.br/mostrar-
ato/?ato=332&host=montebelodosul&search=patrim%C3%B4nio%20hist%C3%B3rico>. Acesso
em: 29 abr. 2018

POSENATO, Júlio. Arquitetura da imigração italiana. Porto Alegre: [s.n.], 1998

RAZADOR, Leonir. Povoadores e história de Monte Belo do Sul: De Zamith a Monte Belodo Sul. Porto
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VELLOSO, Andrei Pitten. A Ciência do Direito Tributário. Carta Forense, São Paulo, p. B10, 04 fev.
2014.

210
MUITO MAIS QUE UM CENÁRIO: UMA DISCUSSÃO SOBRE A PAISAGEM CULTURAL E
AS FORMAS DE PRESERVAÇÃO DA PAISAGEM NATALENSE
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Natália Melchuna Madruga


Arquiteta e urbanista; Universidade Federal do Rio Grande do Norte;
natalia.mmadruga@gmail.com.

Paulo José Lisboa Nobre


Arquiteta e urbanista; Universidade Federal do Rio Grande do Norte; nobre.p@gmail.com.

Tratar a paisagem como patrimônio, discutir e propor alternativas para a sua preservação é um
desafio, já que a paisagem é dinâmica e absorve todas as alterações que acontecem no meio. A
medida mais recorrente de proteção às paisagens urbanas se dá por meio de legislações
municipais como os Planos Diretores, o que não é eficaz uma vez que essas leis são
periodicamente alteradas. Esse artigo trata do caso da cidade de Natal, capital do Rio Grande do
Norte, que possui uma paisagem singular, protegida pelos Planos Diretores desde 1984. Porém,
a cada revisão da lei essa proteção é ameaçada, pois a proteção da paisagem contraria os
interesses do mercado imobiliário resultando numa pressão constante para flexibilizar o
controle urbanístico.
Palavras-chave: Paisagem cultural; Patrimônio; Plano Diretor Municipal.

Treating the landscape as heritage, discussing and proposing alternatives for its preservation is
a challenge, because the landscape is dynamic and absorbs all the changes that happen in the
environment. The most recurrent measure to protect urban landscapes is through municipal
legislation such as the Master Plans, which is not effective because these laws are periodically
changed. This article deals with the case of the city of Natal, capital of Rio Grande do Norte,
which has a unique landscape, protected by the Master Plans since 1984. However, whenever
the Plan is reviewed, this protection is at risk, once the protection of the landscape is contrary to
interests of the real estate market, resulting in constant pressure to make urban planning more
flexible.
Keywords: Cultural landscape; Heritage; Master plan.

211
1 - INTRODUÇÃO
No conhecimento comum, como descrito no dicionário, a paisagem de uma cidade é a “Extensão
territorial que a vista alcança; panorama” (MICHAELIS, 2018). No entanto, muito mais subjetiva
e complexa, a paisagem vem sendo discutida pelas mais diversas áreas de conhecimento. O
geógrafo Milton Santos explica que “A rigor, a paisagem é apenas a porção da configuração
territorial que é possível abarcar com a visão” (SANTOS, 1996, p.67), porém explora a
profundidade do tema ao afirmar que ela “é o conjunto de formas que, num dado momento,
exprimem as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e
natureza.” (SANTOS, 1996, p. 67).
Dessa forma, a paisagem pode ser entendida como um conjunto de camadas que vão sendo
formadas a partir das relações estabelecidas entre a sociedade e os elementos construídos e
naturais, em um determinado local. Esse processo de construção destas camadas exprime no
espaço a história, a cultura e os valores de uma sociedade em diferentes épocas, característica
que Santos (1996) nomeia como “transtemporal”, já que une objetos de diferentes épocas em
uma construção transversal.
A geógrafa Ana Fani Carlos (2007), ao tratar da paisagem urbana, também comenta a
capacidade da paisagem de “contar história”:
A natureza transformada pela ação humana, ao longo de uma série de
gerações, surge enquanto modos de apropriação visíveis na paisagem,
reproduzindo a história e a concepção do homem sobre o morar, trabalhar,
viver. A paisagem, por sua vez contém mistérios, beleza, sinais, símbolos,
alegorias, tudo carregado de significados; memória, que revela múltiplas
impressões passadas imagens impregnadas de história” (CARLOS, 2007, p.33)

Isso remete à outra característica deste elemento, que é a efemeridade. Já que a paisagem
absorve as mudanças naturais e sociais, ela a exprimi no espaço todo esse processo de
transformação, fato também ressaltado pela citada geógrafa quando ela comenta que:
A paisagem urbana é a expressão da “ordem” e do “caos” manifestação
formal do processo de produção do espaço urbano colocando-se no
nível do aparente e do imediato. O aspecto fenomênico coloca-se como
elemento visível, como a dimensão do real que cabe intuir, enquanto
representação de relações sociais reais que a sociedade cria em cada
momento do seu processo de desenvolvimento. Consequentemente, essa
forma apresenta-se como histórica, especificamente determinada, logo
concreta. (CARLOS, 2009, p.36)

212
Esses atributos da paisagem fornecem a ela um significado simbólico que se materializam no
espaço. A cultura e a história de um lugar, de uma sociedade, tornam-se assim um elemento de
referência, tendo a capacidade de tornar o local único e facilmente reconhecido. Por essas
razões é tão complexa a gestão do território, considerando a importância e a preservação da
paisagem, principalmente quando se trata de uma paisagem singular que confere identidade ao
local.
Nesse sentido, a proteção e o valor patrimonial da paisagem considerando seus aspectos
naturais, construídos e simbólicos, já vem sendo discutida pelas principais organizações
responsáveis por gerir o patrimônio mundial e nacional, a Organização das Nações Unidas para
a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), criou em 1972 a categoria patrimonial de paisagem,
descrita como “bens culturais que representam as obras conjugadas do homem e da natureza”
(UNESCO, 2009).
Para definir a Paisagem Cultural, a UNESCO baseou-se na Geografia Cultural, mais
especificamente nos estudos de Caur Sauer, que explica que “A paisagem cultural é formada a
partir de uma paisagem natural por um grupo cultural. A cultura é o agente, a área natural, o
meio, a paisagem cultural, o resultado” (SAUER, 1926, apud UNESCO, 2009, p.22).
A criação da categoria patrimonial Paisagem Cultural representou um avanço para a valorização
e criação de formas de preservação à paisagem, considerando os aspectos construídos e
culturais dos lugares. Essa iniciativa da UNESCO foi o que levou o Instituto do Patrimônio
Histórico Nacional (IPHAN) a criar em 2009, através da Portaria nº 127/2009 que estabelece a
chancela da paisagem cultural brasileira, de modo a complementar os instrumentos sobre
patrimônio cultural, como o tombamento e o registro.
Porém, demonstrando a dificuldade da gestão da paisagem, desde a publicação da citada
Portaria nenhuma paisagem brasileira recebeu a chancela do IPHAN. Atualmente, no Brasil, a
forma mais efetiva de proteção à paisagem está nas determinações feitas em cada município
através das legislações locais. Quanto a categoria de Paisagem Cultural da UNESCO, o Rio de
Janeiro e o conjunto da Pampulha de Belo Horizonte, foram as únicas paisagens brasileiras a
receberem o título de Patrimônio Cultural da Humanidade.
Assim, este artigo discute a Paisagem Cultural e as formas de protegê-la, através de um olhar
para a cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte, que por possuir uma localização
privilegiada, possui também uma paisagem singular. As discussões apresentadas neste artigo

213
são originadas das reflexões e pesquisas desenvolvidas durante a construção do Trabalho Final
de Graduação no curso de Arquitetura e Urbanismo da UFRN, intitulado Natal Emoldurada:
Proposta metodológica para inventariar a paisagem cultural natalense e seus desdobramentos.

2 – A PAISAGEM NATALENSE E O PLANO DIRETOR DE NATAL


Pode-se afirmar que a paisagem de Natal é singular, já que mesma é favorecida pela posição
geográfica da cidade; que se encontra em um sítio localizado entre o mar, o rio, o mangue e
cordões dunares revestidos pela mata atlântica. O principal meio de proteção à paisagem
natalense é o Plano Diretor Municipal, que desde 1984 traz instrumentos que visam a sua
proteção.

Figura 9: Paisagem da Orla marítima natalense

Fonte: cbw.org.br/

O Plano Diretor é o principal instrumento legal de ordenamento urbano de Natal. O primeiro


Plano, elaborado em 1984, foi chamado de Plano Diretor de Organização Físico-Territoriale tinha
como principal objetivo o desenvolvimento racional e harmônico da cidade, e para isso cita o

214
interesse em preservar sítios notáveis pelos valores históricos, culturais, paisagísticos e
ecológicos.
A principal medida que essa lei trouxe para a proteção da paisagem natalense foi a criação de
três Zonas Especiais de Interesse Turístico (ZEIT), que foram demarcadas na orla marítima da
cidade, e correspondem às Orlas das Praias de Ponta Negra, Via Costeira, Praia de Areia Preta,
do Meio e do Forte. Este Plano conceitua as Zonas Especiais como áreas do território do
município que possuem um tratamento especial em função da destinação específica,
localização, característica ecológica, histórica, paisagística, cultural e social, cujas prescrições
urbanísticas são definidas por legislação específica.
A definição destas áreas como “de Interesse Turístico” demonstra o objetivo dos gestores da
cidade em incentivar a atividade turística na orla marítima, através de uma regulamentação
específica que tornou possível controlar as intervenções na área, preservando as
potencialidades naturais e paisagísticas existentes. Nesta mesma época, uma nova avenida foi
construída incorporando paias ainda virgens ao tecido urbano – a Via Costeira, inaugurada em
1983. Desde a década de 1970 a cidade recebia investimentos para a expansão em direção às
praias, à exemplo de melhoramentos viários como a construção do viaduto de Ponta Negra e o
asfaltamento da Av. Roberto Freire (na época chamada de estrada de Ponta Negra).

215
Figura 10: Mapa das Zonas Especiais de Interesse Turístico

Fonte: Elaborado pela autora

É importante salientar que a delimitação das ZEIT contribuiu para preservar a paisagem da
cidade. Assim, percebe-se, que esse primeiro instrumento de proteção fez parte de um
“planejamento estratégico” para tornar Natal uma cidade turística. Essa atividade continua em
ascensão até hoje e foi essencial para o crescimento e reconhecimento de Natal como destino
do turismo de sol e mar. Como conta Furtado (2005), a cidade cresceu com o implemento da
atividade turística, que continua em ascensão até hoje: “Como em muitas cidades brasileiras
situadas no litoral, Natal passa a adotar o modelo voltado para o binômio sol/mar, constituindo
e/ou construindo espaços objetivamente voltados para a atividade e outros que lhe são
complementares” (FURTADO, 2005, p.16).
O Plano Diretor seguinte, elaborado em 1994, foi feito no contexto da redemocratização, por
isso tinha como objetivo o desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade. Foi
um Plano Diretor feito e discutido com participação popular, o que já demonstrou um avanço
em relação ao plano anterior, cujos avanços continuam no âmbito da proteção da paisagem
natalense.

216
O Plano Diretor de 1994 implementou o macrozoneamento no município, a área urbana foi
dividida em três Zonas, respectivamente: Zona adensável, Zona de Adensamento Básico e Zona
de Proteção Ambiental. Essa terceira Zona, chamada de ZPA, delimitada em “decorrência às
características do meio físico, restringem o uso e ocupação, visando à proteção, manutenção e
recuperação dos aspectos paisagísticos, históricos, arqueológicos e científicos” (NATAL, 1994,
Art. 20). Ela foi criada após a constatação da fragilidade ambiental de algumas áreas em
decorrência da existência das dunas, estuário, mangues, rios/riachos, lagoas e praias.
Além disso, outra mudança que influencia diretamente na paisagem, foi a criação das Zonas
Especiais, e entre elas foi apresentada Área de Controle de Gabarito:

Art. 23 - Área de Controle de Gabarito - são aquelas que, mesmo passíveis de


adensamento, visam a proteger o valor cênico-paisagístico de trechos da
cidade, compreendendo:
I.- Orla Marítima, do Forte dos Reis Magos até o Morro do Careca, de acordo
com as normas fixadas pela regulamentação da Lei 3.175 de 29 de fevereiro
de 1984, e delimitação das Zonas Especiais de Interesse Turístico - ZET-1, ZET-
2 e ZET-3, incluindo a Redinha;
II.- Entorno do Parque das Dunas, conforme delimitação estabelecida no Mapa
2 (Anexo 2) e Quadro 4 (Anexo 7), partes integrantes desta Lei. (NATAL,1994,
Art. 23)

Sendo assim, o Plano Diretor de 1994 afirma o valor cênico paisagístico da paisagem de Natal,
mantém as Zonas Especiais de Interesse Turístico criadas em 1984 e acrescenta a elas, a ZET-IV,
correspondente à Orla Marítima da Praia da Redinha (Figura 02).
Pode-se afirmar que esse Plano Diretor representou novos avanços em relação à proteção da
paisagem singular de Natal; porém, a determinação do controle de gabarito desagradou ao setor
imobiliário, que viu sua capacidade de lucro e investimento diminuir, com as restrições
estabelecidas para construções nessas áreas.
Esse Plano Diretor foi revisado três vezes, uma em 1999 4, outra em 20005 e a última em 20076
que é a versão em vigência atualmente. Em 2017 começou a quarta revisão da legislação
urbanística, processo que está em andamento no momento. Em todas as revisões anteriores,
desde a implantação das Áreas de Controle de Gabarito, os representantes dos setores da
sociedade que se sentiram prejudicados com essa medida exigem sua flexibilização. Na última
revisão concluída houve uma diminuição da Área de Controle de Gabarito no entorno do Parque
das Dunas (Figura 03), que é uma reserva da Mata Atlântica da cidade, essencial para
manutenção do clima e da preservação da fauna e flora da cidade.

217
Figura 11: Parque das Dunas

Fonte: naserra.blogspot.com

Na revisão em andamento o Controle de Gabarito dessa área voltou a ser ameaçado, assim como
em outras áreas da cidade.

3 – O CONTROLE DE GABARITO E ATUAL REVISÃO DO PLANO DIRETOR


Desde que começou o atual processo de revisão do Plano Diretor em 2017, entre as muitas
discussões, a pauta da paisagem foi uma das protagonistas nas reuniões e discussões sobre a
lei. O processo, que já está atrasado, teve durante seu desenvolvimento momentos muito
problemáticos, entre eles, declarações do próprio prefeito que colocava em dúvida a veracidade
do processo. Em 2018, o Prefeito Álvaro Dias, logo após a assumir o cargo, comentou sobre a
revisão do Plano Diretor Municipal e destacou seu intuito de liberar o controle de gabarito da
Orla, permitindo a construção de edifícios verticalizados:
Precisamos mudar o Plano Diretor para permitir a construção de edifícios,
como existem em outros locais, como Recife, Fortaleza, no Rio de Janeiro.
Precisamos apressar a mudança para permitir a modernização, a mudança do
gabarito daquelas construções que existem ali. Nós vemos em todas as

218
capitais do nordeste orla com edifícios, restaurantes, orlas convidativas, bem
transitadas e policiadas, afirmou, acrescentando que a revisão do Plano
Diretor deverá ser sua marca de gestão. (PREFEITURA DO NATAL, 2018).

A partir desse momento, a população e os profissionais preocupados em manter a proteção da


paisagem passaram a ficar cada vez mais atentos ao andamento das discussões, para garantir
que o resultado final contemple a vontade da população e mantenha a proteção da paisagem.
Porém, a minuta apresenta em março de 2020 (PREFEITURA DO NATAL, 2020), não contemplou
a vontade da maioria dos segmentos sociais que estavam envolvidos com as discussões desde o
início. Uma nota de repúdio, assinada por 44 entidades, explica a decepção da população:
Na Audiência Pública do dia 20 de fevereiro de 2020, fomos surpreendidos
com a apresentação de uma Minuta de Lei, cujas propostas revelam a
mudança de objetivos de revisão do Plano, traduzindo-se em outro Plano
Diretor, sem incorporação de quase todas as contribuições apresentadas
pelos GTs. (SAIBA MAIS AGÊNCIA DE REPORTAGENS, 2020)

O Ministério Público do Rio Grande do Norte, em Nota Técnica emitida no mesmo ano, também
criticou a Minuta publicada, avaliando a proposta como “muito negativa”, sobre a proteção da
paisagem:
A despeito da proposta de alteração apresentar uma Área Especial
denominada de ÁREA ESPECIAL COSTEIRA E ESTUARINA – AECE16, o que, a
princípio, sugere a ideia de aumento da proteção e valorização costeira; na
prática, a proteção e a valorização da PAISAGEM COSTEIRA FORAM
DIMINUÍDAS (MINISTERIO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO NORTE, 2020, p.23).
À despeito da Pandemia do COVID-19 e de diversas manifestações em contrário, o grupo
gestor responsável pelo processo de revisão do Plano Diretor segue pressionando para
manter o ritmo acelerado do processo. Em 2020 com o início da crise humanitária e de
saúde da pandemia do COVID-19 o núcleo gestor estabeleceu que o processo de revisão
iria continuar de forma virtual, desrespeitando assim o princípio da participação popular
em razão da dificuldade de acesso de grande parte da população a internet.
Considerando isso e várias outras inconsistências no processo, o Ministério Público pede
anulação de toda a etapa virtual da revisão do Plano Diretor.

219
4 – CONCLUSÃO
Nunca é demasiado afirmar que a paisagem deve ser protegida, uma vez que é constituída por
símbolos e formas que demonstram a relação de uma sociedade com a natureza. Esse fato já é
defendido pelos órgãos patrimoniais e até pela própria Constituição brasileira. Porém no Brasil,
percebe-se que as medidas mais utilizadas de proteção à paisagem encontram-se nas legislações
municipais, o que traz uma insegurança já que os Planos Diretores são periodicamente
revisados.
Essa é a situação de Natal, capital do Rio Grande do Norte, que apesar de já ter uma paisagem
protegida pelo Plano Diretor Municipal desde 1984, os instrumentos urbanísticos que visam a
sua preservação são sempre uma das principais pautas mais contestadas nos processos de
revisão, já que o mercado imobiliário procura a flexibilização do controle de gabarito
estabelecido em determinadas áreas da cidade, como forma de expandir seu capital e
consequentemente obter mais lucro.
O atual processo de revisão do Plano Diretor de Natal torna isso evidente. Como foi dito, a
proposta de modificação da lei apresentada pela prefeitura traz grandes perdas no patrimônio
paisagístico da cidade, além de desconsiderar as conquistas que existem desde a primeira versão
do Plano Diretor, resultado da luta da população e de profissionais das áreas de arquitetura e
urbanismo e afins para definir e manter a proteção da paisagem como princípio da legislação
urbanística local.
O caso de Natal demonstra o quão frágil é depender apenas da legislação municipal para essa
proteção, assim como a urgência de que sejam criados e devidamente implementados
instrumentos de preservação e valorização da paisagem em diferentes níveis de governo,
envolvendo diferentes órgãos da gestão pública, além de estabelecer um pacto com a população
e com a iniciativa privada.

Referências
CARLOS, Ana Fani Alessandri. O Espaço Urbano: Novo escritos sobre a cidade. FFLCH, São Paulo, 2007.

CARLOS, Ana Fani Alessandri. A cidade. 8.ed 2a Reimpressão- São Paulo: Contexto, 2009

FURTADO, Edna Maria. A onda do turismo na cidade do sol: a reconfiguração urbana de Natal. Natal:
EDUFRN, 2005.

INSTITUTO DO PATRIMONIO HISTÓRICO ARTÍTICOS NACIONAL. Portaria n. 127, de 30 de

220
abril de 2009. Diário Oficial da União, dia 05 de maio de 2009, n 83, p.17

. Plano de gestão do sítio - Rio de Janeiro: paisagens cariocas entre a montanha e o mar. Rio
de Janeiro, 2014.

MALTA, Eder. Consumindo paisagens: patrimônio cultural, turismo e enobrecimento urbano no Rio de
Janeiro. In: TOMO, nº 31, pp. 91-134, 2017.

MICHAELIS ONLINE. Paisagem, 08 maio 2018. Disponível em


www.michaelis.uol.com.br/palavra/5Bw9o/paisagem. Acesso em 08 maio. 2018

MINISTÉRIO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO NORTE. Nota Técnica Conjunta 01/2020. Dispõe sobre
análise da minuta divulgada em 01/06/2020, para alterar o PLANO DIRETOR DE NATAL, Lei
Complementar 82/2007, atualmente em vigor. 2020. Acesso em:
www.mprn.mp.br/portal/images/files/2020/20200609_NotaTecnicaPlanoDiretor1.pdf

NATAL. Lei no 3.175, de 26 de janeiro 1984. Dispõe sobre o Plano Diretor de Organização Físico -
Territorial do Município e dá outras providências. Natal, 1984.
. Lei Complementar no 7, de 5 de agosto de 1994. Dispõe sobre o Plano Diretor de Natal e dá
outras providências. Natal, 1994.

. Lei Complementar nº 22 de 18 de agosto de 1999. Dispõe sobre a revisão da Lei


Complementar nº 07 de 5 de agosto de 1994. Natal, 1999

. Lei Complementar nº 27 de 03 de novembro de 2000. Cria Zonas Adensáveis em Ponta


Negra e dá outras providências. Natal, 2000

. Lei Complementar nº 82 de 21 de Junho de 2007. Dispõe sobre o Plano Diretor de Natal a e dá


outras providências. Natal, 2007

PREFEITURA DE NATAL. Notícias: Prefeito projeta revisão do Plano Diretor de Natal, 14 de novembro
de 2018. Disponível em: https://natal.rn.gov.br/noticia/ntc-29470.html. Acesso: maio de 2020

PREFEITURA DE NATAL. Revisão do Plano Diretor de Natal- MINUTA DO CONCIDADE –


VOTADA EM 16 E 17 DE MARÇO DE 2020. Disponível em:
natal.rn.gov.br/semurb/planodiretor. Acesso: novembro de 2020

PREFEITURA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Lei complementar nº 111 de 11 de fevereiro de 2001-


Institui o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável do Município do Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro, 2011.

SAIBA MAIS AGÊNCIA DE REPORTAGEM. Álvaro Dias “rasga” Plano Diretor, ignora
participação social e 28 entidades assinam nota de repúdio. Natal, 2020

SANTOS, Milton. A natureza do espaço. EDUSP, 1996. p. 103-105

UNESCO; ICOMOS. World Heritage Cultural Landscape. Paris: UNESCO, 2009. Disponível em:
<http://whc.unesco.org/en/culturallandscape/>. Acesso em: 15 de maio, 2018.

221
UNESCO, United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. Operational Guidelines for
the Implementation of the World Heritage Convention. Paris: World Heritage Centre, 2009. Disponível
em < http://whc.unesco.org/en/guidelines/ > Acesso em 20 dez. 2020.

222
O CHAFARIZ DOS CONTOS EM OURO PRETO, MG, BRASIL: do essencial (1760-1900)
ao decorativo (1950-2021)
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Raíssa de Keller e Costa


Bacharel em Turismo; Doutoranda em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável;
Universidade Federal de Minas Gerais; raissakc@yahoo.com.br

Myriam Bahia Lopes


Historiadora; Docente do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ambiente
Construído e Patrimônio Sustentável; Universidade Federal de Minas Gerais;
bahialopesmyriam@mac.com

No século XVIII, os chafarizes eram essenciais à vida como fonte de água. Em Ouro Preto, Minas
Gerais, Brasil, os seus usos e dinâmicas envolviam aspectos políticos, socioculturais e
econômicos, expressando a sociabilidade e seus conflitos. Com a distribuição residencial da água
houve um silenciamento, um distanciamento desses usos e de sua dinâmica no espaço coletivo.
Em 1950, um novo valor foi atribuído ao Chafariz dos Contos ao ser classificado como
monumento. Baseado em pesquisa bibliográfica e documental, este estudo pretende apresentar
a história de seu silenciamento e espera contribuir com um olhar mais sensível para o chafariz.
Palavras-chave: Chafariz; Ouro Preto; Paisagem; Patrimônio; Água.

In the 18th century, fountains were essential to life for water distribution. In Ouro Preto, Minas
Gerais, Brazil, its uses and dynamics involved political, socio-cultural and economic aspects; they
express sociability and conflicts. With the residential distribution of water, there was a distancing
of these uses and their dynamics, a silencing, reflecting in the city itself. In 1950, a new value
was attributed to the Chafariz dos Contos as it was classified as a monument. Based on
bibliographic and documentary research, this study intends to present the history of this silencing
process, and it is expected to contribute to a more sensitive look at the Fountain.
Keywords: Fountain; Ouro Preto; Landscape; Heritage; Water.

223
1 - Introdução
Este estudo visa a história do chafariz dos Contos na vida da cidade de Ouro Preto, Minas Gerais,
Brasil, nos períodos 1760-1900 e 1950-2021. O Chafariz dos Contos situa-se na atual Praça
Reinaldo Alves de Brito, inaugurado em 1760 e tombado em 1950. No século XVIII, o uso do
chafariz favorecia os encontros, a vivência no espaço público e a circulação de notícias. Era um
local de muitas vozes, ponto de reunião periódica daqueles que carregavam a água até as
edificações. Esse espaço de mistura sonora era visto com desconfiança pela Câmara que temia
a organização de sublevações. Ao mesmo tempo, era um lugar que também refletia disputas e
conflitos pela água, entre o Senado, a comunidade e os mineradores, cuja otimização se deu ao
longo do século XVIII, especialmente pelos códigos de Posturas de 1720-17351.
Entre o final do século XIX e começo do século XX, a implantação do sistema de distribuição
domiciliar de água alterou a vida urbana (BEGUIN, 1991). O chafariz e o seu entorno perderam
em importância como locais de sociabilidade visto que a água passou a ser distribuída
diretamente nos domicílios. Os chafarizes se transformaram e hoje atendem esporádicos
passantes sedentos. Sem ajuntamento, o silêncio predomina no local e é apenas interrompido
pelo som dos passos de pedestres e o barulho da água na bica. A transformação do uso do
espaço público livre na cidade contemporânea com a introdução de nova técnica de distribuição
de água potável silenciou o chafariz.
O objetivo deste estudo é apresentar o Chafariz dos Contos como um patrimônio que guarda
em sua origem funções muito significativas no contexto do século XVIII. O recorte temporal
destaca duas fases. De 1760 a 1900, em sua fase essencial, o chafariz é fonte de abastecimento
coletivo. De 1950 aos nossos dias, em sua fase ornamental, após o decaimento de sua utilidade
pública como fonte de abastecimento, ele afirma a sua característica de registro e testemunho
do desenho da histórica paisagem urbana. Na pesquisa em curso, a história do chafariz é
analisada segundo os ritmos diferenciados da vida urbana ao longo do período estudado e da
diversidade de seus usuários. Para isso, serão apresentadas informações com base em pesquisa
bibliográfica e documental, resultado inicial de pesquisa de doutorado em andamento e de
trabalho coletivo do grupo de pesquisa Cosmopolita, do Núcleo de História da Ciência e da
Técnica (NEHCIT) da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais. Espera-se

1
APM_CMOP_Cx19, Doc46, 1720-1735.

224
demonstrar que os chafarizes carregam em si uma parte importante da própria história da
cidade e de modos de existência esquecidos ou invisíveis.
2 – A importância da água na antiga Vila Rica: vivências, disputas e conflitos
Ouro Preto é uma cidade reconhecida como Patrimônio Cultural da Humanidade. A cidade é
marcada por sua implantação e desenho de suas vias, pelas linhas serranas que a abraçam, pelo
desafio de suas ladeiras, “subida com pendor e declive” (LOPES, 2014, p.375). Conta com
casarios que parecem se apoiar uns nos outros, janelas e portas que dão ritmo ao passar das
procissões e ondas de telhas vermelhas. As torres das igrejas grampeiam com sons e cores o
limite da terra e do céu. Por essas ruas de Ouro Preto passam pessoas de várias línguas e países.
A cidade abriga moradores de diversos estados, professores, estudantes, funcionários e
trabalhadores. Toda essa mistura cultural faz com que seja considerada uma cidade viva e como
tal, palco de conflitos e disputas em seus espaços. É uma cidade monumento que contêm outros
tantos monumentos oitocentistas dentro dela. A iluminação urbana ressalta esses monumentos,
edificações belas e imponentes que se destacam no ondulado da paisagem.
Nela se destaca o Conjunto dos Contos representado pela Casa dos Contos, um imponente
exemplar da arquitetura civil colonial, a Ponte, sua vizinha e o Chafariz dos Contos, do outro lado
da Casa. Desse conjunto recortamos o Chafariz que foi construído no século XVIII. Manuel
Bandeira o descreveu em 1938, como “o mais belo da cidade” (BANDEIRA, 1975, p. 138).
Recebeu também outro nome, Chafariz de São José, nome vinculado à sua localização, como
descreveu Gustavo Barroso, na década de 1920, “ao pé da Ponte de São José” (BARROSO, 1944,
p. 47).
De autoria não identificada, a obra do Chafariz dos Contos foi arrematada em 1745 por João
Domingues da Veiga. O Chafariz possui uma inscrição em sua parte posterior com data de 1760,
em referência provável ao ano de conclusão da obra. Em 1710, segundo Carles (2016), o
primeiro sistema de abastecimento foi instalado e entre 1740 e 1760, as fontes monumentais
foram erigidas. Os chafarizes se destacam por sua quantidade e a antiga Vila Rica por ser um dos
mais importantes centros da gestão de recursos hídricos na América Portuguesa.
A abundância de água foi uma das razões para a ocupação do território e ocasionou diversos
conflitos por posse de água em razão da alta demanda na extração minerária. Para Fonseca e
Prado Filho (2004), em 1720, a demanda gerou um sistema de permissão de uso e legislação
própria para a gestão da água, com uso prioritário pela mineração. A Câmara regulava a água

225
com os Livros de Posturas e a denominação “fontes públicas” faz referência ao uso comum e à
dependência da municipalidade. Para o uso particular, a água era disponibilizada por “penas de
água”. A distribuição privada cresceu gradativa e paralelamente à distribuição pública, pois se
trata de uma região com muitas nascentes. Muitas delas estavam presentes nos quintais das
casas e várias casas tinham fundos para os córregos. Com isso, há registros também de fontes
particulares construídas nesse período e a utilização dos córregos como despejo para a água
usada e demais conteúdos hoje compreendidos como esgoto domiciliar.
Silva (2009) destaca que no período entre 1734 e 1760, nos valores empregados em obras para
aumento e conservação do mobiliário urbano público destacavam-se os chafarizes (14,1%), as
pontes (21,1%) e os calçamentos (31,1%). Esses investimentos se deram mesmo com todas as
oscilações no volume de recursos aplicados em obras públicas e as constantes reclamações que
evidenciam as dificuldades da Câmara em investimentos para tal finalidade (SILVA, 2009, p. 108-
109).
Para Vasconcellos (1977, p. 69) a implantação das casas dialogava com a topografia.
Compensando as dificuldades que a topografia de Vila Rica determina, devem
ser lembradas, porém, as vantagens de ordem higiênica que proporciona,
possibilitando o fácil e rápido escoamento das águas, quer pluviais, quer de
serventia, pelos terrenos inclinados e ruas que, em 1817, Spix e Martius já
encontram, em sua maioria, calçadas.

No entanto, para o olfato e a sensibilidade europeia o registro do cheiro ruim é frequente na


literatura de viajantes. Na história de equipamentos de higiene mencionamos a Casa dos Contos
construída para ser a residência do contratador João Rodrigues de Macedo. Na década de 1780,
a casa foi pioneira na instalação de um espaço destinado às atividades de higiene, com
instalações sanitárias, como apontam Fonseca e Prado Filho (2004).
Atualmente, o que se vê no Chafariz dos Contos consiste em uma grande parede decorada com
elementos em pedra. No meio dessa parede, uma grande concha com duas criaturas que
lembram peixes despejando as águas sobre a baia, a ornamentação ao redor da concha com
tímidas volutas, duas pilastras nas extremidades, detalhes do frontispício superior e cinco pinhas
em três tamanhos diferentes. Essas características não condizem com as referências à sua
primeira estrutura, como aponta o histórico do Inventário da Prefeitura de Ouro Preto (2012).
A ornamentação anterior a 1745, segundo a PMOP (2012), continha figuras de atlantes que

226
sustentavam as bases da concha por onde as águas jorravam. Em documento datado de 17862
é mencionada a mudança do Chafariz do “Largo da Ponte de Sam José” para a entrada da “rua
nova das Flores”. O pedido de pagamento pelas obras da Lagoa do Chafariz da Ponte de São
José, de autoria de Gonçalo Antônio de Oliveira e Antônio Moreira Duarte, de 4 de junho de
17443 refere-se a um Chafariz de São José antes mesmo de sua arrematação.
A necessidade de acesso à água garantiu a utilidade dos chafarizes. Em sua espacialidade
compartilhada eram frequentes, em especial, as mulheres, os pobres e escravizados que serviam
às casas. A rotatividade dos corpos era grande e a comunicação estabelecida ali permeava a
rotina das famílias de um modo geral, pelo fluxo de notícias nas vozes que ecoavam por lá. Em
Henrique Cabral, lemos: “Reunidos junto aos chafarizes, à espera de sua vez para apanhar água,
punham-se a palestrar sôbre (sic) a vida da casa a que pertenciam” (CABRAL, 1969 [1946], p.
100). Em 1867, Richard Burton, em seus registros da visita ao Brasil faz referência frequente à
localização dos chafarizes nas antigas cidades brasileiras, geralmente vinculados às matrizes e
praças. Burton menciona um comentário que teria ouvido no chafariz sobre a “emancipação”, a
abolição da escravidão, e afirma que a excitação da “população servil” estaria incitando atos de
violência. “‘Os ingleses vêm nos libertar em breve’, ouvi negros dizerem conversando no
chafariz” (BURTON, 2001, p. 487).
Segundo Cabral (1969), aqueles que queriam água em seu domicílio ou nova fonte em sua rua
deveriam solicitar ao Senado. Quando a concessão era para uso particular, o Senado
disponibilizava as sobras das águas dos chafarizes e cobrava um valor de “compra de água”. Nos
documentos da Câmara Municipal de Ouro Preto sob a custódia do Arquivo Público Mineiro, é
possível acompanhar as demandas de água pela população, como a solicitação do Capitão Pedro
José da Silva4 para usufruir da água que vai para a fonte pública, de modo a atender às suas duas
casas no Largo da Igreja do Ouro Preto. Segundo o Capitão, a água era tanta que chegava a
arrebentar os chafarizes públicos. Uma solicitação coletiva dos moradores do bairro do Rosário
de 17455 também pede a concessão da água para que eles façam a construção de uma fonte
atrás do quintal da Igreja do Rosário para resolver o problema de falta de água na região. Em 9

2
MES_DPHAN, s/n, 1953.
3
APM_CMOP, Cx 15, Doc 16, 1744.
4
APM_CMOP, CX. 86, DOC 35.
5
APM_CMOP, CX 16, DOC 44, 27/04/1745.

227
de julho de 1766, Luís Diogo Lobo da Silva6 enviou uma carta à Câmara solicitando o conserto
do chafariz de São José para o abastecimento da Casa de Fundição, que nesse período
funcionava no antigo Palácio dos Governadores 7. As demandas da população conflitavam com
as demandas dos mineradores. A água, transformada em mercadoria, por seu valor de “compra
de água” estipulado pelo Senado, já refletia a intenção de domínio do grupo social ligado a
mineração sobre esse bem comum.
François Béguin (1991) produziu interessante estudo sobre o caráter político da distribuição de
água da Inglaterra oitocentista. O autor discorre sobre o investimento da administração pública
aos sistemas de fornecimento de água e de tratamento de esgoto na Inglaterra, que denomina
de maquinaria urbana e que tinha como intuito a reforma da economia doméstica, num
processo mais amplo de controle político. Para ele, os efeitos dessa reforma impactaram as
questões de higiene e salubridade e também o cotidiano do ambiente particular, ou seja,
interferiram na habitabilidade e na socialização. Essa reforma sensível dos hábitos domésticos e
extra domésticos se dava com o aumento das satisfações pessoais a partir do conforto,
garantindo, ao mesmo tempo, a promoção do bem-estar e o controle de sua produção e de seus
efeitos na sociedade. Segundo Beguin, “o conforto é portanto um processo de invasão ao qual
não se pode resistir [...]” (BEGUIN, 1991, p. 48). Pode-se dizer que o conforto foi um mecanismo
de duplo controle, tanto econômico, como político, ou seja, aproximava os pobres das questões
relacionadas à qualidade de vida e defesa da propriedade, mas favorecia um processo de
“domesticação”8. Além disso, havia um entendimento do Estado de que existia um custo social
e econômico em torno da insalubridade que fez surgir a necessidade de controlar a saúde,
prevenir.
Pela inscrição em latim no Chafariz dos Contos se observa essa relação política: “Is quae
potatum, cole, gens pleno ore Senatum securi ut sitis nam facit ille sites” que pode ser traduzido
por: Gente que vem beber, louva de boca cheia ao Senado, porque tem sede e ele faz cessar a
sede (PMOP, 2012), inscrições que já não são mais visíveis em sua totalidade. A instalação do

6
APM_CC, CX 96 - 20394, 1766.
7
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Livro Histórico. Inscrição 266. Nº
Processo: 0415-T. Dispõe sobre o tombamento do Palácio dos Governadores. (Ouro Preto, MG), 1950.
8
Beguin (1991) utiliza o termo “domesticação” para se referir ao conforto como característica ilimitada,
ou seja, há sempre como inová-lo, se tratando de um processo constante de criação de novas formas e
novos usos da casa como pano de fundo, alterando-se as necessidades e usos em processos cíclicos e
constantes.

228
Chafariz no contexto da Vila Rica simbolizou o primeiro momento do domínio da água pelo
Senado, já que eles determinavam as instalações de fontes públicas, de uso de água pelos
mineradores e aprovação de uso residencial. A frase inscrita no Chafariz demonstra como cabe
ao Estado Português e ao Senado o controle de um bem essencial a vida urbana, ou seja, que
ele dispõe da vida de seus súditos.
No capitalismo mundial integrado a água é um elemento de controle na Inglaterra ou em Ouro
Preto, e a alteração na sua forma de distribuição impactou a vida de seus habitantes. A sua
instalação nas residências “domesticou” as pessoas e interferiu na sociabilidade que se dava em
torno de usos comuns nas fontes públicas. Para Cabral:
Desapareceram os carregadores do precioso líquido nos chafarizes públicos e
a conseqüente (sic) reunião da criadagem e dos espetáculos que faziam com
sua vozeria, gargalhadas e palavrões. E pouco a pouco a própria água foi
sumindo dos chafarizes (CABRAL, 1969, p.304).

Para Beguin, essas alterações na comunicação transformam a cidade. “Paradoxo de um universo


doméstico em expansão, domesticando pouco a pouco todo o fora, todo o universo, mas sob
uma forma controlada e estereotipada, enquanto a cidade continua a se tornar mais estrangeira,
já que nada de essencial acontece mais nela” (BEGUIN, 1991, p. 53). Houve, assim, um
deslocamento da vivência na cidade, do âmbito coletivo do uso dos espaços e seus
equipamentos para a vivência dentro de sua propriedade privada. A privacidade passou a ser
um princípio social cujos significados estavam ligados ao conforto e à qualidade de vida.
Nesse processo de “domesticação”, cabe ressaltar que o planejamento e as condições de
instalações de higiene e salubridade no Brasil se deram em condições diferentes da Europa. Esse
desenvolvimento na estrutura de higiene e salubridade no Brasil tem seu marco no final do
século XIX, período que coincide com a referência à Inglaterra de Beguin. No fim da década de
1880, Ouro Preto inaugurou uma estação de tratamento de esgotos (ETE). Localizada no bairro
Barra, a topografia favorecia o transporte da água servida para os tanques de tratamento, por
gravidade. Os tijolos nos tanques de desinfecção da ETE contêm o selo do Império e a sua
tubulação possui inscrições de companhias inglesas. Os autores Fonseca e Prado Filho (2004)
apontam que ela foi desativada no começo do século XX. Esse é um dos marcos na história da
distribuição da água na cidade, quando há investimentos em canalização para abastecimento
das residências e destinação planejada da água usada para tratamento.

229
2 – De essencial a decorativo: usos e valores do Chafariz dos Contos
No final da década de 1890, Ouro Preto perdeu o título de capital, que foi transferido para Belo
Horizonte. Segundo Fonseca (2016), uma das tensões desse período é a polarização na cidade
entre os mudancistas e os não mudancistas da capital de Minas Gerais. Nesse debate há uma
mobilização da sociedade para implementar estruturas, modernizar a cidade na tentativa de se
garantir a permanência da capital em Ouro Preto. Entre as inovações há a criação do cargo
municipal de alinhador de via pública. A anamorfose da linha da rua denota a transformação da
sua percepção e representação. A rua passa a ser compreendida como pista de rolamento que
deve ser gerida para se garantir a velocidade da circulação. E a partir desse momento o chafariz
é progressivamente silenciado. Nesse processo a área do Chafariz dos Contos sofreu duas
intrusões. Em 1911, sua área foi alvo de uma intervenção no Largo dos Contos para nivelar o
calçamento. E depois, com a retirada do tanque/baia do Chafariz e o soterramento do
embasamento, o Chafariz ficou situado abaixo do nível da rua.
Nas décadas seguintes, após o baque da mudança da capital, Ouro Preto foi se tornando um
símbolo do passado do Brasil. A visita dos modernistas na década de 1920 deu visibilidade para
a cidade e para a necessidade de preservação. Foi nesse processo de valorização que a cidade
foi elevada à Monumento Nacional, em 1933, consagrando-se como cidade monumento.
Em 1935 e 1936, outras intervenções foram feitas no Chafariz dos Contos, dessa vez pela
Inspetoria de Monumentos Nacionais. Nesse período, diferentemente da obra anterior,
privilegiou-se a historicidade do passado. Restaurar os monumentos tinha por objetivo facilitar
a leitura do passado, privilegiar o que era considerado original em consonância com o
movimento de salvação da cidade iniciado pelos modernistas na década de 1920. Nesse
momento, Gustavo Barroso propôs o conserto e o reabastecimento de água nos chafarizes
fazendo uma relação com a história da cidade. Dos 48 chafarizes públicos e particulares
identificados em Fonseca e Prado Filho (2004), Barroso cita 6. O plano justifica a escolha “pois
são os que mais se mostram ricos em construção e os que mais atraem pela sua posição dentro
da área urbana” (BARROSO, 1935 apud MHN, 1944, p. 40). Dentre eles, o Chafariz dos Contos
ou de São José. Nessa obra foram reconstituídas as partes soterradas e danificadas, que
conforme a narrativa do engenheiro Epaminondas de Macedo,
É, talvez, o chafariz mais adulterado que existe, pois as notícias sobre ele
mencionam um paredão lateral também de pedra que formava o canto com
o de frente, provido este paredão de uma pia com uma carranca, alguns

230
descansos e um tanque, estando o serviço d´água em ligação com a fonte
principal (BARROSO, 1935 apud MHN, 1944, p. 47).

Em 1937, após a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) foi feito
o tombamento do Conjunto Arquitetônico e Urbanístico da cidade, que evidenciou os seus
valores artísticos, haja vista a sua inscrição no Livro do Tombo das Belas Artes. Apesar disso, não
houve investimentos significativos na preservação dos bens, de tal modo que o Chafariz dos
Contos só passou por outra intervenção planejada após o tombamento em 19 de junho de 1950,
inscrição 371 no Livro de Belas Artes, nº do processo 0430-T.

Figura 01 – Chafariz dos Contos de Ouro Preto

Fonte: acervo pessoal, 2020.

Em 1947 e 1954, de acordo com o Inventário da Prefeitura de Ouro Preto, obras emergenciais
foram necessárias após acidentes com veículos ao estacionar e devido à falta de obstáculo entre
a via e o monumento. Em 1987, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional o
inventariou na categoria de “Bens imóveis” e em 2012, pela Prefeitura de Ouro Preto na

231
categoria “Estruturas Arquitetônicas e Urbanísticas”. Após restauração e religamento, foi
oficialmente entregue à população em 2018, contando com água própria para consumo9.

3 - Considerações finais
Antes de ser silenciado o seu caráter utilitário, os chafarizes eram uma fonte também de
relações sociais, um lugar ruidoso, colorido, de trocas e experiências, de encontros, de
propagação de notícias. A sociabilidade ao seu redor se dava pela prática de carregamento de
água possibilitando uma mistura sonora muito cara à dinâmica e à vida na cidade. Essas vivências
os caracterizavam também como um lugar de conflitos em torno da água o que demonstra a sua
importância na dinâmica da cidade.
No século XVIII, os registros da construção Chafariz dos Contos mostram a intencionalidade de
revelar a sua existência enquanto símbolo de poder, haja vista a sua localização privilegiada e o
lembrete do Senado em suas inscrições em latim. Atualmente distante de sua função primeira,
mesmo com a água disponível novamente, o Largo o acolhe como mais um monumento
importante daquela paisagem, e mais um atrativo turístico. A visão do Chafariz ficou
comprometida com o privilégio dado na área ao estacionamento de veículos automotivos e a
forma de perceber e interagir com o espaço da cidade histórica de seus usuários que passam
muitas vezes indiferentes ao monumento. O que se observa é que está escondido atrás dos
inúmeros carros enfileirados, como um ponto de passagem para pessoas e turistas e para
abastecimento de baldes de água dos trabalhadores informais que lavam carros por ali ou
bebem daquela água. As dinâmicas da vida urbana mudaram com o tempo e a sua permanência
na cidade histórica reflete diferentes modos de existência ligados a novos hábitos da sociedade.
Longe de esgotar o assunto, esperamos ter a oportunidade de aprofundar os estudos sobre o
Chafariz.

Referências
Fontes

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Rica sobre o conserto do encanamento do chafariz para abastecimento da Casa de Fundição. Acervo
Casa dos Contos. Cx 96-20394. 1766. Disponível em

9
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https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2018/03/23/interna_gerais,946165/ouro-preto-lanca-ano-
do-patrimonio-cultural-e-reabre-chafariz.shtml. Acesso em: mar de 2021.

232
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Disponível em <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/cmop/brtacervo.php?cid=775>. Acesso
em: mar 2021.

ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO (BRASIL). Solicitação de pagamento de obras realizadas por Gonçalo
Antônio de Oliveira e Antônio Moreira Duarte. Câmara Municipal de Ouro Preto. Cx 15. Doc. 16.
04/06/1744. Disponível em
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ARQUIVO PÚBLICO MINEIRO (BRASIL). Solicitação para que possa usufruir em suas duas casas da água
que vai para a fonte pública visto a sua abundância. Câmara Municipal de Ouro Preto. CX. 86. DOC 35.
s/d. Disponível em
<http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/modules/cmop/brtacervo.php?cid=6863>.Acesso em: 03/2021.

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Livro das Belas Artes. Inscrição nº 371
de 19-6-1950, Nº Processo 0430-T. Dispõe sobre o tombamento do Chafariz dos Contos (Ouro Preto,
MG).

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE. Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Mudança


do chafariz do Largo de São José [1786]. Cópia de documentos. Acórdãos da Câmara Municipal 1784-
1788. 1953.

PREFEITURA MUNICIPAL DE OURO PRETO. Inventário de Proteção do Acervo Cultural: Chafariz de São
José ou dos Contos. 2012.

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Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2001.

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VASCONCELLOS, Sylvio de. Vila Rica. São Paulo: Perspectivas, 1977.

234
O FORRÓ QUE SILENCIA: Impactos do turismo na Vila de Itaúnas (ES)
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Maísa Fávero Costa


Mestre; Instituto Federal do Espírito Santo IFES; maisafavero@gmail.com.

Martha Machado Campos


Phd; Universidade Federal do Espírito Santo UFES;
marthamcampos@hotmail.com.

Este trabalho investiga os impactos do turismo em Itaúnas (ES), a partir das vilas antiga -
soterrada e encoberta pelas dunas em meados do século passado - e atual. Ambas as vilas
são densas em simbolismos culturais e paisagísticos atribuídos por seus moradores e turistas.
Aborda impactos do Forró Pé de Serra, por se sobrepor e silenciar outras manifestações culturais
tradicionais coexistentes no lugar. Conclui-se necessidade de invenções na vida cotidiana da vila,
para que os moradores se reconheçam no território e na paisagem. Isso requer políticas públicas
e ações de proteção do patrimônio natural, material e imaterial e de incremento
socioeconômico sustentável no contexto local pré-existente, de preservação das matrizes
culturais dos povos tradicionais e garantia de direitos básicos.
Palavras-chave: Dunas de Itaúnas; Esquecimento; Turismo.

This work investigates the impacts of tourism in Itaúnas (ES), from the old villages - buried and
covered by the dunes in Picture of the last century - and current. Both villages are dense in
cultural and scenic symbolisms identified by their residents and tourists. It addresses the impacts
of the forró Pé de Serra, for overlapping and silencing other traditional cultural manifestations
coexisting in the place. It concludes the need for inventions in the daily life of the village, so that
the residents recognize themselves in the territory and in the landscape. This requires public
policies and actions to protect the natural, material and immaterial heritage and sustainable
socio-economic growth in the pre-existing local context, to preserve the cultural matrices of
traditional peoples and guarantee basic rights.
Key words: Dunas de Itaúnas; Forgetfulness; Tourism.

235
1 - Introdução
A Vila de Itaúnas está localizada a aproximadamente 270 km da capital do Espírito Santo (ES),
no município de Conceição da Barra e “[...] encontra-se entre os limites do Parque Estadual de
Itaúnas (PEI) e talhões de eucalipto plantados em larga escala” na região (MARTINS; MOLINA,
2008, p. 4). Em retrospectiva histórica, Conceição da Barra pertenceu à comarca de Porto Seguro
por 59 anos, de 1764 até 1823 (RUSSO, 2007) e tal proximidade com a Bahia ajudou a região a
prosperar por meio do mercado de trocas de manufaturas. Além disso, cabe destaque ao papel
dos negros escravizados fugitivos da Bahia, que formaram quilombos na região, tornando São
Mateus e Conceição da Barra, cidades com maior número de comunidades de escravos no
Espírito Santo.
Segundo o Atlas Observatório Quilombola, disponível em página colaborativa na internet,
reunindo dados de diferentes fontes sobre as comunidades quilombolas, é possível conhecer a
história, a origem do nome, a localização, o número de famílias e as condições socioeconômicas
dessas comunidades em todo Brasil. O mapeamento do Atlas identifica 72 comunidades de
quilombos no Espírito Santo, entre essas, 19 comunidades estão situadas no município de
Conceição da Barra, ou seja, o expressivo percentual de 26% do Estado.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias reconhece o direito territorial aos remanescentes das comunidades dos quilombos
garantindo a titulação definitiva pelo Estado Brasileiro. Regulamentado pelo Decreto
4887/2013, nos termos de Abreu e Mattos (2011), o artigo determina que “[...] a caracterização
dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante auto definição da
própria comunidade”. Dito de outro modo, as comunidades quilombolas tem garantido em
direito constitucional, que a caracterização de seus territórios seja atestada por meio dos “[...]
grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição, com trajetória histórica própria,
dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada
com a resistência à opressão histórica sofrida” (ABREU; MATTOS, 2011). A história de Itaúnas é
marcada pelo soterramento da antiga vila entre 1950 e 1960 – ilustrado na Figura 01–,
impactando não somente o modo de vida da população, mas sobretudo os costumes e as
crenças que constituem a base de formação da memória social local, portanto, o
reconhecimento e a apropriação social de seus símbolos e significados. Após o processo de
soterramento, a população se desloca e ocupa a margem oposta do Rio Itaúnas, migrando para

236
o novo assentamento, uma série de características urbanísticas – arruamento, traçado e técnicas
construtivas – e o modo de vida tradicional da vila antiga.

Figura 01: Soterramento da antiga vila de Itaúnas

Fonte: Acervo de Denise Machado. Disponível em: <http://conceicao-da-


barra.blogspot.com.br/2012/04/vila-de-itaunas-es-antiga.html> acessado em abril. 2016

O soterramento da antiga vila e a consequente formação das dunas, além de mudar a paisagem
e o território local, inicia os primeiros fluxos de turistas atraídos pelo cenário paisagístico. Nesta
mesma época, a antiga vila ficou esquecida materialmente no tempo e nas dunas. Ainda hoje é
possível observar alguns vestígios do antigo cemitério, da antiga igreja e algumas estruturas de
casas, dependendo da direção dos ventos que alteram a altura das dunas.
Na década de 1980, o valor paisagístico, histórico e arqueológico do lugar é reconhecido pelo
tombamento da Vila de Itaúnas pelo Conselho Estadual de Cultura do Espírito Santo, por meio
da Resolução nº 08, de 10 de setembro de 1986. Na Itaúnas atual, tem-se ainda a presença de
edificações de arquitetura modesta, a exemplo da igreja e do casario situados no centro da vila.
Deste modo, o traçado urbano obedece ao formato de uma quadrícula irregular e configura o
núcleo central dado pela igreja e seu largo em praça, seguido por quarteirões em escala pequena
e tamanhos diferenciados. Portanto, como dito, alguns relatos indicam que a nova vila se

237
configurou de forma semelhante à antiga, “[...] com duas ruas principais, uma igreja, uma praça,
alguns pontos comerciais, um cemitério e, desta vez, com várias pousadas para atender a
demanda de turistas que cresce a cada ano” (SOARES; NACIF; RICCO, 2013).
Devido à história envolta de misticismo e lendas do processo de soterramento e construção da
nova vila, o discurso sobre o turismo em Itaúnas se pauta nas dunas e no forró. Restrita ao
entendimento de que a vila é apenas uma - e que a antiga já não existe -, essa narrativa remete
unicamente a dupla vertente de cunho mercadológico para fins de promoção turística local, qual
seja: dunas-forró.
Deste modo, o turismo de massa impulsionado pelo Forró Pé de Serra, por meio do calendário
oficial do Festival Nacional de Forró de Itaúnas (FENFIT), contribui para o processo de
esquecimento e apagamento das memórias sociais e tradições preexistentes, sendo retificado
pelo comportamento dos turistas, que dão pouca ou nenhuma importância às festas tradicionais
ocorridas simultaneamente ao FENFIT. Assim, além de mudanças territoriais e de paisagem, com
a formação das dunas de areia móveis, o Forró de Pé de Serra se instala na nova vila, torna-se o
principal atrativo para o turismo da vila, por sua vez nomeada de capital do forró de referência
nacional a partir da década de 1990.
Evidentemente, o processo de consolidação da Vila de Itaúnas como destino turístico nacional
veio acompanhado de investidores imobiliários que edificaram pousadas e estabelecimentos
comerciais. Outro ponto de mudança territorial influenciado pelo turismo foi o processo de
modificação da configuração espacial da vila, que teve sua região central valorizada pela
especulação imobiliária, levando muitos moradores a venderem suas casas para transformá-las
em restaurantes, lojas ou pousadas, e a se estabelecerem em outras localidades afastadas do
centro. Neste contexto, representado na Figura 02 abaixo, os moradores se deslocaram e
expandiram o perímetro urbano para a Rodovia ES-010, importante via de ligação da Vila de
Itaúnas à sede de Conceição da Barra.
A Vila de Itaúnas possui elementos naturais e imateriais fortemente ligados ao seu território,
seja pelo modo de viver, seja pelos mitos acerca do soterramento da vila ou pelas diversas
manifestações culturais vivenciadas no espaço da vila atual, sendo, portanto, formadores de
uma paisagem cultural evidente, no sentido dado por Ribeiro (2007). Alguns desses elementos
configuram símbolos relevantes para a apreensão do espaço socioeconômico da atual vila,
compõem modos de vida da população moradora, configuram palcos das festas religiosas e

238
populares, conectando a coexistência imaterial da antiga Vila de Itaúnas com a materialidade da
nova.

Figura 02: Processo de expansão territorial da Vila de Itaúnas.

Fonte: GEOBASES modificado pela autora 2016.

2 - A antiga e a nova Vila de Itaúnas: ressignificação e esquecimento


Assim como a configuração espacial se manteve de uma vila para outra, as tradições populares
também permaneceram. Entre elas se destacam o Alardo de São Sebastião e o Ticumbi, ambas
se apropriam do espaço da igreja, da praça, do rio, das ruas durante a Festa de São Sebastião e
São Benedito. A influência do catolicismo – representado pela Igreja Matriz de São Sebastião –
hibridizado à religiosidade afro-brasileira e o percurso realizado em procissão em terra na vila e
floresta, e ainda, na água – Figura 03 e 04–, faz do Ticumbi a mais territorializada das festividades
tradicionais da vila.
As festas religiosas em Itaúnas, assim como em demais vilas e cidades brasileiras, combinam o
religioso com o popular e são “[...] também um ato político, territorial, uma reafirmação cultural,
expressão de uma visão de mundo” (XAVIER; BASSETTI, 2014). Desse modo, identifica-se o
patrimônio imaterial – danças, ritos, cantos, reza, citando alguns – e material – a exemplo das

239
indumentárias, bandeiras, bebidas, comidas – inserido no espaço territorial da vila em eventos
festivos.
Quanto a atividade turística, além de certas melhorias econômicas, o turismo promove
sobretudo mudanças nos modos de vida da população, na configuração espacial e em áreas de
preservação ambiental, impactando a comunidade. De acordo com o Plano de Manejo do
Parque Estadual de Itaúnas, o excesso de turistas no verão, nos feriados prolongados e no
Festival do Forró sobrecarrega a capacidade de suporte local. O pisoteio das dunas, por exemplo,
afofa a areia, provoca sua erosão e desraizamento da vegetação nativa. Observa-se significativa
preocupação ambiental acerca desse fenômeno, considerando que a retirada da vegetação
nativa ocasionou o soterramento da antiga vila.

Figura 03: Procissão terrestre da Festa de São Sebastião e São Benedito.

Fonte: Disponível em: https://www.instagram.com/p/CKRCyZQjmLZ/. Acesso em 13/03/2021.

Figura 04: Procissão aquática da Festa de São Sebastião e São Benedito.

Fonte: Disponível em: https://www.instagram.com/p/CJwl5AEjoGz/. Acesso em 13/03/2021.

240
Nota-se também a danificação e atos de vandalismo na sinalização dos percursos, o que dificulta
o ordenamento do fluxo de turistas. Não há dúvidas de que insegurança, assaltos, especulação
imobiliária e marginalização da população nativa são impactos provocados pelo turismo, junto
com baixa qualidade de saneamento, descaracterização do ambiente urbano antigo - casas
coabitadas, construção de puxadinhos e de quartos isolados nos lotes -, processo de especulação
imobiliária, entre outros (INSTITUTO ESTADUAL DO MEIO AMBIENTE E RECURSOS HÍDRICOS,
2004).
Como dito, é fato que o turismo influencia no ritmo de vida da população da vila, mas ele
também instabiliza a sociedade do ponto de vista da geração de renda. Na alta temporada, a
economia gira em função do turismo, e, na baixa temporada, os moradores voltam às suas
funções cotidianas de pesca, coleta de mariscos, artesanato, construção civil local, colheita de
café e mandioca, entre outras. Nos termos de Hacon (2011), “Os recursos financeiros obtidos na
alta temporada são, para muitos, responsáveis pelo sustento o restante do ano” (HACON, 2011,
p. 85). Vale lembrar que o turismo está entre as principais atividades econômicas de Itaúnas.
Ainda assim, essa atividade não conta com um plano sólido, responsável por estabelecer e
organizar as atividades da Vila (INSTITUTO ESTADUAL DO MEIO AMBIENTE E RECURSOS
HÍDRICOS, 2004).
A partir de uma leitura atenta e minuciosa do lugar, nota-se que as duas vilas – antiga e nova –
ainda estão interligadas às tradições evidenciadas nas festas religiosas e populares, que se
apropriam de quase todo o território do lugar. O Forró Pé de Serra pode se apresentar como
uma vertente turística atualizada dos antigos bailes de sanfona que aconteciam na antiga vila. A
Festa de São Sebastião e São Benedito se apropriam do rio, das ruas, das casas e dos bares,
envolvendo toda a população em percursos de procissão, com saudações aos santos e as antigas
tradições. É por meio dessas manifestações, das letras das músicas, das danças, dos costumes e
demais suportes e linguagens artísticas e culturais que se identifica a interligação duas vilas: a
antiga e a nova.
Certamente o Forró Pé de Serra é a festa popular de maior alcance de público da vila, tendo
inclusive um evento principal, o citado FENFIT. Contudo, observa-se que a ligação de Itaúnas
com o forró ocorre desde os bailes de sanfona da antiga vila. Os mais antigos comentam que os
bailes ocorriam periodicamente e eram frequentados pela maioria dos moradores. Com o
soterramento e a mudança para a vila atual, esses bailes ficaram um tempo sem acontecer, a

241
população desanimada pelo que perdera, estava reconstruindo a vida na nova vila (CELINGA,
2012). Ainda segundo a autora, aos poucos essa festa foi reaparecendo na comunidade, tendo
como incentivo a fundação do Bar Varandão, onde um morador começou a promover os
primeiros bailes na Vila de Itaúnas. Na época, vinham sanfoneiros da região e de cidades vizinhas
para tocar nos bares, não havendo cobrança de ingresso (CELINGA, 2012). Nos termos de Celinga
(2012), o forró antigo, aos modos e semelhança ao que acontecia na Itaúnas velha, pode ser
percebido quando ocorrem as apresentações dos grupos culturais, nos dias de festas religiosas,
geralmente nas casas dos festeiros (CELINGA, 2012).
Como visto, o turismo em Itaúnas foi alavancado na década de 1990 por diferentes fatores,
sobretudo pelo forró que, nessa mesma época, em âmbito nacional, estava passando por um
processo de transformação, como o surgimento do denominado forró universitário. A expansão
nacional do forró faz de Itaúnas um reduto dos admiradores desse estilo musical. É importante
salientar que o forró teve e continua tendo um importante papel como construtor da identidade
do lugar, junto com as demais manifestações culturais (CELINGA, 2012).
Com o desenvolvimento do turismo, tal como dito, do apelo dado pelos recursos naturais e
paisagísticos, e também pelo forró, Itaúnas começou a modificar sua infraestrutura para que
pudesse receber um grande número de visitantes. As casas de forró, que antigamente eram
bares locais e não cobravam bilheteria, passaram a ter uma estrutura com palco, aparelhagem
de som e local aberto para comportar o número de dançarinos e visitantes. Para custear essas
mudanças, o ingresso passou a ser cobrado e mercantilizado. A partir disso, a prática cultural do
forró, que até então acontecia de maneira espontânea, passou a ser produto de consumo
consagrado com a realização anual do FENFIT.
Assim, é possível afirmar que o forró, além de transformar o lugar, foi modificado ao longo dos
anos por apropriações externas e internas. Ainda hoje, é responsável pela popularização de
Itaúnas nos destinos de viagem e continua sendo de grande relevância para os moradores, como
um componente da cultura que carrega as raízes dos bailes de sanfona, gera renda e emprego,
impulsiona o lugar como destino turístico.
Apesar do forró ser o elemento mais fortemente associado ao lugar, projetando a Vila de Itaúnas
nacionalmente, são as demais manifestações culturais de cunho deliberadamente religioso, que
mantém a vivacidade das tradições locais, da memória social e identidade cultural dos
moradores da então agora conhecida Dunas de Itaúnas. Essas manifestações que muitas vezes

242
são silenciadas pelo movimento do turismo de massa gerado pelo FENFIT, passam
despercebidas aos olhos da maioria dos turistas forrozeiros.

3 - Resultados e Conclusões
A expressiva identidade cultural da Vila de Itaúnas não impede a sua abertura para elementos
externos, geradores de processos de mudanças de toda ordem. É, inclusive, a partir desses
processos que ocorrem a transformação ou preservação de determinados lugares simbólicos e
a ressignificação religiosa, política ou histórica dos mesmos, a despeito de sua mercantilização.
As reinvenções ocorridas em Itaúnas mediante mudança de implantação da vila, roteiro turístico
ampliado, preservação natural, manifestações culturais, inserção e modificação do forró, fazem
com que o local, assim como outras localidades brasileiras similares, seja ao mesmo tempo lugar
de simbolismo e tradição e anseie por mudanças mediante a denominada modernização. De
antemão, conclui-se que as reinvenções são necessárias para que a comunidade continue se
reconhecendo no lugar. Contudo, indaga-se: que tipo de reinvenção, que não a do forró que
silencia – remetendo ao título deste trabalho - a tradicionalidade ancestral e vital advindas das
comunidades tradicionais indígenas e quilombolas em permanente risco de desaparecimento,
podem e devem ser incorporadas a Vila de Itaúnas?
Sabe-se que é insuficiente o reconhecimento dos recursos naturais, patrimoniais, econômicos e
culturais dados por instituições e parcela dos moradores para possibilitar de fato a preservação
da vila aliada à geração de renda e emprego para a comunidade local. Sabe-se também que o
turismo foi favorecido pela consolidação do forró, pela criação do Parque e pela existência das
outras manifestações culturais tradicionais.
Além da mudança do perfil populacional da vila, alterado pelo desenvolvimento do turismo com
a chegada de pessoas de fora estabelecendo-se no local, Martins e Molina (2008) apontam a
ocorrência do típico processo de aculturação. Enfim, trata-se de fenômeno no qual ocorrem
trocas culturais promovidas pelo grande número de visitantes vindos de outras cidades e
regiões. Esse processo de introdução de novos valores culturais pela presença dos turistas, afeta
principalmente os mais jovens, que se distanciam de práticas culturais tradicionais, reafirmam
os mesmos autores.
Conclui-se que a Vila de Itaúnas, ou como foi batizada mais recentemente, Dunas de Itaúnas,
está novamente sob risco de soterramento, apagamento e desaparecimento, tendo em vista o

243
aumento de empreendimentos de alto padrão, que podem levar ao conhecido processo de
gentrificação, ou melhor, a remoção tanto da população local quanto dos turistas usuais.
O argumento desta conclusão não é inédito, pelo contrário, faz com que Itaúnas constitua mais
um dos estudos de casos de vilas litorâneas brasileiras com perfil semelhante. Como se sabe,
nem tudo é típico numa perspectiva comparada de maior alcance. Neste sentido, novos aportes
conceituais e metodológicos são vislumbrados para estudos e pesquisas futuras sobre Itaúnas,
desde que sejam pautados no debate sobre a descolonização do imaginário e do cotidiano;
sobre outros aspectos da existência humana pós período pandêmico vivenciado de modo
planetário; sobre a superação dos parâmetros de ocupação urbana restritos ao mercado e ao
consumo; sobre o desenvolvimento socioeconômico alternativo de enfrentamento da mudança
climática; sobre a brutal desigualdade social brasileira; sobre a diversidade e debates
interseccionados por questões de classe, gênero, etnia e raça; citando alguns apontamentos
insurgentes no campo da arquitetura e urbanismo e demais áreas de conhecimento na
atualidade.

Referências
ABREU, Martha; MATTOS, Hebe. Remanescentes das Comunidades dos Quilombos: memória do
cativeiro, patrimônio cultural e direito à reparação. In Anais do XXVI Simpósio Nacional de História, São
Paulo, 2011.

CELINGA, Fernanda. Fronteiras entre as dunas: compreendendo a cultura lúdica na Vila de Itaúnas (ES).
2012. 172 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física) – Centro de Educação Física e Desportos,
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2012.

COSTA, Maísa Fávero. Paisagem Cultural em Itaúnas (ES). O Lugar e sua dimensão simbólica. Mestrado.
Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo. Universidade Federal do Espírito Santo. 2017

HACON, Vanessa; LOUREIRO, Carlos Frederico B. A centralidade do território e a posição do Estado nos
conflitos pela apropriação da natureza: o caso do Parque Estadual de Itaúnas. Terra Livre, São Paulo, ano
27, v. 1, n. 36, p. 229-251, jan./jun. 2011.

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de Itaúnas. Vitória: CEPEMAR, 2004.

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o caso de Itaúnas-ES. Revista Iluminuras – Publicação Eletrônica do Banco de Imagens e Efeitos Visuais...,
v. 9, n. 22, 2008.

RIBEIRO, Rafael Winter. Paisagem cultural e patrimônio. Brasília: IPHAN, 2007

244
RUSSO, Maria do Carmo de Oliveira. Cultura política e relações de poder na região de São Mateus: o
papel da Câmara Municipal (1848/1889). 2007. 140 f.

SERVIÇO BRASILEIRO DE APOIO ÀS MICRO E PEQUENAS EMPRESAS. Atlas do folclore capixaba. Vitória,
2009
SOARES, Camila Santos Almeida; NACIF, Manuella Fonseca; RICCO, Adriana Sartório. Mitos da memória
popular: o soterramento da Vila de Itaúnas na visão dos moradores. Destarte, Vitória, v. 3, n. 2, p. 36-58,
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XAVIER, Maria A. de Sá; BASSETTI, Telma Bittencourt. Turismo como aporte ao avanço do capital na Vila
de Itaúnas-Es e a cultura como expressão de resistência. GEOGRAFARES, Vitória, ago./dez. 2014.

Souza, Machado, Tognella e Alves-Araújo. Checklist de Angiospermas do Parque Estadual de Itaúnas,


Espírito Santo, Brasil Rodriguésia vol.67 no.3 Rio de Janeiro jul./set. 2016.

245
O GUERREIRO ALAGOANO COMO PATRIMÔNIO IMATERIAL: um auto de resistência?
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Catarina Maria Machado Muniz


Bacharel em Relações Públicas e mestranda em História (PPGH/UFAL); Pesquisadora do Grupo
de Pesquisa Nordestanças; catarinamuniz@yahoo.com.br

Carlos Eduardo de Santa Rita Fonseca


Arquiteto e Urbanista, Mestre em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU/UFAL); Pesquisador do
Grupo de Pesquisa Nordestanças; kadudeha@gmail.com

O Guerreiro é um folguedo alagoano registrado pelo Conselho Estadual de Cultura como


Patrimônio Imaterial na Categoria III: “fontes de expressão, musicais, plásticas, cênicas e
lúdicas”. Seu universo simbólico é apropriado e espacializado em propagandas institucionais,
equipamentos públicos, na moda, na arte, no artesanato. Aparentemente não há silêncio. Este
se sobressai, entretanto, na análise das narrativas de quem efetivamente o faz. Desse modo,
quais são os desafios para manter o Guerreiro vivo e atuante? Qual o impacto de sua
patrimonialização? Como esta pode efetivamente preservar, além da memória, a existência do
Guerreiro? Como atuam os silenciamentos? Tais questões são discutidas neste artigo através de
entrevistas realizadas com protagonistas da manutenção deste folguedo no contexto da cultura
popular alagoana contemporânea.
Palavras-chave: Guerreiro; Cultura Popular; Patrimônio Imaterial; Resistência; Alagoas.

Abstract: Guerreiro is a Alagoan revelry registered by the State Council of Culture as Intangible
Heritage in Category III: “sources of expression, musical, plastic, scenic and playful”. Its symbolic
universe is appropriate and spatialized in institutional advertisements, public facilities, in
fashion, in art, in handicrafts. Apparently, there is no silence. This one stands out, however, in
the analysis of the narratives of those who actually do it. So, what are the challenges to keep the
Guerreiro alive and active? What is the impact of its patrimonialization? How can it effectively
preserve, beyond memory, the Guerreiro existence? How do silences work? Those issues are
discussed in this article through interviews with protagonists of the maintenance of this revelry
in the context of contemporary Alagoas popular culture.
Keywords: Guerreiro; Popular Culture; Intangible Heritage; Resistance; Alagoas.

246
1 – “O Guerreiro não se faz só com história”
Fitas multicoloridas. Indumentárias cravejadas de lantejoulas e espelhos. Roupas em tecido
brilhante, espadas de madeira, chapéu em formato de igreja encabeçando o mestre. Corpo,
música, teatro e dança. O Guerreiro, auto dramático do ciclo natalino, nasce em Alagoas por
volta da década de 1930 decorrente de outros dois folguedos: o Reisado e os Caboclinhos e
aparentemente se constitui como manifestação indissociável da cultura alagoana, sendo o
grande chapéu que encabeça os Mestres dos Guerreiros uma das marcas do Estado de Alagoas.
As construções simbólicas e imagéticas do folguedo em questão são apropriadas como
ornamentos de peças de vestuário, se transformam em obras de artesanato e são temáticas
recorrentes de artistas plásticos locais e de outros estados quando estes se propõem a
representar Alagoas em suas artes. O Guerreiro está presente, também, em livros infantis; é
pintado em paredes e muros espalhados por Maceió e interior; fazem parte de campanhas
publicitárias públicas e privadas espacializadas em supermercados, shopping centers, órgãos
públicos.
Em primeira análise, o panorama sugere uma manifestação artística e cultural forte,
disseminada e marcadamente presente enquanto elemento cultural do alagoano. Com o
recebimento do título, em 2019, de Patrimônio Imaterial do Estado de Alagoas, sendo registrado
na categoria III: “Fontes de expressão, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas”, pode-se
argumentar que o Guerreiro é, de fato, um patrimônio reconhecido de Alagoas. E assim sendo,
tão clara sua expressão e presença, inclusive salvaguardada por lei, o silenciamento deste
folguedo parece distante. Mais do que isso. Estaria mais vivo do que nunca. É o que parece.
Porém, não é assim que as coisas realmente acontecem. Ao deslocar o olhar para os pontos mais
sensíveis da questão, para além das aparências, é possível observar que a realidade é muito
diferente do que a superficialidade deixa entrever. Basta uma breve conversa com qualquer
brincante ou com qualquer indivíduo inserido na cultura popular alagoana que será possível
observar que o Guerreiro enfrenta dificuldades de naturezas diversas. Está sob constante
ameaça de silêncios que se configuram em diversas e profundas camadas daquilo que ROSSI
(2010) chama de entrelaçamento memória-esquecimento.
Diante do exposto e para os fins deste artigo, sobrepôs-se no processo de pesquisa a
necessidade de estabelecer diálogos com interlocutores envolvidos com o folguedo em questão
para identificar as principais formas nas quais atuam o silenciamento e, por consequência, o

247
duplo agenciamento silenciamento-resistência. Para tal, seus autores recorreram a entrevistas1
com duas pessoas importantes relacionadas ao Guerreiro: João Victor Lemos Viana 2, brincante
de Guerreiro, jornalista pesquisador das culturas populares de Alagoas e criador do Fórum de
Cultura Popular e do Artesanato Alagoano (FOCUARTE); e Josefina Maria Medeiros Novaes 3,
funcionária aposentada dos Serviços de Engenharia do Estado de Alagoas (SERVEAL), mas que
esteve sempre à disposição da Secretaria Estadual de Cultura (SECULT), ex-diretora da
Associação dos Folguedos Populares de Alagoas (ASFOPAL) durante o período 2006-2012,
responsável pelo pedido e dossiê de registro do Guerreiro como patrimônio imaterial alagoano
e atual dirigente do FOCUARTE. Também recorreram a análise de narrativas de depoimentos de
Mestres e brincantes do Guerreiro disponíveis em material audiovisual presentes no site
YouTube.
João Lemos (2021) resume as principais dificuldades que sofrem os grupos de Guerreiro na
atualidade no tripé apoio, logística e protagonismo:
“Eu formo um tripé chamado apoio, logística e protagonismo. Apoio no
sentido de que eles tenham meios e eles se sintam amparados pela questão
pública. [...]Logística é essa gestão pública acessibilizando informações e
meios para que esses grupos possam ser respaldados seja por patrocínio
federal ou patrocínio privado, público ou privado. Não existe essa logística,
não existe uma campanha de apoio que ampare, que tenha um grande
projeto de amparo[...]. E terceiro: protagonismo, os mestres eles não são
protagonistas ainda [...]. Se o mestre tá isolado com o grupo dele na Zona
Rural ele não é protagonista pra Alagoas, ele é protagonista pra comunidade
dele [...]. Claro que é importante que ele seja protagonista porque quem
reconhece o mestre é a comunidade, [...]mas ele não tem esse protagonismo
conhecido pra sociedade como um todo”.

Afirma ainda que há um descompasso antiético entre as potencialidades das culturas locais e o
local que elas se encontram atualmente utilizando as dinâmicas de valoração cultural na
sociedade alagoana:
“Porque se esses homens e mulheres fossem vistos e respeitados pela via
ética da produção cultural, hoje a cultura popular de Alagoas seria a vitrine
do folclore brasileiro. E não é. Ao contrário, a cultura popular de Alagoas ela

1
Por consequência do contexto pandêmico da COVID-19, as entrevistas foram realizadas de modo
remoto e as pesquisas de campo para entrevista dos Mestres foram canceladas.
2
Devido sua atuação e articulação com os grupos de Guerreiro do Estado de Alagoas, Lemos consegue
traçar, de perto e de dentro, um panorama sobre a situação atual do folguedo nesse Estado. Sua
entrevista foi realizada no dia 02/02/2021.
3
Entrevistada no dia 03/02/2021.

248
está no quintal do folclore brasileiro. É uma ousadia dizer isso, mas é
verdade”.,

De acordo com as dificuldades elencadas por Lemos (2021), observa-se indiscutivelmente


ameaças de silenciamento que provém direta ou indiretamente da má gestão do poder público
no que se refere às suas políticas culturais e suas consequências, ainda que estas não se
apresentem de forma deliberada. Tais dificuldades também podem ser encontradas nas falas
dos Mestres de Guerreiro registradas em vídeo e disponibilizadas na plataforma digital YouTube.
Entretanto, os Mestres, alguns deles já falecidos, apresentam outra questão igualmente
significativa: a dificuldade de transmissão deste folguedo para as gerações mais recentes:
“Mestra Zelina Sebastiana: nós nunca vivemos uma época difícil como essa.
Os jovens não querem brincar, os governantes não dão apoio que a gente
precisa. Hoje não existe mais Guerreiro como antes porque não se tem
incentivo (ALAGOAS, 2020)”.

“Mestra Anadeje Morais: na minha opinião o futuro do guerreiro é muito


pouco, é muito pouco... porque pelos mestres que tem eu acho que o futuro
é quase nenhum, quase nada, porque ninguém sabe nada [...]. Aí agora
quando esse povo morrer mesmo, o que vai ser? Se os que tiverem mais novo
não se interessar aí vai acabar... os original mesmo vai acabar [...] Por que se
tivesse uma pessoa mesmo do guerreiro que se interessasse a aprender,
porque eu mesma aprendi não foi ninguém que me ensinou, aprendi porque
eu via os outro fazer, a minha mãe...Aconteceu porque os que sabiam
morreram. Quem brincava também muitos não se interessou aprender, né,
aí esses que tem agora também, quem sabe de alguma coisa quer ensinar mas
eles não se interessam a aprender, aí vai acabar, vai morrendo os que sabem
e os que fica não sabe fazer nada aí pronto, acaba... (ROCHA, 2019)”.
“Mestre Benon: de agora pra antigamente, oxe, a mudança é total. Primeiro,
antigamente as moça se interessava por guerreiro, né? Mas hoje as moça não
querem guerreiro, só querem dança da galinha, sei lá, é tanta coisa que...
(risos) (ROCHA, sem data)”.
“Contramestre Rafael Oliveira: é o que sempre falo: que vamos fomentar
mais, vamos investir mais na cultura, vamos dar mais incentivo... não é
somente lembrar da cultura popular como se fosse o dia do índio, ou qualquer
outra data, né? Porque eu falo isso como... o dia do índio sempre existiu, né?
O índio sempre existiu, sempre esteve ali presente, mas ninguém se lembra
do índio, só se lembra do índio no dia do índio, né? Por que? Será que o índio
só existe no dia do índio? Da mesma maneira o guerreiro, é o reisado, o
pastoril, é a chegança e tantos outros folguedos e da nossa cultura popular
do nosso Estado, né? Que eles possam ser lembrados a cada dia, a cada
momento, que possam ser vividos no nosso dia-a-dia, na nossa cultura
(BRASIL, 2021).
“Mestre Benedito Misael da Silva: o Guerreiro não se faz só com história. Faz
com história porque todo mundo precisa se ver como se faz o guerreiro, mas
precisa o mestre receber a condição dele, o tamborzeiro precisa receber a
condição dele, o sanfoneiro precisa receber. Então a gente quando brinca
contratado as figura cada uma recebe sua gratificação... Por isso que hoje

249
quando eu digo ‘vamo dançar em canto fulano’ acompanha tudinho comigo
(ALAGOAS, 2020).

É interessante observar que as dificuldades mencionadas anteriormente - sejam elas


provenientes de gestão de políticas públicas culturais ou das dinâmicas geracionais em torno do
folguedo – além de contribuírem para o silenciamento do Guerreiro, ameaçando sua existência,
atuam também para a modificação de suas práticas culturais que ainda resistem. Essa
constatação é uma das preocupações da Mestra Anadeje Morais (2019), patrimônio vivo do
Estado de Alagoas:
“O guerreiro hoje ele é diferente, né, de antigamente, muito diferente. Hoje
não tem os personagens todos que tinha, é pouca gente. No outro tempo era
muita gente e agora é pouca e os pouco que tem quase que não sabe de nada
também, não sabe nem de parte nem de nada. No de antigamente era
diferente porque no de antigamente cada uma figura tinha uma parte, então
eles já sabia as parte que fazia né [...]. Aqui mesmo não tem entremeio
porque não dá tempo. Porque as apresentação daqui é meia hora, quarenta
minuto, não dá tempo de apresentar os guerreiros e os entremeio. Não tem
esse negócio de demorar uma hora, duas hora, é meia hora, quarenta
minuto... “.

Outro ponto que, para os autores deste artigo, apresenta-se como inscrição silente é o fato de
que dos grupos de Guerreiro listados no site da SECULT, apenas 1/3 estão em funcionamento e,
ainda assim, de maneira precária, de acordo com João Lemos.

2 - Silenciamentos do Patrimônio Reconhecido


O reconhecimento de uma manifestação cultural como patrimônio, seja material ou imaterial,
costuma ser encarado pela sociedade como máximo prestígio, uma forma de assegurar que tal
manifestação não seja negligenciada, esquecida, silenciada. De um ponto de vista superficial é
possível crer que o registro é suficiente e que tal título protegerá o patrimônio contra a ação do
tempo, das mudanças e da desvalorização cultural. Dessa forma, o Guerreiro teria sua
salvaguarda assegurada ao ser declarado Patrimônio Imaterial do Estado no dia 02 de outubro
de 2019.
Mais uma vez, não é o que ocorre. Retoma-se, neste ponto, a questão das aparências. Elas
ocorrem, também no contexto da patrimonialização do Guerreiro, onde o transcorrer de seu
processo revela-se como dado significativo das dinâmicas silêncio-silenciamento-resistência.

250
O Registro do Guerreiro como Patrimônio Imaterial do Estado de Alagoas deu-se através dos
esforços e insistências individuais de Josefina Novaes, interlocutora dos autores deste artigo,
diante dos aspectos burocráticos do poder público. Ao ser consultada sobre os processos do
registro, Josefina afirmou que, inicialmente, recorreu a ASFOPAL para que este entrasse com o
pedido, acreditando que, dessa forma, seria mais significativo devido ao histórico desta
Associação no contexto dos folguedos populares de Alagoas. Entretanto, ao não ter sido
atendida em sua solicitação, decidiu já no ano de 2015 elaborar o dossiê necessário para a
fundamentação do pedido de registro, contando apenas com ajudas esporádicas de outras
pessoas da SECULT da sua época, dando entrada no ano de 2016.
O processo se arrastou, o Conselho de Cultura ficou um bom tempo sem se reunir e, em algum
momento de suas insistências descobriu que o processo estava perdido. Josefina estava
preocupada com rumores de que o Guerreiro seria registrado como patrimônio imaterial de
Pernambuco e insistiu até o ano de 2019, quando finalmente encontraram os autos.
O título foi entregue em outubro do mesmo ano, no contexto do XVII Congresso Nacional de
Folclore, realizado na Associação Comercial, em Maceió. E a forma como fizeram a entrega é
alvo de críticas de diversas pessoas envolvidas com o folguedo e com a cultura popular:
“Tenho uma crítica a fazer ao modo como foi entregue o título. Ainda hoje
não está muito esclarecido no Estado de Alagoas que o Guerreiro é um
patrimônio imaterial nosso. Por falta de divulgação, por falta... eu acho até
que eles nem entendem a grandeza da coisa (NOVAES, 2021)”

Catarina Muniz, uma das autoras deste artigo, esteve presente na entrega do título de
patrimônio imaterial e corrobora com a crítica feita por Josefina, salientando que o momento,
pela importância, deveria contar com a presença de vários Mestres do Estado, os quais deveriam
ter sido devidamente informados do significado daquele título para todos os grupos.
Apesar da patrimonialização ser um ato significativo de reconhecimento é possível afirmar, de
acordo com os depoimentos de Josefina Novaes e João Lemos, que não corresponde
necessariamente à garantias efetivas de sobrevivência. Ocorre, inclusive, um processo
antagônico entre o reconhecimento burocrático e o não reconhecimento cultural, político, social
do folguedo. Sobre o impacto do título de patrimônio imaterial no folguedo em questão, João
Lemos afirma:
“Não significou nada. Nada. Pra mim não é nada. Enquanto brincante e
enquanto jornalista que pesquisa cultura popular de Alagoas. Porque nós
estamos em 2021 e isso foi em 2019, se você ligar agora pra Marlene [Mestra

251
Marlene] e ‘Marlene a senhora se lembra daquela apresentação em Jaraguá,
aquele certificado foi o que? Ela vai dizer nada. Ela não sabe o que é. Não
sabe. Porque o mal de Alagoas é tudo no acocho, nada tem significância, nada
tem valor, as pessoas fazem as coisas e se as pessoas são simples é que não
dão valor [...]. Não adianta ser patrimônio imaterial se você não dá apoio
financeiro, não tem sentido financeiro. Adianta o que? Pra que eu quero?
Agora assim, a partir do momento que for criada uma lei pra que esses grupos
tenham recurso mensal pra se manter, vocês vão ver os mestres dizer que o
guerreiro é patrimônio imaterial. Porque eles vão dizer: ‘eu sou amparado
pelo Estado, eu não sou patrimônio vivo, mas eu sou patrimônio imaterial,
eles vão ter orgulho de dizer”.

Conforma-se, diante das dificuldades apresentadas e do processo de patrimonialização do


Guerreiro tal qual como ocorreu, um contexto cultural dividido, mas em interação, entre as
agências daqueles que resistem e as agências daqueles que não valorizam, efetivamente, a
cultura popular. Diante do silêncio existem vozes demandando escuta, corpos desejando
reconhecimento. Em Memória, esquecimento e silêncio, Michel Pollak (2010, pág.6) observa que
“Para poder relatar seus sofrimentos, uma pessoa precisa antes de mais nada encontrar uma
escuta”, ou seja, o silêncio é estabelecido pela ausência de um receptor, de alguém que esteja
interessado em ouvir.
Pollak (2010) se refere às memórias transmitidas via oral como memórias “subterrâneas,
clandestinas”, por se tratarem geralmente de memórias pertencentes a grupos marginalizados,
empobrecidos, minoritários e desvalidos, que não tomam parte do discurso oficial. Ao
considerar que a maior parte dos grupos é formada por moradores da periferia, idosos, de
origem humilde, muitos deles sem acesso à educação básica, e o fato do Guerreiro ser um saber
transmitido oralmente, é possível observar este saber enquanto “memória subterrânea” diante
de uma memória oficial e compreender por que tantos brincantes e grupos se sentem
menosprezados pelo Poder Público.

3 - O que fazer?
Durante o desenvolvimento deste artigo foram apresentadas diversas agências entre silêncios e
silenciamentos que atuam em torno do Guerreiro alagoano. É certo que ações de visibilidade
como as do saudoso Prof. Ranilson França; as contribuições e insistências de pessoas como
Josefina Novaes e João Lemos e, mais importante, os saberes resistentes e persistentes dos
Mestres e brincantes deste folguedo são agências indispensáveis para a manutenção das
culturas populares no Estado de Alagoas. Entretanto não são suficientes. O que fazer?

252
Josefina Novaes (2021) afirma que “Tem que haver mudança na abordagem do poder público
no sentido de reconhecer, valorizar, incentivar e cuidar da manutenção dos folguedos, inclusive
o Guerreiro. João Lemos (2021) coaduna com a importância da atuação do poder público, como
mencionado anteriormente no que chamou de “tripé: apoio, logística e protagonismo”. Ambos
apresentam atuação importante no FOCUARTE, estabelecendo discussões permanente com
indivíduos ligados a cultura popular e ao artesanato alagoano, com o intuito de consolidar uma
organização coletiva com atuação efetiva diante do enfrentamento das dificuldades recorrentes
nestes meios.
Sobre políticas públicas, Lemos (2021) destaca sua importância ao afirmar que é em sua
aplicação que a cultura popular pode ser efetivada: “[...]fazendo política pública para cultura ser
efetivada. Ela não é efetiva [...]. A política de editais é maravilhosa, ela sensibiliza muito, ela
facilitou, mas ainda não é acessível [...] e pro Mestre ela é totalmente inacessível [...]são as
pessoas que fazem pros mestres, o mestre não sabe fazer.
João Lemos (2021) fala com propriedade advinda da experiência empírica do contexto da Lei
Aldir Blanc4, embora seja possível ressaltar que o acesso a este tipo de recurso atua de maneira
excepcional e após os esforços dos setores envolvidos durante o contexto pandêmico e, não
menos significativo, de uma gestão executiva federal alheia e desarticulada dos aspectos
culturais brasileiros. Para o jornalista e brincante, o que ocorre atualmente “é mais
assistencialismo do que protagonismo dos mestres”.
Nesse contexto, Lemos (2021) ressalta a importância de o poder público tornar mais eficiente o
acesso aos recursos como os da Lei supracitada por parte das representações das culturas
populares:
“os silenciamentos são todos que se possa imaginar: quando eu não dou
acessibilidade pra que eles participem do edital; quando uma equipe da
SECULT não visita nem vistoria as atividades desses grupos; pra saber qual é
o grupo mesmo que tá realmente funcionando e o que é que estão fazendo
com os recursos públicos que recebem [...]; quando eu não oportunizo os
mestres nas redes sociais eu não tô acessibilizando, eu tô silenciando a voz
do Mestre; quando o mestre não tem direito de opinar, quando ele não é
livre; quando um patrimônio vivo do estado de Alagoas, ele é dado de forma
política e não da forma ética, correta, e não é dessa forma, entendeu? Isso
tudo é silenciamento dos mestres [...]. Isso é silenciar. Se eu não acessibilizo
pra que um mestre que está na Zona Rural, pra que o Mestre Biu que tá na
Chã da Mangabeira, lá em Anadia ou pra o Mestre Elias que tá pra lá de

4
Lei Nº 14.017 de 29 de Junho de 2020 que dispõe sobre ações emergenciais destinadas ao setor
cultural a serem adotadas durante o estado de calamidade pública reconhecida pelo Decreto legislativo
nº 6, de 20 de março de 2020.

253
Arapiraca... se eu não acessibilizo pra eles eu não tô oportunizando pra que
eles participem. Isso já é silenciamento, não acessibilizam informação pra os
Mestres.

O FOCUARTE tem atuado com sucesso para facilitar o acesso de alguns grupos de Guerreiro às
políticas de editais, como a Lei Aldir Blanc:

“Por isso que hoje o FOCUARTE tem um papel difusor nesse sentido [...]. A
prova foi a lei Aldir Blanc onde os mestres que fazem parte do FOCUARTE
passaram na Lei Aldir Blanc. Pelas minhas contas 14 ou 16 mestres passaram,
mestres com seus grupos [...]. Mestre Edivar quarenta anos com Guerreiro,
no Pilar, nunca recebeu um incentivo nem da prefeitura e teve a sorte de
receber agora (LEMOS, 2021)”.

E no que se refere ao descompasso geracional em relação ao Guerreiro? Sobre o


envelhecimento dos mestres, questão amplamente levantada pelos mestres e brincantes? João
Lemos (2021) sinaliza que uma das ações, de natureza simples e de implantação e efeitos
imediatos está relacionada com a inserção dos folguedos e culturas populares de maneira mais
efetiva nas escolas, a exemplo do que ocorre com as quadrilhas juninas:
“Como é que eu quero que a juventude abrace se eu não divulgo isso daí?
Porque o cavalo marinho, o frevo, o maracatu, os nossos cocos e nessas
quadrilhas tem tanta gente jovem? Primeiro porque tá na escola, é uma coisa
permanente na escola. Não precisa de projeto, convênio, projeto de extensão
pra professor, naturalmente as escolas promovem isso no São João, que era
pra acontecer no natal e não acontece”.

Diante do exposto, conclui-se que o Guerreiro é, sim, um auto de resistência e sua importância
para a cultura popular alagoana é indiscutível, tornando-se justo seu registro como patrimônio
cultural imaterial do Estado de Alagoas. Frente aos silêncios e às ameaças de silenciamento o
folguedo em questão já tem suas armas em forma de espada de madeira, capacetes em forma
de igreja, seus brilhos, trupés e brados de guerra e esperam, persistentes, as oportunidades para
uma boa luta que garanta sua sobrevivência. A batalha se dá no campo das artes e, com os
devidos reconhecimentos, serão como a cana caiana da canção do saudoso Mestre Manoel

254
Venâncio de Amorim: “Ou senhor dono da casa / Olho da cana caiana (bis) Quanto mais a cana
cresce / Mais aumenta a sua fama5”.

Referências:
ALAGOAS, Valoriza. Guerreiro São Pedro - no trupé da ousadia, da resistência e do amor. 2019. (16m37s).
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ROCHA, Pedro da. Juvenal Domingos – Patrimônio Vivo de Alagoas. 2019. (11m06s). Disponível em:
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ROCHA, Pedro da. Mestre Benon – Patrimônio Vivo de Alagoas. Sem Data. (06m38s). Disponível em:
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UNESP, 2010.

SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA. Disponível em: <http://www.cultura.al.gov.br>. Acesso em: 2 fev.


2021.

5
NOVAES, 2010, p.61.

255
VIANA, João Victor Lemos Viana. Entrevista concedida a Catarina Maria Machado Muniz. Maceió, 2 fev.
2021

256
O LUGAR COMO ELEMENTO DE RECONHECIMENTO E PRESERVAÇÃO DA PRAÇA DA
MANDIOCA EM CUIABÁ
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Melissa de Araujo Sousa


Graduanda em Arquitetura e Urbanismo;
Universidade Federal de Mato Grosso;
melissaajs45@gmail.com.

Thais Soares Cavalcante Costa


Graduanda em Arquitetura e Urbanismo;
Universidade Federal de Mato Grosso;
thais.soares.c16@gmail.com.

A investigação se dará a partir do questionamento sobre a influência que a memória coletiva e


individual, de um determinado grupo social, tem sobre a preservação do patrimônio histórico.
Começamos contando a história de ocupação e formação da capital mato-grossense, bem como
seus períodos de desenvolvimento até alcançar nosso recorte de análise, a Praça da Mandioca
nos dias de hoje. Trazendo o contexto dos aparatos legais que atuam nesta área tombada, a
relação da população com este lugar e as implicações na paisagem do entorno da Praça.
Palavras-chave: Memória; Identidade; Preservação; Lugar.

The investigation develops from the questioning regarding the influence that the collective and
individual memory, of a certain social group, has on the preservation of the historical patrimony.
We begin by disclosing the history of the occupation and formation of the capital of Mato Grosso,
as well os its development periods until reaching our subject of analysis, Mandioca Square
nowadays. Bringing the context of the legal apparatus that operate in this listed area, people’s
relation with the place and the implications in the landscape surroundings.
Keywords: Memory; Identity; Preservation; Place.

257
1 – Introdução
Os espaços dentro de uma cidade, formados e reinventados pelas dinâmicas sociais neles
presentes, assumem importância variada para cada usuário que se apropria e o anima
cotidianamente. No que tange aos espaços históricos, do ponto de vista patrimonial, esses usos
e percepções diversas podem vir a resultar em ações de preservação ou de descaracterização
da paisagem urbana.
Cuiabá passou por processos de expansão e transformação da sociedade de forma acelerada a
partir da década de 50, o que impactou não somente a mentalidade de seus habitantes, como
também os espaços e edificações representativas do núcleo urbano inicial de formação da vila.
Intervenções e perdas significativas desses bens ocorreram, para então ganhar forças o
movimento de reconhecimento e proteção não apenas de um bem isolado, mas sim do conjunto
arquitetônico, urbanístico e paisagístico da cidade.
Entretanto, as questões que envolvem a preservação de um patrimônio vão além das legislações
atuantes sob ele, e adentram o campo das relações sociais, sendo assim, nos propomos a refletir
a partir da perspectiva dos grupos que interagem com o bem.
O presente estudo se debruça sobre o espaço físico e objetivo da Praça da Mandioca, partindo
de uma subjetividade que o torna mais complexo, a própria memória de seus usuários. Nesse
sentido, as lembranças, sejam elas vivenciadas ou herdadas, se configuram como um pilar
essencial para a compreensão do patrimônio como o temos hoje e também da paisagem
produzida e transformada pelo povo cuiabano.

2 – A formação de Cuiabá
Através de um resgate histórico, tem-se a leitura de uma Cuiabá caracterizada pela ocupação
descontínua e pode ser identificada por três ciclos que marcam a produção do espaço da cidade,
conforme (LAMONICA, 1997) organiza sua linha do tempo, temos: o Ciclo da Mineração,
correspondente à sua formação em 1722 e perdura até meados de 1820, quando a vila se torna
sede da província; o Ciclo da Sedimentação administrativa, momento em que as obras públicas
começam a esboçar os primeiros traços de uma nova capital, estendendo-se até a década de 60.
O ano de 1968 é simbólico, pois marca o período em que a catedral do Senhor Bom Jesus de
Cuiabá, inicialmente construída em pau-a-pique e taipa, é dinamitada e reconstruída em
concreto armado, para dar lugar a um novo ciclo de desenvolvimento urbano, o da
modernização. A partir de então, as obras oficiais vendiam uma imagem de progresso para o

258
nascimento de uma metrópole, modificando a arquitetura gradualmente em detrimento das
obras tradicionais cuiabanas.
As ruas mais antigas da cidade foram traçadas paralelamente ao córrego da Prainha, nos limites
entre a igreja do Senhor dos Passos e a Matriz. A essas ruas denominou-se como a de Baixo
(definida hoje como Galdino Pimentel), a do Meio (atual Ricardo Franco) e a rua de Cima, a qual
mais tarde é conhecida como rua Augusta, atual Pedro Celestino. Porém a mais antiga rua de
Cuiabá foi a do Beco do Candeeiro.
Quanto à arquitetura das primeiras habitações, seguia-se o modelo trazido pelos bandeirantes
paulistas do século XVIII. O pé-direito baixo, as fachadas e padrão de abertura estreitos, o
telhado de barro com duas águas, uma delas voltada para a rua, são aspectos construtivos
herdados dos migrantes paulistas. O material empregado para a execução dos alicerces era a
pedra cristal, o baldrame, em pedra canga e, as paredes erguidas ora em taipa socada, ora de
pau-a-pique ou ainda em adobe. A construção mais sofisticada do século era o Palácio dos
Capitães Generais, com arquitetura colonial, foi erguido em 1726 no Largo do Sebo, assim
denominado a Praça da Mandioca na época.
Diante dessa análise histórica, identifica-se o desenho do Largo já nas primeiras décadas do
nascimento da vila, na convergência das ruas mais antigas, no entanto, seu nome não
permaneceu sempre o mesmo. O Largo do Sebo, atual Mandioca, também recebeu a
denominação de Praça Dona Bem Bem, em homenagem a uma antiga moradora. Em diferentes
momentos do seu processo de formação, esse espaço também recebeu o nome de Beco da
Mandioca, Largo da Mandioca, Praça Real, Dois de Dezembro e Praça Conde de Azambuja, que
também é resultado de uma homenagem ao primeiro governador geral de Mato Grosso.
Além de a popular Praça representar um espaço de atividades econômicas, onde ocorria a troca
de mercadorias vindas pelas tropas de Vila Boa de Goiás, manifestações políticas e também
festejos culturais, relata-se que um dos primeiros movimentos realizados nesse espaço foi o
cortejo de elevação do arraial à vila, pelo então General Rodrigo Cezar de Menezes, ainda em
1727. Tais eventos nos revela a importância social que já exercia sobre os habitantes da vila,
tanto pela importância de sua localização geográfica no contexto da formação da cidade, quanto
pela paisagem do cotidiano cuiabano, compondo uma memória afetiva. Rubens de Mendonça
expressa sua leitura da Praça neste período:
Quantas vezes esse Largo do Sebo não festejou a chegada dos Capitães
Generais e aniversários de Ouvidores! O Largo do Sebo foi cenário de várias
apresentações culturais importantes”. (MENDONÇA, 1975, p. 89)

259
Ademais, o Largo do Sebo, talvez por ser um dos espaços livres públicos mais antigos da
formação do núcleo urbano da cidade, possui uma carga social muito forte. As primeiras
moradias foram erguidas em terras circundantes a este espaço, isso significa que a constituição
das primeiras trocas, interações sociais, econômicas, culturais e religiosas tiveram o seu berço
no Largo. Assim, desde 1722, a Mandioca corporifica-se em território negro erguida sob trabalho
e mão de obra de escravizados. A devoção a São Benedito, uma vez disseminada por
missionários europeus, levou à construção de uma capela na rua do Sebo, mas não tardou muito
a sua ruína, sendo novamente erguida, modesta, anexa à igreja do Rosário. Nesse momento, era
explícita a segregação racial, levando à determinação de que negros poderiam entrar apenas na
capela de São Benedito, enquanto à igreja do Rosário, maior e dotada de ornamentação, é
reservada à população branca.
Antes que o ciclo da modernização se revelasse de maneira incisiva no corpo físico da cidade, o
Centro antigo, enquanto uma das principais centralidades na década de 60, era referência da
boemia e um dos poucos lugares destinados ao lazer. Já na década de 90 esse espaço foi
perdendo o atrativo de passeio para outras regiões da cidade, como o Centro Político
Administrativo. Porém, ainda hoje quando se fala em atividades de expressão cultural no Centro
antigo, o Largo da Mandioca permanece convidativo para a concentração de festejos. Nessa
perspectiva de melhoramento, visando ser um projeto de requalificação dos espaços públicos,
o Largo foi inserido como uma das ações do PAC Cidades Históricas na capital, dando início às
obras no ano de 2018.

3 – Amparo Legal
A discussão sobre patrimônio é antiga e está intimamente atrelada à formação da história das
sociedades, às suas ações no espaço, vivências com os elementos construídos e naturais. Porém,
no que tange ao amparo legal de bens ao longo do tempo, a Constituição Federal de 1934 é
responsável pelos alicerces do patrimônio histórico, artístico e cultural introduzidos nos marcos
jurídicos do país. Reconhece-se, dessa forma, um grande avanço para o tratamento do
patrimônio nacional, já que o respaldo legal garante meios de preservação e conservação do
que julga importante para a história da nação.
Mas vale ressaltar que a leitura de patrimônio trazida pela constituinte se apresenta de modo
limitado na descrição dos bens valorados. Há, para além da esfera econômica, uma
hierarquização social na atribuição de valor à produção cultural em que a universalização do que
é arte é tida como um ato de democratização, ao passo que promove o apagamento de outras

260
expressões de grupos não pertencentes a uma determinada classe ou etnia. A seguir, pode-se
analisar o texto da constituição de 1934 que faz menção aos bens patrimoniais no Artigo 10º do
Capítulo I das Disposições Preliminares e no Artigo 148º do Capítulo II da Educação e da Cultura,
respectivamente:
Art 10 - Compete concorrentemente à União e aos Estados:
----------------------------------------------------------------------------
III - proteger as belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou
artístico, podendo impedir a evasão de obras de arte.
----------------------------------------------------------------------------
Art 148 - Cabe à União, aos Estados e aos Municípios favorecer e animar o
desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral,
proteger os objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do País,
bem como prestar assistência ao trabalhador intelectual.

A atuação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional- IPHAN, no Estado de Mato


Grosso, iniciou-se em meados de 1950, ainda sob a dependência da superintendência de Goiás.
Desde então, a presença do órgão foi imprescindível para a salvaguarda do patrimônio
arquitetônico, urbanístico e paisagístico do município mato-grossense. Em Cuiabá, com a
intensificação das movimentações para o processo de tombamento do conjunto, parte da
sociedade civil da época parecia desinteressada em preservar os bens, devido à incompreensão
do que seria o tombamento e que restrições ele traria aos proprietários de imóveis.
Em 1988, o órgão chegou a adquirir um imóvel no Centro antigo para sediar a superintendência
no Estado, mesmo ano em que é conquistada a Constituição Cidadã, a primeira desde 1934 a
considerar a relação ativa do sujeito com o patrimônio. Adquire-se, portanto, maior liberdade
para a atribuição de sentido a um bem. Conforme expressa a Constituição Federativa no
CAPÍTULO III – Da Educação, da Cultura e do Desporto SEÇÃO II – Da Cultura:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores
de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: (EC no 42/2003) I–
as formas de expressão; II–os modos de criar, fazer e viver; III–as criações
científicas, artísticas e tecnológicas; IV–as obras, objetos, documentos,
edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V–os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

Com o intuito de preservar o núcleo urbano que deu origem à cidade de Cuiabá, o dia 04 de
novembro de 1992 é marcado pelo tombamento dessa área com abrangência para o entorno, o
qual apresenta características complementares na contação de sua história, através da União

261
Federal e enquadrado no Decreto-Lei nº25, de 30/11/37. A instrução Normativa para a
conservação e manutenção do conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico é datada de
1994, apenas dois anos após o tombamento do conjunto. Esse documento mapeia e define a
poligonal tombada, a de entorno e organiza esses espaços em setores.
Aborda também critérios de intervenção visando a preservação e proteção do conjunto, cuja
integridade visual, composta pela tipologia das fachadas, limites destas com os logradouros,
traçados urbanos (visando a conservação da topografia original) e composição do arruamento
são elementos que protagonizam a paisagem cultural do Centro antigo, portanto carentes de
respaldo legal para a sua conservação e manutenção.

4 – Memória e identidade na Mandioca


Para a arquitetura e urbanismo o espaço é tratado como um objeto social, sujeito ao produto
das ações humanas, as quais são capazes de constituir diferentes territorialidades a partir das
relações de poder, da carga cultural, dos costumes e religiosidade de um grupo. Tais
características distinguem, espacialmente, esses territórios que são carregados de historicidade,
produzidos pelas vivências sociais e modificados através do tempo. A identidade acaba por gerar
lugares de valor afetivo primordiais para a construção da memória individual, potencializando
sensações distintas em cada sujeito. Por isso, em determinados casos, é difícil entrar em
consenso sobre como intervir em um bem coletivo, ao exemplo de uma área tombada.
Nesta pesquisa adotamos a compreensão de lugar conforme as vivências e relações dos sujeitos
com o espaço, criando vínculos afetivos e identitários, a sensação de pertencer àquele local em
que se mora, transita diariamente, ou se trabalha. O entendimento de memória, lugar e
preservação nos leva, portanto, a um movimento cíclico no reconhecimento e produção dos
elementos espaciais. Ter um lugar de pertença requer da memória um sentido para sua
preservação e, consequentemente, nutre o compartilhamento de novas lembranças a partir
desse espaço de valor.
A identidade, o sentimento de pertencimento e o acúmulo de tempos e
histórias individuais constituem o lugar. Este guarda em si o seu significado e
as dimensões do movimento da história, apreendido pela memória, através
dos sentidos. (MOREIRA, HESPANHOL, 2007, p.54)

Segundo (SANDEVILLE Jr, 2012, p.210) “A memória é ativa na invenção do presente”, e partindo
dessa afirmação torna-se possível analisar as ações no território ocupado. Com o correr dos
anos, o entendimento do que seria de valor histórico para as comunidades humanas foi se

262
ampliando, e reconhecendo bens materiais e imateriais de diversos grupos sociais. No que diz
respeito ao patrimônio edificado de Cuiabá, composto por casarões e sobrados feitos de terra
crua, suas características arquitetônicas ainda são bem preservadas, porém parte do conjunto
não se encontra em um estado de conservação adequado, muitos casarões vieram a ruir devido
às chuvas que fragilizam as grossas paredes de taipa e adobe.
A Praça da Mandioca faz parte desses lugares da memória cuiabana e, em conversa informal
com alguns usuários, pudemos acessar essas impressões, compreender os fatores que os levam
a perceber a paisagem e suas mudanças.

Figura 01: Praça da Mandioca em 2017, anterior às obras do PAC Cidades Históricas.

Fonte: acervo pessoal das autoras.

Seu Eurides é um barbeiro que trabalha na mesma edificação a cerca de 50 anos, nos arredores
da Praça, ele conta de um passado de muita fartura da atividade comercial nessa área, e que
nos dias de hoje tem a percepção de esvaziamento do Centro histórico, com imóveis em estado
de abandono, desocupados e mal conservados.
“Aqui era lotado de gente, era difícil arrumar coisa pra morar aqui, era
residência, comércio, tudo lotado, mas vou falar pra vocês, mudou, foi
mudando, o povo foi mudando” (EURIDES, 2019)

263
No Centro antigo, muitos dos proprietários de imóveis são descendentes de figuras conhecidas
da história cuiabana, algumas famílias tradicionais que moravam nessa região há décadas e hoje
alugam para comerciantes. Marcos é um desses comerciantes que aluga um bar na frente da
Praça, há 35 anos, e nesse tempo foi se remanejando conforme a demanda do público, ele
também comenta sobre a conservação dos casarões e que muitos vêm à ruína. Observamos que
trabalhadores e outros frequentadores têm a compreensão da importância do patrimônio,
veem necessidade de proteção e manutenção dessas edificações, mas encontram empecilhos
dos mais variados para conservá-las.

5 – Conclusão

Ao analisar a paisagem deste espaço livre público e as edificações que o ladeiam, é possível
apreender sua materialidade, seu estado de conservação, e suas nuances ao longo do dia.
Entretanto, quando se volta o olhar para a dimensão social contida nesta paisagem, a relação
dos usuários e suas impressões sobre o bem, torna-se visível a ocorrência de determinados
fenômenos corriqueiros quando se pensa em centros históricos. Examinar os fenômenos de
silenciamento no Centro antigo de Cuiabá é um estímulo para compreender a cidade como um
processo.
A sensação de esvaziamento não é uma percepção restrita aos grupos de comerciantes e
prestadores de serviços, mas também dos poucos moradores que ainda restam nesta região de
uso predominantemente comercial, especialmente após o término do horário de trabalho.
Muitas vezes os discursos propagados sobre deterioração e abandono das áreas centrais,
conduz para um caminho de intervenções pontuais, como revitalizações, que vêm para tornar
essas áreas novamente atraentes para o mercado e/ou turismo. Esse movimento pode
contribuir para acelerar outros processos, como a gentrificação de regiões históricas, que
pudemos constatar através das experiências de outros centros Brasil afora.
Uma coisa é certa, Cuiabá passou por transformações que se seguiram após o desenvolvimento
urbano e que afetou o modo de viver e pensar de seus habitantes, bem como sua relação com
esses lugares da memória. Nessa perspectiva, é fundamental dar atenção às memórias e
lembranças individuais, narrativas de pessoas comuns, como o velho barbeiro e o dono de bar
que conversamos, e que é possível entender em suas falas que, apesar dos pontos negativos e
dificuldades em se trabalhar nesta área tombada, o valor que a Praça da Mandioca possui como

264
símbolo da identidade cuiabana é o suficiente para protegê-la. A preservação das características
arquitetônicas e urbanísticas busca manter viva a contação da história deste lugar e da
sociedade que o produziu, para as próximas gerações.
Conciliar esses processos, com ações de salvaguarda, mantendo a relevância do bem em sua
comunidade, talvez seja um dos grandes desafios contemporâneos da preservação patrimonial,
e que precisa continuar sendo enfrentado.

Referências
BRASIL, Constituição (1934). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, RJ,
Senado, 1934. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao34.htm>.
Acesso em: 20 jan. 2021.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1988.
Disponível em:
https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf >. Acesso
em: 20 jan. 2021.

CAMPOS, Daniel Silva; FERREIRA, Lucia de Fátima Lobato; HIRATA, Amélia. “A Praça da Mandioca: um
convite a contação de sua história”. In: Simpósio Científico 2017 do ICOMOS-BRASIL, Belo Horizonte.

FERREIRA, Lucia de Fátima Lobato; HIRATA, Amélia. “Entre práticas e reflexões: uma leitura sobre o
centro histórico de Cuiabá a partir de políticas de preservação”. Revista Eletrônica Documento-
Monumento- NDIHR. Cuiabá, vol, 25, N 1, pag, 149-165, abril, 2019. Disponível em:
https://www.ufmt.br/ndihr/revista/revistas-anteriores/revista-dm-25.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2020.

FREIRE, Julio De Lamonica. Por uma poética popular da arquitetura. Cuiabá: EdUFTM, 1997.

MARTINS, Mariah. “Preservar, restaurar e conservar… Inter, multi e transdisciplinarmente”. Scientiarum


Historia VII. Disponível
em:<http://www.hcte.ufrj.br/downloads/sh/sh7/SH/trabalhos%20posteres%20completos/PRESERVAR-
RESTAURAR-CONSERVAR.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2020.

MIGLIACIO, Maria Clara; FREIRE, Julio De Lamonica. Instrução normativa do conjunto arquitetônico,
urbanístico e paisagístico da cidade de Cuiabá. Cuiabá, 1994.

MOREIRA, Erika Vanessa; HESPANHOL, Rosângela Aparecida de Medeiros. “O Lugar como uma
Construção Social”. Revista Formação. Presidente Prudente: n⁰14 volume 2 – p. 48‐60. Disponível em:
https://revista.fct.unesp.br/index.php/formacao/article/view/645/659.>. Acesso em: 08 jan. 2020.

REIS-ALVES, Luiz Augusto dos. O conceito de lugar. Arquitextos, São Paulo,ano 08, n. 087.10, Vitruvius,
ago. 2007 Disponível em:<https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.087/225>.Acesso
em: 08 jun. 2020.

SANDEVILLE Jr.,Euler. “Paisagens partilhadas”. Paisagem e ambiente. São Paulo: Ensaios, N.30, pp. 203-
214. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/paam/article/view/78117/82205 >. Acesso em: 28 nov.
2020.

265
O MURO ENTRE A CIDADE DOS VIVOS E A CIDADE DOS MORTOS
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Guilherme Lucio dos Santos


Graduando Arquitetura e Urbanismo; UniFil; guilhermelucio20@gmail.com

Joseane Pivetta
Docente Arquitetura e Urbanismo; UniFil; Joseane.pivetta@gmail.com

Este trabalho trata de paisagem fúnebre urbana. Os cemitérios são fundamentais para a
sociedade. São espaços que carregam intrínsecos à sua imagem uma forte simbologia. Como sua
imagem não é confortável para todos os públicos, esses locais são escondidos por muros que
impedem a permeabilidade visual, prejudicando a contemplação de tais espaços. O Cemitério
São Pedro localizado na cidade de Londrina na região norte do Estado do Paraná é um desses
casos. O cemitério está integrado à paisagem urbana central. O elemento muro que foi instalado
no seu entorno prejudica a permeabilidade e a segurança. Tem-se como objetivo deste trabalho
contextualizar o elemento muro dentro da paisagem fúnebre e analisar o impacto do cemitério
São Pedro dentro do seu contexto.
Palavras-chave: Permeabilidade Visual; Patrimônio; Paisagem Urbana.

This Research deals with the urban funeral landscape. Cemeteries are fundamental to society.
They are spaces that carry a strong symbolism intrinsic to your image. As its image is not
comfortable for all audiences, these places are hidden by walls that prevent visual permeability,
impairing the contemplation of such spaces. The São Pedro Cemetery located in the city of
Londrina in the northern region of the State of Paraná is one such case. The cemetery is
integrated into the central urban landscape. The wall element that was installed in its
surroundings impairs permeability and safety. The objective of this research is to contextualize
the wall element within the funeral landscape and to analyze the impact of the São Pedro
cemetery within its context.
Keywords: Visual permeability; Patrimony; Urban landscape.

266
1 – Introdução
Alguns cemitérios hoje fazem parte da paisagem urbana ocupando o local de protagonista de
todo um contexto. É muito comum que alguns deles tenham sido construídos sem a intenção de
desempenhar tal protagonismo, porém com o passar do tempo, o desenvolvimento das cidades
acabou integrando esses espaços a sua paisagem que, consequentemente, se inserem em
regiões centrais importantes para o contexto urbano. Assim, trazem alguns impactos para essa
nova implantação como insegurança, desconforto, preconceito e entre outros.
Embora esses espaços gerem tais problemas eles são importantes nas cidades por cumprirem
uma função vital para o processo da morte. É um local destinado aos que já partiram e um marco
para quem fica não se esquecer daqueles que já se foram. Junto com esse aspecto de memória,
os cemitérios, possuem uma importante representação histórica por apresentar diversos
elementos arquitetônicos que refletem as características de diferentes épocas.
O cemitério São Pedro localizado na cidade de londrina, norte do estado do Paraná, é um desses
casos de espaços que não foram planejados para estar onde estão. No planejamento inicial do
município o cemitério estava localizado no limite do perímetro urbano. Com o passar dos anos,
ele acabou sendo envolvido pelo desenvolvimento da cidade e hoje se encontra localizado na
região central. E com isso, foi necessária a construção de uma barreira física devido a ocorrência
frequente de furtos no local, também por causar certo desconforto para os transeuntes que por
ali circulam, além do aspecto visual da paisagem trazer uma esfera de luto para a região. Com
base nesses argumentos o muro foi instaurado para desempenhar essa função de “escudo” no
local.
Portanto o objetivo deste trabalho é contextualizar o elemento muro como protagonista da
chamada paisagem fúnebre urbana e analisar o impacto do cemitério São Pedro ao contexto ao
qual está inserido. Sendo o objetivo específico: analisar o muro como elemento de insegurança,
mistério e barreira visual.
A análise foi desenvolvida sob 2 etapas sendo que a primeira trata de levantamento bibliográfico
que envolve a questão temática. A segunda se desenvolve a partir de uma análise visual e
perceptiva da área, in loco, para observar como o muro, elemento segregador do espaço,
interfere na paisagem urbana da região central de londrina.
Assim, pôde-se observar que o muro do cemitério reforça o preconceito sobre os elementos
fúnebres; prejudica a segurança no local, tanto para quem está do lado de fora como para quem

267
está do lado de dentro; e além disso, ele impede a permeabilidade visual e acaba afetando a
paisagem fúnebre.
Espera-se com este trabalho contribuir com uma reflexão sobre a influência que os cemitérios -
que foram “engolidos” pelo desenvolvimento das cidades e que se encontram localizados nas
regiões centrais - e seus elementos, exercem sobre as pessoas que moram ou transitam em suas
proximidades e na paisagem urbana.

2 – O cemitério como elemento da paisagem fúnebre urbana


O cemitério é um local misterioso, é um ambiente com uma esfera sombria, de dúvida, de
desconforto, medo, e por estar relacionado à morte tem essas características intrínsecas a sua
imagem. Segundo Gawryszewski (2011), as formas de se lidar com ela (a morte), as dores
sentidas, as formas de morrer, velar e enterrar, bem como o local dentro dos muros da igreja ou
dos cemitérios, variam com tempo, possuem história própria. Pensar na morte é uma das poucas
coisas, se não a única, que a humanidade pode fazer com certeza, já que todos iremos morrer.
Logo, esse tema deveria ser tratado com mais naturalidade, justamente por fazer parte do
processo natural da vida. Acredita-se que esse assunto seja tão pouco comentado pelo fato de
as pessoas terem dificuldade em entende-la.
No período Pré-histórico os cemitérios eram conhecidos por “Campos de
Sepultura”. Nessa época antes mesmo de uma sociedade sólida ser formada
os seres humanos eram nômades e viviam uma eterna peregrinação à
procura de um local para permanecer de forma continua. A partir dessa
realidade, pode-se dizer que a primeira habitação permanente foi para os
mortos, em cavernas e em campos destinados a eles, locais conhecidos por
um carinho e afeto, um pensamento coletivo. (SONG,2017, P.9)

O significado de cemitério é muito mais complexo do que apenas um local para enterro de
cadáveres. De fato, é um local para enterrar as pessoas, porém, o significado abstrato é o que
difere ele dos demais espaços e paisagens. Possui uma forte simbologia que justamente é o que
se valoriza nesse tipo de cenário. É um local que carrega uma gama de simbologias e cada uma
tem um peso muito forte por estar relacionada à crença e à espiritualidade.
Cassandra Faes e Graciele Fochi (2018) dizem que as posturas de medo e tabu fazem com que
as temáticas de morte e os espaços de cemitérios não sejam compreendidos de forma clara e
franca na sociedade cristã ocidental. Por conta dessa dificuldade da sociedade em aceitar a
paisagem fúnebre, tornou-se comum os cemitérios serem implantados nos limites dos
perímetros urbanos.

268
No entanto, o fato dos cemitérios inseridos na paisagem urbana não serem aceitos com tanta
facilidade, não os desqualificam como elementos fundamentais e necessários quando se trata
de paisagem. Os cemitérios são locais ricos em elementos arquitetônicos, com diversos
significados. Dentro de um cemitério, seja do tipo parque ou jardim, vertical ou horizontal, é
possível encontrar uma variedade de simbologias e imagens, todas elas ligadas à crença da
morte ou de prestar luto ao falecido e, em alguns casos, a dogmas religiosos. São eles:

Quadro 01: Os elementos do cemitério e seus significados.


Elemento Significado

Flores As flores são os símbolos mais comuns, principalmente nos países ocidentais.
As flores representam uma beleza, frescor e vida um aspecto contrário ao que
ela está inserida, com a intenção de trazer um equilíbrio para o local. As flores
são mantidas através da manutenção pelos trabalhadores dos cemitérios.

Pedras As pedras são mais comuns em cemitérios judaicos. São elementos simples,
normalmente pedras pequenas, lisas e puras. As pedras representam amor,
carinho, respeito e honra. Uma vez a pedra colocada na sepultura, lá ela ficara
pela eternidade junto com toda a intenção de quem a colocou.

Cruzes As cruzes normalmente são usadas em cemitérios católicos, elas trazem uma
simbologia de proteção divina, normalmente são gravadas mensagens ou a
identificação de quem foi enterrado no local.

Estátuas O uso de estátuas nos cemitérios é comum, normalmente são retratadas


imagens que possuem um significado religioso ou com a vida de quem já se foi.

Fotografias As fotografias vêm com o intuito de eternizar a imagem de quem já se foi.

Lapides As lápides servem para identificação daqueles que já se foram, uma forma de
eternizar suas informações. Normalmente seguidos de uma frase síntese da
intenção da família quanto o falecido.

Fonte: Patrimônio histórico e cultural: cidade de londrina-PR (2010, p. 67- 86) e Architecture of Afterlife:
future cemetery in metrópoles (2017, p. 13 – 14.). Montado pelos autores.

269
Um túmulo de cemitério comum carrega com ele um valor histórico e cultural importante, desde
a forma como ele é planejado, os materiais que foram designados para ele, os elementos que
ele carrega, até mesmo a data de sua implantação, tudo isso traz um valor incalculável para a
humanidade, não é atoa que muitos cemitérios hoje são considerados patrimônios históricos do
Brasil. No mundo, vem-se aumentando a busca pelo turismo fúnebre devido a esse valor:
No que diz respeito ao campo do patrimônio histórico e artístico os espaços
de cemitérios ou os eventos de morte somente ganham evidencia quando
comportam grande investimento em termos de edificação arquitetônico e
artístico com obras de artistas renomados, no caso de cemitérios que se
relacionem à celebridades midiáticas ou autoridades políticas, ou que
reservam sepultamentos que tenham transcorrido de forma trágica ou em
condições muito incomuns, como guerras, acidentes, desastres entre
outros.[...]Este cenário favoreceu com que diversas cidades como São Paulo,
Curitiba, Buenos Aires na Argentina, Arlington nos Estados Unidos, Paris, na
França e cidades de Portugal, Itália e Alemanha incluíssem seus cemitérios
nos mapas, guias e roteiros de turismo, pois as autoridades de cultura e a
população destas cidades reconhecem que aqueles cemitérios são lugares de
memória, fontes históricas, potenciais de testemunhos históricos, sociais,
culturais e artísticas. (CASSANDRA HELENA FAES E GRACIELA MÁRCIA FOCHI,
2018, P. 64)

Para Gawryszewski (2011), os cemitérios de hoje em dia estão alcançando um status de museu
a céu aberto pelas personalidades enterradas ou pelo valor arquitetônico. De acordo com IPHAN
(2019), hoje alguns cemitérios brasileiros já alcançaram a classificação de patrimônio histórico
tombado. Nesses casos, os elementos arquitetônicos dos jazigos fazem referências às questões
artísticas e históricas da região, valorizando, assim, os aspectos sociais e culturais do local em
que estão inseridos.
O cemitério é um dos serviços básicos que compõe uma cidade, sendo esse o lugar mais
adequado e digno de se enterrar as pessoas e, que independentemente de estar localizado em
uma região central ou periférica faz parte da paisagem urbana. O que acontece, é que muitos
não foram projetados para as regiões centrais, mas por uma questão de expansão urbana,
passaram de um contexto periférico para o central. É assim que normalmente os cemitérios se

270
integram na paisagem urbana central, e com isso surge a necessidade da inserção do elemento
muro que passa a compor a paisagem fúnebre.
Outro ponto relevante é que a paisagem fúnebre tem como um dos propósitos relembrar a
sociedade de que a morte existe e que ela faz parte da vida. Pode-se dizer então, que os
cemitérios servem como um marco que tem o intuito de eternizar a imagem e lembrança de
todos que já se foram, como um berço para os que descansam pela eternidade.
Assim como na maioria dos cemitérios, isso acontece também na cidade de Londrina com o
Cemitério São Pedro, que foi projetado para estar localizado na periferia e acabou sendo
“engolido” pelo desenvolvimento urbano. É considerado um local histórico por fazer parte do
desenho piloto da cidade, pela data e tipologia arquitetônica dos túmulos, pelo traçado, por
estarem enterradas ali pessoas que fizeram parte da história da cidade. Ainda, está localizado
no centro da cidade e, por conta disso, foi inserido um muro o qual segrega essa paisagem do
entorno, gerando dessa forma, insegurança, medo, desconforto, além de uma grande fachada
inativa para a região.

3 - O muro do cemitério São Pedro e suas implicâncias na paisagem urbana


Busca-se aqui, analisar os efeitos que o cemitério São Pedro gera na região que está inserido, e
como o muro - elemento segregado do espaço- interfere na paisagem. Para isso, foram
realizadas pesquisas históricas sobre a implantação do cemitério São Pedro, e nelas constam
que o mesmo foi inaugurado em 1932, e se localizava no limite da cidade de Londrina. Na época
era o único cemitério da região.
Como pode ser visto na imagem abaixo, o plano diretor de londrina contava com uma cidade
planejada para aproximadamente 80 mil pessoas, no entanto a região teve um grande
desenvolvimento nos anos 50 e 60 devido à grande produtividade do café, o que gerou um
aumento populacional considerável chegando a mais de 200mil habitantes nos anos 70 (CENSO,
1970)
Alguns anos após a implantação da cidade projetada e da inserção do cemitério São Pedro, ele
já se faz presente na Paisagem Urbana Central da cidade, o cemitério passou a se localizar na
região central, ocupando aproximadamente uma área de 57.000,00 m², cerca de quatro (4)
quadras de 100 X 100 metros.
A Paisagem conforme o dicionário Houaiss (2001, p. 2105) é por definição um conjunto de
componentes naturais ou não de um espaço externo que pode ser apreendido pelo olhar. Agora

271
dentro do aspecto Urbano existe uma gama de elementos que compõe este cenário. Londrina
apesar de ser uma cidade nova, apresenta construções e locais históricos marcantes que
compõem a paisagem da cidade, sendo o cemitério um desses locais. Toda a sua riqueza de
detalhes e elementos importantes para a história de Londrina é ameaçado por um muro que
segrega essa paisagem das demais.

Legenda: Área do Cemitério São Pedro em 1930.


Figura 01 – Planta parcial da cidade de londrina (1938).

Fonte: Yamaki (2003, p. 23).

Legenda: Área do cemitério São Pedro em 1970.

272
Figura 02 – Mapa de Londrina em 1970.

Fonte: Siglon (2021) – Norte Alterado pelos autores.

Figura 03 – As quatro fachadas do Muro

Fonte: Acervo Pessoal

273
O elemento muro foi inserido com as seguintes justificativas: a ocorrência frequente de
vandalismo, por causar desconforto visual dos transeuntes e também a crença de que o
cemitério denigre a paisagem urbana. Contudo essa implantação trouxe algumas consequências
que são controversas às justificativas da inserção da barreira.
Se compararmos o muro do cemitério São Pedro com os princípios do desenho urbano, esse
pode ser considerado uma fachada cega ou inativa, que impede a possibilidade da interação
visual entre interior e exterior, e que não promove a vitalidade pela falta de diversidade e
consequentemente a insegurança pela invisibilidade, restrição de acesso e circulação pela
população.
O muro continua apresentando problemas com a segurança no local, apesar de ter uma altura
considerável, isso não impede que as pessoas o pulem e usem o espaço do cemitério de forma
inadequada, vandalizando o local e furtando os elementos presentes. Como não existe uma
permeabilidade ou interação visual entre a rua e o cemitério, uma vez lá dentro tem-se a
sensação de não estar sendo observado ou notado. Logo, é um local que se tem a sensação de
liberdade para fazer o que não é permitido.

Figura 04 – O entorno do muro.

Fonte: Acervo Pessoal

274
Ainda sobre a segurança no local, há outra problemática quando se trata da fachada inativa e
suas consequências para a calçada do entorno. O muro apresenta quatro fachadas de
aproximadamente 200 metros cada, são elementos que não apresentam nenhum tipo de
interação, segurança ou excitação para quem transita pelo local. Os trechos em volta do
cemitério são extremamente inativos, e nota-se uma tendência entre os transeuntes de mudar
de calçadas quando necessário passar pelo local, segundo Gehl (2010, p. 77) fachadas projetadas
com longas linhas horizontais fazem as distâncias parecerem mais longas e cansativas.
Unidades estreitas, muitas portas e um movimento vertical nas fachadas
ajudam a intensificar a experiencia de caminhar. As atividades do térreo e a
interação funcional com a vida na rua, também têm impacto considerável na
vida da cidade. (Gehl 2010, p. 77)

A inserção de um elemento monótono, uniforme e horizontal no centro de uma cidade gera um


resultado insatisfatório quanto a paisagem do seu entorno.
E por fim uma relação dos imóveis do entorno com o cemitério, é possível perceber a presença
constante de fachadas cegas e inativas quando direcionadas ao cemitério, acredita-se que esta
tendência esteja diretamente ligada com o preconceito e tabu quanto à paisagem fúnebre.

4 - Considerações Finais
O cemitério é um elemento essencial e indispensável para o contexto urbano. Falar sobre
cemitério é algo que está atrelado a mistérios, preconceitos e tabus. O desenvolvimento da
pesquisa atentou a riqueza de detalhes da arquitetura que um cemitério pode conter. Além de
desenvolver uma análise das implicações do elemento muro dentro dessa paisagem. A
segregação que ele gera entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, e suas consequências
na sua inserção na paisagem fúnebre. Conclui-se que apesar da nossa realidade tratar os
cemitérios como uma região morta e desvalorizada, ela tem muito potencial para ser integrada
a nossa sociedade de forma ativa. Permitindo que a paisagem fúnebre se faça presente dentro
do contexto urbano.
Este trabalho contribui com uma reflexão, sobre o muro do cemitério como um elemento
segregador do espaço urbano, bloqueio da permeabilidade visual e consequências geradas para
a região onde está inserido.

275
Referências
GAWRYSZEWSKI, Alberto. Patrimônio histórico e cultural: cidade de londrina-PR. londrina:
Universidade estadual de Londrina, 2011.

GEHL, J. Cidades para pessoas. Editora: Perspectiva. 3° Edição. São Paulo, 2015.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva,
2001.

IPHAN. Selos retratam cemitérios tombados. Publicado em 19 de agosto de 2019. Disponível


em: <http://portal.iphan.gov.br/noticias/detalhes/494/selos-retratam-cemiterios-tombados>.
Acesso em: 28/09/2020.

SONG, Shiyu. Architecture of afterlife: future cemetery in metropolis. Tesis dector of


Architecture – University of hawai’i at Mānoa. Honolulu, 2017

YAMAKI, H. Iconografia Londrinense. Edições humanidades. Londrina, 2003.

276
O PASSEIO PÚBLICO NA FOTOGRAFIA OITOCENTISTA:
imagens de Klumb e Leuzinger sobre um patrimônio do Rio de Janeiro
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.
Luiza Xavier Pereira
Doutoranda em urbanismo; PROURB-FAU/UFRJ; luizaxavierx@gmail.com

O presente artigo propõe percorrer paisagens fotográficas do Rio de Janeiro


oitocentista, feitas pelos fotógrafos Revert Klumb e Georges Leuzinger entre os anos de
1855 e 1865. Ao partir de discussões sobre a relação entre iconografia e patrimônio,
propõe-se um olhar aproximado sobre as escolhas dos fotógrafos para representar a
capital do Império internacionalmente e sobre suas relações com silenciamentos de
alguns destes elementos no contexto atual. Em âmbito específico, dentre os
enquadramentos comuns a ambos, serão analisadas imagens de um importante
patrimônio em particular, o qual tem sua história marcada por diversos momentos de
silenciamento: o Passeio Público.
Palavras-chave: fotografia oitocentista; Rio de Janeiro; Passeio Público; Georges Leuzinger;
Revert H. Klumb.

The article proposes to explore the photographic landscapes of 19th-century Rio de Janeiro,
made by the photographers Revert Klumb and Georges Leuzinger between the years 1855 and
1865. Based on discussions about the relationship between iconography and heritage, the article
will analyze the choices of photographers to represent the capital of the Empire internationally
and on their relations with the silencing of some of these elements in the current context. In a
specific scope, among the frameworks common to both, images of an important heritage in
particular will be analyzed, which has its history marked by several moments of silence: the Public
Garden of Rio de Janeiro.
Keywords: 19th century photography; Rio de Janeiro; Public ride; Georges Leuzinger; Revert H.
Klumb.

277
1 – Introdução

Fazei de conta que vos achais agora comigo no aprazível terraço do Passeio
Público do Rio de Janeiro. O dia foi calmoso. Em compensação, porém, a tarde
é bela e fresca. O sol derrama sobre a terra seus últimos raios. (...) Sentemo-
nos nestes bancos de mármore e de azulejos. Voltemos as costas para o mar.
O espetáculo dessa natureza opulenta, grandiosa, sublime, absorve-nos em
uma contemplação insaciável. (MACEDO, 1862, p.79)

Ao ambientar o leitor em um fim de tarde no terraço do primeiro jardim público do Brasil,


Joaquim Manuel de Macedo inicia sua crônica sobre o Passeio Público do Rio de Janeiro. Escrito
em 1861 e publicado no ano seguinte no livro Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro, o texto
fora escrito no momento em que o local passava pelas obras do projeto de remodelação
encomendado ao botânico francês Alfred Glaziou. Para além de Macedo, o Passeio foi
vastamente descrito em textos de viajantes de diferentes latitudes, bem como por desenhistas,
pintores e fotógrafos que construíram representações gráficas sobre seus atributos. Todavia,
apesar da relevância histórica e da presença recorrente em relatos sobre o Rio de Janeiro, o
Passeio é marcado desde o século XVIII por "ritmos cíclicos de atenção e esquecimento"
(SEGAWA, 1996).
O presente artigo propõe um olhar aproximado sobre as primeiras fotografias deste importante
(e silenciado) patrimônio do Rio de Janeiro, produzidas entre 1860 e 1863. Considerando a
relação entre iconografia e patrimônio, bem como a relevância que a fotografia oitocentista teve
na construção de discursos sobre o Brasil e sua capital, propõe-se analisar de que forma o
Passeio seria apresentado em tais imagens. Em âmbito específico, propõe-se pôr em discussão
possíveis características destacadas nos enquadramentos fotográficos e suas relações com
discursos construídos sobre a cidade no período.
Para tanto, parte-se dos registros fotográficos de Georges Leuzinger (1813-1881) e Revert H.
Klumb (1830-1886), dois importantes pioneiros da fotografia do Rio de Janeiro, que registram a
então capital do Império (1763-1960) entre as décadas de 1850 e 1860. Neste período, vistas
fotográficas de cidades em todo o mundo, começavam a popularizar-se. No Rio de Janeiro,
especificamente, as fotografias de Klumb e Leuzinger seriam utilizadas para apresentar seus
atributos e monumentos entre as grandes nações. A partir delas, construía-se a ideia não só da
cidade como totalidade, mas também em relação a quais seriam os seus "comuns". E o Passeio

278
Público, após anos de "silenciamento" na cidade, iria figurar com relativo destaque entre o
repertório fotográfico de ambos fotógrafos.
2 – Fotografia e patrimônio no Rio de Janeiro
O resgate sobre os primeiros usos da fotografia no mundo mostra como a técnica esteve ligada,
desde seu anúncio oficial em 1839, à noção de monumento histórico como patrimônio nacional
e à consolidação das instituições que se ocupavam deles (TURAZZI, 2009). O astrônomo francês
François Arago, ao apresentar o daguerreótipo em Paris na Academia de Ciência francesa,
recomendava em seu discurso o uso da técnica para o registro de monumentos históricos pela
recém-criada Commision des Monuments Historiques. Desde então, a fotografia teria diversas
aplicações associadas diretamente à documentação de bens de valor histórico e artístico.
Como destaca Maria Inez Turazzi, como já acontecia com a gravura e a litografia, a técnica
fotográfica passaria a ser usada em reprodução de fac-similares de livros raros, retratos de
esculturas e de construções célebres da antiguidade. A partir daí, a fotografia se tornaria “um
recurso visual decisivo para a documentação e a preservação dos elementos concretos (como o
território, a natureza, a arquitetura etc.) dessa construção, historicamente determinada, à qual
chamamos patrimônio". (TURAZZI, op.cit., p.40)
No contexto brasileiro, a imagem fotográfica seria utilizada a partir da década de 1850 como
uma das ferramentas do Segundo Império (1840-1889) para o desenho das “feições” do
território. Por seu estatuto de “verdade”, "prova da realidade”, poderia servir aos testemunhos
pretendidos ao projeto de construção do "nacional". Através da fotografia, seriam apresentados
os “progressos” do Império, bem como os elementos que se pretendia difundir como comuns
ao território brasileiro e como próprios à rememoração.
Entre os primeiros fotógrafos de vistas que registrariam o Rio de Janeiro, estão o alemão Revert
H. Klumb e o suíço Georges Leuzinger. Ambos profissionais, radicados na cidade, tiveram um
relevante papel na construção de discursos visuais sobre a então capital do Império. Klumb
chegou ao Rio de Janeiro em 1853 e, desde 1855, passou a anunciar seus serviços como
fotógrafo no Almanak Laemmert. Em 1861, é contemplado com o título de Photographo da Casa
Imperial, passando também a fazer registros sob encomenda do governo. Seu pioneirismo como
fotógrafo na cidade figura não só pelos registros realizados em negativos de colódio úmido e
cópias em papel albuminado, mas também por produzir as primeiras imagens estereoscópicas
no Brasil. Através de seu aparelho estereoscópico, produziria centenas de vistas de
monumentos e logradouros públicos da capital sob a encomenda de Dom Pedro II. Entre tais

279
vistas, seriam produzidas cerca de cinquenta imagens somente sobre o Passeio Público (SILVA,
2006).
Leuzinger, por sua vez, chegara na cidade em 1832 para trabalhar com o tio em seu
estabelecimento de exportações. Em 1841, inicia seu próprio negócio, a futura Casa Leuzinger,
que se tornaria referência no meio gráfico do Brasil. Desde os primeiros anos de seu
estabelecimento, Leuzinger já trabalharia com a iconografia de vistas da cidade 1. Em 1865, abre
a Oficinna de Photographia da Casa e, já em 1867, é premiado na Exposição Universal de Paris,
dando ao Brasil seu primeiro reconhecimento internacional de fotografia. Leuzinger é conhecido
não só por ter difundido a iconografia carioca na Europa, bem como por ter realizado a maior
sistematização de vistas fotográficas da cidade produzida até então (VASQUEZ, 2002).

2.1 – Cruzamentos entre Klumb e Leuzinger


Apesar das consideráveis diferenças entre seus perfis e trajetórias profissionais – claramente
refletidas em suas produções –, são diversos os cruzamentos entre suas escolhas fotográficas e
os locais que registram na cidade e, entre os quais, estão muitos dos patrimônios hoje tombados
na cidade. Entre estes, vê-se uma quantidade considerável de vistas panorâmicas que
enquadram um dos patrimônios mais evidenciados na cidade até os dias atuais: o Pão de Açúcar.
Vastamente registrado na iconografia sobre o Rio de Janeiro, o morro foi destacado como um
importante monumento da cidade ao longo da história.
Como aponta Margareth da Silva Pereira (2015), o quadro Prospectiva da Cidade do Rio de
Janeiro (1760), encomendada pelo Conde de Bobadela, teria inaugurado a ideia da Baía de
Guanabara como objeto de contemplação. A partir daí, haveria sido firmado "um pacto entre
cidade e natureza que teria o enquadramento da paisagem da baía como cenário privilegiado e
o Pão de Açúcar como seu emblema" (PEREIRA, op.cit., p.16). Este "emblema" seria enquadrado
por ambos fotógrafos a partir de Santa Teresa, Morro do Castelo e Ilha das Cobras,
principalmente, sugerindo a importância que teria na representação da cidade no período.
Em relação aos elementos construídos da então capital, Klumb e Leuzinger registram
vastamente outros locais também recorrentemente reproduzidos em gravuras e pinturas, como
o Paço Imperial e o chafariz do Mestre Valentim – patrimônios que estiveram, inclusive, entre
os primeiros daguerreótipos feitos na cidade em janeiro de 1840. Para além destes e do Palácio

1
Primeiramente, vendendo gravuras de terceiros – desenhistas, gravadores e editores com quem estabeleceria
relações profissionais e pessoais – e, a partir de 1845, editando litografias.

280
São Cristóvão (hoje, Museu Nacional), os registros de edificações atualmente tombadas voltam-
se principalmente para construções de ordens religiosas: Igreja da Ordem Terceira do Carmo,
Igreja de Nossa Senhora da Glória, Igreja de Santa Luzia, Mosteiro de São Bento e o Convento e
Igreja de Santo Antônio – todas edificações do período colonial.
Já em relação a jardins e praças, o cruzamento entre Klumb e Leuzinger traz um vasto registro
do Jardim Botânico – encomendado no período joanino –, bem como da Praça do Rossio (atual
Praça Tiradentes), onde se encontra a estátua equestre de D. Pedro I, inaugurada em 1862. Além
destas, o Passeio Público, possivelmente registrado entre 1861 e 1865 – após décadas de
abandono relatado por viajantes –, se destaca também com considerável relevância entre o
repertório de ambos.

3 – Passeio Público: um patrimônio esquecido


Leuzinger e Klumb fotografam o Passeio em um momento importante desde sua fundação. Será
entre os anos de seus registros que o local passaria pelo maior projeto de remodelação feito em
mais de dois séculos de existência do jardim. Construído entre os anos de 1779 e 1783, o Passeio
Público foi encomendado pelo vice-rei D. Luís de Vasconcelos com os objetivos de sanear
pântanos da região conhecida hoje como Lapa, bem como aproveitar o local para aterramento
e extensão de terreno firme entre áreas alagadiças e montanhosas.
O local é conhecido por ter sido o primeiro jardim público construído no Brasil e, inclusive,
contemporâneo aos primeiros construídos na Europa. Hugo Segawa (op.cit., p.77) chama a
atenção para o fato de que, em pleno período colonial, o vice-rei proporia construir um jardim
público feito aos moldes europeus, o que significava trazer à colônia espaços que "serviam de
palco para as transformações das formas de sociabilidade na aristocracia, na pequena nobreza
e testemunho da ascensão da burguesia em várias cidades européias". A escolha pela
construção de um "espaço de lazer laico e, nos limites de uma sociedade escravocrata, de acesso
livre" (PEREIRA, 2015, p.16), contrastaria também com o tipo de espaços abertos do urbanismo
colonial local, que teriam como símbolo (em si ou evidente) a autoridade portuguesa – como o
pelourinho e o paço, por exemplo (SEGAWA, op.cit., p.77).
O projeto, atribuído a Mestre Valentim (1745-1813), se estruturava a partir de um traçado
retilíneo e rígido que, como coloca Pereira (op.cit., p.15), "contrastava tanto com o burburinho
da cidade quanto com o movimento do mar e da baía":

281
De fato, abandonando a cidade e penetrando no jardim, seus frequentadores, como em um
passeio retrospectivo, iam sendo empurrados de plano em plano de volta à visão do mar e da
entrada da baía, por onde tudo começara. Passando por tufos vegetais, falsas cascatas e
elementos da fauna nativa – como os jacarés, as garças e a palmeira que Valentim colocou em
seu chafariz – chegava-se, enfim, às portas do paraíso, marcadas por duas pirâmides, e à
amurada do vasto terraço que se abria à fixidez da visão do Pão de Açúcar – o grau zero da
história. (Pereira, op.cit., p.18)
Na visão de Segawa, a vista do terraço do Passeio, vastamente abordado também por viajantes
de diferentes origens, contribuiria para uma "extraordinária sobreposição de sentidos" ao
visitante. Enquanto a paisagem composta por árvores, flores e jardins estaria ligada à ideia de
domínio do repouso, da harmonia e de um espaço idealizado pelo ser humano, o mar remeteria
à ideia oposta2, de um "abismo desconhecido a se desvelar, não dominado pelo homem". Neste
sentido, o terraço seria "a tênue linha das suscetibilidades humanas: ao ser humano se concedia
a simultaneidade de se defrontar com duas paisagens antitéticas, desafiando os seus anseios de
formular um imaginário capaz de explicar as raízes da existência, o seu relacionamento com a
natureza e o mundo". (SEGAWA, op.cit., p.96)
Margareth da Silva Pereira, por sua vez, observa que, mais do que um monumento em si
(SEGAWA, op.cit.), o Passeio Público – com suas alamedas e seu terraço – reafirmava a ideia do
Pão de Açúcar como um emblema da natureza, sendo esta, sim, um monumento em si (PEREIRA,
op.cit.). Neste sentido, cabe destacar a descrição de Joaquim Manuel de Macedo ao adentrar o
Passeio, na qual sugere que "o terraço era espaçoso e cheio de elegância. Mas as obras de arte
que o enriqueciam quase que se sentiam abater ante a magnificência da natureza que daquele
lugar se admira" (MACEDO, op.cit., p.114).
Ao longo da primeira metade do século XIX, por mais que a visão do Pão de Açúcar continuasse
a se impor entre as vistas contempladas na cidade, o Passeio Público cairia em abandono.
Viajantes e a nova geração cosmopolita de cariocas iria preferir admirar a baía a partir das
montanhas de Santa Teresa e do Corcovado, trajeto percorrido pelo Imperador em suas
cavalgadas (PEREIRA, op.cit., p.19). Ainda segundo Pereira, o abandono do Passeio no período
se agravaria ainda na década de 1850 com os debates sobre a demolição do Morro do Castelo e
a ampliação do porto da cidade que, para alguns, deveria seguir em direção à Praia de Santa

2
Segawa (1996, p.93) chama atenção ainda para o fato de que o Passeio "espelha o surgimento, no
século XVIII, de lugares especificamente desenhados para a apreciação da paisagem marítima".

282
Luzia e ao Passeio. Para Macedo, todavia, a negligência sobre o Passeio teria se iniciado ainda
no século XVIII:
O Passeio Público teve indubitavelmente a sua época de brilhantismo e de encanto no vice-
reinado de Luiz de Vasconcelos e Sousa. Mas, logo depois, sobreveio-lhe um longo período de
lamentável desprezo, durante o governo do vice-rei conde de Rezende e, em seguida,
experimentou, ora insuficientes cuidados, ora um tristíssimo abandono, até que finalmente
agora vai reaparecer mais belo que nunca, segundo o apregoa a fama, graças a uma reforma
inteligente, artística e digna da capital do Império (MACEDO, op.cit., p.122).
Macedo refere-se à remodelação iniciada em janeiro de 1861 e finalizada em setembro de 1862.
Ao seguir o relato, conta que a decisão pela obra teria sido tomada após a constrangedora visita
do Príncipe Maximiliano da Áustria ao jardim em janeiro de 1860. Há tempos abandonado, o
Passeio não teria figurado entre as principais "atrações" selecionada para apresentar ao
príncipe: "Sem teatros, sem galerias de belas-artes, sem parques, sem monumentos, sem
riquezas artísticas que ocupem por momentos a atenção dos estrangeiros ilustres que chegam
à nossa capital, nós os fluminenses apelamos para os tesouros da nossa grandiosa natureza (...)"
(op.cit., p.141).
Levado aos arrabaldes da capital – alto do Corcovado, da Gávea, Tijuca e Santa Teresa – "chegou,
porém, um dia em que o príncipe deixou o caminho das alturas, penetrou no seio da cidade,
dirigiu-se pela rua das Marrecas, e entrando no Passeio Público, foi subir ao terraço, donde
poderia apreciar ainda uma vez a magnificência da nossa baía." (MACEDO, op.cit., p.142) Neste
momento, para constrangimento dos presentes, o príncipe teria levado um lenço ao nariz,
demonstrando incômodo com o odor que vinha do local. Após o episódio e com a crescente
pressão da imprensa, o governo do Império decidiria, então, reformar o jardim público.
(MACEDO, op.cit.) Sob o encargo de Francisco José Fialho, o botânico alemão Glaziou foi
convidado para desenvolver seu projeto de remodelação, feito segundo os moldes dos jardins
ingleses – utilizado nos mais aclamados jardins públicos do período –, com vias sinuosas e vastos
gramados, além de lagos, grutas e pontes (PEREIRA, 2014). Seria neste momento de destaque e
transformações que os fotógrafos registrariam o Passeio, incluindo-o entre os elementos a
serem rememorados na capital do Império.

283
4 – O Passeio Público nas primeiras imagens fotográficas da cidade
Para além da contratação do projeto de Glaziou, Dom Pedro II convocaria também um fotógrafo
para fazer registros do local antes e depois da reforma iniciada em 1861. Revert Klumb,
incumbido do trabalho, teria produzido principalmente vistas estereoscópicas sobre o Passeio a
partir de 1860 – as quais seriam expostas e comercializadas posteriormente.
Já Leuzinger, ao incluir o Passeio entre seu repertório da cidade, parece revisitar um local sobre
o qual já teria enfocado em projetos anteriores: em 1854, antes mesmo de trabalhar com a
técnica fotográfica, o Passeio seria representado em um de seus projetos como editor de
litografias, denominado "Panoramas da Cidade do Rio de Janeiro", no qual foram selecionadas
duas vistas do Passeio para compor a série de 13 gravuras sobre a capital. Quando inaugura a
Oficinna Photographica da Casa Leuzinger3 em 1865, imagens do Passeio produzidas por
diferentes ângulos já constariam no catálogo de fotografias do estabelecimento.
As imagens do local produzidas na Casa Leuzinger, tanto as litográficas quanto as fotográficas,
parecem sugerir visões do passeio tal qual as leituras propostas por Segawa (1996) e por Pereira
(2015) em suas relações com o mar e outros elementos naturais do entorno, bem como na
relevância dada ao patrimônio natural da cidade. Na série de gravuras, por exemplo, as duas
vistas sobre o Passeio são tomadas de seu terraço. Em ambas, a área edificada do terraço ocupa
parte considerável do primeiro plano, onde mulheres e crianças interagem, além de um casal
que contempla o mar, em uma delas. O que parece se destaca nas imagens, todavia, é a
possibilidade de se ter uma área edificada para apreciar a vista que se abre no horizonte.
Enquanto em uma das gravuras o Pão de Açúcar se mostra como o elemento central (embora
em segundo plano), na outra, o terraço é posicionado como o "limiar" (Segawa, op.cit.) entre o
mar, do lado esquerdo, e a vegetação do jardim, ao seu lado direito.
Esta mesma contemplação de uma natureza misteriosa – o mar – e a natureza ordenada
– o jardim –, parece ser sugerida também nas fotografias da Casa Leuzinger. Entre as
imagens produzidas sobre o interior do Passeio Público, há duas em particular que
chamam a atenção para a "sobreposição de sentidos" colocada por Segawa. Em ambas
imagens, perfis masculinos são enquadrados quase na área central da composição.

3
O estabelecimento teve funcionários que também ficavam a cargo dos registros fotográficos. Por este
motivo, a autoria das imagens da Casa Leuzinger muitas vezes não é clara. Em uma das imagens do
Passeio, por exemplo, há conflitos de autoria atribuída ora a Georges Leuzinger, ora a Marc Ferrez,
(funcionário da Casa em 1863).

284
Como se sabe, na fotografia oitocentista de vistas muitas vezes posicionava-se perfis
humanos no local a ser fotografado para atribuir noções de proporção aos elementos
da cena. Por mais que este possa ser um motivo para a inclusão dos indivíduos nos
enquadramentos4, nota-se que os perfis se encontram em posturas específicas, as quais
poderiam sugerir conexões com discursos sobre o Passeio Público e a cidade.

Figura 01: Litografias da série litográfica “Panorama do Rio


de Janeiro”, editada por Leuzinger, 1854.

Fonte: Biblioteca Nacional5

Em uma das fotografias6, tirada do terraço, um homem aparece sozinho apoiado no


parapeito à beira-mar, em uma expressão corporal que se mostra introspectiva e
contemplativa frente à baía que se abre. A maneira como seu corpo é posicionado na
cena (lateralmente, quase de costas) parece sugerir que o homem estaria sendo
observado sem notar. Ao fundo, vê-se uma ampla área tomada pelo morro da Glória e
as edificações de seu entorno. O homem, todavia, olha para o mar, parecendo absorto
pela baía e a ampla vista para a qual está virado.
A segunda imagem7, por sua vez, volta-se para o interior do Passeio e enquadra a
vegetação do jardim. Mostra também vias, uma ponte e postes de iluminação. Há dois
homens na imagem, cada um encontra-se em uma extremidade da ponte, virados para

4
Característica pouco comum às fotografias atribuídas a Leuzinger.
5
Disponível em: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=7915
6
Disponível em: https://acervos.ims.com.br/portals/#/detailpage/16635
7
Disponível em: https://acervos.ims.com.br/portals/#/detailpage/20823

285
o fotógrafo e olhando para a lente da câmera, de frente. O posicionamento e a postura
altiva dos homens em meio a um jardim nitidamente projetado parecem sugerir, aqui,
a ideia de controle sobre a natureza. Complementando esta questão, o distanciamento
considerável entre a lente e os homens, abre o plano para que se coloque a ideia de dois
pequenos indivíduos em meio a um amplo jardim, com árvores grandes e frondosas,
registradas da raiz ao topo da copa.
Entre o repertório de Revert Klumb, por sua vez, o terraço é enquadrado por diferentes
ângulos,
o que sugere a reafirmação do protagonismo do local entre os atrativos do jardim. Em
uma fotografia8, em particular, Klumb constrói um enquadramento muito similar à
fotografia de Leuzinger que traz um homem contemplando o mar. Nela, três crianças
apoiam-se no mesmo parapeito e olham em direção à baía. O fotógrafo parece também
posicionar-se em um ponto similar ao da imagem de Leuzinger, o que faz com que os
perfis apareçam também quase de costas e, ao fundo, se veja o morro da Glória. Na
imagem de Klumb, porém, o foco encontra-se mais fechado, enquadrando,
praticamente, apenas as crianças – pouco se vê do terraço. Neste sentido, o assunto
principal parece ser a contemplação da baía pelos três. Ao fundo, o morro da Glória
aparece posicionado com precisão no centro da imagem, onde se vê a Igreja e outras
edificações. Sob o título de "A Glória, vista do Passeio Público", a fotografia parece
reafirmar a ideia sobre a presença de uma cidade em meio a atributos naturais dignos
de contemplação. Todavia, mais uma vez, aqui, o que parece ser "digno" de
contemplação é a natureza e a vista do terraço, e não os elementos arquitetônicos da
cidade, como a aclamada Igreja da Glória que figura no alto do morro.
Em outras imagens, também do terraço, feitas com estereoscópio, Klumb mostra o local
a partir de cada uma de suas extremidades. Nelas, a extensão da área e as edificações
localizadas em suas pontas – dois pavilhões octogonais – são contrastadas com o
horizonte composto por morros e pelo céu9. Assim como nestas imagens, suas outras

8
Disponível em: https://acervos.ims.com.br/portals/#/detailpage/16577
9
Entre os exemplos, ver: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=36607

286
fotografias estereoscópicas do Passeio, de um modo geral, parecem voltar-se mais para
as características do Passeio como patrimônio construído do que como lugar de
contemplação das vistas (e seus monumentos) naturais da cidade10. Através de um
caráter documental, o fotógrafo seleciona um vasto número de elementos
separadamente, sendo diversos destes raramente vistos em imagens dedicadas ao
Passeio até os dias de hoje.
Entre eles, elementos já existentes antes das mudanças propostas por Glaziou, como as
pirâmides,
o portão de entrada, o chafariz do menino e o terraço, além de novos elementos como
o "botequim" (ou café-concerto), o chalé suíço (casa do Diretor de Parques e Jardins), o
gradil de ferro, além de vias com traçados sinuosos e espécies botânicas, entre outros.
O repertório de vistas estereoscópicas, parte da encomenda de D. Pedro II, parece tentar
construir a ideia de Passeio como patrimônio em si, menos vinculada ao protagonismo
– quase que exclusivo – da vista de seu terraço.
Cabe pontuar, por fim, que tanto Klumb como Leuzinger, para além das imagens
internas do Passeio, registram o jardim público do alto dos morros do entorno. Nestas
vistas, tiradas de morros como Castelo, Glória e Santa Teresa, os enquadramentos
parecem evidenciar uma grande área de vegetação circunscrita pelo mar e uma capital
densamente urbanizada – com igrejas, vias e edificações diversas11. Nas vistas da Casa
Leuzinger, em especial, a presença dos morros completa o enquadramento,
reafirmando, mais uma vez, a natureza como monumento na cidade-capital.

6 – Considerações Finais
As imagens de Leuzinger e Klumb incluem o Passeio entre os primeiros registros
fotográficos da cidade, posicionando-o entre os locais e elementos pretendidos como
“próprios à rememoração” e ao “comum” no Rio de Janeiro no período. Os
enquadramentos construídos a partir da nova técnica que se popularizava – a

10
Entre alguns dos exemplos: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=3316 , ou
http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=3333 , entre outros
11
Entre os exemplos, ver: https://acervos.ims.com.br/portals/#/detailpage/20804

287
fotográfica – reproduziriam os antigos valores atribuídos ao Passeio: um local para se
apreciar a monumentalidade da vista da baía e de seus morros, temas comuns também
às gravuras e relatos textuais produzidos sobre o local. Todavia, as fotografias
mostravam de modo mais recorrente edificações e demais elementos construídos na
paisagem, sugerindo a ideia de um jardim público em meio a uma natureza exuberante
de uma cidade com características próprias a cidades-capitais – discurso recorrente em
imagens fotográficas de meados do século XIX.
Nas décadas posteriores à remodelação e a seus primeiros registros fotográficos, o
Passeio seguiria em seu ritmo cíclico entre atenção e abandono. Enquanto espaço de
rememoração da cidade, cabe notar que, ainda no período do Segundo Império, o
Passeio Público não seria incluído em documentos iconográficos que representariam a
capital do Brasil no exterior. O álbum de vistas fotográficas intitulado "Vues du Brésil",
por exemplo, publicado pelo Visconde do Rio Branco em 1889 (com fotografias de M.
Ferrez e I. Pacheco), já não trazia o Passeio entre as imagens de jardins da cidade – são
selecionadas imagens do Jardim Botânico e o jardim do Palácio Imperial. O álbum de
"Recordações das Festas Nacionais" de 1884, por sua vez, com imagens de Juan
Gutierrez, tampouco seleciona registros do Passeio Público entre os locais memoráveis
da capital. Nele, são incluídas também fotos do Jardim Botânico, além de diversas
imagens do Pão de Açúcar e da Baía de Guanabara tomadas de distintos locais da cidade.
Entre as sete fotografias destes emblemas, nenhuma parte do terraço do Passeio, local
tão vinculado a suas contemplações em períodos precedentes.
A partir do século XX, o Passeio passaria por um processo de silenciamento ainda maior,
especialmente com as reformas urbanas das primeiras décadas e o afastamento do
terraço da linha da praia, onde seria construída a Avenida Beira-Mar em 1920. Por mais
que as representações de Klumb buscassem salientar a monumentalidade do interior do
Passeio, ou mesmo que o projeto de Glaziou levasse a mais atualizada experiência de
jardins da Europa, a emblemática vista do terraço parecia ser ainda o atributo mais
valorizado do lugar.

288
Por fim, cabe observar que no Catálogo da Exposição de História do Brasil12, são listadas
no total sete gravuras e uma pintura sobre o Passeio, as quais haviam sido selecionadas
para compor a Sessão Artística da exposição de 1881. Entre estas oito estampas, sete
delas voltam seus enquadramentos para o mar; e destas sete, cinco são tomadas do
terraço. Ao ser progressivamente distanciado da baía, o Passeio parece silenciar-se
dentro da malha urbana, em um centro cada vez mais verticalizado. Atualmente, após
mais de um século e meio de seus primeiros registros fotográficos, vê-se um patrimônio
profundamente distinto do que Leuzinger e Klumb escolheram para rememorar.

Referências
CRARY, Jonathan. Técnicas do observador: Visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2012.

INSTITUTO MOREIRA SALLES. Cadernos de Fotografia Brasileira – Georges Leuzinger, n.3. Rio de Janeiro:
Instituto Moreira Salles, 2006.

MACEDO, Joaquim Manoel de. Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro - Tomo I. Rio de Janeiro:
Typografia Imparcial de J.M. Nunes Garcia, 1862.

PEREIRA, Margareth da Silva. Jardim. In: TOPALOV, Christian; BRESCIANI, Stella; LILLE, Laurent; D'ARC,
Hèléne Riviere. A aventura das palavras da cidade, através dos tempos, das línguas e das sociedades.
São Paulo: Romano Guerra Editora, 2014, p. 359-372.

. Jardim de Memórias. Parque do Flamengo. Rio de Janeiro, 2015.

SEGAWA, Hugo. Ao amor do público: jardins no Brasil. São Paulo: Studio Nobel: FAPESP, 1996.

SILVA, Maria Cristina Miranda. A presença dos aparelhos e dispositivos opticos no Rio de Janeiro do
século XIX. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica) – PUC-SP. São Paulo, 2006.

TURAZZI, Maria Inez. Poses e trejeitos: a fotografia e as exposições na era do espetáculo – 1839/1889.
Rio de Janeiro: Rocco, 1995.

. Iconografia e patrimônio: o catálogo da exposição de história do Brasil e a fisionomia da


nação. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2009.

VASQUEZ, Pedro Karp. A fotografia no Império. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

12
Como aponta Turazzi (2009, p.19), a Exposição de História do Brasil, realizada em 1881, seria de abrangência
nacional e "dedicada à documentação e à afirmação de uma 'história do Brasil'. (...) Concebida como etapa importante
do processo de construção simbólica da nação, ela acabou resultando no maior e mais completo inventário, até
aquela data, do patrimônio documental do país".

289
O “PORTO NOVO” E A INVISIBILIDADE DA PAISAGEM PORTUÁRIA RECIFENSE
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Clara Torres Peres


Arquiteta e Urbanista; UFPE; clara.ctp@gmail.com.

Esse artigo traz pontos discordantes sobre as políticas urbanas realizadas no sítio histórico do
Bairro do Recife, especialmente o Projeto "Porto Novo", e ressalta as consequências dessas
intervenções para a percepção da paisagem portuária e os significados desse sítio histórico.
Devido às limitações nos critérios de proteção do seu conjunto urbanístico - os quais não
contemplou em suas delimitações de preservação rigorosa parte do território correspondente à
sua ocupação primitiva - e ao interesse corporativo em investir na área portuária, buscando
construir uma imagem associada ao consumo cultural e ao mercado turístico, o sítio histórico
do Bairro do Recife sofreu transformações materiais e simbólicas que impactam nas relações
estabelecidas com o lugar e no modo de ver esse conjunto histórico.
Palavras-chave: Bairro do Recife; Paisagem portuária; “Porto Novo”; Turismo cultural;
Patrimônio histórico.

This article brings discordant points about the urban policies carried out in the historic site of
Bairro do Recife, especially the "New Port" project, and highlights the consequences of these
interventions for the perception of the port landscape and the meanings of this historic site. Due
to the limitations in the protection criteria of its urban set - which did not contemplate in its
delimitations of strict preservation part of the territory corresponding to its primitive occupation
- and to the corporate interest in investing in the port area, seeking to build an image associated
with cultural consumption and tourism market, the historic site of Bairro do Recife has undergone
material and symbolic transformations that impact on the relationships established with the
place and the way of seeing this historic set.
Keywords: Recife neighborhood; Port landscape; “Porto Novo”; Cultural tourism; Historical
heritage.

290
1 - O Recife e a função portuária: história de uma permanência
A cidade do Recife originou-se no território onde hoje é o seu bairro homônimo. Entre as águas
do mar e do rio, formada por uma estreita faixa de areia e protegida do mar por uma linha de
arrecifes, nascia a cidade que, devido a estas condições excepcionais, funcionou como principal
ancoradouro da Vila de Olinda, centro da capitania de Pernambuco, a partir de 1534, e foi se
consolidando como um “povoado dos pescadores”, ou “povoado dos arrecifes” (ARRAIS, 2004).
No período da ocupação holandesa em Pernambuco, entre 1630 e 1654, a urbanização da cidade
foi objeto de grande investimento, acarretando na ampliação da ocupação nesse território, com
a realização de aterros e de novas edificações e o núcleo da cidade se firmou enquanto Porto
(ARRAIS, 2004). Com a abertura dos portos, em 1808, e a expansão da atividade comercial,
sobretudo da exportação de algodão, o núcleo portuário do Recife passa por outra grande
transformação e crescimento, e a atividade portuária, que já não era a única realizada no bairro,
embora ainda fosse predominante, continuou por muito tempo a concentrar a vida da cidade
do Recife, sendo o Porto o ponto vital da cidade (LUBAMBO, 1991).
Os registros da paisagem do Recife, tinham a natureza como elemento predominante,
principalmente o ambiente marítimo, por onde chegavam os viajantes e navegadores. Segundo
Duarte (2015), entre os principais elementos apreendidos e descritos sobre o Recife do século
XIX, estavam os arrecifes, o istmo, os rios, o porto, o mar, as pontes, a península onde se originou
Recife e a ilha de Antônio Vaz, além da área continental, onde se localizava a freguesia da Boa
Vista.

Figura 01: Fotografia colorizada, produzida pela Livraria Ramiro Costa, intitulada “Forte do Picão”.

Fonte: Coleção de cartão-postal Josebias Bandeira da FUNDAJ-PE.


Data da circulação do postal de 1904.

291
A partir de 1909, o bairro portuário passou por um processo de profunda transformação e
descaracterização da sua fisionomia e de sua dinâmica social, com a abertura e alargamento de
novas vias, a demolição de grande parte dos sobrados e de importantes marcos arquitetônicos
para a instauração de um centro de negócios para a cidade do Recife. A Reforma urbanística do
bairro portuário, influenciada pela Reforma Urbana de Paris, e embasada por princípios
sanitaristas e higienistas, consolidou um novo conjunto arquitetônico de estilo eclético
(LUBAMBO, 1991).
O prestígio e a dinâmica do Bairro do Recife, ao longo do século XX foi sendo diminuída,
juntamente com sua população residente. O espraiamento do tecido urbano das cidades,
ocorrido a partir de 1930 e intensificado na década de 1950, com o processo de suburbanização
e metropolização, contribuiu para o esvaziamento e degradação dos centros urbanos, inclusive
com o bairro do Recife (DA SILVA, 2015). A partir da década de 1980, o Bairro do Recife passa a
ser objeto de planos e projetos para sua reabilitação e parte do bairro é tombado pelo
município, em 1987. Na década de 1990 são realizadas outras iniciativas que colaboraram para
a revitalização desse sítio histórico.
Além desses planos, em 1998, o Conjunto Histórico do Bairro do Recife foi tombado em nível
Federal pelo IPHAN, “O Conjunto Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico do Antigo Bairro do
Recife”. Na fundamentação da proposta de tombamento, foi enfatizada a característica
portuária do Bairro do Recife, consolidada ao longo dos séculos: “Século XVI: Coração da vila
portuária; Século XVII: Centro de troca de açúcar; Século XVIII: Centro comercial da cidade-
porto; Século XIX: Centro comercial exportador e importador; Século XX: Centro financeiro e
periferia do centro metropolitano” (LORETTO, 2012, p.14). Contudo, apenas um período
temporal foi considerado no polígono de tombamento, representado pela área reformada do
início do século XX, no qual se consolidou o conjunto eclético. Dessa maneira, a parte do
território correspondente à ocupação primitiva do centro histórico do Recife não foi
contemplado nas delimitações de preservação rigorosa, como a borda d’água ocupada pelos
armazéns portuários, bem como os atributos que representam seu valor toponímico, “presente
nos seus arrecifes naturais, que lhe configuraram o porto, vetor da fundação e designação da
cidade” (SÁ CARNEIRO et al, 2007, p. 305).
A partir dos anos 2000, devido ao Projeto Porto Digital, o Bairro do Recife tornou-se um
importante polo de tecnologia da informação, impactando consideravelmente na ocupação e
dinâmica do sítio histórico. Uma década depois ocorre uma outra grande transformação na área

292
do cais marítimo, quando começa a ser desenvolvida a Operação Urbana Porto Novo, iniciativa
do Governo do Estado e da parceria privada, com o objetivo de intervir na área portuária do
bairro para implementar novas atividades de lazer, turismo e comércio. O Porto Novo será o
foco desse artigo, tendo em vista as transformações físicas e simbólicas deferidas sobre a área
portuária do bairro.

Figura 02: Planta com a delimitação (em tracejado) do polígono de tombamento do Bairro do Recife.

Fonte: Acervo do Iphan/PE.

2 - A centralidade do turismo e do lazer na perspectiva dos planos e projetos


A faixa da linha costeira de Recife e Olinda, incluindo a área portuária do bairro do Recife, na
década de 2000, já vinha sendo foco das discussões dos planos metropolitanos, que tratavam
essa área como catalisadora de investimentos, consequência das relações históricas e
econômicas e da posição estratégica dessas cidades. Com a Copa de 2014, a qual teve Recife
como uma das sedes, foi desenvolvido um projeto para essa área, com o intuito de consolidar
um “complexo de turismo, cultura e lazer, de escala metropolitana, a ser executado pela
iniciativa pública e com uso cedido a particulares” (BRANDÃO et al, 2012, p.110).
No memorial apresentado no documento do projeto “Núcleo Técnico de Operações Urbanas
2007 – 2010” (NTOU), é colocado que a proposta pretendia valorizar o sentido público dos
espaços costeiros, para que a população pudesse vivenciá-los de maneira permanente e
democrática e também se refere à “natureza artística e cultural” daquele território para a
memória da cidade, como um aspecto que deve ser considerado nas propostas de intervenção.
Nesse sentido, o documento destaca alguns elementos que deveriam ser mantidos e tratados
com certo destaque, entre os quais: o Armazém 14, por ter sua fachada decorada com

293
ornamentos ecléticos; a linha férrea que percorre o cais do Recife e o cais de Santa Rita, por ser
um remanescente de uma das mais antigas linhas ferroviárias do Brasil e por eventuais
necessidades de funcionamento para uma demanda operacional do porto; e o molhe do cais e
o Marco Zero, enquanto espaço de lazer contemplativo, com potencialidade para visitação
devido às suas referências culturais e históricas.
Outro ponto destacado no memorial do NTOU, como uma diretriz projetiva, foi a permanência
do skyline do bairro quando visto a partir da água, salientando a importância dessa perspectiva
nos relatos históricos. Dessa maneira, o documento afirma que, conceitualmente, pretende-se
manter e valorizar a “memória portuária da área”, a partir da conservação da paisagem presente
no imaginário da cidade: “a imagem dos armazéns, a ideia do cais (espaço livre voltado para a
água), as máquinas (gruas, guindastes) ” (BRANDÃO, 2012, p.117).
Dessa maneira, foi realizada uma intervenção em todo conjunto de armazéns do cais marítimo
do Bairro do Recife, com o intuito de abrigar usos comerciais e de serviços, além do uso cultural
associado às atividades de lazer e turismo. No Armazém 14, foi mantido o seu aspecto
arquitetônico anterior, onde foi alocado uma casa de eventos, uso este relacionado às atividades
realizadas naquele espaço, que antes da reforma funcionava como teatro e palco para shows. E
nos outros galpões foram feitas maiores alterações em seu aspecto físico, que apesar de ter
mantido o gabarito, houve a introdução de novos elementos arquitetônicos, como mezaninos,
avanços volumétricos de balcões e estrutura de balanço, e mudança dos materiais construtivos.
A efetivação da operação urbana resultou na instalação de vários equipamentos ao longo do
cais marítimo do bairro, entre eles o Centro de Artesanato de Pernambuco, o Terminal Marítimo
de Passageiros, além de alguns armazéns destinados a bares e restaurantes. Esses usos foram
comportados nas estruturas dos armazéns portuários, exceto o museu e centro cultural Cais do
Sertão Luiz Gonzaga que foi construído sobre a demolição do Armazém 10. Segundo Brendle e
Vieira (2012), a demolição deste armazém, representante da arquitetura portuária do Recife, foi
uma violação aos princípios de preservação do patrimônio industrial, pois além dele se localizar
em uma área de entorno de um conjunto tombado em âmbito federal e fazer parte de uma área
de intervenção controlada em âmbito municipal, esse edifício compunha um conjunto de denso
valor cultural e urbanístico, que carrega significados e sentidos associados às práticas sociais
vinculadas à identidade portuária da cidade do Recife.
A inserção de uma nova arquitetura em áreas históricas é importante para a legibilidade do
núcleo histórico, contudo o caso do Cais do Sertão constituiu uma descaracterização, que

294
ocasionou uma perda da integridade do conjunto portuário, por ter alterado profundamente as
relações de volumetria, escala e morfologia urbana do conjunto preexistente e de sua relação
com o entorno. Além da alteração na relação dos armazéns, devido à demolição do Armazém
10 para a construção de um elemento contemporâneo que não dialoga com seu entorno, houve
também a construção de uma réplica de um armazém portuário, no Pátio Moinho, um espaço
vazio preexistente ao lado do antigo armazém. Essa postura demonstra uma contradição, pois,
invés do projeto utilizar a lacuna adjacente ao Armazém 10, para a inserção do novo, optou-se
por demolir o antigo e construir uma tipologia mimética ao armazém portuário (BRENDLE e
VIEIRA, 2012).

Figura 03: Fotografia do Bairro do Recife, a partir dos arrecifes, em que se vê o cais marítimo, o
armazém que abriga o Centro de Artesanato, a Torre Malakoff e o novo edifício do Cais do Sertão.

Fonte: http://www.urbanarts.com.br/recife-antigo-marco-zero-32892/p. Acessado em: 05.02.2021

Observamos que os argumentos e justificativas presentes no documento do NTOU foram mais


respeitosos em relação à memória portuária do que na prática, havendo um distanciamento
entre as ideias do documento e a execução do projeto, que no final das contas atuou apenas na
reforma dos armazéns, e apesar da manutenção de seu gabarito e volumetria, sofreu alterações
em sua fisionomia que reduziram a sua legibilidade enquanto reminiscente de uma arquitetura
portuária. Essa transformação é consequência das lacunas existentes nos processos de proteção
de conjuntos urbanos, como é o caso do Bairro do Recife.

295
3 - O cais marítimo vira “píer” e o Marco Zero ganha letreiro: um Recife de sombrinha
O Bairro do Recife foi objeto de vários projetos e intervenções, ao longo dos anos, que
enfatizaram os aspectos econômicos e turísticos, e aos poucos se aproximaram do cais marítimo,
que se tornou o eixo de maior investimento turístico do Bairro do Recife, atualmente. Quanto
aos resultados dessas intervenções, Lapa e Borges (2007) destacam que, se por um lado os
projetos que focaram nos espaços próximos ao cais marítimo possibilitaram uma maior relação
com os elementos associados à memória portuária e contribuíram parcialmente para a
integração entre porto-cidade, por outro, essas iniciativas não foram profícuas no aspecto da
preservação dos valores culturais.
Essas intervenções resultaram em uma contínua alteração da paisagem, com a transformação
de áreas degradadas do sítio histórico em áreas de entretenimento urbano e consumo cultural,
em que passam a abrigar centros de lazer, com espaços gastronômicos e lojas de artesanato,
alterando fortemente as relações de memória e a paisagem portuária, por estarem submetidas
à “estratégias de marketing urbano, que equipararam o antigo Povoado dos Arrecifes a um
shopping center” (LEITE, 2002, p.119).

Figura 04: Fotografia do cais marítimo com um antigo armazém reformado e ocupado por um
restaurante. Fotografia produzida para divulgação no período da Copa do Mundo de 2014.

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Porto_do_Recife#/media/File:Cape_-_Porto_do_Recife_-_Recife_-
_Pernambuco_-_Brasil.jpg. Acessada em: 04.02.2021

Apesar das prováveis vantagens econômicas do empreendimento, as transformações na


dinâmica e no sentido do lugar foram significativas, consequência do processo de
enobrecimento da área do cais marítimo, agora “pier”. O impacto na paisagem e em sua

296
percepção, se dá devido ao grande investimento em atividades e na imagem associada ao
consumo e ao turismo, o que acarreta em certa uniformização dos espaços. De acordo com os
conceitos de Augè (2014), esse fenômeno contemporâneo se manifesta na produção do “não-
lugar”, no qual os espaços de comunicação e consumo se intensificam, ocasionando uma
predominância de uma cultura global sobre as manifestações locais.
Nos sítios históricos, os mecanismos de consolidação desses não-lugares estão muito associados
com a transformação desses espaços em lugares de consumo cultural e de lazer, vinculadas ao
turismo. A construção de uma imagem a ser consumida, com a implantação de símbolos
universais de atração turística, como os letreiros que identificam as cidades, traz um aspecto de
cenarização dos lugares. Para Sarlo (2014), as políticas urbanas nas áreas industriais das cidades
utilizam a cultura como mercadoria, submetendo as áreas históricas a processos de
espetacularização e a interesses imobiliários.

Figura 05: Fotografia de cunho turístico que apresenta o Marco Zero com um letreiro com o nome do
Recife, acompanhado de uma sombrinha de frevo, e ao fundo a Coluna de Cristal do Parque das
Esculturas.

Fonte: https://rotaprincipal.com.br/roteiro-de-viagem-um-dia-no-recife-antigo-pe/. Acessado em


15/03/2021.

Nessa perspectiva, Menezes (2002) destaca que a paisagem é um dos principais propulsores do
turismo, o que reforça sua dimensão econômica. O consumo da paisagem culmina no
esvaziamento de seu sentido, a qual é reduzida a “meros símbolos abstratos, que podem ser
selecionados e recombinados infinitamente, segundo interesses imediatos ou predominantes.
Passa a ser objeto apenas de sensações, nem mesmo de percepção, muito menos de
consciência” (p.54). Os valores culturais de determinado sítio são assimilados mais facilmente

297
enquanto elemento típico do lugar, e a história, associada à paisagem, se torna um recurso que
favorece a “venda dos lugares [...] cuja historicidade se congela, abstratamente, numa
mercadoria estável, de fácil digestão” (MENEZES, 2002, p.58).

4 - A invisibilidade da paisagem portuária recifense


Se os aspectos naturais condicionaram a ocupação e a função de ancoradouro desde o início,
por sua vez o porto imprimiu uma organização singular ao bairro e representa o sentido que
mais perdurou em sua história, conformando uma paisagem portuária que representou, por
muitos séculos, a imagem do Recife.
Os novos sentidos atribuídos ao sítio histórico do Bairro do Recife, mais recentemente, revelam
a incorporação de práticas urbanas instauradas nas grandes cidades de todo o mundo. A busca
das cidades globais para estarem no eixo do turismo cultural, rende aos centros históricos a
condição de paisagem mercadoria.
No caso do Bairro do Recife, a permissividade na legislação de tombamento, que exclui partes
essenciais do conjunto urbano do bairro, permitiu investimento público-privado para a
instauração do “Porto Novo” sem dificuldades ou necessidade de contrapartidas consistentes
em relação ao uso da antiga estrutura portuária.
Apesar do funcionamento, mesmo que reduzido, de atividades portuárias e de ainda existirem
reminiscentes das antigas estruturas portuárias, além da natureza tão marcante dos arrecifes e
das águas, o sentido portuário e os elementos que o constituíram, ao longo da história, perdeu
espaço para uma nova imagem do bairro, associada ao consumo e ao entretenimento. Uma área
tão importante para a cidade do Recife poderia ter espaços e vivências dedicadas à sua história
e à interação mais consistente com o lugar. Não se trata de uma resistência às mudanças no
contexto urbano e histórico, mas que elas venham com a força das singularidades do lugar e
com o intuito de preservação de seus valores culturais.
A invisibilidade da paisagem portuária do Recife é consequência da atuação dos órgãos
patrimoniais, que devido à natureza complexa do conceito de paisagem e sua operacionalização
no campo da conservação, ainda priorizam os elementos arquitetônicos em detrimento da visão
de conjunto paisagístico. Mas também é consequência da postura das políticas urbanas
impregnadas pelos valores do empreendedorismo urbano e também pela cultura do consumo.
Não se pode negar que o Bairro do Recife é um grande polo de lazer para turistas e recifenses,
que se apropriam dos espaços à sua maneira e diversificam as formas de uso e convivência,

298
contudo no que tange às discussões sobre o patrimônio urbano e paisagístico, uma série de
questões podem ser levantadas e devem ser problematizadas e enfrentadas para que as
políticas de preservação possam ser amadurecidas e atuem com autonomia em defesa do
patrimônio urbano.

Referências

ARRAIS, Raimundo. O pântano e o riacho: a formação do espaço público no Recife do século XIX. São
Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2004.

AUGÉ, Marc. O antropólogo e o mundo global. Petrópolis: Vozes, 2014.

BRANDÃO, Zeca (Org.). Núcleo Técnico de Operações Urbanas: Estudos 2007 – 2010. Recife: CEPE, 2012.
Disponível em: <https://issuu.com/julienineichen/docs/livro_ntou>. Acesso em: 18/12/2020

BRENDLE, Betânea; VIEIRA, Natália Miranda. “Cais do Sertão Luiz Gonzaga no Porto Novo do Recife:
Destruição travestida em ação de conservação”. 2012, Arquitextos. Disponível em:
< http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.150/4460 >. Acesso em: 05/01/2020.

DA SILVA, Susan. Mudanças e Permanências, os valores atribuídos ao bairro do Recife. Dissertação


(Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano) Universidade Federal de Pernambuco. Recife,
2015.

DUARTE, Mirela Carina Rêgo. A paisagem urbana nas representações imagéticas do Recife do século XIX.
Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano) Universidade Federal de
Pernambuco. Recife, 2015.

LAPA, Tomás de Albuquerque; BORGES, Jennifer dos Santos. Cidade portuária: Integrando espaços,
estruturas e interesses numa perspectiva de desenvolvimento urbano sustentável. Centro de Estudos
Avançados da Conservação Integrada. Olinda, 2007.

LEITE, Rogério Proença de Souza. “Contra-usos e espaço público: notas sobre a construção social dos
lugares na manguetown”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 17, n. 49, 2002.

LORETTO, Rosane Piccolo. Proposta de Preservação do Bairro do Recife: Rerratificação do processo de


tombamento do Conjunto Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico do Antigo Bairro do Recife. IPHAN,
2012.

LUBAMBO, Cátia. Bairro do Recife: Entre o Corpo Santo e o Marco Zero. Recife, Fundação de Cultura
Cidade do Recife, Companhia Editora de Pernambuco. 1991.

MENESES, Ulpiano. A paisagem como fato cultural. In: YÁZIGI, Eduardo (org.). Turismo e Paisagem. São
Paulo: Contexto, 2002.

SÁ CARNEIRO, Ana Rita. et al. “Os valores patrimoniais da paisagem cultural: uma abordagem para o
processo de intervenção”. Paisagem Ambiente: ensaios, São Paulo, n. 24, pp. 297-308, 2007.

SARLO, Beatriz. A cidade vista: mercadorias e cultura urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

299
O POVOADO DE VILA VELHA: UMA PAISAGEM DE HISTÓRIA E NATUREZA
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Isabelly Lima de Santana Sales


Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Pesquisadora do Laboratório da Paisagem, Departamento
de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Pernambuco; sales.isabelly12@gmail.com.

Jônatas Souza Medeiros da Silva


Arquiteto e Urbanista; Pesquisador do Laboratório da Paisagem e Mestrando em Desenvolvimento
Urbano da Universidade Federal de Pernambuco; jona.medeiros@gmail.com.

Onilda Gomes Bezerra


Arquiteta e Urbanista, Doutora em Desenvolvimento Urbano; Pesquisadora do Laboratório da
Paisagem, Docente do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de
Pernambuco; onibezerra@yahoo.com.br.

Pedro Henrique Valença Ferreira


Graduando em Arquitetura e Urbanismo; Pesquisador do Laboratório da Paisagem, Departamento de
Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Pernambuco; pedro.valenca.ferreira@gmail.com.

Vila Velha é um povoado da Ilha de Itamaracá, município do litoral norte de Pernambuco, cuja
paisagem singular compõe-se de processos naturais, históricos e socioculturais de grande relevância,
que remonta às origens de sua formação antrópica e natural. Sua história colonial e formação
fisiográfica são institucionalmente reconhecidas como patrimônio cultural e legalmente inseridas em
uma unidade natural protegida, porém, existem narrativas culturais invisíveis, despercebidas pelos
processos da gestão patrimonial. Busca-se identificar os valores patrimoniais do sítio a partir de seus
atributos naturais e culturais, possibilitando a percepção de sua significância, visando compreender a
paisagem do lugar enquanto totalidade patrimonial, contribuindo para seu pleno reconhecimento.
Palavras-Chave: Paisagem; Patrimônio; História; Natureza; Valores patrimoniais.

Vila Velha is a village of the Itamaracá island, a city from the northern coast of Pernambuco, whose
remarkable landscape is composed by natural, historic and sociocultural processes of great relevance,
alluding the origins of its anthropic and natural formation. The site's colonial history and its
physiographic formation are institutionally recognized as cultural heritage and legally inserted on a
safeguard natural unit, however, there are invisible cultural narratives, unnoticed by the patrimonial
management processes. The pursuit is to identify the heritage values of the site, starting of its natural
and cultural attributes, making possible to realize its significance and intending to comprehend the
site’s landscape as a patrimonial unity, contributing for its full recognition.
Key words: Landscape; Heritage: History; Nature; Heritage values.

300
1 - Introdução
Vila Velha é um antigo e singular povoado da Ilha de Itamaracá, município do litoral norte de
Pernambuco. É reconhecido, desde 1985, pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de
Pernambuco (FUNDARPE), como patrimônio cultural por seu valor histórico, dado ao fato de se
constituir como um dos primeiros núcleos edificados do Brasil Colônia, testemunhando as
primeiras ocupações da costa brasileira no século XVI. É um sítio marcado pela história humana
e processos da natureza que se revelam na paisagem pela singularidade de seus elementos
construídos imbricados aos processos naturais, revelados pela sua formação geofísica,
biodiversidade e sistemas ecológicos, representados pelas bordas marinhas, franjas de
manguezais e fragmentos remanescentes de Mata Atlântica. Esses ecossistemas estão
designados como Área de Preservação Ambiental (APA) de Santa Cruz, unidade protegida em
nível estadual como Unidade de Conservação da Natureza.
A Ilha de Itamaracá, desde sua ocupação pelos franceses em 1503, foi ponto de extração de
madeira do Pau-Brasil, que era vendida para o comércio exterior. Em meados de 1516-1519 a
ilha fora reconquistada pelos portugueses e edificou-se uma Vila no alto da colina, com traçado
urbanístico tradicional, segundo uma visão estratégica militar, mantendo-se ainda hoje com as
características originais. Nessa colina, a mais alta da ilha, construiu-se a Igreja de Nossa Senhora
da Conceição, considerada uma das primeiras do Brasil Colônia, acompanhada de um amplo
pátio rodeado pelo casario vernacular, contrastando com a vegetação densa e exuberante do
local, fragmento remanescente da Mata Atlântica. A área detém um rico sítio arqueológico, o
qual abriga testemunhos que representam um longínquo passado esquecido. Esses atributos se
somam à beleza cênica do lugar, onde se descortina cenários de rara beleza, revelados pela
paisagem do sítio quando compreendida como uma fusão da natureza, representada pelo mar,
rios, matas e manguezais e a história pungente de Vila Velha, numa dialética natural e cultural
contínua.
Para Besse (2014), a paisagem é uma totalidade dialética onde natureza e história se encontram
numa realidade sintética marcada pela integração dos processos da natureza e os projetos
humanos. Por outro lado, a Convenção Europeia da Paisagem (2000) define em seu artigo
primeiro que paisagem é parte de um território apreendido pela sociedade, resultado da relação
entre os fatores naturais e culturais. Nesse sentido, pode-se entender a paisagem como a
materialização das manifestações humanas sobre o território, sejam concretas ou subjetivas.
Essa abordagem corrobora com as ideias desenvolvidas pela Carta da Paisagem das Américas ao

301
recomendar que a paisagem deva ser apreendida por meio da apreensão de seus extratos
naturais e culturais em conjunto.
A paisagem se apresenta ora como natureza, por revelar suas características físico-geográficas
que dão suporte à construção humana, ora como cultura, ao se revelar como um palimpsesto
dos diversos tempos e povos que habitam o território e com ele se inter-relaciona. É uma síntese
metafísica da paisagem, presente em uma relação intrínseca entre o ser humano e a natureza,
ultrapassando o sentido pragmático de apropriação individual, mas vista como parte de um
todo, na perspectiva de uma cosmovisão (CARTA DA PAISAGEM DAS AMÉRICAS, 2018).
Sob essa perspectiva, objetiva-se investigar a paisagem de Vila Velha por meio de uma análise
historiográfica e ecossistêmica, desdobrando as diversas camadas da história da natureza e do
homem ali assentado, buscando descobrir e revelar as verdades embutidas nos significados
representados pelos atributos patrimoniais. Com isso, intenta-se contribuir para uma
aproximação metodológica mais apropriada à construção de instrumentos de gestão,
planejamento e controle da conservação patrimonial desse bem que clama por resguardo.

2 - A paisagem de Vila Velha: narrativa paisagística colonial


A paisagem de Vila Velha tem uma configuração paisagística peculiar, constituída por
exuberantes estuários, onde sempre se destacaram flora e fauna ricas e abundantes, fragmentos
de Mata Atlântica e manguezais, o que chamou a atenção dos exploradores que navegaram pela
costa brasileira. O início da ocupação de Vila Velha data dos primeiros anos da descoberta das
terras brasílicas, quando, no início do século XVI, a expedição ao território americano,
comandada por Cristóvão Jacques, instalou a feitoria de Pernambuco na Ilha de Itamaracá. O
local despertara o interesse dos europeus por seu caráter insular marcado pelo isolamento,
apresentando-se como uma vantagem natural de proteção que poderia privilegiar a instalação
de assentamentos urbanos. Os exploradores europeus logo entenderam os atributos da
paisagem natural local como benefícios para a construção do povoado. Isso pode ser observado
nas fontes iconográficas levantadas da época, as quais retratam a diversidade e abundância da
natureza da ilha (Figura 01).
Dentre as riquezas naturais que chamaram a atenção dos europeus, destaca-se a mata com
vasta presença de pau-brasil, recurso muito disputado no mercado europeu. Alia-se a isso, o
fato de o sítio ser um terreno litorâneo com malha fluvial de boa navegabilidade em um dos
locais mais próximos da Europa no continente americano. Esses atributos motivaram os

302
europeus para a construção da então chamada Vila de N. Sra. da Conceição, escolhendo o local
como a sede da capitania de Itamaracá. A porção sul da Ilha de Itamaracá, no morro conhecido
como Morro do Giz ou dos Franceses, onde foi estabelecida a vila de Nossa Senhora da
Conceição, dispunha de uma posição privilegiada por seu relevo, sendo o ponto de maior
altitude da ilha, do qual descortinava a vista para o mar e para a entrada do canal de Santa Cruz,
onde se localizava o porto, ponto de acesso para as trocas de produtos e mercadorias.
Inicialmente, foi construída a Igreja de Nossa Senhora da Conceição e, na sequência, a Casa de
Câmara e Cadeia, a Alfândega, a Provedoria da Fazenda Real e a Casa do Governador da
Capitania (SOARES, 2009). No centro dessas construções, em posição de destaque, se situou a
praça, um espaço livre destinado aos encontros da população, a qual conectava o conjunto de
edificações ali instaladas e onde também fora erguido um pelourinho.

Figura 01: Reprodução de Itamaracá feita por Frans Post em 1647.

Fonte: Acervo Coleção Brasiliana Itaú.

Enquanto componentes do sistema de defesa militar, ponto básico na organização espacial dos
centros urbanos, visando resguardar o território contra-ataques europeus e indígenas, foram
construídas paliçadas de madeira sobre muralhas de terra que circundavam a Vila e, também,
fossos e redutos bélicos, erigidos em pontos estratégicos. Outra peculiaridade dos
assentamentos urbanos portugueses, também identificada na composição do traçado da Vila de
Nossa Senhora da Conceição, é o estabelecimento de ruas principais com saídas estratégicas,
servindo de escapes em caso de ataques ao povoamento (SOARES, 2009). Na época, contava-se

303
com mais de 100 construções, dispostas em formação de “L”, com o traçado norteado pelas
principais edificações públicas: a Igreja de N. Sra. da Conceição; a Casa de Câmara e Cadeia; a
Igreja da Misericórdia e a Igreja de N. Sra. do Rosário dos Pretos (OLIVEIRA, 2003). Existiam
ainda, outros equipamentos urbanos instalados na vila, como o Hospital da Santa Casa da
Misericórdia, um engenho e fornos de cal. Estes dois últimos localizam-se na periferia da Vila e
não mais no alto do morro onde se instalara a igreja e o povoado.
No ano de 1631, os holandeses, conhecidos por suas técnicas construtivas militares das mais
modernas até então, ocuparam Itamaracá, assenhoreando-se do lugar. Nessa época, a região
foi alvo de grande prestígio e louvor por parte do comando holandês, sendo considerada
durante certo tempo, no início da administração de Maurício de Nassau, como uma opção para
sediar o governo flamengo. Esta ideia não vigorou, face o prestígio da ilha ter sido ofuscado pela
falta de condições para atender ao fluxo de embarcações que afluiriam ao local, bem como a
defasada infraestrutura de defesa que havia, quando comparada à estrutura instalada no Recife.
Anteriormente à ocupação holandesa, a vila servia como reduto fortificado para os ocupantes
portugueses, instalada no alto do morro e cercada por muralhas em alguns dos lados (Figura
02). A muralha envolvente e a fortificação da igreja matriz datam do início do século XVII, após
o reconhecimento da ameaça holandesa nas terras brasílicas (OLIVEIRA; SANTOS, 2014).

Figura 02: Stradt Nostre Signora de Conception, 1636.

Fonte: REIS, Nestor Goulart. Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial, 2001. Editado por: SILVA,
2014.

304
Numa tentativa de conquista da Vila, os holandeses enfrentaram a resistência local e não
obtiveram sucesso, o que culminou na criação do forte Orange, a nível do mar, próximo àquele
onde se localizava o forte de Santa Cruz, que, segundo Barthel (2007), parece ter sido destruído
nessa época. O forte serviu, então, de base para futuros ataques, como o de junho de 1633,
quando os holandeses, finalmente, tiveram êxito nas investidas de ocupação da Vila (Figura 03).

Figura 03: Vila Nossa Senhora da Conceição, João Teixeira Albernaz, 1640.

Fonte: REIS, Nestor Goulart. Imagens de Vilas e Cidades do Brasil Colonial, 2001. Editado por: SILVA,
2014.

Durante o século XVII, territórios brasileiros foram gradativamente retomados pelos luso-
brasileiros e a capitania de Itamaracá foi um dos últimos a serem recuperados, pois, mesmo
após a retomada da Vila de N. Sra. da Conceição em 1646, a ocupação holandesa no Forte
resistiu até 1654, quando o capitão Manoel de Azevedo da Silva recebeu as chaves da
fortificação (BARTHEL, 2007).
Deve-se salientar que os desenhos, pinturas, fotografias, mapas e demais iconografias
produzidas pelos habitantes e visitantes contribuíram, não só para a compreensão das
modificações e permanências na paisagem ao longo dos anos, mas também como um meio de
apreender a percepção dos usuários acerca do conjunto paisagístico. Vale destacar o caso da
muralha que durante um bom tempo circundou a vila, transformando-se num marco
fundamental da composição espacial e imaginária da ocupação. Esse marco se faz presente em

305
diversas iconografias e é citado em manuscritos, despertando o interesse por seu significado
relacionado ao poder, vigilância e isolamento para os habitantes da região, além de resguardar
a porção sul da ilha, importante ponto de entrada para o continente (SILVA, 2014). Na análise
do conjunto iconográfico levantado, pôde-se destacar elementos edificados que se repetem em
suas representações, como as ruínas da Casa de Câmara e Cadeia, o fosso da Vila quando ainda
era fortificada e sua muralha quinhentista e, ainda, as ruínas da Igreja de N. Sra. do Rosário dos
Homens Pretos e a Capela da Misericórdia. Essas construções foram resgatadas e evidenciadas
através dos trabalhos de escavação, em 1985, desenvolvidos pela FUNDARPE, por ocasião do
processo de tombamento de Vila Velha (SILVA, 2014).
A edificação que se destaca por manter forte integridade física é a Igreja de N. Sra. da Conceição,
construída inicialmente em 1535, mesmo com ampliações realizadas ao longo dos anos. A igreja
é bastante representada nos documentos levantados, constituindo-se como um bem de grande
significação por ser o ponto de partida da configuração urbana do sítio durante a colonização e
mantém-se até hoje. Em muitas das representações identificadas, a igreja surge como
fortificação, devido à adaptação dos holandeses, que a utilizaram como armazém de munição,
o que testemunha esse uso são as seteiras e as ameias da antiga Igreja de Vila Velha, muito
semelhantes às existentes nas construções dos fortes (OLIVEIRA, 2003). Observa-se que houve
um resguardo maior da configuração primitiva da Vila, ligada à área rural de Itamaracá, o que
contribuiu para a permanência do contexto natural e edificado, que remontam às origens da
ocupação, no século XVI.

3 - O que a paisagem de Vila Velha revela hoje


A paisagem de Vila Velha ainda evoca momentos memoráveis de sua história, protagonistas do
território somados à beleza cênica do conjunto urbano que se fundem com as excepcionais
formações naturais do sítio. A natureza exuberante traduz uma complexa formação de sistemas
ecológicos com rica biodiversidade. É um conjunto ecossistêmico protegido por lei o qual faz
parte da Área de Preservação Ambiental (APA) de Santa Cruz, através do Decreto nº
32.488/2008, reconhecido em nível estadual como Unidade de Conservação da Natureza. Essa
unidade envolve os estuários e manguezais do Rio Timbó e do Canal de Santa Cruz, protegidos
pela legislação estadual como áreas de proteção ambiental pela Lei 9.931/86. A área se estende
pelas seguintes Áreas de Preservação Permanente, estabelecidas pela resolução do CONAMA
303/2002: APP Mata Atlântica e APP Mangues (CPRH, 2010). Pelo Zoneamento Ambiental da

306
APA de Santa Cruz, Vila Velha abrange Unidades Ambientais Homogêneas: Área Antropizada 02;
Mata Atlântica; Manguezal e Ecossistemas Associados; Área Urbana; e o Ambiente Marinho.
A Área Antropizada 02 é composta por áreas modificadas pela ação humana, predominando o
cultivo da cana-de-açúcar; a policultura; a silvicultura, com vegetação nativa; e o cultivo do
coco–da-baía, em menores proporções. As áreas de coqueirais ocupam trechos próximos à
praia, onde também se encontram espécies de mata atlântica e restinga. As áreas de
Manguezais e Estuários, por sua vez, representam o maior e mais fértil ecossistema estuarino e
costeiro do litoral pernambucano, ao abrigar uma enorme diversidade de espécies que
desempenham papéis ecológicos fundamentais, como transformar o potencial energético dos
detritos, conduzir energia dos níveis tróficos e exportar energia para ecossistemas vizinhos. São
ambientes naturais de grande importância econômica para a comunidade, além de proeminente
beleza cênica e se constituir como berçários para a conservação da biodiversidade aquática.
Essas áreas abrigam espécies típicas do mangue, a exemplo: da Rhizophora mangle, o mangue
vermelho; da Avicennia schaueriana, o mangue preto; da Laguncularia racemosa, o mangue
branco; e da Conocarpus erectus, o mangue de botão.
A área urbana envolve os ambientes das atividades náuticas, bares, restaurantes, hotéis e
pousadas que fornecem trabalho à comunidade. Sua paisagem é marcada por coqueirais e a
cobertura herbácea da região é composta por salsa da praia, a Ipomoea pes-caprae. O ambiente
marinho, por fim, ostenta acentuada diversidade de espécies com elevada importância
ecológica e econômica, uma vez que a pesca é uma forte fonte de renda e alimentação para as
famílias locais. O saramunete, a sapuruna, a manjuba e demais espécies são os principais alvos
dado o seu valor no mercado. É marcante a presença do peixe boi marinho, o Trichechus
manatus, historicamente presente na região, que se beneficia pela existência de bancos de
“capim agulha” no local. O ambiente ainda se destaca pela presença de aves limícolas e
oceânicas, a exemplo da Catoptrophorus semipalmatus e Calonectris diomedea,
respectivamente (CPRH, 2010).
Os estudos de Lima, Neto e Cavalcanti (2013), identificaram no local a utilização por meio da
comunidade de 176 espécies da flora nativa, pertencentes a 44 famílias de Eudicotiledoneas, 14
de Monocotiledôneas e duas de Angiospermas basais. As plantas medicinais foram bastante
citadas pela população, seguidas pelas alimentícias e ornamentais. Este conhecimento dos
povos tradicionais representa práticas adquiridas ao longo do tempo, construindo valores,
crenças e experiências, que formam a base cultural dessas comunidades.

307
Nesse tom, percebe-se na configuração atual do sítio, vestígios de equipamentos urbanos
indicados em documentos históricos, como o fosso que circundava o povoado, os alicerces da
Casa de Câmara e Cadeia, da Igreja da Misericórdia e seu Hospital, estruturas datadas do século
XVI. Existem ainda uma ruína e dois fornos de cal, localizados na porção baixa do sítio, no antigo
local de embarque da povoação, construções datadas da segunda metade do século XVII e do
final do século XIX (SOARES, 2009). Um dos fornos de cal encontra-se em bom estado de
conservação e este, tem na parte superior uma estrutura de madeira que compõe a casa de um
casal de moradores da vila, os quais fazem a manutenção e conservação dessas estruturas que
formavam um forno de cal, além de utilizar do espaço como espaço de artesanato, com produtos
tradicionais da comunidade local.
A população do povoado atualmente ocupa um núcleo de casas, construídas principalmente de
taipa ou alvenaria e cobertas com palha ou telha, distribuídas em torno de uma área
descampada, utilizada como campo de futebol e festividades populares eventuais. Em posição
de destaque, marca o povoado, a Igreja N. Sra. da Conceição. Compõe ainda o conjunto urbano
uma escola, um posto médico, uma associação de moradores, um posto de serviços da Telemar,
a Associação das Doceiras, além de bares e barracas de produtos artesanais e uma Igreja da
Assembléia de Deus.
A peculiaridade percebida é a distribuição das edificações atuais, cuja organização espacial se
assemelha à conformação original da Vila, uma vez que grande parte das casas estão construídas
entre as estruturas da antiga Casa de Câmara e Cadeia e a Igreja Nossa Senhora da Conceição
(SOARES, 2009). Além disso, observa-se que, no povoado, os moradores desenvolvem a prática
de produção de alimentos para consumo próprio como catação nos manguezais, pequenas
lavouras e criações de animais. Essas atividades resultam na pesca, retirada de crustáceos, assim
como madeiras, frutas e plantas que se constitui como a base da economia de grande parte da
população da Vila (RASP, 1999). A população local é constituída de famílias que residem na
região a gerações. Esta, configura o principal agente para a conservação do povoado
atualmente, além de contribuir para a continuidade de seus valores e culturas. No entanto, a
comunidade vê-se muitas vezes desconsiderada pelas ações da gestão patrimonial, com suas
narrativas omitidas e afastadas da história “oficial”. Os indivíduos do lugar são parte de sua
paisagem e suas vivências compõem, unidas aos atributos naturais e construídos, a malha de
significância de Vila Velha, que deve ser realçada em sua integridade, revelada em seus detalhes
e reconhecida por todos seus valores.

308
4 - Considerações Finais
A paisagem de Vila Velha, mesmo com o passar do tempo, mantém ainda hoje presente o caráter
de sua história humana e natural, que estão expressos em seus atributos histórico-culturais e
ecológicos. Contudo, esse sítio traz hoje as incertezas de sua permanência enquanto bem
patrimonial em face de seu estado de conservação e dada à ausência de políticas e ações de
salvaguarda de seus diversos valores. O que se pode apreender da situação é a contradição entre
as narrativas governamentais, ao se defender utilizando o discurso da falta de recursos para o
desenvolvimento de ações de conservação do sítio, e ao mesmo tempo, a voz dos moradores
denotando a percepção de abandono e esquecimento do lugar, por parte das autoridades, como
sendo um descaso quanto à importância histórico-cultural e ambiental do conjunto
representado por Vila Velha (ARAÚJO, 2004). Apesar do dinamismo e protagonismo da
população nas práticas sociais cotidianas do povoado, ela não é incluída de forma efetiva na
gestão, nem no planejamento das ações voltadas para a conservação do sítio patrimonial. A
comunidade não é considerada nos processos de elaboração de planos, projetos e/ou ações
institucionais destinadas a melhorias urbanas tão necessárias na área. Os governantes e seus
agentes públicos não empreendem esforços para incluir os moradores nas discussões sobre as
necessidades prementes do povoado quanto a serviços urbanos, sociais e de infraestrutura,
tampouco ações voltadas para a conservação do bem patrimonial que é Vila Velha.
E assim, observa-se um silenciamento das narrativas construídas pelas famílias de moradores
ribeirinhos e o apagamento da trajetória dos indígenas locais, não documentada, além de tantas
outras histórias que permeiam a memória da população local. Partindo do princípio de que os
moradores locais são atores envolvidos com o bem patrimonial e que são agentes ativos na
configuração da paisagem e que devem possuir o direito de contar suas histórias, é necessário
que as ações de planejamento patrimonial se afastem da postura de privilegiar os visitantes,
transformando a área num “parque temático”. Desse modo, será possível contemplar os
diversos atributos e valores patrimoniais que compõem a paisagem, promovendo uma
conservação abrangente e inclusiva, permitindo a integração de todas as dimensões
patrimoniais do bem patrimonial que é Vila Velha.

309
Referências
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<http://www.tede2.ufrpe.br:8080/tede/bitstream/tede2/6186/2/Natalli%20Emanuelli%20Araujo%20da
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SOARES, André Luiz Gomes. Diagnóstico dos impactos antrópicos em Vila Velha: proposta para sua
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<https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/786>. Acesso em: 10 nov 2020.

311
OS ECOS DE UM SILÊNCIO: o patrimônio cultural de Antônio Prado/RS e a
(in)compreensão do seu valor
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Nauana da Costa Reginato


Arquiteta e Urbanista; Mestranda do Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Arquitetura
e Urbanismo - Faculdade Meridional - IMED; 1119111@imed.edu.br.

Dirceu Piccinato Junior


Doutor em Urbanismo; Docente do Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Arquitetura
e Urbanismo - Faculdade Meridional - IMED; dirceu.piccinato@imed.edu.br.

O tombamento de Antônio Prado, cidade situada no Rio Grande do Sul, salvaguarda um dos mais
importantes testemunhos do legado cultural da imigração italiana no Brasil. Para tanto, este
trabalho tem como objetivo analisar o patrimônio cultural da cidade e o silêncio de sua
comunidade em relação ao valor do conjunto construído. Nesse texto considera-se como
conjuntura de estudo a necessidade de dissertar e compreender a importância histórica e
cultural, permitindo contribuir para com o debate acerca da preservação e valorização do
patrimônio da cidade. Os resultados demonstraram que, passados mais de 30 anos do processo
de tombamento, ainda não há pleno consenso entre os moradores de que tal ato se caracteriza
como um aspecto, de fato, importante.
Palavras-chave: Valor histórico; preservação patrimonial; silêncio e sociedade local; Antônio
Prado.

The listing of Antônio Prado, a city in Rio Grande do Sul, safeguards one of the most important
testimonies of the cultural legacy of Italian immigration in Brazil. Therefore, this work aims to
analyze the cultural heritage of the city and the silence of its community in relation to the value
of the built set. In this text, it is considered as a study context the need to talk and understand
the historical and cultural importance, allowing to contribute to the debate about the
preservation and valorization of the city's heritage. The results showed that, more than 30 years
after the tipping process, there is still no full consensus among residents that such an act is
characterized as an indeed important aspect.
Keywords: Historical value; heritage preservation; silence and local society; Antônio Prado.

312
1 - Introdução
O tombamento do conjunto arquitetônico e urbanístico de Antônio Prado, município localizado
na Serra Gaúcha, interior do estado do Rio Grande do Sul, região nordeste do Sul do Brasil,
comumente conhecida como “Região Colonial Italiana” (RCI), salvaguarda um dos mais
importantes testemunhos do legado cultural da imigração italiana no Brasil. Este trabalho tem
como objetivo analisar o patrimônio cultural da cidade e o silêncio de sua comunidade em
relação ao valor do conjunto edificado. Para tanto, considera-se como conjuntura de estudo a
necessidade de dissertar e compreender a importância histórica e cultural, permitindo
contribuir para com o debate acerca da preservação e valorização do patrimônio da cidade de
Antônio Prado.
Antônio Prado foi colonizada no final do século XIX (por volta de 1886 a 1890), na sua grande
maioria por imigrantes italianos, vindos da região norte da Itália. Os imigrantes deixaram marcas
culturais praticamente inalteradas e de inestimável valor: sua história, seus costumes e
tradições, sua religiosidade, seu dialeto e comidas típicas, assim como seu legado singular, as
moradias. O seu centro histórico reúne um rico acervo de edificações que conformam um
conjunto de artefatos de valores históricos e afetivos. A arquitetura produzida pelos imigrantes
na cidade se distingue do contexto regional, estadual e nacional, assim como também difere os
aspectos plásticos e técnicos dessa arquitetura em relação as vilas rurais italianas. Esse
patrimônio compõe exemplares populares que se revestem de singular importância pelo fato
de tratar de uma manifestação de aculturação, ou seja, grandes casarões construídos em
madeira Araucaria angutifolia, espécie arbórea dominante na floresta da região Sul do Brasil, e
não utilizada comumente na Itália, mas expressando influência dos modos e padrões estéticos
consagrados italiano, acrescidos da bagagem cultural trazida pelos imigrantes.
As edificações permaneceram preservadas por mais de um século e, no ano de 1990, 48 delas
foram tombadas e inscritas nos livros do Tombo Histórico e do Tombo Arqueológico, Etnográfico
e Paisagístico pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), tornando-se o
maior e o mais expressivo conjunto arquitetônico e urbanístico, ainda preservado, da
colonização italiana no Brasil (IPHAN, 1990). Para conquistar o tombamento, um longo e
burocrático caminho foi percorrido, posto que, na época, as construções de origem do processo
de colonização italiana ainda não eram devidamente valorizadas pelas autoridades e pela
própria população local, sujeitas ao risco de degradação e descaracterização.

313
Mediante os fatos, considera-se como hipótese a ideia de observar qual o real significado do
patrimônio cultural da cidade para a comunidade de Antônio Prado. Tal conjuntura justifica a
construção deste texto, enquadrando-se como um estudo analítico, tendo como base revisão
bibliográfica específica, bem como pesquisa de campo de caráter exploratório para a aplicação
de questionário junto aos moradores, a fim de entender a percepção e o sentimento dos
munícipes para com o valor dos bens patrimoniais, passados mais de 30 anos do tombamento
definitivo do conjunto.

2 – Procedimentos Metodológicos
Segundo Gil (2008, p. 121), a aplicação de questionário consiste na ‘‘técnica de investigação
composta por um conjunto de questões que são submetidas aos entrevistados com propósito
de obter informações’’. Assim, sua aplicabilidade permite a obtenção de dados de forma
eficiente, isto é, transforma variáveis qualitativas (a percepção da população) em variáveis
quantitativas (dados estatísticos/gráficos), como também permite verificar a realidade sem a
interferência ou ‘‘subjetivismo dos pesquisadores’’ (GIL, 2008, p. 56).
De acordo com o cálculo de amostragem realizado, a pesquisa deveria contar com 267
participantes em sua aplicação, partindo de uma população estimada de 13.045 habitantes em
Antônio Prado no ano de 2020, com uma margem de erro de 5% e confiabilidade de 90%. Em
razão dos riscos e cuidados em relação à pandemia COVID-19, toda a abordagem sistêmica
aconteceu de forma on-line. Para tanto, foi utilizada a plataforma “Formulários Google”, através
da técnica metodológica Snowball (“Bola de Neve”). Essa metodologia caracteriza-se como uma
forma de amostragem não probabilística, utilizada em pesquisas sociais onde “os participantes
iniciais de um estudo indicam novos participantes, que por sua vez, indicam novos participantes
e assim sucessivamente, até que seja alcançado o objetivo proposto” (BALDIN; MUNHOZ, 2011,
p. 4). Um projeto de pesquisa foi submetido à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP-
IMED), com o intuito de salvaguardar os direitos e a dignidade dos sujeitos da pesquisa, além de
reconhecer que a proposta é eticamente adequada. Recebeu parecer de aprovado pelo Comitê
em dezembro de 2020, iniciando a aplicação do questionário em janeiro de 2021. Até o
momento da redação deste trabalho, 204 participantes responderam.

314
3 – De volta ao passado: os Pradenses e o processo de tombamento
Partimos, num primeiro momento, de um breve histórico do processo de tombamento do
conjunto para sermos capazes de compreender “os ecos de silêncio” da comunidade Pradense
em relação ao patrimônio cultural da cidade.
O ato do tombamento pode ser executado por ofício, quando incide sobre bens públicos, isto é,
quando as autoridades reconhecem o valor de tal bem público e propõem o tombamento ao
proprietário (união, estado ou município); voluntário, quando incide sobre bens particulares,
mas com a anuência e iniciativa dos próprios proprietários; e compulsório, quando incide sobre
bens particulares por decisão das autoridades, mas contra a vontade dos proprietários. No caso
de Antônio Prado, em 1985 foi realizado o primeiro tombamento de uma edificação isolada de
arquitetura civil da imigração italiana pelo SPHAN (atual IPHAN) - a Casa da Neni, inscrita no
Livro do Tombo de Belas Artes sob o número 572, que teve caráter de anuência por parte do
proprietário do imóvel à época, Valdomiro Bocchese. A partir de então, iniciaram-se estudos e
análises sobre as demais casas localizadas em Antônio Prado.
O estudo do tombamento do conjunto atingiu maior relevância no ano de 1986, quando se
realizou na cidade o Seminário Nacional de Arquitetura Popular Brasileira, cujo tema principal
era “As produções das correntes imigratórias europeias tardias”. Durante o evento, o valor do
acervo foi reconhecido, sendo considerado como patrimônio cultural da coletividade brasileira.
Tal fato tem sido considerado o primeiro passo para que se efetivasse o decreto de tombamento
(ROVEDA, 2009; BUCHEBUAN, 2010). Para tanto, no ano de 1987, acontece o tombamento
provisório das outras 47 edificações de caráter compulsório, realizado por iniciativa do SPHAN,
sem a anuência dos proprietários e através de edital (ofício). Em 1988 é decretado o
tombamento definitivo, com parecer favorável por parte do Conselho Consultivo. Por fim, a
inscrição do conjunto no Livro do Tombo Histórico e no Livro do Tombo Arqueológico,
Etnográfico e Paisagístico acontece em 10 de janeiro de 1990 (Figura 01) (ROVEDA, 2009;
BUCHEBUAN, 2010).

315
Figura 01: Trecho do Centro Histórico e Paisagístico de Antônio Prado, 2010.

Fonte:<http://centroculturalpadreschio.blogspot.com/search/label/Objetos%20Contando%20Hist%C3%
B3ria>. Acesso em: jan. 2021.

Torna-se necessário considerar que o tombamento se deu sob o olhar e o entendimento de


atores sociais distintos. De um lado, estudantes, arquitetos e urbanistas, técnicos profissionais
da área, historiadores preservacionistas e demais visitantes que conceberam significado e
atribuíram valor à produção cultural popular dos imigrantes italianos. De outro, a comunidade.
Nesse caso particular, o que era considerado de valor para os agentes do campo do patrimônio
- os exemplares populares, a madeira, a prosperidade da cidade numa época passado e o
isolamento que conservou o acervo preservado, não era devidamente reconhecido e valorizado
pelos Pradenses. Nessa conjuntura, uma decisão autocrática, sem consulta popular à
comunidade, gerou problemas advindos da falta de informações sobre o assunto e das
incertezas sobre a posse do bem (ROVEDA, 2005). Para tanto, o tombamento foi motivo de
tensões latentes, coletivas ou individuais, simbolizado pelo debate instaurado “se as casas são
antigas e representativas ou se não passam de casas velhas, sem valor histórico” (BUCHEBUAN,
2010, p. 43).
Particularmente quase toda a comunidade, num primeiro momento, expressou reações de
rejeição e hostilidade à decisão final e definitiva do tombamento. A partir de 1992, todavia,
identificaram-se indícios de aceitação e adaptação à nova situação imposta. Em especial, um
grupo influente de habitantes favoráveis se apropriou da ideia de “cidade histórica e cultural” e
contribuiu gradualmente e significativamente para com uma ressignificação cultural
(BUCHEBUAN, 2010). A seguir abordar-se-á as análises e os resultados da aplicação do
questionário, referente a percepção de uma parcela dos moradores na contemporaneidade para
com os bens patrimoniais da cidade de Antônio Prado.

4 – Análises e resultados da aplicação dos questionários


O questionário foi composto por perguntas semiabertas e fechadas, subdivididas em três
dimensões de análise específicas. Inicialmente procurou-se compreender e identificar o perfil

316
dos moradores que responderam à pesquisa. Para tanto, em relação ao gênero, 78,90% foram
participantes do público feminino, enquanto apenas 21,10% do público masculino. No que diz
respeito à faixa etária, foi possível englobar respondentes de diferentes idades, o que permitiu
uma visão ampla para com a pesquisa. Todavia, concentrou-se maior porcentagem entre as
idades de 31 e 40 anos (32,40%) e dos 21 aos 30 anos (27%), o que sugere facilidade de acesso
às comunicações e tecnologias entre essas faixas etárias, em razão do questionário ter sido
aplicado de forma on-line.
A próxima pergunta procurava caracterizar qual a nacionalidade predominante de origem da
família do participante, ressaltando que, o município de Antônio Prado foi colonizado, na sua
grande maioria, por imigrantes italianos e os bens patrimoniais referem-se à manifestação de
aculturação produzida por esses mesmos imigrantes. Dos 204 respondentes, 184 (90,20%)
possuem origem predominante “italiana”, sendo mesclados 42 (20,60%) à origem “brasileira”,
9 (4,4%) à origem “alemã”, 7 (3,4%) à origem “portuguesa” e 3 (1,5%) à origem “polonesa”,
ainda, 2 participantes (1,0%) se autodenominaram como de origem “diversa” ou “latina” (Figura
02).
Ainda nesta etapa, levou-se em consideração a profissão/grau de escolaridade dos
participantes, que integrou um número diferenciado de aportes: ensino fundamental; ensino
superior completo e incompleto; estudantes; profissionais autônomos; servidores públicos;
aposentados, entre outros, o que contribuiu significativamente para com o resultado das
análises em diferentes percepções e perspectivas, justamente por não seguir um mesmo padrão
de respondentes.

Figura 02: Resultados obtidos referente à origem predominante dos moradores de Antônio Prado.

Fonte: Autores, 2021.

317
Posteriormente, na segunda dimensão de análise, investigou-se sobre a relação específica entre
o entrevistado e o município. A primeira pergunta almeja saber se o participante se caracterizava
como morador nascido em Antônio Prado, e se não, de onde é e há quanto tempo mora na
cidade. Das 204 respostas, 169 (82,84%) são moradores naturais, onde o maior número deles
permanecem residindo no município desde o seu nascimento. Os outros 35 (17,16%) são, na sua
grande maioria, nascidos em municípios vizinhos de Antônio Prado, integrantes da “Região
Colonial Italiana” (RCI). Em relação ao tempo em que moram na cidade, há uma variância de 01
ano até 56 anos, o que denota a relatividade da faixa etária dos indivíduos da pesquisa.
A segunda pergunta pontua se o morador tem interesse em permanecer na cidade, e se não,
por qual motivo, a fim de compreender as perspectivas dispostas em torno de Antônio Prado.
153 (75%) responderam que gostariam de continuar residindo em Antônio Prado, enquanto 48
(23,53%) responderam que não gostariam, acrescentando que, pelo motivo da cidade ser
“antiga”, não possui futuro e nem oportunidade para os jovens; “uma cidade sem evolução,
parada no tempo”; ou ainda que, “o tombamento gerou atraso no seu desenvolvimento”.
Apenas 3 (1,47%) responderam que ainda não haviam decidido.
A terceira pergunta visa reconhecer o nível de conhecimento do morador sobre a história e a
formação do município, seja por motivos políticos, históricos, socioculturais (imigrantes,
questões étnicas) ou geográficos (paisagem), relevante para sustentar a base para as respostas
das perguntas seguintes. As respostas foram positivas, indicando que a maioria dos
respondentes sabem “muito bem”, ou pelo menos “o necessário” (Figura 03).

Figura 03: Resultados obtidos referente ao conhecimento do morador sobre Antônio Prado.

Fonte: Autores, 2021.

318
A quarta pergunta pondera se o morador considera a cidade de Antônio Prado diferente das
demais da região, o intuito é o de observar a percepção da comunidade em relação ao grande
número de bens patrimoniais produzidos na cidade. Para tanto, 172 (84,31%) responderam que
“sim”, indicando como grande diferencial a arquitetura única das casas tombadas, a bela
paisagem cultural e natural, o patrimônio imaterial – tais como a cultura italiana, as crenças, a
comida típica e o modo Italian de falar, entre outros. Dos 32 (15,69%) que responderam “não”,
alguns complementaram que a cidade apenas segue as particularidades semelhantes dos
demais municípios da RCI. Na sequência, solicitou-se que o participante destacasse
aspectos/características significativos da cidade. O objetivo era fomentar dados para a análise
das referências culturais mais relevantes para a comunidade (Figura 04).

Figura 04: Resultados obtidos referente a aspectos/características significativos de Antônio Prado.

Fonte: Autores, 2021.

A pergunta seguinte: “Sobre esses aspectos, com qual ou quais você se identifica? Por quê?”,
almejou-se analisar o grau de pertencimento do morador em relação aos
aspectos/características mencionados na resposta anterior. Foi possível perceber que a
representatividade indicada em cada resposta expressava, de fato, o legado, as memórias e o
sentimento de identificação do morador para com aquele aspecto/característica. Apenas 4
(1,96%) participantes responderam que não se sentem representados pelas características que

319
citaram, enquanto os outros 200 (98,04%) responderam que se sentem representados por,
praticamente, todas as características que citaram.
Na terceira dimensão de análise, as perguntas procuravam caracterizar, especialmente, a
relação entre o participante e o seu conhecimento sobre o patrimônio cultural de Antônio Prado,
o que foi direcionado desde a primeira pergunta: “Você sabe por que há tantos casarões na
cidade?”. Nesse caso em particular, 28 respostas (13,73%) apontaram como “não”, à medida
que 176 respostas (86,27%) apontaram como “sim”. Para tanto, quem respondeu “não”, não
apresentou maiores justificativas, e quem respondeu “sim”, recordou logo das referências de
aculturação italiana dos imigrantes e a arquitetura produzida por eles.
O resultado da primeira pergunta expressa relevância para com as duas questões seguintes, já
que quando questionados, a grande maioria dos participantes respondeu sobre as casas e o
processo de tombamento ocorrido sobre elas pelo IPHAN. Na pergunta “Você sabe que esses
casarões foram tombados?”, 202 (99%) responderam que “sim” e apenas 2 (1%) responderam
que “não”. Logo, na pergunta posterior “Você sabe o significado de tombamento”, 196 (96,1%)
sabiam o significado, enquanto apenas 8 (3,9%) não sabiam o significado.
Para quem respondeu “não”, uma segunda folha contendo uma breve explicação do que
significa tombamento foi apresentada, servindo como base para a próxima pergunta “Você
acredita ser necessário preservar essas construções/casarões da sua cidade?”. 175 (85,78%)
responderam ser necessário preservar os bens, destacando que dessa forma se mantém atenção
especial à expressão da arquitetura daqueles casarões, que constitui, segundo a maioria dos
respondentes, a identidade e a cultura da comunidade, bem como o respeito à sua história.
Outros 22 (10,79%) participantes responderam como “sim e não”, acrescentando que acreditam
ser necessário preservar as casas, mas, ao mesmo tempo, o número de edificações tombadas
deveria ser menor, considerando o fato de acreditarem que o conjunto composto por elas
impede a evolução e o desenvolvimento da cidade.
Na última pergunta buscou-se compreender se os moradores participam de atividades e nas
tomadas de decisões sobre a cidade e sobre essas construções/casarões. Dos 204 participantes,
178 (87,3%) responderam que “não” e 26 (12,7%) responderam que “sim”. Por consequência,
foi perguntado se os mesmos 178 gostariam, então, de participar. Dentre esses, 87 (42,6%)
argumentaram que não gostariam, resultando num total de 117 (57,4%) que responderam que
gostariam (Figura 05).

320
Figura 05: Resultados obtidos referente ao interesse dos moradores na tomada de decisões para com a
cidade/patrimônio.

Fonte: Autores, 2021.

5 – Considerações finais
O centro histórico e paisagístico de Antônio Prado tem sido considerado como o primeiro
conjunto urbano e arquitetônico tombado representativo do legado cultural da imigração
italiana no Brasil. Trata-se, ainda, de uma iniciativa pioneira do SPHAN (atual IPHAN), órgão
federal de proteção ao patrimônio cultural brasileiro no que se refere a conjuntos urbanos
tombados, bem como se insere numa época de ampliação de conceitos e práticas do patrimônio
cultural. O tombamento consistiu numa tentativa de reconhecer a diversidade que constitui a
cultura brasileira, tanto material, quanto imaterial, natural e seu patrimônio ambiental urbano.
O presente trabalho procurou analisar o patrimônio cultural da cidade e o silêncio de sua
comunidade em relação ao valor do conjunto construído. Para tanto, através de pesquisa
realizada com uma parcela dos moradores foi possível observar que, em 2021, passados mais
de 30 anos do processo de tombamento, a cidade caminha lentamente para uma reconciliação
com a sua história. Todavia, os resultados das análises indicam que ainda não há pleno consenso
entre os moradores de que tal ato se caracteriza como um aspecto relevante para a cidade. O
principal eixo de conflito parece ser a desarticulação entre preservação e ordenação urbana.
Enquanto alguns moradores reconhecem e valorizam o patrimônio reconhecido da coletividade
– as casas tombadas, a bela paisagem cultural e natural, o patrimônio imaterial (a cultura
italiana, o artesanato, as festas, a comida típica e o modo Italian de falar) – outra grande maioria
ainda o considera como um legado triste, velho e imposto pelo passado que impossibilita o

321
desenvolvimento e a dinamicidade do núcleo urbano central, isto é, a substituição das casas
históricas por construções novas. Em 1996, com a implantação das Diretrizes para o
Disciplinamento do Entorno dos Bens Tombados pelo IPHAN, a cidade de Antônio Prado
manteve a sua “forma do passado”, o que os moradores consideram como uma urbe “sem
evolução, atrasada e isolada, sem oportunidades e perspectivas futuras”.
Por esse viés, foi confirmado em análise que ocorre um relativo interesse e envolvimento dos
cidadãos no debate sobre o direcionamento da política patrimonial local e a atuação das
políticas administrativas municipais referentes a proteção desse patrimônio. Essa situação faz
com que as responsabilidades do patrimônio recaiam, em grande medida, sobre o IPHAN, que
devido ao significativo número de edificações não consegue administrar a gestão do patrimônio
em todas as suas dimensões.
Entende-se que a preservação de um patrimônio está intimamente ligada ao conhecimento e
sentimento de pertencimento que se tem dele. O movimento de recuperar, valorizar e
ressignificar a sua trajetória é fundamental para a construção coletiva de uma nova percepção
das ações educativas nesse campo, a fim de reconhecer a responsabilidade de todos pela sua
salvaguarda.
Relevante ressaltar ainda que a continuidade das práticas de “alfabetização cultural” na cidade
é indispensável, de modo que a comunidade (re)descubra esses valores e fortaleça os laços de
memória e identidade, mantendo aquele patrimônio vivo e ativo no cotidiano Pradense.
Finalizando, reforça-se a necessidade de futuros trabalhos e reflexões teóricas que auxiliem na
elaboração de normativas e de políticas públicas mais eficientes, com o intuito de buscar
respostas para a análise de (como) inserir o patrimônio cultural no desenvolvimento urbano
sustentável, apontando para modelos integrados de gestão e de estudos multidisciplinares.
Ainda há um longo caminho a percorrer.

Referências
BALDIN, Nelma; MUNHOZ, Elzira M. Bagatin. Snowball (Bola de Neve): uma técnica metodológica para
pesquisa em educação ambiental comunitária. In: X Congresso Nacional de Educação – EDUCERE, 2011,
Curitiba. Disponível em: <https://educere.bruc.com.br/CD2011/pdf/4398_2342.pdf>. Acesso em: 18 fev.
2021.

BUCHEBUAN, Terezinha de Oliveira. Os velhos casarões de Antônio Prado: processos culturais,


patrimônio e conflito. Dissertação (Mestrado em Letras, Cultura e Regionalidade) - Universidade de
Caxias do Sul, Programa de Pós-Graduação em letras, cultura e regionalidade. Caxias do Sul, 2010.

GIL, Antônio Carlos. Métodos e Técnicas de Pesquisa Social. São Paulo: Atlas, 2008.

322
ROVEDA, Fernando. Memória & identidade: patrimônio histórico e artístico nacional. Porto
Alegre: Metrópole, 2005.

Agradecimentos
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), ao Programa de
Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Particulares (Prosup) e à Faculdade
Meridional – IMED.

323
OS ESPAÇOS DE OBSOLECÊNCIA E INDIFERENÇA: a questão dos antigos espaços
ferroviários na configuração das áreas centrais e de esquecimento social.
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Arkana Kelly Silva Costa


Arquiteta e Urbanista, doutora em Saneamento e ambiente; Universidade Paulista;
arkanacosta@gmail.com

Ricardo Alexandre da Silva


Arquiteto e Urbanista, doutor em Gestão Urbana; Universidade Paulista;
ricardosilvaarq@gmail.com

A substituição do transporte ferroviário para o rodoviário, que aconteceu no Brasil a partir da


década de 1950, ocasionou profundas mudanças morfológicas e sociais em diversas cidades
brasileiras. Um dos resultados deste processo foi a desvalorização do entorno antes ocupado
por equipamentos industriais e de suporte ao funcionamento ferroviário que foi sendo
degradado gerando espaços de exclusão onde populações marginalizadas se instalaram,
reforçando o processo de invisibilidade delas. Este artigo objetiva apresentar os resultados de
propostas de intervenção urbana desenvolvidas no curso de Arquitetura da Universidade
Paulista, dentro de disciplinas de Projeto Urbano, busca mostrar as diversas possibilidades de
intervenção nesses edifícios e tecidos urbanos, bem como das vantagens de trabalhar estas
temáticas dentro destas disciplinas.
Palavras-chave: morfologia urbana, ferrovias, invisibilidade social, intervenção urbana,
Paisagismo.

The substitution of rail to road transport, which took place in Brazil in the 1950s, caused profound
morphological and social changes in several Brazilian cities. One of the results of this process was
the devaluation of the surroundings previously occupied by industrial equipment and support for
the railway operation, which has been degraded, generating spaces of exclusion where
marginalized populations have settled, reinforcing their invisibility process. This article aims to
present the results of urban intervention proposals developed in the Architecture course at
Universidade Paulista, within Urban Design disciplines, seeks to show the various possibilities of
intervention in these buildings and urban fabrics, as well as the advantages of working with these
themes within these subjects.
Keywords: urban morphology, railroad, social invisibility, urban intervention, landscape plan.

324
1 – Introdução
Campinas cidade importante na mobilidade do interior do estado de São Paulo chegou a ter no
auge da era cafeeira, quatro companhias ferroviárias operantes, fazendo-a ser cruzada por
diversas linhas férreas. Com o enfraquecimento dessa atividade econômica e a mudança de
modal de transporte ferroviário para rodoviário, fez surgir grandes áreas abandonadas que
foram apropriadas por populações marginalizadas (usuários de drogas e profissionais do sexo).
Em contraponto, na atualidade, é perceptível uma busca pela requalificação dessas áreas
através do tombamento dos edifícios mais importantes das companhias.
Há o incentivo municipal em aumentar a densidade populacional e a construída nessas regiões
e um novo modal, o BRT (bus rapid transit), está sendo implantado onde antes trafegavam os
trens. Porém não existem, até o momento, propostas para ocupação dos grandes vazios gerados
pelo declínio das ferrovias nas proximidades das suas estações (tombadas), que receberam o
uso de centros culturais com pouca interação com a comunidade.
Dado isso e no intuito de apresentar aos estudantes conceitos como quadra aberta, cidade
compacta e a integração de edifícios tombados às atividades da cidade, foi proposto, em
disciplinas de Projeto urbano e paisagismo, da Universidade Paulista (UNIP), o desenvolvimento
de projetos de ocupação dessas áreas no Município de Campinas-SP.
Assim foi trabalhada inicialmente a área mais central (Estação Cultura - antiga Cia. Paulista) e
depois uma área periférica ao centro (Estação Guanabara- antiga Cia. Mogiana), que além das
particularidades listadas, apresenta em seu entorno um bairro projetado ao estilo cidade jardim,
que acrescentando outros elementos que foram discutidos nas análises.
Como resultados os alunos propuseram a ocupação de quadras priorizando o pedestre,
incentivando os usos diuturnos e criando formas de romper com os limites gerados pelos vazios
existentes, levando a uma maior integração da população, além de uma melhor conexão dessas
áreas ao tecido urbano dos bairros.

2 – As ferrovias e a cidade de Campinas


Campinas desde sua formação já trazia a sua importância quanto a mobilidade dentro do estado
de São Paulo. Quando o governador da capitania Morgado Mateus decide transformar aqueles
locais de pouso (os campinhos) em um distrito de Jundiaí, quer consolidar a importância deste
sítio para a conquista do interior do estado de São Paulo e o caminho dos Goiases. Com o tempo
essa tendência da cidade vai evoluir e a região vai se tornar um importante polo distribuidor da

325
produção de café da região, o que vai elevar a sua importância no estado, chegando, por volta
dos anos 1870, mais importante e urbanizada que a própria capital do Estado a cidade de São
Paulo (SANTOS, 2002).
É nesse período que chegam à cidade as linhas férreas, modal que será importantíssimo até
meados do século XX, quando gradativamente tal meio de locomoção será substituído pelo
sistema rodoviário. No auge das ferrovias no estado o entroncamento ferroviário Campineiro
era formado por cinco companhias: Cia. Paulista instalada em 1872, Cia. Mogiana (1875), Carris
Funilense (1890), Férreo Campineiro (1894) e pôr fim a Cia Sorocabana que se instalou na cidade
em 1914 (COSTA,2010).
Essas diferentes companhias produziram na malha urbana da cidade um emaranhado de
conexões que a cruzavam e que criavam diferentes tecidos urbanos, delimitados por esse
traçado implantado, como pode ser observado na Figura 01 onde vemos o mapa de Campinas
em 1929 com as linhas férreas já consolidadas.
A dinâmica imposta pelo transporte ferroviário e a importância de uma
Estação Ferroviária na cidade impulsionaram a expansão da área urbanizada,
consolidando novos bairros próximos ao centro e em torno dos caminhos de
interligação regional (COSTA,2010,22).

Figura 01: Mapa de Campinas 1929. Em destaque bairros que se desenvolveram pós ferrovias: 1. Vila
Industrial, 2. Parque Industrial, 3. São Bernardo, 4. Bonfim, 5. Castelo, 6. Jardim Guanabara

Fonte: Prefeitura Municipal de Campinas, Campinas, 2009. Alterado por Costa, 2010

326
3 – As estações ferroviárias como elemento catalizador da ocupação urbana
É possível perceber o efeito da instalação das linhas férreas no tecido urbano de Campinas ao
visualizarmos dois exemplos: a diferenciação do tecido urbano da região central e do bairro Vila
Industrial; e a região que margeia a atual Avenida Barão de Itapura (Figura 02). No primeiro
exemplo o elemento catalisador foi a instalação da estação ferroviária da Cia. Paulista, que
focava suas funções além da distribuição de bens, a mobilidade de passageiros. Esta foi instalada
no limite da área urbana a partir da qual se alocava tudo aqui que a Cidade queria
distanciamento, como cemitérios, matadouros e afins. É nesse lado, do indesejado, que é
instalado o bairro Vila Industrial, com o intuito de abrigar aqueles que trabalhariam na ferrovia
e nas indústrias que se instalaram a sua volta. O desenho do bairro vai seguir um desenho
convergente com a linha férrea, diferente do desenho da região central que converge para o
primeiro desenho urbano da cidade que irradia dos originais caminhos dos bandeirantes. Além
disso, segundo Badaró (1996), a estrada de ferro além de reforçar a tendência industrial e
operária, fez com que a escolha desse local para moradia dos ferroviários e seu desenvolvimento
ultrapassasse os limites físicos e territoriais, determinado uma “vocação proletária” nessa
porção da cidade. Este desenho deixa muito claro essa desigualdade entre as duas regiões tão
próximas e tão distantes do ponto de vista social.

Figura 02: Imagens de satélite localizando as estações ferroviárias e bairros circundantes. A. Estação
Guanabara (Cia. Mogiana), B. Estação Cultura (Cia. Paulista). 1. Jardim Guanabara, 2. Vila Itapura, 3.
Centro, 4. Vila Industrial.

Fonte: Google Earth, 2021. Modificada pelos autores, 2021.

327
O segundo exemplo foi a instalação da Estação Guanabara que fazia parte da Cia. Mogiana, outra
grande companhia que atuava na cidade e que instalou sua estação na região do atual bairro
Jardim Guanabara, na intenção de uma maior proximidade as fazendas de café e a distribuição
direta desta produção no estado. Aqui também se nota a diferenciação do tecido urbano entre
as duas partes (acima e abaixo da linha férrea) de forma segregadora.
A diferença é que agora os novos tecidos criados serão voltados para classes sociais mais
abastadas, diferente do que aconteceu na região central da cidade. Com o declínio da produção
do café as antigas fazendas de forma gradativa vão sendo transformadas em loteamentos para
uma classe média. Dentro desse contexto, novas tipologias de desenho urbano que vinham se
tornando tendência no estado de São Paulo à época (começo do século XX), como as cidades
jardim.
Segundo Mumford (1998), o antigo subúrbio romântico era um esforço de classe média no
sentido de encontrar uma solução privada para a depressão e a desordem da metrópole imunda:
uma efusão de gosto romântico, mas também uma fuga à responsabilidade cívica e à previsão
municipal. O tipo antigo de subúrbio, que dependia principalmente da estrada de ferro, tinha
uma vantagem especial que só pode ser plenamente avaliada depois que desapareceu. Tais
subúrbios, enfileirados ao longo de uma ferrovia, eram descontínuos e convenientemente
distanciados e, sem a ajuda da legislação, eram limitados tanto em população quanto em
superfície.
Este desenho de cidade em São Paulo foi introduzido com a Cia. City (City of São Paulo
Improvements and Freehold Company Ltd), responsável pela criação de bairros como Jardim
América e Jardim Pacaembu. O bairro do Jardim América foi o primeiro a ser loteado a partir de
1913. Seu estudo inicial foi desenvolvido por Barry Parker e Raymond Unwin. Seu plano é de um
loteamento-jardim, longe da ideia de autossuficiência da Cidade-Jardim e mais próximo de um
subúrbio com alguma infraestrutura, como Hampstead Garden Suburb de 1917 em Londres, que
também foi projetado pelos dois arquitetos (OTTONI, 1996).
A Companhia City seguirá implantando este padrão de loteamentos na cidade, alcançando
sucesso comercial. Este padrão também começará a ser adotados nas cidades do interior por
outras companhias de habitação, como em Campinas o Jardim Guanabara que foi instalado em
uma região antes destinada ao cultivo de café e próxima a Estação Guanabara.
Segundo Scarabelli (2004), a Estação Guanabara, vai adentrar o século XX como um ponto de
concentração de pessoas e irradiadora de desenvolvimento, porém com o declínio da produção

328
do café, a partir de 1929 e depois com a concorrência com o transporte rodoviário, a partir dos
anos 1950, vai acentuar o lento e irreversível processo de desativação dos ramais da Companhia
Mogiana, com isso, o movimento constante da Estação Guanabara se extingue, sendo inevitável
a sua desativação em 1974.
Com o declínio das ferrovias as áreas foram sendo abandonadas e surgiram grandes cicatrizes
urbanas nestas duas regiões maiores dentro da cidade, levando a municipalidade ainda entre as
décadas 1930 e 1950 a adotar medidas de urbanização na cidade, derivando na criação do Plano
de Melhoramentos Urbanos, criado por Francisco Prestes Maia em 1938, que contemplava
todos os aspectos do município, o que elencou um Plano Sumário do Município e o Plano da
Cidade (BADARÓ, 1996). Segundo Zaparoli (2010), esses planos incidiram diretamente na
articulação de um sistema viário e num tecido urbano propicio para a circulação de veículos e
que influenciou a criação de bairros como o Jardim Guanabara.
Com isso o Jardim Guanabara vai resultar novamente limite do tecido urbano original da cidade
de Campinas, resultando em uma quadricula que orienta para o centro, núcleo inicial e o novo
tecido, cidade jardim, indo em direção norte do município. Aqui a segregação se dará a partir da
Avenida Barão de Itapura, que outrora recebia as casas dos produtores de café e pessoas das
classes mais abastadas, e que a partir deste Limite se localizavam as casas dos trabalhadores e
os pequenos comércios que serviam ao centro da cidade. Com o tempo e evolução da cidade
essa região de loteamentos residenciais foi sendo substituída por áreas de serviço,
principalmente serviços de saúde, como clínicas e centros médicos e a população de classe
média e alta se deslocaram para os loteamentos fechados e condomínios residenciais
horizontais localizados a margem do município, próximo à rodovia D. Pedro I, e no distrito de
Sousas e Joaquim Egídio (atual Área e preservação ambiental de Campinas).
Na região outrora destinada as habitações dos trabalhadores foram sendo substituídos por
condomínios verticais de alta densidade, voltados principalmente para a classe média, jovens
famílias e solteiros. Aproveitando-se dessa proximidade como a região central e os serviços
oferecidos ao redor.

4 – Os excluídos do abandono das ferrovias


Por volta dos anos 1890 a elite se instalou nas proximidades da Avenida Andrade Neves, a via
foi remodelada conforme o desenho europeu, dos bulevares, porém com o declínio da ferrovia
a região foi sendo abandonada, e tornou-se lugar dos marginalizados. Lá se instalaram hotéis de

329
classes mais baixas, até hoje utilizados como pontos de prostituição, questão que foi reforçada
com a instalação nessa Avenida da antiga Rodoviária da cidade, elemento que reforçava a
vocação da região como local de entrada em Campinas. Nos anos 2000, porém a rodoviária foi
deslocada para a Vila Industrial e o edifico foi implodido, contribuindo com um novo terrain
vague na cidade, além de colaborar ainda mais com a precarização do lugar, quando vemos
vários serviços se deslocando desta região.
Embora nos anos 1990 grande parte das prostitutas de Campinas tenham sido deslocadas para
a região do bairro Itatinga (RAMOS, 2017) o centro ainda concentra parte destes meretrícios,
principalmente nas vias próximas a antiga Estação da Cia. Paulista e da antiga rodoviária. Porém
aqui há uma precariedade nas condições de trabalho destas profissionais do sexo, diferente do
que acontece no jardim Itatinga.
A região central de Campinas é marcada por uma crescente gentrificação social e espacial,
resultante de antigas atividades de “higienização social” como a chamada “Operação Limpeza”
que consistiu na expulsão das áreas de prostituição tradicionais da cidade, a partir dos anos
1950, num processo de “moralização espacial” em favor de novos projetos imobiliários que
vieram a favorecer as classes mais abastadas. Frente a isso, a dificuldade de sobreviver no centro
tornou-se impeditivo para as profissionais do sexo, criando inclusive um imperativo social
dentro da atividade, onde as garotas mais novas ficam no bairro Itatinga enquanto as mais
antigas utilizam o espaço social do centro para esta atividade (AUGUSTO; OLIVEIRA e
GUIMARÃES, 2019).

5 – Propostas de intervenção urbana para as áreas próximas as antigas Estações Ferroviárias,


como um método da prática de desenho urbano no curso de Arquitetura e Urbanismo
Todos os anos dentro das disciplinas de projeto urbano no segundo ano do curso de Arquitetura
da Universidade Paulista, Campus Swift-Campinas (Projeto Urbano e Paisagismo-conceito e
história do paisagismo- PUP-CHP e Projeto Urbano e Paisagismo-Espaços Abertos- PUP-EA)
escolhe-se uma região da cidade para fazer a análise e posterior intervenção com os alunos.
PUP-CHP é o primeiro contato que os alunos têm com questões do urbanismo na prática. Eles
anteriormente tiveram uma disciplina de história do urbanismo, que versa principalmente para
a criação do urbanismo moderno e uma análise sobre o urbanismo no século XX e começo do
século XXI, assim estimula-se que este primeiro contato com o projeto urbano seja dado em
uma região já consolidada, possibilitando intervenção urbana no cotidiano da cidade. PUP-EA, é

330
a disciplina que seque, onde a ênfase é dada nos dois tipos de espaços abertos(livres): os espaços
de circulação e os permanência. Aqui estimula-se uma intervenção na escala de um bairro e
busca-se como objeto de estudo áreas urbanas propícias a expansão e ao aumento de densidade
populacional.
Devido a todos esses fatores e os anteriormente explanados, escolheu-se no ano de 2019, como
locais de estudo e intervenção, respectivamente as áreas circunvizinhas a Estação da Cia.
Paulista (Estação Cultura) e a Estação da Cia. Mogiana (Estação Guanabara). Assumiu-se como
base conceitual a utilização da quadra aberta como definida por Christian de Portzamparc
(1997):
[...] a quadra definiu a repartição do cheio e do vazio, a relação entre o edifício
e a cidade. É preciso redefinir essas relações. E é esta indagação que me
conduziu ao esquema de quadra aberta, o qual sintetiza, em uma única
forma, esta dupla herança da 1ª e 2ª Eras. A quadra aberta permite reinventar
a rua: legível e ao mesmo tempo realçada por aberturas visuais e pela luz do
sol. Os objetos continuam sempre autônomos, mas ligados entre eles por
regras que impõem vazios e alinhamentos parciais. Formas individuais e
formas coletivas coexistem (PORTZAMPARC, 1997).

Esta escolha baseia-se como dito anteriormente, nas tendências pós-modernas de urbanismo,
que são enfatizadas na disciplina de teoria anterior ao de projeto urbano. Ao mesmo tempo esta
primeira disciplina é também uma disciplina de paisagismo e de conceitos de paisagismo. Em
PUP-CHP, o aluno é introduzido as escolas da jardinocultura, e faz análise como esta prática
avança do campo do privado e na contemporaneidade atinge a escala da cidade. Há, portanto a
integração destes dois saberes desenho urbano e desenho da paisagem, com resultados
positivos nesta junção. Na disciplina posterior há a introdução da discussão dos espaços públicos
abertos, e da proposição de uma cidade voltada para as pessoas e para o pedestre, onde os
alunos são estimulados a criarem espaços abertos de qualidade, não sendo apenas locais de
passagem, mas também de encontro e convivência no contexto urbano.
Um dos grandes obstáculos das disciplinas é quebrar os pressupostos do que seria viver em
cidade para a maioria dos estudantes, onde parte deles é oriunda da classe média, e muitos
vivenciam o morar intramuros, longe da região central, como única vivência do espaço urbano.
Mesmo aqueles de classes mais baixas vêm do modelo de conjuntos habitacionais periféricos
onde os espaços públicos não estimulam o viver em comunidade, sendo estes introduzidos nas
áreas residuais da implantação do complexo de habitações. Temos então estes estudantes sem
uma “vivência da cidade”, acostumados aos espaços excludentes e segregadores, onde os

331
shopping centers são reconhecidos, por eles, como os únicos espaços de convívio comunitário
na cidade. Assim é dificultoso, para parte deles, pensar uma cidade sem muros ou em espaços
públicos compartilhados. Experiência esta que vai influenciar diretamente em algumas tomadas
de decisão destes alunos e em certa resistência nestes em pensar a cidade para as pessoas.
No processo da disciplina PUP-CHP, são realizadas os levantamentos e visita de campo, cada
grupo de aluno fica responsável por levantar uma quadra da cidade (na região escolhida) e
observar como esta está integrada ao contexto da cidade. Estimula-se que croquis sejam
produzidos, levantamentos fotográficos, além dos mapas já conhecidos no levantamento
urbano, como de uso do solo e gabaritos de altura. A intenção é que os alunos se apercebam da
morfologia da cidade e o que a constitui. Por muitas vezes é a primeira vez que estes alunos
estão andando pela cidade, de forma literal, mesmo tendo vivido toda sua vida nela. Por serem
alunos do segundo ano do curso, também falta uma certa maturidade para perceber o que de
fato está sendo solicitado deles e o que se observa é que apenas parte deles conseguem
estabelecer uma experiência real do viver a cidade, enquanto outros somente separam em
tarefas aquilo que é solicitado e realizam atividades de forma automática. Há uma resistência
à própria matéria Urbanismo, visto como uma coisa menor, algo que tem que ser feito porque
é solicitada a conexão entre as disciplinas projetuais de Urbano e de Arquitetura, dentro do
curso.
Na sequência dessa primeira etapa foi realizado um exercício onde todos os levantamentos
foram apresentados sincronicamente, e assim foi possível fazer essa leitura do território,
buscou-se através da discussão que os alunos percebessem para quem e como deve ser feita a
intervenção. Daí também se gerou um conflito, como existe o acordo que o projeto que foi
realizado na disciplina de projeto arquitetônico deveria também constar no programa do projeto
de urbano, muitos tiveram dificuldade de enquadrar estas edificações, geralmente imaginadas
dentro de um contexto intramuros, com um programa multifuncional, e os espaços públicos
criados dentro do residencial em geral vão apenas dar conta de um programa comum em
edificações intramuros como salões de festa, piscina, e grandes áreas de estacionamento.
Desconsiderando o contexto urbano onde tais edificações seriam inseridas. Já em PUP-EA, os
alunos já estavam acostumados aos processos desenvolvidos na disciplina anterior e os
levantamentos foram expandidos, realizaram entrevistas com moradores e população
flutuante, questões econômicas e sociais foram levadas em consideração e analisou-se os
benefícios ou não da introdução de novos moradores na região estudada. Aqui os maiores

332
desafios foram o de adequar a proposta a topografia dada e o redesenho viário proposto para o
bairro, a fim de romper com limites que o processo de abandono das ferrovias causou ao tecido
urbano estudado. Percebeu-se um maior “engajamento” dos alunos ao projeto urbano e na
percepção da importância deste na qualidade das cidades.

6 – Resultados dos exercícios de intervenção urbana


Quanto ao resultado dos trabalhos, poucos alunos do 2º. e 3º. semestres de fato perceberam a
problemática ali apontada, fechando os olhos para a realidade posta. Já no semestre posterior
foi possível perceber uma preocupação de alocar os antigos moradores da vila operária, da Cia.
Mogiana e de criar a ambiência que não entre em choque com a morfologia local. Visou-se
adequar gabaritos e implantação das edificações buscando trazer contemporaneidade ao local,
porém respeitando a história arquitetônica e urbana local.
A questão da mobilidade também foi levada em consideração, através da reutilização da linha
férrea para novos modais como o VLT (veículo leve sobre trilhos). Houve também uma busca em
aumentar a arborização do lugar, recuperando o conceito de cidade jardim alinhando-o com
questões da atualidade como sustentabilidade urbana e cidade compacta. Porém poucos se
atentaram a presença dos marginalizados e poucas foram as propostas sugeridas para o
acolhimento destes. Houve preocupação com os idosos, maioria da população local. Grupos
como os adictos e as prostitutas foram totalmente ignorados, surpreendentemente mesmo
pelos mais jovens, talvez reflexo da sociedade de onde os alunos são oriundos.
Algumas propostas avançaram, buscando uma linguagem que se alinhasse a estética fabril de
outrora, recuperando a importância da Estação como marco da região (Figura 03).
Como conclusão é importante apontar a evolução de visão que os alunos desenvolvem de um
semestre para o outro, fazendo com que seja perceptível um avanço em seus projetos urbanos,
e na maturidade nas tomadas de decisão quando da elaboração de diretrizes de intervenção
propostas por eles. Observa-se, porém, nestas repostas projetuais que embora tomando
conhecimento da importância dos espaços de patrimônio e do quanto estes foram relevantes
para a caracterização da cidade na atualidade, ainda é distante a reintegração destes lugares no
contexto urbano atual. Isto é perceptível não apenas nos projetos dos alunos, mas também nos
próprios usos atuais do edifícios das Estações, ambas tombadas e transformadas em centros
culturais que embora apresentem uma programação constante de eventos, grande parte da
população da cidade sequer sabe que tais espaços existem ou da sua função.

333
Figura 03: Maquetes volumétricas da entrega final da proposta de intervenção urbana, na região da
Estação Guanabara, dos alunos dos 3º. e 4º. Semestres.

Fonte: autores, 2019

Referências
AUGUSTO, Ana Paula; OLIVEIRA, Caio da Silva Lourenço; GUIMARÃES, Luna Peres. “A segregação social
das mulheres em Campinas: a formação do Jardim Itatinga”. Espírito Santo. XVII Simpósio Nacional de
Geografia Urbana. UFES. 2019

BADARÓ, Ricardo. Campinas: O Despertar da Modernidade. Campinas. CEAP/Unicamp. 1996.

COSTA, Pablo Diego e Souza dos Reis. Os espaços ferroviários de Campinas. (Re)Leituras
Contemporâneas. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo.
PUC-Campinas. 2010.

RAMOS, Diana Helene. Preta, pobre e puta: a segregação urbana da prostituição em Campinas: Jardim
Itatinga. Tese (doutorado). Programa de Pós-Graduação do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano
e Regional. Rio de Janeiro. IPPUR/UFRJ. 2017.

MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. São Paulo. Martins
Fontes. 1998.

OTTONI, Dacio Araujo Benedicto. Ebenezer Howard: Cidades-Jardins de Amanhã. São Paulo.
Hucitec/Anna Blume. 1996.

PORTZAMPARC, Christian de. “A terceira era da cidade”. Campinas. In: Revista Óculum, n. 9. Faculdade
de Arquitetura da PUC-Campinas. FAU-PUC-Campinas,1997.

334
SANTOS, Antônio da Costa. Campinas, das Origens ao Futuro: Compra e venda de terra e água e um
tombamento na primeira sesmaria da Freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Campinas do Mato
Grosso de Jundiaí (1732 – 1992). Campinas. Editora da Unicamp. 2002

SCARABELLI, Patricia Ceroni. Guanabara e arredores: a formação de um bairro. Campinas. Dissertação


(Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. PUC-Campinas. 2004.

ZAPAROLI, Cintia Teixeira: Um balanço da prática da política urbana: Observação a partir de Campinas.
Campinas. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. PUC-
Campinas. 2010.

335
O SILÊNCIO DO PATRIMÔNIO RECONHECIDO EM RIBEIRÃO PRETO-SP E AS
INICIATIVAS PARA DAR-LHE VOZ NOVAMENTE POR MEIO DE SUA REINSERÇÃO NA
DINÂMICA URBANA
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Claudia dos Reis e Cunha


Arquiteta e Urbanista; Universidade Federal de Uberlândia - UFU; claudiareis@ufu.br.
Flávia Fernanda Segismundo Vilas Boas
Arquiteta e Urbanista; Universidade Federal de Uberlândia - UFU; flaviavilasboas@live.com.

Este artigo apresenta reflexões sobre a conservação de bens imóveis no município deRibeirão
Preto–SP legalmente protegidos pelo tombamento, porém em estado de abandono, silenciados
e perdendo-se da memória da cidade. Apresenta a análise dos processos de tombamento de
três deles - Palacete Jorge Lobato, Palacete Camilo de Mattos e Solar Villa Lobos
-, nos quais pode-se observar o processo de silenciamento em curso, seja pelo descaso,
tentativas de destombamento ou demolição e, por outro lado, as iniciativas e estratégias
elaboradas para a reinserção dos mesmos na dinâmica urbana, desde projetos desenvolvidos
pelo poder público, órgãos de preservação, até pela comunidade acadêmica, instituições e
sociedade civil, ainda que, em sua maior parte, de cunho teórico.
Palavras-chave: Patrimônio cultural de Ribeirão Preto; silenciamento; tombamento; reinserção;
dinâmica urbana.

This article presents reflections on the conservation of real estate in the city of Ribeirão Preto –
SP legally protected by the fall, but in a state of neglect, silenced and losing the memory of the
city. The analysis of the registration processes of three of them is presented - Palacete Jorge
Lobato, Palacete Camilo de Mattos and Solar Villa Lobos -, in which it is possible to observe the
ongoing silencing process, whether through neglect, attempts at dismantling or demolition and,
on the other hand, the initiatives and strategies designed for their reinsertion in the urban
dynamics, from projects developed by the government, preservation bodies, even by the
academic community, institutions and civil society, although, for the most part, of a nature
theoretical.
Keywords: Cultural heritage of Ribeirão Preto; silencing; tipping; reinsertion; urban dynamics.

336
1 – Introdução

Este artigo objetiva refletir a respeito da preservação de imóveis tombados que durante muito
tempo foram silenciados em seu abandono e que, por projetos da iniciativa privada e/ou pública,
envolvendo a sociedade civil e órgãos governamentais, foram alvo de tentativas (consumadas
ou não) de dar-lhes voz novamente, reinserindo-os na dinâmica urbana. Procura- se
problematizar as dificuldades da aplicação das políticas de preservação, assim como as relações,
estratégias e embates entre os diversos agentes envolvidos nesse contexto, detectando as
principais dificuldades sociais, econômicas e culturais que pesam sobre o restauro e reuso de
imóveis patrimoniais.
O artigo adota como recorte territorial a cidade de Ribeirão Preto-SP, em razão desta apresentar
um alto índice de abandono e, consequentemente, silenciamento destes imóveis. A análise de
três imóveis específicos - Palacete Jorge Lobato, Palacete Camilo de Mattos e Solar Villa Lobos -
visa auxiliar na compreensão das condicionantes que levam a esse alto índice de abandono dos
imóveis patrimoniais tombados na cidade e, em contrapartida, as tentativas de salvaguarda e
reinserção no cotidiano dos ribeirão pretanos.
O órgão de proteção dos bens culturais no município é o CONPPAC/RP1 (Conselho de
Preservação do Patrimônio Cultural do Município de Ribeirão Preto), responsável pela tutela da
maioria dos imóveis, estando também alguns, como o caso do Solar Villa Lobos, sob proteção
do CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e
Turístico do Estado de São Paulo), e outros tombados nas duas instâncias.
De acordo com dados do CONPPAC-RP, disponibilizados pela Secretaria da Cultura do Município,
as estatísticas de imóveis tombados em condições de abandonado em Ribeirão Preto chegam a
40% do total dos bens tombados (VILAS BOAS, 2019). Isto advém de vários fatores, como a
expansão da cidade, o surgimento de novos polos de atração – como os shoppings e área sul -,
a desvalorização das áreas já consolidadas e do centro urbano, mudanças de modelo econômico
e dos padrões de morar dentre outros.
A história de Ribeirão Preto-SP está fortemente ligada à época cafeeira, uma vez que sua
consolidação e desenvolvimento como município se deu a partir desse contexto. A partir disso,
dentre os bens arquitetônicos identificados na cidade, destacam-se os localizados na área
central, assim como os casos analisados no presente artigo, uma vez que ali se encontram a
maior quantidade de representantes da arquitetura do chamado período do café, identificado

337
por muitos como principal componente da identidade cultural da cidade (SILVA; ROSA, 2012). A
partir dos fatores mencionados, acrescido dos conflitos entre proprietários e o poder público
– muitos desses bens foram sendo silenciados e abandonados. Em grande parte, são imóveis de
propriedade particular, incluindo-se aí os casarões ecléticos do século XX que serviam de
residência dos chamados barões do café e outras figuras importantes na região, durante esse
período. Bens tombados e, portanto, com seu valor histórico cultural reconhecido, no entanto
em situação de degradação e abandono.
Em contrapartida, apesar do panorama negativo, o tombamento, ainda que por si só, não tenha
logrado impedir tais processos, teve êxito em evitar que esses imóveis tenham vindo a
desaparecer e a partir disso foram possíveis tentativas de lhes devolver a voz, apresentando
casos que reavivam a esperança de que podem voltar a fazer parte da vida urbana efetivamente.
Para ilustrar essa problemática serão utilizados como exemplos três casos que até recentemente
encontravam-se em estado de abandono e hoje estão em situações antagônicas: o Palacete
Camilo de Mattos, o Palacete Jorge Lobato e o Solar Villa Lobos. O primeiro, o Palacete Jorge
Lobato, foi restaurado recentemente através de parceria entre os órgãos de preservação e a
iniciativa privada, ganhando um novo uso e reinserindo o bem na dinâmica da vida urbana local.
O segundo, Palacete Camilo de Mattos, está passando por processo de restauro, ainda sem
previsão de uso específico. E o terceiro, Solar Villa Lobos, aguarda que um dos projetos
elaborados para ele saiam do papel.
A análise destes casos concretos visa estabelecer perspectivas sobre o abandono e as tentativas
de reuso dos bens arquitetônicos da cidade e para o alcance dos objetivos propostos, o artigo
está organizado de forma a analisar os processos de tombamento e os projetos de restauro, os
embates entre proprietários e poder público, as falhas e êxitos deste em salvaguardar esses
imóveis e as contribuições e agentes envolvidos para que os projetos e iniciativas tenham
fracassado ou sido concretizados.

2 – Palacete Jorge Lobato

O Palacete Jorge Lobato localiza-se na Rua Álvares Cabral, 716. Construído em 1922, por
Geribello & Quevedo - Engenheiros e Empreiteiros e aprovado pelo Engenheiro Municipal
Antônio Soares Romeu, possui 513m² de área construída, num terreno de 1958m². De
arquitetura eclética, característica dos palacetes burgueses da época, o edifício tem cômodos
distribuídos em dois pavimentos, conta com um vasto jardim e um porão, além da área dos

338
funcionários em uma construção separada da casa. Foi construído como um presente do
fazendeiro Joaquim Cunha Diniz Junqueira à sua filha Anna Junqueira, pelo casamento com Jorge
Lobato, que foi figura importante na região2. Desde a morte de seu último morador, em 1991,
o prédio ficou abandonado por mais de vinte anos, até ser comprado e restaurado.
Seu tombamento foi requerido pelo próprio órgão municipal de proteção, CONPPAC-RP, em
2004. Na solicitação consta a justificativa de que o bem deveria ser tombado por seu significado
histórico e arquitetônico, integrante da paisagem cultural urbana de Ribeirão Preto-SP.
Cabe destacar que, desde a abertura do processo de tombamento, seus proprietários/herdeiros
tentaram impugná-lo com diversas alegações., dentre elas a de que o palacete não possui os
valores necessários, pois ele seria apenas uma construção antiga, e não exatamente de valor
histórico ou artístico. Acrescenta que o prédio está em avançado processo de deterioração, e
que, internamente já havia sofrido intervenções, descaracterizando-o do seu original. Cita os
custos da restauração e manutenção do imóvel, um grande ônus a seus proprietários, que já se
encontravam em idade avançada, não podendo arcar com os gastos e problemas de tais ações.
A despeito do pedido de impugnação dos proprietários, o conselho emite parecer favorável para
o tombamento definitivo do imóvel em 2007, considerado de grande valor arquitetônico e
histórico, por se tratar de representante da arquitetura eclética, aparentemente mantendo-se
inalterado, mesmo que em mau estado de conservação.
Desde seu tombamento, há conhecimento, primeiramente de uma iniciativa do Banco do Brasil
em adquirir o Palacete com a proposta de reuso e conservação através de um projeto para uma
agência bancária e espaço cultural, em 2014.3 Apesar de terem avançado consideravelmente na
proposta, na apresentação para a Secretaria da Cultura e órgãos de preservação da cidade, não
houve consenso e o Banco do Brasil considerou, então, o investimento inviável.
Em seguida, contrariando a visão geral de que o tombamento inviabiliza usos contemporâneos
e seria impedimento para a comercialização dos bens imóveis, os irmãos Héctor e Ingrid
Sominami demonstram interesse em adquirir o palacete. A compra se concretiza no final de
2014, segundo os novos proprietários, com a intenção de se realizar um projeto que
reconhecesse a história do local, com um café/restaurante na área interna da casa; petiscaria e
choperia na lateral do jardim; espaço cultural e de exposição na área externa.
Houve a preocupação em se preservar ao máximo as características originais da edificação –
incluindo alguns móveis. E as ações para a recuperação e restauro contaram com o apoio e

339
parceria da Universidade Moura Lacerda4, além da equipe especializada em restauro5 e dos
próprios proprietários6.
Com as obras avançadas, o Palacete abre suas portas desde 2017 para visitas guiadas e também
para eventos e ações culturais como produções musicais; ensaios fotográficos; feiras;
exposições e reuniões; visando sua reinserção ao cotidiano das pessoas, dando uso dinâmico ao
imóvel, respeitando a premissa que o bem patrimonial manteria suas portas abertas à
população a quem pertence sua história.
Com as obras de restauração já concluídas, o projeto aprovado pelo CONPPAC-RP e a liberação
da prefeitura, foi inaugurado, ao final de 2019, o Café e Restaurante Palacete 1922, que hoje
funciona diariamente servindo releituras de pratos das décadas de 20, 30 e 40, com a maioria à
preços acessíveis e feitos com ingredientes regionais, sendo intitulados a partir de referências
de lugares, celebrações e personalidades importantes dentro do contexto histórico da região. O
Palacete ainda conta com páginas em redes sociais e um site, contendo, além do seu cardápio e
produtos, toda a história do Palacete e sua restauração.

3 – Palacete Camilo de Mattos

O Palacete Camilo de Mattos localiza-se na Rua Duque de Caxias, 625, esquina com a Rua
Tibiriçá, no centro de Ribeirão Preto-SP com a fachada principal voltada para a praça XV de
Novembro. Construído em 1920, pelo Engenheiro Municipal Antônio Soares Romeu e os
construtores Antônio Terreri e Paschoal di Vincenzo, possui 265,42m² de área construída, num
terreno de 620,43m².
Tal como o Jorge Lobato, este também é um representante da arquitetura residencial eclética
burguesa do início do século XX, edificado em meio a um grande jardim, grandes vitrais de
inspiração art-noveau, elementos de madeira e o uso intenso do ferro trabalhado, tanto nas
grades externas quanto na porta principal. Os cômodos distribuídos em dois pavimentos
abrigavam o espaço de trabalho e a área de moradia de Joaquim Camilo de Mattos – importante
figura em Ribeirão Preto e região - e sua família7. Ele residiu no palacete até a sua morte. O
casarão passou para os seus herdeiros, e estava abandonado desde a morte, em 2003, de seu
último morador Luiz Augusto Gomes de Mattos (ex-prefeito da cidade, filho de Camilo de
Mattos, também ex-prefeito) até a compra do imóvel, em 2017, por empresários.
Seu tombamento provisório foi requerido e acatado no ano de 2005. Na solicitação consta a
justificativa de que o bem deveria ser tombado por ser antiga residência de importantes figuras

340
públicas de Ribeirão Preto, demonstrando sua importância histórica e cultural, além da sua
importância arquitetônica.
Novamente como se deu com o Palacete Jorge Lobato, os herdeiros do Palacete Camilo de
Mattos apresentaram diversas tentativas de impugnar o tombamento, alegando ausência de
valor histórico-cultural, degradação e descaracterização e que sua preservação obrigaria
imediata, profunda e completa reforma, a qual seria muito onerosa e demorada. Acrescenta-se
às impugnações ainda sobre seu entorno, poluído e que agravara sua deterioração. Alegaram
que o tombamento sem o orçamento necessário leva o imóvel ao abandono, como outro caso
na cidade. E que tal ação estava impedindo o uso e a exploração do imóvel, e solicitaram
indenizações caso o tombamento fosse concretizado, visto seus direitos de propriedade,
assegurados por legislação.
Apesar da insatisfação dos proprietários, o CONPPAC consegue realizar laudos que permitem o
tombamento definitivo dois anos depois, em 2008, afirmando-se que o imóvel, apesar das
intempéries, por muitos anos preservou seus elementos arquitetônicos e mobiliário.
De acordo com informações da Secretaria da Cultura e dos processos de tombamento, o
CONPPAC-RP promoveu tentativas de conciliação e incentivo fiscal para que os proprietários
pudessem recuperar o imóvel, porém nada foi efetivado.
O Projeto Dança Vida (o qual promove projetos de inclusão social e produção cultural em
Ribeirão Preto) demonstrou interesse em elaborar contrato de locação do imóvel para
transformá-lo em sede de suas ações culturais e de preservação do patrimônio, porém, esta
também não foi efetivada.
Em 2011 é anexado um processo secundário ao tombamento do palacete, solicitado por Adriana
Silva, Secretária da Cultura na época, em conformidade com o Relatório da Fase I do Inventário
Referências Culturais de Ribeirão Preto8 e seguindo as orientações do Plano Municipal de
Cultura de 2010, os quais indicam uma série de bens a serem recuperados, dentre eles, o imóvel
em questão. A proposta é que a prefeitura ofereça permuta entre o Poder Público e os
proprietários, e que a partir dos imóveis em posse da prefeitura, oferecer comodato para
entidade de produção cultural do município, sem sede própria. A expectativa estabelecida foi
que essas entidades assumissem o compromisso do restauro e a ocupação cultural dos bens.
Nesse processo é citado que os proprietários do palacete aceitaram uma permuta pela
Secretaria de Planejamento, por outro terreno de igual valor e que a Ong Dança Vida havia
informado interesse em assumir o compromisso do restauro e ocupação. Porém nos meses

341
seguintes há uma série de movimentações em relação a permuta do Palacete Camilo de Mattos,
que ainda não havia sido concretizada, apenas apresentada as intenções do Poder Público e dos
proprietários. Várias propostas de imóveis e exigências foram feitas ao longo dos anos
subsequentes, destacando reuniões com a participação de representantes da família dos
proprietários, membros do CONPPAC e da Prefeitura. Contudo, apesar de muito discutida, a
permuta não é concretizada, assim como o interesse em se dar um novo uso para o imóvel
através de projetos sociais.
Em contrapartida, em 2017, empresários demonstram interesse pelo imóvel e compram o
palacete com a intenção de restaurá-lo. A equipe de restauração - GRARG In Loco – grupo de
restauro9 - encarregada para tal é coordenada pelo arquiteto Cláudio Bauso, membro do
CONPPAC e de acordo com os levantamentos feitos afirmou-se que
“De modo geral, a estrutura do edifício apresenta-se em ótimo estado de conservação. O
madeiramento, tanto do telhado quanto das portas, janelas e assoalhos, necessitam apenas de
tratamento de pintura; as paredes internas e externas, em sua maioria, não apresentam trincas
ou rachaduras, com exceções pontuais; os ladrilhos e os demais revestimentos deverão passar
por processo de limpeza e recuperação, onde algumas peças deverão ser substituídas, assim
como alguns ornamentos da fachada e balaustrada; os trabalhos artísticos feitos em ambientes
específicos, deverão ser reconstituídos em partes degradadas por ação do tempo e da umidade;
a pavimentação do jardim sofreu danos causados por paisagismo inadequado e deverá ser
refeita.” (BAUSO et al., 2018 p. 14).
De acordo com informações da equipe de restauro, não há propriamente um projeto para novo
uso do imóvel, e o restauro está, atualmente, sendo realizado de forma minuciosa e cautelosa,
acarretando um longo prazo para sua finalização. A intenção dos proprietários é, futuramente
locar o imóvel para uso residencial, comercial ou até mesmo para uso do CONPPAC, que já
demonstrou interesse na sua locação, porém não há nada concluído.
Contudo, o que se conclui, de maneira geral e positiva é que, após tantos anos em processo de
abandono e deterioração, o imóvel está passando por um processo de cuidadoso restauro e
conservação por parte da equipe técnica e pelas intenções dos seus proprietários a fim da sua
reinserção na vida urbana.

342
4 – Solar Villa Lobos (Casa Caramuru)
O Solar Villa Lobos localiza-se na Av. Caramuru, 232. Estima-se que sua construção (autoria do
projeto desconhecida) foi realizada por volta de 1883, possuindo 885,92m² de área construída.
Indica uma arquitetura rural num terreno de 1500,00m² sendo uma das primeiras casas do
município, sua construção tem como base uma sede de fazenda que foi sendo transformada
com o tempo, conforme a área foi “engolida” pela expansão urbana. No seu interior são
encontradas pinturas que retratam cenas italianas e também muitos ornamentos, que também
seriam da década de 1890. Abarca grande valor histórico para a cidade e região, pois é um
exemplar monumental da arquitetura do café do “Oeste paulista”, além de ser uma das raras
construções remanescentes do século XIX em Ribeirão Preto-SP. Seu primeiro proprietário foi
Andre Maria Ferreira de Villa Lobos, a propriedade do imóvel passou por outras pessoas, e
inquilinos, cuja informações dizem também terem ocupado o imóvel como um bar, até chegar
na empresa Leão Materiais Elétricos LTDA, a qual queria transformar o imóvel em um depósito.
Visto que seu tombamento impedia a desconfiguração e reformas para tal, a casa foi a leilão em
2012 e em 2014 tomou posse do imóvel o empresário Nelson José Scorsolini, e apesar de
projetos destinados à conservação do bem, está abandonado há muitos anos.
O imóvel teve sua primeira intenção de acautelamento municipal através da iniciativa de um
vereador de Ribeirão Preto-SP, Valdemar Corauci Sobrinho, em 1986, e a partir de então já
começa a ser silenciado e negligenciado, através de vetos, descaso e falta de eficácia na sua
efetiva salvaguarda. O CONDEPHAAT tomba o imóvel em 1988. Após isso, somente em 2009 o
processo de tombamento do imóvel em âmbito municipal é aberto, o qual, até a data atual,
ainda se encontra em andamento.
Em relação à situação do imóvel, cabe destacar o parecer do CONPPAC-RP, feito em 2011, após
uma vistoria sobre a preservação do bem.
“Constatamos que, sem que houvesse qualquer interferência da Administração Municipal, o
edifício encontra-se em péssimas condições de preservação, podendo ser considerado em
grandes áreas edificadas, como ruínas. A visão técnica dada condiz a relatar que o imóvel está
degradado pelas intempéries do tempo, e sem dados concretos apareceram também pontos
suspeitos de depredação pela ação do ser humano, fato que consideramos rotineiros, em
decorrência do descaso quanto às questões de vigilância e segurança do local, imóvel em total
abandono. “ (Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto, 2011 – RIBEIRÃO PRETO 2018).

343
Constatou-se também que a edificação conta com elevado comprometimento estrutural,
correndo o risco de desmoronamento das partes ainda estruturadas. E explicam que realizaram
uma análise detalhada de cada compartimento, apontaram para os serviços a serem realizados
a partir de cada elemento e orientaram o projeto de restauração, destacando que a volumetria
do edifício deveria ser mantida.
Como iniciativa da recuperação e reinserção urbana do imóvel, em 2012 a Secretaria da Cultura
busca proponentes junto ao ProAC-SP (Programa de Ação Cultural) de projetos que objetivem a
restauração de bens tombados. E entre estes, tramitava a Casa Caramuru, por isso solicitaram
ao CONPPAC-RP uma comissão para o acompanhamento do projeto. Na época, houve conflitos
entre o Conselho e a Divisão de Preservação do Patrimônio Cultural de Ribeirão Preto10, pois
foi encaminhado um projeto de conservação preventiva e consolidação estrutural para avaliação
da comissão do CONPPAC-RP, o qual respondeu que o mesmo não continha informações
técnicas suficientes para análise. A Divisão, por sua vez acusa, então, o CONPPAC-RP por sua
resposta intempestiva e falta do cumprimento de prazos para análise do projeto acima
mencionado.
Houve um concurso do CONDEPHAAT para selecionar um projeto para recuperação do imóvel,
o qual foi vencido pelo arquiteto Cesar Shundi Iwamizu, chegando a ser premiado. Porém não
houve um plano efetivo de arrecadação de recursos para o restauro do imóvel, o qual, atrelado
a discordâncias entre os agentes envolvidos, acarretou-se longos prazos e não chegou a ser
viabilizado. Em nota, Iwamizu destaca “Não vemos motivos para polêmicas, ao contrário,
queremos valorizar programas de restauro de bens tombados [...] O que nos espanta é o descaso
histórico que permitiu essa e outras obras chegarem a um nível tão avançado de degradação”
(Iwamizu, 2014 em entrevista à Folha de São Paulo – RIBEIRÃO PRETO, 2018). Cabendo ainda
destacar a fala da historiadora Lilian R. O. Rosa, na mesma entrevista, onde afirma que “Há um
descaso de todos os lados: Estado, município e sociedade civil. E a casa está caindo aos pedaços”.
Apesar dessa tentativa ter avançado consideravelmente, onde o imóvel chegou a passar por
obras de resguardo da sua estrutura e catalogação de peças, o projeto não foi realizado.
Em 2015 o CONPPAC-RP aprova o tombamento definitivo do imóvel em reunião, porém este
não é concretizado imediatamente devido à longa data do processo e pela falta da emissão do
Decreto Municipal de Tombamento do bem imóvel, o qual não foi divulgado até a presente data.
Contudo, o que se conclui em análise a este caso é que, mesmo sendo um imóvel tombado a
nível estadual e municipal (ainda que sem o decreto oficial), as tentativas de restauro para este

344
depararam-se com muitos entraves, onde mesmo havendo investimento de programas culturais
do estado, este ainda não conseguiu força e interesse suficiente para superar seu abandono até
o momento. Destaca-se uma grande falha por meio do Poder Público e da sociedade para com
este bem, onde ainda não houve integração e conciliação para um interesse comum, o que
infelizmente, não é uma exceção dentro do município, onde muitos bens tombados aguardam
a “sorte” de terem seu destino de ruína reparado, almejando “finais positivos” como os casos
anteriores. Ademais, projetos e iniciativas são, de maneira geral, ações positivas para o futuro
do bem, sua fomentação e disseminação dão esperança à sua reinserção na vida urbana, pois
segue-se aguardando que algum deles possa ser concretizado.

5 – Considerações Finais

O que se percebe a partir das análises feitas é, primeiramente a importância de desmistificar a


retórica dos proprietários de que o tombamento é entrave à comercialização do imóvel, e de
que o patrimônio precisa ser musealizado ou ocupado por usos culturais. O uso compatível pode
preservar e garantir o reingresso do bem no cotidiano, contribuindo com a ressignificação da
memória. Um impasse repetidamente encontrado é a falta de educação patrimonial, claramente
expressa ao se analisar como os proprietários dos bens respondem negativamente as tentativas
de sua salvaguarda, incluindo o apoio de parte da sociedade, esta que, nitidamente desconhece
os valores de sua história e identidade. Ressalta-se que o CONPPA-RP, em lei, é composto por
membros divididos entre representantes do Poder Público; da Sociedade Organizada e
Sociedade Civil Eletiva, porém o que se percebe na prática é que, apenas os interessados e
integrantes de áreas relativas ao patrimônio participam de fato das reuniões e auxiliam nas
tomadas decisões e ações, não sendo isso estendido à sociedade em geral.
O que se pode concluir sobre as tentativas de se resolver a maioria dos impasses, é que há
oscilações acerca da comunicação entre o poder público e os proprietários, ora se dando de
forma fluida, ora se dando de forma menos cordial. O mesmo valendo para as tentativas de
articulação e negociação em geral, havendo divergência de interesses e discordâncias diante do
que se almeja para o imóvel, ambos lados demonstram interesse em solucionar os problemas,
porém não há acordo sobre como fazer isso. Cabendo destacar que, até mesmo no caso do
Palacete Jorge Lobato, que se mostra como um exemplo positivo já concretizado dentro deste
panorama, apesar de todo o empenho entre os agentes envolvidos, na tentativa de articulação

345
entres estes, ainda assim há conflitos referentes a divergências do que se esperava do projeto e
do apoio do conselho e demais órgãos.
Concluindo-se assim que, não há solução ideal para resolver tal panorama enquanto houver a
separação entre os agentes envolvidos. Conforme a formulação das leis, a salvaguarda do
patrimônio é de responsabilidade coletiva de todos, e estes devem se unir para alcançar tal fim,
para que seja possível que se aplique políticas públicas mais eficazes, afim de se agilizar os longos
processos, articulando os setores da sociedade, poder público e privado, mitigando às ações do
tempo sobre os bens patrimoniais, dando a estes mais chances de serem reinseridos na vida
urbana e de recuperar a identidade local. Identifica-se que quando a sociedade se junta para
realizar projetos para bens há um resultado, ainda que cunho teórico, positivo, pois quanto mais
iniciativas, mais há esperança que um dos projetos pode se tornar concreto, os bens vãos
tomando voz a passos lentos, mais ainda sim, propõe esperança. Uma ação permite que outras
possam ser fomentadas, assim como o restauro do Palacete Jorge Lobato incitou iniciativas
próximas do próximo projeto a sair do papel, o do Palacete Camilo de Mattos e espera-se que
isso se dê de forma progressiva e abrangente para mais bens patrimoniais da cidade.

Referências
BAUSO, Claudio Henrique et al. Projeto Arquitetônico de Restauro: Palacete Camilo de Mattos. GRARQ
In Loco – grupo de restauro. Ribeirão Preto, 2018.

Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto-SP. Plano Municipal de Cultura - 2010-2020. Ribeirão Preto:
Secretaria Municipal da Cultura, 2010. Disponível em:
<http://www.ribeiraopreto.sp.gov.br/J321/pesquisa.xhtml?lei=32062>. Acesso em: 20/03/2021.

_.Rede de Cooperação Identidades Culturais. Relatório da Fase I do Inventário Nacional de


Referências Culturais - INRC. Ribeirão Preto: Secretaria Municipal da Cultura, 2010. Disponível em:
<https://www.ribeiraopreto.sp.gov.br/scultura/cafe-acucar/relatorio.pdf>. Acesso em: 10/03/2021.

_. Relatório da Fase II do Inventário Nacional de Referências Culturais - INRC. Ribeirão Preto:


Secretaria Municipal da Cultura, 2011. Disponível em: <
https://www.ribeiraopreto.sp.gov.br/scultura/cafe-acucar/relatorio_2.pdf>. Acesso em: 10/03/2021.

_. Processo de Tombamento Palacete Jorge Lobato. Disponível no departamento do CONPPAC-RP


localizado na Secretaria da Cultura-RP. Praça Alto de São Bento, 11 - Campos Elísios, Ribeirão Preto - SP,
14085-459.

_. Processo de Tombamento Palacete Camilo de Mattos. Disponível no departamento do


CONPPAC- RP localizado na Secretaria da Cultura-RP. Praça Alto de São Bento, 11 - Campos Elísios,
Ribeirão Preto - SP, 14085-459.

346
_. Processo de Tombamento Solar Villa Lobos. Disponível no departamento do CONPPAC-RP
localizado na Secretaria da Cultura-RP. Praça Alto de São Bento, 11 - Campos Elísios, Ribeirão Preto - SP,
14085-459.

ROSA, Lilian Rodrigues de Oliveira e SILVA, Adriana, organizadoras. Paisagem Cultural do Café - Ribeirão
Preto. São Paulo, 2013. IPCCIC - Instituto Paulista de Cidades Criativas e Identidades Culturais | Rede de
Cooperação Identidades Culturais.

VILAS BOAS, Flávia Fernanda Segismundo. Imóveis protegidos legalmente, mas não concretamente:
reflexões visando uma prática preservacionista mais efetiva para Ribeirão Preto-SP. 2019. 251 f.
Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia,
2019. Disponível em: http://dx.doi.org/10.14393/ufu.di.2019.2399.

347
O SILÊNCIO TEÓRICO NAS PRÁTICAS DE RESTAURAÇÃO: a intervenção nas ruínas do
Teatro São Pedro em Laranjeiras
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Thamires Caroline Leonel de Almeida


Arquiteta e Urbanista, Mestranda em Preservação do Patrimônio Cultural; Centro Lúcio Costa -
Iphan; leonel.thamires.almeida@gmail.com.

As ruínas do Teatro São Pedro, localizadas no Conjunto Histórico, Urbanístico e Paisagístico da


cidade de Laranjeiras, em Sergipe, integram o acervo tombado pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional – Iphan. Em 2008, foi recomendada intervenção imediata de
estabilização nas ruínas citadas, através do Ministério Público Federal com base em laudo
técnico da Defesa Civil. Essa solicitação foi seguida por uma série de decisões judiciais e
posicionamentos técnicos, que além da obra de estabilização, levaram à construção de um
galpão de alvenaria dentro do perímetro da ruína com o intuito de recuperar a volumetria da
mesma. Essa intervenção é passível de diversos questionamentos, tendo sido negligenciadas as
Teorias da Restauração que deveriam balizar decisões projetuais, além do não seguimento das
Normativas pertinentes. Após e execução da estabilização e construção de um galpão sem uso
definido, o mesmo encontra-se em estado de abandono e depredação. Ainda em cumprimento
à Decisões Judiciais, atualmente, estão sendo elaborados novos projetos que devem resultar em
uma nova intervenção. Nota-se, em todo o processo, desde a estabilização das ruínas, a ausência
de uma discussão teórica profunda que justifique as decisões projetuais adotadas. Nesse
sentido, o que prevalece é o silêncio teórico na prática de restauração do objeto patrimonial.
Palavras-chave: Ruínas; Restauração; Laranjeiras; Iphan

The ruins of the São Pedro Theater, located in the Historic, Urbanistic and Landscape Complex of
the city of Laranjeiras, in Sergipe, are part of the collection registered by the National Historical
and Artistic Heritage Institute - Iphan. In 2008, immediate stabilization intervention in the
aforementioned ruins was recommended, through the Federal Public Ministry based on a Civil
Defense technical report. This request was followed by a series of judicial decisions and technical
positions, which, in addition to the stabilization work, led to the construction of a masonry shed
within the perimeter of the ruin in order to recover its volume. This intervention is open to several
questions, having been neglected the Theories of Restoration that should guide design decisions,
in addition to not following the relevant Regulations. After stabilization and construction of a
warehouse with no defined use is carried out, it is in a state of neglect and depredation. Still in
compliance with the Judicial Decisions, currently, new projects are being prepared that should
result in a new intervention. In the whole process, from the stabilization of the ruins, there is the
absence of a deep theoretical discussion that justifies the design decisions adopted. In this sense,
what prevails is theoretical silence in the practice of restoring the heritage object.
Keywords: Ruins; Restoration; Laranjeiras; Iphan

348
Introdução

Desde as primeiras pesquisas e estudos acerca da civilização ocidental, a arquitetura aparece


como um elemento de importante caracterização cultural. Seja pela forma, pela técnica
construtiva ou pelo seu lugar no contexto político e social, estruturas e vestígios materiais nos
possibilitam entender, em parte, como se deram as primeiras aglomerações humanas e como
os grupos se organizaram na formação das primeiras cidades. Foi, também, nessas estruturas
que as civilizações ocidentais antigas deixaram suas heranças artísticas, através de pinturas,
relevos, esculturas e outros elementos que ajudam a entender como eram as relações de
trabalho e sociais nesses núcleos.
Contudo, todo bem material está à mercê do fator tempo. Por esse motivo, ao longo dos séculos,
remanescentes arquitetônicos de relevância cultural para determinados períodos e sociedades
tornaram-se ruínas e têm sido objetos que provocam abordagens e construções conceituais de
diversos campos de estudo (arquitetura, arqueologia, artes, filosofia), pela sua condição
ressignificada ao longo dos anos.
As ruínas representam a materialização da passagem do tempo e se assemelham, cada vez mais,
a uma alegoria do mundo globalizado que mais do que servir para recordar, se transforma num
símbolo que requer constante atenção. É um objeto em movimento, as ruínas são o devir da
matéria no tempo, elas obrigam o homem moderno a um confronto direto com o passado e o
convida a refletir sobre sua relação com a matéria explicitando a efemeridade das coisas
humanas e da própria vida. É o não acabado da arquitetura, aquilo que já não é mais o que era,
e o que ainda não chegou ao fim, que evoca a memória e faz pensar no futuro.
As ruínas ocuparam diversos lugares dentro do debate acerca da cidade e das artes nos
diferentes períodos históricos, e estão no centro do surgimento do conceito de monumento
histórico, a partir da valorização de ruínas da Roma Antiga como afirma CHOAY:
Pode-se situar o nascimento do monumento histórico em Roma, por volta do
ano 1420. Após o exílio de Avignon (1305-1377) e, logo depois, do Grande
Cisma (1379-1417), Martinho V restabelece a sede do papado na Cidade
devastada, cujo poder e prestígio ele pretende recuperar. Um novo clima
intelectual se desenvolve em torno das ruínas antigas, que doravante falam
da história e confirmam o passado fabuloso de Roma, cujos esplendores
Poggio Bracciolini e seus amigos humanistas pranteiam, condenando-lhes a
pilhagem. (CHOAY, 1925, p. 31)

349
Para o campo patrimonial, as ruínas são, geralmente, vistas a partir de duas perspectivas: do
ponto de vista documental e simbólico. Documental por agregarem informações físicas,
tipológicas, de sistemas construtivos, materiais empregados, sendo um objeto repleto de
evidências para a arquitetura e diversas outras áreas de conhecimento. Do ponto de vista
simbólico elas representam histórias, ocupações, pessoas, sentimentos, ao mesmo tempo que
constata o abandono e a efemeridade das coisas humanas.
Apesar do reconhecimento da importância da contribuição inter e multidisciplinar na elaboração
e execução das várias etapas de preservação das ruínas como patrimônio cultural nacionais, é
nos projetos de restauração que identificamos com maior frequência a realização sem as devidas
bases teóricas, técnicas e científicas que esse tipo de intervenção exige. O projeto, como base
para execução da intervenção de restauração, quando não bem elaborado, contribui para
tomadas de decisões equivocadas, que, muitas vezes, são apresentadas sem uma leitura
completa do bem arquitetônico, sem sua devida documentação, o que aumenta a margem de
cometimento de equívocos.
Seja por negligência, seja pela urgência imposta pelas demandas de ordem política e financeira,
ou outros fatores, o projeto é elaborado e executado de maneira arbitrária resultando em
intervenções equivocadas e malsucedidas, tal como é possível constatar em experiências
passadas no estado de Sergipe, no nordeste brasileiro.
Dentre diversas experiências, está a intervenção emblemática da edificação conhecida como
Ruínas do Teatro São Pedro, localizadas no Conjunto Histórico, Urbanístico e Paisagístico da
cidade de Laranjeiras que integra o acervo tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional.
Trata-se de uma edificação neoclássica com tendências neocoloniais com estrutura de um
sobrado com janelas e portas em arco pleno, localizada na praça Possidônio Bragança, em frente
à Igreja Nossa Senhora da Conceição dos Pardos e margeando o leito do Rio Continguiba.
Em 2008, foi recomendada intervenção imediata nas ruínas citadas, através do Ministério
Público Federal (MPF) com base em laudo técnico da Defesa Civil. Segundo o laudo, havia sério
risco de desabamento de uma das paredes das ruínas, oferecendo risco às edificações vizinhas
e aos transeuntes que ali passavam. O laudo foi recebido pelo Iphan e confirmado através de
vistoria posterior, sendo do entendimento do órgão patrimonial a urgência em realizar-se obra
de estabilização, o que deu início às intervenções realizadas no objeto.

350
2 – Recomposição da volumetria e o tempo

A solicitação apresentada pelo Ministério Público Federal que consta no Processo Judicial nº
0003883-04.2011.4.05.8500 deveria atender à demanda de estabilização da ruína existente.
Entretanto, em resposta do Iphan ao MPF há um trecho que irá definir todo o desenrolar
subsequente, presente no Ofício n° 79/2008, que consta no processo físico
n°01504.000657/2001-20, referente à Estabilização da ruína: “No entanto, esta estabilização
deve seguir os preceitos de reversibilidade, necessários e obras de restauração, já que, a priori,
o edifício deva sofrer posterior restauração da volumetria.” (Grifos nossos).
É importante observar que, num primeiro momento, o Ministério Público Federal questionou e
apontou a necessidade de estabilização emergencial da ruína, visto que a mesma oferecia risco,
não sendo citada, por parte dele, a necessidade de restauração volumétrica. Essa foi uma
sugestão da própria instituição à época, e que resultou em demandas que foram materializadas
em uma intervenção questionável, do ponto de vista da conservação, das teorias da restauração
e das próprias normativas vigentes.
Foram executadas as obras de estabilização das Ruínas, pela empresa Oficina de Projetos Ltda.
contratada através de processo licitatório. As obras foram finalizadas em maio de 2012, com
retirada de vegetação existente através da aplicação de herbicida, lavagem do substrato,
estucamento de topos e peitoris, integração de partes da alvenaria de pedra, vedação dos vãos
de esquadrias com alvenaria de bloco cerâmico, recuperação das alvenarias de adobe, assim
como o escoramento em madeira montado com peças de massaranduba com seção 10x15 cm,
conforme consta no relatório Final de execução da obra.
Concluída a obra de restauração, o Iphan foi condenado pelo Ministério Público Federal a
apresentar projeto de recomposição volumétrica num prazo de 60 dias, além de realizar a
execução da obra em 180 dias. É importante salientar que o próprio órgão, por meio de
pareceres técnicos, apresentou a demanda para que o ministério público obrigasse o pedido de
execução da recuperação volumétrica. Apesar de constar em diversos pareceres técnicos do
Iphan, não houve nenhuma justificativa teórica para que a recomposição volumétrica devesse
ser executada nessa ruína ou em qualquer uma outra. Sendo assim, o Iphan teve que assumir
uma responsabilidade que ele mesmo sugeriu.
Havia nesse caso, também, um problema de propriedade do bem, visto que não houve
apresentação legal do proprietário do imóvel. Além disso, havia o problema de indefinição de
uso, o que levou o órgão a realizar a recomposição da volumetria com a execução de um projeto

351
genérico, que, não atendeu nem ao objetivo principal que era a recomposição volumétrica e que
não foi utilizado em nenhum momento posterior. Há uma visível discrepância de altura,
alinhamento da cumeeira da coberta do galpão que foi erguido (figura 01). O projeto foi
elaborado pela Divisão Técnica da Superintendência do Iphan em Sergipe, sendo a execução foi
contratada por processo licitatório no valor de R$70.160,22. A obra foi entregue no ano de 2014.

Figura 01: Tentativa de Recomposição Volumétrica.

Fonte: Acervo digital do Iphan, 2014.

No final de 2016 a Superintendência contratou orçamento para estimar os custos para a


execução da 2º Etapa dos serviços, referente a serviços complementares, chegando ao valor de
R$ 1.968.066,77 referência de setembro de 2016-1). No ano de 2018 o Iphan deu continuidade
ao cumprimento da Ação Judicial com a Contratação de Projetos complementares para
execução nas ruínas do Teatro, ou na edificação que tinha como objetivo recompor a volumetria.
O projeto está sendo desenvolvido por empresa especializada contratada através de processo
licitatório. Entretanto, esbarra nos mesmos problemas de outrora com muitas questões ainda
em aberto. Que uso será definido para a edificação? De que maneira a ruína será integrada a

352
essa nova construção? O galpão de alvenaria será aproveitado nesse novo projeto? As escolhas
projetuais irão se basear em quais argumentos teóricos? Essas são questões importantes e
pertinentes e que devem estar no centro do debate sobre o que deve ser feito nessas ruínas,
mas que, novamente, ficam em segundo plano quando se trata do cumprimento de prazos
licitatórios e de processos administrativos inexequíveis.

3 – É possível pensar em outra abordagem?


Entende-se que, atualmente, esbarra-se nos mesmos problemas porque não foi realizada, ainda,
a necessária autocrítica do Iphan em relação às suas ações nesse objeto. Influenciados pelas
experiências do programa Monumenta em Laranjeiras, os técnicos tomaram posicionamentos
que num momento anterior pareciam pertinentes. Entretanto, é necessário que esse
posicionamento seja assumido enquanto equívoco técnico e que não há demérito algum nisso,
para só, então, ser possível pensar num novo posicionamento a partir de agora.
São muitas as questões que se devem ser levadas em conta para a tomada de decisão em relação
a esse objeto. Como cumprir a demanda judicial sem cometer os mesmos erros? O que fazer
com a intervenção já executada, lembrando que a mesma contou com o uso de recursos
públicos? É possível definir um uso para que não seja, novamente, realizado um projeto
genérico que não irá atender às demandas da comunidade. É importante que não se parta do
nada para realizar essas discussões dentro do campo patrimonial, diversas são as
recomendações e diretrizes que podem embasar as mesmas.
Sucessivos encontros internacionais de profissionais da área do Patrimônio e da construção das
cidades, resultaram na elaboração de diversas recomendações, que são comumente chamadas
de 'Cartas Patrimoniais'. O debate sobre ruínas está presente na Carta de Atenas (1931),
primeiro documento internacional a tratar da temática da preservação. Tendo o Parthenon
ateniense como grande canteiro experimental, destaca a “colaboração estreita do arqueólogo
e do arquiteto” na atividade de escavação que integra o ato de Conservar. E destaca:
Quando se trata de ruínas, uma conservação escrupulosa se impõe, com a
recolocação em seus lugares dos elementos originais encontrados
(anastilose), cada vez que o caso o permita; os materiais novos necessários a
esse trabalho deverão sempre ser reconhecíveis. Quando for impossível a
conservação de ruínas descobertas durante uma escavação, é aconselhável
sepultá-las de novo depois de haver sido feito um estudo minucioso. (CARTA
DE ATENAS, 1931)

353
A Carta de Veneza (1964), por exemplo, estabelece em seu Art.2º que “A conservação e a
restauração dos monumentos constituem uma disciplina que reclama a colaboração de todas as
ciências e técnicas que possam contribuir para o estudo e a salvaguarda do patrimônio
monumental.” Entre outros pontos, consta nesse documento a ideia de salvaguardar tanto a
obra de arte em sua materialidade, quanto o testemunho histórico do bem (art. 3º); a
necessidade de manutenção permanente dos monumentos (art. 4º); a importância da
documentação de intervenções (art. 16) e, em especial, o seguinte:
Artigo 9º - A restauração é uma operação que deve ter caráter excepcional.
Tem por objetivo conservar os valores estéticos e históricos do monumento
e fundamenta-se no respeito ao material original e aos documentos
autênticos. Termina onde começa a hipótese; no plano das reconstituições
conjeturais, todo trabalho complementar reconhecido como indispensável
por razões estéticas ou técnicas destacar-se-á da composição arquitetônica
e deverá ostentar a marca do nosso tempo. A restauração será sempre
precedida e acompanhada de um estudo arqueológico e histórico do
monumento.
Artigo 12º - Os elementos destinados a substituir as partes faltantes devem
integrar-se harmoniosamente ao conjunto, distinguindo-se, todavia, das
partes originais a fim de que a restauração não falsifique o documento de
arte e de história.
Artigo 15º - [...] Devem ser asseguradas as manutenções das ruínas e as
medidas necessárias à conservação e proteção permanente dos elementos
arquitetônicos e dos objetos descobertos. Além disso, devem ser tomadas
todas as iniciativas para facilitar a compreensão do monumento trazido à
luz sem jamais deturpar seu significado. Todo trabalho de reconstrução
deverá, portanto, ser excluído a priori, admitindo-se apenas a anastilose, ou
seja, a recomposição de partes existentes, mas desmembradas. Os
elementos de integração deverão ser sempre reconhecíveis e reduzir-se ao
mínimo necessário para assegurar as condições de conservação do
monumento e restabelecer a continuidade de suas formas. (CARTA DE
VENEZA, 1964. Grifos nossos)

É inegável que a atividade restaurativa é permeada por diversas disputas conceituais desde o
seu advento no século XIX. Em se tratando de ruínas, as decisões projetuais se destacaram de
maneira gritante, pois, o bem está ali, desnudo e exposto, muitas vezes com lacunas e partes
que não existem mais. Assim, enquanto as ruínas podem representar abandono, descaso, e
declínio de um núcleo urbano patrimonializado, a sua supressão, substituição ou modificação
podem significar a perda de registros importantes da história desse núcleo e da sua comunidade.
Ruínas, assim como edificações abandonadas, são palco para diversas histórias que permeiam o
imaginário local, histórias que podem circular por diversas gerações.

354
A complexidade do campo da restauração está presente na intervenção de quaisquer bens com
valor cultural atribuído. Entretanto, em ruínas, as consequências da escolha projetual podem
acarretar a perda total das relações identitárias e simbólicas nos bens já reconhecidos como
patrimônio cultural. Brandi (1963), importante teórico da restauração do século XX, que
desenvolveu a ideia do restauro crítico afirma, em relação às ruínas:

“[...] poderá se chamar de ruína algo que testemunhe um tempo humano,


mesmo que não seja exclusivamente relativo a uma forma perdida e recebida
pela atividade humana. [...]. Ruína será, pois, tudo aquilo que é testemunho
da história humana, mas com um aspecto bastante diverso e quase
irreconhecível em relação àquele de que se revestia antes. (BRANDI, 2004,
p.65).

Ou seja, a ruína é um objeto da criação humana que perdeu características de sua materialidade,
que não possui mais a esteticidade de seu estado original, tendo perdido sua unidade potencial
de artisticidade, mas que ainda é carregada de valor de historicidade.
Para BRANDI a restauração” deve visar ao restabelecimento da unidade potencial da obra de
arte, desde que isso seja possível sem cometer um falso artístico ou um falso histórico, e sem
cancelar nenhum traço da passagem da obra de arte no tempo” (p. 33) E afirma, ainda que “Não
basta saber como, mesmo se com a mais vasta e minuciosa documentação, a obra era antes de
se tornar uma ruína. A reconstrução, a repristinação, a cópia não podem nem mesmo ser
tratadas como tema de restauração [...]” (BRANDI, 2004, p.67).
Assim, é a própria condição da obra de arte no momento da restauração que irá delinear os
limites da ação restaurativa, que em relação a instância histórica deve “limitar-se a desenvolver
as sugestões implícitas nos próprios fragmentos ou encontráveis em testemunhos autênticos do
estado originário” (p. 47). Em relação à instância estética, o que se deve considerar é a matéria
original da obra pois “a unidade figurativa da obra de arte se dá concomitantemente com a
intuição da imagem como obra de arte” (p. 46).
Sendo assim, o mais importante para que se tome decisões acertadas é o exercício do juízo
crítico de valor, presente não só na Teoria da Restauração Brandi, como também no pensamento
de Alois RIEGL em “O culto Moderno dos Monumentos: sua essência, e sua gênese” (2006) e
que está presente, também, na Carta de Veneza (1964), explicitada no seguinte trecho: “O
julgamento do valor dos elementos em causa e a decisão quanto ao que pode ser eliminado não
podem depender somente do autor do projeto”. Ou seja, há de se haver um processo coletivo

355
de trabalho, bem como justificativas bem fundamentadas para as tomadas de decisão para
como se interver.
Portanto, em se tratando da ruína, e por todas as questões já mencionadas, a tentativa de
reconstruir uma ruína, ou qualquer intervenção que tente restituí-la ao estado original algo que
não é mais, e que ainda está no lugar do devir, não seria legítima e nem autêntica do ponto de
vista da restauração. A ruína pode, e deve receber intervenções que conservem o seu “status
quo” e permita que ela continue no seu estado de envelhecimento da maneira mais segura e
longínqua por meio da consolidação e da restauração preventiva.
Entretanto, por ser um campo complexo, há divergências conceituais e técnicas dentro do
próprio IPHAN-SE, além da interferência de um órgão como o Ministério Público que não tem
no seu arcabouço teórico a especialidade de formação da questão restaurativa, mas, que muitas
vezes, toma decisões que implicam em problemáticas do ponto de vista da Conservação. Nesse
sentido, o órgão patrimonial deve estar muito bem embasado e munido de argumentos técnicos
que possam modificar determinações arbitrárias e que resultem em mutilação do patrimônio.

Conclusão
O caso das Ruínas do Teatro, ainda sem uma solução real, abriu precedentes para que o
Ministério Público reclamasse a restauração, recomposição volumétrica de outras ruínas no
Conjunto Urbano de Laranjeiras. Essas solicitações são sempre impostas com reduzidos prazos
de execução o que faz com que do ponto de vista do objeto, o mesmo fique negligenciado, e os
valores que fizeram o conjunto ser considerado patrimônio, com valor excepcional, acabem nem
entrando na lista de critérios adotados para a tomada de decisão.
Entende-se que há um problema estrutural na maneira como as obras de restauração vêm sendo
executadas no Brasil. Pode-se citar o caso dos Trapiches, intervenção já consolidada, na cidade
de Laranjeiras através do Programa Monumenta e que ainda causa muitos debates e
controvérsias do ponto de vista teórico e do próprio uso, visto que não considerou problemas
como as cheias do Rio Continguiba, que faz com que o Campus seja comumente tomado por
água das chuvas.
O caso do Teatro São Pedro é ainda mais emblemático. A construção de um galpão para uso
indefinido que anos depois de sua construção encontra-se mutilado, depredado e com uma
nova elaboração de projetos que enfrenta as mesmas questões anteriores e que, no desenrolar
do processo, caminha para uma mesma lógica de tomada de decisão, faz com que fique explicita

356
a necessidade de se pensar numa nova metodologia que resulte numa política aplicável dentro
dos órgãos responsáveis por resguardar o Patrimônio Cultural.
Entretanto, ainda citando Brandi (2004), o mesmo alerta sobre a necessidade de analisar as
ruínas, também, do ponto de vista do conjunto. Nesse caso a a “absorção” das ruínas pela
paisagem urbana configura uma “segunda obra de arte”, em que a “estética arruinada” e o
grande valor de antiguidade proporcionado pelos edifícios arruinados passam a compor o
conjunto tanto quanto edifícios bem preservados.
Sendo assim, por que há uma necessidade latente de apagamento das Ruínas da paisagem
urbana da cidade de Laranjeiras? Qual o papel dos diversos setores envolvidos? Em todos esses
casos, há uma ausência de debate profundo à respeito da matéria Conservação e Restauração.
O processo legal acaba por atropelar o que de mais importante tem o patrimônio, seus valores
e seus significados, o que representa sua materialidade e o que os dá sentido enquanto objetos
caros à Cultura Nacional.

Referências

BOITO, Camillo. Os restauradores. Coleção Artes & Ofícios. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

BONDUKI, Nabil. Intervenções urbanas na recuperação de centros históricos. Brasília, DF:


Iphan / Programa Monumenta, 2010

BRANDI, Cesare. Teoria da Restauração. Coleção Artes & Ofícios. São Paulo: Ateliê Editorial,
2004.

BRENDLE, Maria de Betânia Uchôa Cavalcanti. Teatro São Pedro de Laranjeiras/SE: Carta sobre
o patrimônio cultural do Brasil. Vitruvius, ano 15, out.2014.

CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. 3.Ed. – São Paulo: UNESP, 2006. 288 p.

IPHAN. Cartas Patrimoniais. 3. Ed. Isabele Cury (organizadora). Editora IPHAN, 2000.

RIEGL, Alois. O Culto Moderno dos Monumentos: sua essência e sua gênese. Tradução Elaine
Ribeiro Peixoto e Albertina Vicentine, Goiânia: Ed. da UCG, 2006.

RUSKIN, John. A lâmpada da memória. Coleção Artes & Ofícios. São Paulo: Ateliê Editorial,
2008.

SANT’ANNA, Márcia. Da cidade-monumento à cidade-documento: a norma de preservação de


áreas urbanas no Brasil 1937-1990. Salvador: Oiti Editora, 2014.

357
VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. Restauração. Coleção Artes & Ofícios. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2000.

______________Processo Físico n°01504.000657/2001-20, referente à Estabilização da Ruína

358
O SILÊNCIO DA ALMA VERDE DOS CONVENTOS FRANCISCANOS: um estudo histórico
e cartográfico das casas de Lima, Peru e Salvador, Brasil
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Katherine Edith Quevedo Arestegui


Graduanda; Universidade Federal de Alagoas; katherine.arestegui@gmail.com

Maria Angélica da Silva


Arquiteta, Professora titular FAU/ UFAL, Universidade Federal de Alagoas,
mas.ufal@gmail.com

Este estudo aborda os conventos franciscanos da cidade de Lima, Peru, e da cidade de Salvador,
Brasil. Ambas foram, respectivamente, primeiras sedes dos empreendimentos coloniais
espanhol e português. Hoje, o convento de Salvador é considerado uma das sete maravilhas de
origem portuguesa, e juntamente o centro histórico onde se insere, como patrimônio da
UNESCO. Este mesmo estatuto foi conferido ao convento de Lima e seu centro histórico.
Atualmente, sofrem expressivas reduções em termos de área, em especial as denominadas
“cercas”, áreas verdes usadas como espaços reflexivos e de introspecção. Esta redução foi
estudada a partir de visitas de campo e de exercícios de sobreposição cartográfica, onde foi
possível examinar e comparar o impacto do processo de urbanização, nos dois casos.
Palavras-chave: conventos franciscanos; cerca conventual; ausências

This study addresses the Franciscan convents in the city of Lima, Peru, and the city of Salvador,
Brazil. Both were, respectively, the first headquarters of the Spanish and Portuguese colonial
enterprises. Today, the convent of Salvador is considered one of the seven wonders of Portuguese
origin, and together with the historic center where it is located, as a UNESCO heritage site. This
same status was conferred to the convent of Lima and its historic center. Currently, they suffer
significant reductions in area, especially the so-called "fences", green areas used as reflective
and introspective spaces. This reduction was studied from field visits and cartographic
superimposition exercises, where it was possible to examine and compare the impact of the
urbanization process in both cases.
Keywords: Franciscan convents; enclosure; absences.

359
1 - O convento de São Francisco de Lima: percurso histórico e o silenciamento da sua cerca
A tropa espanhola comanda por Francisco Pizarro chega em 06 de janeiro de 1535 nas terras do
vale de Lima. Por ser Dia de Reis pelo calendário cristão, aquela nova província foi batizada como
“Ciudad de los Reyes”. Sua localização, era estratégica para o nascimento e desenvolvimento do
urbanismo de caráter espanhol, pautado à época por um rígido desenho ortogonal, tendo em
vista a característica planar da geografia da região. (TOLLA, 2009, p.19).
Por conseguinte, a malha urbana da cidade de Lima foi a mais ilustre da época da colonização
espanhola, apresentando-se em formato de tabuleiro de xadrez formando uma geometria
retangular, que ecoa o texto bíblico em prol de uma forma perfeita: “A cidade é quadrangular,
de comprimento e largura iguais” (Apocalipse 21:16). (NICOLINI, 2005, p, 29). Tal pensamento
se casava idealmente com um projeto de criação de uma “Nova Cristandade” para o “Novo
Mundo”. (SALCEDO, 2000, p. 192 apud NICOLINI, 2005, p. 31). Portanto, a organização das
cidades das Américas sob domínio do império espanhol foi inspirada a partir da inovação do
urbanismo medieval na Coroa de Aragón, que ocorre desde o plano fundacional de Jaca (1076)
até a quadrícula teorizada por Eximeniç, religioso franciscano que concebeu uma cidade ideal
(1384). (BIELZA, 2002, p. 413)
Em 1553 estabeleceu-se a “Província de los Doce Apostoles del Perú”, no escopo da qual foi
instituído o convento de São Francisco de Lima, fundado em 1557, iniciando-se a primeira etapa
de sua construção em 1560. (ÀLVAREZ, 1998, p. 232). Num primeiro momento, ao modo dos
conventos franciscanos europeus da Idade Média, as edificações iniciavam-se adotando
modelos muito simples. Mas no fim do século XVI vão tomando a feição tradicional deste tipo
de arquitetura, que se realiza envolvendo-se em torno de áreas abertas, os denominados
claustros, concluindo-se a construção do claustro principal e do claustro da enfermaria.
(SEBASTIÁN, 2006, p. 14)
O convento passou ainda por duas outras campanhas construtivas que trouxeram uma mudança
forte em sua arquitetura, e que ocorreu de 1657 até 1674. Nesta época já ocorre a reconstrução
da igreja franciscana e a fundação do Santuário de Nuestra Señora de la Soledad. Desta maneira
o convento ficou provido de duas igrejas e o complexo franciscano se tornou ainda mais
importante, recebendo também um luxuoso revestimento decorativo, na forma de painéis de
azulejos originários de Sevilha na Espanha. (SEBASTIÁN, 2006, p. 83)
Camilloni (1972, apud SEBASTIÁN, 2006) ressalta que o Padre Cervela natural de Santiago de
Compostela na Espanha, chegou em Lima finais do século XVII com o propósito de reconstruir a

360
igreja franciscana, atuando assim como transmissor da influência arquitetônica derivada das
igrejas barrocas galegas para a cidade de Lima. O mesmo autor afirma que a divisão das obras
do convento por períodos construtivos foi entremeada pelas perdas que deixavam os frequentes
terremotos, inclusive em 1687, quando aconteceu um dos mais destrutivos. Devido a este fato,
foi necessário abrir um quarto e último período de construções e reconstruções, o qual se
estendeu até finais do século XVIII.
Assim a edificação do convento ocorre capitaneada pela igreja que se coloca em frente à praça,
com fachada simétrica e bastante larga, ladeada por torres de terminação bulbosa e o Santuário
de Nossa Senhora da Soledade. Os cômodos conventuais desenvolvem-se em torno de cinco
claustros, afora os pátios menores, que continuam a favorecer a iluminação e a organização das
atividades de cunho funcional. Ao fundo, encontramos o espaço sobre o qual nos deteremos
para análise: a cerca conventual. Este espaço, em geral bastante amplo e situado ao fundo do
convento, cumpre as funções de jardim, horta e pomar. Essencial para a manutenção
sustentável do convento, também se destina ao cumprimento de exercícios espirituais pela
comunidade dos frades, ocupando em geral, área menor do que a edificada.

Figura 01: Plano Scenographico de la ciudad de los Reyes, 1748, e detalhe do convento São Francisco.

Fonte: Disponível em <https://babel.banrepcultural.org/digital/collection/p17054coll13/id/324/>.


Acesso em 01 jan. 2021. Marcações da autora.

361
Se levarmos em consideração o mapa do século XVIII, veremos que também na cerca, domina a
ortogonalidade. A área do pomar é representada por árvores criteriosamente distribuídas. O
mesmo fato se dá no espaço da horta, onde as espécies vegetais encontram-se alinhadas. Sabe-
se da vantagem destes arranjos, que permitem melhor fluxo para as atividades de manejo e para
a funcionalidade dos canais de irrigação vindos do rio Rímac, essências em cidades de clima
bastante seco como o de Lima.
A bibliografia mostra que havia um canal que passava dentro da cerca, uma preexistência inca
apropriada pelos colonizadores espanhóis que seria a principal fonte de irrigação dos cercados
verdes da comunidade franciscana. (IZQUIERDO E SÁNCHEZ, 2016, p. 44). Dentre estas áreas
irrigadas, uma delas pertenceu à horta do próprio colonizador Francisco Pizarro, propiciando a
plantação de frutas oriundas da Espanha, tais como laranjas, figos, bananas e principalmente
uva para a produção de vinho. Após sua morte em 1541, seus terrenos estiveram sob os
cuidados de sua filha Francisca, única herdeira, que retornou à Espanha em 1551, concedendo
tal herança ao servente Martin Alonso. Este venderá estas terras, em 1556, para Juan Váez que,
em 1559 passa a propriedade do convento. (STAHL, 2018, p. 52)
Comprovando a longa permanência desta cerca, encontrou-se um registro fotográfico muito
importante, datado de 1928, pertencente ao arquivo da Hispanic Society Museum & Library of
Americ, que mostra os frades, usufruindo da sombra de um grande parreiral. (STAHL, 2018, p.
54).

Figura 02: Cartão postal dos frades debaixo das videiras, pertencente ao arquivo da Hispanic Society of
América, 1928, STAHL.

Fonte: Disponível em <https://www.researchgate.net/publication/340792871_LAS_VINAS_DE_LIMA_


Inicios_de_la_vitivinicultura_sudamericana_1539-1551>. Acesso em 01 jan. 2021.

362
Contudo, este importante espaço conventual terá sua existência confrontada com o
crescimento urbano de Lima. Em 1940 o governo aprovou a ampliação de uma avenida
denominada “Abancay”, que cortou a área conventual, trazendo como consequência o
desaparecimento da cerca em sua totalidade (BURNEO, 2017, p. 72).

Figura 03: Fachada atual do convento de São Francisco e estudo comparativo entre a malha urbana a
partir do mapa de Plano Scenographico, de la Ciudad de Lima Capital de los Reynos del Perú, 1748 e e
vista aérea de 2020, demarcando a implantação da avenida Abancay (tracejado branco).

Fonte: Disponível em <https://babel.banrepcultural.org/digital/collection/p17054coll13/id/324/>


Acesso em 05 jan. 2021. e Google Maps, 2020. Intervenção das autoras.

Atualmente, o convento destaca-se na cidade como um dos seus principais atrativos turísticos.
Ainda casa de frades, a visitação faz-se no prédio apenas parcialmente. O silêncio da cerca
mantêm-se não só fisicamente, mas também nas fontes, que pouco tratam desta perda tão
significativa para o enquadramento da edificação como para a espiritualidade que este tipo de
arquitetura evoca.

363
2 – O convento franciscano de Salvador: história e perda parcial do entorno vegetado.

Guiados pelo espírito itinerante, os primeiros franciscanos chegaram ao Brasil em 1500,


anunciando o estabelecimento da fé católica naquelas terras ao realizarem a primeira missa sob
uma cruz de madeira em 26 de abril do mesmo ano, celebrada por Frei Henrique de Coimbra.
A edificação dos primeiros conventos da ordem franciscana não tarda a ocorrer, sucedendo-se
no período de 1585 a 1710, sendo o primeiro deles em Olinda, núcleo principal de povoamento
de uma das mais prósperas capitanias: a de Pernambuco. Em seguida, em 1587, ocorre a
fundação do convento de São Francisco, na cidade de São Salvador.
A cidade, a primeira do Brasil, foi alocada em dois planos em torno de uma extensa baía, em
frente ao mar. No que se chama cidade alta, se dispôs o convento franciscano. O traçado de
Luiz Dias, mestre de obras responsável pelo projeto e pela implantação inicial do plano
urbanístico, evidencia uma intenção de dotá-la de uma malha ortogonal, mas que não chega a
adquirir a precisão que se observa nos casos da urbanização de Lima. Implantada sobre um
relevo acidentado, a cidade do Salvador de fato vai se moldando à topografia.
Com relação ao convento de São Francisco, este é instalado no entorno da área central da
cidade, conhecida como Terreiro de Jesus, fechando-lhe a perspectiva de fundo. Sua igreja é
uma das mais famosas obras do barroco brasileiro e seu convento, embora avantajado, se
desenvolve em torno de um único claustro, como é comum nas casas históricas do Brasil, exceto
por um outro de pequena dimensão, usado pela Ordem Terceira. Com esta implantação, o
convento garantiu uma posição de destaque na cidade, mas que se tempera com a forma
discreta proporcionada pela alocação do edifício, já que apenas a fachada da igreja e pequena
área da casa conventual se mostra visível por trás do cruzeiro instalado no seu adro.
Novamente examinando o material cartográfico histórico, localizou-se uma imagem onde a
cidade foi representada ao oposto das vistas usuais, que privilegiavam reportar a cidade a partir
do mar. Esta planta perspectivada denominada “Sitio y Empresa de la Ciudad de Salvador em la
Baya de Todos os Santos”, de autor desconhecido, foi descoberta em Sevilha (DORTA, 1959, p.
24) e destinava-se a reportar o fato histórico da recuperação da capitania pelas tropas de Dom
Fadrique de Toledo Osório (1580-1634), comandante da esquadra luso espanhola enviada em
1625 para combater os holandeses que tentaram a posse do território em 1624, liderados pelo
almirante Jakob Wilckens.
Assim ao registrar, para efeito de narrar figurativamente um contexto de guerra, esta obra
pictórica mostrou todo o fundo da cidade, onde se vê o riacho do Brejo, situado ao fundo do

364
convento servindo como um dique. É possível observar o arruado e o loteamento em quadrícula,
na parte alta da cidade, com seus interiores verdes, e a cerca do convento franciscano, coberta
de vegetação. De fato, se unindo a um entorno provavelmente remanescente de antigas áreas
de matas, a cerca do convento foi fruto da transformação destas matas em terras de cultivo.
O terreno íngreme onde se situa o convento permitia a descida das águas, ao fundo do qual o
riacho possibilitava mais um espaço de uso funcional e contemplativo. Vê-se nos detalhes que
há uma ponte que atravessa o riacho. Na outra margem, surgem edificações.

Figura 04: Mapa Sitio y Empresa de la Cidad de Salvador em la Baya de Todos os Santos s/d, sem autoria.

Fonte: Acervo do Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem (2011). Reprodução fotográfica do acervo da
Marinha, RJ.

Mas numa pequena descrição encontrada nas crônicas, escrita cerca de cem anos depois da
pintura por um cronista da Ordem, frei Antônio de Santa Maria Jaboatão (1695-1779), , que

365
mostra o uso contemplativo deste espaço vegetado, talvez referindo-se à capela como sendo o
cômodo que se viu acima na imagem.
“ he vermos ainda hoje dentro dos muros e cerca do convento huã capellinha
com seu copiar, ou alpendre sobre assentos e columnas de pedra, e taõ antiga
que nem por tradiçaõ ou memoria alguã pudemos descubrir quando tivesse
o seo princípio, consagrada ao Serafico Patriarcha com a sua Imagem em hum
só altar, que tem, e na qual em a Dominga que cahe entre o oitavario do Santo
desce a communidade a cantar-lhe a missa, e há Sermaõ. Está sita esta capella
no fim da quebrada abayxo do convento e sobre a margem do Brejo, fazendo
frente a casa da fonte, fabricada na mesma forma do copiar da capella.”
(JABOATÃO, 1980, p. 55 – 56).

Nos dias de hoje a cerca seráfica foi silenciada, não consta mais a capelinha, nem o riacho e os
antigos muros. Semelhante ao caso de Lima, o curso d’água deu lugar à Avenida José Joaquim
Seabra, e a fonte, ainda existente, encontra-se externa aos atuais limites da cerca (SILVA;
ALBUQUERQUE; MELO, 2011, p. 8). Sobre a capelinha, nada foi encontrado.

Figura 05: Fachada atual do convento de São Francisco e estudo comparativo entre a malha urbana a
partir do mapa de Albernaz, 1631 e vista área de 2020, assinalando as permanências urbanas.

Fonte: Reis Filho (2000), Google Maps (2020). Intervenção das autoras (2020).

366
O convento de Salvador preserva ainda uma pequena parcela da cerca, com um jardim e mais
ao fundo, plantio de hortaliças. Situa-se ali um memorial que abriga os restos mortais do
mencionado cronista da Ordem, Frei Jaboatão. Visitando o lugar, pode-se observar que na
porção vegetativa da parte íngreme do terreno existem árvores frutíferas, que fornecem parte
do sustento da comunidade franciscana.

3 – Entre silêncios e ausências


Este trabalho buscou compreender a íntima relação entre a malha urbana das cidades de Lima
e Salvador e seus complexos religiosos seráficos, com destaque aos seus espaços de cerca. As
perdas das áreas vegetadas significam um comprometimento do legado histórico-arquitetônico
das duas cidades. A remoção das cercas significa amputar a edificação de locais de uso outrora
indispensáveis aos conventos, mas que hoje poderiam ter sua função ressignificada sem perder
seu conteúdo, rearranjados como bosques urbanos, por exemplo.
Partindo do pressuposto que arquiteturas podem possuir alma, e que quando isto ocorre, elas
são parte fundamental da edificação, no caso dos dois conventos, ambos perderam, com o
desaparecimento das cercas, um enquadramento protetor que lhes garantia isolamento,
silêncio e o calmo acompanhamento da vegetação. Desta forma, hoje, a cidade adentra, de
forma bem agressiva, nas duas casas religiosas. O não edificado foi compreendido como
sinônimo de inexistência de significado sem se considerar a sua perda para a vida conventual,
tanto no sentido mais prático, quanto no mais elevado espiritualmente.
Não se descarta a possiblidade das vozes dos frades terem sido ouvidas à época, mas, na
distância temporal que se coloca hoje, observa-se quanto esta perda foi prejudicial para os
monumentos e para os centros históricos das cidades, cada vez mais sufocadas por edificações.
A alma verde silenciada, contudo, retorna nas brechas de narrativas escritas e através dos
estudos cartográficos que as reabilitam, enquanto imagem e memória.

Referências

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el proyecto evangelizador, s. XVI. Histórica. Lima. Vol. 22, Nº2 (1998), p. 227-272. Consult. 01 Dez. 2020.
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2020.

368
O SILÊNCIO DA SERRA E O TURISMO CRIATIVO EM UNIÃO DOS PALMARES, ALAGOAS
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Mariana Magalhães Cavalcante


Turismóloga, Arquiteta e Urbanista
Universidade Federal de Alagoas
marimcavalcante@hotmail.com

Débora de Barros Cavalcanti Fonseca


Professora Dra. em Planejamento Urbano
Universidade Federal de Alagoas
debora_cavalcanti@hotmail.com

O turismo criativo é uma evolução do turismo cultural e consiste na criação de produtos


turísticos em que o visitante tem uma maior aproximação dos valores, costumes e tradições da
comunidade local. Essa conexão em um espaço pleno de história e simbolismo pode produzir
aprendizados mútuos e assim contribuir para a preservação do patrimônio cultural e para o
desenvolvimento sócio-territorial. Este artigo busca contribuir com a discussão e valorização da
história e do patrimônio cultural no turismo criativo, a partir do exemplo de União dos Palmares,
Alagoas, por este ser um destino turístico pouco valorizado diante de seu patrimônio histórico,
cultural e social, sofrendo processos de silenciamento impostos pela contemporaneidade.
Palavras-chave: patrimônio cultural; valorização cultural; turismo; desenvolvimento urbano;
União dos Palmares.

Creative tourism is evolving as an extension of cultural tourism and entails producing touristic
items which draw the visitor more closely to the values, customs and traditions of the local
community. This bond is established in a setting that is full of history and symbolism and can
enable a better knowledge of the area to be acquired which can lead to the preservation of the
cultural heritage and to the socio-territorial development. This article seeks to engage in
discussing and recognizing the value of tradition, cultural heritage and the cultural outcomes of
'creative tourism' by citing the example of the town of União dos Palmares, Alagoas, since this is
a tourist destination with a historic, cultural and social importance that has been neglected,
undergoing processes of silence imposed by contemporaneity.
Keywords: cultural heritage; cultural appraisal; tourism; urban development; União dos
Palmares.

369
1 – Introdução
Alagoas é um Estado com vocação para o desenvolvimento econômico por meio da atividade
turística devido aos aspectos naturais, culturais e históricos. Diante deste potencial, a Secretaria
de Estado do Turismo de Alagoas propôs a fragmentação do território alagoano em sete regiões
turísticas baseadas na política de regionalização do Ministério do Turismo (Figura 01). Esse
processo consiste no agrupamento de municípios com economias do setor turístico semelhantes
e utiliza como procedimento metodológico a categorização dos municípios que varia de A até E,
sendo a categoria A os municípios com maior fluxo turístico e a categoria E os municípios sem
um fluxo turístico considerável.

Figura 01: Regionalização e categorização turística dos municípios alagoanos.

Fonte: adaptado de Brasil, 2017.

Apesar da política de descentralização do turismo no Estado, é notável uma disparidade entre o


turismo de sol e praia e os demais segmentos. Visto que as categorias A, B e C (12%) estão
concentradas no litoral, enquanto os demais municípios são detentores das categorias D e E
(53%) ou sem categoria (35%) (Figura 01). Além disto, o Governo do Estado de Alagoas
direcionou os investimentos do Programa Regional de Desenvolvimento do Turismo para as
regiões turísticas de Costa dos Corais e Lagoas e Mares do Sul, ambas localizadas na faixa
litorânea e consequentemente detentoras das categorias mais elevadas.
Entretanto, a prioridade de apoio de investimento dado a um município não é necessariamente
restrita aos municípios detentores das classificações mais altas, pois outros instrumentos

370
também são utilizados pelo Ministério do Turismo para determinar a implementação de
políticas públicas:
dados como o município dispor de patrimônio natural ou cultural, possuir
inventário da oferta turística, plano de marketing, plano de desenvolvimento,
roteiros turísticos consolidados, a existência de instância de governança,
podem ser utilizados como critério adicional de seleção no momento de
abertura de chamamento público para o apoio a projetos e ações por meio
de transferências voluntárias de recursos (BRASIL, 2018, p. 4).

Desta forma, o estudo e o apoio aos municípios alagoanos que detêm patrimônio natural e
cultural com baixos níveis de categorização são fundamentais para que tenham condições de
alavancar recursos financeiros e assim desenvolverem atividades turísticas. Dentre as regiões
turísticas de Alagoas, quatro estão fora do segmento sol e praia e, destas, duas são compostas
majoritariamente pelas categorias D e E, não apresentando categorias superiores, que são as
regiões da caatinga e dos quilombos. Nessa segunda está situada a Serra da Barriga, símbolo da
maior resistência negra do país com a formação do Quilombo dos Palmares, sendo tombada
como patrimônio cultural pelo IPHAN em 1986 e pelo Mercosul em 2017. Isso significa que a
região adquiriu projeção mundial, pois passou a integrar uma lista restrita de patrimônios
pertencentes à América Latina, mas que ainda apresenta baixo nível de investimentos.
Por esta razão, o presente artigo irá discutir o conceito de turismo criativo e sua relação com o
patrimônio cultural utilizando como exemplo o município de União dos Palmares, pois além de
abrigar a Serra da Barriga, em seu território está localizada a comunidade remanescente
quilombola do Muquém, mestres artesãos, belezas naturais (cachoeiras, serras e áreas de
preservação ambiental), gastronomia afro-brasileira, manifestações culturais, arquitetura
colonial e indígena e foi o local de nascimento de grandes personalidades como Jorge de Lima e
Maria Mariá. É importante ressaltar que a proposição de projetos para valorizar o município
também significa reconhecer a importância do negro na sociedade e enaltecer a luta pela
igualdade racial, aspectos silenciados na sociedade brasileira.

2 – O patrimônio cultural frente à indústria cultural


Segundo Choay (2014) a Revolução Industrial foi essencial para a consagração do patrimônio
cultural, pois introduziu no modo de vida da população novas tecnologias e técnicas
construtivas, tornando os monumentos, conjuntos edificados e sítios arqueológicos ou
urbanizados pré-industriais objetos de culto por serem capazes de refletir um tempo referencial

371
da história. Além disto, o advento da indústria cultural foi responsável pela democratização do
saber que eliminou a restrição do acesso aos bens culturais por uma elite intelectual, para
ampliação do mesmo à sociedade de massa, e pelo desenvolvimento da sociedade de lazer que
culminou na popularização do turismo cultural, que pode ser compreendido como a “prática de
viajar para experimentar atracções (sic) históricas e culturais com o fim de aprender sobre o
passado de uma região ou de um país, de uma maneira divertida e informativa” (NATIONAL
TRUST FOR HISTORIC PRESERVATION, 1993 apud PÉREZ, 2009, p. 115-116).
A introdução do turismo cultural possibilitou o “desenvolvimento e a revitalização de
identidades culturais, a redescoberta das tradições, a autoconsciência local face aos visitantes,
a revitalização do sentido identitário, a protecção (sic) das “back regions”, o desenvolvimento
económico (sic) de regiões em crise (BOISSEVAIN, 1996 apud PÉREZ, 2009, p. 111) como também
aumentou a preocupação em relação à preservação dos monumentos, sendo em 1972 realizada
a Convenção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural que estabeleceu normas de
identificação, proteção, conservação, valorização e transmissão para os bens culturais. Além
disso, os monumentos considerados patrimônios mundiais seriam assegurados por “um sistema
de cooperação e de assistência internacionais aos níveis financeiro, artístico, científico e
técnico” (CHOAY, 2014, p. 224).
Contudo, a crescente massificação do turismo cultural transformou os monumentos e os
patrimônios históricos em “obras que facultam saber e prazer, colocadas à disposição de todos,
mas também produtos culturais, fabricados, embalados e difundidos tendo em vista o seu
consumo” (CHOAY, 2014, p. 226), ou seja, são explorados de diferentes formas com o principal
objetivo de aumentar o fluxo de visitantes e consequentemente promover ganhos financeiros,
desconsiderando os impactos sociais, culturais e ambientais decorrentes de sua transformação
em mercadoria.
Choay (2014) enumera algumas estratégias de valorização dos monumentos históricos utilizadas
pela indústria cultural: a conservação e o restauro consistem na reconstituição parcial ou
completa do patrimônio edificado, sendo algumas vezes distinto do original; a encenação é a
apresentação do monumento a partir da utilização de sons e iluminação especial, não
acrescentando valor à obra, pois o espetáculo é pensado apenas para entreter o espectador; a
animação é a compreensão da obra utilizando intermediários, limitando, portanto, o contato
direto entre o observador e a obra; a modernização consiste na inserção de elementos atuais
em edificações antigas, configurando um cenário moderno que muitas vezes descaracteriza o

372
ambiente original; a rentabilização é baseada na geração de renda a partir da locação dos
monumentos, da sua utilização como suporte publicitário e da instalação de uma loja que
comercialize produtos complementares à visita; e por fim a entrega que é a facilidade de acesso
ao monumento, considerando sua localização e proximidade dos meios de transporte e
estacionamentos.
A autora também propõe estratégias de conservação em decorrência do excesso de visitações,
a partir de: dispositivos de controle, que inclui o fechamento das visitações ao público em sítios
ameaçados, redução dos dias e horários para visitação, limitação da quantidade de visitantes
por dia, imposição de um trajeto a pé, desviar o fluxo de visitação de lugares mais procurados
por menos conhecidos e cobrar taxas de acesso; medidas pedagógicas com a volta do museu
imaginário e as reproduções iconográfica e tridimensional das edificações em tamanho real; e
políticas urbanas responsáveis por conscientizar a população acerca do atual modelo de
urbanização e instruir a conservação da antiga malha e sua utilização pelos moradores em
detrimento dos projetos especulativos que prejudicam a morfologia dos bairros.
De fato, as medidas de valorização tornam os monumentos mais atrativos, mas para isso criam
uma atmosfera imaginária que somente beneficia economicamente os proprietários desses
estabelecimentos e tampouco considera as atividades cotidianas da população local e o impacto
ocasionado no tecido urbano. Devendo ser consideradas as ações de conservação, em especial
ao que se refere à adoção de políticas urbanas, e a prática da reutilização dos monumentos para
novos usos destinados à população local, que segundo Choay (2014) é considerada a medida
mais difícil pois “depende do bom senso, mas também de uma sensibilidade inscrita na longa
duração das tradições urbanas e dos comportamentos patrimoniais” (CHOAY, 2014, p. 236-237).

3 - Turismo criativo como evolução do turismo cultural


Segundo Cooper e outros (2001 apud ALAGOAS, 2013, p. 16) o novo perfil do turista busca
vivenciar experiências únicas através de um contato mais efetivo com a cultura, história e os
modos de vida da população local. Também acredita que o turismo cultural detém preços altos
e que diversas destinações ofertadas por este segmento geram uma sensação de
superficialidade pois muitos “destinos começaram a copiar as estratégias de diferenciação
cultural, o que conduziu a uma falta de distinção e à reprodução em série da cultura” (LISBOA,
2014, p. 39). Além disto, é importante considerar os impactos da degradação dos sítios históricos
decorrentes da massificação do turismo cultural, visto que muitos planejadores desconsideram

373
a capacidade de carga que certas destinações conseguem suportar, ocasionando prejuízos à
paisagem e aos moradores destes sítios.
Neste contexto surge o conceito de turismo criativo como uma evolução do turismo cultural,
que segundo Richards e Raymond (2000 apud CAYEMAN, 2014, p. 43), oferece aos visitantes a
oportunidade de desenvolver o seu potencial criativo através de uma participação ativa em
cursos e experiências de aprendizagem que são característicos do destino de férias onde são
realizadas. Essas atividades podem ser oficinas, workshops, aulas, palestras, dentre outros e
abrangem diversas áreas como artesanato, gastronomia, música, dança, teatro, cinema,
festividades, literatura, grafite e moda. O segmento também é responsável por “promover a
autoestima dos residentes através da valorização das tradições locais, mantendo-as vivas e
apreciadas por eles. Favorecendo a coesão dos setores cultural e turístico do destino” (LISBOA,
2013, p. 7). Seus participantes são estimulados a compreender a importância da preservação do
patrimônio cultural e contribuem para a construção de um novo patrimônio a partir das oficinas
de criação.
Essa nova modalidade de turismo tem relação direta com o patrimônio edificado pois utiliza
“recursos materiais, imateriais; das estruturas e infraestruturas; dos equipamentos culturais e
do patrimônio histórico existente” (LISBOA, 2013) que muitas pessoas os veem como “bens
ultrapassados e desatualizados, os quais devem ser demolidos e ceder lugar a edificações mais
modernas e arrojadas, mais úteis ao desenvolvimento da cidade” (TOMAZ, 2010, p. 4) e propõe
a revitalização e reutilização destes espaços com atividades que o valorizem.
O cuidado com os bens patrimoniais visa resguardar a memória, dando
importância ao contexto e às relações sociais existentes em qualquer
ambiente. Não é possível preservar a memória de um povo sem, ao mesmo
tempo, preservar os espaços por ele utilizados e as manifestações
quotidianas (sic) de seu viver” (TOMAZ, 2010, p. 4).

Vinuesa (2004, p. 43-44) também expõe algumas indicações para o desenvolvimento integrado
do turismo e do urbanismo, são elas: superar leituras monumentalistas do patrimônio
arquitetônico e apostar em leituras mais urbanísticas que valorizem recursos infra utilizados
para atrair residências, turistas e investimentos; ir além das necessidades do turismo, visto que
uma cidade acolhedora para seus cidadãos também será para seus visitantes; apostar em
estratégias de multifuncionalidade, onde se complementam residência, comércio, turismo,
artesanato, administração, cultura, entre outros; avaliar a adequação do patrimônio cultural
para novos usos tendo em vista o não comprometimento do centro histórico; apoiar políticas

374
de recuperação do patrimônio cultural e administrá-lo de forma a atender as necessidades da
população e dos turistas; preservar as imagens e paisagens relacionadas à simbologia da cidade;
dotar a cidade de infraestrutura necessária como rodovias, estacionamentos, centros e
recepção de visitantes, centros de interpretação urbana, entre outros; incluir a participação
social para determinar os usos da cidade; e estabelecer pontes reais de comunicação entre as
políticas urbanísticas, turísticas e de patrimônio cultural.

4 - Metodologia
Para a construção deste artigo, primeiramente, foram selecionadas referências bibliográficas a
fim de servir como embasamento teórico, para a compreensão dos conceitos relacionados ao
patrimônio cultural, turismo criativo e regionalização do turismo em Alagoas. Posteriormente
foi realizado um estudo da região dos quilombos, que objetivou a identificação da sua
importância histórico-cultural. O estudo foi baseado nos dados obtidos na Enciclopédia
Municípios de Alagoas (INSTITUTO ARNON DE MELLO, 2012), Catálogo do Artesanato (ALAGOAS,
2016) e Caminhos do Açúcar (DANTAS e TENÓRIO, 2009). Foram analisados aspectos
relacionados à importância histórica e ao patrimônio cultural. A partir destas variáveis, o
município de União dos Palmares foi escolhido para a elaboração de ideias, que poderiam
compor um plano de turismo criativo, por ter sido o município que mais se destacou, em relação
aos critérios citados anteriormente.
Os Planos de Turismo Criativo de Brasília e Recife foram utilizados como estudos de caso, para
pensar o turismo criativo em União dos Palmares. Em seguida foi realizado um estudo do
município, a partir de dados obtidos no Censo Demográfico (IBGE, 2010), no Atlas do
Desenvolvimento Humano (IPEA, FJP e PNUD, 2013), e em diversas outras fontes bibliográficas.
Também foram realizadas quatro visitas técnicas ao município para aprofundar os
conhecimentos acerca do patrimônio cultural, da infraestrutura urbana e da oferta turística,
utilizando como instrumentos de registro: fotografias, vídeos, mapas e anotações. Estes dados
contribuíram para a caracterização físico-territorial do município. As visitas ocorreram em 26 de
julho de 2018; 9, 10 e 11 de agosto de 2018; 19 e 20 de novembro de 2018; e 6 e 7 de junho de
2019. A partir destas informações foram elaborados gráficos e mapas que contribuíram para a
caracterização físico-territorial do município, que inclui aspectos históricos, geográficos,
econômicos, de infraestrutura, sociais e culturais. O objetivo desta análise foi compreender a

375
dinâmica existente entre o turismo, o patrimônio cultural e a infraestrutura urbana do município
a fim de propor melhorias relacionadas a essas temáticas.

Finalizada esta etapa, foi realizada uma oficina com um grupo focal, em União dos Palmares
composto por representantes da sociedade civil e gestores públicos. O evento ocorreu no dia 6
de junho de 2019 na sede da Prefeitura Municipal, mediante uma articulação com a Secretária
de Turismo de União dos Palmares, Izabel Maia Gomes, que mobilizou Ivone Barros (artesã),
Silvia Batista (artesã), Cleiton Santana (guia de turismo local) e Jacivania Gomes (cerimonialista
da Prefeitura de União dos Palmares) para comparecer ao local. A oficina foi dividida em dois
momentos, no primeiro foi exposto o conceito de turismo criativo e exemplos de atividades
desenvolvidas. No segundo momento, discutiu-se com os participantes, a possibilidade e a
eventual forma de como transformar União dos Palmares, numa destinação do turismo criativo.
Para organizar a discussão, foram expostos sete cartazes, cada um correspondente aos
seguintes temas: artesanato, gastronomia, expressões culturais, cinema e literatura,
festividades, paisagens naturais e paisagens arquitetônicas. Os participantes puderam propor
sugestões de atividades relacionadas ao turismo criativo, e em qual local, essas atividades
poderiam ocorrer, como também relataram ações que já ocorreram no município que poderiam
ser resgatadas. O objetivo deste encontro foi estimular a criação de produtos turísticos, para
compor um futuro Plano do Turismo Criativo do município.

5 - Resultados
Visando incluir a participação popular na formulação de ações para o desenvolvimento do
Turismo Criativo no município, foi realizada uma oficina de turismo criativo composta por
integrantes do poder público, empresários e sociedade civil. A oficina foi iniciada com a
introdução do conceito de turismo criativo com exemplificações de atividades que ocorrem em
diversos países. Em seguida, foi questionado se essa nova modalidade de turismo seria
adequada para União dos Palmares. Como os participantes demonstraram interesse, a discussão
seguiu para quais atividades poderiam ser desenvolvidas para que União dos Palmares se torne
referência no Turismo Criativo. Os resultados da oficina podem ser observados na Figura 02.
Conclui-se então, após a realização da oficina, que o resgate e manutenção da cultura palmarina
ocorre principalmente mediante as ações e projetos provenientes das escolas municipais e
estaduais. Este cenário positivo é acentuado pela melhoria dos índices educacionais das crianças
e adolescentes e a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira. Em

376
contrapartida, também foi percebido que diversos projetos culturais foram cancelados em
consequência da falta de financiamento e da infraestrutura de apoio. Desta forma, a proposição
de espaços para que atividades como aulas de artesanato, teatro, dança e música ocorram, não
somente beneficiaria o turismo criativo, mas principalmente estaria à serviço da população
como forma de valorizar a cultura local e de gerar renda a partir do desenvolvimento das
atividades aprendidas.

Figura 02: Resultados da Oficina Criativa.

Fonte: elaboração própria.

377
Além disto, algumas das propostas de intervenção no patrimônio cultural sugeridas na oficina
devem ser analisadas e pensadas suas implicações após implementação. Citam-se como
exemplo as Casas Museus de Jorge de Lima e Maria Mariá onde são apontadas como necessárias
obras de restauração e introdução de elementos cênicos, animadores e modernizadores para
tornar a visita mais atrativa ao público jovem. Para os estudantes e comunidade local pode ser
considerado um impacto positivo, pois aumentará o interesse acerca do patrimônio cultural.
Contudo, com relação os turistas, essas melhorias podem configurar uma sobrecarga de
visitação que poderá danificar a estrutura física do patrimônio. Para estes casos, possivelmente
a melhor forma de intervenção é a reutilização como bibliotecas, espaços para oficinas, danças,
teatro, música, entre outros. Essa proposição não somente valorizaria o patrimônio frente à
população, como também solucionaria a problemática da falta de espaços para que essas
atividades ocorram.
Quanto às celebrações, propõe-se um calendário mais disperso com eventos de menor porte e
mais voltadas para o público local e vizinhos, como estratégia para a não criação de parques
temáticos e a manutenção da cultura local. Também foi considerado que entre propor eventos
ou lugares, optou-se sempre pela segunda opção, pois são permanentes, não pontuais e evitam
o excesso de aglomeração de pessoas. Um exemplo é a sugestão de implementação da Semana
da Cultura Negra pelos participantes da oficina. A adoção desse evento de grande porte que
inclui todas as produções culturais do município equivale ao que já ocorre em comemoração ao
Dia da Consciência Negra. Nesse caso, a alternativa mais viável é a proposição de um novo
modelo de comemoração com menos impacto na comunidade local e a construção de uma Casa
de Cultura Palmarina para valorizar o artesanato, dança e música por um maior período de
tempo e atender a um público diverso.
Em suma, a oficina foi bastante produtiva para compreender de qual forma podem se delinear
ações relativas ao desenvolvimento urbano e turístico do município em acordo com as opiniões
dos participantes. Após a realização das etapas de referencial teórico, caracterização físico-
territorial e oficina participativa, as informações obtidas referentes às necessidades para o
desenvolvimento turístico e urbanístico no município foram analisadas, confrontadas e
sintetizadas em dois eixos de atuação.
O primeiro eixo corresponde à infraestrutura urbana e tem como objetivo estratégico propor
melhorias na infraestrutura urbana de forma a proporcionar melhor qualidade de vida à
população local e recepção dos turistas. Dentre suas propostas estão: revitalização do rio

378
Mundaú, expansão da rede de esgotamento sanitário e drenagem pluvial, melhoria da
iluminação pública, acessibilidade em todos os bairros de União dos Palmares, implementação
de sinalização turística, ampliação e modernização do sistema de saúde, melhoria da segurança
pública, implementação de um sistema de cama e café nas residências locais e modernização do
sistema de aluguel de motos.
O segundo eixo é referente aos produtos turísticos que visa orientar a criação de produtos
turísticos criativos de qualidade de forma a valorizar o patrimônio cultural e aproximar a
população local e visitantes. Suas propostas são: aulas de artesanato em cerâmica no Muquém;
aulas de artesanato, dança e música na antiga Estação Ferroviária; aulas de gastronomia afro-
brasileira com chefs locais; festival gastronômico; semana literária; pôr do sol cultural no Parque
Memorial Quilombo dos Palmares; festival em comemoração à Consciência Negra; Casa da
Cultura Palmarina; Museu arqueológico na Serra da Barriga; Museu da Fauna e da Flora na Serra
da Barriga; revitalização da antiga Estação Ferroviária; revitalização da Casa Museu Maria Mariá;
e revitalização da Casa do Poeta Jorge de Lima.

Figura 03: Propostas de Turismo Criativo em União dos Palmares.

Fonte: elaboração própria.

6 – Considerações finais
A partir deste artigo foi possível compreender o processo de regionalização do turismo em
Alagoas e quais os critérios e métodos utilizados para que adquiram capacidade para se
desenvolver. Ademais, a supervalorização do segmento de sol e praia e desvalorização do
patrimônio cultural permitiu o aprofundamento da discussão sobre o patrimônio. Diante disto,

379
foi possível compreender a relação entre o patrimônio cultural e a indústria cultural, e quais os
métodos utilizados para sua valorização. Realizou-se também uma análise crítica sobre as
consequências da implementação dessas estratégias, buscando destacar alternativas que
estejam de acordo com algumas das necessidades e visões da comunidade local, evitando
impactos negativos,
A partir das análises foi identificado que apesar de receber notoriedade internacional pela
existência da Serra da Barriga em seu território, a cidade também dispõe de um patrimônio
cultural e produções culturais de grande valor que estão em estado de descaso e com risco de
desaparecimento devido à falta de estímulo e investimentos. Contudo, é perceptível o esforço
das instituições educacionais para resgatar e valorizar o patrimônio cultural, sendo este artigo
uma forma de contribuir com o mesmo objetivo.
Quanto ao turismo criativo, reafirma-se o seu potencial que impedir silenciamentos ao
promover o desenvolvimento turístico-urbanístico a partir da valorização de sua história,
patrimônio cultural e produções culturais, da aproximação entre a população local e os turistas
e da proposição de melhorias espaciais e de infraestrutura. Tem a capacidade de produzir
benefícios para a comunidade, pois inclui a participação dos gestores públicos, da iniciativa
privada e sociedade civil; de formatar produtos turísticos criativos e inovadores; de propor o
desenvolvimento territorial a partir das melhorias no modo de vida da população local e
receptividade aos turistas; de valorizar a história, o patrimônio cultural e as produções culturais
locais; de resgatar o sentimento de pertencimento da população local; e de reduzir a
desigualdade social a partir de novas oportunidades econômicas mediante o desenvolvimento
do turismo no município.
Além dos conhecimentos teóricos, os trabalhos de campo foram fundamentais para a
aproximação e contato com os agentes responsáveis pelo desenvolvimento turístico e
urbanístico de União dos Palmares e assim permitir a identificação dos pontos fortes e fracos
existentes no processo de planejamento urbano e turístico, principalmente dentro do panorama
alagoano. Por fim, a metodologia e as propostas elaboradas para o município de União dos
Palmares poderá ser adaptada e eventualmente aplicada em diversos municípios alagoanos,
como também em outros estados brasileiros.

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381
O SILÊNCIO DAS IMAGENS ESCULTÓRICAS PRESENTES NO PALÁCIO CAPANEMA NA
MEMÓRIA COLETIVA.
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Sandra Branco Soares


Arquiteta e Urbanista; IPHAN; sabrancos@gmail.com

William Seba Mallmann Bittar


Arquiteto; Professor Adjunto FAU-UFRJ (aposentado); wsbittar@gmail.com
Resumo
O reconhecimento dos valores integrantes do Palácio Capanema também pode advir da
interligação de diversos fragmentos de memórias individuais presentes em representações
diversas, construindo uma memória coletiva. Esse levantamento torna-se instrumental para
uma análise crítica incluindo iconografia, depoimentos, crônicas, notícias e poemas, numa
integração que fortalece sua identidade cultural. Considerando-se fragmentos presentes no
edifício, optou-se pela observação do conjunto de esculturas que o integram, produzidas por
artistas que buscaram um diálogo entre arquitetura e obra de arte: Janacópulos, Giorgi, Antonio,
Lipchitz. Cada peça define uma intenção, relacionada a um lugar estabelecido, representando o
ideário de seu criador. Revisitar estas obras, observar suas reações e inserções, ouvir sons de
seus silêncios minerais é o objetivo central deste trabalho.
Palavras-chave: palácio Capanema; arquitetura moderna; escultura moderna.

Abstract
The recognition of Capanema Palace’s integral values can also come from the interconnection of
several fragments of individual memories present in different representations, building a
collective memory. This record becomes a tool for a critical analysis including iconography,
testimonies, chronicles, news and poems, setting an integration that strengthens its cultural
identity. Observing fragments in the building, we decided to observe the group of sculptures that
instate the set, produced by artists who sought a dialogue between architecture and art:
Janacópulos, Giorgi, Antonio, Lipchitz. Each object defines an intention, related to its own place,
representing the idea of its creator. Revisiting these works, observing their reactions and
insertions, hearing sounds of their mineral silences is the central objective of this work.
Keywords: Capanema Palace; modern architecture; modern sculpture.

382
Introdução
O Palácio Capanema, na cidade do Rio de Janeiro, construído para abrigar o Ministério da
Educação e Saúde, é reconhecido internacionalmente como marco da arquitetura moderna no
Brasil.Tombado em 1948, é objeto constante de análises diversas, tratado principalmente
como um objeto estético e simbólico, abordado em seus aspectos estruturais, formais, sociais
e políticos.
O reconhecimento destes valores pode surgir através da interligação de diversos fragmentos
de memórias individuais presentes em crônicas, na literatura, na poesia, construindo uma
memória coletiva. Tal associação define um caleidoscópio cultural, responsável pela
revalorização da própria história do edifício, agregando valores afetivos aos valores materiais
já consagrados.
Dentro deste universo, destacamos a observação das esculturas que integram o conjunto,
produzidas por uma pleiade de artistas modernos que buscaram um diálogo entre arquitetura
e obra de arte: Adriana Janacópulos, Bruno Giorgi, Celso Antonio, Jacques Lipchitz.
Cada objeto artístico define uma intenção, relacionado a um lugar estabelecido, alguns
presentes desde os primeiros croquis. Cada objeto representa o ideário de seu criador, ainda
que não lograsse êxito num pretendido diálogo com o público em geral. Cada objeto conta sua
própria história, através da presença, ausência, remoção ou dos extáticos e estáticos silêncios.
Revisitar estasobras para observar suas reações e inserções e ouvir sons de seus silêncios
minerais é o objetivo central deste trabalho.

1- O Palácio Capanema e a integração com a arte moderna.


O Ministério da Educação e Saúde Pública, pasta inexistente nas primeiras décadas
republicanas, foi criado por Vargas, em 1930, no início do Governo Provisório. O gabinete do
novo ministro, Francisco Campos, proeminente politico do período varguista, ocupou salas no
edifício da Câmara Municipal do antigo Distrito Federal, localizado na Cinelândia, Rio de
Janeiro.
Em 1934, quando Gustavo Capanema assumiu o Ministério, as dependências foram
transferidas para dois pavimentos do edifício Rex, também na Cinelândia. Urgia a centralização
das repartições, racionalizando o funcionamento das atividades ministeriais. Tal iniciativa só
seria viável com a construção de uma sede definitiva, devidamente planejada para abrigar as
diferentes necessidades programáticas que coexistiam para atender àquelas pastas.

383
Em 1935, a União abriu concurso público para o novo edifício, recebendo a inscrição de 35
projetos. Após um resultado polêmico, cujo vencedor não foi construído, houve processo
contra o governo federal movido pelo arquiteto Archimedes Memoria, primeiro colocado
(ANDRADE, 1975).
A bibliografia oficial registra que Gustavo Capanema, com intervenção direta do arquiteto
Lucio Costa, manifestou sua preferência pelas propostas modernistas, decidindo assim pelo
pagamento do prêmio ao primeiro colocado, sem o aceite para sua execução.
Para desenvolver o novo projeto, surgia uma equipe que se tornou icônica para a implantação
da arquitetura moderna no Brasil: Lucio Costa, o coordenador inicial, ex-diretor da Escola
Nacional de Belas Artes; Affonso Eduardo Reidy, arquiteto municipal, com experiência em obras
públicas, além do convívio acadêmico com profissionais como Warchavchik e Agache; Jorge
Moreira e Ernani Vasconcelos, que haviam participado do concurso com uma proposta
modernista; Carlos Leão, pintor e arquiteto, que trabalhara no escritório Costa/Warchavchik;
e Oscar Niemeyer, que se agregou ao grupo durante os trabalhos.
Este convívio e respectivos resultados já foram amplamente documentados pela imprensa e
bibliografia específica, a partir da apresentação da nova proposta, em janeiro de 1936, que
incluía alguns detalhes de acabamento e sugestões para pinturas murais e esculturas (BRUAND,
1997; HARRIS, 1988; LISSOVSKY E SÁ, 1996; XAVIER, 2003).
Estes primeiros estudos não agradaram ao Ministro. Outra vez, por interferência direta de
Costa, houve a sugestão do convite a Le Corbusier para consultoria sobre a implantação da
Cidade Universitária e para o Ministério. Segundo Capanema, a Comissão responsável pelo
projeto propôs:
V.Exa. poderia chamar Le Corbusier, que é o maior arquiteto de nosso
tempo, o grande mestre, o grande inovador, o grande revolucionário, uma
figura muito combatida e que não tem uma grande realização no terreno
prático (grifo nosso), mas pelo que se lê nos seus livros e na sua doutrina,
é o líder da arquitetura nova do mundo (CAPANEMA, 1985, p.30).

Jeanneret-Gris chegou ao Rio de Janeiro em julho de 1936 e durante cerca de um mês


promoveu conferências e participou diretamente nos projetos para os quais fora convidado.
Frequentemente apresentava novas sugestões, descartando os trabalhos desenvolvidos pela
equipe, às vezes de forma depreciativa, como apelidar de “múmia” a proposta inicial da equipe
brasileira.

384
Os croquis de Le Corbusier indicavam uma escultura monumental de um Homem Sentado,
elemento recorrente em diversos estudos posteriores, incluindo aqueles da comissão
responsável projeto definitivo. O próprio ministro acolheu a ideia, defendendo-a com
veemência para o presidente.
Ele é verdadeiramente o Ministério do Homem.(...)
O homem estará sentado num soco. Será nu como o Penseur de Rodin.
Maso seu aspecto será o de calma, do domínio, da afirmação (CAPANEMA,
1937).

Pesquisas realizadas pela Professora Arquiteta Sandra Branco, para subsidiar uma futura
publicação, revelam croquis que demonstram a preocupação dos arquitetos em assinalar o
caráter e a posição das obras de arte no edifício desde os estudos preliminares (CERCHIARO,
p.43).
Algumas foram incluídas em outros projetos de integrantes da Comissão, como Costa e
Niemeyer, para o Pavilhão da Feira de Nova York, em 1939, que apresentou uma réplica da
Mulher Reclinada, de Celso Antonio.

2 - As esculturas no Palácio
Com a inserção das obras de arte, não se pretendeu a decoração ou
excessos, no sentido como hoje é empregado, mero enfeite. As obras de
arte tiveram um fim funcional, ainda que subjetivo. Era preciso passar uma
mensagem que estivesse de acordo com os ideais que alicerçaram e
construíram o chamado “Ministério do Homem”. Todas as obras foram
projetadas com essa finalidade, e isso fez parte do momento concepcional
de cada um dos artistas ali representados (DAVID, 2006).

Segundo os princípios estabelecidos pelos arquitetos em conjunto com o ministro Capanema,


as Belas-Artes estavam presentes por todo o edifício, interna ou externamente: pinturas a
têmpera, azulejaria, paineis, esculturas em grupo, isoladas ou mesmo os bustos tradicionais de
personalidade célebres no cenário nacional. Artistas modernos, independentemente de suas
orientações ideológicas, tiveram seus nomes sugeridos e aprovados, sem qualquer
interferência direta do presidente.
Candido Portinari pintou paineis na sala de audiências e hall de recepção, ambos no gabinete
ministerial e também no auditório, além da azulejaria presente nos grandes panos murais do
pavimento térreo, em conjunto com Paulo Rossi-Ossir, nem sempre uma composição
proporcional. Próxima aos Jogos Infantis, painel monumental no hall de recepção do ministro,
havia uma réplica da estátua do Profeta Isaías, cujo original encontra-se na escadaria da Igreja

385
do Bom Jesus, em Congonhas. A associação da obra de Antonio Francisco Lisboa com a pintura
de Portinari pode ser uma forma de celebração da proximidade que a modernidade se
encontrava em relação ao Patrimônio Nacional, em muito breve criando o IPHAN.
Bruno Giorgi esculpiu os bustos de Gonçalves Dias, Rui Barbosa, José de Alencar, Osvaldo Cruz,
Machado de Assis e Castro Alves, distribuídos pelo gabinete ministerial, além do Monumento
à Juventude Brasileira, conjunto colossal disposto em posição estratégica nos jardins do
pavimento térreo, voltado para a fachada envidraçada do edifício e a Moça em Pé, também
colocada no térreo, porém em recinto fechado, o hall de acesso privativo do ministro.
Capanema tinha a consciência de que os bustos não deveriam ser
considerados como obras de arte e sim como elementos que deveriam ser
inseridos por motivo de natureza cívica. Ilustram como os artistas se
submeteram às exigências de encomendas e temas, presente também no
processo criativo dos escultores (DAVID, 2006).

Celso Antonio foi o primeiro artista contratado para realização do Homem Sentado ou
Homem Brasileiro, obra encomendada num momento inicial para ocupar, com destaque, o
pavimento térreo, mas nunca foi executada. Antonio também esculpiu os bustos de Getúlio
Vargas e Capanema, além da Moça Reclinada, originalmente disposta no terraço-jardim,
anexo ao gabinete doMinistro, Mãe ou Maternidade, coroando o cilindro central da escada
helicoidal de acesso ao mezanino, e a Moça Ajoelhada.
uma escultura pequena, feita de granito rosa. Prevista em um dos
desenhos realizados por Niemeyer, ela seria colocada no pátio do
ministério, próxima à escultura Juventude Brasileira, possivelmente em
uma versão maior do que acabousendo realizada. No entanto, terminou
por ser instalada no oitavo andar do edifício, no gabinete do chefe do
Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), onde ainda
hoje se encontra. (CERCHIARO, 2016, p.121)

A Moça Reclinada foi retirada do jardim, transferida para o lugar original da Maternidade,
enquanto esta foi guardada e inexplicavelmente, em 1968, transferida para um jardim, entre
pistas de rolamento, fora de seu contexto original.
De Celso Antonio são as duas figuras femininas, severamente delineadas
no mármore, uma para o jardim do segundo piso e a outra para o centro
da sala de exposições. Esta foi recentemente retirada desse local e
encontra-se nos jardins da Praia de Botafogo (CAMPOFIORITO, 1976-1977,
p.58).

386
Celso Antonio também elaborou estudos para o grupo escultórico que ficaria na empenacega
do auditório, atendendo a uma sugestão de Capanema, inspirada na Vitória de Samotrácia,
obra também preterida.
O Celso Antonio fez uma escultura muito bonita para lá, uma beleza de
escultura. Fez a maquete e eu e Lucio Costa fomos vê-la. Então, Lucio Costa
me disse: “Dá a ideia de uma borboleta pregada na parede”. Então, eu lhe
disse: “Olha, Lucio, você liquidou com o projeto inicial., eu já não faço mais
(CAPANEMA,1985, p.32).

Jacques Lipchitz, escultor lituano, recebeu a encomenda para realizar o Prometeu Liberto,
conjunto que substituiria os estudos de Celso Antonio e de Victor Brecheret para a empena
do auditório. O resultado não logrou êxito em relação às dimensões originalmente propostas,
substituído praticamente por um estudo, desagradando o autor:
Depois que lhe pedi que executasse o projeto, mandou-nos um gesso – o
que estálá na parede é uma reprodução em bronze do modelo enviado.
(...)Concluí que não teria tempo suficiente para terminá-la, porque tinha
que chamar técnicos para ampliar aquilo em dois metros de altura e dois
metros de largura, conforme concebida por Lipchitz. A que lá se encontra
tem um metro de altura por um metro de largura.(...) O Lipchitz nunca quis
vir ver, porque ficou com raiva (CAPANEMA,1985, p.32).

O resultado final gerou polêmicas, incompreensões, incluindo charges na imprensa. No


entanto, também recebeu críticas favoráveis, como de Campofiorito:
É o autor do grupo em bronze Prometeu, que ornamenta o palácio do
Ministério daEducação e Saúde. (...) Apenas nos permitiríamos o direito de
gostar ou não dessa sua movimentada composição em que o grande
escultor interpretou uma velha legenda, dando-lhe a expressão plástica de
uma audacia emocional e atualizando “Prometeu” na fisionomia artística e
histórica de nossa época (CAMPOFIORITO, 1945, p. 7).

Adriana Janacópulos, a única representante feminina presente no corpo responsável pelas


artes integradas, esculpiu Mulher Sentada, implantada no terraço-jardim contíguo ao
gabinete do ministro, em conjunto com a Moça Reclinada, de Celso Antonio. A artista recebeu
a encomenda em fevereiro de 1938 e seria, originalmente, em mármore branco Ravaccioni.
A peça final, ampliada, foi executada em granito cinzento brasileiro, de Petrópolis, entregue
em 1942 (Arquivo CPDOC/FGV).Segundo Fernando de Azevedo, é uma obra prima de realismo
poético. Bem construída e bemmodelada, é rica de qualidades de finura e equilíbrio (AZEVEDO,
1943, p.3).

387
O ministro Capanema pode sorrir de todos os críticos, de todos os
maldizentes do edifício que mandou construir. Os artistas que reuniu para
chegar ao fim de sua arrojada tentativa darão o que falar do Brasil. Aí
estão, em conjunto, o que há de mais positivo e de mais vivo em artes
plásticas. Quando eu vi a moça de granito de Adriana Yanacopulos tive
vontade de procurar o ministro para abraçá-lo (REGO, 1944, P. 4)

3 - O silêncio dos minerais


Observando-se o conjunto de esculturas incluído no edifício, com exceção aos bustos, pois
todos são personalidades masculinas, tratados de forma absolutamente figurativa tradicional,
as obras monumentais representam a figura feminina, incluindo Juventude, de Giorgi. Apenas
o Prometeu de Liptchitz fugiu à regra, mas tratava de um personagem mitológico.
Há, portanto, um curioso paradoxo. A maioria dessas obras foi criação de artistas masculinos,
pois apenas uma escultora, Adriana Jananópulos, fora contratada para executar sua Mulher
Sentada, colocada no terraço-jardim do gabinete ministerial.
Já que havia a expressa intenção de asssociar a pasta a um “Ministério do Homem”, o provável
símbolo seria uma estátua de 12 metros de altura, em granito, representando este
personagem ideal, sempre tratado no masculino.
Este “Homem Novo”, brasileiro autêntico, era uma proposta oficial muito clara, principalmente
depois da decretação do Estado Novo. Por isso o cuidado nas escolhas dos temas e respectivos
artistas na concepção inicial, depois bastante alterada, inclusive com a participação direta de
Capanema, acatando sugestões do grupo modernista que integrava seu ministério.
Em 1943, a escultura seria substituída em temática e autoria pela Juventude Brasileira, de
Bruno Giorgi, um jovem casal que estimulava o civismo entre os estudantes, caminhando pelo
pátio em direção ao ministério.
A “Nova Mulher”, companheira desse homem brasileiro, pouco aparecia com a mesma
representatividade ou valorização, devido ao seu papel na sociedade. O próprio direito ao voto
feminino era conquista muito recente. Apenas em 1934 fora integralmente previsto na
Constituição.
Nas artes, havia o reconhecimento de artistas como Anita Malfati ou Tarsila do Amaral, na
pintura, porém o quase anonimato das escultoras Julieta de França e Nicolina Vaz de Assis. A
lista era muito restrita ou mesmo considerada pouco capaz de executar obras com tal
monumentalidade, talvez como assistentes do artista protagonista.

388
Ainda assim Janacópulos estabeleceu diretrizes para sua escultura, Mulher Sentada, desde
os estudos iniciais:
É innegavel que existe já um “typo de brasileira”, que é inconfundível
quando em viagem. A bordo, ou num hotel cosmopolita, pode-se dizer:
- Aquela moça é brasileira.
- Em que se reconhece isso?
- Difficil explica-lo. O facto é que, como esculptora, eu vejo perfeitamente
esse typo, essa expressão...
É necessario que a nossa esculptura fixe tal modelo, eternize as linhas e a
vida interior da brasileira de hoje – tal como ella existe já no romance, na
poesia, na música (na canção popular) e mesmo na pintura.
- E porque não tenta essa obra?
- Vou tentar. Os elementos decorativos nacionaes, flores, folhas, frutos,
animaes – tudo isso deve crear a ambiência em que a “brasileira plástica”
seja eternizada. Nãoé interessante num monumento público do Brasil,
verificar que a linha é grega ou italiana (JANACÓPULOS, 1932, p.6).

A força feminina, expressa com energia nas esculturas de Celso Antonio, seria observada pela
expectativa da sociedade em relação ao papel da mulher, inclusive na arte, como um doce e
sensual modelo, “Maternidade” com seu sorriso de uma ternura maternal e de uma languidez
indefinida e a de “Moça Reclinada”, de admirável suavidade, quase indolente, de uma frescura
primitiva, com uma nota forte de sensualidade tropical (AZEVEDO, 1943, p.3).
Viviam juntas no edifício do Ministério da Educação. Separaram-se depois.
A virgem permaneceu no jardim suspenso do MEC: a mãe passou a
aconchegar o filho perto de um dos viadutos de Botafogo. Sempre que vejo
uma, lembro-me da outra (ANDRADE, 1974, p.5).

Cada obra ali concebida definia uma intenção, relacionada diretamente ao seu lugar. Era a
materialização do ideário de seus criadores, ainda que não lograssem o êxito pretendido no
diálogo com o público em geral. Depois de concluído, cada elemento artístico passou a
construir sua própria história, através da presença, ausência, remoção ou dos extáticos e
estáticos silêncios, nem sempre ouvidos ou interpretados.

389
Figura 01: Mulher Sentada, de Adriana
Janacópulos

Fonte: foto Sandra Branco

Algumas daquelas esculturas nasceram incompreendidas, como o Homem Sentado, de Celso


Antonio, nunca construído; a nudez sensual da Moça Reclinada excitava a imaginação dos
observadores; a força nativa da Mulher Sentada, de Janacópulos, acompanhava a Moça nos
jardins ministeriais, pouco visitados pelo grande público; Maternidade, no topo da escadaria
de acesso ao mezanino, que despertou alguns protestos dos mais conservadores, foi recolhida
e depois transferida (CORREIO DA MANHÃ, 12/07/1968, p.8). As duas peças que se encontram
mais acessíveis à contemplação são o Prometeu de Lipchtiz, motivo de polêmicas, rejeições e
pilhérias, desde sua colocação na empena cega do auditório, e o colossal conjunto Juventude,
de Giorgi, a única escultura que inclui um casal, porém com um sutil posicionalmento da figura
masculina à frente. Uma concepção forte e vigorosa, que homenageava os jovens, procurando
aproximá-los do Estado Novo.
O silêncio nos sussurra diante daquele casal, que sugere percorrer o átrio, caminhando entre
os jardins de Burle Marx: ela pode estar caminhando atrás, porém certamente protegendo o
companheiro, aguardando o momento de seguir ao lado, quem sabe até os jardins da Praia de
Botafogo para resgatar a Maternidade para seu lugar de origem.

390
Figura 02: Monumento à Juventude Brasileira, de Bruno Giorgio, nos
jardins térreos.

Fonte: foto William Bittar

4 - Sobre o silêncio dos olhares


Eu sou bela ó mortais! Como um sonho de pedra E em meu seio onde cada
um vem gemer de dor Foi feita para o poeta inspirar um amor
Semelhante à matéria, isto é, mudo e infinito (C.Baudelaire)

Observando o conjunto escultórico do edifício, decorridos quase oitenta anos de sua


inaguração, aquelas peças de arte talvez não tenham perpetuado sua mensagem original. Fora
de seu contexto político, tornar-se-ia necessário estabelecer associações mais detalhadas para
apreender a mensagem de sua época.
Entretanto, como proposta estética elas ainda cumprem sua função de integração ao espaço
arquitetônico, quiçá urbano, sem perder a expressão individual de cada uma como obra de
arte, e, dessa forma, estabelecendo novos vínculos com outras temporalidades.
Elas vivem para além de seus projetos ideológicos, seus autores e momento de criação,
podendo, portanto, experimentar novas leituras, interpretações como de um poeta,
funcionário do edifício: a do poeta Carlos Drummond de Andrade:
Das amplas vidraças do 10º andar descortina-se a Baia vencendo a massa
cinzenta dos edifícios. Lá embaixo, no jardim suspenso do ministério, a
estátua de mulher nua de Celso Antonio, reclinada, conserva entre o ventre
e as coxas um pouco de água da última chuva, que os passarinhos vem
beber, e é uma graça a conversão do sexo de granito em fonte natural.
Utilidade imprevista das obras de arte (ANDRADE, 1980, P.5)

391
Cruelmente tratada a Maternidade, antes parte vital do conjunto escultórico, acalenta seu filho
enquanto aguarda, em meio ao abandono e esquecimento, o retorno ao seu lugar de origem e
à merecida fruição.
A dinâmica do casal da Juventude acompanha, desde sua criação, a vida da cidade em seu passo
e olhar firmes.
As esculturas em pedra em silêncio, vigílias do edifício, estabelecem múltiplas possibilidades
de diálogos temporais para aqueles que se permitem observar e escutar, como o poeta
Drummond, em solilóquio, quando da separação das duas “Moças”.
E dialogo a meu jeito com a pedra convertida em ser humano, de
comovedora beleza. Ela me responde, também a seu modo (as esculturas
falam, se sabemos ouvi-las e se nasceram de um criador digno deste
nome), e a gente se entende bem. (ANDRADE, 1974, p.5).

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393
O SILÊNCIO DO PATRIMÔNIO PROTEGIDO: uma avaliação do estado de conservação
das seis UEPs de arquitetura moderna em Maceió-AL.
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Letícia Brayner Ramalho


Arquiteta e Urbanista; Universidade Federal de Alagoas; letbrayner@hotmail.com.

Tamires Aleixo Cassella


Arquiteta e Urbanista; Universidade Federal de Alagoas; tamiresacassella@hotmail.com.

Em Maceió-AL, instituiu-se, enquanto medida de proteção patrimonial, as Unidades Especiais


de Preservação (UEPs). São 56 edifícios com relevância arquitetônica, histórica e cultural,
compreendidos como dignos de serem resguardados e cuja preservação é incentivada, entre
outras razões, através de incentivos fiscais. Nesse conjunto, há seis exemplares do Movimento
Moderno. Porém, em muitos casos, essa legislação não parece efetiva em relação à preservação
dessas unidades, pois, infelizmente, observam-se descaracterizações e até demolições. Assim,
intenta-se avaliar o atual estado de conservação dos bens modernistas e reafirmar seu lugar
enquanto patrimônio alagoano. Isso porque, apesar de terem sido reconhecidos pelo poder
público, sendo parte dessas edificações “protegidas”, diante da dinâmica da cidade e em meio
a obras mais antigas, ainda parecem bastante silenciadas.
Palavras-chave: Política preservacionista; patrimônio material; arquitetura moderna; Maceió.

In Maceió-AL, the Special Preservation Units (UEPs) were created as a heritage protection
measure. They consist of 56 buildings with architectural, historical and cultural relevance, seen
as worthy of protection and which preservation is encouraged, among other reasons, through
tax incentives. In this group, there are six constructions of the Modern Movement. In many cases,
however, this legislation doesn’t seem to be effective regarding these units’ preservation,
because, unfortunately, it’s noticed changes in its materiality and even demolitions. So, this
paper intends to assess the current conservation state of modernist buildings and reaffirm their
place as heritage. That’s because, despite having been recognized by public authorities, as part
of these “protected” buildings, when compared to older constructions, they still seem quite
silenced.
Keywords: Preservationist policy; material heritage; modern architecture; Maceió.

394
1– Entre o silêncio e a esperança: o processo de criação e escolha das UEPs
O patrimônio cultural no Brasil vem sendo respaldado por políticas públicas que visam sua
preservação desde os anos 1930, quando ocorreu a criação do instrumento de tombamento,
por meio de Decreto Lei. Desde então, outros instrumentos foram criados no sentido de
reconhecer a função social inerente à propriedade. A Constituição Federal de 1988 é um deles,
e traz determinação para que o poder público e a comunidade promovam, por meio de
inventários, registros, vigilância, tombamento, desapropriação, a proteção deste patrimônio
cultural brasileiro.
Há, ainda, os instrumentos de planejamento urbano, onde se encaixa o Plano Diretor Municipal
(PDM) – definido pela Constituição Federal como instrumento urbano básico para política de
desenvolvimento e expansão. Embora o PDM já existisse desde os anos 1930, seu formato foi
alterado depois da Constituição Federal e do Estatuto da Cidade – lei que valoriza a gestão
democrática da cidade – tornando-o mais próximo da participação popular. Tal formato intenta
colocar a população como protagonista da escolha e definição do patrimônio cultural, junto aos
técnicos das prefeituras. No sentido prático do instrumento, o PDM mais recente traz estratégias
flexíveis que permitem adequação às realidades das cidades.
Em Alagoas, muitas medidas foram sendo trabalhadas, especialmente no âmbito municipal, no
sentido de garantir a preservação do patrimônio cultural, e de edificações ou conjuntos cujas
expressões arquitetônicas ou históricas constituíam o patrimônio edificado nas cidades. A
criação das Unidades Especiais de Preservação (UEPs) só ocorreu recentemente, com a revisão
do PDM, em 2005. Elas foram definidas por meio de um processo que reunia uma equipe técnica
de profissionais da área, alguma participação da população e foi encabeçada pela arquiteta
Maria Adeciany Souza, ligada ao setor de gestão do patrimônio cultural Municipal, e contou com
a colaboração da professora da Universidade Federal de Alagoas Regina Coeli. Foram listadas,
ao final do processo, 56 edificações escolhidas por sua importância história, por terem sido
locais de manifestações culturais, de culinária, dança e cultos religiosos, bem como por sua
relevância arquitetônica, alguns exuberantes a e outros simples, mas ligados a aspectos
simbólicos da população. (CARVALHO, 2017).
O PDM ainda define, em seus artigos, as diretrizes de subsídio das UEPs, além de estímulos,
apoio e divulgação do patrimônio e manifestações populares, contudo, não detalha como, de
fato, devem ocorrer as atividades, nem, tampouco, como serão criados benefícios de
conservação e manutenção dos bens. As mesmas lacunas são observadas no que diz respeito à

395
preservação e manutenção dos imóveis, ainda que haja menção em incisos do artigo 64, como
exposto a seguir: “II - melhoria das condições sanitárias e de acessibilidade; III - envolvimento
da população local na conservação do patrimônio cultural; [...]; VI – preservação do patrimônio
histórico edificado.” (MACEIÓ, 2005). Havia, ainda, a previsão em privilegiar a preservação dos
bens por meio de incentivos fiscais, como parte do artigo 67, contudo, assim como nos artigos
anteriores, não foi feito um detalhamento de como se dariam os referidos incentivos, qual a
condição e o tempo, tampouco se detalhou como ocorreriam as obras de restauração e
manutenção para preservação, também previstas no instrumento.
É relevante ressaltar que a fiscalização das UEPs é responsabilidade da Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente (SEDET) –e o controle de reparos e reformas é
avaliado pela atual Coordenação Geral de Patrimônio Histórico, atualmente coordenada pela
arquiteta Maria Adeciany. Agentes fiscais vinculados à SEDET, os quais não são destinados
especificamente para as UEPs, realizam as fiscalizações, fato este que pode interferir
negativamente na eficácia do controle das unidades protegidas, fato levantado por Carvalho
(2017) que percebeu, em entrevistas com fiscais, o desconhecimento deles às próprias UEPs.

2 – Antes do silêncio: o percurso historiográfico das edificações


A chegada do século XX traz consigo uma promessa: a modernidade. Esta, que buscou evoluir
em diversas vertentes, encontrou na arquitetura uma forma de romper bruscamente e
definitivamente com o antigo, interferindo mundialmente na feição da paisagem construída. Na
capital alagoana, nordeste do Brasil, construções de inspiração neocolonial preenchem as ruas,
as praças começam a surgir enquanto espaços públicos e a cidade de Maceió vai ganhando ares
de progresso. Porém, apesar de, ao redor do mundo, o Movimento Moderno ter começado a se
difundir já nas primeiras décadas dessa nova era, em Alagoas apenas nos anos 1950 essas ideias
ganham força. O governador Arnon de Mello anunciara “Pavimentação é progresso” e “Somos
o São Paulo do Nordeste” (MELLO, 1954), fazendo com que sua nomeação, em 1951, tenha
trazido as promessas do desenvolvimento econômico para a região e criando, a partir daí, as
condições favoráveis para o surgimento das obras inaugurais de arquitetura moderna no
município. Diante disso, as ideias inovadoras continuaram a se espalhar pela cidade e fizeram
das décadas de 1950 e 1960 as mais frutíferas para a realização dessas construções.
É também nesse momento que a modernização expande a cidade para longe da praia, onde,
através da criação da Av. Fernandes Lima - símbolo de crescimento urbano por conectar os

396
bairros tradicionais com os novos e mais distantes do centro, núcleo inicial de povoamento da
cidade, o bairro do Farol e arredores se tornam palco para essas novas construções. A primeira
delas foi projeto da arquiteta Lygia Fernandes que, em 1952, construiu a Residência José e
Lysette Lyra. Edifícios como estes eram comumente encomendados pela alta sociedade cuja
ambição de modernizar a cidade e a si próprios crescia cada vez mais, especialmente
influenciados pelas inspirações vindas do Sudeste. A casa contava com um pilotis, esquadrias
em fita, além de outros elementos moderníssimos da época e foi um marco na capital, tanto
que cruzou as fronteiras alagoanas e foi divulgada em revista de circulação nacional, a exemplo
da edição número 204 da revista Acrópole, em 1955, e na revista Arquitetura e Engenharia, n.
35, no mesmo ano.
O marco inaugural da moderna arquitetura em Alagoas faz-se através de Lygia
Fernandes em 1952, com projetos locais que receberão reconhecimento
nacional, [...] Observando-se os projetos arquivados, nota-se que as casas de
meia morada passam a apresentar recuo frontal e poços de ventilação,
substituindo-se as alcovas por quartos. Difunde-se o vocabulário moderno:
telhados borboleta, paredes inclinadas, colunas em V, esquadrias horizontais,
volumes retos, combogós, vidro, cerâmica. (SILVA, 1991, p. 34).

Outra residência que se destacou por sua composição formal foi a casa de Affonso Lucena,
construída no mesmo bairro, edificada apenas no início da década de 1960, contou com projeto
do desenhista Ivo Lyra, outro profissional responsável pela difusão da arquitetura moderna na
cidade. Uma das estratégias utilizadas nesse local foi a da base recuada, dando a impressão de
que a edificação flutuava sobre o terreno. Além disso, outra particularidade se dá pelo grande
painel de azulejos decorativos, feito sob medida pelo artista pernambucano Abelardo da Hora,
o qual estampava a fachada principal e encantava quem passava na frente.
As residências, apesar de terem sido protagonistas nesse processo de modernização da cidade,
não foram as únicas tipologias construídas. Ao contrário, a cidade de Maceió contou com
manifestações diversas, a exemplo de prédios institucionais e residenciais, escolas, rodoviária,
aeroporto, hospital, casas mais populares com elementos inspirados nessas almejadas
construções modernistas e até igrejas. Sobre estas últimas, destaca-se a Capela Santo Antônio,
localizada dentro do antigo Hospital do Açúcar (atual Hospital Veredas), e inaugurada em
meados da década de 1950. Com projeto do desenhista José Nobre, a Capela conta com uma
abóbada como a principal solução projetual, além do uso de brises, e colunas inclinadas. Não se
sabe com certeza de onde partiu a inspiração para essa edificação, mas seus elementos

397
construtivos, em especial a abóbada, trazem à lembrança a Igreja da Pampulha, em Belo
Horizonte, projetadas anos antes por Oscar Niemeyer.
A gestão do governador Muniz Falcão também foi marcada por grandes obras modernizadoras
na área da saúde como, por exemplo, a construção do Centro de Saúde da Maravilha, em 1959,
localizado no bairro do Poço. Com projeto do arquiteto Joffre Saint' Yves Simon, a edificação
possui dois pavimentos e elementos característicos do momento, tais como: as esquadrias em
fita e com venezianas, os volumes marcados na fachada e laje plana. Mesmo sendo possível
encontrar edificações modernistas em diversos bairros de Maceió, o núcleo do Jaraguá ao
Centro merece destaque, com exemplares que vão desde residências até espaços públicos.
As praças foram poderosos atrativos para a modernização da cidade,
podendo-se encontrar em seu entorno e até no seu interior mudanças
importantes e significativas para a renovação da estética urbana do século
XX. A Praça Sinimbú, no Centro, por exemplo, teve, entre os anos de 1940-
1960, notáveis renovações. (CASSELLA, 2021, p. 90)

Além de mudanças internas no traçado e inserção de novos equipamentos na praça pelo


prefeito Sandoval Cajú, houve a substituição do antigo Lyceu de Artes e Officios e da Companhia
Alagoana de Trilhos Urbanos pela Escola de Engenharia Civil, Residência Universitária Masculina
e o Restaurante Universitário da UFAL, respectivamente, construções edificadas com materiais
emergentes particulares da funcionalidade e estética modernas, bem como: o vidro,
revestimento cerâmico, brise-soleil em concreto, cobogós e pérgolas. Ambas as obras são
projetos da arquiteta pernambucana Zélia Maia Nobre, a qual também foi a responsável pela
criação do primeiro curso de Arquitetura e Urbanismo do Estado, na Universidade Federal de
Alagoas, mostrando que seu desejo de modernizar ultrapassava as paredes físicas e se fortalecia
através dessas ideias e iniciativas inovadoras.
Intenta-se destacar, ainda, outra praça importante, dessa vez situada na Pajuçara. Conhecida
como “Praça do Rex”, levou o nome de um antigo e famoso cinema lá localizado, o qual hoje já
não existe. Também como parte das intervenções feitas em praças pelo prefeito acima citado,
o espaço ganhou bancos sinuosos e um marcante ponto de ônibus cuja cobertura é formada por
abóbadas em concreto, as quais são sustentadas por colunas do tipo V.
Escolheu-se ressaltar a história desses seis exemplares pois estes são os envolvidos pela política
pública de preservação do município, já detalhada no tópico anterior. Porém, além deles, a
cidade de Maceió conta, atualmente, com mais de 40 outros, que podem ser encontrados em
diversos bairros e em diversas escalas. Tratar da preservação das referências culturais

398
edificadas, especialmente no âmbito da arquitetura moderna, é uma temática que, há décadas,
tem sido posta como um desafio a ser enfrentado, envolvendo um vasto leque de
questionamentos, parte dos quais ainda sem posicionamentos definidos. Sabe-se, contudo, que
esses outros edifícios modernistas do município, que não possuem nenhum tipo de proteção
vinculada à legislação, estão ainda mais suscetíveis a desaparecer. As medidas de preservação
não garantem a permanência da construção na cidade, mas ressalta-se a sua importância para,
ao menos, dar visibilidade e contribuir com o reconhecimento desses bens diante da população
que ainda tem resistência em enxergar os edifícios modernos como patrimônio a ser preservado.
“Que se apliquem, cada vez mais, esforços institucionais para salvaguardá-los de potenciais
“óbitos arquitetônicos”, e, assim, mantenha-se elos na corrente entre passado e futuro das
representações de modernidade [...] em Maceió.” (FERRARE; MEDEIROS, 2012).

3 – O silêncio do patrimônio protegido: sobre o estado atual das mesmas.


Apesar de academicamente a arquitetura moderna ser inegavelmente reconhecida como um
legado de importante e rico valor histórico, sua situação atual insinua o afastamento de seu
lugar enquanto referência cultural e observa-se um grande descaso em se tratando da
preservação desses bens pelo poder público e pela população. Mesmo em decorrência do
respeitado movimento de resgate e proteção das edificações modernas, iniciado através do
DOCOMOMO (Documentation and Conservation of Buildings, Sites and Neighbourhoods of the
Modern Movement) em 1988 e apoiado por inúmeros profissionais globalmente, em Maceió
ainda se encontra uma resistência no que diz respeito à conservação e permanência desses
exemplares.
Cassella (2021) atribui a resistência à valorização dos exemplares modernistas ao tempo, visto
que as feições físicas da arquitetura mais antiga se mostram mais diferentes do que hoje é
construído e, portanto, seriam mais identificáveis como relevantes de serem preservadas. Silva
(1991) corrobora com esse entendimento quando, ainda no início da década de 1990, destaca a
desafeição por esses bens pelas instituições e pela sociedade alagoana, incluindo os
proprietários das referidas edificações. Dessa forma, percebe-se que apesar do esforço em
incorporar alguns bens modernos nessa política de preservação aqui estudada, há dúvidas se
seria essa legislação efetiva no que diz respeito à preservação dessas unidades. Adianta-se que,
em muitos casos, não. Este fato pode ser exemplificado diante da demolição da antiga residência
Afonso Lucena, UEP número 27. Depoimentos de familiares na rede social Instagram apontam

399
que o local em que a casa está inserida não possui segurança suficiente, de modo que os
proprietários precisaram se mudar e a edificação foi, pouco a pouco, invadida e saqueada. Essa
degradação de sua materialidade foi o ponto principal nas narrativas dos moradores e
familiares, que disseram não encontrar outra saída a não ser a demolição do imóvel, em meados
de 2019. Destaca-se, ainda, que houve a remoção de um painel de azulejos do artista Abelardo
da Hora, o qual compunha a fachada principal da residência, e a sua aplicação no muro lateral,
conforme imagens abaixo.

Figura 01: À esquerda, a antiga residência Afonso Lucena, em 2017. À direita, o terreno vazio após a
demolição da casa, em 2019.

Fonte: Acervo de Tamires Cassella.

É sabido que a demolição deste imóvel acarretou em multa aos proprietários, por meio de um
ato administrativo praticado pela SEDET. Contudo, o proprietário moveu ação contra o
município de Maceió, no qual se solicitava anulação da multa cobrada após a demolição do
imóvel, além da declaração de nulidade do ato administrativo que incluiu o imóvel como
Unidade Especial de Preservação, alegando que a família nunca foi notificada e consultada
acerca da mudança de condição do referido imóvel. A decisão do Juiz se deu no sentido de
aceitar a anulação da multa, mantendo a condição da edificação – ainda que demolida, como
UEP. Cabe destacar ainda que a arquiteta Maria Adeciany Souza afirmou, em contato recente
via telefone, que todos os proprietários das UEPs particulares foram, na ocasião, comunicados
de maneira formal e nenhum se recusou a assinar o documento.
Porém, se a medida de proteção aqui tratada tem como uma de suas principais motivações a
manutenção do bem no espaço da cidade, como é possível que atos drásticos como esse possam
ocorrer? Além dessa demolição indevida, é comum que ocorram reformas nas edificações,

400
especialmente as que acabam tendo seus usos modificados na intenção de permanecerem
sendo usadas diante da dinâmica urbana. Essas reformas, infelizmente, muitas vezes não levam
em consideração as características principais dos edifícios, afetando a preservação da
integridade e autenticidade da obra.
É o caso da antiga residência José e Lysette Lyra, a UEP número 26, que sofreu inúmeras
transformações com o passar dos anos para abrigar diversas funções, tais como: padaria,
lanchonetes, restaurantes, o INCRA, e, mais recentemente, sede de empresa de cosméticos
Eudora. Foi nessa última intervenção que ocorreu a descaracterização mais significativa, de
acordo, inclusive, com a filha, Leda Lyra e a neta, Andréa Maranhão, entrevistadas para esta
pesquisa. Os brises verticais que ocupavam grande parte da fachada principal no primeiro andar
foram retirados e a parede vedada, assim como muitas das esquadrias originais que ainda
resistiam no pavimento superior. Além disso, mudanças internas como o fechamento do terraço
superior e a junção entre garagem e sala de estar no térreo, acabando com o vazio característico
da arquitetura de Lygia Fernandes e da própria arquitetura moderna neste momento e contexto.
Contudo, a neta, advogada que cuida do imóvel, assegurou que a reforma foi realizada de acordo
com os devidos trâmites, sendo expedido alvará de reforma pelo órgão competente, a SEDET.

Figura 02: Registros da antiga Residência José e Lysette Lyra, 2021.

Fonte: Acervo de Tamires Cassella.

Caminhando no sentido contrário, a UEP 7, formada pela Antiga Reitoria da UFAL e antigo
Restaurante e Residência Universitária Alagoana (RUA), os quais tiveram seus usos modificados,
sendo transformados em Espaço cultural da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e Estoca
Técnica de Artes (ETA), sofreram reformas e reparos significativos, mantendo características e
restaurando os elementos possíveis. De acordo com Cynthia Fortes, arquiteta da

401
Superintendência de Infraestrutura da UFAL responsável pelos projetos, a ETA teve a obra
concluída no início de 2019, mas o processo de projeto envolveu diagnóstico sobre a história da
edificação, foram analisadas as plantas originais no intuito de preservar elementos e
acabamentos, embora muitos deles haviam se perdido ou deteriorado. De acordo com Cynthia,
a alteração mais significativa foi a retirada do relógio, que foi da antiga CATU, “apesar de se
reconhecer seu valor histórico, naquele momento, as limitações financeiras da instituição, não
permitiram que sua restauração fosse objeto do projeto”. (FORTES, 2021). O Espaço Cultural,
por outro lado, esteve fechado por algum tempo devido à problemas estruturais, mas passa
agora por uma grande reforma no auditório.
A maioria das reformas são pontuais, de ambientes internos e correspondem
a serviços de manutenção. [...]. Foram também respeitados os materiais
existentes, todavia, nem todos os ambientes possuíam seus acabamentos
originais. Também se respeitou a história da edificação modernista, a
volumetria da edificação e foi comunicado aos superiores sobre a condição
do bem ser UEP e estar inserido no Setor de Preservação de Entorno Cultural
1, para que fossem tomadas as devidas providências junto aos órgãos
competentes. (Cynthia Fortes, em entrevista, 2021).

Figura 03: À esquerda, o atual Espaço Cultural da UFAL, 2021. Ao lado, a antiga RUA e atual ETA, 2021.

Fonte: Acervo de Letícia Ramalho e Tamires Cassella, respectivamente.

As três outras UEPs modernistas passaram por reformas e mantêm, de maneira geral, seus
aspectos volumétricos originais, apesar de terem atravessado processos distintos. O Centro de
Saúde da Praça da Maravilha, a UEP 8, em 2014 teve suas esquadrias originais retiradas durante
a reforma. Apesar de o processo ter ocorrido de maneira legal, Maria Adeciany afirma que o
projeto de arquitetura não foi encaminhado ao setor de Patrimônio, como deveria. Talvez tenha
sido a razão para essa perda de elementos estilísticos originais.

402
Já a Capela Santo Antônio, UEP 48, após passar anos fechada, teve em sua reforma o
acompanhamento próximo da arquiteta do setor de Patrimônio, ainda que algumas alterações
já tenham sido feitas antes, como a substituição do piso original de granilite por um porcelanato
polido, além do fechamento dos brises da fachada. O forro, originalmente feito com peças
geométricas em eucatex e madeira, não resistiu ao tempo e, devido à falta de orçamento
previsto - já que todo o hospital estava passando por grande reforma - precisou ser substituído
por outro material e, desta vez, teve a orientação de Adeciany. Assim, para se manter a
volumetria abobadada, foi usado gesso acartonado.

Figura 04: II Centro de Saúde Dr. Diógenes Jucá Bernardes, conhecido como Centro de Saúde da
Maravilha. Destaque para as novas esquadrias, mantendo, contudo, a localização original.

Fonte: Acervo de Letícia Ramalho, 2021 e Tamires Cassella, 2017, respectivamente.

A Praça do Rex, UEP 14, por sua vez, dentre as seis unidades aqui analisadas, é a que mantém
maiores semelhanças com sua confirmação original. Foi reformada em 2019 para manutenção
da pintura, seguindo processo de maneira adequada, sob orientação do setor de Patrimônio.
Nela, tanto mobiliário urbano quanto a marquise que funciona como cobertura para o icônico
ponto de ônibus permanecem originais.
Apesar do estado de conservação satisfatório, tanto a Praça, quanto a Capela não são tão
percebidos e divulgados como patrimônio cultural da cidade, tampouco há estímulo às
atividades culturais ou turísticas nestes locais, conforme previsto no PDM que regulamentou as
UEPs. A capela permanece em uso. É atualmente cuidada pelo Padre titular, Petrúcio Costa, e
por religiosos que a frequentam, que, mesmo não sendo funcionários do hospital, assumiram a
responsabilidade de cobrar do setor administrativo cuidados para manutenção do imóvel. No

403
caso da Praça do Rex, moradora da Rua Dr. Antônio Pedro de Mendonça há 13 anos, uma das
laterais da praça, a estudante de arquitetura Laryssa Tavares diz não ter registro de nenhum
evento público realizado no local durante todos esses anos.

Figura 05: Acima, a Capela de Sto Antônio com detalhe de sua fachada e vista interna
ressaltando o forro incluído em reforma. Abaixo, registros da Praça do Rex.

Fonte: Acervo de Tamires Cassella, 2021 (primeira imagem) e acervo de Letícia Ramalho, 2021 (demais
imagens).

Carvalho (2017) identifica, por meio de entrevistas com as duas arquitetas que encabeçam a
escolha das unidades, que, apesar de o processo contar com a participação da população -
obrigatoriedade do PDM, não foi realizado um inventário que demonstrasse a relevância dos
bens escolhidos. De acordo com a análise da autora, ainda, apenas três, das 56 unidades, foram
escolhidas pela população. Neste aspecto, é relevante considerar a fala da arquiteta Regina
Coeli, em entrevista em 2016, que identifica como importante lacuna a baixa participação dos
proprietários, atribuindo a isso, a descaracterização de alguns exemplares selecionados até
aquela data. Ademais, a própria arquiteta responsável pelo setor aponta possíveis falhas no que
diz respeito à preservação desses exemplares, exemplificando que poderiam ser vinculadas
informações da condição do imóvel ao IPTU, por exemplo, além de entender que a existência de

404
incentivo fiscal direto poderia mudar a condição de preservação por parte dos proprietários
particulares.
Nesse sentido, a situação contemporânea de grande parte dessas edificações denuncia um
esvaziamento e anulação da história desse conjunto aqui tratado, posto que a compreensão dos
seus significados é cada vez mais silenciada em meio a reformas deformadoras ou até
demolições. Sabe-se, pois, que entender de maneira mais aprofundada os motivos dessa
condição, precisamente de como manter vivo esse legado - que demonstra ainda não ser
devidamente reconhecido - e como compatibilizar sua manutenção e as novas demandas do
desenvolvimento urbano, mostra-se um importante, necessário e urgente desafio a ser
enfrentado.

Referências

CARVALHO, Rafaela. A proposta da salvaguarda das unidades especiais de preservação (UEPs) de


Maceió: Uma avaliação após 11 anos de instituição do instrumento urbanístico. 2017. 198 p. Dissertação
(mestrado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2017.

CASSELLA, Tamires. Imagens-memória: narrativas fotográficas da arquitetura moderna de Maceió.


Dissertação (mestrado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de Alagoas,
Maceió, 2021.

FERRARE, Josemary. O. P.; MEDEIROS, E. de A. Representações de modernidade na 'Praia da Avenida' -


Maceió: pontuando o passado, o presente (e o futuro)?. In: IV Seminário DOCOMOMO Norte Nordeste,
2012, Natal - RN. Arquitetura em cidades. Natal:UFRN, 2012.

FORTES, Cynthia. Formulário UEP 7. Entrevista concedida à Letícia Ramalho e Tamires Cassella. Maceió,
2021.

MACEIÓ. Plano Diretor de Maceió. Lei n 5.486, de 30 de Dezembro de 2005.

MELLO, Arnon de. MENSAGEM DO GOVERNADOR À ASSEMBLEIA LEGISLATIVA. ANOS: 1950 a 1964.
Maceió, Imprensa Oficial.

SILVA, Maria Angélica da. Arquitetura Moderna: A Atitude Alagoana. Maceió: SERGASA, 1991.

405
O SILÊNCIO DOS VAZIOS URBANOS
Um ensaio de ressignificação das vacâncias urbanas na poligonal de tombamento do
IPHAN em João Pessoa – PB
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Yanna Karla Garcia Silva


Arquiteta e Urbanista pela UFPB;
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFPB (PPGAU
UFPB); yannagarcis@gmail.com.

O presente trabalho apresenta um estudo sobre como os vazios urbanos presentes na poligonal
de tombamento do IPHAN no centro antigo de João Pessoa - PB poderiam ser ressiginificados,
principalmente a partir de habitações, de forma que duas importantes
problemáticas no contexto urbano, a ociosidade do espaço intraurbano e o déficit habitacional,
pudessem ser tratadas em conjunto. Para tanto, investigou-se, em campo, a ocorrência dos
vazios urbanos na área do recorte do estudo, após a análise dos resultados obtidos a partir da
catalogação, chegou-se num diagnóstico geral da poligonal de tombamento e noutro específico
de cada categoria de vazio urbano abordada nesse estudo. Com base no diagnóstico alcançado,
desenvolveu-se a proposta de um zoneamento para reabilitação dos espaços intraurbanos
investigados.
Palavras-chave: vazios urbanos; centros antigos; déficit habitacional; reabilitação.

This paper presents a study on how the urban voids present in the IPHAN’s protective polygonal
of heritage in downtown João Pessoa - PB could be resignified, mainly from housing hold, so that
two important problems in the urban context, the idleness of intra-urban space and housing
deficit, could be treated together. For this purpose, the occurrence of urban voids in the area of
study was investigated, after analyzing the results obtained from the cataloging process, a
general diagnosis was arrived about the protective polygonal of heritage and a specific diagnosis
of each category of urban void addressed in this study. Based on the diagnosis achieved, a
proposal of urban zoning was developed to rehabilitate the investigated intra-urban spaces.
Keywords: urban void; downtown; housing deficit.

406
1 – Introdução
A necessidade do abrigo remonta desde os primórdios, sendo uma condicionante social
necessária para o bem-estar do ser humano de maneira que o acesso a habitação é um direito
previsto no artigo 25 da Declaração dos Direitos Humanos (1948). No entanto, a realidade
enfrentada atualmente mostra como as disparidades sociais e econômicas impactam nas
diferentes classes sociais. No Brasil o cenário não se difere, conforme apontado no Censo do
IBGE (2014) cerca de 6,18 milhões de famílias brasileiras necessitam de novas moradias,
associado a isso, a mesma pesquisa ainda destaca que 11.425.644 pessoas, cerca de 6% da
população nacional, vivem no que foi considerado como aglomerados subnormais. Entretanto,
outro dado apontado pela mesma pesquisa chama atenção no tocante ao déficit habitacional
nacional, é indicado que no Brasil existia um número aproximado de 6,07 milhões de domicílios
vacantes, desconsiderando-se aqueles que são de curta estadia a exemplo das casas de praia.
Isso representa 98,2% do déficit habitacional visto no país.
O que nos remete a outra problemática comumente vista nas cidades brasileiras: os vazios
urbanos. É rotineiro, ao transitarmos pelas cidades, nos deparamos com estruturas, edificadas
ou não, que se encontram desocupadas, ociosas, desprovidas de uso e/ou de atividade, estas
são as chamadas de vazios urbanos. Embora se estendam por toda a cidade, uma parcela
significativa dos vazios urbanos pode ser vista nos centros antigos, que sofreram com a expansão
urbana acelerada ocorrida em meados do século XX, marcada por um padrão de ocupação
periférico, com crescimento no sentido centrífugo que apresentava baixa densidade
habitacional e pouca diversidade funcional, o que resultou na migração da população das áreas
centrais da cidade para as novas zonas de desenvolvimento urbano (CLEMENTE, 2012).
Com as cidades se desenvolvendo em novos eixos urbanos, os centros antigos foram cada vez
mais relegados para atividades secundárias, a mudança do uso do solo nessas localidades
favoreceu de forma significativa a degradação dos imóveis e o surgimento de áreas obsoletas e
de vazios urbanos nas regiões centrais das cidades (VAZ e SILVEIRA, 2007).
Em João Pessoa, local em que se desenvolveu esse estudo, a realidade é semelhante ao visto
nacionalmente. A cidade, que teve um crescimento lento ao longo dos anos, passou por uma
série de reformas urbanas no início do século XX que resultaram na expansão em sentidos que
antes eram obstáculos para o alargamento da malha. Esse crescimento resultou no surgimento
dos vazios urbanos no centro antigo pessoense, nascedouro da cidade que sofreu com o êxodo
populacional e a ressignificação das edificações ao longo do processo da expansão urbana.

407
Diante do cenário da urbanização atual, esse trabalho buscou investigar a ocorrência dos vazios
urbanos na poligonal de tombamento do IPHAN no centro antigo de João Pessoa, entendendo
esses como possíveis potencialidades para requalificação dessa área tão importante no contexto
histórico da cidade. O intento desse estudo foi que a partir do diagnóstico obtido sobre os
espaços vazios centrais, elaborou-se uma proposta de novo zoneamento que funciona como um
norteador de ações para requalificar a área central pessoense.

2 – Os vazios urbanos
A análise desse fenômeno conhecido como vazio urbano tem seu início em meados do século
XIX quando essa expressão começa a figurar na vida urbana em consequência dos
acontecimentos pós-industriais, mas foi somente no século XX, com a crise do sistema produtivo
e o surgimento de novos vazios urbanos nos centros europeus, que foi se despertando cada vez
mais ensaios sobre essa questão no campo do urbanismo. O abandono de edifícios e zonas
industriais e a desativação de ferrovias proliferaram na malha urbana, frutos da
desfuncionalização industrial que ocorrera nos anos 1970. Tais espaços passaram a fomentar os
primeiros estudos europeus sobre as vacâncias urbanas, realizados na França, em 1979, e na
Inglaterra, em 1982 (BORDE, 2006).
Na literatura referente a essa temática é possível observar a amplitude dos conceitos de vazios
urbanos defendidos por diferentes autores, Clichevsky (2000) possui uma visão mais radical
sobre o tema, apontando vazios urbanos como terrenos e edificações a espera de demolição,
sendo estruturas em processo de arruinamento e degradação nos centros urbanos. Em
contrapartida outros autores direcionam o conceito para algo mais promissor e veem os vazios
urbanos com uma abordagem mais otimista e os enxergam como zonas de transição com um
potencial transformador, desassociando assim, o termo de algo pejorativo e desacreditado, a
exemplo de Sousa (2010) que defende que os vazios urbanos são oportunidades de mudanças,
implicando em novos usos e novas construções para a urbe e Portas (2000) que os vê como
espaços decisivos para reurbanizar ou revitalizar cidades já consolidadas
Há ainda quadros de subutilização dos espaços, onde imóveis apresentam um ou mais
pavimentos com usos enquanto os espaços remanescentes de tal edificação não desempenham
nenhuma função no tecido urbano, sendo assim, espaços obsoletos que fazem parte de um
todo, o que configura as edificações parcialmente vazias (CLEMENTE, 2012).

408
A partir do apontado pode-se notar que a questão dos vazios urbanos é uma variável em
demasiado complexa para que caiba em um conceito singular e universal, tratar de vazios
urbanos é tratar da dinâmica das cidades, que abarca muito mais do que um fenômeno isolado
e está diretamente associada com os eventos que ocorreram para que o espaço se
transfigurasse até a maneira que se encontra atualmente, sabendo que este está em constante
desenvolvimento e mudança.
Por todo exposto, dentre todas as conceituações acima citadas serão considerados nesse estudo
como vazios urbanos os “terrenos localizados em áreas providas de infraestrutura que não
realizam plenamente a sua função social e econômica, seja porque estão ocupados por uma
estrutura sem uso ou atividade, seja porque estão de fato desocupados, vazios“ (Borde, 2006,
p.14). É importante destacar que a função social de um imóvel está prevista na Constituição
Federal Brasileira de 1988 - nos artigos 182 e 183, onde se destaca que o proprietário tem pleno
direto de gozar, usar e dispor de sua propriedade desde que o exercício desse direito
corresponda aos anseios da sociedade, proporcionando bem-estar e segurança em prol do bem
coletivo.
A postura adotada por esse estudo aborda as demasiadas camadas dos vazios urbanos,
entretanto enveredou-se para categorizações que estejam diretamente ligadas à ausência de
uso, sendo aqui versadas em dois grandes grupos: os espaços vacantes e os espaços
parcialmente vacantes. Nos espaços vacantes têm-se os lotes vacantes, que se encontram sem
nenhum uso, frutos de uma especulação imobiliária que desfavorece a dinâmica urbana e os
imóveis vacantes, sendo estes tanto as estruturas que ainda possuam condições de serem
reutilizadas bem como as que estejam em processo de arruinamento, mas que não possuem
nenhum uso ou atividade em desenvolvimento. Já nos espaços parcialmente vacantes têm-se
os lotes parcialmente vacantes, aqueles que se encontram com um uso que não explora sua real
potencialidade e os imóveis parcialmente vacantes, sendo aqueles imóveis que não
desempenham uma função em sua totalidade, ou seja, imóveis que possuem espaços ociosos e
inutilizados na malha urbana, vale salientar que os espaços destinados a armazenagem e/ou
estocagem de produtos foram considerados como ociosos por não desempenharem uma
atividade positiva para a cidade.

409
3 – Recorte de estudo e Metodologia aplicada
Como já apontado, o cenário desse estudo é o Centro Antigo da cidade de João Pessoa, que tem
sua fundação em agosto de 1585, assim sendo a terceira cidade mais antiga do Brasil em termos
de fundação. No decorrer de sua formação a cidade foi dividida em duas porções: a cidade alta,
onde se firmaram as ordens religiosas e as atividades voltadas ao cunho social, e a cidade baixa,
local do principal atracadouro da cidade à época – o Porto do Capim, e onde eram empreendidas
a maior parte das atividades de comércios e serviços. Devida importância de algumas
construções e da sua paisagem local, parte do centro de João Pessoa foi tombado pelo Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em um processo que data do ano de 2009,
sob justificativa de que o patrimônio da capital paraibana “possui grande valor paisagístico (as
edificações compõem um cenário que integram a vegetação de mangue ao rio e ao mar) e
artístico (por congregar construções de diferentes estilos e épocas). ”
A poligonal de tombamento do IPHAN no centro de João Pessoa é o recorte de estudo dessa
pesquisa. Uma área que, segundo o IPHAN (2009), corresponde a 37 hectares, possuidora de 33
quadras, 502 lotes e 7 praças, sendo selecionada por se tratar da porção de maior significância
no cenário do centro como um todo, bem como por possuir uma forma que engloba os mais
variados exemplares de edificações.

Figura 01: Mapa do recorte de estudo, a poligonal de tombamento do IPHAN em João Pessoa - PB.

Fonte: Prefeitura municipal de João Pessoa (PMJP) – Editado pela autora.

410
A pesquisa referente a esse estudo é uma investigação que avalia a área tanto quantitativa
quanto qualitativamente, de forma que o estudo de caso foi dividido em três etapas: teórica,
analítica e propositiva. A primeira fase teve início com a etapa da leitura bibliográfica acerca das
temáticas abordadas, com foco no entendimento geral dos principais conceitos versados, para
que então houvesse um aprofundamento nos acontecimentos que refletiram na problemática
dos vazios urbanos.
Na segunda etapa se deu a pesquisa de campo. Para tal, foram desenvolvidas ferramentas que
pudessem auxiliar nesse processo, tais como os mapas e as fichas catalográficas. Após a
produção de todos os aparatos necessários foram realizadas visitas a campo para catalogação
dos lotes do recorte de estudo. As informações obtidas após esse processo foram,
posteriormente, colocadas em um banco de dados georreferenciados da área levantada, após a
finalização do cadastro de todos os lotes foi possível cruzar os dados obtidos e assim gerar os
mapas pertinentes a pesquisa.
A partir disto, foi possível diagnosticar a ocorrência dos vazios na área de estudo, para então
iniciar a última etapa dessa investigação: a propositiva. Com base na revisão bibliográfica feita
anteriormente e no diagnóstico obtido após a pesquisa em campo foi possível elaborar um novo
zoneamento que norteara a requalificação proposta para a área.

4 – Diagnóstico dos vazios urbanos


No diagnóstico pode-se observar a ocorrência dos vazios no recorte de estudo, apurou-se que
dos 502 lotes em estudo, 104 se encontram na categoria de imóvel vacante, 9 são lotes vacantes,
49 são imóveis parcialmente vacantes e 11 são lotes parcialmente vacantes. Os outros 329
restantes se encontram ocupados, conforme apontado no mapa e gráfico abaixo. A somatória
da ocorrência dos vazios urbanos na área é de 173 unidades, o que corresponde a 34,46 % da
totalidade dos lotes em estudo, ou seja, a taxa de vacância da área.
Os imóveis vacantes, encontrados no recorte de estudo somam 104 edificações, correspondente
a 20,71% dos imóveis de toda a área. Distribuídos por toda a poligonal, esses exemplares são
marcos hostis na paisagem urbana da área, devido ao mal estado de conservação em que a
maioria se encontra. Ao todo a soma das áreas dos imóveis vacantes, considerando todos os
pavimentos, é de aproximadamente 36.678,72 m2 - 7,77% da área total da poligonal. Dos
imóveis vacantes catalogados verificou-se que 72 são edificações térreas, quanto 32 são
sobrados de dois pavimentos.

411
Os lotes vacantes encontrados na poligonal de tombamento totalizam 9 unidades, o equivalente
a 1,79% dos lotes totais e compreendem uma área aproximada a 2.656,41 m2, o correspondente
a 0,71% da área de estudo. É importante ressaltar que a maioria desses lotes vacantes são frutos
do arruinamento de imóveis que outrora eram encontrados no local.

Figura 02: Mapa do diagnóstico dos vazios urbanos no recorte de estudo.

Fonte: Prefeitura municipal de João Pessoa (PMJP) – Editado pela autora.

Os imóveis parcialmente vacantes são aqueles que possuem uso e ocupação em um ou mais de
seus pavimentos, mas não em sua totalidade. Foram encontrados 49 exemplares dessa
categoria no recorte de estudo, o que equivale a 9,76% da totalidade dos lotes. O somatório das
áreas construídas que se encontram ociosas nesses imóveis é de aproximadamente 16.780,99
m2, proporcional a 4,53 % de toda a área construída no cerco de tombamento. Sobre tais
exemplares, verificou-se que dos 49 imóveis identificados, 40 possuem dois pavimentos e 9
possuem três pavimentos.

412
Em sua totalidade os 11 lotes parcialmente vacantes desempenham a atividade de
estacionamento privado, uma maneira informal de suprir a necessidade vista na área e de gerar
renda para algumas famílias, o somatório das suas áreas é de cerca de 3.029,37 m2, o que
corresponde a 0,81 % de toda a área tombada. Assim como acontecido nos lotes vacantes, os
lotes parcialmente vacantes são, em muitos casos, o resultado do arruinamento ou demolição
de edificações.

5 – Diretrizes para novas abordagens dos vazios urbanos


Recuperar os espaços centrais vazios vai além de novas construções e reformas, significa
estruturar a área como um todo criando um espaço que seja convidativo e aconchegante para
moradores e transeuntes. É importante que as pessoas que percorram essa área se sintam
seguras e acolhidas, para tanto é necessário se pensar no todo, da recuperação dos edifícios e
lotes vacantes até a reestruturação das calçadas e vias públicas, no entanto esse estudo foca
somente na questão da ordenação de habitações.
Enveredando nesse sentido, o conceito conservação integrada, um modelo de gestão urbana
criado na Itália que defende não somente a recuperação das estruturas físicas centrais, como
também a preocupação com o cunho social e econômico da área, foi fundamental para o
desenvolvimento das diretrizes de atuação sobre os vazios urbanos no recorte de estudo. A ideia
era reestruturar o patrimônio edificado e dá-lhe novos usos e funções que fossem mais
interessantes no contexto da cidade, mantendo a população que já residia na área e criando
novas habitações, contrapondo-se a ideia de expansão urbana como alargamento da malha.
A grande sugestão de melhoramento foi a de um novo zoneamento para o recorte de estudo,
visto as falhas vistas no vigente. A proposta é que a área passe a ser a Zona de Proteção Paisagem
Cultural (ZPPC), que teria como delimitação espacial o cerco de tombamento previsto pelo
IPHAN, devido a abrangência em relação ao patrimônio edificado e cultural da cidade de João
Pessoa. Os usos permitidos na ZPPC variam de acordo com a área (m2) do lote, alguns foram
adotados segundo o código de urbanismo de João Pessoa e outros foram propostas
desenvolvidas com intuito de aperfeiçoar a área. As diretrizes propostas no Decreto Municipal
25.138 também compõem parte das normativas elaboradas para a nova zona, entre estas
destacam-se a destinação de 30% da área total do lote para criação de áreas verdes e a
adequação da edificação com o meio – ajustando o gabarito, a composição e o ritmo das

413
fachadas. A figura 03 exemplifica o esquema em relação aos usos permitidos nas respectivas
áreas (m2) consideradas.
Haja vista o que foi discorrido em relação ao novo zoneamento para reabilitação dos espaços
vazios do recorte de estudo, intentou-se para a aplicação de tudo que foi proposto, com a
finalidade de exemplificar, de forma superficial, como o novo zoneamento funcionaria, e, com
isso obter um quantitativo alusivo aos usos propostos e a população que seria a atendida por
tais. Dessa forma dividiu-se os espaços vazios perante o grau de intervenção pela qual que cada
categoria iria passar, para tanto foram usadas as categorias definidas no Decreto municipal
25.138 – Renovação Controlada, Conservação Parcial e Conservação Total.

Figura 03: Quadro do zoneamento proposto para a ZPPC.

Fonte: Acervo da autora.

Com as classificações definidas, pensou-se então em como seria proposto a implantação das
habitações nas categorias onde o zoneamento iria ser testado. Considerando a forma longilínea
da maioria dos lotes desse estudo, estabeleceu-se que as moradias atendessem uma modulação
espacial de 2,5 m por 3,5 m, o que permitiu a criação de plantas com 35 m² e 70 m²,
proporcionais à quatro módulos e oito módulos respectivamente, essas foram sugeridas na
intenção de diversificar as composições morfológicas, entendendo que atualmente as

414
composições familiares possuem diferentes conformações, e de gerar um maior
aproveitamento de área nas construções.
Optou-se por fazer um arranjo onde a proporção da implantação das habitações era de, quando
possível, duas habitações de 70 m² para uma de 35 m². Vale ressaltar que se priorizou a
composição de 70 m² devido ao fato dessa abarcar mais usuários. Outra ressalva é em relação à
área adotada para as habitações. O padrão de é que essas fossem de 70 m² e 35 m², entretanto,
em razão da variação das áreas dos lotes essas áreas médias eram, também, passíveis de
variação. Para que não houvesse uma má interpretação dos dados, se considerou uma pequena
variação de até 3 m² para menos da área média, quando a variação era para mais a área
acrescida a média foi considerada como um todo.
Os cálculos para a viabilidade dos usos nas categorias de renovação controlada e conservação
parcial se deram de tal forma: 30% da área total foi destinado para criação de áreas verdes, dos
70 % de área restante foi para os usos propostos mediantes suas áreas, lembrando-se da
condição de implantação do uso misto, onde lotes com áreas superiores a 285 m² tinham que
destinar 25% da sua área passível de construção para comércio e serviços locais. Para as
edificações de conservação total considerou-se a área total para o uso residencial,
diferenciando-a entre menor que 100m², onde a habitação teria capacidade para 5 habitantes,
e maior que 100 m², onde a habitação teria capacidade para 8 habitantes.
Fundamentado em todos esses argumentos citados acima, foram desenvolvidos os cálculos de
cada um dos lotes em estudo, de acordo com suas categorias definidas. Ao fim, chegou-se num
resultado de 560 habitações com capacidade para atender 2534 pessoas. Esse número equivale
a sete vezes o atual. O diagrama da figura 04 apresenta todos os números obtidos através dos
cálculos.

415
Figura 04: Diagrama do cálculo de viabilidade.

Fonte: Acervo da autora.

6 – Referências bibliográfica

BORDE, A.P.L. Vazios Urbanos: perspectivas contemporâneas. 2006. 226f. Tese (Doutorado em
Urbanismo) - Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.

BRASIL. Constituição [da] Republica Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal,1988.

CLEMENTE, Juliana Carvalho. Vazios urbanos e imóveis subutilizados no Centro Histórico tombado da
cidade de João Pessoa – PB. 2012. 111f. Dissertação (Mestrado em Engenharia Urbana e Ambiental) –
Universidade Federal da Paraíba, 2012.

CLICHEVSKY, N. Vazios urbanos nas cidades latino-americanas, In: SMU Cadernos de Urbanismo n 2,
Vazios e o planejamento das cidades, 2000. Disponível em:< http://www.rio.rj.gov.br/smu.> Acesso em:
23 de maio de 2020.

COMITÊ DE REDAÇÃO DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Organização das Nações
Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris, 1948.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Censo 2010. Disponível em <


http://censo2010.ibge.gov.br/> Acesso em: 09 Setembro. 2017

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL – IPHAN. Iphan homologa o


tombamento do centro histórico de João Pessoa. 2008. Disponível em <
http://portal.iphan.gov.br/noticias/detalhes/2094> Acesso em: 24 de maio de 2020.

PORTAS, Nuno. Do vazio ao cheio, Caderno de Urbanismo N° 2 ,Vazios e o planejamento das cidades,
[s.l.] : SMU, 2000. Disponível em <http://www.rio.rj.gov.br/smu.> Acesso em: 24 de maio 2020.

SOUSA C. A. Metodologia e estratégia na avaliação de espaços urbanos obsoletos. Dissertação


(Mestrado em Arquitectura) - Universidade Técnica de Lisboa. Lisboa, 2010.

VAZ, L. F.; SILVEIRA, C. B. Áreas Centrais, Projetos Urbanísticos e Vazios Urbanos. Revista Território, 2007.

416
O SILÊNCIO NAS OBRAS MODESTAS INSERIDAS EM APAC
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Cristina de Camargo Barroso


Arquiteta e Urbanista; Mestranda do Mestrado Profissional em Projeto e Patrimônio da
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro;
cristina.barroso@fau.ufrj.br

A motivação deste artigo foi a de reforçar os critérios de autenticidade e integridade em um


projeto de restauração para preservação do patrimônio cultural edificado. O objetivo é ressaltar
as características que embasam o valor cultural das obras modestas inseridas em Áreas de
Proteção do Ambiente Cultural do Rio de Janeiro. Segundo a legislação, deve-se preservar
somente a volumetria, sendo permitida a criação de pisos intermediários. Faz-se necessária uma
evolução para que não sejam mantidos apenas fachadas e cenários e o silencio e a destruição
apaguem os interiores. Será tomado o exemplo de um sobrado no centro da cidade. Serão
definidas características que atestem seu valor e critérios para sua conservação, evitando-se o
descarte dos arranjos originais.
Palavras-chave: Restauração; Obras Modestas; Patrimônio Cultural.

The motivation of this article was to reinforce the criteria of authenticity and integrity in a
restoration project, in order to preserve the cultural heritage of the edifications. The objective is
to highlight the characteristics that underlie the cultural value of the modest constructions
included in Protected Areas of the Cultural Environment of Rio de Janeiro. According to the
legislation, only the volume should be preserved, with the creation of intermediate floors being
allowed. An evolution is necessary so that the “silencing” of the original interiors can be avoided.
The example of the townhouse downtown, will be shown. Characteristics that attest its value
and criteria will be defined for its conservation, thus avoiding the disposal of the original
arrangements.
Keywords: Architectural Restoration; Modest Works; Cultural Heritage.

417
1 - Introdução
A motivação deste artigo foi a de reforçar os critérios de autenticidade e integridade a serem
utilizados em um projeto de restauração para a preservação do patrimônio cultural edificado,
com a manutenção das características espaciais originais externas e internas, para que o interior
não seja silenciado.
O objetivo é ressaltar a importância do respeito às principais características físicas que embasam
o valor cultural das obras modestas inseridas em APAC - Área de Proteção do Ambiente Cultural,
tomando-se como exemplo o objeto de estudo de dissertação Mestrado Profissional em Projeto
e Patrimônio (MPPP) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). Trata-se de um sobrado centenário com características ecléticas,
localizado na Região Portuária do Rio de Janeiro, na Rua Senador Pompeu no 75, preservado pelo
Decreto no 7351/1988. O imóvel será restaurado para abrigar o Centro de Referência das Pautas
Contemporâneas do Movimento Social Negro, dando ênfase aos processos que tiveram como
"locus" a Região Portuária a partir do achado arqueológico do Cais do Valongo, a ser criado pelo
Instituto de Pesquisas e Ação Comunitária – IPAC, organização não governamental que realiza
projetos sociais.
A partir da avaliação preliminar, será possível definir quais são as principais características físicas
que atestam seu o valor cultural e que devem ser preservadas para a conservação deste edifício
histórico. Serão também identificados aspectos da teoria da conservação, aceitos
internacionalmente, relacionados ao trato com as obras modestas. A metodologia utilizada para
a avaliação preliminar realizada foi a vistoria no local, com o levantamento métrico e fotográfico,
a análise do projeto aprovado de reforma e da documentação levantada, além do estudo da
tipologia do sobrado e dos seus métodos construtivos.
Este trabalho foi realizado no ano de 2020, durante a Pandemia do Corona Vírus. O
levantamento métrico e fotográfico do imóvel e a pesquisa de campo já haviam sido realizados
em 2019, antes do início da quarentena que foi instaurada na cidade.
Está sendo proposto um novo uso, com visitação de público em dois pavimentos, embora a ideia
seja a de procurar manter ao máximo a conformação remanescente, conservando-se os pés
direitos existentes e evitando-se o descarte dos arranjos originais internos, para que a atmosfera
do bem cultural construído seja mantida e usufruída por seus frequentadores. A prática da
conservação deve viabilizar a evolução de tipologias, conferindo conteúdo histórico às cidades,

418
e não conservar apenas fachadas e cenários urbanos. Há de se estudar com esmero a estrutura
da edificação para garantir a mínima intervenção.
Trata-se de uma inciativa singela em um imóvel preservado relativamente pequeno. Mas ao ser
constatado que há pelo menos 150 anos atrás ele já estava construído, esta inciativa se agiganta,
principalmente ao considerar-se que a edificação está enquadrada em uma tipologia ainda tão
presente na cidade do Rio de Janeiro: o sobrado. As tipologias arquitetônicas formam um todo
indivisível com seus respectivos tecidos sociais e urbanos, e o novo uso proposto vai ao encontro
das demandas sociais da região portuária.
Valorizar a autenticidade as obras modestas do Rio de Janeiro inseridas em APAC é resgatar a
memória do carioca, apontando para um futuro mais justo, sustentável e de igualdade social.
Como referência, foram utilizados dois artigos do orientador da mestranda, professor Cláudio
Antonio Santos Lima Carlos,: Renovação Urbana Contida por Formas Históricas, Belo Horizonte,
2007; e Interiores Sob Risco: Parâmetros de intervenção previstos pelo novo Código de Obras
do Rio de Janeiro para edificações protegidas, publicado no 3º Simpósio Científico do ICOMOS
Brasil Belo Horizonte/MG, em 2019
O Manual de Obras em Edificações Preservadas elaborado pela Prefeitura do Rio de janeiro de
1991 foi consultado, além do Manual de Conservação Preventiva para Edificações. Brasília:
MINC/IPHAN – MONUMENTA, 1999. Também o livro Conservação e Restauro - Arquitetura
Brasileira, organizado pela arquiteta Marcia Braga e o excelente e ainda muito atual livro
Arquitetura no Brasil - Sistemas construtivos, de Sylvio de Vasconcelos, UFMG, 1979.

2 – Os parâmetros da APAC
A APAC, Área de Preservação do Ambiente Cultural, foi criada no Rio de Janeiro na década de
1980 do século passado. É um instrumento de proteção do patrimônio cultural que estabelece
quais imóveis poderão ser preservados e quais são passíveis de renovação, mantendo-se sempre
os parâmetros da ambiência a ser preservada. O imóvel objeto de estudo está inserido na APAC
SAGAS, dos bairros Saúde, Santo Cristo, Gamboa e parte do Centro (figura 1). De acordo a
legislação vigente, o Decreto 7351 / 1988, é necessário que a volumetria do imóvel seja
preservada. A fachada, as esquadrias, o telhado e os prismas de ventilação devem ser mantidos
e caso necessário, restaurados. Mas, segundo os parâmetros atuais, é permitido que o interior
da edificação seja todo renovado, inclusive com a criação de mais um piso intermediário, desde
que a nova laje fique a uma distância de três metros da fachada (figura 2).

419
Figura 01: Mapa da Região Portuária de Janeiro e do limite da APAC

Fonte: www.researchgate.net/figure/Figura-1-Mapa-esquematico-da-Zona-Portuaria-do-Rio-de-Janeiro-
com-destaque-para-a_fig1_313337685 (2012), trabalhado pela autora.

Figura 02: Sugestões para obra de modificações com acréscimo de pavimento.

Fonte: Como recuperar, reformar ou construir seu imóvel no Corredor Cultural,


Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2002.

420
Ao seguir estes parâmetros, a área construída da edificação é ampliada. Mas, uma vez finalizada
a intervenção, observa-se uma dissociação entre o exterior e o interior do imóvel. A fachada
transforma-se em um cenário, sem identificação com o interior da edificação, que já perdeu os
vestígios que remeteriam ao modo de viver do passado, que foi silenciado.
Segundo o conceito contemporâneo de patrimônio, no exercício da cultura no desenvolvimento
das comunidades, considera-se não só as qualidades estéticas do bem como um fim em si
mesmo, mas também sua relação com o cotidiano da vida.
As edificações históricas, mesmo as obras modestas possuem aspectos sociais, ambientais e
econômicos que devem ser considerados no âmbito do desenvolvimento sustentável.
Cabe ressaltar que a partir da publicação da Carta de Veneza (1964 – artigo
5º), tornou-se consenso mundial que a melhor forma de conservação de bens
culturais é a sua destinação a uma função útil à sociedade, desde que
respeitadas as principais características físicas que embasam seu valor
cultural em conceitos da teoria e história da arquitetura, relacionados à
definição do que é tipologia arquitetônica, com seu respectivo rebatimento
para a realidade da paisagem das APACs do Centro da cidade (CARLOS, 2019,
p.03).

3 – Apresentação do objeto de estudo


O objeto de estudo é um sobrado de construído no século XIX, com alguns elementos originais
da época de sua construção (figura 03). Está localizado na Rua Senador Pompeu 75, antiga Rua
Príncipe dos Cajueiros, aberta em 1809 na antiga chácara dos Cajueiros. Foi realizada uma
pesquisa no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro e nele foi encontrado um projeto
aprovado de reforma para a edificação, que data de em 1889.
Ao comparar a edificação com a descrição de Reis Filho (1978) e pela análise do projeto
pesquisado, é seguro afirmar que trata-se de sobrado com o padrão construtivo característico
da virada do século XIX para o século XX, com paredes externas autoportantes, pisos de madeira
com estrutura de barrotes, forros de madeira, telhado com estrutura de madeira e telhas de
barro francesas, prisma interno, esquadrias de madeira com duas folhas, almofadas, vidros e
bandeiras fixas, fachada com elementos em cantaria, adornos e frisos em estuque e gradis em
ferro.
O imóvel ainda conserva elementos construtivos originais, em diferentes estados de
conservação, tais como a serralheria das bandeiras das portas do térreo e do balcão do 2º
pavimento, os ornatos da fachada, as escadas de madeira, os pisos de tábuas com estrutura de

421
barrotes e alguns forros. Internamente há alterações, como o acréscimo de um mezanino e de
um banheiro para portadores de necessidades especiais.
Figura 03: Foto da fachada do imóvel da Rua Senador Pompeu 75.

Fonte: BARROSO (2019).

4 – Revisão Bibliográfica
Nesta seção nos valeremos de dados apresentados na bibliografia indicada para definir alguns
elementos da edificação.
Não foram verificados os alicerces propriamente ditos. Mas, segundo Vasconcellos (1979), nas
construções de alvenaria, sejam de pedra ou de tijolo, os alicerces são quase sempre de
alvenaria de pedra e barro, empregando-se pedras tão grande quanto possível, bem acamadas
e calçada com pedras menores.
No Manual de Conservação Preventiva para Edificações do IPHAN as fundações para este tipo
de edificação estão descritas como fundações corridas, formadas por embasamento de
alvenaria que distribui as cargas sobre o terreno.
Sobre as alvenarias autoportantes, no mesmo Manual de Conservação do IPHAN consta a
afirmação que estes elementos constituem material autônomo, que não necessitam de nenhum
outro elemento de estruturação. No levantamento fotográfico foi diagnosticado que as paredes

422
limítrofes autoportantes do objeto de estudo são constituídas de tijolo maciço, assim como as
paredes de vedação internas.
Segundo o Manual de Obras em Edificações Preservadas da Prefeitura da Cidade do Rio Janeiro,
de 1991, consolidar é uma operação que deve ser iniciada com a realização de um diagnóstico
apurado do estado de conservação do elemento deteriorado. Como está sendo proposto um
novo uso, com visitação de público nos dois pavimentos, e como a proposta é manter a estrutura
original existente, faz parte deste diagnóstico o dimensionamento dos barrotes, para que na
ocasião do projeto executivo possa ser estimada a carga suportada pela estrutura existente.

5 – Metodologia
Como metodologia de trabalho, inicialmente foi elaborado o levantamento histórico do edifício,
da época da construção e das intervenções sofridas. A comparação do material antigo
pesquisado com os dados levantados no diagnóstico foi de grande valor para a definição do
resultado encontrado.
Foram estudados exemplos similares para que fosse definido um padrão de comparação, além
da realização de consultas à bibliografia indicada.
Durante levantamento métrico e fotográfico, foram realizadas as seguintes ações no imóvel:
identificação dos materiais de construção empregados, dos sistemas construtivos e estruturais
e das patologias existentes, para a confecção do mapeamento de danos.
De posse destes dados, foi possível iniciar a análise preliminar do estado dos materiais e
sistemas construtivos.
Para a definição dos parâmetros de preservação abordados neste artigo, foram selecionados os
três quesitos considerados os mais importantes para a concretização da restauração e a
viabilização da criação do Centro de Referência: a conformação original do imóvel, a
sustentabilidade econômica e o sociocultural.

6 – Resultados Alcançados
Trata-se de um prédio com características do final do século XIX; que apresenta patologias
estruturais visíveis.
Será proposto um novo uso de Centro de Referência, com visitação pública, compatível com a
legislação da área onde se localiza o bem: CB 1 A, Dec. 7351/1988; Subárea A – Morro da
Conceição, Portaria IPHAN 135/2013; AC1/ZR3 – Dec. 322/1976.

423
Foram diagnosticadas algumas patologias estruturais, como uma fenda na parede interna do
segundo pavimento, no encontro com a fachada, e a deformação da cumeeira do telhado.
A estrutura de barrotes de madeira existente será restaurada e reforçada, mas, na medida do
possível, não será descartada e substituída por laje de concreto.
O nível dos pisos será mantido, com seus amplos pés direitos. Não será proposta a inserção de
mais um pavimento, com a diminuição dos pés direitos atuais, para a ampliação da área do
imóvel. Por conseguinte, não ocorrerá a perda da autenticidade nem a perda do valor imaterial
do conjunto urbano.
A fachada deverá ser restaurada, assim como as empenas laterais, de acordo com as boas
práticas para obras com estas características. O telhado deverá ser reformado e a sua estrutura
reforçada.
As instalações prediais serão substituídas, com confecção de projetos para a racionalização do
uso da água e das fontes de energia.
Segundo Lima Carlos (2019), compatibilizar a conservação da memória às novas funções, escalas
e demandas socioeconômicas, sem prejuízo de sua autenticidade tipológica e de seus
respectivos tecidos sociais, ainda são objetivos a serem plenamente alcançados pelo
planejamento de cidades.
Sobre o ponto de sustentabilidade econômica no projeto, deve ser mencionado o conceito de
energia embutida, segundo o qual os edifícios antigos representam um capital cultural, pelo seu
valor de memória, e um capital econômico, caracterizado pelo investimento feito no passado,
traduzido em recursos naturais e energia. O conceito de energia embutida nas edificações
considera o montante de energia incorporado no processo de produção, transporte e
construção efetiva, incluindo a energia empregada na sua demolição. Portanto, a preservação
de edifícios históricos constitui-se em um meio de resguardar a energia empregada na
construção, caracterizando-se como um recurso não-renovável. E quando estes edifícios são
mantidos regular e adequadamente, requerem menos recursos para reabilitação e restauração
do que a demolição e a construção de novos edifícios, ainda que estes últimos sejam tidos como
sustentáveis.
Em relação ao critério sociocultural, o próprio nome do projeto já revela a sua intenção: Sobrado
na Rua Senador Pompeu 75 - APAC-SAGAS - Instalação de Centro de Referência na Sede do
Instituto de Pesquisas e Ação Comunitária – IPAC.

424
Trata-se da restauração de sobrado, sede do IPAC, para a instalação do Centro de Referência
das Pautas Contemporâneas do Movimento Social Negro, dando ênfase aos processos que
tiveram como "locus" a Região Portuária do Rio de Janeiro, principalmente a partir do achado
arqueológico do Cais do Valongo. É a salvaguarda de um bem imaterial, a memória do
movimento social negro da região portuária carioca na última década, em um bem cultural
edificado, um sobrado preservado dentro de APAC.
Através da criação de uma APAC, a legislação urbana estabelece que a volumetria original das
edificações protegidas deve ser conservada ou recomposta, não havendo possibilidade de
expansão externa.
Porém, internamente, tornou-se possível a subdivisão dos amplos pés-direitos originais, desde
que fossem mantidos os acessos às esquadrias das fachadas principais, com a preservação de
suas funções. Desta forma, passou-se a permitir um ganho de área útil interna. Uma expansão
contida, que estabeleceu um estímulo legal ao descarte dos arranjos originais dos interiores,
com o consequente desaparecimento das soluções de conforto ambiental tais como pés-direitos
altos, forros e prismas de iluminação e ventilação associados às claraboias. A legislação prioriza
o aumento de área como única alternativa de incentivo à ocupação dessas edificações, em
detrimento das qualidades ambientais, espaciais e históricas, que são destruídas com as
reformas.

7 – Considerações Finais
A proposta de projeto de restauração e recuperação das características originais do sobrado da
Rua Senador Pompeu 75, para a instalação do Centro de Referência das Pautas Contemporâneas
do Movimento Social Negro, poderá servir como exemplo de uma mudança de enfoque na
intervenção nos bens culturais construídos preservados. A expectativa, embora remota, é de
que ocorra uma revisão da legislação, para que a relação entre o interior e o exterior dos imóveis
inseridos em APAC seja protegida. A iniciativa da criação de áreas de proteção do ambiente
cultural foi de grande valor para a preservação do centro histórico do Rio de Janeiro. Porém,
decorridos quase 40 anos, a autenticidade dos imóveis que ainda se encontram íntegros corre
grande risco de ser silenciada para sempre. A prática da conservação deve viabilizar a evolução
de tipologias, conferindo conteúdo histórico às cidades, e não conservar apenas fachadas e
cenários urbanos. Há de se estudar com esmero a estrutura da edificação para garantir a mínima
intervenção.

425
O que é exigido pela legislação, como a conservação apenas da volumetria do imóvel, é pouco e
já está obsoleto. Deve-se ir mais além e estudar toda a edificação, interna e externamente,
buscando encontrar e preservar sua unidade potencial. Adotando-se uma postura sustentável
de preservação e de resgate, será possível garantir que legado do passado perdure, para a
fruição das novas gerações.
Valorizar a autenticidade as obras modestas do Rio de Janeiro inseridas em APAC é desafio que
deve ser abraçado pelas novas gerações de arquitetos.
Como contribuição para o I Congresso Internacional Estudos da Paisagem, seria muito
importante averiguar, qual o rebatimento do tema apresentado no estado de Alagoas, com seu
importante acervo de patrimônio histórico cultural?
Este artigo serviria como um alerta?

Referências
BRAGA, M. Conservação e Restauro – Arquitetura. Rio de Janeiro: Rio Sociedade Cultural Ltda., 2004.

Corredor Cultural: como recuperar, reformar ou construir seu imóvel. Prefeitura da Cidade do Rio de
Janeiro: RIO ARTE, IPP, 2002

KLUEPPEL, Griselda P; SANTANA Mariely C. Manual de Conservação Preventiva para Edificações.


Brasília: MINC/IPHAN – MONUMENTA, 1999.

LIMA CARLOS, Claudio A. S. “Renovação urbana contida por formas históricas”. FORUM PATRIMÔNIO:
amb. constr. e patr. sust. Belo Horizonte, v.1, n.1, pp. 92-103.

LIMA CARLOS, Claudio A. S. “Interiores Sob Risco: parâmetros de intervenção previstos pelo novo Código
de Obras do Rio de Janeiro para edificações protegidas”. 3º Simpósio Científico do ICOMOS Brasil. Belo
Horizonte, pp.1-16.

Manual de Obras em Edificações Preservadas – Prefeitura da Cidade do Rio Janeiro, Divisão de


Preservação e Restauração,1991.

GERSON, Brasil. Histórias das Ruas do Rio. Rio de Janeiro: Bem–Te–Vi, 2015.

REIS FILHO, N. G. Quadro da Arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1978.

VASCONCELOS, Sylvio. Arquitetura no Brasil: Sistemas construtivos. Belo Horizonte: UFMG, 1979.
Disponível em
http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/536#:~:text=Patrim%C3%B4nio%20Material%20%2D%20AL-
Acesso em: 20 fev. 2021.

426
PATRIMÔNIO INDUSTRIAL NA CIDADE DE SÃO PAULO: o silêncio da Companhia
Antarctica
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido

Larissa Fernandes de Morais


Graduanda em arquitetura e urbanismo; IFSP; larissamorais.ifsp@gmail.com.

Vânia Cristina Feitosa


Administradora de Empresas; Cine a Vapor Produções; feitosavcf@yahoo.com.br.

Thais Cristina Silva de Souza


Prof.ª Dr.ª Arquitetura e Urbanismo; IFSP; thais.souza@ifsp.edu.br.

Este artigo tem por objetivo expor um breve panorama sobre o patrimônio industrial da cidade
de São Paulo e a preservação na sua contemporaneidade. O foco é apresentar o histórico da
antiga fábrica da Cervejaria Antarctica, o contexto da legislação, o zoneamento e sua situação
atual. Esse conjunto arquitetônico, lindeiro à antiga linha férrea São Paulo Railway, ainda se
mantém parcialmente preservado, entretanto, com inúmeras patologias, em estado de
degradação e à espera de um novo uso. Nascida “Antarctica Paulista - Fábrica de Gelo e
Cervejaria”, em 1888, e desativada em 1995, esse sítio urbano representa a memória social da
cidade e une a história, a memória e o patrimônio.
Palavras-chave: patrimônio industrial; Companhia Antárctica; restauro.

This article aims to expose a brief overview of the industrial heritage of the city of São Paulo and
the preservation in its contemporaneity. The focus is to present the history of the former brewery
of Cervejaria Antarctica, the context of the legislation, the zoning and its current situation. This
architectural ensemble, similar to the old São Paulo Railway, is still partially preserved, however,
with numerous pathologies, in a state of degradation and waiting for a new use. Born “Antarctica
Paulista - Fábrica de Gelo e Cervejaria”, in 1888, and deactivated in 1995, this urban site
represents the social memory of the city and unites history, memory and heritage.
Keywords: industrial heritage; Antarctic Company; restoration .

427
1 – Um breve histórico da Companhia Antarctica
O transporte ferroviário no estado de São Paulo muito contribuiu para o desenvolvimento de
suas cidades, levando a produção agrícola produzida nas fazendas até o porto de Santos para
que pudesse ser encaminhada por navio aos compradores externos.
Segundo (SANTOS, 2005), o surgimento dessa ferrovia aconteceu somente em 1867, mesmo já
tendo havido algumas discussões sobre a necessidade de sua implantação no estado de São
Paulo.
A “São Paulo Railway - SPR, também conhecida popularmente como Estrada
de Ferro Santos - Jundiaí e tratada familiarmente de Inglesa, foi o primeiro
trecho ferroviário de São Paulo a entrar em funcionamento, construído para
ligar o principal porto exportador à principal região produtora de café no
Oeste da Província...” (SANTOS, 2005, p. 26)

No surgimento dessa ferrovia de capital estrangeiro, um dos principais insumos de transporte


era o café. Conhecido como ouro verde, era cultivado com mãos de ferro pelos donos de terra
no interior do estado, que utilizavam principalmente mão de obra escrava até meados de 1888,
quando foi promulgada a lei áurea.
Além do café, outras produções agrícolas eram recorrentes no transporte ferroviário nessa
época, sendo também incipientes a cana de açúcar e o algodão, em quantidades significativas.
Muitas das cidades paulistas que conhecemos surgiram a partir da estrada de ferro,
desenvolvendo sua economia ao redor das estações ferroviárias implantadas. Nesses locais
transitavam muitos trabalhadores e a troca de saberes, produtos e serviços era necessária para
a boa circulação de mercadorias no local, incrementando a inter-relação entre os trilhos e as
cidades.
O crescimento das cidades a partir da segunda metade dos oitocentos estava
então associado às transformações do país independente que procurava
inserir-se nos marcos internacionais do desenvolvimento do capitalismo
tanto do ponto de vista econômico e político quanto pela incorporação de
doutrinas, valores, modos de vida. A expansão cafeeira após a extinção do
tráfico internacional de escravos em 1850, colocou de forma urgente e
preocupante a questão das transformações das relações de trabalho escravo
em livre e incrementou a expansão das cidades já que necessitava de uma
crescente e complexa rede de atividades de comercialização e exportação,
todas de caráter urbano. (LANNA, 1999, p.04)

Para além do crescimento econômico no estado, com a ampliação da malha ferroviária pelo
oeste paulista, a fim de alcançar as fazendas mais distantes, também houve o desenvolvimento
de fábricas e indústrias em bairros adjacentes ao traçado dos trilhos, facilitando a logística para

428
carga e descarga de insumos e despacho da produção rumo às demais cidades e ao porto de
Santos.
As riquezas trazidas do interior por meio dos trens cargueiros pela ferrovia até o porto de Santos
também incentivavam o crescimento da cidade de São Paulo, que aproveitava os insumos
trazidos por meio das estações. Muitas indústrias foram sendo construídas próximas a esses
locais e espalhadas ao longo do perímetro urbano, atraídas pela logística do transporte e envio
de suas produções para outras localidades.
No processo de industrialização da América Latina, a instalação das
cervejarias estaria relacionada a países que receberam imigração alemã.
Muitos imigrantes trouxeram este conhecimento de produção cervejeira.
Dentre as principais cervejarias implantadas nas cidades que se urbanizavam
entre o final do século XIX e o começo do século XX, a cidade de Quilmes, na
Argentina, e as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro serão lócus da
implantação de parques industriais e voltados para a produção da cerveja.
(SOUSA, 2017, p. 142)

Com o surgimento datado em 1888, a Companhia Antarctica Paulista nasce a partir da sociedade
de Louis Bucher, filho de cervejeiros alemães, e Joaquim Salles, dono de um matadouro
localizado próximo à primeira cervejaria de Bucher, no bairro da Água Branca, na zona oeste de
São Paulo. Segundo Salgado e Sousa (2017), o surgimento da cervejaria em si se dá quando Salles
e Bucher decidem utilizar uma máquina de gelo existente no matadouro, o que possibilitou a
fabricação da cerveja. Assim surgiu, em 1888, a “Antarctica Paulista – Fábrica de Gelo e
Cervejaria”.

Figura 01: Propaganda da Companhia Antarctica Paulista no Correio Paulistano, em 1900

Fonte: Acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo

429
Localizado próximo às estradas de ferro Inglesa e Sorocabana, ainda no bairro da Água Branca,
o complexo industrial formado a partir dessa situação contava com espaços diversos, entre eles,
o matadouro, câmaras frigoríficas, espaço para a fabricação de alimentos enlatados, além de
escritório e casas para os trabalhadores do conjunto.
Foi apenas em 1904 que a Companhia Antarctica Paulista mudou de sede, após adquirir o
controle das ações da Cervejaria Bavária, sua concorrente, e passou a ocupar o complexo
industrial localizado na Avenida Bavária (posteriormente renomeada para Avenida Presidente
Wilson), no bairro da Mooca, zona leste da capital. A partir desse momento, a Companhia
Antarctica passou a se expandir e se desenvolver, utilizando-se da estrutura deixada pela
cervejaria Bavária no local, que contava 23.000 m², um edifício principal com cinco pavimentos
e dois poços artesianos, além de todo um sistema de resfriamento, utilizado na fabricação da
cerveja e de gelo, de um gerador de energia próprio e até um desvio da ferrovia Inglesa, que
terminava no complexo e permitia que a matéria prima para a fabricação da cerveja chegasse
com mais facilidade. Com essa expansão, a Companhia chegou a abrir, em 1911, uma nova sede
na cidade de Ribeirão Preto, no interior do estado de São Paulo.

Figura 02: Projeto da Fábrica Antárctica (1914)

Fonte: Arquivo Municipal Washington Luís

430
A Companhia Antarctica Paulista ocupou o complexo até o ano de 2000, quando se fundiu com
a Cervejaria Brahma e, a partir dessa fusão, surgiu a AmBev. A fusão deu-se como consequência
de uma série de questões, explicitadas por Salgado e Sousa:
A perda do uso industrial deriva de uma complexa conjuntura, envolvendo
aspectos políticos, sociais, culturais e, sobretudo, econômicos, decorrentes
da evolução urbana da capital paulista. Entretanto, dois momentos foram
decisivos: a mudança da implantação das indústrias dos eixos ferroviários
para os rodoviários na década de 1950 e a mudança do perfil econômico da
cidade de São Paulo de embasamento industrial para serviços a partir da
década de 1980, em decorrência das alterações mundiais do processo
produtivo. (SALGADO E SOUSA, 2017, p. 56)

Em 2007, foi aberto o processo de tombamento do complexo da Companhia Antarctica, sob o


número 2007-0.162.678-6, que foi concluído em 2016, com a Resolução nº 19, do CONPRESP.
Essa resolução estabelece diferentes níveis de tombamento para cada um dos edifícios
existentes, de acordo com as necessidades individuais. Juntamente com outros edifícios fabris
que surgiram num contexto semelhante, o complexo encontra-se protegido perante a lei, porém
apresenta-se em deterioração, característica comum a diversas construções na cidade de São
Paulo.

2 – As manifestações patológicas: o silêncio do desaceleramento das atividades industriais da


cidade
Quando caminhamos pela cidade de São Paulo, nos deparamos com alguns edifícios vazios e
sem uso, abandonados e aguardando a especulação imobiliária ou a sua deterioração pelas
ações do tempo. Uma vez refletindo sobre as questões de unir a academia e a realidade para os
projetos de graduação do curso de arquitetura e urbanismo do Instituto Federal São Paulo- IFSP,
a antiga fábrica da Cervejaria Antarctica se fez presente. Com uma história incrível, apresentava
manifestações patológicas e se encontrava em um processo de degradação que gerou reflexão
sobre o tema das antigas fábricas, das indústrias ao longo da via férrea no eixo Leste-Oeste da
cidade de São Paulo, do processo de tombamento recente e do seu uso no futuro.
Segundo as cartas patrimoniais, principalmente a Carta de Veneza (1964), que orienta sobre a
conservação e manutenção do patrimônio cultural, as manifestações patológicas surgem
principalmente pela falta de manutenção e conservação preventiva e pela falta de uso das
edificações.

431
[..] Art.4º A conservação dos monumentos exige, antes de tudo, manutenção
permanente.
Art.5º A conservação dos monumentos é sempre favorecida por sua
destinação a uma função útil à sociedade; tal destinação é, portanto,
desejável, mas não pode nem deve alterar a disposição ou a decoração dos
edifícios. É somente dentro destes limites que se devem conceber e se podem
autorizar as modificações exigidas pela evolução dos usos e costumes.
(IPHAN, 2004, p.92)

As patologias de um edifício correspondem às "doenças" ou danos causados por diversos fatores


como: infiltração das águas da chuva, poluição, vandalismo, ações do tempo, umidade,
intervenções inadequadas, destacamento e fissuras, entre outros. As causas dessas patologias
podem ser intrínsecas ou extrínsecas, ou seja, podem ser provenientes dos materiais que
constituem a edificação ou de fatores externos (BRAGA, 2003, p.87-8). No primeiro caso, são
resultantes do processo químico dos materiais empregados na própria construção; no segundo
caso, surgem a partir de fatores físicos e ações externas, como catástrofes, erosão mecânica,
ação de animais (pombos) ou plantas e vandalismo, entre outros (Idem, ibid.).
Constata-se, desse modo, que o edifício se decompõe ao passar dos anos, necessitando de
reparos e manutenção, dos quais depende o prolongamento de sua vida útil. O ar, a água, a
umidade, a luz, a poluição, a temperatura e os microrganismos interferem direta ou
indiretamente nas edificações. As partículas existentes no ar, como fuligem, poeira e fumaça,
cotidianamente agridem as fachadas dos edifícios – quando transportadas, assentam-se em
camadas sobre os monumentos e formam uma crosta negra que provoca a erosão progressiva
da superfície.
A água, de maneira geral, corresponde ao elemento da natureza causador de maior degradação
nas edificações, seja por meio da chuva (com infiltrações e chuvas ácidas), do lençol freático
(infiltrações ascendentes nas alvenarias), do transporte de sais e outros componentes químicos
e dos agentes biológicos (fungos, bolor e insetos) – o que ocorre caso a água tenha caminhos
abertos para percorrer, como uma simples telha quebrada. A água em combinação com as
sementes que o vento traz e a terra oriunda dos tijolos cozidos na alvenaria formam a vegetação
de pequeno e médio porte que se destaca na fachada da antiga Cia Antarctica.
O destacamento da argamassa, ou soltura da camada superficial, é causado principalmente pela
umidade ou contato direto com a água. No antigo edifício da Antarctica, os problemas são vistos
na fachada externa, como a vegetação de porte pequeno e médio entre a argamassa e os tijolos
que aparentemente ocasionaram o destacamento da argamassa e outras fissuras em grande

432
parte da edificação. Mas há outros problemas que podem ocasionar esse destacamento, como
a ruptura de tubulação, a má aplicação do revestimento, uma proporção inadequada das
argamassas, a qualidade dos materiais, as vibrações e a umidade ascendente. Na fachada do
edifício também é possível verificar pichações, vidraças quebradas, infiltrações, dutos de água
oxidados e alteração das esquadrias.
A investigação efetiva, a realização de um mapa de danos e o projeto de restauro são
fundamentais para que a edificação possa ser reutilizada e sua história e sua memória
preservadas.

Figura 03: Antiga Companhia Antarctica Paulista

Fonte: Autores, 2019

3 - Projeto arquitetônico e restauro


No decorrer do segundo semestre de 2019, nas disciplinas de Projeto Arquitetônico (APAQ8) e
Técnicas Retrospectivas (ATRE8), ambas ministradas no oitavo semestre do curso de Arquitetura
e Urbanismo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo - IFSP, os

433
alunos se debruçaram sobre o terreno ocupado pelas edificações que anteriormente faziam
parte da Companhia Antarctica, na busca de implantar ali um espaço cultural e esportivo, nos
moldes do SESC (Serviço Social do Comércio), que servisse à região da Mooca, aliando
funcionalidade e preservação da memória do complexo. Nessa linha, os projetos foram
associados à disciplina de Técnicas Retrospectivas (ATRE8), buscando trabalhar também com
diretrizes de restauro, que respeitassem o valor histórico e patrimonial do complexo. Diante
disso, diversos projetos foram desenvolvidos, entre eles, o SESC Antarctica, trabalho resultante
da equipe composta por Diego Moreno Ribeiro de Oliveira, Larissa Fernandes de Morais e
Matheus Wey Fernandes.
O projeto do SESC Antarctica foi idealizado de maneira que diversas vertentes do restauro
fossem contempladas, mas a teoria com maior aplicação foi a de Camilo Boito (BOITO, 2003).
Arquiteto, restaurador, crítico e historiador, teve um papel relevante na transformação da
historiografia da arte e na formação de uma nova cultura arquitetônica na Itália. Ele apresentou
oito princípios para intervenções no patrimônio cultural, entre eles: a diferença entre o novo e
o antigo e a diferença entre os materiais construtivos, assim evidenciando o projeto.

Figura 04: Fachada principal dos edifícios adicionados ao complexo

Fonte: Diego Moreno Ribeiro de Oliveira, 2019

A valorização das edificações pelo processo de restauro também se daria pelo seu registro
fotográfico, tanto de antes da obra como de durante o processo, para evidenciar e preservar a

434
memória dos edifícios. Essas fotos seriam expostas no acervo permanente do novo SESC
Antarctica.
Além disso, propõe-se que sejam datadas todas as mudanças realizadas no complexo, para que
não haja prejuízo quanto aos elementos originais. Indica-se, também, que haja uma avaliação
arqueológica para viabilizar a possibilidade de as fachadas dos prédios tombados serem
descascadas para se deixar os tijolos originais expostos, trazendo um ar rústico e mantendo a
linguagem dos prédios semelhantes, que valoriza a técnica utilizada na época.

Figura 05: Fachada principal do edifício tombado

Fonte: Diego Moreno Ribeiro de Oliveira, 2019.

O programa de necessidades exigido para um SESC, apesar de bastante extenso, foi bem
acomodado no edifício tombado e na área de todo o complexo, contando com os setores:
sociocultural, saúde e nutrição, físico-desportivo, gerencial e apoio.
Buscou-se pelo projeto evidenciar a diferença entre o novo e o velho por meio não só dos
materiais e da forma, mas também pela escolha de elementos neutros que possibilitassem
maior destaque para os edifícios tombados com relação ao novo prédio do centro cultural e
esportivo.
Tombado em 2016 pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e
Ambiental da Cidade de São Paulo – Conpresp, o remanescente fabril armazena as histórias dos

435
imigrantes, da ferrovia, da industrialização, do processo de transformação econômica e
evidencia o silêncio do desaceleramento das atividades industriais da cidade.

Considerações Finais
A intenção da criação do centro cultural e esportivo, SESC Antarctica, seria a de que fosse um
conjunto que parecesse estar sempre ali, esperando ser descoberto pelos moradores da região
e da cidade de São Paulo, como um grande complexo com espaço de recreação, lazer, auditório,
estacionamento, comedoria, loja e áreas de piscina e atividades esportivas. Tímido e ao mesmo
tempo grandioso, cheio de valor histórico e aconchego, seria motivo de orgulho para os
moradores do tradicional bairro da Mooca e da cidade de São Paulo.

Referências
BOITO, Camilo. Os restauradores: conferência feita na Exposição de Turim em 7 de junho de 1884. Cotia:
Ateliê Editorial, 2003.

BRAGA, Márcia. Conservação e restauro. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 2003.

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Cartas patrimoniais. Brasília: Ed. 3, IPHAN,
2004.

LANNA, Ana Lúcia Duarte. Ferrovias, cidades, trabalhadores: a conquista do oeste (1870-1920). In: O que
a FAU pesquisa em seus 50 anos [S.l: s.n.], 1998.

SALGADO, Ivone; SOUSA, Diógenes. A Companhia Antarctica Paulista em São Paulo: memória e
patrimônio edificado. Revista Arq. Urb. São Paulo: USTJ, Vol. 1 Nº 19, pp. 51-63.

SANTOS, Cecília Rodrigues dos. De Santos a Jundiaí: nos trilhos do café com a São Paulo Railway. São
Paulo: Magma Editora, 2005.

SOUZA, Diógenes Rodrigues de. Cidade e Cerveja Companhia Antarctica Paulista e Urbanização Em São
Paulo. Dissertação - Pontifícia Universidade Católica de Campinas-PUC. Campinas, 2017.

436
PATRIMÔNIO, MEMÓRIA E SILÊNCIOS: O Palacete Santa Mafalda e a família Valle
Amado em Juiz de Fora
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Mariana Cunha de Faria


Mestranda em História; UFJF; marianacunhadefaria@gmail.com

Este resumo tem por objetivo dissertar sobre a memória silenciada por trás do Palacete Santa
Mafalda, localizado no centro da cidade de Juiz de Fora - MG, como lugar de memória,
dialogando com o papel desempenhado por este no presente e no passado, demonstrando que
a memória latente no convívio da sociedade juizforana como escola não é a única que deve ser
lembrada. Busca-se destacar o silenciamento sobre a memória da família Valle Amado a quem
o palacete pertenceu. O Palacete foi construído na segunda metade do século XIX para se tornar
Casa de Veraneio,um presente dado ao imperador, e que passou a ser escola a partir de 1907,
função que foi desempenhada até meados de 2013.
Palavras Chave: Patrimônio, Memória,Silêncio,família Valle Amado

This summary aims to talk about the silenced memory behind Palace Santa Mafalda, located
in the center of the city of Juiz de Fora - MG, as a place of memory, dialoguing with the role
played by it in the present and in the past, demonstrating that the latent memory in the
coexistence of Juizforana society as a school is not the only one that should be remembered. It
seeks to highlight the silence about the memory of the Valle Amado family to whom the palace
belonged. The Palace was built in the second half of the 19th century to become a Summer
House, a gift given to the emperor, and which became a school from 1907, a function that was
performed until mid-2013.
Keywords: Heritage, Memory, Silence, Valle Amado family

437
1 - Introdução
Quando se vê o Palacete Santa Mafalda na Avenida Barão do Rio Branco, no centro da cidade,
se enxerga um casarão lindo que precisava de reformas e restauro de sua área tombada. O
Palacete se tornou um local de memórias não de uma "memória engessada", mas de múltiplas
memórias. Essas memórias que se entrelaçam com a vivência da população, história política e
desenvolvimento da cidade, atrevo-me em dizer que comungam do mesmo conceito de
memória coletiva trabalhado por Jacques Le Goff.
“A memória na qual cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura
salvar o passado para servir ao presente e ao futuro. Devemos trabalhar de
forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão
dos homens” (LE GOFF,1990, p. 471).

No que tange as memórias sobre o Palacete, temos as memórias que são partilhadas pela
população ao longo do tempo em que o mesmo foi uma escola durante cerca de 113, já que
quando se toca no assunto sobre o palacete a memória que a população compartilha se deve
aos anos que o casarão abrigou as turmas dos Colégios Centrais e por último a Escola Estadual
Delfim Moreira até meados do ano de 2013.
Então deve-se trabalhar a memória a respeito do Palacete, para a conservação e rememoração
das lembranças de um passado que se tornou distante, mas que precisa-se ser lembrado no caso
do Palacete Santa Mafalda também como local de rememoração da família Valle Amado.
Com memórias repassadas de pais e avós para filhos e netos em forma de lembranças de tempos
antigos, criando um imaginário acerca do casarão, todavia o Palacete não guarda somente essas
memórias, conserva assim como parte da história política da Santo Antônio do Paraibuna, da
segunda metade do século XIX.O que boa parte das pessoas desconhecem que o imponente
Palacete se tornou produto imaterial das redes de sociabilidades1 erguidas no âmbito da câmara
de vereadores do antigo arraial. Os políticos envolvidos nessas relações tendiam a disputar o
apoio político e atenção de D.Pedro II, por vários meios e o Palacete fez parte de uma dessas
tentativas.
Observando os indícios, vejo que o inicio do silenciamento ou secundarização da família Valle
Amado se dá após o episódio da recusa do Palacete como presente para D.Pedro II e família, e
após um ano do acontecimento o Comendador Manuel do Valle Amado veio a falecer.

1
Sociabilidade é o sentimento de pertencimento que os indivíduos têm pelos grupos e pelos espaços
onde se encontram, podem contribuir para o reconhecimento do patrimônio cultural, no caso dessa
pesquisa o bem tombado como produto de relações de sociabilidade

438
2 - O Palacete e a cerimônia
Construído para ser entregue ao Imperador D. Pedro II e sua família, quando estes
visitassem Juiz de Fora/MG, ocasião que ocorreu no dia 24 de junho de 1861. Neste dia
aconteceu a inauguração do trecho da estrada União Indústria que ligava a província do Rio de
Janeiro a cidade. Após a inauguração e missa, a solenidade continuou no Palacete Santa
Mafalda, onde já estava sendo organizada a cerimônia de Beija-mão (PEDRO II, 1861), onde o
Imperador atendeu a pessoas de expressão política, assinou documentos e realizou despachos.
Nesta mesma cerimônia, o Imperador ofereceu a Mariano Procópio Ferreira Lage o título de
Barão, porém Mariano Procópio declinou-se da oferta e pediu que tal graça fosse transferida
a sua mãe, tornando-a Baronesa de Sant'Ana (BASTOS,1991).
Na mesma solenidade foi entregue as chaves do palacete como símbolo do presente a D.Pedro
II entretanto o presente foi recusado.Foi recomendado ao Comendador Manuel do Valle Amado,
que o luxuoso palacete servisse a comunidade em prol de alguma benfeitoria. O Comendador
Valle Amado ficou insatisfeito com a recusa do presente e acabou ordenando que o belo
palacete fosse fechado até mesmo após a sua morte.
Observando que nessa ocasião o imperador concedeu a mercê de Baronesa de Sant'Ana para a
mãe de Mariano Procópio um dos principais rivais políticos do Comendador Valle Amado.
Mariano Procópio Ferreira Lage era uma pessoa que já vinha se alinhando-se politicamente aos
olhos do imperador ao realizar práticas que provinham o desenvolvimento da Santo Antônio do
Paraibuna e região, sem que os cofres do império sofressem uma grande perda, desta forma
unindo o útil ao agradável. Voltando ao assunto da mercê concedida dentro do Palacete do
comendador Valle Amado, pode ter tocado ao comendador como uma afronta, recebendo assim
dois golpes no mesmo dia. Diferente do que foi anunciado à época, a família imperial não
pernoitou no palacete como era esperado pelo comendador, após a finalização da solenidade.
A família e sua comitiva se dirigiram para a "Quinta do Mariano" onde pernoitaram.
"23 de junho de 1861 Estação de Juiz de Fora 6 3/4 da noite. É deste aprazível
sítio, que a arte converteu num brinco igual a qualquer lugar de banhos da
Alemanha, sob o céu recamado de estrelas que perfilam com as inumeráveis
luzes, que cintilam nos jardins e elegantes edifícios; ao som de uma
harmoniosa banda de música de colonos tiroleses, que eu princípio a narrar
a minha viagem enquanto a lua não sai e eu também, para percorrer estes
jardins à inglesa, e subir ao alto de um outeiro, onde o Lages acaba a
construção da mais coquette habitação. Eu estou noutra casa, que também
lhe pertence e se acha no meio dos jardins e junto ao outeiro. Esta casa foi
arranjada com apurado gosto e nada lhe falta" (PEDRO II, 1861, p. 12-17).

439
Tais fatos ocorridos por menores que possam parecer, são amostras nada sutis de
demonstrações de apoio ou até mesmo de amizade para a pessoa de Mariano Procópio.
Somando se aos fatos narrados anteriormente, ocorre uma queda de vitórias nas eleições para
vereadores do grupo familiar e demais aliados do Comendador Manuel do Valle Amado após
1861, dando lugar para outros proeminentes nomes que até os dias atuais permeiam o
imaginário da sociedade juizforana.

3 - Mito dos Fundadores


Esse imaginário sobre os primórdios da sociedade juizforana acabou criando um "mito dos
fundadores" que exclui famílias que já habitavam a região do caminho novo no antigo
arraial. Com enfoque no tronco familiar Valle Amado, observa se que são assombrados pelo
mito dos fundadores sendo afastados do podium de fundadores da cidade de Juiz de Fora em
contrapartida aparecem como parte da fundação da cidade de Barbacena e participação na
história de Matias Barbosa Onde o tenente Coronel Manuel do Valle Amado(pai)2 aparece como
peageiro. De acordo com a bibliografia e documentação analisados a Família Valle Amado já
estava na região desde a época das sesmarias, por volta de 1766.
O que chamo de "mito dos fundadores" decorre do fato da "história dita oficial" da cidade
colocar que sua fundação e desenvolvimento se estrutura principalmente em torno de dois
pilares familiares os Ferreira Lage e Halfeld. Com esse imaginário imposto repetidamente, esta
falácia se torna uma "história oficial" secundarizando (POLLACK, 1989, p. 8) e silenciando outras
famílias fundadoras no caso desta pesquisa a família Valle Amado, seu pai e homônimo deixou
sua marca quando passou pelo registro de Matias Barbosa, passado também por Barbacena
atuando politicamente, já o comendador foi o segundo presidente da câmara com o mandato
de 1856 a 1861 se destacavam sendo uma das famílias mais ricas da região.Ou seja o
silenciamento da família Valle Amado está ligada a vários fatores que combinados ao fato da
recusa do Palacete Santa Mafalda como presente,que auxiliou a projetar a queda deste tronco
familiar coisa que em nada está ligada a posse de dinheiro e sim a prestigio político então
seguindo a linha de pensamento do autor há uma falsa esperança que o tempo mude, ou

2
O tenente Coronel Manuel do Valle Amado tem um filho homônimo, que aparece no texto como
Comendador Manuel do Valle Amado.

440
abrande as lembranças pulsantes, entretanto esse mesmo tempo pode acarretar ao
silenciamento até mesmo inconsciente dos fatos ocorridos (POLLACK, 1989, p. 9).
Os fatos relatados não significam que a família some politicamente, entretanto este sobrenome
passa por um fenômeno silenciamento, os membros da família continuaram sendo atuantes na
sociedade porém se valendo agora de seus títulos como o Barão de Santa Mafalda, José Maria
de Cerqueira Vale (filho) ou a Baronesa de São João Nepomuceno, Amélia Cerqueira do Vale
Amado (filha) assim adormecendo o nome da Família (POLLACK, 1989, p. 6).
Durante a pesquisa nos deparamos com as questões dos mitos e histórias sobre a cidade já que
não se pode falar da família de meu enfoque sem falar da história da cidade de Juiz de Fora e
analisando a desmistificação desse mito dos fundadores que por algumas vezes acabou sendo
avalizado por antigos autores como Paulino de Oliveira, já que se sabe que ao longo do caminho
novo haviam outras famílias.
Os nomes indicados como fundadores podem e devem ser lembrados como pessoas que
contribuíram ativamente para o desenvolvimento da cidade e consequentemente da região
também entretanto não devem ser apontados como únicos fundadores. Mesmo com o
desastroso episódio da recusa do presente, os herdeiros do comendador continuaram
mantendo boas relações com a corte e recebem mercês do Imperador D.Pedro II.

4 - Ressignificação e Patrimônio
Os Grupos Centrais, como assim como são conhecidas as dependências do requintado palacete
são os responsáveis pela consolidação da edificação na memória e imaginário da população
juizforana o que propiciou sua preservação apesar de um tanto quanto precária, inclusive a
transformá-lo em um patrimônio histórico e cultural da cidade.O bem não se mostrou um
patrimônio somente pela motivação de sua construção como um presente a D. Pedro II e sua
família, mas pela ressignificação do Palacete pela população, que rogou na década de 1980 pela
sua preservação quando o mesmo foi ameaçado pela especulação imobiliária que se abateu por
vários casarões da antiga Juiz de Fora.
Neste ponto a memória da família Valle Amado mais vez repousa no esquecimento não
mais por vergonha ou divergências políticas, ela é aterrada agora pela ressignificação atribuída
ao Palacete pela população que expressam a vontade de preservá-lo pela memória afetiva que
se estabeleceu pelo Palacete o transformando em lugar de memória. Como é observado por
FARIA:

441
Trabalhando a idéia de vontade de memória, Nora observa os indivíduos tem
que ter a “vontade de memória” a intenção de se rememorar algo,
justamente para que não se caia no esquecimento e se apague, pois como o
próprio autor diz “a memória dita à história escreve”. Então se a memória
sobre algo ou alguém não for constantemente trabalhada o objeto daquela
memória se torna esquecido, consequentemente a história deste objetivado
se dispersa."(FARIA, 2019, p. 19)

O histórico do Palacete Santa Mafalda se torna importante para a memória não somente da
cidade de Juiz de Fora, enquanto um bem tombado, mas conjuntamente por seu valor histórico
ao Estado de Minas Gerais, pois nele foi instalado o primeiro Grupo Escolar de Minas Gerais em
1907 quando começou a negociação de compra do Palacete entre o governo do estado e Santa
Casa de Misericórdia que herdou o Palacete em 1904 do Barão de Santa Mafalda filho do
Comendador Valle Amado segundo relatório realizado pelo autor Dormevilly Nobrega 3.
Ao longo de seus 160 anos de história em que passou por várias transformações da sociedade
juizforana, o Palacete Santa Mafalda continua com aparência de soberano, apesar de estar em
meio de outros prédios modernos no centro da cidade, pairando na memória da comunidade a
sua volta e aos que por ele passaram.Até os anos de 2013 o Palacete foi a "casa" do colégio
Estadual Delfim Moreira, quando houve um acidente com uma professora pela circunstância da
má conservação e preservação do assoalho, aumentando assim a pressão para a reforma e
conservação do Palacete.O colégio foi transferido para outro prédio na Rua Santo Antônio
(TRIBUNA DE MINAS, 2013).
"Quando um professor cai na sala, espera que os alunos riam. Mas meu
tombo foi tão feio, e eles estavam tão preocupados com a situação da escola,
que ninguém fez qualquer piada. Por sorte, apenas torci o pé quando o
assoalho afundou, e não houve nada grave." Dias antes, o estudante Cristian
Oliveira, 15, ficou com uma perna agarrada, depois que um pedaço do piso
cedeu abrindo um buraco que permite visualizar o andar inferior. "Estava
passando normalmente e, de repente, caiu uma parte do chão, e meu pé
entrou. Precisei de ajuda de alguns amigos para conseguir sair." (TRIBUNA DE
MINAS, 2013).

3
Dormevilly Nóbrega nasceu em Três Corações/MG no dia 17 de dezembro de 1921, filho de José Ferreira
da Nóbrega e Rita de Souza Nóbrega. Foi o fundador do Museu da Imagem e do Som de Juiz de Fora,
cidade que escolheu, depois, para residir. Foi jornalista no Rio e em São Paulo, além de Recife. Foi cantor
de boate, rádio e seresta, professor de Português, Geografia e Desenho. Ex- combatente serviu ao Exército
durante a 2ª Guerra Mundial. Foi jornalista e tipógrafo, aos 13 anos, na "Folha Mineira". Foi vereador e é
considerado um dos maiores historiadores de Juiz de Fora, onde faleceu, em 18 de abril de 2003, aos 81
anos.

442
Essa foi uma das situações que mobilizou estudantes, funcionários e professores a protestarem
nas ruas pedindo que o palacete fosse "salvo" das ruínas em que ele estava se transformando.

5 - Considerações finais
O Palacete Santa Mafalda é um produto material das “redes de sociabilidades" termo esse
utilizado para explicar as motivações da construção do Palacete Santa Mafalda, muito utilizado
pelas Ciências Sociais enquanto instrumento de análise que permite a reconstrução dos
processos interativos dos indivíduos e suas afiliações a grupos, a partir das conexões
interpessoais construídas cotidianamente, como no caso da câmara de vereadores.
A pesquisa sobre a memória imbuída no Palacete Santa Mafalda como um produto material das
redes de sociabilidades, de fato são uma forma de resguardar a história e memória do município
de Juiz de Fora, portanto preservando a memória afetiva enraizada ao Palacete como
patrimônio histórico e cultural, porém sem silenciar a memória da família Valle Amado
destacando os principais grupos que compartilharam momentos em torno do Palacete. O estudo
sobre o silenciamento da memória da família Valle Amado se faz importante para a
compreensão dos desdobramentos políticos do fim do século XIX e início do XX.
Esta pesquisa, observa a importância que o Palacete Santa Mafalda demonstra para a
preservação da memória e história da cidade de Juiz de Fora também pelo seu valor histórico e
arquitetônico. O Palacete Santa Mafalda ou Colégio Central como assim é conhecido pela maior
parte da população juizforana, está marcado na memória afetiva da sociedade.

Referências

BASTOS, Wilson de Lima. Mariano Procópio Ferreira Lage: sua vida, sua obra, descendência, genealogia.
Juiz de Fora: ED. Paraíbuna. 1991.

FARIA, Mariana Cunha. Patrimônio, história e memória: o Palacete Santa Mafalda como lugar de
memória da sociedade juiz-forana. 2019. 30 fls. Trabalho de Conclusão de Curso – Bacharelado em
História da Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2019.

GENOVEZ, Patrícia Falco. As Malhas do Poder: Uma Análise da Elite de Juiz de Fora na Segunda metade
do séc. XIX (Versão Revisada).Juiz de Fora: Clio edições eletrônicas, 2002.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP Editora da UNICAMP, 1990.

NOBREGA, Dormevelly. A casa do Imperador: - Escola Normal - Grupos Centrais. Juiz de Fora: Edições
Caminho Novo, 1997.

443
NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”. Projeto História. Revista do
Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC - SP, n. 10. São
Paulo, dez.-1993.

PEDROII, Imperador do Brasil. Centenário da estrada União e Indústria: A inauguração da primeira


rodovia brasileira, de Petrópolis a Juiz de Fora, narrada pelo imperador D. Pedro II em seu diário n.º 8,
de 22 a 27 de junho de 1861. Touring, Rio de Janeiro, 328/330, p.12-17, [s.d.]

POLLACK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n.
3, 1989, p. 3-15.

RANGEL, José. Como o tempo Passa. Rio de Janeiro: A encadernadora S.A. 1940.

___________. Escola Normal: Relatório apresentado ao Dr. Secretario do interior, pelo diretor da Escola
Normal, Jornal Correio de Minas, Juiz de Fora, dias 28, 29, 30 e 31 de Maio de 1904.

Acidentes na Escola Delfim Moreira motivam protesto.


<https://tribunademinas.com.br/noticias/cidade/14-03-2013/acidentes-na-escola-delfim-moreira-
motivam-protesto.html>.Acesso em 12/09/2019 às 18:15 horas.

Disponível em < https:// www.geni.com/people/Manuel-do-Valle-


Amado/6000000019738199032>Acesso em: 12/01/2021 às 15 horas e 33 minutos.

Disponível em < https://digitarq.arquivos.pt/DetailsForm.aspx?id=2348730>Acesso em: 12/01/2021


às 13 horas e 42 minutos.

444
PATRIMÔNIO COM MORTE ANUNCIADA: o caso das Unidades Especiais de
Preservação de Maceió localizadas na área de desastre ambiental dos bairros
Mutange e Bebedouro, Maceió - AL
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Jamerson Davis da Silva Martins


Estudante de Arquitetura e Urbanismo; Centro Universitário Mário Pontes Jucá;
martins.jamerson@hotmail.com

Rafaela Cristina dos Santos Carvalho


Arquiteta e Urbanista; professora do curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro
Universitário Mário Pontes Jucá; rafaelacris7@hotmail.com

Sabe-se que os bairros do Pinheiro, Mutange, Bebedouro e adjacências, em Maceió - AL, vêm
sofrendo com um grave problema ambiental, cuja descoberta tornou-se tão preocupante que
foi decretada situação de emergência, dando início a um processo de evacuação dos moradores
e de demolição de edificações sem uso. A grande problemática é que há na região um
Patrimônio Cultural edificado reconhecido pelo Plano Diretor de Maceió (2005): a Zona Especial
de Preservação de Bebedouro (ZEP-Bebedouro) e edificações reconhecidas como Unidades
Especiais de Preservação (UEPs). Ao refletir sobre a proteção dessas edificações e sabendo que
esse patrimônio, reconhecido pela legislação municipal, pode desaparecer devido ao problema
ambiental, iniciou-se uma investigação sobre as ações do Estado para com esse patrimônio.
Palavras-chave: Patrimônio Cultural de Maceió; Unidades Especiais de Preservação; Caso
Pinheiro

It is known that the neighborhoods of Pinheiro, Mutange, Bebedouro and surroundings, in


Maceió - AL, have been suffering from a serious environmental problem, the discovery of which
became so worrying that an emergency situation was decreed, initiating a process of evacuation
of the and demolition of unused buildings. The major problem is that there is an edified Cultural
Heritage in the region recognized by the Maceió Master Plan (2005): the Special Drinking Area
Preservation Zone (ZEP-Bebedouro) and buildings recognized as Special Preservation Units
(UEPs). When reflecting on the protection of these buildings and knowing that this patrimony,
recognized by the municipal legislation, can disappear due to the environmental problem, an
investigation was initiated on the actions of the State towards this patrimony.
Keywords: Cultural Heritage of Maceió; Special Preservation Units; Pinheiro Case.

445
1 - Introdução
Este estudo se iniciou com um trabalho acadêmico da disciplina de Teoria da Arquitetura I, do
curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Mário Pontes Jucá (UMJ) e
posteriormente foi aprofundado para a escrita deste artigo.
Sabe-se que os bairros do Pinheiro, Mutange, Bebedouro e adjacentes, em Maceió - AL, vêm
sofrendo com um problema ambiental que gerou danos significativos nas edificações, ruas e
passeios urbanos através do afundamento do solo e do surgimento de trincas, rachaduras e
fissuras nas edificações localizadas na área. A descoberta desse problema tornou-se tão
preocupante que foi decretada situação de emergência, e deu-se início a um processo de
evacuação dos moradores, o que obrigou milhares de famílias a deixarem seu lugar de moradia
e onde construíam suas memórias e histórias.
Nos bairros atingidos há um Patrimônio Cultural edificado reconhecido pelo Plano Diretor de
Maceió (2005), trata-se da Zona Especial de Preservação de Bebedouro (ZEP Bebedouro) e de
edificações reconhecidas como Unidades Especiais de Preservação (UEPs).
Ao refletir sobre as questões de lugar, memória e história e sabendo desse patrimônio cultural
existente na área afetada, que já é reconhecido pela legislação municipal e que pode
desaparecer devido ao problema ambiental, iniciou-se uma investigação sobre as ações do
Estado para com esse patrimônio. Como recorte escolhemos analisar as ações específicas para
as 3 UEPs localizadas na área de risco: antiga Vila Amália, antiga Vila Lilota, e o prédio que
abrigou o IMA. Sendo assim, a pesquisa teve por objetivo investigar as ações de gestão
patrimonial do Estado aplicadas às Unidades Especiais de Preservação localizadas na área de
desastre ambiental dos bairros Mutange e Bebedouro em Maceió - AL.
Para a realização do estudo adotamos os seguintes passos: 1- pesquisa em jornais e portais
técnicos que descrevem e analisam o Caso Pinheiro1, 2- revisão bibliográfica em artigos
científicos e dissertações que abordam sobre as Unidades Especiais de Preservação e 3- análise
de documentos produzidos pela SEDET2 e encaminhados a Braskem para entender e analisar as
ações de gestão aplicadas às UEPs.

1
Caso Pinheiro é o nome dado pela defesa civil a tragédia ocorrida na região. Foi inicialmente chamado
de “Caso de Alagoas” pelas autoridades responsáveis (Conselho Nacional de Justiça, Defensoria Pública -
Estadual e da União, e Ministério Público - Estadual e Federal) num momento onde se desenrolava o maior
acidente do país, Brumadinho, sendo intitulado posteriormente como “Caso Pinheiro” devido ao início
dos acontecimentos e descobertas.
2
Secretaria de Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente

446
O artigo foi organizado em 3 seções. A primeira trata sobre o Caso Pinheiro e expõe o que causou
o desastre ambiental; a segunda aborda sobre as UEPs, sua história e relevância cultural e a
terceira descreve e analisa as ações de gestão patrimonial propostas pelo Município.

2 - O Caso Pinheiro
Maceió, capital alagoana, vem sofrendo com um grave problema ambiental de instabilidade no
solo que afetou inicialmente três dos seus bairros: Pinheiro, Bebedouro e Mutange, atingindo
posteriormente as regiões adjacentes. O problema foi descoberto no ano de 2018 no bairro
Pinheiro após uma sucessão de fortes chuvas, ocorridas no mês de fevereiro, e de um abalo
sísmico, em março, que acabou gerando danos significativos nas edificações, ruas e passeios
urbanos através do afundamento do solo e do surgimento de trincas, rachaduras e fissuras
(MACEIÓ, 2018).
O Serviço Geológico do Brasil (CPRM) passou a realizar diversos estudos a fim de entender as
reais causas do ocorrido. Por se tratar de um acontecimento grave e de enormes proporções,
foram trabalhadas quatro linhas de investigações que foram: caracterização geológica do solo
da região e a sua ocupação; estudo da presença de vazios no solo ou subsolo, como cavernas e
cavidades, oriundas de causas naturais ou de ações antrópicas; detecção das estruturas
tectônicas ativas da região a fim de se buscar falhas ou descontinuidades geológicas; e avaliação
da extração de água subterrânea (MACEIÓ, 2018).
Com base nos resultados dos estudos e análises, observou-se que está ocorrendo uma
desestabilização das cavidades de extração de sal-gema, matéria-prima para a fabricação de
PVC, provocando uma situação dinâmica com as estruturas geológicas preexistentes capazes de
criar afundamentos e deformações dúcteis na superfície do bairro Pinheiro e em outros bairros
adjacentes, como Bebedouro e Mutange. Entendeu-se assim, que a causa da instabilidade do
solo é o somatório da extração de sal-gema aliada a falhas tectônicas da região, problema esse
que acaba sendo agravado pelos efeitos erosivos das chuvas devido ao aumento da
permeabilidade do solo, aumentando assim a infiltração de água, e a ausência de uma rede de
drenagem efetiva de saneamento básico (MACEIÓ, 2018).
A descoberta tornou-se tão preocupante que foi decretada situação de emergência para o caso,
segundo o portal de notícias G1 Alagoas (GUSTAVO; RODRIGUES, 2019) somente no Pinheiro
mais de 2.000 residências foram afetadas após o surgimento de três fissuras nas vias de 1,5 km
de extensão, sendo necessária a atuação de órgãos do Governo Federal para o gerenciamento
da crise, como a Defesa Civil Nacional, oferecendo suporte técnico especializado, e a Agência

447
Nacional de Mineração, realizando estudos e levantamentos de dados sobre a exploração
mineral no estado, e também da criação de um plano de contingência da região, estabelecendo
medidas emergenciais e dando início a um processo de evacuação dos bairros, obrigando
milhares de famílias a deixarem o ambiente ao qual estavam inseridas (MACEIÓ, 2018).
Os bairros atingidos carregam parte da história da cidade contada por meio da memória, da
cultura, dos lugares e da forma de morar de seu povo, como pode ser constatado no texto de
Ticianeli (2020) ao descrever o bairro de Bebedouro como:
“um território destinado a preservação e valorização da história, cultura e
arquitetura da cidade. Sendo um importante palco do desenvolvimento de
Maceió, por ter sido um importante trajeto dos primeiros bondes e por
receber uma estação ferroviária, abraçando a alta sociedade da época e seus
casarões” (TICIANELI, 2020).

Como citado por Ticianeli, essa região atingida foi, por um tempo, o local escolhido pela alta
sociedade para construção de seus casarões, apresentando três destes uma grande relevância
arquitetônica e cultural para a região, sendo assim elencados como Unidades Especiais de
Preservação e estando sob proteção patrimonial municipal, conforme será apresentado abaixo.

3 - As Unidades Especiais de Preservação (UEPs)

As Unidades Especiais de Preservação são descritas pelo Plano Diretor como:


imóveis ou espaços urbanos, públicos ou privados, isolados ou compostos,
que apresentam relevância cultural para o município por constituírem
expressões arquitetônicas e históricas do patrimônio edificado ou
oferecerem suporte físico para manifestações culturais e de tradições
populares locais (MACEIÓ, 2005).

Atualmente Maceió apresenta uma lista de 543 UEPs espalhadas por vários bairros de Maceió.
Na região afetada pelo desastre ambiental há 3 dessas edificações: antiga Vila Amália, antiga
Vila Lilota, e antigo prédio do IMA. Essas unidades serão apresentadas a seguir, através de breve
histórico das edificações e de suas características arquitetônicas.

3
Inicialmente essa lista era composta por 56 unidades, porém durante o período de vigência da Lei, duas
delas foram demolidas.

448
3.1 - Antiga Vila Amália
Intitulado como Vila Amália, devido a sua primeira proprietária, o prédio foi construído por volta
de 1904 e pertenceu inicialmente a Amália Mendonça de Souza e seu esposo Antônio Silva, onde
residiram com seus cinco filhos, Daniel, Nadir, Nair, Nalcir e Nicia Barboza Silva.
A edificação apresenta elementos como embasamento elevado (porão alto), planta retangular
de esquema simples e simétrico, paredes grossas, presença de platibanda, vidro compondo as
bandeiras das portas e janelas. Sua fachada frontal apresenta oito vãos e uma porta central, sua
entrada se dá por uma escadaria que leva ao terraço e posteriormente a sala principal fazendo
daí a distribuição para os outros ambientes.
A tipologia arquitetônica da edificação foi fortemente influenciada pelas correntes higienistas
da época e pelo solo turfoso bastante úmido ao qual está inserida, justificando assim a adoção
do porão alto, que permitia ventilar o pavimento inferior e elevar o pavimento superior da
umidade do solo. Reis Filho, descreve que os porões altos eram “muitas vezes denunciados pela
presença de óculos ou soleiras com gradil de ferro sob as janelas dos salões” e “como solução
para o desnível entre o piso da habitação e o plano do passeio inseria-se uma escada que
conduzia a porta de entrada” (REIS FILHO, 1973, p.40). Tais características aparecem na
edificação e aqui os óculos são denunciados pelas aberturas em arco pleno.
Após um período abandonado, foi doado no final da década de 60, pelo governador Lamenha
Filho, para abrigar a antiga Associação dos Professores Primários de Alagoas (APPA),
antecedente do SINTEAL, a fim de acolher professores vindos do interior do Estado e realizar
encontros pedagógicos, estabelecendo a união da classe e fortalecimento de seus projetos.
Nesse período foi realizada a construção de um anexo na edificação o qual apesar de seguir as
características arquitetônicas originais, acabou quebrando a proposta inicial de composição
simétrica (CARLOS, 2011; TICIANELI, 2015).
No dia 22 de novembro de 1988 houve a criação do Sindicato dos Trabalhadores da Educação
(SINTEAL) e a edificação passou então a sediá-lo. Por volta dos anos 2000 foi realizado o restauro
do prédio pelo arquiteto Pedro Cabral e houve a inclusão de mais um anexo para abrigar salas
administrativas, banheiros e o Espaço Cultural Prof. Jarede Viana (CARLOS, 2011). Esta última
ampliação não seguiu o estilo arquitetônico original, constitui um volume contemporâneo, de
planta circular e amplas janelas de vidro, conforme figura 1.

449
Figura 01: Antiga Vila Amália

Ampliação em 20000 Prédio original Ampliação na década de 1960

Fonte: Acervo de Rafaela Carvalho, 2016.

3.2 - Antiga Vila Lilota


Também conhecido como Vila Lilota, devido ao apelido carinhoso de sua primeira proprietária,
o prédio que abriga a Clínica de Repouso Dr. José Lopes foi construído em 1914 por Francisco
Amorim Leão, filho do Comendador Manoel Joaquim da Silva Leão, ilustre figura do cenário
açucareiro alagoano, para sua irmã Gertrudes.
É uma edificação com uma excentricidade plástico-construtiva de grande valor estético para o
bairro e para a cidade. Traços da modernidade da época estão marcados nos materiais
decorativos e estruturais de produção industrial e pré-fabricados como o extenso muro em
gradil de ferro, janelas de vidro, pinturas parietais, papeis de parede, ladrilhos e outros.
O casarão totaliza quatro pavimentos. No térreo ficam os ambientes de serviço. No primeiro
pavimento está a parte social da casa, o acesso a esse piso acontece por meio de uma escada
sinuosa ou pela rampa. A porta de entrada abre-se para um antigo vestíbulo que dá acesso ao
ambiente principal da casa: um grande salão de visitas. No segundo pavimento encontram-se
os cômodos íntimos e a biblioteca, e no terceiro há um terraço descoberto que permite uma
bela vista da Lagoa Mundaú, simbolizando uma forma de domínio do usuário sobre a paisagem.
Suas fachadas exibem um forte rebuscamento decorativo, cada pavimento apresenta portas,
colunas, guarda-corpos e arcos dos vãos guarnecidos de formas diferentes, tendo ainda nos dois
últimos pavimentos a presença de vasos cerâmicos, e apesar dessa diferença decorativa, todos
os ornamentos formam uma unidade plástico-construtiva que torna a edificação única na

450
cidade. Em sua fachada sul há a presença funcional e estética dos alpendres que são voltados
para o jardim e criam uma conexão entre o interior e o exterior.
Internamente o grande foco da atenção é para a sala de visitas, um cômodo amplo e
ornamentado com pinturas parietais ao estilo Art Nouveau, reproduzindo flores e folhas através
de linhas sinuosas, as quais também aparecem em outros cômodos em formas de mosaicos e
roda-teto. Esta técnica de pintura era bastante utilizada em palacetes e casarões com o objetivo
de trazer requinte, ostentação e decoração a diversos ambientes das residências. O forro é
decorado com estuque, sistema construtivo amplamente usado nesse em paredes e tetos por
trazer sofisticação e promover uma valorização da ornamentação interna. O piso é coberto por
ladrilhos hidráulicos de diferentes desenhos, sendo as áreas íntimas as únicas a apresentarem
tabuado de madeira, e a escada interna apresenta piso em mármore e guarda corpo em ferro
(CARVALHO, 2014; PINHEIRO, 2007; NOBRE et al, [s/d]).
Percebe-se ainda que houve uma grande preocupação com as esquadrias que apresentam um
alto nível de requinte e acabamento através das combinações das almofadas, molduras, vidros
e venezianas. Os vidros apresentam-se lisos, transparentes ou coloridos em pequenos recortes,
técnica construtiva própria do período pós-revolução industrial. Apresentando um grande
número delas em todas as fachadas da residência, recurso este utilizado para permitir uma
melhor iluminação natural e um ótimo arejamento interno, artifícios adquiridos com o progresso
das condições higiênicas da época para livrar-se dos velhos hábitos coloniais (CARVALHO, 2014).
Percebe-se também que o jardim foi pensado para acompanhar a valorização social que a
edificação simbolizava na época, contendo caminhos sinuosos em pedra, bancos e grutas, e
árvores plantadas para sombreamento.
O casarão foi vendido por volta de 1949 para a família Lopes para ser sua residência, porém após
a aquisição o pavimento térreo da edificação e o anexo construído ao redor da residência foram
usados como clínica de repouso para tratamento psiquiátrico, intitulada Clínica de Repouso Dr.
José Lopes, conhecido assim até hoje. Além do anexo externo, atualmente demolido, foi
realizado o acréscimo de uma lavanderia na parte posterior da edificação, seguindo o perfil
arquitetônico do prédio original (CARVALHO, 2014).

451
Figura 02: Fachada principal e plantas da antiga Vila Lilota

2 3

1 – Fachada principal;
2 – Planta baixa pavimento térreo;
3 – Planta baixa primeiro pavimento;
4 – Planta baixa segundo pavimento;
5 – Planta baixa terceiro pavimento.
4 5

Fonte: Acervo de Rafaela Carvalho, 2014.

3.3 - Antiga sede do IMA


Em relação a essa edificação é importante salientar a existência de poucas informações
registradas, necessitando assim de uma futura investigação mais aprofundada principalmente
quanto a seus dados históricos. As informações aqui descritas foram conseguidas através de
entrevista com familiar dos antigos proprietários.
Segundo Ferreira (2020), em entrevista, o prédio que abrigava a sede do IMA foi comprado de
um casal de italianos, ainda em construção, no início do século XX, por José de Hollanda
Cavalcantti. O casarão de dois pavimentos possuía duas grandes salas e um banheiro em cada
pavimento, além de dezoitos quartos distribuídos em sua planta. Sendo o seu porão destinado
exclusivamente ao uso dos escravos e empregados da época (FERREIRA, 2020).
A edificação possui 3 pavimentos, sendo 1 subsolo. As plantas são simétricas e sofreram
alterações com o acréscimo de banheiros. A entrada principal se dá por uma escadaria, pois o
térreo está elevado em relação ao solo. Sua fachada é dividida em 3 partes, sendo a do meio
destacada no coroamento por uma moldura em arco pleno, ver figura 3.

452
Figura 03: Prédio do IMA

Fonte: Foto disponível no Portal da Arquitetura Alagoana, 2020.


Plantas baixas: acervo do Núcleo de Projetos de Extensão do Centro Universitário CESMAC, 2009.

Originalmente, o imóvel estava inserido num terreno que se estendia da lagoa até o atual bairro
do Farol e foi perdendo terras, principalmente por invasões, após a abertura da linha férrea e
da rua em frente a edificação. Foi mantido em posse da família Cavalcantti por muitos anos até
ser desapropriada pelo Estado, o que provavelmente ocorreu durante o governo de Fernando
Collor, e reutilizada, em 1988, como sede do Instituto do Meio Ambiente do Estado (FERREIRA,
2020; OLIVEIRA, 2020).

4 - Ações do Estado
Sabe-se que, o Governo Federal, por meio do Ministério do Desenvolvimento Regional, está
trabalhando na liberação de recursos de suporte às pessoas que tiveram suas residências
atingidas pelos acontecimentos geológicos, como por exemplo, o pagamento de aluguel social
para as famílias que não possuem condições financeiras adequadas de buscar uma nova
moradia. Porém, no meio dessa atividade de desocupação além das residências e comércio

453
encontram-se também prédios históricos de grande representatividade para a região, alguns
deles considerados Patrimônio Cultural (MACEIÓ, 2018; GUSTAVO; RODRIGUES, 2019). Devido
a tal importância histórica e cultural, órgãos e profissionais da área passaram a se mobilizar em
busca de se estabelecer ações e medidas para a preservação desses prédios.
Entre essas ações está o documento (PROC. Nº 3100.041825/2020 CGPH/SEDET) enviado pela
Coordenação Geral de Patrimônio Histórico, da Secretaria Adjunta de Planejamento Urbano de
Maceió, à Braskem reforçando o Bairro de Bebedouro como sítio histórico (ZEP-3) e a existência
de prédios possuidores de representatividade para o município, considerados como Unidades
Especiais de Preservação. Esse documento lista todas as edificações com proteção patrimonial
e esclarece sobre o grau de proteção conforme o Plano Diretor. Também trata da necessidade
de realização de laudos técnicos dessas edificações.
Além disso, de acordo com o Portal G1 Alagoas, em resposta a um pedido da Promotoria de
Urbanismo do Ministério Público de Alagoas, que ingressou com um inquérito civil para iniciar
os debates sobre a revitalização da área, a Prefeitura apresentou em agosto de 2020 um Plano
de Ações Estratégicas que prevê ações como a construção de um corredor ecológico, o
reposicionamento do VLT, a restauração do manguezal e a criação de um parque florestal com
espécies da mata atlântica (ANGELO, 2020). Em relação aos prédios históricos, esse plano almeja
a “Manutenção das UEPs nas áreas afetadas”, não fornecendo qualquer informação a mais
sobre o tema.
Outras ações foram os encontros e seminários virtuais com a comunidade científica envolvida
buscando discutir a importância de um projeto que preserve a memória e o patrimônio dessa
região. Como foi o caso do webnário organizado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil e pelo
Conselho Municipal de Políticas Culturais, na celebração do “Dia Nacional do Patrimônio
Histórico”, que buscou explanar sobre os riscos existentes na área como também o direito à
memória a fim de discutir sugestões que melhor atendam todas as necessidades, como o
Memorial Nise de Oliveira, proposto pelo Sandro Gama, do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional – IPHAN/AL, buscando manter a história local viva (GAMA, VIEIRA, 2020).

Considerações finais
O artigo expôs as causas do desastre ambiental ocorrido em uma região de grande valor
histórico e cultural para Maceió, trata de 3 edificações reconhecidas patrimonialmente
presentes na área e sobre as ações do Estado para que esse patrimônio seja protegido e de
alguma forma chegue as gerações seguintes.

454
De acordo com o exposto no último tópico, percebe-se a vontade do Estado em permanecer
com essas edificações no local. Isso é visto tanto no processo encaminhado a Braskem como no
Plano de Ações Estratégicas apresentado pela prefeitura. As UEPs são mantidas, mas nada foi
citado em relação ao traçado das ruas e sobre a conformação espacial do lugar, já está
ocorrendo a demolição de edificações não protegidas patrimonialmente o que modifica
totalmente a paisagem em torno desse patrimônio. Apesar dessa modificação, não foi divulgado
se está sendo feito, por parte do Estado, alguma ação de registro da paisagem.
Na região próxima ao José Lopes, uma das edificações aqui estudadas, percebe-se que a lagoa
está invadindo e cobrindo algumas árvores, o solo está cedendo. No entanto, não foi divulgada
nenhuma ação relacionada a possibilidade de desmoronamento desse patrimônio, como o
reforço da estrutura, por exemplo. Em outras edificações incluídas na ZEP Bebedouro já está
ocorrendo vandalismo, com a retirada de esquadrias.
Viu-se também que se iniciou os debates para revitalização da área e reuso das edificações,
adverte-se que é interessante que todas as decisões de projetos sejam feitas em parceria com a
população, em especial aquela que foi obrigada a deixar seu lugar onde construiu uma vida cheia
de memórias e aquela que ainda permanece na região.
Por toda a relevância cultural das edificações estudas, não fazer uso de todas as formas possíveis
de mantê-las preservadas de alguma forma, é ferir parte da memória da cidade e da nossa
história, é tirar de nós o direito à memória que elas carregam.

Referências

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pelas rachaduras. Alagoas em dia, Maceió, 19 de agosto de 2020. Disponível em: <
https://alagoasemdia.com.br/noticia/18656/prefeitura-de-maceio-apresenta-projeto-de-revitalizacao-
para-area-desabitada-atingida-pelas-rachadur.html> . Acesso em: 21 de agosto de 2020.

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Disponível em: <http://wwwcarlaocombr.blogspot.com/2011/02/sinteal-historia-da-apa-
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CARVALHO, Rafaela. Casarão da Clínica de Repouso Dr. “Zé Lopes”: uma proposta de restauro e
reutilização. 2014. Trabalho Final de Graduação – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade
Federal de Alagoas – UFAL, Maceió, 2014.

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temporária no bairro do Farol. Maceió: 2020.

FILHO, Nestor. Quadro da arquitetura no Brasil. Ed Perspectiva, 1973.

455
GAMA, Sandro; VIEIRA, Nivaldo. (2020). Patrimônio em processo de transformação e iminência da
perda. Instituto de Arquitetos do Brasil – Alagoas. https:/facebook.com/iab.alagoas

GUSTAVO, Derek; RODRIGUES, Cau. O que se sabe sobre as rachaduras no Pinheiro, Bebedouro,
Mutange e Bom Parto, em Maceió. G1 Alagoas, Maceió, 17 de janeiro de 2019. Disponível em:
<https://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2019/01/17/o-que-se-sabe-sobre-as-rachaduras-no-bairro-
do-pinheiro-em-maceio.ghtml> . Acesso em: 20 de julho de 2020.

MACEIÓ. Prefeitura de Maceió: Portal Caso Pinheiro. Disponível em <http://www.pinheiro.al.gov.br>.


Acesso em: 20 de julho de 2020.

MACEIÓ. Lei Municipal 5.486, de 30 de dezembro de 2005. Plano Diretor de Maceió.

NOBRE, André w. et al. Elementos funcionais e ornamentais da arquitetura eclética pelotense: 1870 –
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2020. Disponível em: < http://www.ima.al.gov.br/ima-sede-temporaria-farol/> . Acesso em: 21 de julho
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SANTOS, João Paulo Sandes Dias. Anteprojeto arquitetônico do casarão José Lopes (vila Lilota) e sua
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maio de 2015. Disponível em: <https://www.historiadealagoas.com.br/trabalhadores-em-educacao-
criam-o-sinteal-em-1988.html> . Acesso em: 23 de julho de 2020.

TICIANELI. Estrada de Bebedouro, um dos primeiros caminhos para Maceió. História de Alagoas,
Maceió, 19 de março de 2020. Disponível em: < https://www.historiadealagoas.com.br/estrada-de-
bebedouro-um-dos-primeiros-caminhos-para-maceio.html>. Acesso em: 20 de julho de 2020.

456
PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: uma proposta de retrofit para o Moinho Matarazzo e a
Tecelagem Mariângela
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido

Carolina Borges Lisbão


Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Instituto Federal de São Paulo;
carolinalisbao@gmail.com

Thais Cristina Silva de Souza


Doutora em Habitat; Instituto Federal de São Paulo; thais.souza@ifsp.edu.br

Mariana Cicuto Barros


Doutora em Planejamento e Gestão do Território; Instituto Federal de São Paulo e
Universidade Nove de Julho; marianacicuto@gmail.com

Este trabalho tem como objetivos o estudo e a proposta de intervenção no patrimônio industrial
de São Paulo por meio do Moinho Matarazzo e Tecelagem Mariângela, edifícios datados do
século XIX e situados no bairro do Brás, próximo ao centro histórico da cidade. Esses conjuntos
possuem grande importância para constituição da memória da cidade, pois evidenciam as
relações de trabalho industrial desenvolvidas nas primeiras décadas do século XX, demonstram
as transformações no tecido urbano e apresentam grande valor histórico-arquitetônico. A
metodologia toma como base a bibliografia das pesquisadoras Rosina Ribeiro, Marcia Braga e
Cristina Coelho e a pesquisa apresenta como resultado o projeto de restauro das edificações
subutilizadas do Moinho Matarazzo.
Palavras-chave: patrimônio industrial; restauração; Matarazzo

This paper aims the search and intervention about industrial heritage in Sao Paulo, through
Moinho Matarazzo and Tecelagem Mariangela, both buildings built on 19th century and placed
on Bras, nearby the historical downtown. Those facilities hold great importance to the memory
of the city, as they stand as icons for the industrial labor developed during the first decades of
the 20th century, show the transformations in Sao Paulo's urban lands and symbolize a great
historical and architectural legacy. Our methodology is based on the writings of the reaseachers
Rosina Ribeiro, Marcia Braga e Cristina Coelho and the paper presents as result the restoration
project for the Moinho Matarazzo's underused buildings.
Keywords: Industrial heritage, Restoration, Matarazzo

457
1 – Introdução
O trabalho trata sobre a pesquisa e intervenção no patrimônio industrial de São Paulo por meio
das edificações subutilizadas do Moinho Matarazzo e Tecelagem Mariângela. A investigação
parte do significado dos monumentos na reconstituição da memória socioeconômica e espacial
da cidade nos séculos XIX e XX e propõe o restauro do Moinho.
No contexto atual, diversos imóveis em áreas historicamente ocupadas pela atividade industrial
em São Paulo se encontram subutilizados. Quando situadas em regiões estratégicas, essas áreas
abandonadas passam a representar uma reserva de terrenos a baixo custo para o mercado
imobiliário (RUFINONI, 2013, p. 15). No caso do Moinho e da Tecelagem, localizados a poucos
quilômetros do centro histórico da cidade, cuja maioria das edificações foi esvaziada há décadas,
há risco à sua integridade num futuro próximo. Uma proposta de requalificação poderia
significar a revogação do abandono e manutenção de seu legado cultural.
Para o estudo dos objetos, foi efetuada a revisão bibliográfica sobre o histórico de construção
das edificações. O levantamento arquitetônico foi feito através do Sistema de Registro, Controle
e Acesso ao Acervo, pertencente ao Arquivo Municipal Washington Luís. O levantamento
fotográfico foi efetuado em visita ao conjunto e pelo Google Street View. Analisamos as
legislações vigentes, especialmente a resolução de tombamento, plano diretor e código de
obras. Por fim, foi elaborado o mapa de danos e a proposta de restauro.

2 – Antecedentes
Situados em São Paulo, nas imediações do centro histórico do município, no bairro do Brás, o
Moinho Matarazzo e a Tecelagem Mariângela têm sua construção inserida num contexto de
expansão territorial da cidade devido à nova economia industrial.
De sua fundação em 1730 até meados do século XIX, o Brás correspondia ao perfil rural e pouco
adensado do município. Sua ocupação se concentrava na várzea do Rio Tamanduateí e em torno
da Estrada para Penha (BARDESE, 2011). Era um centro de abastecimento para o mercado
central e dispunha de infraestrutura para estadia de tropeiros (SILVA, 2012). A partir de meados
de 1850, a vocação econômica do Brás transformou-se em industrial, especialmente pela
instalação da São Paulo Railway1, responsável pela ligação entre as monoculturas no interior de
São Paulo e o porto de Santos (SANTOS, LAGE, SECCO, 2017). A ferrovia e a gênese da indústria
estiveram associadas à conversão da paisagem rural em urbana; em suas imediações ocorreu

1
Linha férrea inaugurada em 1865, posteriormente denominada como Estrada de Ferro Santos-Jundiaí.

458
rápida concentração de comércios, oficinas, centros culturais, estações de trens, hospedarias,
fábricas e vilas operárias (SILVA, 2012).
Outro fator de extrema importância nesse contexto foram os movimentos imigratórios, que
aumentaram com a demanda de mão de obra na agricultura e nas fábricas pela abolição da
escravatura (BARDESE, 2011). O Brás recebeu significativa vinda de imigrantes da Itália na
transição entre os séculos XIX e XX e essa ocupação se tornou influente para o legado cultural,
gastronômico e arquitetônico local. A população italiana motivou o aumento do consumo de
derivados de farinha, tornando o mercado favorável à instalação de moinhos. Houve a
popularização de técnicas construtivas como alvenaria e o uso do estilo neoclássico. Em
substituição à tradição de construções em terra, o tijolo era um material barato que permitia
um ritmo ágil de execução, correspondendo à rápida expansão urbana e às demandas de
construção (BARDESE, 2011).
Do crescimento rápido e sem planejamento do Brás, decorreu a poluição gerada pelas atividades
fabris e domésticas, condições precárias de saneamento público, moradia e emprego local.
Durante o século XX, o Brás foi marcado por manifestações de caráter político – especialmente
relacionados à luta por direitos trabalhistas –, servindo como palco de grandes paralisações,
como as Greves Gerais de 1907 e 1917 (SILVA, 2012).
A partir da década de 1930, ocorreu uma expressiva desconcentração industrial para as cidades
da região metropolitana de São Paulo. Como resultado, os primeiros bairros industriais, como o
Brás, passaram por um ágil processo de degradação urbana e esvaziamento populacional. De 80
mil habitantes em 1940, o Brás diminuiu para somente 63 mil em 1960 (SILVA, 2012). A chegada
de migrantes nordestinos e imigrantes libaneses e judeus destacada por Ghedine e Silva (2012),
entre as décadas de 1940 e 1980, favoreceu o florescimento de uma nova vocação comercial e
têxtil, presente no Brás até os dias de hoje, evidenciada pela constituição dos centros de
comércio popular na Rua Oriente e a Feira da Madrugada.

3 – Construção
O Moinho Matarazzo é composto por uma série de edificações construídas entre 1899 e 1926.
O conjunto localiza-se numa quadra triangular, com área de 15.400 m², ladeada pelas ruas
Monsenhor Andrade, Bucolismo e a Estrada de Ferro Santos Jundiaí. A primeira edificação do
complexo, o moinho de trigo, foi encomendada em 1898 pelo empresário italiano Francisco
Matarazzo (1854-1937) ao arquiteto Nicolau Spagnolo. A escolha do sítio de implantação
ocorreu pela proximidade da ferrovia – que possibilitaria a chegada de insumos e escoamento

459
da produção para o restante do estado e para o Porto de Santos –, baixo custo dos terrenos na
várzea do rio, mão de obra abundante e mercado consumidor de trigo local (BARDESE, 2011).
O moinho contava com 5800 m², contemplando um almoxarifado e duas oficinas; uma para
fabricação de sacos e outra para manutenção do maquinário. A edificação possui estilo
arquitetônico inglês, num bloco único e simétrico, fachada com tijolos aparentes e estrutura
metálica. Há a presença de um corpo principal do edifício com gabarito proeminente, cujas
janelas do primeiro ao terceiro andar possuem sacadas de ferro. A cobertura foi realizada em
estrutura metálica, com lanternim central e coberta por telhas. A estrutura é de vigas metálicas,
apoiadas sobre as paredes externas, que dão suporte às lajes de madeira (BARDESE, 2011).
Nos anos subsequentes, o restante da quadra foi ocupado por novas construções,
especialmente armazéns, silos, ampliações do moinho e oficinas. Devido ao retorno financeiro
do moinho, Matarazzo optou por construir uma sacaria para armazenamento de seus produtos.
Observando o consumo de tecidos pelos habitantes locais, o empresário comprou maquinário
para estampar e confeccionar roupas, solicitando a construção da Tecelagem de Algodão
Mariângela em 1904 na quadra diretamente em frente ao seu negócio de moagem (DIAS, s/d).
A Tecelagem Mariângela consiste em um conjunto de edifícios construídos entre 1904 e 1910,
que abrange a fábrica de fiação e tecelagem, tinturaria, cascamifício, malharia, casa de máquinas
e caldeiras (VICHNEWSKI, 2004). As construções estão em uma quadra trapezoidal com área
aproximada de 28.700 m², entre as ruas Alfândega, Assunção, Fernandes Silva e Monsenhor de
Andrade.
A primeira referência documental da Tecelagem ocorreu em 1904, com os projetos para um
galpão de fiação e tecelagem. Em 1906, esses documentos foram acrescidos de projetos de
galpões e uma chaminé do arquiteto Giuseppe Salatini (BARDESE, 2011). Em 1907, foram
construídos um depósito e um armazém para as caldeiras. No mesmo ano, iniciou-se a execução
“da mais conhecida construção do conjunto da Tecelagem”, segundo Bardese (2011, p.106).
Essa edificação possui dois andares, estrutura metálica apoiada sobre alvenaria de tijolos
aparentes e laje em assoalho de madeira. A cobertura possui duas águas e é sustentada por
tesouras metálicas. A fachada notável da Rua Monsenhor de Andrade é marcada pela repetição
de pilares, coroados com capitéis e ligados aos pares por arcos abatidos. Os elementos se
destacam da fachada de tijolos de barro pela pintura na cor branca. Entre cada pilar, é possível
visualizar a presença de quatro janelas, duas no pavimento superior e duas no inferior. A fachada
da Rua Fernandes Silva possui o mesmo destaque para pilares e amplas janelas, diferenciando-
se da antecessora pela presença de uma platibanda (BARDESE, 2011).

460
A Tecelagem funcionou até a década de 1950, quando foi convertida em fábrica de papel,
papelão e embalagens. Sua operação foi interrompida na década de 1970, seguida pelo
abandono. Nos anos 2000, foi comprada pelo Center Brás, tornando-se um pavilhão de serviços,
armazenamento e estacionamento. Parte da área interna sofreu alterações para comportar os
novos usos (BARDESE, 2011). Por sua vez, o Moinho operou até 1982. Seu maquinário e a
produção foram comercializados e o imóvel foi abandonado após cinco anos. No edifício, na
esquina das Ruas Monsenhor de Andrade e Bucolismo, foi instalado o restaurante Santa Rosa
do Brás, que operou ali entre meados de 2000 e 2016. Hoje, o moinho se encontra subutilizado,
sendo casualmente alugado para eventos promovidos pela empresa Fabriketa.

Figura 01: 01 - Ilustração do Moinho Matarazzo, edificações na Rua Monsenhor de Andrade; 02 -


Registro atual das edificações do Moinho Matarazzo; 03 - Ilustração da Tecelagem Mariângela; 04 -
Registro atual das edificações da Tecelagem Mariângela

Fonte: 01 - Acervo Iconográfico USP - Pioneiros - Volume 1 - Francisco Matarazzo: Imagem 13; 02 -
Google Street View, 2021; 03 - SAIA, 1989, apud BARDESE, 2011; 04 - Google Street View, 2021

Em 1992, o conjunto arquitetônico composto pelo Moinho Matarazzo, a Tecelagem Mariângela


e outros 15 edifícios vizinhos foram tombados pelo Conselho Municipal de Preservação do
Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (CONPRESP), cujo processo

461
foi oficializado na Resolução de Tombamento 38/1992. O documento cria três níveis de proteção
(NP) para as construções: O NP I corresponde a bens de grande interesse histórico, arquitetônico
ou paisagístico, determinando a preservação de sua arquitetura externa e das áreas de
circulação internas e é atribuído à Tecelagem Mariângela. O NP II corresponde a bens de grande
interesse histórico, arquitetônico ou paisagístico, determinando a preservação de sua
arquitetura externa e foi atribuído ao Moinho Matarazzo. O NP III determina controle da
volumetria, devendo novas edificações e ampliações serem avaliados pelo CONPRESP, e abrange
os demais edifícios da envoltória (CONPRESP, 1992, p.1). Apesar do tombamento, a degradação
do conjunto não foi totalmente mitigada, conforme veremos a seguir.

4 – Atualidade
Atualmente, a região onde se instalam o Moinho Matarazzo e a Tecelagem Mariângela é
conhecida como Zona Cerealista, predominantemente comercial, com lojas especializadas no
comércio de cereais, grãos e tecidos, prestadoras de serviço no setor alimentar e de logística. O
perímetro agrupa importantes equipamentos, como o Mercado Municipal de São Paulo, o
Mercado Municipal do Pari, a Feirinha da Concórdia, a Feira da Madrugada, entre outros. A
paisagem é marcada pelo baixo gabarito e o entorno é bem servido de transporte público. As
imediações são repletas de imóveis e sítios tombados. O período de construção dos patrimônios
está compreendido em sua maioria entre as décadas de 1850 e 1940; muitas edificações
correspondem ao ínterim de expansão industrial no Brás – como o Moinho, a Tecelagem, o
Palácio das Indústrias, a Casa das Retortas, a Vila Economizadora, a Estação do Brás e a
Subestação de Energia Paula Souza.
No que diz respeito à conservação do Moinho Matarazzo, salvo pela remoção dos silos de
armazenamento no pátio interno do conjunto, todos os imóveis prosseguem com seus volumes
intactos. As edificações foram pintadas em cinza e rosa, apagando o estado original de alvenarias
expostas. Há ainda degradação devido às intempéries, falta de manutenção e vandalismo das
fachadas. No armazém utilizado pelo restaurante, temos um dos melhores estados de
conservação, dada utilização recente do espaço. Bardese (2011) identificou ali a alteração das
telhas originais e a substituição dos condutores pluviais de ferro por PVC, a troca de esquadrias
de ferro por madeira, instalação de grades e uma porta de aço. As edificações mais novas,
situadas na Rua do Bucolismo, apresentam fachadas repletas de grafismos e trechos de pinturas
diferenciadas, janelas tampadas ou que receberam grades para impedir invasões; as janelas,
ainda originais, apresentam muitos vidros quebrados ou não originais. Os edifícios na Rua

462
Monsenhor Andrade são aqueles em pior estado de conservação: as esquadrias têm vidros
quebrados, tamponamento de vãos com chapas metálicas ou de madeira, sujidade nas fachadas,
pichações, pintura diferenciada, destacamento de tijolos e afloramento vegetal.
No período anterior ao tombamento, as fachadas da Tecelagem Mariângela foram revestidas de
placas cerâmicas similares ao tijolo aparente que, sem adequada manutenção, apresentam
progressivo desplacamento. Nenhuma das fachadas apresenta pinturas diferenciadas, porém
são repletas de placas de estacionamento, equipamentos de segurança ou pichações nas Ruas
Fernandes Silva, Alfândega e Monsenhor de Andrade. A fim de evitar invasões, algumas
esquadrias receberam telas e grades; outras foram total ou parcialmente bloqueadas por
condensadoras de ar condicionado.

Figura 02: Mapa de Danos: Moinho Matarazzo – Fachadas Ruas Monsenhor de Andrade e
Bucolismo

Fonte: Elaboração autoral (2020) com base em arquivos encontrados na plataforma SIRCA

463
5 – Proposta de intervenção arquitetônica
A definição do programa de adequação do conjunto Moinho Matarazzo foi idealizada a partir da
análise territorial de ocupação, do planejamento estratégico municipal e da viabilidade técnica
de transformação. No primeiro âmbito, a vocação local é o comércio especializado de gêneros
alimentícios. O acesso a essa região ocorre especialmente por meio de rede rodoviária e os
terminais de transporte público – desta forma, é possível verificar que o novo uso destinado ao
conjunto poderia potencializar a vocação territorial comercial ligada à alimentação e viabilizar
uma grande circulação de usuários; no segundo âmbito, relativo ao desenvolvimento local, a
região encontra-se sob a égide do Plano Regional ID-76, que prevê como diretrizes a preservação
de patrimônios materiais, a criação de polos profissionalizantes e a promoção do comércio e
serviços locais, a qualificação de espaços públicos, criação de rotas comerciais e polos turísticos
qualificados ao pedestre e o tratamento paisagístico local (SÃO PAULO, 2016). A partir da sua
leitura, podemos afirmar que manter o conjunto do Moinho se sustenta como uma das diretrizes
e que seu novo uso deveria qualificar a paisagem e fomentar as práticas de comércio local.
Como resultado da análise, o partido adotado para intervenção foi a ressignificação do Moinho
Matarazzo como um complexo multiuso, constituído por um centro de memória industrial com
espaços de ensino e exposição; centro profissionalizante gastronômico voltado à população
local, especialmente àqueles em estado de vulnerabilidade social; complexo composto por
restaurantes, feiras itinerantes, que tirariam proveito do comércio alimentício existente para
abastecimento e polo de empregos para estudantes do centro educacional.
A diretriz central para elaboração da implantação foi a permeabilidade do solo e fluidez na
travessia entre ambientes externos e internos. Partindo das considerações estabelecidas no
tombamento e da compreensão do programa inicial e final, foram demolidas algumas das
edificações na porção central da quadra. Ocorreu a abertura de uma praça interna de conexão
entre os blocos, ladeada por canteiros arborizados e com espaço para feiras. Foi criada uma via
interna, ligada à Rua do Bucolismo, destinada a carga e descarga, passagem de bombeiros e
remoção de lixo. Houve a seleção de espécies adaptadas ao bioma local para o paisagismo,
adequadas à pavimentação e perenifólias, que não provocassem danos diretos ou indiretos aos
patrimônios pela presença de raízes ou deposição de material orgânico.
A distribuição dos usos foi condicionada pela relação uso inicial - final, a extensão do programa
e o tamanho das edificações existentes e a relação de proximidade da linha do trem. O edifício
cultural foi escolhido com base nas edificações iniciais do Moinho, que contemplavam os usos
de moinho e armazenagem. Foram locados no bloco que desse espaço ao auditório e pudesse

464
distribuir confortavelmente as exposições. O programa mais restrito e extenso era o da
instituição de ensino e logo foi selecionado o bloco com maior área, menor número de divisórias
internas e distante da linha férrea, ocupando o primeiro edifício construído. Por fim, na porção
sul do terreno, foi alocado o uso gastronômico, em uma composição de restaurante formal e de
mercado público interno e externo, com espaço para quiosques e feiras.

Figura 03: Proposta de projeto de intervenção para o Moinho Matarazzo. 01- Diagrama
volumétrico com diretrizes de preservação, baseado no tombamento 38/92 CONPRESP; 02 - Diagrama
volumétrico com proposta de restauro do Moinho Matarazzo; 03 - Diagrama volumétrico com proposta
de distribuição do programa arquitetônico; 04 – Corte Longitudinal, passando pelos edifícios que
faceiam a Rua Monsenhor Andrade; 05 – Perspectiva do Centro Cultural; 06 - Perspectiva do Centro
Profissionalizante; 07 - Perspectiva do Restaurante

Fonte: Elaboração autoral (2020)

O programa do centro de memória industrial conta com 3.770 m² e público de 350 pessoas.
Ocorreram algumas demolições no interior das edificações, para dar maior amplitude e
flexibilidade aos espaços expositivos, foyer do teatro e áreas de cafeteria. A cobertura e os níveis
de lajes foram reaproveitados em sua maioria conforme identificados inicialmente,
complementados pelo reforço da estrutura metálica.

465
O complexo gastronômico foi criado nas edificações mais novas do Moinho, localizadas na Rua
do Bucolismo. Ele é composto pelo Mercado Público e restaurante Nova Santa Rosa, em
homenagem ao antigo restaurante que lá existia, com área de 5900 m² e público de 450 pessoas.
Há espaço para feira culinária, que se prolonga na área externa, quiosques gastronômicos e um
restaurante. A laje do segundo pavimento foi aberta para criar um mezanino que permite a
visualização da área externa e do piso térreo.
O complexo educacional é composto pelo centro profissionalizante e restaurante experimental
acadêmico, com área total é de 6.900 m² e o público de 450 pessoas. Conta com área de
convivência e assistência administrativa no piso térreo. As salas de aula teórica, laboratórios de
computadores e biblioteca ficam nos primeiros dois pavimentos, enquanto os espaços de
aprendizado prático (cozinha quente, fria, panificação e confeitaria) se localizam nos dois
pavimentos subsequentes. No topo da edificação há uma casa de máquinas e há salas técnicas
distribuídas em todos os pavimentos. Para conferir iluminância e permeabilidade visual aos
laboratórios, foi criada uma série de poços de luz, que atravessam os pavimentos e comunicam
diferentes lados da edificação.

Considerações finais

O projeto de um novo uso buscou explorar as características históricas, arquitetônicas e culturais


desse conjunto e propor a integração do bairro com a cidade.

Referências
BARDESE, Cristiana Ikedo. Arquitetura Industrial - Patrimônio edificado, preservação e requalificação:
O caso do Moinho Matarazzo e Tecelagem Mariângela. – Dissertação (Mestrado de Arquitetura e
Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.

CONPRESP. Resolução nº 38/92. Institui o Tombamento do Moinho Matarazzo, Tecelagem Mariângela


e de outros 15 Imóveis, 1992. Disponível em
https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/upload/2d92b_38_T_Moinho_Matarazzo_e_Tecelagem_Mari
angela.pdf Acesso em: 10 dez. 2020

DIAS, Sonia. Verbete Francisco Matarazzo. FGV. Disponível em


<http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-bibliografico/matarazzo-francisco> Acesso em:
10 dez 2020.

GHEDINE, André. História dos Bairros Paulistanos - Brás. Banco de Dados da Folha de São Paulo, -
Acervo On-line. Disponível em <http://almanaque.folha.uol.com.br/bairros_bras.htm> Acesso em: 5 abr.
2020.

RUFINONI, Manoela Rossinetti. Preservação e restauro urbano: intervenções em sítios históricos


industriais. São Paulo: Fap-Unifesp / Edusp. 2013.

466
SANTOS, Cecília Rodrigues dos; LAGE, Claudia; SECCO, Gustavo. São Paulo Railway 150 anos: Patrimônio
industrial ferroviário ameaçado. Arquitextos: Patrimônio. São Paulo: Vitruvius, ano 17, nº201.05, 1 fev.
2017. Disponível em <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.201/6435> Acesso
em: 10 dez. 2020

SÃO PAULO. Prefeitura Municipal. Caderno de Propostas dos Planos Regionais das Subprefeituras:
Perímetros de Ação Mooca. 2016-b. Disponível em
<https://gestaourbana.prefeitura.sp.gov.br/wpcontent/uploads/2018/02/PA-MO.pdf>. Acesso em: 10
dez 2020.

SILVA, Silvana Cristina da. Circuito Espacial Produtivo das Confecções e Exploração do Trabalho na
Metrópole de São Paulo. Os dois Circuitos da Economia Urbana nos Bairros do Brás e Bom Retiro.
Dissertação (Doutorado em Análise Ambiental e Dinâmica Territorial) - Instituto de Geociências da
Universidade de Campinas, São Paulo, 2011.

VICHNEWSKI, Henrique Telles. As Indústrias Matarazzo no Interior Paulista: Arquitetura Fabril e


Patrimônio Industrial (1920-1960). Dissertação (Mestrado em História) - Departamento de História do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2004.

467
PATRIMÔNIO E CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM: perceção do sujeito turista sobre a
cidade de Inhambane em Moçambique
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Pelágio Julião Maxlhaieie


Doutorando em Planeamento do Território; Universidade de Coimbra; paydakany@gmail.com.

Antônio Carlos Castrogiovanni


Doutor em Comunicação Social na área de práticas sociais em Comunicação, Geografia e
Turismo; Professor Associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul;
castroge@ig.com.br.

O artigo examina os elementos do patrimônio da Cidade de Inhambane (CI), a fim de refletir


sobre alternativas criativas que enaltecem a valorização da paisagem percebida pelo
visitante/turista. Com a pesquisa bibliográfica, trabalho de campo e análise estatística,
constatou-se que a CI possui uma rica e diversificada oferta patrimonial natural e histórico-
cultural. A apropriação deste patrimônio produz a paisagem turística, que quando contemplada
pelo visitante, apesar de estruturar uma relação de ordem estética e afetiva, resulta ainda de
valorações negativas, devido a ação menos construtiva do turismo industrial, que silencia o
patrimônio. Portanto, um novo modelo de turismo deve ser concebido, que além das
determinações industriais, possibilita um desenvolvimento criativo, sobretudo na preservação
do patrimônio e melhoria estrutural da CI.
Palavras-chave: Patrimônio; paisagem turística; planejamento territorial; Cidade de Inhambane
(Moçambique).

The article examines the elements of the heritage of the Inhambane City (IC), to reflect about
creative alternatives that enhance the value of the landscape perceived by the visitor/tourist.
With bibliographic research, fieldwork, and statistical analysis, it was found that IC has a rich
and diversified offer of natural and historical-cultural heritage. The appropriation of this heritage
produces the tourist landscape, which when contemplated by the visitor, despite structuring an
aesthetic and affective relationship, still results from negative valuations, due to the less
constructive action of industrial tourism, which silences the heritage. Therefore, a new model of
tourism must be conceived, which, in addition to industrial determinations, enables creative
development, above all in the preservation of heritage and structural improvement of IC.
Keywords: Heritage; tourist landscape; spatial planning; Inhambane City (Mozambique).

468
1 – Introdução
O turismo é um termo híbrido que abrange não só os espaços, as motivações e os impactos, mas
também às ligações complexas que existem entre atores e instituições, num sistema de
interconexão entre oferta e demanda global (PEARCE, 1989; PEARCE e BUTLER, 1999). Focado
no patrimônio deriva a atividade turística, pois, são os elementos naturais e culturais do mesmo
que constituem fundamento principal para o desenvolvimento posterior da atração turística, e
matéria-prima sobre a qual se exerce o planejamento do turismo. É através deste processo que
se cria a paisagem ofertada em forma de produto turístico. Portanto, segundo a Organização
Mundial do Turismo do Turismo - OMT (2001), o desenvolvimento do turismo consiste em aliar
o patrimônio natural ou cultural de um lugar com a demanda e preferências dos turistas atuais
ou potenciais.
O artigo teve como objetivo, estudar os elementos que compõem o patrimônio da urbe, a partir
da leitura elaborada pelos sujeitos do turismo (turista), tomando a Cidade de Inhambane (CI)
em Moçambique como objeto empírico, face a importância do turismo no contexto regional e
nacional, a fim de sugerir alternativas criativas que enaltecem a valorização do espaço turístico.
A pesquisa orientou-se na perceção1 da paisagem turística, que surge como uma das alternativas
de estudo que fornece subsídios para o conhecimento das relações entre os atores com a
construção do espaço pelo turismo (RODRIGUES, 2003; XAVIER, 2007). A perceção é um
paradigma complexo (MORIN, 2003a; 2003b; 2008), com a finalidade de ajudar os atores do
turismo a pensar por si mesmos para responder ao desafio da complexidade dos problemas.
Como sustenta Collot (1986), não se pode falar de paisagem sem se falar de sua perceção. O ser
humano não recebe passivamente os dados sensoriais, mas os organiza ativamente para
atribuir-lhes um significado.
O artigo se estrutura em quatro secções. A primeira compreende a metodologia adotada na
pesquisa. A segunda é relativa a fundamentação teórica, onde se destaca a relação que existe
entre patrimônio e desenvolvimento do turismo. A terceira é inerente aos resultados e

1
A percepção é aqui entendida de forma simples como a maneira como nós vemos, lemos, julgamos,
conceituamos, qualificamos as coisas no mundo e em nós mesmos, ou como um processo de
interpretação do comportamento dos atores/sujeitos no seu espaço de lugar e entre-lugar/não-lugar.
Trata-se de uma condição da interação entre os sujeitos e estes com o meio que o circundam e seus
elementos (o patrimônio). Neste caso, destacamos o turista no seu entre-lugar/não-lugar, uma vez que
com frequência as recomendações inerentes à reorganização do espaço pelo turismo, resultam de
leituras unidimensionais dos técnicos, políticos e empresários transnacionais, perpetuando na sequência
praticas turísticas não criativas localmente.

469
discussão, com realce para o inventário do patrimônio e exame da perceção do turista em
relação a paisagem da CI. Na quarta e última sessão é apresentada a conclusão.

2 – Metodologia
Os procedimentos metodológicos compreenderam três etapas principais: (i) pesquisa
bibliográfica e documental; (ii) preparação da base de dados; e (iii) análise e interpretação de
resultados. A primeira etapa consistiu na delimitação do tema bem como na preparação do
trabalho de campo (elaboração dos instrumentos de recolha de dados, definição dos conceitos
operacionais para o objeto empírico e definição da amostragem). Este processo efetivou-se por
de duas técnicas básicas, isto é, pesquisa bibliográfica e levantamento documental em
instituições públicas e privadas como o Conselho Municipal da Cidade de Inhambane, Direção
Provincial de Cultura e Turismo, Instituto Nacional de Estatística e Associação de Hotelaria e
Turismo da Província de Inhambane. Portanto, foi elaborado um roteiro de entrevista
semiestruturada para estas instituições e um roteiro de observação sistemática não
participante. Igualmente, um questionário com perguntas abertas e fechadas foi aplicado
através de um inquérito direcionado aos turistas, na base de amostragem não pirobalística, onde
cerca de 23 visitantes selecionados aleatoriamente, representaram o total de inquiridos na CI.
A segunda etapa consistiu na recolha de dados referentes ao tema por meio das técnicas
identificadas anteriormente. A observação consistiu na realização do contato com os atores
locais do turismo (mantendo-se alheio aos fatos/eventos para não os influenciar), durante o
inventario do patrimônio e leitura da paisagem. O inquérito tinha como finalidade, averiguar o
nível de relacionamento entre turista e patrimônio, e verificar o estado deste patrimônio
vendível em forma de paisagem, a partir dos imaginários e perceções do turista. As entrevistas
tinham como objetivo identificar o percurso histórico e caracterização geral do turismo na CI.
Na terceira etapa fez-se a análise dos resultados de acordo com diversas abordagens de autores
em relação ao tema e a realidade empírica. A compilação do essencial fez-se com base na
triangulação de diferentes métodos (descritivo, comparativo, estatístico e análise de conteúdo)
e fontes de dados (entrevistas, questionários, observações e pesquisa documental).

3 – Revisão Bibliográfica
A economia pós-industrial/pós-moderna se caracterizou pela predominância das atividades do
setor terciário (serviços), além da automação nas indústrias, da informatização dos processos
burocráticos e de uma busca incessante da natureza (XAVIER, 2007). Na virada do milênio, a

470
atividade turística foi marcada pela ideia de retorno à natureza. Tal situação é o resultado do
expressivo crescimento das cidades e de uma estratégia do capital (PIRES, 2002; XAVIER, 2007;
MOLINA,2003, 2011).
Nas grandes cidades poluídas, são criadas as necessidades das saídas de pessoas, na procura de
espaços mais abertos, nos quais possam contemplar a paisagem e abrir novos horizontes. Tais
necessidades correspondem ao alívio do “estresse urbano” (XAVIER, 2007, p. 57). Assim, a
estratégia do capital recai sobre a (re)valorização do patrimônio natural.
Outro facto que atingiu o turismo nas últimas décadas foi o despertar dos valores culturais por
meio das manifestações antropológicas, religiosas, artísticas, artesanais, folclóricas, históricas,
entre outras (XAVIER, 2007). O significado do patrimônio cultural é muito amplo e complexo, na
medida em que inclui produtos do servir, do pensar e do agir humano (PELLEGRINI FILHO, 1999).
Enquanto o retorno à natureza produz um movimento de saída de pessoas das cidades, os
valores culturais, ao contrário, estimulam a permanência delas nas cidades.
O debate em cause está relacionado com o patrimônio óbvio ou incerto que é apropriado pelo
turismo, tradicionalmente denominado de “patrimônio turístico”, entendido como o conjunto
potencial (conhecido ou desconhecido) dos bens materiais ou imateriais à disposição do homem
e que podem ser utilizados mediante um processo de transformação para satisfazer suas
necessidades turísticas (OMT, 2001). Este patrimônio compõe-se de elementos naturais e
culturais.
Portanto, o uso do patrimônio no turismo tem sido motivo de discussão sobre seus benefícios e
suas contradições. De facto, a consolidação do turismo como prática massiva ao longo do século
XX teve como consequência, a rápida transformação do patrimônio em atrativo, onde através
das atividades econômicas associadas ao turismo, verificou-se um processo de mercantilização
deste, permitindo níveis variáveis de rentabilidade. Esta tendência, que teve um pico
considerável no período pós-segunda guerra mundial (MILLAR e YÚDICE, 2004) compreendeu o
incremento de modalidades alternativas do turismo (segmentos de nicho), que tem na natureza
e na cultura, seus alicerces e formas de consumo turístico, em detrimento do tradicional turismo
de sol e praia. Contudo, o padrão baseado no turismo industrial, ainda se mantêm, o que
compromete a sustentabilidade do patrimônio.
Diversas questões podem ser analisadas para melhor compreender a crescente importância do
patrimônio no turismo. Por uma parte, cabe mencionar as recomendações de organismos
internacionais tais como a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência
e a Cultura) e a ONU (Organização das Nações Unidas) já na década de 1960, ou de organismos

471
como a OMT, o Banco Mundial ou o PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente) a partir da década de 1970 (SCHETTINI, 2008), que incentivam a preservação do
patrimônio dentro da lógica dos programas gerais do turismo. Por outro lado, estas instituições,
reconhecendo a importância do turismo, promovem seu desenvolvimento como meio para
alcançar uma nova ordem econômica internacional que contribuirá para reduzir as gigantescas
desigualdades sociais entre os países mais e menos desenvolvidos e, esperar seu impacto real
na melhoria dos padrões e condições gerais de vida das comunidades residentes dos lugares
turísticos.
Na pós-modernidade, se assiste também o incremento dos processos de ativação patrimonial2,
muitos dos quais levam em conta, desde sua origem, relações com o desenvolvimento do ócio
e/ou do turismo, entrando diretamente no mercado e aliado em termos de consumo; sendo o
lugar possuidor de algum tipo de patrimônio, transformado consequentemente, como um lugar
potencial para a prática do turismo (PRATS, 1998; SCHETTINI, 2008). Seguindo esta linha de
argumentação, se percebe que é neste dito lugar, onde se enfatizam variáveis como a
singularidade, a identidade, e a autenticidade dos bens ou atributos que formam esses novos
atrativos turístico-patrimoniais, adotados como estratégia para incentivar o desenvolvimento
do turismo.
O papel do patrimônio na configuração da paisagem e na constituição do atrativo turístico pode
ser explicado em duas perspetivas de particular importância: a primeira ressalta a crescente
importância que os processos de patrimonialização3 têm na atualidade e; na segunda
perspetiva, considera-se o interesse também crescente que o patrimônio vem adquirindo na
formação do atrativo turístico, especialmente no quadro das modalidades denominadas de
turismo alternativo (BERTONCELLO, 2008). É nesta última abordagem que incide a discussão
neste artigo.

4 – Resultados e Discussão
4.1 – Caracterização geral da CI

2
Significa escolher determinadas referências e expô-las de outra forma. Isto equivale a articular um
discurso que dependerá das referências escolhidas, dos significados destas referências que se destacam,
da importância relativa que se lhes outorga e do contexto (PRATS, 1998).
3
A patrimonialização é uma ação empreendida por diversos atores e instituições locais, nacionais e
internacionais, com a finalidade de fomentar o desenvolvimento através da valorização, revitalização de
um determinado lugar e do seu patrimônio natural e histórico-cultural.

472
A CI, situa-se na zona central da província de Inhambane, a cerca de 490 km ao Norte da capital
de Moçambique (cidade de Maputo). Com uma área total de 192 km2, a cidade limita-se a Norte
pela baía de Inhambane (oceano Índico), a Sul pelo distrito de Jangamo, a Este pelo oceano
Índico; e a Oeste novamente pela baía de Inhambane (CMCI, 2009). A CI é a capital da província
com mesmo nome e ocupa uma área de 0,3% do total da província, conhecida como a capital
nacional do turismo. A população é de e 82 119 habitantes (INE, 2019) e dedica-se ao comércio
(69%), turismo (25%) e as outras atividades como o setor de serviços e pesca tem um peso de
6% (ATMI, 2018).

Figura 01: Delimitação da área de estudo na cidade de Inhambane

Fonte: CENACARTA in: Azevedo (2014).

O estudo teve como recorte espacial, três áreas, nomeadamente (Figura 01): (i) a área urbana,
ou seja, o centro da cidade que compreende os bairros Balane I, II e III e Liberdade I; (ii) a área

473
semiurbana representada pelo bairro Josina Machel e; (iii) a área não urbana, que abrange os
bairros costeiros de Conguiana, Machavenga e Salela. Estas são as áreas que possuem certo nível
de desenvolvimento urbano e de infraestrutura de turismo, para além da diversidade de
atrativos, elementos estes que qualificam a cidade como uma importante Área Prioritária para
o Investimento Turístico. É ao longo da costa e da área urbana onde o turismo tem maior
dinâmica, sendo na área semiurbana e não urbana onde se localizam as praias da Barra
(Conguiana) e do Tofo e Tofinho (Josina Machel), respetivamente.

4.2 – Patrimônio e construção da paisagem turística da CI


O Quadro 01 sintetiza os bens naturais e culturais que constituem as principais atrações
turísticas da CI. O objetivo do inventário consistiu em cadastrar estes bens com interesse
turístico potencial ou efetivo, sem rigor na especificação quantitativa. Na sequência, são
destacadas as características objetivas (tangíveis, quantitativas e qualitativas) e subjetivas
(emocionais, sociais e representativas) percebidas pelos observadores (pesquisadores) e ator
turista.

Quadro 01: Inventario do patrimônio turístico da cidade de Inhambane

Patrimônio natural Patrimônio cultural


1. Costa ou litoral 1. Sítio histórico
− Praias (Barra, Tofo, Tofinho, Rocha) − A cidade de Inhambane
− Baía de Inhambane 2. Edificações arquitetónicas
− Recifes de coral − Arquitetura europeia e árabe (Igreja
− Dunas parabólicas Velha, Igreja Nova - Nossa Senhora da
2. Terras insulares Conceição-; Mesquita Velha, Mesquita
− Ilhas costeiras (Inhambane, Porcos, Nova – Nur Muhammad)
Ratos) − Casas coloniais (edifício do Conselho
3. Unidades lacustres Municipal, mercado central)
− Lagos/lagoas e riachos (Pembane, − Ponte cais e velha marginal
Chivanene, Cumbe, Malongué, 3. Instituições culturais
Muanguè, Nhacudjingulo, Guiúa) − Museu Regional de Inhambane, museu
4. Flora e fauna Privativo da Igreja Nossa Senhora da
− Áreas de pomar (coqueiros, cajueiros), Conceição, biblioteca provincial,
mata dispersa e cerrada/fechada, biblioteca Xipefu, clube cultural (Cine
mangues, brenha costeira e de Teatro Tofo), casa da Cultura de
casuarinas Inhambane
− "Big Five" aquáticos (golfinho, tubarão, 4. Gastronomia típica (mariscos); artesanato
tartaruga, tubarão-baleia e raia manta) (cerâmica, cestaria, tecelagem, esculturas,
− Avifauna com mais de 72 espécies etc.); música (canto) e dança, hospitalidade
(papagaio de cabeça castanha, flamingo, da população residente (Terra de Boa
falcão peregrino, picanços, roleiros, etc.) Gente)
Fonte: Autor (2020). In Maxlhaieie e Castrogiovanni (2014).

474
A demanda turística da CI é maioritariamente masculina, com uma faixa etária entre os 25 e 44
anos, e de nacionalidade sul-africana, seguida de portuguesa e moçambicana (Tabela 01).
Grande parte são solteiros e preferem viajar com amigos e família, organizando as suas próprias
viagens e, permanecem na CI durante uma semana, tendo como principal motivação o lazer,
onde o sol e praia constituem atração central; seguido do Ecoturismo costeiro, onde se destaca
o mergulho contemplativo e observação da biodiversidade marinha; e aventura nas ilhas, lagoas
e comunidades recônditas da cidade. Os visitantes utilizam o transporte rodoviário particular e
autocarro para aceder a CI. A maioria possui ensino superior e exerce alguma atividade
profissional, facto que faz com que 30% destes gaste até 500,00 US$/dia no consumo turístico,
embora o nível de indiferença ter sido elevado (57%).

Tabela 01: Perfil sociodemográfico dos turistas da cidade de Inhambane

Nacionalidade % Motivação % Ocupação % Estado Civil %


África do Sul 0,35 Lazer 0,31 Estudante 0,17 Solteiro(a) 0,48
Zimbábue 0,09 Negócio 0,04 Empresário 0,09 Casado(a) 0,26
Moçambique 0,13 Aventura 0,13 Instituição privada 0,13 Viúvo(a) 0,09
Portugal 0,17 Pesquisa 0,04 Instituição pública 0,22 Divorciado(a) 0,13
Alemanha 0,09 Congresso 0,04 Profissão liberal 0,26 Separado(a) 0,04
Polônia 0,09 Ecoturismo 0,17 Aposentado(a) 0,09
Irlanda 0,04 Cultura 0,09 Desempregado(a) 0,04
EUA 0,04 Outra 0,18
Idade % Transporte % Forma de Viajar % Organização %
15 – 24 anos 0,17 Autocarro 0,22 Só 0,09 Agência de viagem 0,26
25 – 44 anos 0,52 Avião 0,26 Com parceiro(a) 0,17 Conta própria 0,65
45 – 64 anos 0,22 Carro próprio 0,39 Com família 0,26 Clube/associação 0,09
> 65 anos 0,09 Barco 0,13 Com amigos 0,48
Género % Educação % Duração da Estadia % Gasto Diário na CI %
Masculino 0,61 Ensino primário 0,0 1 – 7 dias 0,57 0 – 500 US$ 0,30
Feminino 0,39 Médio 0,17 2 semanas 0,35 501 – 1000 US$ 0,04
Secundário 0,31 1 mês 0,04 > 1001 0,09
Superior 0,52 > 1 mês 0,04 Indiferentes 0,57
Fonte: Autor, com base no levantamento de campo de 2015.

Aproximadamente 78% dos turistas afirmou ter visitado a cidade como primeira opção em pelo
menos duas vezes, tendo nas praias a principal atração. São visitantes que se sentem no seu
espaço de pertença, embora diferente do seu espaço de origem; que no processo de adaptação
ao seu outro ambiente (CI), constroem uma estrutura de identidade daquilo que os cerca,
comprovando que nele, parece haver uma ou, talvez, uma série de imagens, resultado da
superposição de imagens de muitos turistas que convergem na cidade, e da própria experiência

475
turística do mundo afora. Existe uma relação transversal não só de âmbito contemplativo, mas
também de cunho estético e afetivo entre os turistas e a paisagem da CI, estruturada a partir
dos elementos do patrimônio. Um diálogo polifônico, onde as experiências e emoções
vivenciadas são posteriormente transformadas em fotografias, discursos e narrativas
inesquecíveis. Há um sentimento de agradecimento - privilégio - pela experiência vivenciada.
Uma relação que é recursivamente (re)produzida, seja por sul africanos ou portugueses, por
jovens ou adultos, por mergulhadores ou aventureiros.
A experiência contemplativa, estética e afetiva é própria de cada turista. Cada um teve com a CI
o seu próprio diálogo, a sua própria configuração paisagística, embora existam pontos comum,
de ordem cultural, histórica e de representação socia. Entretanto, estas perceções resultaram
ainda de valorações negativas, pois, como sustenta Collot (1986), o ser humano não recebe
passivamente os dados sensoriais, mas os organiza ativamente para atribuir-lhes um significado,
emitindo seus pontos de vista. De acordo com a teoria do “Olhar do Turista” (URRY, 2001),
verificamos que não só prevalece o olhar “romântico” do turista, notadamente individual; mas
também aquele olhar “coletivo”, onde os turistas que estão vendo e sendo vistos é que dão
sentido ao lugar e à paisagem, como observamos na CI, tendo em conta as evidências do nível
de satisfação turística.
A maior parte dos visitantes (44%) considera boa a conservação das praias, seguidos por 39%,
que avalia como sendo aceitável (Tabela 02). Nas avaliações negativas (8%) se destacou a fraca
gestão dos resíduos sólidos nas praias, colocando em risco a sustentabilidade ambiental. As
dunas, ilhas e recifes, são outros elementos do patrimônio bem conservados na opinião dos
turistas, onde a taxa de resposta foi de 52%, 35% e 35%, respetivamente. São áreas inacessíveis
para certos usuários (como os residentes e visitantes mochileiros), daí a menor pressão e
degradação ambiental. O mesmo acontece com os rios, lagos e lagoas, onde a maioria (48%),
ponderou como sendo muito boa a conservação, tal como aconteceu na avaliação da fauna e
flora (48%).
No que diz respeito aos elementos do patrimônio cultural (Tabela 02), os turistas demonstraram
uma insatisfação em relação ao seu estado de conservação, divulgação e aproveitamento
turístico. Quando questionados sobre os sítios históricos, representado pelos monumentos
históricos, a maioria (30%) declarou estar insatisfeito, devido o estado de conservação precário,
onde o uso turístico é quase inexistente. Na sequência, 22% considerou péssima a situação. As
mesmas perceções verificaram-se nas instituições culturais, pois, 44% considera má a sua
atuação.

476
Os turistas conferem pouca importância aos bens culturais devido fraca e/ou inexistência de
divulgação dos mesmos. Ultrapassar este cenário é um processo que perpassa da excelência de
políticas, planos e programas de diversificação da oferta, por contemplar ainda a participação
ativa dos atores responsáveis pelo desenvolvimento do turismo (governo, setor privado e
população local).
Tabela 02: Avaliação da paisagem turística da cidade de Inhambane (%)

Péssima [1] Ruim [2] Razoável [3] Boa [4] Muito Boa [5] 1 2 3 4 5 TOTAL
A. Praias 0,04 0,04 0,39 0,44 0,09 1,0

B. Baia de Inhambane 0,09 0,30 0,35 0,22 0,04 1,0

C. Dunas 0,13 0,0 0,31 0,52 0,04 1,0

D. Ilhas 0,0 0,0 0,30 0,35 0,35 1,0

E. Recifes 0,04 0,04 0,31 0,35 0,26 1,0

F. Rios, lagos e lagoas 0,0 0,0 0,26 0,26 0,48 1,0

G. Flora e Fauna 0,0 0,0 0,30 0,22 0,48 1,0

H. Grau de satisfação geral (patrimônio natural) 0,04 0,09 0,13 0,22 0,52 1,0

I. Sítios históricos (monumentos históricos) 0,22 0,30 0,22 0,17 0,09 1,0

J. Edifícios arquitetónicos 0,09 0,13 0,22 0,39 0,17 1,0

K. Obras de arte (escultura, pintura) e artesanato 0,0 0,04 0,22 0,22 0,52 1,0

L. Instituições culturais 0,17 0,44 0,22 0,17 0,0 1,0

M. Festas e celebrações (religiosas, folclóricas, cívicas) 0,17 0,13 0,22 0,39 0,09 1,0

N. Gastronomia típica 0,0 0,0 0,17 0,26 0,57 1,0

O. Músicas e danças 0,0 0,0 0,22 0,17 0,61 1,0

P. Grau de satisfação geral (patrimônio cultural 0,22 0,26 0,30 0,09 0,13 1,0
TOTAL 0,08 0,11 0,26 0,27 0,28 1,0
Fonte: Autores, com base no levantamento de campo de 2015.

O desafio consiste em ultrapassar as formas tradicionais de abordar o patrimônio, que até então,
ainda enaltecem uma fragilidade estrutural herdada do colonialismo, ou seja, na CI é patrimônio
sobretudo aquele bem material e imaterial criado ou herdado através do processo de
colonização. Corroborando com alguns autores (PRATS, 1998; CHOY, 2001; BERTONCELLO,
2008a; SCHETTINI, 2008), estas formas de ler o patrimônio começam a ser questionadas, pois, o
patrimônio turístico não é unicamente algo que tem origem no passado e que é meramente

477
criado por outros atores (externos). O patrimônio estará por outro lado, definido pelos critérios
que os atores os estabelecem, e que de modo mais ou menos direto, estarão em função de
intencionalidades socioculturais e históricas específicas, como defende Prats (1998). É dentro
desta lógica onde se enquadra o aproveitamento turístico do patrimônio, onde se propõe o uso
turístico como alternativa viável para garantir seu desfrute e valorização por parte da população,
ou daqueles que podem ser turistas, pois, são as necessidades e expectativas destes atores que
orientam a seleção do patrimônio a ser convertido em patrimônio e atrativo turístico, como
explica Bertoncello (2008a).
As edificações, sobretudo as de arquitetura religiosa (Igreja e Mesquita nova) e civil (Conselho
Municipal), devido às ações de restauro e manutenção, os turistas ponderam como boa (39%),
razoável (22%) e muito boa (17%) a conservação. É visível a quantidade de turistas que não
medem esforços para contemplar e fotografar a paisagem propiciada por estes edifícios. A
fotografia constitui principal ferramenta para expressar sentimentos e construir a paisagem da
CI como uma paisagem pessoal.
Cenário positivo verificou-se ainda nas obras de artes e artesanato, que os turistas compram
como souvenires; na gastronomia típica; e no canto e dança locas, onde as taxas de respostas
foram de 52%, 57% e 61%, respetivamente, atingindo assim, as ponderações máximas na última
opção na escala de Likert. Portanto, se alguns elementos histórico-culturais são valorados de
forma satisfatória, mesmo ao serem consumidos ao acaso por parte dos visitantes, iniciativas
criativas devem ser desenvolvidas, com vista a dar a conhecer estes elementos. Uma das formas
deve ser através da divulgação deste potencial em festas e celebrações locais e promover o
turismo (social) doméstico.
Assim, no consumo do patrimônio, as valorações positivas, como sentir-se tranquilo, pacificado,
relaxado e abençoado; ou ainda, alegrar-se pelo excelente estado de conservação e preservação
do patrimônio, não são as únicas perceções que tecem as experiências do turista na CI. Alguns
aspetos da oferta vendível em forma de paisagem, são negativamente percebidos. Desses
aspetos, se destacam os atrativos culturais distribuídos geograficamente na área urbana da
cidade. Portanto, com base na proposta de Lynch (2011), sobre a imagem do espaço urbano,
segundo a qual o lugar é para ser apreciado positivamente, e deve estar em boas condições para
que se possa guardar lembranças agradáveis aos usuários; constatamos que a CI ainda não
corrobora com esta proposição.

478
5 – Conclusão
A CI possui uma rica e diversificada oferta patrimonial de ordem natural, - a mais procurada pelo
visitante/turista -, distribuída sobretudo ao longo da zona oceânica da cidade (nas praias); e de
influência histórico-cultural, localizada principalmente na área urbana/centro da cidade. É
através da apropriação deste patrimônio pelo turismo que se produz a paisagem turística da CI.
Esta paisagem, ao ser contemplada pelo visitante, apesar de estruturar uma relação de ordem
estética e afetiva, resulta ainda de valorações negativas, devido a ação menos construtiva do
turismo implantado na cidade, baseado no modelo industrial, que além de silenciar o
patrimônio, continua a interpretá-lo com base em fragilidades estruturais herdadas do
colonialismo, e que pouco consideram o papel dos turistas nos processos de patrimonialização
(ativação e valorização patrimonial) da CI.
Contudo, sob determinadas condições, sugere-se a conceção de um novo modelo de turismo na
CI, que ao ir além das determinações do turismo industrial, possa garantir seu desenvolvimento
de forma criativa, sobretudo na área de conservação e preservação do patrimônio e na melhoria
das condições estruturais da cidade.

Referências
AZEVEDO, Helsio. A. M. A. A segurança em territórios turísticos: o caso do município de Inhambane em
Moçambique. 2014. 267 f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto de
Estudos Socioambientais, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2014.

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(Org). Turismo y Geografía; lugares y patrimonio natural-cultural de la Argentina. Buenos Aires: CICCUS,
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CHOAY, Françoise. A alegoria do património. São Paulo: UNESP, 2001.

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217.

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LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

479
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Sul – UCS, 6(3) 356-373, jul-set, 2014. ISSN: 2178-9061.

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MOLINA, Sergio. O pós-turismo. São Paulo: Aleph, 2003.

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PRATS, Llorens. El concepto de património cultural. Politica y Sociedad, vol 27. Disponível em
<www.antropologiasocial.org>. Acesso em 11/06/2013.

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XAVIER, Herbe. A percepção geográfica do turismo. São Paulo: Aleph, 2007.

480
PRAÇA DOM PEDRO II: um percurso da paisagem do berço de Maceió
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Anna Letícia Castro Diégues de Arecippo


Graduanda; Centro Universitário Tiradentes - UNIT; leticiaarecippo@hotmail.com .

Bianca Machado Muniz


Doutoranda; Universidade Federal de Alagoas-UFAL / Centro Universitário Tiradentes - UNIT;
bianca602@outlook.com.

A Praça Dom Pedro II é reconhecida como ponto onde a cidade de Maceió (AL) surgiu, tendo
acompanhado as mudanças aí ocorridas, desde que esta era apenas uma vila colonial, até
tornar-se capital do estado. Estando localizada no bairro do Centro, apesar de sua importância,
seu caráter histórico não é adequadamente valorizado. O presente artigo busca contemplar as
modificações realizadas na praça ao longo de seu percurso, traçando uma cronologia de suas
modificações através de imagens. Acredita-se que a construção desse panorama, pode
contribuir para valorização deste espaço tão significativo na cidade de Maceió: um nó de
convergências urbanísticas e históricas, mas também de silenciamento e esquecimento.
Palavras-chave: História; Praça Dom Pedro II; Maceió;

The Praça Dom Pedro II is recognized as the point where the city of Maceió (AL) emerged, having
followed the changes that occurred there, since it was just a colonial village, until it became the
state capital. Being located in the Center neighborhood, despite its importance, its historical
character is not properly valued. The present article seeks to contemplate the modifications
made in the square along its course, tracing a chronology of its changes through images. It is
believed that the construction of this panorama can contribute to the appreciation of this
significant space in the city of Maceió: a node of urban and historical convergences, but also of
silencing and oblivion.
Keywords: History; Square Dom Pedro II; Maceió;

481
1 – Introdução
Praças são espaços repletos de memórias que acompanham as cidades desde sua criação,
muitas vezes sendo elas seu ponto de partida, não só da cidade em si, mas do caráter cívico, da
cidadania. Todavia, nem sempre a grandiosa carga histórica que costumam ter esses lugares é
lembrada e valorizada, e essa atitude costuma ter um impacto direto em sua paisagem.
A Praça Dom Pedro II em Maceió, Alagoas, é um desses espaços que acompanham a história de
uma cidade e seu povo. Localizada no bairro do Centro na Rua Dois de Dezembro, numa área
classificada pelo Plano Diretor de Maceió como Zona Especial de Preservação Cultural, é um dos
principais espaços históricos da capital, que foi cenário para diversos acontecimentos históricos.
Além do mais, a praça concentra em seu entorno importantes edificações, seja por sua
importância histórica, como o sobrado onde pernoitou D. Pedro II, seja por sua importância
religiosa, como a Catedral Metropolitana, ou ainda por sua importância política, como a
Assembleia Legislativa. A praça é, portanto, um dos principais espaços urbanos de Maceió.
A Praça Dom Pedro II é conhecida também como local onde teve origem a cidade de Maceió
(Espíndola, 1971 ; Costa 1981). Ali existia um engenho de açúcar junto a uma capela no início
do século XIX, tendo surgido algumas casas em seu entorno, originando um pequeno núcleo
urbano (COSTA, 1981). Com o passar do tempo, o núcleo original se desenvolveu e se modificou
diversas vezes, assumindo por fim sua configuração atual. A capela e o humilde casario inicial,
ao longo do tempo deu lugar à câmara municipal e à cadeia da vila. Mais tarde a humilde capela
foi substituída pela imponente Catedral, e outras edificações foram inseridas, como a
Assembleia Legislativa (já citada), o famoso Sobrado do Barão de Jaraguá (hoje biblioteca
municipal) e o prédio do Ministério da Economia, além do primeiro prédio modernista da cidade,
o Parque Hotel. Este espaço concentrava, portanto, referências culturais e políticas da cidade.
Quanto à sua morfologia, a Praça Dom Pedro II ao longo dos anos passou por diversas
modificações e reformas. Essas transformações compreendiam o traçado e paisagismo do local,
que transitou do período colonial, passando pelo eclético e pelo moderno, assumindo
finalmente a configuração atual. Entre as principais alterações da praça estão: a instalação do
monumento à Dom Pedro II em 1861, o passeio em 1882, o eixo de circulação do início do século
XX, os quiosques instalados na primeira metade do século XX, as ruas inseridas que cortaram o
traçado original, entre outras alterações de desenho e paisagismo.
Apesar de sua importância como símbolo social, político e histórico ser confirmada por estar
incluída no Setor de Preservação Rigorosa segundo o Código de Edificações e Urbanismo do
Município de Maceió (2007), a Praça Dom Pedro II passou a ser encarada como local

482
marginalizado pela população. Muitas vezes parece ter sido esquecida pelo poder público e
habitantes da cidade, além de ter seu espaço reduzido, visto que quase metade de sua área foi
convertida em estacionamento da Assembleia Legislativa, de modo que já não é mais tão
acolhedor como parece ter sido em outros momentos de sua trajetória.
O presente artigo tem como principal objetivo apresentar o percurso da Praça Dom Pedro II,
realizando um resgate histórico e cronológico por meio de fotografias e cartões-postais da praça.
A partir daí, analisa-se as funções sociais que o local teve desde a sua criação até o presente
momento.

2 – O Percurso da Praça Dom Pedro II


A história da Praça Dom Pedro II está estritamente ligada à formação da cidade de Maceió.
Espíndola (1971, p. 136) descreve que Maceió, no início do século XVIII, não passava de um
pequeno aglomerado urbano que circundava um engenho de cana de açúcar e uma capela, na
área onde hoje se encontra a praça Dom Pedro II, juntamente à Assembleia Legislativa e a
Catedral Metropolitana. Conforme Costa (1939), em 1815 o povoado é nomeado vila,
constituído por uma casa de câmara, cadeia e pelourinho.
Em uma gravura, o autor Euclides Salles representa como seria aquele ambiente inicial (Figura
1a). O largo retangular vazio em frente à capela, representa o início do espaço da praça Dom
Pedro II. Esta configuração acompanha as diretrizes de planejamento das colônias portuguesas,
sendo este espaço, o adro da capela, utilizado como apoio às festividades religiosas e local de
circulação.
Mais tarde, com a vila mais desenvolvida, o local passa a ser reconhecido como Largo do
Pelourinho, quando passa a abrigar a Cadeia, Casa de Câmara e o Pelourinho, tornando-se um
ponto referencial da vila (COSTA, 1981). Em 1840, um ano após a consolidação de Maceió como
cidade, a antiga capela dá lugar à Igreja Matriz de Nossa Senhora dos Prazeres, atual Catedral
Metropolitana de Maceió. Neste momento o espaço em frente passa a ser reconhecido como
Praça da Matriz, evidenciado a condição e função religiosa do lugar. Nesta primeira metade do
século XIX, a praça Dom Pedro II não se desvinculara totalmente da igreja, todavia, sua função
social como espaço de encontro passava a ser cada vez mais reconhecido.
Além da Igreja Matriz, outras edificações também compunham a paisagem do local, como o
sobrado do Barão de Jaraguá. Outros passam a compor a paisagem da praça já na segunda
metade do século XIX, como o Palacete da Assembleia, e o prédio do ministério da economia,
que marcaram um afastamento do local da função religiosa.

483
Em 1861, segundo Leão (2010, p. 70), o monumento à Dom Pedro II é instalado na praça, após
visita do então imperador (Figura 1c). Já em 1868, o local é reconhecido como Praça da
Assembleia, consolidando o processo de secularização, e caracterizando a praça com funções
cívicas (LEÃO, 2010). Os primeiros traços são estabelecidos em 1882 (Figura 1b), com a
instalação do passeio pavimentado que delimitava o local, conforme descreve Leão (2010, p.
78). A partir desta primeira reforma, a praça passa a receber maiores tratamentos, que viriam
no século seguinte.
Na virada do século o avanço tecnológico impulsionava ainda mais o anseio pela modernidade
em todo o mundo. Não diferente, as cidades brasileiras também buscavam atender aos novos
aspectos do século, e inspiravam-se nas cidades europeias. Em Maceió, a Praça Dom Pedro II
recebe cada vez mais atenção com relação à sua estética, ao seu paisagismo.

Figura 1: a) Início de Maceió, gravura de 1881, destaque para espaço em frente à capela; b) Passeio
delimitando o espaço da Praça; c) Monumento à Dom Pedro II, instalado em 1861.

Fonte: a) COSTA, 1981, modificado pela autora; b) CAMPELLO, 2009, modificado pela autora; c) APA.

484
No início do século, a primeira modificação notada a partir de um cartão-postal de circulação
entre 1905 e 1911 (CAMPELLO, 2009), é a colocação de um gradeado que circunda o espaço da
praça, e a presença de vegetação na parte central do espaço (Figura 2a). Essa configuração nos
remete aos jardins cercados europeus, tidos muitas vezes como espaço de contemplação em
meio à cidade. Porém, em outro cartão-postal, com circulação entre 1906 e 1908, o gradeado já
não aparece, e este dá lugar à bancos e eixos pavimentados (Figura 2b). O local também passa
a receber postes elétricos e vegetação mais densa.

Figura 2: a) Início do séc. XX, destaque para mureta gradeada. b) cartão-postal com circulação entre
1906 e 1908, sem gradeado; c) Eixos da Pça. Dom Pedro II, início do século XX.

Fonte: a) CAMPELLO, 2009, modificado pela autora; b) CAMPELLO, 2009, modificado pela autora; c)
LEÃO, 2018, modificado pela autora.

485
Com essa pequena mudança de componentes, a atratividade da praça se tornou maior, pois
apresentou mobiliários e elementos ajardinados que favoreceram seu uso e acessibilidade
promovidos pela ausência de barreiras visuais e físicas. Além disso, agora há a preocupação
estética que busca por certa simetria entre os elementos.
Nos anos 50 a praça passa a ser totalmente ajardinada, com espaços verdes mais delimitados e
densos, com a presença de arbustos e árvores tratados por topiaria, bancos de ferro, luminárias,
além de um espelho d’água central (Figura 3c). Essa paisagem transmite a sensação de ser bem
atrativa. Os mobiliários representados na imagem parecem ser adequados e o ambiente
confortável (com sombras e iluminação) o suficiente para favorecer a permanecia de usuários.

Figura 3: a) Quiósques na Pç. Dom Pedro II, primeira metade do séc.XX b) Ruas inseridas na praça,
meados do século XX, destaque em amarelo; c) Praça Dom Pedro II nos anos 50

Fonte: a) Arquivo Público de Alagoas, modificado pela autora; b) LEÃO, 2018, modificado pela autora;
c) Blog História de Alagoas. Acesso em: 20 de março de 2021. Dísponivel em:
https://www.historiadealagoas.com.br/historia-da-praca-d-pedro-ii.html

486
Na segunda metade do século XX as duas menores partes da praça já atuavam como
estacionamento, diminuindo a área útil da Praça Dom Pedro II (Figura 4a). Percebe-se então
uma priorização dos automóveis na cidade, bem caraterístca deste momento do século XX.
Em 1983, segundo Leão (2018), uma parte da praça se estende, próxima ao Sobrado do Barão
de Jaraguá e Parque Hotel, e tem as vagas de estacionamento remodeladas, além do espaço
receber nova pavimentação e novo tratameno paisagístico. A praça também recebe bancos de
concreto e madeira, e dferentes vegetações em seus canteiros, porém sem a presença do
espelho d’água.
Em 1992 sofre mais uma modificação: além de substituidos os pisos, vegetação e os antigos
bancos de concreto e madeira, realocados para os paseios internos da praça, o ponto central
recebe um canteiro (Figura 4b) e o local é inteiramente cercado por um gradil de ferro. Todavia,
cinco anos mais tarde, na manifestação para a renúncia do governador em de 17 de julho de
1997, o gradil é retirado, restando apenas o estacionamento da Assembleia Legislativa cercado
(LEÃO, 2018).

Figura 4: a) Comparação da área transformada em estacionamentos; b) Praça na década de 90,


destaque para canteiro central; c) Gradil retirado na manisfetação de 17 de julho de 1997.

Fonte: LEÃO, 2018, modifcado pela autora; b) Edberto Ticianelli, modificado pela autora; c) SINTEAL -
SINTEAL relembra: 17 de julho de 1997 – “impeachment” do governador Divaldo Suragy completa 23
anos. Acesso em: 20 de março de 2021. Disponível em: https://www.sinteal.org.br/2020/07/sinteal-
relembra-17-de-julho-de-1997-impeachment-do-governador-divaldo-suragy-completa-23-anos/

487
Já nas primeiras décadas do século XXI, são acrescentadas à praça duas bancas de revistas e o
canteiro central é retirado (figura 5a), aparecendo somente então o circulo no encontro dos
eixos. Por fim, a última mudança ocorrida na praça foi realizada em 2019, onde buscou-se fazer
um resgate histórico do local, a partir da recuperação do traçado original, resgatando o piso
original e pinturas originais da balaustrada, e recuperando o monumento à Dom Pedro II. A
praça passa a receber iluminação de LED, guias de acessibilidade e rotas acessíveis, agora
visando a valorização do pedestre (Figura 5b).

Figura 5: a) Praça sem o canteiro central; b) Praça Dom Pedro II em 2021.

Fonte: a) autora, 2018; b) autora, 2021.

488
3 – Conclusão
Como visto, a Praça Dom Pedro II apresentou um percurso de variada paisagem que se
transformou ao longo de sua existência. Porém, apesar de encontrar-se em um sítio histórico, a
praça por algumas vezes sofreu transformações que não favoreciam completamente sua
herança histórica, além de desgastes e patologias, principalmente no início do século XXI, que
contrariavam as diretrizes de preservação do local.
Hoje, apesar de sua recente reforma, a praça acaba por possuir função maior como espaço de
passagem e não mais de contemplação, sendo por muitos compreendida como um local
inseguro para permanência.
As mudanças ocorridas na Praça Dom Pedro II refletem não só o crescimento da cidade de
Maceió, mas também expressa os diversos momentos históricos que o lugar atravessou. É
imprescindível que sua herança histórica seja conhecida, preservada e valorizada como parte da
memória do povo maceioense.

Referências
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Paulo, 2008.

BRUNET, R. Le déchiffrement du monde: théorie et pratique de la géographie. Paris: Belin,


2001 [1990].

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ESPÍNDOLA, T. Geographia Alagoana: Descripção Physsica, Política e Histórica da Província


das Alagoas, 487 p. Typographia do Liberal: Maceió, 1871.

LEÃO, T. M. S. A história da paisagem da Praça Dom Pedro II em Maceió- AL/ . Dissertação


(Mestrado) – Desenvolvimento Urbano, Universidade Federal de Pernambuco. Recife, p.141.
2010

História de Alagoas. Grupo Público, Facebook. Disponível em:


https://www.facebook.com/groups/historiadealagoas. Acesso em: 25 de fevereiro de 2021.

489
PRESERVAÇÃO DE PATRIMÔNIOS CULTURAIS ATRAVÉS DO USO:
o caso do Museu Internacional de Arte Naif do Brasil e o bairro de Cosme Velho/RJ
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Clarissa de Paula Senna


Arquiteta e Urbanista, e mestranda em Projeto e Patrimônio; UFRJ; clarissa.senna@fau.ufrj.br

O presente artigo trata da importância do uso para a salvaguarda de bens patrimoniais, através
da análise de duas edificações preservadas e em desuso, localizadas no bairro de Cosme Velho-
RJ, frente aos novos desafios da pandemia da COVID-19. O texto busca gerar uma discussão
sobre o direito ao patrimônio, enquanto vestígio da identidade de uma sociedade, e da
gravidade do processo de silenciamento preexistente nos bens. A reflexão alerta para o
aumento da ação degradatória em tempos de crise sanitária e econômica, atentando para o
protagonismo do ativismo da sociedade civil na frente de combate, e representando um veículo
de vigilância e comunicação entre os bens materiais e o novo mundo que se aflora e articula
digitalmente.
Palavras-chave: preservação; patrimônio cultural; uso; silenciamento; covid-19.

This article deals with the importance of use for the safeguarding of heritage assets, through the
analysis of two preserved and disused buildings, located in the neighborhood of Cosme Velho-RJ,
facing the new challenges of the pandemic of COVID-19. The text quests to generate a discussion
about the right to patrimony, as a vestige of the identity of a society, and of the gravity of the
process of pre-existing silencing in assets. The reflection warns of the increase of degrading
action in times of health and economic crisis, paying attention to the protagonism of civil society
activism on the front, and representing a vehicle of communication between material goods and
the new world that emerges and articulates digitally.
Keywords: preservation; cultural heritage; use; silencing; Covid-19.

490
1 – Introdução
A importância do uso para a preservação de um bem é fomentada pela atribuição de valores a
determinadas edificações pela a sociedade contemporânea, que munida pelo sentimento de
rememoração, enxerga a necessidade de conservação dos resquícios de sua identidade, das
memórias vivas de sua história. Em tempos de pandemia, porém, a salvaguarda dos bens se vê
ameaçada pela falta de uso e de uma consequente conservação adequada, dado o contexto de
isolamento social e a incontestável emergência de olhares para a área da saúde.
O presente artigo tem como intuito apresentar uma reflexão acerca de edificações preservadas
no bairro de Cosme Velho - RJ, que geridas por legislações com discursos conflitantes, somadas
à falta de um olhar atento às especificidades de seus valores e contexto urbano e social, já
encontravam-se silenciadas e em processo de arruinamento na paisagem pelo desuso, mesmo
antes da pandemia. Através da análise da antiga sede do Museu Internacional de Arte Naif do
Brasil (MIAN), juntamente com a edificação vizinha e o contexto do bairro de Cosme Velho,
busca-se evidenciar a intensificação da ação degradatória em tempos em que o mundo se
conecta sem deslocamento físico; e a urgência de ações fiscalizadoras como medidas de
proteção mínima, mas fundamentais para a crise atual.
O trabalho foi desenvolvido através de pesquisas em livros, artigos, mídias digitais, reportagens
e visitas ao local, permitindo um panorama geral da situação que se faz real no momento
presente. Inicialmente, trabalhou-se com o entendimento de que a importância da preservação
da herança cultural de uma sociedade é genuína, e se revela como parte dos direitos humanos.
Em um segundo momento, partiu-se para a compreensão de que "[...] a arquitetura, por sua
funcionalidade, distingue-se fundamentalmente das outras artes" (LYRA, 2006, p. 12), e que
enquanto uma técnica urbana, cabe à mesma "[...] toda a responsabilidade da gestão da cidade
e de suas transformações." (ARGAN, 1998 apud LYRA, 2016, p. 23); o que, de fato, se desdobra
para a necessidade de diálogos interdisciplinares acerca do planejamento e gestão urbanos que,
de acordo com Souza (2006), trata-se de um ato político que deve ser incumbência do estado e
contar com a participação da sociedade civil, em busca da democratização dos mesmos, e
unindo a técnica à vivência e experiências locais.

2 – Preservação de Patrimônios Culturais: testemunho da identidade e direito de todos


A necessidade de se preservar os patrimônios culturais é fomentada

491
[…] pelos aspectos formais, documentais, simbólicos e memoriais -, científico
- pelo fato de os bens culturais serem portadores de conhecimento em vários
campos do saber -, e ético - por não se ter o direito de apagar os traços de
gerações passadas e privar as gerações presentes e futuras da possibilidade
de conhecimento de que esses bens são portadores. (KÜHL, 2009, p.2)

Ao longo dos séculos, os conceitos de monumento, monumento histórico e patrimônio tiveram


sua evolução atrelada à chamada "primeira e segunda revolução cultural", definidas assim por
Choay (2011). A primeira fez parte da Itália renascentista (séculos XV ao XVIII), época em que a
valorização das edificações era atrelada ao seu valor de antiguidade, frutos das produções
romanas antigas; já a segunda, ocorrida no final do século XVIII, contribuiu para a transformação
da perspectiva da época com o surgimento da industrialização, que apesar da desordem dos
territórios urbanos e rurais que provocou, foi de suma importância para a eclosão conceitual
das "antiguidades".
De acordo com Choay (2006), na década de 1960, o termo patrimônio começou a se tornar mais
presente e a substituir as expressões monumentos e monumentos históricos. O significado e as
diferenças entre os termos começaram a ser apresentadas com base nos valores dos
monumentos, atribuídos por Riegl (2014), cuja ideia é de que existem dois tipos de
monumentos: os não intencionais, construídos com fins específicos; e os "intencionais",
construídos com o objetivo de expressar e conservar formas de pensar sobre o mundo.
Ainda na década de 1960, surge o livro "Teoria da Restauração", de Cesare Brandi (1906‐1988),
versando sobre o restauro crítico e dedicado basicamente às obras de arte e à necessidade de
restauração preventiva nos monumentos.
No âmbito nacional, a necessidade de proteção dos patrimônios histórico e artístico teve seus
primeiros indícios na década de 1920, quando foram registradas iniciativas locais e estaduais.
Em 1937 foi apresentada, através do Decreto-lei nº 25 de 30 de novembro, a definição de
patrimônio histórico e artístico nacional como
[...] o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja
conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos
memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico
ou etnográfico, bibliográfico ou artístico. (BRASIL, 1937, Artigo 1º)

Posteriormente, com a Constituição Federal Brasileira de 1988, a noção de patrimônio, já


acrescida do adjetivo cultural, foi ampliada para abranger os bens
[...] de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

492
as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações
cientificas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos,
edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (BRASIL, 1988, Art. 216)

Como parte integrante da identidade de uma sociedade, os patrimônios culturais são


aproximados da mesma a partir da premissa de que os direitos culturais são provenientes dos
direitos dos cidadãos. Tal assertiva está prevista na Declaração Universal dos Direitos Humanos,
que é pautada na ideia de que "Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida
cultural da comunidade, [...] e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste
resultam." (ONU, 1948, Artigo 27°) Acrescenta-se ainda que,
[...] como membro da sociedade, tem direito à segurança social; e pode
legitimamente exigir a satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais
indispensáveis, graças ao esforço nacional e à cooperação internacional, de
harmonia com a organização e os recursos de cada país. (ONU, 1948, Artigo
22°)

Dito isso, o Decreto nº 6.177, de 1º de agosto de 2007, que promulga a Convenção sobre a
Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, considera que a proteção dos
Bens deve ser realizada com a adoção de medidas "[...] que visem à preservação, salvaguarda
e valorização da diversidade das expressões culturais." (BRASIL, 2007, Artigo 4).
O Brasil comprometeu-se em assegurar a identificação, proteção, conservação, valorização e
transmissão de seu patrimônio cultural e Natural às futuras gerações, ao ratificar a Convenção
sobre a Proteção do Patrimônio Mundial (1972) (SEIXAS, 2020); além de reconhecer o papel
primordial que a sociedade civil desempenha na proteção e promoção da diversidade das
expressões culturais. Ao aderir à Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (UNESCO,
2001), de fato, assumiu um compromisso de encorajar a participação ativa da sociedade civil,
em parceria com as políticas públicas e o setor privado, em prol da preservação e promoção da
diversidade cultural - condição de um desenvolvimento humano sustentável.

3 – A importância do uso para a salvaguarda de edificações patrimoniais


São muitos os motivos que assolam os patrimônios culturais, os silenciam, e os levam a um
estado de constante arruinamento; e quando recebem os olhares devidos de órgãos de
proteção, muito já foi perdido em termos de identidade e de valores diversos. Voltando o olhar
para a edificação que foi sede do Museu Internacional de Arte Naif do Brasil (MIAN) (Figura 01),
localizada no bairro de Cosme Velho - RJ, constata-se um exemplo de descaso com um

493
patrimônio reconhecido, dotado de valores histórico, estético e utilitário, e que fazia parte
ativamente da vida comunitária da região.

Figura 01: Fachada frontal do Museu Internacional de Arte Naif do Brasil, 2019.

Fonte: Acervo pessoal da autora.

Não se pode percebê-lo, porém, sem notar também a edificação vizinha (residência nº 539), que
em conjunto com o mesmo, representam remanescentes do estilo eclético, localizados no
primeiro traçado do bairro, que perderam suas interações com o entorno urbano e social. As
razões que levaram a tal estado foram o alto custo de manutenção, aliado à legislação urbana
incidente sobre as edificações, que só permite que assumam a função residencial unifamiliar,
representando uma desconexão com a contemporaneidade, dada a manutenção onerosa que
isso representaria para tal contexto. O MIAN, enquanto um museu ativo de 1995 até 2016, dono
de uma história de amor à arte e de superação; além de ter contado com a participação ativa da
comunidade local em prol de sua permanência, fazia parte de um entorno de vocações
comercial, residencial, turística e cultural, dada a localização próxima à estação de trem do
Corcovado, que leva os turistas à estátua do Cristo redentor - eleita uma das sete maravilhas do
mundo moderno. Sua função, além de relatar, era fielmente engajada em atividades voltadas
tanto para os moradores locais, quanto para os visitantes; e por falta de verbas e meios para
consegui-las, perdeu suas interações. Hoje ambas as edificações, antigo museu e a residência nº
539, têm funcionado como uma vitrine expositiva, relatando o que a falta de uso e manutenção

494
podem significar quando conjugadas com o impiedoso fator tempo. Enquanto a antiga sede do
MIAN, sem interações há pouco mais de 4 anos, mostra sinais primários de degradação; a
edificação vizinha, em desuso por quase 19 anos, encontra-se em estado de arruinamento tão
avançado a ponto de atingir o antigo museu (Figura 02).

Figura 02: Fachadas laterais do MIAN (à esquerda) e da edificação nº 539 (à direita), 2019.

Fonte: Acervo pessoal da autora.

Como afirma o arquiteto Cyro Lyra, "a obra arquitetônica, por ser uma arte eminentemente
utilitária, necessita ser continuadamente usada para sobreviver" (LYRA, 2006, p. 53), sendo
primordial que o uso esteja em comunhão com as demandas locais de determinado tempo
presente, para que desempenhe sua função de preservar um bem - questão que tem ido de
encontro aos presentes objetos de análise desse artigo.
A problemática existente envolve uma realidade em que ao mesmo tempo em que os bens são
preservados pela APAC Cosme Velho e parte de Laranjeiras (1991), capaz de manter intactos
seus valores histórico e estético para a sociedade, perante as ações do homem; é observado em
contraponto, a legislação de uso e ocupação do solo atuando em dissonância com a
contemporaneidade, rumo ao arruinamento e à perda dos valores inerentes às edificações, com
destaque para o valor utilitário - fator primordial para a salvaguarda de qualquer obra
arquitetônica. Os bens se tornaram meros detalhes na paisagem urbana, atores silenciados e
privados de interações. E ao refletir que todas as edificações sofrem intervenções, seja por ação

495
do homem ou por ação do tempo, podendo ser assoladas pela falta de gestão adequada em
qualquer um dos casos, proteger apenas de uma delas e as entregar à outra, trata-se de uma
questão polêmica que precisa ser contextualizada e sanada. Um planejamento e gestão da
cidade atentos às especificidades locais - transformações, vocações, valores, interações, etc.,
tornam-se vitais para a ininterrupção das dinâmicas e discursos urbanos.

4 - Uma nova janela virtual em tempos de pandemia: os agentes de preservação


Em tempos de pandemia, as ações de proteção aos patrimônios assumiram naturalmente um
segundo plano, dada a urgência de atenção à questão da saúde e da economia. Muitos
patrimônios culturais no bairro de Cosme Velho e arredores adotaram a postura de levar a
cultura para o público de modo on-line, através de lives, shows, palestras e espetáculos
transmitidos em suas redes sociais, mantendo assim, novos meios de conexão com os usuários.
Porém, para as edificações que já estavam em processo de silenciamento, como é o caso do
MIAN e da edificação nº 539, esse efeito de degradação assume grandes dimensões, à medida
em que ao desuso e sua consequente falta de manutenção, somaram-se a ausência de olhares
coletivos, a impossibilidade de interações virtuais, e os riscos de ações humanas indevidas que
poderiam depredá-los.
A Constituição Federal, por sua vez, prevê que
O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá
o patrimônio cultural brasileiro por meio de inventários, registros, vigilância,
tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e
preservação. (BRASIL, 1988, artigo 216, § 1º)

E para a atual situação, a ação da vigilância assume um papel fundamental, uma vez não têm
sido mais cultivados os laços físicos (visual - experimental) com os vestígios da identidade da
população.
Destaca-se nesse contexto, a importância da existência e participação da sociedade civil como
agente de preservação vivo no local, que no caso do bairro analisado, ganha voz através do
ativismo da associação de moradores denominada Viva Cosme Velho. Criada em 2012, a
associação tem desempenhado fielmente sua função de fiscalizar a região, prestando um serviço
de monitoramento na área com relatos em suas redes sociais, por meio de fotos comentadas,
ilustrando a situação do bairro em tempos de crise. Em julho de 2020, uma de suas ações foi
denunciar o crescimento desordenado da comunidade do Coroado, localizada entre os bairros
de Cosme Velho e Santa Teresa. A denúncia foi baseada no avanço para poucos metros do

496
Parque Nacional da Tijuca, área de preservação ambiental, tendo ocorrido o desmatamento de
um trecho para a construção de imóveis em áreas de encostas; alertando também para o risco
de deslizamentos, que atingiria os bens e os residentes locais. A invasão ocorria de forma
acelerada, e de acordo com a associação,
[...] aproveitando-se claramente da deficiência de fiscalização, por conta da
pandemia, para construir em tempo recorde e apresentar um fato
consumado - que torna mais difícil a remoção e reintegração de posse.
(SOUZA, 2020, On-line)

Considerado uma Zona de Preservação Paisagística, o bairro pode ter esse episódio relacionado
com o discurso de Cyro Lyra, ao alertar que o mau uso também pode contribuir para a perda de
valores e para a ruína de um patrimônio. (LYRA, 2006)
Para os casos de edificações como a antiga sede do MIAN e a residência nº 539, a associação de
moradores tem utilizado-se, mesmo antes da pandemia, da definição de diretrizes de
conservação para Cosme Velho. Destaca-se, dentre várias questões, a necessidade de
flexibilização da legislação de uso e ocupação do solo para edificações tombadas ou preservadas
que forem reformadas, permitindo usos mais condizentes com as necessidades da área (no caso,
comércio e serviços). É ressaltada a necessidade de que as novas funções prezem pela
conservação da paisagem natural e do patrimônio arquitetônico do bairro; sem significar
impacto no trânsito local, e garantindo aos moradores do Cosme Velho uma boa qualidade de
vida e a tranquilidade inerente à região.
De acordo com Lyra (2016), a divergência entre legislações de proteção e as de uso e ocupação
do solo são problemáticas comuns, porém "[...] essa dificuldade só pode ser superada pelo
reconhecimento mútuo dos limites a serem respeitados pelas duas instâncias da administração
pública". (LYRA, 2016, p. 235)

5 – Considerações Finais
A cidade enquanto um organismo articulado em constante metamorfose, deve ter sua paisagem
entendida sob a ótica do macro e suas dinâmicas; e a do micro, tratando cada caso de forma
particular. A compreensão das novas interações contemporâneas revela-se como fator
determinante para a perpetuação de um bem, de forma que ele assuma sua função de relator
para as gerações seguintes da forma mais íntegra possível.
Em tempos de crise sanitária e humanitária, como a vivenciada na atualidade, as tensões
iminentes desconstroem as antigas conexões e interações sociais, acarretando a visão de um

497
mundo envolto em fragilidades borbulhantes e sedento por mudanças ainda pouco
compreendidas. As preocupações acerca da saúde não devem, porém, desconsiderar a
segurança da população e de sua identidade, expressa através dos patrimônios culturais,
naturais, e outros.
Hoje as edificações analisadas estão à venda, ruindo na paisagem e na incerteza de um uso que
as permita continuar fazendo parte da dinâmica representada pela atuação do homem na
natureza. Os ativismos representam, por ora, o maior veículo de vigilância e comunicação entre
esses bens e a sociedade, simbolizando um resquício de fé em um tempo de desesperanças. A
cidade, entendida como um espaço museológico, dotado de interações e modos de pensar
construídos ao longo dos tempos, encontra-se, de fato, instável pelo impacto do fechamento de
espaços de socialização, que acaba por ameaçar a integridade de partes de sua memória.
E uma vez compreendido que a função e a configuração urbana, dos espaços livres e edificados,
devem estar sempre alinhadas e responder às demandas sociais de seu tempo presente, como
forma de assegurar a sua sobrevivência e projeção para o futuro iminente; deve-se também
articular o modo operante de vigilância em tempos de crise, para que os patrimônios já
silenciados não se calem para sempre e passem a significar pausas permanentes no discurso da
cidade.

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histórico e artístico nacional. Diário Oficial da União. Disponível em:
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______. Decreto nº 6.177, de 1º de agosto de 2007. Promulga a Convenção sobre a Proteção e


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Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2007/decreto/d6177.htm>. Acesso em: 23 fev.2021.

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499
PROCESSOS DE INTERVENÇÕES EM CENTROS HISTÓRICOS:
Um estudo de caso do Beco da Lama, Natal/RN
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Wirenilza do Nascimento Lima


Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; UFRN; wirenilzalima@ufrn.edu.br

O artigo aborda o espaço do Beco da Lama, localizado na Cidade Alta, bairro histórico de
Natal/RN. O espaço se tornou um lugar de resistência artística para a classe, tendo sido taxado
de um lugar de violência e drogas para o público externo. Este quadro gerou manifestações de
empresários para a requalificação do local, o qual foi realizado uma série de medidas a fim de
melhorar a estética do local, como a pintura de grafites nas paredes do Beco e implantação de
eventos patrocinados pela prefeitura. Para subsidiar a discussão foram utilizados estudos
históricos sobre o bairro e sobre o Beco, registros e tomadas fotográficas, além de entrevistas
com organizadores ativos no Beco.
Palavras-chave: Beco da Lama; gentrificação; centro histórico; patrimônio.

This article discusses the space called Beco da Lama, located in Cidade Alta, an historic
neighborhood of Natal/RN. The space has become a place of artistic resistance to the class,
having been considered a violent place A violent place where drug transactions occurred. This
scenario has caused manifestations from some businessmen, requesting a requalification
causing some actions to improve the Beco's aesthetic, like the graffiti painting on the walls and
events sponsored by the city hall. To support the article, historic studies about the neighborhood
and the Beco da Lama were used, also some old photographs by google maps, new photos taken
by the authors, and interviews with local organizers.
KEY-WORDS: Beco da Lama, gentrification, historic center, patrimony.

500
1 – Introdução
Um dos maiores desafios na gestão das cidades contemporâneas está contido na conservação
urbana, especialmente em centros históricos os quais se referem as questões do patrimônio
cultural. O presente estudo trata de uma análise da dinâmica do Beco da Lama, situado no
centro histórico de Natal/RN no bairro Cidade Alta, nos últimos anos e suas intervenções
urbanas. Assim, se faz relevante entender como o Beco da Lama está se tornando um objeto
para o turismo, tendo sido um espaço tão renegado durante décadas.
Os grandes problemas para uma revitalização em um lugar histórico é a má adequação do
planejamento ao cenário atual do local, segundo ROCHA (2011), tal processo pode tornar o local
um mero bem de consumo; descaracterizando o local e sua essência. Pensando no Beco da
Lama, observamos um conjunto e não apenas uma rua, o local não é apenas a sua centralidade,
mas também as ruas adjacentes e seus personagens caraterísticos. O processo dos grafites e
investimentos da prefeitura no Beco serviu para remover a estigma social que a população tinha
com o local, mas também não forneceu suporte necessário para os que resistem no beco a
diversas décadas.
Muito se fala sobre o lugar está passando por um processo de gentrificação, o qual corresponde
a um conjunto de ações urbanísticas, em que empreendimento econômicos elegem certos
espaços da cidade para transformá-los em áreas de investimento público e privado (LEITE, 2004).
Nota-se assim, ações transformadoras no espaço do Beco da Lama as quais buscam trazer uma
nova gama de frequentadores que acabam expulsando os que já frequentam a décadas.
Para compor os objetivos específicos, procuramos compreender como as pinturas e as fachadas
se modificaram entre o período de 2018 a 2020. Analisar os pilares do projeto de Revitalização
realizada pelo projeto "VIVA O BECO” e o seu desenvolvimento, identificando as possíveis
transformações ocorridas no lugar, no que diz respeito aos âmbitos econômico, social, cultural,
ambiental e turístico.

2 – Considerações Sobre O Bairro Da Cidade Alta


O bairro da Cidade Alta é considerado o berço de Natal por ter sido o primeiro núcleo de
povoamento, devido a sua localização estratégica, a Cidade Alta possui uma altitude maior que
os bairros ao redor, motivo esse escolhido pelos Portugueses para erguer a cidade. Do alto eles
conseguiam ver a entrada da barra do rio Potengi e os Potiguara na antiga Aldeia Velha, lá
construíram a Praça André de Albuquerque, a casa de Câmera e Cadeia, o Pelourinho e assim
foram delimitando o espaço de Natal.

501
Cidade Alta e Ribeira foram os principais bairros da cidade até 1940, de acordo com ASSUNÇÃO
(2014), o governo passou a incentivar outras áreas voltadas para o turismo “sol e mar” nos
bairros que possuíam contato diretamente com a praia. Dessa forma, a redução drástica de
investimentos nos dois bairros causou a fuga maciça de estabelecimentos comerciais e
residenciais para essas novas áreas de expansão. A partir desse movimento de abandono, as
imagens negativas, violência e degradação ao centro histórico de Natal tenderam a aumentar
(ASSUNÇÃO, 2014 apud ELALI, 2007; TINOCO et al. 2008).

3 – O Beco da Lama
O Beco da Lama surge na segunda metade do século XX, sendo inicialmente apenas uma rua
estreita, a qual recebe essa alcunha devido a lama que escorria pelo local, decorrente da chuva
ou da lavagem de roupa e de banho. O líquido chegava até o Mercado da Cidade e ali estagnava,
nessa época a cidade era constituída de poucas casas e no beco existiam mocambos de palha
fincados na areia. (CAVALCANTI, 2009). Com o passar do tempo o Beco ganhou fama e abraçou
os arredores:
Esse “Beco” estendeu-se para demais ruas, bares, praças, e parece ter se
alargado para muito além de suas circunscrições, pois passou a ser não só um
espaço de circulação ou distração atrelado ao comércio do bairro, mas um
lugar com pontos estratégicos onde se torna possível um contato singular
com determinadas práticas artísticas e culturais incentivadas por bares e
sebos, assim como pelos próprios artistas que frequentam esses lugares.
(FAÇANHA, 2014, pg. 15)

O Beco em si constitui-se da Rua Uilisses Caldas até a Rua João Pessoa, mas como já dito por
FAÇANHA (2014), o beco não se restringe apenas a esse espaço. O Beco da Lama se constituiu
em um lugar da boemia, dos artistas menos afamados, um ambiente de conversas poéticas, de
sebos e bares. Mas não somente de fama e glamour o beco sobrevive, é possível encontrar os
mais diversos tipos de pessoa no local, vendedores ambulantes, blogueiros, jornalistas, poetas,
escritores, advogados, moradores e pessoas em situação de rua.
Quem passa pelo saudoso Beco da Lama, uma rua estreita no centro da
cidade - Natal Rn - nem se lembra que ali se dorme no chão bruto, se vende
flores e produtos aromáticos para festejar o seu santo preferido, de São Jorge
a Yemanjá, come-se à bessa, nos restaurantes que alí existem, toma-se uma
caninha "braba", daquelas que inveterado cospo e faz cara feia, joga-se no
bicho, pois em Natal não é proibido jogar (no bicho - cobra, macaco ou

502
avestruz) e tem tanta coisa que se falar aqui, não vai dar tempo.(CAVALCANTI,
2009)1

O local promove junto com seus bares, sebos e restaurantes um lugar de arte, de reinvindicação
e engajamento à arte. Onde se permite descobrir artistas novos, fora das academias e seus
desdobramentos, o beco coloca todos como protagonistas. Um dos grupos que se formaram
devido ao amor pelo lugar foi a Sociedade dos Amigos do Beco da Lama e Adjacências – SAMBA,
o ex-presidente Ubiratan Lemos, em depoimento ao curta “Um Beco no Meu Caminho”,
comenta que a desorganização é organizada, sendo assim um ato anárquico. O Beco não pode
ser engessado por instituições e leis.2
Quando FAÇANHA (2014) realizou sua investigação sobre o Beco, o espaço ainda não tinha
passado pelas mudanças as quais esse estudo tem como objetivo analisar. De acordo com o
autor, o Beco guardava a característica de ser um conjunto no qual todos nós fazemos parte.
Você e também o papudinho que tá no meio da rua, o Beco tem essa peculiaridade de ser um
lugar onde todos fazem parte.
Um dos lugares icônicos que compõem o Beco, apesar de não estar territorialmente na rua, é o
Bar da Nazaré. Localizado na R. Cel. Cascudo, 130, uma paralela ao Beco, está a mais de 26 anos
funcionando e sendo berço de diversos movimentos. A tradicional roda de samba é um destaque
na noite da quinta-feira na capital natalense, acolhendo desde o jovem que saiu da adolescência
até aquele idoso boêmio. O samba Batuque de um Povo existe desde 2017, contudo as rodas de
samba em frente ao Bar de Nazaré existem desde 2008, com o grupo Arquivo Vivo (PAIVA, 2019).
A Cidade Alta também é o berço de lugares como o Bar da Meladinha, resistente no Beco da
Lama há mais de 60 anos, residindo no local desde 1968 (PAIVA, 2015). Sendo famoso pela sua
bebida icônica criada pelo seu fundador, o turco Nazi, falecido em 2001, sendo uma mistura que
utiliza três ingredientes: cachaça, mel e limão e todos são misturados a partir de um graveto. Na
última década o bar passou a ser uma referência na noite potiguar com os mais diversos
públicos, desde o reggae da sexta-feira para as “clubbers” fervorosas pela música eletrônica da
quinta-feira. Além dos lugares já citados, o Beco da Lama possui outros lugares icônicos, como
o Bardallos, Bar da Raimundinha e Encontro dos Boêmios.

1
Material disponível no site < http://nataldeontem.blogspot.com/2009/12/beco-da-lama.html>. Acesso em: 18 de
Abril de 2020.
2
Trecho de um arquivo audiovisual produzido por estudantes do curso de cinema do projeto Cinema para Todos do
ITEC - Instituto técnico de estudos de Cinematográficos do Rio Grande do Norte. Material online Disponível em
<http://www.youtube.com/watch?v=yIUi5JodQ_o>. Acesso em: 18 abr. de 2020.

503
4 – Processo De “Revitalização” Do Beco
O projeto VIVA O CENTRO foi criado em meados de 2018, com a intenção de valorizar a Cidade
Alta. O diferencial seria que o foco não seria o comércio, e sim pela cultura, entretenimento e
boemia, o qual conta com o apoio de órgãos como SEBRAR, FIERN e CDL. Encabeçada pelo
empresário Delcindo Mascena e de mais de 120 empresários, o projeto tem como objetivo a
união de empresários do centro da cidade que anseiam por melhorias na região, para assim
atrair a população novamente para o centro.
Segundo Delcindo Mascena, a crise do mercado abateu consideravelmente o movimento do
bairro, a circulação caiu e consequentemente as lojas estavam fechando 3. Mascena explica que
as lojas estavam fechando às 16 horas e depois as ruas eram tomadas pela violência e drogas 4
Em entrevista ao Jornal Tribuna do Norte, Delcindo relata que resolveu convidar um grupo de
empresários da capital para fazer um tour pela Cidade Alta, e quando se deparou com o Beco
ele estava “só mijo e fezes”. A partir disso, ele partiu para São Paulo para buscar inspiração no
Beco do Batman, convidou o grafiteiro renomado Dicesarlove e o trouxe para realizar grafites
no Beco da Lama, conjuntamente com o potiguar Miguel Carcará. Nesse primeiro momento a
prefeitura não teve participação, sendo um trabalho orçado a partir dos empresários.
Além dos grafites realizados, o VIVA O CENTRO tem a atuação em diversas áreas, como limpeza
urbana (instalação de lixeiras); segurança pública (buscar maior policiamento); iluminação
pública e criar um calendário de eventos. Consequentemente, o projeto foi abraçado pela
Prefeitura do Natal o qual proporcionou diversos eventos e suporte, como o projeto HOJE TEM
SAMBA DO BECO realizado aos sábados às 14hs. Contudo, sempre existe um outro lado das
intervenções em centros históricos, a gentrificação pode se tornar uma realidade no Beco caso
não aja políticas públicas eficientes. Ao tomar medidas que só visam a economia, o estado e o
grupo organizador das mudanças esquecem das pessoas que sobrevivem do beco a vários anos.
Práticas de gentrification não se referem apenas a empreendimentos
econômicos que visam otimizar o potencial de investimentos em áreas
centrais; referem-se sobretudo à afirmação simbólica do poder, mediante
inscrições arquitetônicas e urbanísticas que representem visualmente valores
e visões de mundo de uma nova camada social que busca apropriar-se de
certos espaços da cidade. (LEITE, 2004, p.63)

3
Trecho de uma entrevista produzido pela Tribuna do Norte . Material online Disponível em
<http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/minha-a-rea-delcindo-mascena-e-um-novo-olhar-para-a-cidade-
alta/447778>. Acesso em: 20 abr. de 2020.
4
Fala retirada da palestra ministrada por Delcindo Mascena no Seminário Regional das CPUAs Nordeste, promovido
pelo CAU/RN em Natal, no dia 07 de agosto, no auditório cedido pela UniFacex/Cidade Alta.

504
Um entrevistado para essa pesquisa foi o produtor de eventos Frank Aleixo, o qual frequenta o
Beco e produz no local há mais ou menos 4 anos. Segundo ALEIXO5, o beco é perene, ele apesar
dos seus altos e baixos sempre se apresentou como uma opção para a noite. Os eventos
propostos por ele foram iniciados de maneira natural, a partir de amizades e apenas colocando
algum som no Bar da Meladinha, e assim foi crescendo até produzir o Synthpop do sábado, o
Lounge da quinta, o Jazz da quarta e muitos outros.
Ao olhar de Aleixo, existem vantagens e desvantagens no processo de revitalização, o primeiro
erro está em se divulgar utilizando o termo “Revitalização”, pois o seu uso carrega o peso de
que algo está “morto” e que não existia nada no local, relação que não pode ser feita no Beco
da Lama. Segundo Sánchez (2010, p. 489) “não parece ser um termo apropriado para aquilo que
de fato qualifica os processos atuais”, sendo justificado por tais lugares possuírem uma dinâmica
social de indivíduos que mantém o patrimônio histórico e cultura (apud PINHEIROS et SANTOS,
2012, p. 280).
Essa ideia de estar revitalizando acabou fazendo com que guiasse as políticas
públicas no local, mesmo as questões do grafite já existiam no local antes da
divulgação por tais grupos. Ficou muito claro que essa divulgação maciça foi
uma vitrine para o prefeito da cidade e que tais medidas de publicidade foram
grandes demais para a capacidade do espaço de receber as pessoas. (ALEIXO,
2020)

Com o advento das intervenções, novos frequentadores que não estavam acostumados com o
local começaram a ir ao Beco, uma situação antes harmoniosa foi quebrada inicialmente. ALEIXO
explica que na primeira semana ocorreram casos de agressão aos moradores de rua por parte
desse novo público, mas que atualmente, depois que a emoção pela novidade passou esses
frequentadores mais inóspitos se afastaram.
Um outro tópico abordado é que essa confusão causada pelos órgãos públicos causava mal
entendidos entre os diversos sistemas públicos. Como por exemplo, eventos patrocinados e
liberados pela prefeitura que a própria SEMURB (Secretaria de Meio Ambiente e Urbanismo de
Natal) cancelava o evento devido a problemas como poluição sonora. “Não existe uma
comunicação entre a prefeitura e os outros órgãos. Não adianta ter financiamento se não tem
política pública para o melhor uso dele.” (ALEIXO, 2020)
Para ALEIXO, o viés econômico teve uma grande melhoria para a autoestima das pessoas que já
trabalhavam lá, visto que o espaço que não era nem uma possibilidade para uma parcela da

5 Entrevista concedida por Frank Aleixo, produtor cultural. Entrevistador: LIMA, Wirenilza. Natal/RN, 2020, arquivo
.mp3 (30min)

505
população passou a ser vista por outros olhos. Contudo, ele frisa que as mudanças apesar de
terem um lado positivo, foram mal planejadas, visto que não houve uma conversa com quem já
trabalhava no local, o poder público focou em mudanças físicas e começou a dar autorização a
pessoas de fora ocupassem o espaço. Frank relata que teve vários eventos cancelados devido a
prefeitura instalar o “HOJE TEM SAMBA NO BECO” no mesmo horário que ele já produzia o
Synthpop a mais de um ano, e obviamente a prefeitura possui uma estrutura muito maior que
a dele, sendo impossível competir.
Pra gente é muito frustrante, fazer o Sabadaço do Synthpop se tornou
impossível, porque das 14h da tarde às 22h da noite o local estava ocupado
pelo samba da prefeitura, nós chegamos antes, nós já fazíamos parte do beco
antes desse processo de “revitalização”. Foi como nós tivéssemos arado o
terreno, plantado a semente para que as pessoas que tivessem fertilizante
mais forte colhessem (ALEIXO, 2020).

Uma das ações da Secretaria de Cultura (Secult/Funcarte) foi a criação do EDITAL nº 014/2019
no qual tinha o propósito de auxiliar financeiramente iniciativas culturais e artísticas para
compor a agenda de eventos do Centro Histórico no período de maio a dezembro nas Ruas,
Avenidas, Equipamentos e Espaços do Centro Histórico de Natal, preferencialmente no Beco da
Lama e adjacências. Infelizmente, ALEIXO (2020) explica que esse Edital é uma boa iniciativa,
mas não o suficiente para realizar eventos efetivos no lugar, visto que o investimento era de no
máximo 2.700 reais. Segundo ALEIXO (2020), uma quantia insuficiente, visto que só isso é gasto
apenas para um som eficiente, além da necessidade do aluguel de banheiros químicos e caches.

5 – Mudanças Físicas Nas Fachadas E Ruas Do Beco Da Lama


Como já dito anteriormente, o grupo VIVA O CENTRO tem a intenção de melhorar a limpeza,
estética, iluminação e segurança pública do local. A principal mudança realizada foi a pintura
dos grafites, os quais estampam figuras icônicas do folclore potiguar como o escritor Câmara
Cascudo. Apesar do embelezamento causado pelas mudanças estéticas, podemos observar que
a implantação das lixeiras não vem sendo bem aproveitadas, visto a quantidade de lixo
acumulado.

506
Figura 01: Beco da Lama antes das intervenções.

Fonte: Google Maps, 2020

Figura 02: Beco da Lama depois das Intervenções.

Fonte: Acervo da Autora, 2020

Uma das maiores críticas relacionadas ao processo foi o foco das mudanças ser apenas no Beco,
e suas adjacentes foram de certo modo ignoradas. A Rua Cel. Cascudo, paralela do Beco, que
une o Beco da Lama ao samba do Nazaré apresenta poucas mudanças e atualmente encontra-
se com deformações no asfalto. A maioria das fachadas dos bares receberam intervenções do
grafite e melhorias, um dos casos mais beneficiados foi o Bar da Raimundinha, localizado no
início do Beco.

507
Figura 03: Bar da Raimundinha antes das intervenções.

Fonte: Google Maps, 2020

Figura 04: Bar da Raimundinha depois das intervenções.

Fonte: Acervo da Autora, 2020

Apesar das pinturas terem ocorrido de forma gratuita pelos organizadores, alguns bares icônicos
foram esquecidos, a mudança estética dos grafites não foi proposta para bares icônicos como o
Bar da Nazaré e o Bar da Meladinha. O Bar da Nazaré até apresenta uma placa dizendo que o
espaço contempla o Beco da Lama na sua lateral esquerda, mas inicialmente nenhuma mudança

508
foi realizada. O Bar da Meladinha teve pequenas mudanças na coloração dos azulejos, custeadas
pela própria proprietária, Neide. 6
Figura 05: Bar da Meladinha depois das intervenções

Fonte: Acervo da Autora, 2020

6 – Considerações finais
De um lado temos a positividade de um lugar que passou tanto tempo sendo renegado por
camadas externas da população, subjugada como inóspito para o convívio e lazer, e que agora
encontra-se em um patamar de valorização. Ações como essa impactam a auto estima de quem
está trabalhando a décadas no fortalecimento do local, além de trazer um viés econômico
favorável para os donos dos bares e pra quem depende do local para sobreviver. Contudo, é
importante ressaltar o cuidado que se deve ter a intervir em um espaço já estabelecido, sua
história, seus personagens e sua cultura devem ser respeitadas a fim de haver uma harmonia
entre a novidade e o seu passado.
Observar e descrever para melhor compreender o processo é ajudar as futuras ações que
poderão ocorrer no Beco, é necessário a buscar a integração entre políticas públicas eficientes
e a sociedade. O registro e a divulgação dos atos são primordiais para a conscientização da
população, a fim de perpetuar as memórias do local, trata-se assim de um compromisso com
aspectos culturas da arquitetura e do urbanismo.

6 Informação coletada diretamente com a proprietária do bar da meladinha, Neide.

509
Referências

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caso na Cidade Alta e Ribeira em Natal-RN. (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-
Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal,
2014.

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patrimônio cultural em Natal-RN., In: III ENANPARQ: arquitetura, cidade, projeto: uma
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SEMINÁRIO MESTRES E CONSELHEIROS: Agentes Multiplicadores do Patrimônio, VII. Belo
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DOZENA, A.; COSTA, P. R. M. . ESPAÇOS DO CHORO EM NATAL-RN: um olhar geográfico. Para


Onde!? (UFRGS), v. 6, p. 20-31, 2012. ISSN 1982-0003

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LEITE, R. P. Contra-usos da Cidade: Lugares e Espaço Público na Experiência Urbana


Contemporânea. Campinas: São Cristóvão: UNICAMP / UFS, 2004.

LEITE, Rogerio. CONTRA-USOS E ESPAÇO PÚBLICO: notas sobre a construção social dos lugares
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PINHEIROS, Rafaelle; SANTOS, Christiane. Revitalização urbana e turismo: o caso do Centro


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SÁNCHEZ, Fernanda. REINVENÇÃO DAS CIDADES NA VIRADA DO SÉCULO: agentes, estratégias


e escalas de ação política. Rev. Sociol. Polít., Curitiba: 16, p. 31-49, jun. 2001

510
PROCESSOS E IMPLICAÇÕES DE POLÍTICAS DE REABILITAÇÃO DOS CENTROS
HISTÓRICOS NAS CIDADES LATINOAMERICANAS E DO CARIBE
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Edilson da Silva Porto Neto


Mestrando e licenciando em Geografia; Universidade Estadual do Ceará (UECE);
edilson.neto@aluno.uece.br.

Wagner Vinicius Amorim


Doutor em Geografia; Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP);
wagner.amorin@uece.br.

Resumo: Por meio do presente artigo objetiva-se analisar o desenvolvimento e as


transformações ocorridas nos centros históricos de cidades da América Latina e Caribe. Trata-se
de um artigo de revisão de literatura acerca das principais políticas, programas e ações que são
promovidos pelos órgãos do governo central ou local, pelas empresas e entidades privadas que
possuem interesses em comum para o desenvolvimento de programas de reabilitação e
atividades diversas em centros históricos. A intenção deste manuscrito será de realizar um
quadro analítico comparativo dos autores que vêm discutindo a questão do patrimônio histórico
em áreas centrais e seu desenvolvimento na América Latina e Caribe.
Palavras-chave: patrimônio histórico; centros históricos; organismos internacionais;
reabilitação de áreas e cidades históricas; re-centralização.

Abstract: The objective of this work is to analyze the development and transformations that took
place in the historic centers of cities in Latin America and the Caribbean. It is a review article of
a bibliographic survey on the main policies, programs and actions promoted by central or local
administration bodies, by companies and private entities that have common interests for the
development of different activities in central locations. The intention of this manuscript will be
to carry out a comparative table of analyzes by authors who have already been discussing the
issue of historical heritage in central locations and their development in Latin America and the
Caribbean. Intellectuals such as Bouchenaki, Rojas, Orellana, Carrión bring us several
contributions to enrich the proposed theme.
Keywords: historical heritage; historic centers; international organizations; rehabilitation of
historic neighborhoods and cities; re-centralization.

511
1 – Preâmbulo
Os centros históricos são objetos de estudo de muitos pesquisadores e estudiosos de diferentes
áreas. Um dos que se debruçam sobre essa problemática é Carrión (2002) que, com base em
uma de suas publicações, nos indica e fornece 20 temas que podem ser trabalhados, tendo-se
em vista a delimitação espacial em questão, colocando em cena as cidades da América Latina.
Pode-se dizer que esse escopo é um tanto complexo e, segundo Carrión (2002), este deve ser
abordado conforme sua importância e inserção no novo padrão de urbanização que prioriza,
sobretudo, a ideia de cidade construída. Deve-se elucidar a temática através de três
determinações que são responsáveis pela nova dinâmica do objeto de investigação nos dias
atuais: o processo de globalização que unifica e interliga as redes, os mercados, a cultura, a
informação, a política e a economia; a era das tecnologias da informação e da comunicação que
produz inovações à sociedade e um sistema de relações instantâneas e simultâneas; as variações
demográficas que se revelam, por exemplo, “na diminuição das taxas de urbanização e no
direcionamento dos fluxos tradicionais da população” (CARRIÓN, 2002, p. 45).
Os temas explorados por Carrión (2002) são salutares à nossa discussão sobre os centros
históricos na América Latina e Caribe, pois ensejam abordagens emergentes, as quais podem
tornar-se objeto de reflexão crítica. São temas tais como: 1 - as temporalidades presentes nos
centros; 2- a habitação e seus aspectos conceituais; 3 - a comunicação; 4 - o pequeno
patrimônio; 5 - o conceito de sujeito patrimonial; 6 - a importância das relações na constituição
destes centros históricos; 7 - a gestão local para a proteção efetiva dos patrimônios juntamente
com a participação da esfera social; 8 - a periodização das centralidades urbanas e históricas; 9
- o paralelo existente entre o público e o privado; 10 - o turismo como alternativa para a
captação de recursos e de financiamento para a sustentabilidade social e econômica de tais
áreas; 11 - a construção de uma história e uma memória nesses centros de modo a incorporar
as nuances e os elementos simbólicos do momento presente, em vez de usar-se do artifício de
visualizar as centralidades históricas como uma memória do passado tão-somente, dentre
outras preocupações que, invariavelmente, atravessam nosso temário.
Os centros históricos estão estreitamente ligados com o sentido de patrimônio, de identidade e
de memória que congregam. É importante destacar que a teoria e a prática da reabilitação
desses espaços estão sendo repensadas e reformuladas, novos conceitos são erigidos para dar
conta da complexidade de objeto, tais como descentralização, financeirização, competitividade,
que darão os aportes teóricos necessários e compatíveis com a concepção de cidade que ora
vigora. Então cabe afirmar que novas propostas metodológicas vêm sendo desenvolvidas para

512
compreender as realidades concretas dessas áreas. As propostas de abordagem metodológicas
antigas referem-se à corrente monumentalista, segundo a qual os monumentos isolados eram
tidos como os objetos de maior interesse das políticas de restauração ou de conservação
patrimonial. Porém, com o passar dos tempos, essa leitura e análise sob o valor desses objetos
foi se modificando e dando lugar aos contextos mais amplos, abarcando os campos econômicos,
culturais, simbólicos e políticos presentes nos centros históricos. As metodologias analíticas
recentes importam a dimensão cultural e simbólica, isto é, aspectos não somente monumentais,
mas todo o conjunto que compõe o espaço em questão.
Temos ainda como referente teórico-metodológico os preceitos do monumentalismo herdados
de uma concepção europeia e ocidental. Num primeiro momento, os centros históricos eram
concebidos e estudados através de suas características relacionadas à sua monumentalidade, e
em seguida esse movimento teórico-conceitual preocupou-se em analisar esses monumentos
em seu dado contexto, a partir daí, a próxima fase se constituiu como o reverso do
entendimento anterior, em que dessa vez o contexto era tido como um monumento a ser alvo
de pesquisas dessa natureza.
Um fato que é comum, principalmente nas grandes cidades e metrópoles é a violência urbana
que promove, tensiona e acentua a situação de depredação e de deterioração dessas
centralidades urbanas e históricas. Faz-se mister observar também que quando a população
constrói uma imagem ou impressão negativa de um determinado trecho, região ou zona, a
consequência direta é a invisibilidade e o apagamento de seus elementos culturais e simbólicos.
Evidencia-se que violência e decadência urbana são conceitos que coincidem em seus
significados e no sentido de causa e consequência na desvalorização do espaço em áreas
centrais.
Um conceito igualmente relevante é o de sujeito patrimonial que nos remete aos agentes sociais
que atuam na transformação desses patrimônios instituídos e edificados. Podemos perceber
relações múltiplas de diferentes agentes, que corroboram com o processo de refuncionalização
ou com a promoção de projetos de intervenção, como a deliberação de técnicos, de políticos e
da própria sociedade civil na tomada de decisões nesses espaços que são públicos na sua
essência.
Acrescenta-se aí a mudança qualitativa no que se refere ao paradigma usado para referimo-nos
à problemática em ênfase, pois a tendência é a de renovar as bases conceituais, surgindo
conceitos tais como: cosmopolização, competitividade e planificação, em oposição ao que vinha

513
sendo explicitado nos trabalhos anteriores sobre esse assunto, como, por exemplo, o de
metropolização.
Hoje os centros históricos urbanos estão inseridos sob a lógica da reestruturação espacial e
admitem novas funções, pois o mundo globalizado trouxe uma diferenciação na dinâmica
socioespacial desses centros.
Não devemos nos esquecer que as cidades latino-americanas surgiram a partir de seus centros
antigos, mas é válido lembrar que essa prerrogativa não pode ser posta como única e exclusiva
para pensarmos e repensarmos sobre a riqueza de valores incutidos nesses redutos de memória
coletiva e social. Essas centralidades históricas já foram cheias de vida num dado período da
história de uma cidade e influenciaram no seu desenvolvimento e expansão. Tais lugares
simbólicos são lidos e interpretados pela sua diversidade de elementos e também pela sua
heterogeneidade, tendo-se em vista o processo de globalização e financeirização, contexto no
qual as áreas centrais históricas passam a adquirir conteúdos novos, não deixando de despojar
os seus caracteres antigos que a definiam e a caracterizavam.

Entreolhares e “entre-vistas”
Apropriando-se do pensamento de Bouchenaki (2001), o problema de conservação e de
reabilitação das cidades históricas se deu a contar do século XX, quando houve o VI Congresso
Internacional que ocorreu em Madrid, mais precisamente em 1904, e nesse evento os arquitetos
se reuniram para discutir acerca da classificação dos monumentos históricos, divididos em
“monumentos mortos” e “monumentos vivos”, em cuja classificação os primeiros tinham por
finalidade buscar vestígios de civilizações pretéritas, enquanto os segundos se prolongam até os
dias de hoje.
Segundo a visão do mesmo autor, a revolução industrial foi o marco para que transformações
significativas nas cidades antigas fossem percebidas e possíveis. E, a partir daí, houve
implicações positivas no sentido de conservação do patrimônio histórico urbano, dos sítios e
cidades históricas na Europa. Nesse período, muitas instituições foram fundadas com o intuito
de proteger e salvaguardar os bens móveis e imóveis, de estabelecer normas e diretrizes para o
uso desses patrimônios que, essencialmente, são públicos e que podem e devem ser
apropriados pela população para fins os mais variados. Dentre tais entidades, podemos
mencionar a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO),
que realiza recomendações com a colaboração de outras organizações internacionais, quer
sejam estatais, quer sejam não-governamentais, para assegurar a sustentabilidade desses bens

514
que concentram os valores históricos e estéticos de um povo. A UNESCO aciona e convoca os
serviços de profissionais que trabalham nessa vertente para contribuírem com suas expertises.
Nesse âmbito, existem as seguintes entidades que estão na linha de frente para criar políticas e
ações voltadas para a reabilitação de centros, de monumentos, de sítios e/ou de cidades
históricas. Ou seja, a UNESCO consorciada com o Conselho Internacional de Museus (ICOM),
com o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), com a participação também
do Centro Internacional de Estudos para a Conservação e a Restauração de Bens Culturais
(ICCROM), promovem conjuntamente uma série de projetos que viabilizam a restauração, a
reforma e a requalificação de áreas que antes estavam em processo de esquecimento e de
silenciamento.
Devemos chamar a atenção que muitos dos modelos externos que foram propostos e
importados para a efetivação da dita conscientização em prol da causa de conservação do
patrimônio ou das cidades históricas não funcionam para casos específicos de centros que
possuem uma diversidade própria. Cartas, recomendações ou convenções são formatos
impostos por sociedades e culturas tipicamente elitistas, que não podem ser assimilados e nem
geridos na esfera do planejamento e do desenvolvimento das cidades da América Latina e do
Caribe, certamente porque não se alinham às realidades existentes.
Cabe salientar que entram nesse jogo de interesses os bancos internacionais, como o Banco
Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, em cooperação com os organismos
estatais e com fins lucrativos para injetar investimentos maciços nesses locais visivelmente
ameaçados socioeconômica, cultural e patrimonialmente. O interesse é fazer com que essas
áreas sejam recuperadas e voltem a agregar capital cultural e a estar em condições de serem
reincorporadas pelo mercado imobiliário.
Sob a perspectiva de Rojas (2001), os países da América Latina e Caribe possuem em seu
conjunto arquitetônico uma riqueza de bens culturais, de edifícios históricos tradicionais, de
espaços públicos, todos estes detêm seus valores históricos e artísticos advindos de períodos
coloniais, republicanos, ou carregam estilos e expressões de heranças do barroco e do
neoclássico.
Um complicador que causa ou promove a degradação das áreas centrais é o chamado processo
de renovação urbana, por meio do qual sobressai-se a tendência dos urbanistas, que é a de
substituir ou suplantar os bairros velhos por novas estruturas mais modernas de arruamentos,
de prédios, de sistemas rodoviários etc., favorecendo, assim, a abertura de espaço e atendendo
ao movimento do fluxo desenfreado de veículos.

515
De um modo geral, a valorização imobiliária e a verticalização, não vislumbraram os centros
históricos como um condicionante intrínseco, pois o pensamento vigente era de que era preciso
desenvolver tais áreas sem se levar em consideração a importância social, econômica e cultural
dos centros históricos de maneira integrada e transversal. Estes centros são imprescindíveis não
somente por conta da dimensão cultural, mas porque estes locais têm o poder de atrair
investimentos e atividades produtivas para que haja uma re-centralização e um re-
desenvolvimento de seu conjunto e de seu entorno.
Rojas (2001) explicitou que é indubitável a presença e a participação de agentes que provoquem
a conservação e a reabilitação de centros históricos, de aproveitar os potenciais e as qualidades
de se investir em tais áreas e de transformar os financiamentos de grupos ou indivíduos públicos
ou privados em investimentos privados para que essas ações sejam sustentadas.
O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) atua no financiamento e aplicação de
recursos para reverter o quadro de decadência dos centros e cidades históricas nos países da
América Latina com projetos de reabilitação, buscando intervir para a convergência da
turistificação para o desenvolvimento dessas centralidades históricas, unindo as partes
interessadas nesse processo, como o Estado que, na maioria das vezes, atribui para si a maior
carga de responsabilidade no tocante à destinação de capital público, advindo dos governos
central e local, além dos empresários, dos proprietários imobiliários e das comunidades que
representam a esfera da sociedade civil.
O BID estimula a melhoria da infraestrutura, dos espaços públicos, das vias, das ruas e edifícios
residenciais e comerciais privados. Estes edifícios residenciais e comerciais são pontos-chave em
nosso debate, pois os mesmos comportam elementos e significados de modos de vida, das
tradições culturais, e mais: sem eles não haveria demanda necessária para suprir a rede de
comércios especializados e de serviços instalados para refuncionalizar e dinamizar tais áreas que
antes estavam cobertas pelas poeiras do esquecimento.
Orellana (2001), por sua vez, contribui com a definição e a proposição do ciclo Sirchal que foi
criado em maio de 1998 e que tem como objetivo reunir líderes políticos, arquitetos, urbanistas,
os ministérios das relações exteriores, dentre outros agentes, para discutir através de
seminários e conferências sobre que ações e projetos poderiam ser feitos para a revalorização
dos centros históricos das cidades da América Latina e do Caribe. O primeiro encontro aconteceu
em Paris, na chamada Maison l’Amérique Latine e teve como pauta a importância dos
patrimônios monumentais, das praças, dos edifícios, das ruas e de todo conjunto arquitetônico,
estético e artístico dessas centralidades e das suas áreas adjacentes para o seu re-

516
desenvolvimento, não no seu sentido estrito, mas, sobretudo, no sentido mais amplo,
considerando os contextos socioeconômicos e culturais. A abertura do evento contou com a fala
do responsável pela Direção de Arquitetura e Patrimônio (DAPA), François Barré, que em seu
discurso chamou a atenção para o recurso da memória histórica, necessária para o alcance do
desenvolvimento urbano proposto.
O segundo seminário internacional contou com mais representantes dos países latino-
americanos e caribenhos e foi sediado em Quito – Equador. Nesse encontro, inclusive, os
partícipes se preocuparam com o quadro legislativo bastante particular para cada país em
questão e que, muitas vezes, não se adequa às condições nem às suas estruturas
socioeconômicas e culturais.
O propósito da iniciativa do Sirchal é de incitar o intercâmbio, a promoção e a socialização de
projetos, ações e recomendações bem-sucedidas para a revitalização de áreas centrais e que
essas trocas busquem mitigar os problemas que esses centros carregam. O diálogo e a
constituição de uma verdadeira rede de agentes, sejam eles técnicos, políticos e financeiros, faz
com que haja maior reflexão sobre o que deve ser feito para atrair atividades econômicas,
sociais e culturais e, assim, dinamizar essas áreas que estavam apagadas e sem nenhum uso
específico. Esse câmbio ensejado pelo programa Sirchal possibilita a criação e o
compartilhamento de métodos, de instrumentos e de experiências entre os dois continentes, o
europeu e o latino-americano.
Orellana (2001), não obstante, afirma que a França é historicamente reconhecida pelos seus
trabalhos em elaborar diagnósticos fidedignos às realidades que as cidades analisadas
apresentam quanto aos seus aspectos e seus valores históricos, sociais, econômicos, culturais,
simbólicos e políticos. A expertise francesa amplia sua lente ao tratar da história, do domínio
cultural dessas áreas, levando em conta, inclusive, sobre que usos podem ser de risco para
algumas e para outras podem se configurar como potenciais no mundo contemporâneo.
A terceira reunião ocorreu em Valparaíso e em Santiago, no Chile, e foi marcante devido às novas
demandas e deliberações frutíferas nesse sentido, com a emergência de recomendações e ações
de curto e médio prazo.
Numa próxima fase, a Sirchal serviu para realizar o diagnóstico dos problemas das cidades latino-
americanas e do Caribe, de modo a permitir um planejamento mais estratégico e intervenções
mais precisas e coerentes.
Sob o pensamento de Gutman (2001), os centros históricos são formados e concebidos em sua
multidimensionalidade, considerando a indissociabilidade do econômico, do político, do social

517
e do cultural. Dito isso, essas áreas passaram por numerosas transformações de acordo com as
políticas, regulamentos, conceitos e ações que eram projetados e executados. O conceito de
centro que prevalecia em meados do século XIX era o de valorização dos conjuntos e expressões
arquitetônicas do período colonial e, em casos específicos, em épocas que datam o pré-
colombiano. Sob estas perspectivas, muitas obras e objetos foram esquecidos e deixados de
lado por essa visão míope e estanque do governo estadual que prezava mais pelos valores do
passado, destruindo, por conseguinte, testemunhos de vida recentes de uma comunidade.
As transformações ocasionadas pelos processos de urbanização acelerada e industrialização
crescente na época, com o aumento da pobreza, mudanças e crises do desenvolvimento
econômico foram cofatores que acarretaram na intensificação da deterioração física, social e
econômica dos centros históricos.
Somente a partir da década de 1980 que esse tema passou a ser incluído na agenda de políticas
urbanas, com a adoção de estudos, de planos e de ações centradas na recuperação dessas áreas
para a promoção de um desenvolvimento urbano e ambiental (GUTMAN, 2001).
O planejamento e a gestão urbana, contudo, em seu viés de um urbanismo mais ortodoxo,
insiste em implantar seus métodos de destruição do que é velho e tradicional, fazendo
prevalecer o que é de mais inovador e moderno. Para eles, o domínio do capital financeiro e
monetário está acima do capital humano e cultural.
Sendo assim, a perspectiva patrimonial integral dos termos que constituem os centros históricos
das cidades latino-americanas é a mais aceita e difundida, ao invés da visão monumentalista,
onde se primava basicamente pela herança física do lugar, sem enxergar as relações sociais e
econômicas, a vida cotidiana, os espaços públicos, as habitações, o comércio etc. É claro que o
componente físico é importante, mas não é a única via para a conservação e a reabilitação dos
centros tradicionais. Dessa forma, esses espaços são compreendidos como uma unidade urbana
completa, conforme a leitura de Gutman (2001). Há que se salientar que essas mesmas áreas
estão contidas num todo maior que é a aludida cidade que as abriga em suas mais variadas
dimensões.
Crespo-Toral (2001) reporta em seu texto para a constituição da dimensão cultural e de sua
importância nos diferentes tipos e conceitos de desenvolvimento – humano, sustentável,
endógeno, abrangente etc. A ideia de cultura é essencial para analisarmos o comportamento e
as atitudes humanas, suas ações e suas atividades na natureza, exclama o autor.
A abordagem cultural foi trazida para a Conferência Mundial de Políticas Culturais
(MUNDIACULT), realizada pela UNESCO na cidade do México, e que tinha por fim traçar a

518
definição de cultura sob a ótica antropológica. Na década de 1970, a UNESCO já havia partilhado
de uma reflexão um tanto instigante e interessante, que o homem é sujeito e objeto do
desenvolvimento. Foi a partir daí que muitas das organizações internacionais colocaram essa
dimensão em seus planejamentos urbanos para buscar novos modelos de desenvolvimento
calcado na diversidade cultural das cidades da América Latina e Caribe. A meta é de que esse
conceito de desenvolvimento alcance as camadas mais pobres e populares e que amplifique
uma política de equidade, garantindo, assim, a satisfação material e espiritual coletiva. Novos
esforços vêm sendo empreendidos para que o bem comum seja instalado como uma via ou uma
possibilidade concreta. Para isso, essas entidades trabalham para que essas diferenças sociais
sejam, ainda que minimamente, reduzidas.
Foi graças à participação e presença da UNESCO nessas reuniões e congressos que o
desenvolvimento urbano passou a aderir a outras variáveis igualmente fundamentais que não
estejam estritamente ligadas ao cômputo economicista e econométrico das realidades
observadas nessas cidades. A dimensão cultural, por exemplo, possibilita entender todo o
território como um patrimônio que precisa ser conservado para lograr o sentido de
desenvolvimento pela ótica social, identitária e patrimonial.
Diante do que foi exposto até aqui, a citação que virá em seguida mostra com mais detalhes o
que o processo de apropriação dos bens sociais pode trazer para que os povos tomem mais
cuidados e conservem estas áreas para, desse modo, utilizá-la como palco de um diálogo social,
da prática da cidadania cultural etc. O saber ler os significados que os testemunhos materiais
contêm é de importância capital para a valorização das formas e dos conjuntos patrimoniais:
La ciudad es el testimonio más acabado de la memoria colectiva. Los centros
históricos son, por exceso o por defecto, la concreción de las edades de la
sociedade, de sus aspiraciones, de sus cualidades y carências. Es necesario,
para desentrañar su contenido, un proceso de ‘apropiamiento’ de sus valores.
La entrega de este bien social implica una ‘lectura’ discernible de los procesos
por parte de las personas. De esa lectura y apropiamiento surgirá el interés
por su cuidado y su valoración. Las ciudades históricas son espacios esenciales
para el diálogo social, para la gestación de una ciudadanía cultural, la
participación en los procesos democráticos y uu importante recurso
económico por ser generadoras de trabajo y de servicios, así como de
variadas industrias culturales, como el turismo, entre otras. (CRESPO-TORAL,
2001, p. 110-111)

Desse modo, compreendemos que a apropriação é uma perspectiva conceitual possível, pois o
ato de apropriar-se de algo é tomar para si uma causa, um objeto, uma questão cognoscível.
Para haver a sustentabilidade e a permanência de um centro histórico conservado, as pessoas
precisam conhecer o passado e a história da cidade, os valores e elementos que estão implícitos

519
na paisagem cultural. As cidades são frutos de realidades históricas acumuladas temporalmente,
assim como os centros históricos que guardam os principais acontecimentos e episódios de uma
época, de uma geração, de um povo. A ignorância dos aspectos históricos nesses espaços gera
a indiferença quanto ao que é externo e alheio.

Considerações Finais
À luz das explanações teóricas presentes nos tópicos precedentes, chegamos ao de
encerramento e de fechamento deste artigo. Contudo, nosso dever é de continuar e prosseguir
esta caminhada em busca de mais descobertas sobre o desenvolvimento dos centros históricos.
O nosso interesse foi de discutir que políticas, ações ou planos foram desenvolvidos para a
conservação e a reabilitação desses lugares simbólicos e de todo seu conjunto arquitetônico,
estético e artístico, sob o ponto de vista de diferentes pesquisadores e profissionais que
possuem experiência e bagagem teórico-metodológica nessa vertente.
Alguns preferem evocar a importância da ótica patrimonial pelas suas características mais sutis
e singulares, outros optam por fazer alusão aos momentos mais marcantes que contribuíram
para o desenvolvimento destes bens ou objetos culturais. Mas, de todo modo, o exercício de
diálogo entre esses autores notáveis que se dedicam em prol destes espaços é algo que merece
destaque, pois a compilação de suas publicações foi favorável para que fosse possível a síntese
de seus pensamentos, de suas teorias, em busca de respostas ou de uma compreensão mais
abrangente das realidades concretas de sítios ou bairros históricos de cidades grandes ou
metrópoles latinoamericanas e do Caribe.
Muitos conceitos, categorias e definições foram basilares para o entendimento dos processos e
das dinâmicas do nosso lócus de investigação. Oferecemos diversos subsídios teóricos para que
o nosso leitor tente compreender e refletir sobre a evolução e os avanços/retrocessos que estão
inerentes à valorização/deterioração dessas áreas, são dois lados da moeda que devem ser
colocados em análise, os estudos de casos bem-sucedidos de desenvolvimento produtivo,
inclusivo e participativo dos centros históricos, e os exemplos de fracassos de políticas públicas
e privadas que não foram eficientes a ponto de alavancar as potencialidades destas áreas, de
modo a reanimá-las e, mais importante ainda, manter a conservação de testemunhos locais,
regionais, nacionais e/ou internacionais. Cabem aos agentes, os empresários, os proprietários,
os organismos internacionais, as instituições, o Estado e a população, a tarefa de cuidar e ocupar
estas áreas de modo contínuo, inclusivo e participativo.

520
Referências
BOUCHENAKI, M. Organismos internacionales e instrumentos jurídicos para la preservación de
los centros históricos. In: CARRIÓN, F. Centros históricos de América Latina y el Caribe. Quito:
FLACSO, 2001.
CARRIÓN, F. Vinte temas sobre os centros históricos na América Latina. In: JOKILHETO, J. et al.
Gestão do Patrimônio Cultural Integrado – Gestión del Patrimonio Cultural Integrado. Centro
de Conservação Integrada Urbana e Territorial – Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Urbano. Recife: UFPE, 2002.
CRESPO-TORAL, H. La dimensión cultural del patrimonio. In: CARRIÓN, F. Centros históricos de
América Latina y el Caribe. Quito: FLACSO, 2001.
GUTMAN, M. Del monumento aislado a la multidimensionalidad. In: CARRIÓN, F. Centros
históricos de América Latina y el Caribe. Quito: FLACSO, 2001.
ORELLANA, L. El programa Sirchal de seminário-talleres sobre la revitalización de centros
históricos de ciudades de América Latina y el Caribe. In: CARRIÓN, F. Centros históricos de
América Latina y el Caribe. Quito: FLACSO, 2001.
ROJAS, E. Financiando la conservación del patrimonio urbano em América Latina y el Caribe: la
acción del Banco Interamericano de Desarrollo. In: CARRIÓN, F. Centros históricos de América
Latina y el Caribe. Quito: FLACSO, 2001.

521
RUA LOPES CHAVES: Projeto de Restauro e Ampliação do Museu Casa Mário de
Andrade
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido

Gabriel Borges Monteiro


Graduando em Arquitetura e Urbanismo; Instituto Federal de São Paulo;
gabriel.monteiro@aluno.ifsp.edu.br.

Thais Cristina Silva de Souza


Doutora em Arquitetura e Urbanismo; Instituto Federal de São Paulo; thais.souza@ifsp.edu.br.

Este trabalho estuda as relações entre a literatura, o patrimônio histórico e a São Paulo do
Século XX, conforme o recorte e retrato na obra andradiana em Paulicéia Desvairada (1921) e
Lira Paulistana (1945). Esta análise é o suporte para o projeto de restauro e expansão do Museu-
Casa em homenagem ao autor, englobando o conjunto de casas geminadas vizinhas. Ao propor
a expansão, busca-se reconhecer e valorizar a história da cidade de São Paulo, apreciando o
caráter memorialístico da obra de Andrade e, a partir de sua percepção subjetiva, reconstruir
um pedaço de memória coletiva da sociedade.
Palavras-chave: restauro; literatura; Mário de Andrade; São Paulo; museu-casa;

This article studies the relationships between literature, cultural heritage and São Paulo in the
early twentieth century according to the portrayal in Mário de Andrade’s Paulicéia Desvairada
(1921) and Lira Paulistana (1945). This analysis justifies the project of restoration and expansion
of the Home Museum in homage to the author, including the neighboring houses in the building
complex. By proposing the expansion, we aim to recognize and value the history of the city of
São Paulo, acknowledging the memorialist aspect in Andrade’s work, and by his subjective
perceptive, to rebuild a piece of the society’s collective memory.
Keywords: restoration; literature; Mário de Andrade; são Paulo; house-museum.

522
1 - São Paulo, de Paulicéia Desvairada

São Paulo! Comoção de minha vida…


Os meus amores são flores feitas de original…
Arlequinal!… Traje de losangos… Cinza e ouro…
Luz e bruma… Forno e inverno morno…
Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes…
Perfumes de Paris… Arys!
Bofetadas líricas no Trianon… Algodoal!…
São Paulo! Comoção de minha vida…
Galicismo a berrar nos desertos da América! (ANDRADE, 2017, p. 55)

Os versos de Paulicéia Desvairada, considerado o primeiro livro de poesia modernista publicado


no Brasil, redefiniram os caminhos da cultura e da identidade brasileiras. Publicado em 1922 por
Mário de Andrade, tem como um dos seus assuntos recorrentes a própria cidade de São Paulo.
Junto com Lira Paulistana (1945), essas duas obras estabelecem a ligação do autor com a sua
cidade natal. É sob a ótica de Mário de Andrade que vamos analisar a cidade de São Paulo no
começo do Século XX, e pela leitura de sua obra vamos entender a relação de preservação a ser
estabelecida pelas intervenções deste trabalho.
Primeiro, é necessário entender o contexto socioeconômico da capital, a sua crescente
diversidade étnica e como esses fatores estavam influenciando a produção cultural brasileira da
época. Depois vamos entender quem foi Mário de Andrade e o que o levou até a produção de
Paulicéia Desvairada. A partir dessas informações, analisaremos a obra dele em relação à cidade
e sua representação. Por fim, estudaremos a Casa da Lopes Chaves, que vai ser o tema principal
do projeto de restauro a qual se dedica este trabalho.
Para São Paulo, o século XIX foi encerrado com sucesso. Foram colhidos os frutos da expansão
da exportação do café, iniciou-se sua industrialização, foi fortalecida a produção cafeeira no
interior do estado desde meados de 1870. A cidade era o meio do caminho entre a produção do
grão e o porto de Santos, onde chegavam inúmeros imigrantes, buscando melhor qualidade de
vida e servindo como mão de obra qualificada para a cidade que se industrializava. Além disso,
com a abolição da escravatura na década de 1880, o Brasil despontava para mudanças sociais
(MARQUES, 2014).
Em contraposição, no começo do século XX, os mercados europeus fraquejavam, sendo o pico
da crise durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o que levou ao início da queda da
exportação do café. A industrialização criou situações de péssima qualidade de trabalho na
capital e, graças aos imigrantes e à importação de uma “consciência operária advinda dos
movimentos marxistas europeus” (MARQUES, 2014, p. 28), o clima político-social era tenso.

523
Além disso, a política de embranquecimento promovida pelo governo piorava a situação de
instabilidade, já que via os imigrantes como uma ameaça (MARQUES, 2014).
Entre as décadas de 1870 e 1920, a população de São Paulo explode, indo de cerca de 70.000
habitantes para 500.000 no período de 50 anos (SEVCENKO, 1992 apud FONSECA, 2015). Parte
desse crescimento veio de processos migratórios, já que São Paulo era vista como uma capital
atraente, um centro econômico que podia melhorar a vida das pessoas (MARQUES, 2014, p. 28).
Em contrapartida, a cidade já tinha um caráter bem específico: segundo Marques (2014), São
Paulo já tinha “uma mentalidade megalomaníaca” (p. 25), o que levou a um problema: “as ruas
da cidade cresciam de forma desordenada, as casas e os estabelecimentos amontoavam-se. As
ruas tornavam-se constantemente povoadas e o ‘espetáculo’ da urbanização começava” (p. 26).
Jaeckel (2009) define a capital como “uma cidade febril” (p. 2). Porém, ambos os autores
discutem a pluralidade cultural e étnica que já existia na cidade, seja por resultado das
imigrações em massa ou da libertação de pessoas escravizadas. O contexto de diversidade foi
relevante para a consolidação de São Paulo como uma metrópole moderna (JAECKEL, 2009;
MARQUES, 2014).
A urbanização e o crescimento eram conduzidos pela industrialização. O desenvolvimento da
cidade em direção ao Sul e no eixo Leste-Oeste, seguindo as áreas que se industrializavam, não
por coincidência, acompanhavam as linhas férreas, que também eram importantes para esse
processo de crescimento (PETRONE, 1955).
Graças ao lucro da exportação do café, a cidade de São Paulo tinha fazendeiros ricos com a
produção de café e passava a concentrar uma burguesia industrial. Nesse momento, a
industrialização era para a produção de bens de consumo interno, tentando se adequar ao
crescimento repentino da população urbana. A especulação imobiliária cresceu, junto à
instalação de infraestrutura, como energia elétrica e saneamento.
A cidade, que há pouco tempo era provinciana, agora se transformava numa metrópole, recebia
tradições, línguas e culturas diferentes. A diversidade que se instalava na capital foi simbólica
para a consolidação do caráter cosmopolita da cidade. (MARQUES, 2014, p. 30). São Paulo
também era o destino final de migrantes de outras regiões do país, não só de imigrantes
estrangeiros, (PETRONE, 1955).
Outro fator que colaborou para uma mudança radical do perfil de cidade foi o comportamento
de sua população. As relações estabelecidas na rua começaram a representar a cultura
moderna: o comportamento das mulheres, a prática de esportes, o surgimento de uma classe

524
média assalariada dos negros livres. Esse processo refletia a urbanização europeia do século
anterior. (MARQUES, 2014, p. 26)
São Paulo é, portanto, a síntese de todas essas contradições e contrastes. Todos esses fatores
são significativos para a consolidação da cidade. De acordo com Jaeckel (2009)
“A cidade de São Paulo com seu dinamismo, suas fábricas e seu progresso,
sua realidade urbano-industrial representava de certa forma o cenário idôneo
para a superação do atraso do país e como garantia da entrada do Brasil na
modernidade” ( JAECKEL, 2009, p. 3).

2 - Mário de Andrade e o Patrimônio Cultural


Mário Raul de Moraes Andrade nasceu em 09 de outubro de 1893, em São Paulo. Filho de Carlos
Augusto de Andrade, jornalista e contador, e Maria Luísa de Moraes Andrade, eles moravam na
casa da família Andrade, na Rua Aurora, nº 320. (JARDIM, 2015).
A família se mudou para o Largo do Paissandu, nº 28, quando o avô materno morreu e viveu lá
até 1917. Depois, mãe, filhos (além de Mário, Carlos, nascido em 1888 e Maria de Lourdes,
nascida em 1901; o irmão, Renato, nascido em 1899, faleceu em um acidente em 1913) e sua
irmã, se mudam para sobrados geminados na Barra Funda, no número 108 (hoje 546) (JARDIM,
2015).
A vida no Largo do Paissandu não era feliz. O isolamento aparece no seu trabalho posterior.
Mário era distante do pai e do irmão mais velho, Carlos. Em contrapartida, era próximo do irmão
mais novo, Renato, que também queria ser músico, e da irmã mais nova. Moravam com a tia,
Ana Francisca, que era muito carinhosa com o autor. Mas, dentre todas as figuras, a que mais
teve impacto na sua vida foi a mãe (JARDIM, 2015). O escritor viria relatar esse período difícil
em Lira Paulistana “no largo do Paiçandu/Sonhei, foi luta renhida,/Fiquei pobre e me vi nu.”
(ANDRADE, 2017, p. 441)
Ingressou no Conservatório Dramático e Musical em 1911, na Avenida São João, onde o irmão
já estudava e o pai trabalhava, na intenção de se tornar pianista. Foi monitor de uma disciplina,
depois professor substituto. Apesar de não tocar profissionalmente, tornou-se um ensaísta e
teórico musical (JARDIM, 2015).
A morte do irmão em 1913 o deixou muito abalado. “O efeito da tragédia na vida de Mário foi
devastador. Caiu em depressão profunda, tendo sido salvo pelo tio Pio, que o levou para a
fazenda de Araraquara.” (JARDIM, 2015, p. 26) Segundo as palavras do próprio autor em uma
carta a Manuel Bandeira “[...] e pra encurtar coisas aqui estou ainda vivo. Só que voltei poeta da
fazenda” (JARDIM, 2015, p. 26)

525
Em 1917 conheceu Anita Malfatti e Oswald de Andrade, apesar de não se aproximar da primeira
até anos mais tarde. Com os dois, organizou a Semana de Arte Moderna de 1922 — junto a Di
Cavalcanti, Guilherme de Almeida e Menotti del Picchia. (JARDIM, 2015).
Entre a publicação de Paulicéia Desvairada (1922) e a publicação póstuma de Lira Paulistana
(1945), Mário escreveu ainda outros livros de poesia, como Losango Cáqui (1926), e romances,
como o clássico Macunaíma (1928) e Amar, Verbo Intransitivo (1927). Além da ficção, escreveu
ensaios teóricos, críticas sobre música e arte; também deixou inúmeras cartas, endereçadas a
amigos ilustres, como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade.
Mário também era professor de piano, atividade complementar ao seu trabalho no
Conservatório. Por volta de 1934, às quartas-feiras, dava um chá para seus alunos; inclusive um
deles substitui Maria de Lourdes, irmã de Mário, como secretária, já que a irmã iria se casar
(CAMARA, 1996).
Sua contribuição para a cultura brasileira também se estendeu ao patrimônio histórico: a pedido
de Gustavo Capanema, Ministro da Educação, ofereceu o anteprojeto da instituição que se
tornou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o SPHAN, instituição onde
trabalhou, no Rio de Janeiro ao longo dos anos (JARDIM, 2015).
Também foi convidado a ser Diretor do Departamento de Cultura, recém-criado na Prefeitura
de São Paulo em 1935, onde desenvolveu mais o seu trabalho de pesquisa. Um dos mais
importantes, feito nessa época a pedido do Ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema,
foi a escrita do anteprojeto do que viria a se tornar o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (SPHAN, hoje, IPHAN) (JARDIM, 2015).
De 1936 a 1938, trabalhou no Departamento de Cultura Municipal, em São Paulo, e depois se
mudou para o Rio de Janeiro, para assumir a direção do Instituto de Artes da Universidade do
Distrito Federal (hoje, UFRJ). Mas a adaptação no Rio de Janeiro foi difícil, então retornou a São
Paulo em 1941, quando voltou a lecionar no Conservatório e manteve o seu trabalho no SPHAN
(CAMARA, 1996).
O trabalho de Mário de Andrade em relação à cultura envolveu uma grande parte de pesquisas.
Ao longo de sua vida, viajou pelo Brasil, estudando, pesquisando e documentando
manifestações artísticas em geral. Essas viagens estão registradas em Turista Aprendiz (1976),
relatos de viagens nunca publicados por Mário de Andrade, mas que contam sobre sua “Viagem
pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia e por Marajó até dizer chega” (JARDIM,
2015, p. 75), como diz o subtítulo.

526
As pesquisas foram, em certa medida, exploradas no livro Macunaíma (1928), que também lida
com a exploração do folclore e a identidade nacional. (JARDIM, 2015).
A casa da Rua Lopes Chaves foi a casa onde o autor viveu grande parte de sua vida (de 1921 a
1945, com um breve período no Rio de Janeiro de 1938 a 1941), e os relatos de sua “felicidade
lopeschavica” são vários, tanto em seus poemas quanto em fotografias com amigos.

Figura 01: Igreja do Carmo, São João D’El Rey, desenho de Mário de Andrade, 1924.

Fonte: [Acervo IEB / USP] http://casamariodeandrade.org.br/morada-coracao-perdido. Acesso em:


15/02/2021.

São Minha casa…


Tudo caiado de novo!
É tão grande a manhã!
É tão bom respirar!
É tão gostoso gostar da vida!...
A própria dor é uma felicidade!... (“Poema XVII”, Losango cáqui, 1926)

Figura 02: Casa do Mário de Andrade na Barra Funda, na cidade de São Paulo.

527
Fonte: http://casamariodeandrade.org.br/morada-coracao-perdido/. Acesso em: 15/02/2021.

O bairro da Barra Funda foi construído a partir do processo que buscava dar uma feição europeia
para São Paulo, com a destruição de sítios e chácaras. O trecho que se tornaria o bairro era uma
chácara que seguia margeando o Rio Tietê e a estrada de ferro Santos-Sorocabana. A casa 108
(na época) da Rua Lopes Chaves, segundo o 15º Cartório de Registro de Imóveis, registros nº
13.005 e 13.006 de 9 de maio de 1952, foi provavelmente construída por volta de 1917
(CAMARA, 1996), com plantas aprovadas pela prefeitura em 1920.
Os Andrade se mudaram para a Rua Lopes Chaves em 1921, com a venda do sobrado no Largo
do Paissandu e a compra das três casas geminadas: uma para mãe e filha, outra para Mário e a
terceira para Carlos, para cada um dos filhos, quando se casassem. Carlos se casou, ainda em
1921, com Celeste Salles de Almeida, mas Mário permaneceu solteiro, morando com a mãe.
Assim, a família alugou a terceira das casas (que foi vendida alguns anos depois). (CAMARA,
1996).
Por volta de 1922, a casa se tornou um ponto de reunião também. Com os artistas modernistas,
amigos de Mário, frequentando o lugar. (CAMARA, 1996).
Quando decide voltar a São Paulo em 1941 por não se adequar a morar no Rio de Janeiro, a
Murilo Rubião, Mário escreve “Vim correndo pra minha casa de verdade,” (CAMARA, 1996, p.
41), e até cunha o neologismo “lopeschavica” ao falar da sua “felicidade lopeschavica”, como
citado numa carta a Moacyr Werneck (CAMARA, 1996, p. 46).
Ironicamente, critica a noção de que a Casa da Lopes Chaves um dia se torne um marco de sua
história:
Uma placa neste 108 da rua Lopes Chaves, uma estátua, ou melhor, um
bronzinho, homenagens e muitos discursos pelo centenário da minha morte,
não me interessam nada. Não me adiantam nada e sou por demais sensual

528
para que minha vida continue pra mim depois da morte. Meu destino é viver
dentre estes que andaram modificando a maneira de ser artística dos
brasileiros na certa que sou dos mais vividos. [...] Carta a Prudente de Morais
Neto. São Paulo, 12 out. 1929 (CÂMARA, 1996, p. 33-34)

Mário de Andrade faleceu em 23 de fevereiro de 1945, aos 51 anos, em casa, devido a um infarto
fulminante. Foi enterrado no dia seguinte. Recebeu homenagens de diversos amigos, teve obras
dedicadas à sua memória; é o patrono de uma cadeira na Academia Brasileira de Música; a
Biblioteca Municipal de São Paulo recebe o seu nome, e a sua residência na Rua Lopes Chaves
se tornou um Museu em sua memória (JARDIM, 2015).

3 - Museu Casa Mário de Andrade: intervenção de restauro e ampliação


Mário de Andrade foi “eleito” uma figura importante para a preservação do passado da cidade.
Sua obra significa e ressignifica a cidade de São Paulo do século XX. É um retrato das
transformações urbanas que ali aconteciam, não só físicas, mas sociais.
Nesse contexto, ao se alicerçar no conceito de residência, o Museu-Casa já parte de um lugar de
familiaridade com o seu visitante, se aproximando mais do que aconteceria em outras vertentes
museológicas. De acordo com Afonso, “o sentir-se em casa é experimentado ao visitar uma Casa-
Museu.” (AFONSO, 2015, p. 19). Mais do que isso: a relação entre o patrono e o visitante se
estabelece tanto nas similaridades quanto nas diferenças. Ao utilizar do ambiente “universal”
da residência, o Museu-Casa é capaz de estabelecer essas relações (BARBOSA, 2013, p. 92).
Micheli Afonso argumenta ainda que o “personagem” é humanizado no lar, que não só tem um
forte peso simbólico, mas é capaz de refletir suas angústias e fragilidades. Assim, é possível
revelar um lado humano de figuras públicas ao se analisar a sua intimidade. (AFONSO, 2015).
A construção narrativa também pode ser o próprio atrativo para o museu, já que “o receptor ao
visitar a casa-museu em alguns casos iria também à procura de uma intimidade com seu
homenageado, em busca de confirmar suas pré concepções relativas ao enredo do qual este é
personagem.” (BARBOSA, 2013, p. 74). Ao se colocar dentro do espaço íntimo de uma figura
relevante, o visitante consegue perceber não só como ele próprio se relaciona com o espaço,
mas também a materialização de um enredo, no qual o patrono é o personagem principal.
A memória é reconstruída a partir da ressignificação das imagens (AFONSO, 2015, p. 26), sejam
elas parte do imaginário coletivo ou individual. A importância de preservação de museus que se
dedicam a documentar e recriar, em certa medida, as experiências comuns do passado facilita

529
a reconstrução da memória. Os objetos deixam de ser objetos simples e comuns e passam a
carregar o valor simbólico de seu antigo dono (AFONSO, 2015, p. 16, p. 28).
A ideia é realizar um projeto de restauro e ampliação da Casa-Museu Mário de Andrade,
reorganizando o setor administrativo, espaço do acervo, os espaços de leitura e memória. Assim,
o espaço pode remeter à obra de Mário de Andrade mais diretamente, com maior liberdade
para construir a narrativa e contar a sua história.
O restauro parte da documentação da construção existente e intervenção. A elaboração do
mapa de danos é uma fonte documental da qual esse conjunto de casas com mais de 100 anos
preserva a paisagem do bairro.
O objetivo de realizar uma proposta de intervenção e ampliação para o Museu Casa Mário de
Andrade vai ao encontro das propostas do plano museológico, em que o museu foi concebido
para ter diversas linhas de desenvolvimento, tais quais os múltiplos interesses de seu patrono.
Logo, o projeto de restauro e expansão busca viabilizar a possibilidade de crescimento das
atividades do museu, incluindo também um Centro de Referência e Pesquisa, que tem como
foco “a pesquisa, a preservação, o fomento e a difusão da obra de Mário de Andrade” (PLANO).

Figura 03: Projeto original e Mapa de danos.

530
Fonte: Dos autores.

Figura 04: Projeto de Restauro e Intervenção.

Fonte: Autoral

Com a unificação das três residências num complexo museológico, é possível setorizar os usos:
o museu na casa onde Mário morava; as outras duas casas geminadas servem como apoio (com
espaços de recepção, guarda-volumes, loja, café, além de espaços administrativos e área de
funcionários, como indicado como fraquezas no Plano Museológico), o que permite uma
expansão das atividades do museu. O porão fica dividido em uma área de exposições na primeira
casa e áreas de acesso limitado, tanto com áreas técnicas de manutenção predial quanto
espaços para preservação e tratamento do acervo museológico. Por fim, o anexo compreende
um auditório para 100 pessoas e um espaço de consulta para o material do centro de referência.
O projeto conta com a possibilidade de a Casa Mário de Andrade receber e preservar o acervo
do autor, hoje sob responsabilidade do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB – USP): os objetos e
obras de arte para o museu, a biblioteca e manuscritos como parte de pesquisa para o centro
de referência.
Assim, o projeto de restauro e expansão prevê não só a ampliação do uso do museu, mas
também o crescimento do quadro permanente de funcionários, dando mais condições de
desenvolver as atividades plurais de divulgação da obra de Mário de Andrade.

531
Considerações finais

O projeto de ampliação e reconfiguração do Museu-Casa Mário de Andrade tem o objetivo de


unir o conjunto de casas da família Andrade e estabelecer a conexão com o edifício novo para
ampliação do acervo. Este projeto de restauro e ampliação vai ao encontro do plano
museológico da Casa-Museu Mário de Andrade e se articula com o resgate e a memória da
cidade.

Referências
AFONSO, Micheli Martins. Uma abordagem brasileira sobre a temática das Casas-Museu: classificação e
conservação. 141 f. Dissertação (Mestrado em Memória Social e Patrimônio Cultural) - Programa de Pós-
Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural, Instituto de Ciências Humanas, Universidade
Federal de Pelotas, Pelotas, 2015.

ANDRADE, Mário de. De Paulicéia Desvairada a Lira Paulistana. São Paulo: Martin Claret, 1ª ed. 2017.
470 p.

BARBOSA, Paulo Eduardo. Arquitetura e casa-museu: conexões. Dissertação (Mestrado em Projeto,


Espaço e Cultura) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.

BONAMETTI, João Henrique. A Arquitetura Eclética e a Modernização da Paisagem Urbana Brasileira.


Revista Científica/FAP, [S.l.], dez. 2007.

CAMARA, Cristiane Yamada. Mário na Lopes Chaves. Memorial da América Latina, 1996.

FONSECA, Arrovani Luiz. Do Uraricoera a Paulicéia: Imaginário e Cultura nos Anos 20 em Mário de
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JAECKEL, Volker. A percepção da grande cidade na obra de Georg Heym e Mário de Andrade. Revista
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JARDIM, Eduardo. Eu sou trezentos: Mário de Andrade: vida e obra. 1. ed. – Rio de Janeiro: Edições de
Janeiro, 2015.

MARQUES, Raniere de Araújo. Modernização estética e sujeitos periféricos em Pauliceia Desvairada de


Mário de Andrade. Tese (Mestrado Em Letras) – Universidade Federal da Paraíba, Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes. João Pessoa, 2014.

PETRONE, Pasquale. A cidade de São Paulo no século XX. Revista de História, v. 10, n. 21-22, p. 127-170,
1955.

532
RUÍNAS EM SIMBIOSE COM A NATUREZA: o caso da Ermida e do Forte da Prainha
Branca, Guarujá, SP
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Laís Hanson Alberto Lima


Doutoranda PROARQ-FAU UFRJ; lais.lima@fau.ufrj.br.

Fabiola do Valle Zonno


Prof. Dra. PROARQ-FAU-UFRJ; fabiolazonno@fau.ufrj.br.

Em Guarujá, localizadas junto à comunidade da Prainha Branca, se encontram as ruínas do Forte


de São Felipe e da Ermida do Santo Antônio do Guaibê, tombadas como patrimônio. A paisagem
de ruínas em meio ao sítio natural proporciona uma experiência, estética e de rememoração,
porém a falta de ações protetivas contribui para o curso de sua perda, o que suscita o limiar
entre conservar a obra arquitetônica como ruína e permitir uma relação de simbiose com a
natureza. Este desafio requer um olhar mais amplo que entende a ruína como uma nova obra
de arte, que considera as relações intrínsecas com a paisagem e a vegetação como uma pátina
e ferramenta de projeto de intervenção.
Palavras-chave: ruínas; preservação; ruínas verdejantes; simbiose.

In Guarujá, located near the community of Prainha Branca and listed as heritage, are the ruins
of Fort of São Felipe and the Chapel of Santo Antônio do Guaibê. The landscape of ruins in the
middle of the natural site provides an aesthetic and remembrance experience, but the lack of
protective actions contributes to the course of the ruin, which raises the threshold between
conserving the architectural work and allowing symbiosis with nature. This challenge requires a
broader view that understands ruin as a new work of art, which considers the intrinsic relations
with the landscape and vegetation as a patina and intervention design tool.
Keywords: Ruins; preservation; verdant ruins; simbiosis.

533
1 – Introdução
A ocupação do litoral do estado de São Paulo ocorreu ao longo de todo o processo de
colonização do Brasil. Em Guarujá, localizadas em meio à Mata Atlântica na Serra do Guararu,
encontram-se as ruínas da Ermida de Santo Antônio do Guaibê (Figura 01A) e as do Forte de São
Felipe (Figura 01B), tombadas como patrimônio nacional e estadual, pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN e pelo Conselho de Defesa do Patrimônio
Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico - CONDEPHAAT. O acesso é feito por trilha - ora em
mata fechada, ora em aberta - que desemboca na Praia da Armação das Baleias e na Prainha
Branca. Há inconsistências sobre as origens de ambas as ruínas, o que remete à falta de
informações a respeito da história e do patrimônio de Guarujá.

Figura 01: Ruínas da Ermida de Santo Antônio do Guaibê (A) e do Forte de São Felipe (B), em Guarujá,
SP.

Fonte: Laís Hanson A. Lima, 2020.

Apoiando-se em três linhas de argumentação, apresentamos as ruínas da Ermida e do Forte para


discutir como preservá-las em simbiose com a natureza. A primeira diz respeito ao valor estético
presente nas ruínas (RUSKIN, 2008; RIEGL, 2014; SPIRITO, 2012), evocadas a partir de sua
imagem e também de sua presença material: a transformação da obra de arte em contato com
a pátina do tempo, a fim de reconhecer os valores patrimoniais. A segunda, diz respeito à noção
de paisagens de ruínas, assumindo a posição de considerar, conjuntamente, a ruína e seu
entorno natural como obra de arte (SIMMEL, 1958; SPIRITO, 2012), a fim de ampliar a visão da
ruína como monumento histórico. Por fim, a discussão que instigou o artigo: o patrimônio em

534
silêncio, problematizando o quanto a localização das ruínas e suas características em relação à
natureza interferem em sua preservação ou a qualificam como singularidade a ser tratada
enquanto bem cultural. A questão central, portanto, refere-se à situação desse caso específico:
como preservar as ruínas da Ermida e do Forte que já se encontram em fase avançada de
simbiose com a paisagem natural?
Essa simbiose, que diz respeito à relação entre ruína e seu entorno, é ampliada a partir das ações
do tempo no desgaste e redução dos elementos da arquitetura e na adição de elementos da
natureza – configurando nova paisagem. No que tange à noção de simbiose enquanto uma
associação benéfica entre elementos, entendemos que a presença de ruínas agrega valores às
paisagens (MATTEINI, 2009; ROMEO, 2020) e a adição dos elementos naturais agrega valores às
ruínas (RUSKIN, 2008; DVOŘÁK, 2015; ROMEO, 2020), podendo ainda a vegetação exercer
função protetiva. Segundo Emanuele Romeo (2020), a simbiose entre ruína e paisagem pode ser
vantajosa para ambas.
Pontuamos, então, a defesa de “verdant ruins” - ruínas verdejantes, uma abordagem de
intervenção que busca respeitar as relações entre a ruína e a natureza, considerando a
vegetação como pátina e como meio no projeto da paisagem, contribuindo para o
reconhecimento dos valores destas ruínas.

2 – A construção de ruínas verdejantes


O conceito de ruína está ligado ao tempo. Este mesmo tempo que nos afeta. Autores como John
Ruskin (1849), Alöis Riegl (1903) e Georg Simmel (1911) compararam o ciclo das ruínas ao ciclo
dos seres vivos, como “[...] um organismo natural, cuja evolução ninguém deve contrariar”
(RIEGL, 2014, p. 51). Naturalmente, a ruína só interrompe seu ciclo quando não há mais
fragmentos e a obra do ser humano desaparece por completo. Antes disso, enquanto se arruína,
a obra se torna uma co-criação entre ser humano e natureza (RIEGL, 2014; SIMMEL, 1911;
HETZLER, 1988). As lacunas que se formam permitem cada vez mais o envolvimento da obra na
paisagem, tornando-as indissociáveis.
Nosso fio condutor para a primeira linha de argumentação é a obra de Alöis Riegl, O Culto
Moderno dos Monumentos (1903), na qual o historiador de arte austríaco discorreu sobre os
valores de antiguidade e estético, atrelados à passagem do tempo impressa na ruína por meio
da natureza que reclama seu espaço, das transformações das formas arquitetônicas e da

535
materialidade em que se atestam o aspecto de vetustez (atrelado ao valor de antiguidade) e o
pitoresco (atrelado ao valor estético).
Em uma perspectiva histórica a partir destas considerações, nosso ponto de partida é a
Inglaterra do século XIX e a figura de John Ruskin, crítico de arte, que escreveu sobre ruínas em
As Sete Lâmpadas da Arquitetura de 1849. Na Lâmpada da Memória, Ruskin apresentou a
relação entre as ruínas e a vegetação como pátina do tempo, como a “beleza acessória e
acidental” da natureza. Do ponto de vista da conservação, defendeu o valor estético na
preservação desta pátina que atesta também o valor de antiguidade e afirmou que, quando
compatíveis, resultam no pitoresco, entendendo os elementos da natureza como parte da ruína:
“e o artista que presta mais atenção na haste da hera do que no fuste da coluna [...]” (RUSKIN,
2008, p. 77).
Para além da discussão teórica, a prática de uma abordagem que considera as relações com a
natureza na conservação de ruínas teve como expoente o arquiteto e arqueólogo italiano
Giacomo Boni, que trocou correspondências com John Ruskin, tendo o encontrado na década
de 1880 (MATTEINI; UGOLINI, 2019), fazendo parte, inclusive, da Society for the Protection of
Ancient Buildings – SPAB, no final do século XIX.
Ruskin e Boni defendiam o embelezamento das ruínas a partir de sua interação com a vegetação,
buscando enfatizar a sensibilidade estética sublime presente nesses espaços que se formam a
partir da arquitetura e da natureza. Em relação à conservação, a vegetação deveria ser analisada
e, se possível, mantida - afinal, apesar de, em diversos casos, ser destrutiva, ela também tem
seu papel protetivo no que tange a reforços estruturais e à cobertura de superfícies.
Giacomo Boni é considerado pioneiro na prática de uma abordagem de intervenção em ruínas
que cria uma metodologia baseada na valorização da relação equilibrada entre ruína e
vegetação (MATTEINI, 2009). Segundo Matteini e Ugolini (2019, p. 298), no começo do século
XX, o arquiteto e arqueólogo ultrapassa a “contemplação evocativa da natureza em relação às
ruínas”, ao desenvolver uma “análise científica dos mecanismos e do equilíbrio ecológico e
ambiental”. A partir dos conceitos de “estabilidade” e “instabilidade”, Boni estudou a vegetação
espontânea que nasce nas ruínas, os danos causados à estrutura, mas também o papel protetivo
de algumas espécies.
A ideia de proteger os topos de paredes com uma camada de vegetação, atualmente conhecida
como “soft capping”, utilizada na abordagem das Verdant ruins pelo English Heritage (WHITE,
2007), já havia sido discutida por Boni com a denominação de “pellicce erbose”. Segundo

536
Matteini e Ugolini (2019), os trabalhos de Boni inspiraram estudos sobre a relação entre ruínas
e natureza, como o de Maria A. Signorini, que publicou, na década de 1990, um índice de
periculosidade das espécies que crescem nas ruínas de acordo com suas características físicas,
biológicas e também estéticas, a fim de criar um método de limpeza ou manutenção da
vegetação de acordo com os valores do índice (SIGNORINI, 1996).
Contemporâneo a Boni, o sociólogo alemão Georg Simmel, em seu ensaio The Ruin (1911)
explorou a relação entre ruína e natureza enfatizando o indissociável contato com a paisagem,
na qual a ruína se envolve e pela qual é envolvida. Ao equiparar a arquitetura com o espírito
humano e encarar a ruína como um organismo vivo, Simmel descreveu, no processo de
entrelaçamento entre ruína e entorno, a criação de uma nova obra de arte “entre o não ainda
[natureza] e não mais [arquitetura]” (SIMMEL, 1958, p. 382).
No contexto da preservação, Max Dvořák (1916), historiador de arte tcheco, em publicação
contemporânea ao ensaio de Simmel e ao trabalho de Boni, mencionou o cuidado com a
vegetação nas ruínas, ao defender que se mantenha o aspecto de vetustez da obra (já defendido
por Ruskin), visto que a presença da vegetação pode ser um fator para agregar valores nessas
paisagens. “A vegetação, por sua vez, só deve ser retirada dos locais em que destrói os muros;
no restante, deve ser poupada” (DVOŘÁK, 2015, p. 110). Assim como Ruskin, Dvořák destacou
o valor pitoresco advindo dessa relação entre ruína e natureza.
No decorrer do século XX, na Itália, o arquiteto e engenheiro Gustavo Giovannoni defendeu a
preservação de paisagens pitorescas1 e, principalmente no contexto pós-guerras, a discussão no
campo do patrimônio ampliou a proteção de monumentos para a preservação de paisagens e
sítios históricos (a exemplo da Recomendação de Paris de 1962).
Para Françoise Choay (2006, p. 133) o valor pitoresco está contido nas marcas do tempo e no
envolvimento com a vegetação: na pátina dos edifícios e monumentos antigos, formados por
“musgos corrosivos, as ervas daninhas que desmantelam os telhados e arrancam as pedras das
muralhas [...]”. Ainda segundo Choay, o transcorrer do tempo nas ruínas provoca uma “emoção
estética”. Simmel utilizou o termo “fascinação” para descrever as sensações causadas por essas
paisagens.
Valorizando a experiência estética das ruínas, Florence M. Hetzler (1988) criou o termo “ruin
beauty”, descrevendo a beleza das ruínas a partir da interação entre arquitetura e natureza.

1
Sobre a contribuição de Giovannoni, ver: CABRAL, Renata C. A noção de “ambiente” em Gustavo
Giovannoni - e as leis de tutela do patrimônio cultural na Itália. Tese (Doutorado). Instituto de
Arquitetura e Urbanismo. Universidade de São Paulo. São Carlos, 2013.

537
Para Hetzler (1988, p. 54), a obra do ser humano e da natureza não tem o mesmo potencial
quando separadas e se tornam mais belas quando combinadas na forma de ruína. Gianpaola
Spirito (2012) se debruçou sobre a carga “poética” das ruínas e sua capacidade de provocar
emoções, por seu caráter incompleto e seu envolvimento com o entorno e com elementos
naturais.
Nos últimos anos do século XX, o English Heritage optou, pela primeira vez, por uma abordagem
prática de intervenção em ruínas como um projeto de paisagismo. Segundo Amanda White
(2007), as chamadas “verdant ruins” englobam o conceito de ruína apresentado, a relação com
a paisagem e com a vegetação, valorizando a simbiose entre arquitetura e natureza. Além de
consolidar o monumento, se faz necessário analisar a possibilidade de manter ou retirar a
vegetação ruderal no entorno e nas ruínas. Assim como no índice desenvolvido por Signorini
(1996), reconhecidas as espécies e analisadas as relações entre vegetação e ruína, é possível
permitir interações que não danifiquem a estrutura ou ainda que sirvam de reforço estrutural,
como raízes de árvores junto a ruínas; que desempenhem função protetora às ações do tempo,
como as trepadeiras que tomam conta das superfícies formando uma camada natural ou o
chamado “soft capping” nos topos de paredes (WHITE, 2007). Também a inserção de novas
espécies de plantas e elementos de paisagismo são projetados nas “verdant ruins” para integrar
a paisagem das ruínas. A ideia é exaltar a relação da ruína com a natureza que faz parte da obra
e adicionar espécies autóctones, tanto para proteger as ruínas de intempéries como para criar
barreiras de proteção para os visitantes ou áreas de acesso proibido. A vegetação é encarada
como pátina e como novo elemento de projeto – ou seja, também como parte de uma
construção.
Assim como, no século XIX, Giacomo Boni considerou a conservação das ruínas e sua relação
com a natureza, no século XXI, o English Heritage atua conservando suas ruínas verdejantes.2
Para Matteini (2009. p. 19), a ruína serve como inspiração projetual. Este ponto remete para o
pensamento romântico dos séculos XVIII e XIX, quando paisagistas utilizavam a ruína como
cenário pitoresco. A ruína é, portanto, encarada como “possibilidade para arquitetura depois do
fim da arquitetura” (SPIRITO, 2012, p. 183).
No âmbito do patrimônio, o processo de arruinamento de uma obra é algo que se pretende frear
a fim de manter o monumento legível para cumprir seu papel de representante da cultura de
um determinado local. Em casos emblemáticos de preservação de ruínas é comum verificarmos

2
Ver os projetos do English Heritage nas ruínas de Wigmore Castle (2000) e Hailes Abbey (2007).

538
ações de limpeza da vegetação 3 e a supressão de outras pátinas e camadas do tempo,
culminando em um processo de “destilação” da obra, como ocorreu na Acrópole de Atenas
(BUONINCONTRI, 2011). Em relação à retirada da vegetação, Emanuele Romeo (2020, p. 990)
utiliza a expressão “desertificação”. Optamos, portanto, por denominar “verdificação” os
projetos de conservação de ruínas que utilizam a vegetação como ferramenta de intervenção.
A abordagem das ruínas verdejantes no atual contexto do século XXI, que, como visto, tem raízes
nas discussões de Ruskin, Simmel, Dvořák e nos trabalhos de Boni, pode ser reconhecida como
um posicionamento de preservação, que reúne consolidação e a valorização estética da ruína
em simbiose com o entorno natural, constituindo uma paisagem a ser valorizada como tal.

3 – Experiência e valores da paisagem de ruínas da Prainha Branca


O percurso das ruínas da Prainha começa por uma escolha: ao subir a primeira escada do portal
da Prainha Branca encontra-se uma bifurcação. O caminho à direita é calçado, tem guarda-corpo
e convida a subir pela trilha para a praia. O caminho à esquerda é de terra batida, aberto em
meio à mata ciliar que beira a margem do canal de Bertioga e parece levar para outro lugar. Este
causa estranhamento e leva a uma experiência de descoberta de uma paisagem formada pela
margem, a mata, as ruínas e a comunidade caiçara. Pela trilha da esquerda é possível ter o visual
da cidade de Bertioga, além de avistar barcos de pesca e de passeios que agitam os mares calmos
do canal em dias de sol. Ao som do mar se juntam músicas, vozes e outros ruídos decorrentes
da proximidade com a linha de travessia, embarcações e a margem turística da cidade vizinha.
A trilha não apresenta dificuldades. Às vezes margeia o canal, às vezes passa por mata mais
fechada. Uma bica para se refrescar e a brisa do mar tornam a caminhada ainda mais agradável.
Em um determinado momento, notamos degraus de pedra e a passagem se estreita por entre
duas muretas tomadas por trapoerabas lambari e algumas samambaias, convidando a explorar
a clareira ao final do caminho. Em meio à mata, surgem as imponentes ruínas da Ermida de
Santo Antônio do Guaibê e suas escadas de pedras irregulares. Ao subir os altos degraus, as
paredes parecem se alongar, criando uma atmosfera sublime. As ruínas são tomadas por
vegetação em constante transformação e, em todas as visitas já realizadas, encontramos artigos
religiosos posicionados no altar, em nichos e lacunas criadas pelas ações do tempo. A ruína da
Ermida oferece diversos enquadramentos: o canal, a margem de Bertioga e o Forte de São Tiago.
Ruína e paisagem são uma só.

3
Ver a intervenção Office of Works nas ruínas de Tintern Abbey no começo do século XX.

539
Para dar continuidade ao percurso na trilha das ruínas e chegar ao Forte, passamos por uma
pequena faixa de areia onde existem algumas casas habitadas construídas nos vestígios do
núcleo da Armação das Baleias do século XVIII. Sem qualquer sinalização, a trilha acaba em meio
à vegetação densa, mas é possível identificar elementos de uma antiga construção. Ao descer
em direção à margem de pedras do canal, avistamos as paredes do antigo Forte de São Felipe
tomadas, em sua maioria, por samambaias, além das torres, podendo comparar sua arquitetura
à do Forte de São Tiago, do outro lado da margem, na cidade de Bertioga. Nas pedras, em frente
ao paredão do forte coberto de samambaias, finalizamos a experiência.
A historiadora Olga Tulik (1981), em estudo sobre a formação do núcleo da Prainha Branca,
relatou que o local das ruínas foi a primeira parada de Martim Afonso de Souza onde, antes de
se estabelecer em São Vicente, construiu sua residência na margem da Ilha de Santo Amaro de
frente à Bertioga4. Segundo o CONDEPHAAT (1973), no século XVI foi construído o Forte de São
Felipe, do qual não restam vestígios e, na verdade, o atual forte é denominado de Forte de São
Luís, construído em 1765. Para este trabalho utilizamos “Forte de São Felipe”, como consta em
seu processo de tombamento. Já a Ermida de Santo Antônio do Guaibê começou a ser construída
como capela no século XVI, porém a obra foi interrompida em 1766 e reiniciada no final do
século XVIII.
Segundo informações relatadas pelo site do CONDEPHAAT 5, um evento marcou a passagem do
padre jesuíta José de Anchieta (1534-1597) pelas ruínas da Ermida, conhecido como o “Milagre
das Luzes”. Segundo o site Novo Milênio6, desde 1967 acontece a encenação chamada
“Celebração de Anchieta” e, para tal, é efetuada uma ação de limpeza com a retirada da
vegetação nas ruínas uma vez ao ano.
Outro evento seiscentista marca as ruínas do Forte de São Felipe. Moradia do viajante e militar
alemão Hans Staden (1525-1576), o lugar foi palco de conflitos entre indígenas no período da
colonização do Brasil. Em 1904, o jornalista Euclides da Cunha foi enviado pela Comissão de
Saneamento de Santos, SP, em uma expedição para relatar as condições dos fortes do canal de
Bertioga, o Forte de São Tiago e o Forte de São Felipe. O relato de Cunha descreveu as ruínas do

4
Tulik (1981) cita trechos da obra de Frei Gaspar sobre a colonização: DEUS, F. G. da M. Memórias para
a história da Capitania de São Vicente. 3ª ed. São Paulo - Rio de Janeiro: Weiszflog Irmãos, 1920.
5
Ermida de Santo Antônio do Guaibê. Disponível em
<http://condephaat.sp.gov.br/benstombados/ermida-de-santo-antonio-de-guaibe/>. Acesso em
Dezembro, 2020.
6
Histórias e Lendas de Guarujá: O padroeiro de Bertioga fica no Guarujá. Disponível em
<http://www.novomilenio.inf.br/guaruja/gh033.htm>. Acesso em Dezembro, 2020.

540
forte e a “trama vegetal” que parecia protegê-las e alertou para o perigo de sua destruição ao
longo do tempo, caso medidas reparadoras não fossem efetuadas. Mas completou que:
“Quaisquer melhoramentos ou retoques, que se executem, serão contraproducentes, desde
que o principal encanto dos dois notáveis monumentos esteja, como de fato está, na sua mesma
vetustez, no aspecto característico que lhe imprimiu o curso das idades” (CUNHA, 1995, p. 688).
Identificamos nas ruínas da Prainha os valores de antiguidade e estético, pressupondo que a
consolidação estrutural é tão importante quanto a preservação da pátina do tempo e de suas
relações de simbiose com a paisagem.

Considerações à preservação do lugar


Retomando as linhas de argumentação, associamos o reconhecimento do valor estético das
ruínas à sua relação com a natureza, relação esta que forma uma paisagem pitoresca. Ao tratar
de ruínas patrimoniais em sítios naturais, seu silêncio proporciona maior envolvimento com o
entorno e com a vegetação adicionada pelo tempo. A partir do conceito de ruína como produto
do ser humano e da natureza, encarar as ruínas do Forte e da Ermida da Prainha Branca como
paisagens em constante transformação nos permite considerar intervenções que busquem, não
só consolidar, mas especialmente valorizar a sensibilidade estética na simbiose entre ruína e
vegetação. Cunha apresentou sua visão conservativa em relação ao Forte focando no “aspecto
de vetustez” e nos elementos que fazem parte da passagem do tempo na obra (RUSKIN, 2008;
DVOŘÁK, 2015), fazendo menção, inclusive, à vegetação que compõe as ruínas. As mesmas
recomendações feitas pelo jornalista no começo do século XX cabem aos dias atuais, tanto para
o Forte quanto para a Ermida.
Ruínas inseridas em meio a sítios naturais não recebem tanta atenção do poder público quanto
ruínas mais próximas ou inseridas na malha urbana e, geralmente, ficam à mercê de ações que
se restringem à limpeza no sentido de retirada da vegetação, como o que ocorre no caso da
Ermida, ou mesmo esquecidas, como no caso do Forte.
Os elementos que compõem a paisagem são os mesmos que compõem as ruínas, ambas em
constante processo de transformação. As condições climáticas (calor, frio, chuva, sol, ventos)
são elementos que interferem na percepção das ruínas, cuja experiência é corporificada, engaja
todos os sentidos... Os sons fazem parte da experiência, como barulhos de pássaros, de vento,
do mar ou do rio, etc.

541
Consideramos o silêncio deste patrimônio em relação à falta de reconhecimento por parte da
população da cidade de Guarujá, em função menos de sua localização em relação à malha
urbana, mais pela falta de um órgão expressivo de preservação do patrimônio na esfera
municipal e, consequentemente, de incentivos em relação à valorização dessa paisagem de
ruínas da Prainha Branca. Já para a cidade de Bertioga, as ruínas da Ermida surgem em meio à
margem oposta, sendo visíveis e valorizadas pela população. Como constatado em diversas
visitas ao longo dos últimos quatro anos, sempre são encontrados vestígios de artigos religiosos
no altar e em lacunas das ruínas da Ermida. O patrimônio, enquanto uma atribuição cultural,
está em silêncio; as ruínas, enquanto paisagem, não. Vale ainda considerar que esta atribuição
cultural e o acesso a este patrimônio deve fundamentalmente preservar a condição atual de sua
experiência, “demorada” e “silenciosa”, própria do contato com as “coisas mesmas” e da
simbiose a partir da valorização não só do entorno natural, mas da comunidade local que a
cerca.7

Referências

BUONINCONTRI, Francesca. Antico Nuovo - Indice, storia, rovina. Tese (Doutorado). Facoltà di
Archittetura. Università degli Studi di Napoli Federico II. Nápoles, 2011.

CONSELHO DE DEFESA DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO, ARQUEOLÓGICO, ARTÍSTICO E TURÍSTICO. Processo


00347/73 - Solicita o tombamento do Forte São Felipe, na Ilha de Santo Amaro, em GUARUJÁ. 1973.
Disponível em <http://www.infopatrimonio.org/wp-
content/uploads/2018/02/COND_000347_1973.pdf>. Acesso em Janeiro, 2021.

CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. Trad. Luciano Vieira Machado. São Paulo: UNESP, 2006.

CUNHA, Euclides. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, vol. 1, 1995.

DVOŘÁK, Max. Catecismo da Preservação dos Monumentos. Trad. Valéria Alves Esteves Lima. São
Paulo: Ateliê Editorial, 2015.

HETZLER, Florence M. Causality: Ruin Time and Ruins. Leonardo, vol. 21, n. 1, p. 51-55, 1988.

MATTEINI, Tessa. Paesaggi del tempo. Documenti archeologici e rovine artificiali nel disegno di giardini
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MATTEINI, Tessa; UGOLINI, Andrea. La lezione di Ruskin e il contributo di Boni. Dalla sublimità
parassitaria alla gestione dinamica delle nature archeologiche. In: GHERARDINI, S. C.; PRETELLI. (Org.)
Memories on John Ruskin. Unto this last. Firenze: Firenze University Press, 2019.

7
Este artigo faz parte do processo de construção de tese de doutorado, no âmbito do Programa de Pós-
Graduação em Arquitetura – PROARQ – da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

542
RIEGL, Alöis. O Culto Moderno dos Monumentos: A sua essência e a sua origem. Trad. Werner
Rothschild Davidsohn, Anat Falbel. São Paulo: Perspectiva, 2014.

ROMEO, Emanuele. Conservazione e valorizzazione dei sistemi fortificati ridotti allo stato di ruderi in Val
Tanaro (Piemonte). Defensive Architecture of the Mediterranean, vol. XI, p. 985-992, 2020.

RUSKIN, John. A Lâmpada da Memória. Trad. Maria Lucia Bressan Pinheiro. Cotia, SP: Ateliê Editorial,
2008.

SIGNORINI, Maria A. L’Indice di Pericolosità: un contributo del botanico all controllo della vegetazione
infestante nelle aree monumentali. Informatore Botanico Italiano, n. 28, p. 7-14, 1996.

SIMMEL, Georg. The Ruin. The Hudson Review, Inc. vol 11, n. 3, p 379-385, 1958.

SPIRITO, Gianpaola. Le rovine come possibilità poetica per l'architettura contemporanea. DC, v. 11, n.
24, p. 81-90, dez./2012.

TULIK, Olga. Praia do Góis e Prainha Branca. Núcleos de periferia urbana na Baixada Santista. São Paulo:
Coleção Museu Paulista Geografia, vol. 1, 1981.

WHITE, Amanda. Interpretation and display of ruins and sites. In: ASHURST, John. Conservation of
Ruins. Londres: Elsevier, 2007, p. 246-263.

543
RUÍNAS DA INDÚSTRIA E DA MEMÓRIA: ensaio entre “abandonados” e
“apagamentos”
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Douver dos Santos Cruz


Arquiteto e Urbanista; Universidade Federal do Rio de Janeiro; douverscruz@gmail.com.

As indústrias, hoje, têm atribuição no valor da nossa memória, diante do seu lugar, que foi aos
poucos reconhecido, na construção identitária na cidade e, passou a formar nossa herança
cultural como patrimônio industrial. No seu desuso surgem as ruínas industriais, como vazios
urbanos. Abandonado, dilapidado e, não raramente, demolido, começa a delinear uma imagem
de cidade que se deteriora, se desconfigura e “consome” a identidade do território e, junto com
ele, antes de tudo, um valor afetivo de memória. Seu lugar de reconhecimento fica ameaçado
de desaparecer. É premente a necessidade desses espaços serem ressignificados, antes de tudo,
para não silenciar a ampliação de tudo aquilo que se conquistou e passou a ser um dia ser
considerado bem cultural.
Palavras-chave: Patrimônio cultural, Patrimônio industrial; Memória; Resiliência

Today, industries have an attribution in the value of our memory, given their place, which was
gradually recognized, in the identity construction in the city, and started to form our cultural
heritage as an industrial heritage. In its disuse, industrial ruins emerge as urban voids.
Abandoned, dilapidated and, not infrequently, demolished, he begins to outline an image of a
city that deteriorates, disfigures and “consumes” the identity of the territory and, together with
it, above all, an affective value of memory. Its place of recognition is threatened to disappear.
There is an urgent need for these spaces to be re-signified, first of all, so as not to silence the
expansion of everything that has been achieved and has become one day to be considered a
cultural asset.
Keywords: Cultural heritage; Industrial heritage; Memory; Resilience

544
1 – Introdução
Este artigo parte da tomada de consciência da carência de investigação do tema relacionado à
reutilização do patrimônio industrial considerando suas ressignificações simbólicas e imateriais.
Considera pesquisar uma faceta específica da questão, tão essencial, mas que tem sido tão
frequentemente “silenciada”: as discussões teóricas que deveriam reger as intervenções
práticas em edifícios do processo de desindustrialização - aplicando metodologias e ações de
restauração de bens culturais em bens arquitetônicos industriais – para que, de fato, possam
ser transmitidos o melhor conteúdo para gerações futuras. (KÜHL, 2008)
Desde o seu advento na Revolução Industrial, a indústria consegue, no decorrer de um século,
desbravar lentamente seu lugar na construção identitária na cidade, conquistando
espacialmente ideologias sociais, políticas, tecnológicas e econômicas obtendo valor cultural de
patrimônio pela sua carga histórica, tecnológica, arquitetônica, científica e social que houve no
passado, pois era o epicentro das relações e da formação do cotidiano da sociedade da época.
De qualquer maneira, multiplicaram-se os estudos após os anos 60, aparecendo a Grã- Bretanha
como um dos pioneiros do tratamento sistemático do tema e, em alguns países predomina o
emprego da expressão “arqueologia industrial”, aonde volta-se o estudo, análise e registro de
formas de industrialização do passado, seja ele considerado bem cultural ou não. (KÜHL, 2008)
No que tange à arquitetura, os “monumentos da industrialização” (KÜHL, 2008, p.45) se referem
não apenas às construções relacionadas com as unidades de produção, mas se volta para todo
o complexo de edifícios que pode compor um conjunto industrial, sendo, fábrica, galpões,
residências, vilas operárias, enfermaria, escola etc. além de abarcar redes de infra- estrutura
como unidades de apoio de produção de energia elétrica e meios de transporte (KÜHL, 2008).
Há ainda um outro grupo de atividade produtiva, geralmente de menor porte – podem abranger
de forma bem diversificada as tipologias de cinemas, teatros, supermercados, igrejas e caixas
d’aguas.
Na compreensão sobre a noção de patrimônio cultural e, mais especificamente sobre a noção
de patrimônio industrial, faz-se necessário posicionar que o lugar industrial, hoje, remete, ou
contém elementos que remetem, a algo externo a ele: valores, ideais, imaginários.
Para podermos compreender melhor o lugar de patrimônio conquistado pela indústria na cidade
atual, deparamos-nos ainda, com a interpretação de autores como Jeudy (2005) sobre o fervor
contemporâneo pelo culto do passado como um meio de conjurar a ameaça que pesa
permanentemente sobre o homem moderno: a possibilidade de perder o sentido de sua própria
continuidade. “A conservação se torna uma questão urgente e sua aceleração tende a fazer do

545
próprio presente um patrimônio potencial prioritariamente percebido de sua perda” (JEUDY,
2005, p.25).
Para CHOAY (2017) já se trata de uma herança industrial, e assim enfatiza a singularidade de seu
reaproveitamento, “[...]construção sólida, sóbria e de fácil manutenção, são facilmente
adaptáveis às normas de atualizações atuais e se prestam a múltiplos usos, públicos e privados”.
(CHOAY, 2017, p. 219). A desindustrialização e a reestruturação econômica nas cidades atingem
esses complexos fabris e trazem consigo sinais de obsolescência. No desuso e processo de
descontinuidade surgem as ruínas industriais, que logo configuram-se em lacunas na paisagem,
como marcas anacrônicas de vazios urbanos, que fragilizam o tecido espacial da cidade e,
corroboram em mesma via, na fragmentação profunda do tecido social e econômico, quando
dos encerramentos das indústrias, impactam na renda e emprego. Este patrimônio, agora,
abandonado, dilapidado e, não raramente, demolido, começa a delinear uma imagem de cidade
que se deteriora, se desconfigura e “consome” a identidade do território e, junto com ele, antes
de tudo, um valor afetivo de memória. Seu lugar de reconhecimento fica ameaçado de
desaparecer.
Antes de serem efetivamente dilapidados, ou já “desmemoriados” e, no relativo recente
reconhecimento do significado do valor cultural com seu legítimo enquadramento como
patrimônio industrial, buscaremos as vozes para os “abandonados”.
É na reutilização adaptativa que surge a oportunidade mais concreta com a produção de novos
usos. A capacidade de resiliência desses complexos com novo uso pertinente adquire valor e se
insere na contemporaneidade e, nela, adquire a capacidade de satisfazer aquelas necessidades
às novas criações modernas poderia fazer de forma similar (quando não melhor).
Não se trata de conservar tudo, nem, tampouco, de transformar radicalmente tudo. É inviável e
mesmo indesejável conservar tudo de forma indiscriminadamente, sendo necessário fazer
escolhas conscientes, baseadas em conhecimento aprofundado para que os bens mais
significativos possam ser valorizados e preservados.
Os novos usos e funções que a sociedade atribui a esses locais revelam um novo momento da
produção espacial, onde se projetam, paradoxalmente, a objetivação do novo e a permanência
do antigo.
Esse caminho que percorreremos é para compreendermos que há um solo fértil de ações
potentes e transformadoras para reverter os “abandonados” e “apagamentos” produzidos na
atualidade (Figura 01)

546
Figura 01: Ruínas de Detroit – materiais físicos “abandonados” e memórias imateriais nos

“apagamentos”

Fonte: https://www.pxfuel.com/es/free-photo-jgesh Acesso em: 26/11/2020

2 – Metodologia
O artigo percorre por aportes bibliográficos que servem como norteadores para a construção e
formatação de uma consciência mais clara e consistente sobre o tema, constituindo um material
próspero para questões atuais que são prementes em relação à salvaguarda do patrimônio
arquitetônico industrial, em especial, diante das velozes transformações socioeconômicas que
refletem na proliferação e na caracterização de vazios urbanos na cidade.
Desta forma, as literaturas especializadas contribuem com sua utilidade na aplicação dos
conceitos ao reforçarem as crenças a respeito do assunto pautado e ainda apontam para um
quadro de discursos significantes para o patrimônio industrial, atendendo às inquietudes dessa
pesquisa em fazer emergente a chamada de atenção como momento crítico para a cidade.
Portanto, trata-se de um artigo de caráter, qualitativo, teórico-reflexivo e exploratório, pois
percorre por exemplos de obras para elucidar os resultados obtidos.

547
3 – Resultados e Interpretações
3.1 – O uso e a utilidade como essência da arquitetura
Para conferirmos às cidades maior vitalidade como uma entidade urbana mais duradoura, é
necessário, continuamente, injetarmos uma ampla gama de oportunidades e estímulos. As
relações de produção artística, econômica, as sucessivas transformações e até a decadência são
assimiladas no percurso do patrimônio no processo de construção de significados.
Nesse caminho, a inserção de novas tecnologias, a modernização de equipamentos, a inovação
dos meios de informação, a aceleração do tempo e as diferentes velocidades das atividades
humanas passaram a interferir na vida útil do patrimônio arquitetônico, principalmente na
relação entre indivíduo e espaço, abordando novas necessidades de uso das sociedades atuais.
Esta dinâmica levou ao declínio e à ruína de diversas edificações e ao encerramento de suas
atividades.
No entanto, o patrimônio sendo referência coletiva de uma cidade, as sucessivas
ressignificações podem ser obtidas através da reutilização dos edifícios desabilitados, com ações
potenciais capazes de transformar em espaços de apropriação, mesmo com usos diferentes da
função original, na qual será possível perpetuar sua memória ao repensar novas práticas sociais,
possibilitando a reintegração do sentimento de pertencimento e a melhora da imagem da
cidade.
Essa discussão revela o que os bens arquitetônicos têm como característica mais intrínseca, o
uso e a utilidade. “A arquitetura é a única [...], cujo uso faz parte de sua essência e mantém uma
relação complexa com suas finalidades estéticas e simbólicas, mais difícil de apreender nos casos
dos edifícios históricos que se tornaram órfãos da destinação prática que lhes deu origem”
(CHOAY, 2017, p. 230).
Nesse momento, abarcam importantes reflexões acerca da utilização, para além de seus
significados simbólicos. Os novos usos sociais que podemos dar para esses bens patrimoniais
são os mais diversos e, potencializam a resiliência patrimonial e funcional das cidades que hoje
podem não morrer mais facilmente.
Em consonância, Lyra,
A obra arquitetônica, por ser uma arte eminentemente utilitária, necessita
ser continuamente usada para sobreviver. As ruínas, em sua maioria, são
testemunhos de edifícios que ficaram ociosos. A readaptação é uma das
soluções para preservar a obra de arquitetura de valor cultural, mas ela deve
atender à vocação específica da tipologia arquitetônica a que pertence o
monumento. (LYRA, 2006, p. 53)

548
Complementando, “recicla-se o patrimônio para ele ser usado. O que melhor conserva é o uso,
a vida” (BASTOS, 2001, p. 8).

3.2 – Reuso no Patrimônio – abordando como uma importante pedagogia


Diante da necessidade de uma nova destinação útil para manter a longevidade do patrimônio,
visto que o abandono é a principal causa da degradação do bem, “se a adaptação pode dar nova
vida ao edifício, pode também contribuir para a sua ruína” (LYRA, 2006, p. 56).
Entende-se que é essencial considerar e conhecer as limitações do edifício sobre a qual se tem
a intenção de intervir e suas possíveis vocações, pois a escolha de uma nova destinação
incoerente aumenta o risco de sua destruição.
Os edifícios do passado não são capazes de abrigar ou absorver todas as complexas relações
contemporâneas, portanto, dar uma nova destinação é uma operação difícil e complexa e um
tipo de escolha não compatível com o edifício, imposta por interesses meramente econômicos,
pode acarretar consequências irreversíveis.
Nesse sentido, para a integração na vida contemporânea, de acordo com Choay (2017), a
reutilização de edifícios históricos desativados reintegrando a um uso normal, consiste em uma
audaciosa e difícil prática de valorização do patrimônio, posto que, “o monumento é assim
poupado aos riscos do desuso para ser exposto ao desgaste e usurpação do uso [...] não deve se
basear apenas em uma homologia com sua destinação original” (CHOAY, 2017, p.219). Ela ainda
coaduna com essa complexa tarefa ao esclarecer que alguns casos de reutilizações são
aparentemente criteriosos, mas não significam que trouxeram consequências. “Era preciso
transformar o frágil Hotel Salé em Museu Picasso, por onde desfilam centenas de milhares de
visitantes e que já precisou de duas restaurações?”.
Outro autor, DEZZI BARDESCHI (2004), também nos faz compreender que a longevidade do uso
do bem, para que se suceda para as gerações futuras, está intrínseco à consideração de escolha
de usos compatíveis, sendo assim, Dezzi Bardeschi,
O uso correto (ou reuso) de um edifício histórico só pode estar subordinado
à sua conservação. Subordinados, mas independentes, acrescento, uma vez
que ele comporta intervenções de adequação funcional (tipológica,
estrutural, de instalações, de mobiliário etc.) que nada têm a ver como o
restauro como disciplina, configurando um leque de operações de projetação
(isto é, de nova produção) de todo modo autônomas e decididamente
conflitivas, com as exigências da conservação. (DEZZI BARDESCHI, 2009, p. 42)

549
Podemos dizer que o patrimônio edificado corresponde a um palimpsesto, “os arquitetos [...]
têm o dever de aportar nova matéria ao contexto da edificação sem que isso penalize a
estratificação e a distinguibilidade das fases construtivas e de uso” (DEZZI BARDESCHI, 2004, p.
218). Vemos que é possível a não conflitualidade com o existente, ou seja, a possiblidade de se
projetar o novo.
Observamos essa ação em uma antiga fábrica toda em concreto pré-fabricada que é
reconvertida em escola pública. Há a preocupação de manter a leitura original de sua
espacialidade fabril e com isso, a estrutura principal original, ou seja, os pilares, a laje e as
esquadrias, são mantidas, enquanto as divisões espaciais internas são totalmente novas e
dinâmicas abrigando salas de aulas, sala de artes, sala de música, auditório, refeitório, biblioteca
etc. Mantém-se os grandes vãos livres abertos das esquadrias externas para se preservar o
caráter do bem cultural como industrial. (Figura 02)
Oportunamente, (CHOAY, 2017, p. 222), “a prática da reutilização deveria ser objeto de uma
pedagogia especial”.

Figura 02: Estruturas principais mantidas na Escola Secundária Popular em Roskilde, Dinamarca.

Fonte: https://www.archdaily.com.br Acesso em: 26/11/2020

3.3 – Patrimônio industrial – “novas ruínas” contemporâneas


Ao que diz respeito ao patrimônio industrial, a preocupação voltada para a sua preservação é
relativamente recente. O fato teve início na recessão do período industrial, a partir de 1950, em
decorrência das transformações socioeconômicas que a sociedade experimentou, e dura até os

550
dias atuais. A atual dinâmica de deslocamentos, buscando novas construções, territórios e
tecnologias ocasionam no tecido urbano a desocupação, abandono e degradação de
determinadas indústrias de valor excepcional.
“Os edifícios abandonados industriais passam, portanto, a serem o foco dos primeiros estudos
sobre os vazios urbanos na Europa no período pós- industrial, sobretudo, no sentido de ausência
de uso e função, devido a não apresentarem maior necessidade à cidade” (BORDE, 2006).
Isso faz explicar o surgimento das “novas ruínas” da contemporaneidade, uma coleção
indesejada de monumentos involuntários na cidade, (fábricas abandonadas, armazéns, vilas
operárias degradadas, quartéis, fortes, galpões desabilitados, estações ferroviárias desativadas,
etc.), “uma dinâmica que engendra permanentemente proliferação entrópica, o acúmulo de
construções abandonadas, fábricas vazias e áreas de demolição convertidas em
estacionamentos, centros de culto ou depósitos, são espaços à espera de valorização.” (BARDA,
2009, p. 152).
Tamanha é a preocupação com o desaparecimento e a obsolescência desse tão recente
patrimônio, que em 2003, o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), publicou
e disseminou a Carta de Nizhzy Tangil sobre o patrimônio industrial.
A importância dada na Carta como herança cultural é que esse legado representa o testemunho
de atividades revestido de um valor social com importante sentimento identitário e de memória
do trabalho, valor científico, tecnológico e estético, pela qualidade da sua arquitetura ou da sua
concepção. Estes valores são intrínsecos aos próprios legados industriais, às suas estruturas, à
sua espacialidade, aos seus elementos constitutivos, à sua paisagem industrial e, também, aos
elementos intangíveis e simbólicos contidos na memória da comunidade e das suas tradições.
“Os exemplos mais antigos, ou pioneiros, apresentam um valor especial”. (TICCIH, 2003).
A Carta inclusive incentiva a reutilização com um novo uso como forma de se assegurar a
preservação do bem cultural. “as novas utilizações devem respeitar o material específico e os
esquemas originais de circulação e de produção, sendo tanto quanto possível compatíveis com
a sua anterior utilização. É recomendável uma adaptação que evoque a sua antiga atividade.”
(TICCIH, 2003).
E diante dessa oportunidade, a Carta alerta para a preservação da integridade funcional de um
sítio industrial, “o valor e a autenticidade [...] podem ser fortemente reduzidos se [...]
componentes essenciais forem retirados, ou se os elementos secundários que fazem parte do
conjunto forem destruídos” (TICCIH, 2003), portanto “a conservação in situ deve considerar-se
sempre como prioritária. O desmantelamento e a deslocação de um edifício ou de uma estrutura

551
só serão aceitáveis se sua destruição for exigida por imperiosas necessidades sociais ou
econômicas”. (TICCIH, 2003)
A Carta se atém ao lado da perda e da memória ao enfatizar que “a continuidade que esta
reutilização implica pode proporcionar um equilíbrio psicológico às comunidades confrontadas
com a perda súbita de uma fonte de trabalho de muitos anos”. (TICCIH, 2003)
“As intervenções realizadas nos complexos industriais devem ser reversíveis e provocar um
impacto mínimo”. (TICCIH, 2003)
Observa-se que a Carta mantém os princípios básicos da Carta de Veneza de 1964 quanto à
integridade, autenticidade e a mínima intervenção.
Artigo 9° - A restauração é uma operação que deve ter “caráter excepcional”.
Tem por objetivo conservar e revelar os valores estéticos e históricos do
monumento e fundamenta-se no “respeito ao material original e aos
documentos autênticos”. “Termina onde começa a hipótese”; no plano das
reconstituições conjeturais, todo trabalho complementar como reconhecido
indispensável por razões estéticas ou técnicas destacar-se-á da composição
arquitetônica e deverá ostentar a marca do nosso tempo. A restauração será
sempre precedida e acompanhada de um estudo arqueológico e histórico do
documento. (CARTA DE VENEZA, 1964- grifo nosso)

3.4 – Patrimônio resiliente – ressignificando “ruínas”


Assim, já se faz premente o momento de conciliar a reinterpretação dessa multiplicidade com
as exigências do presente, ocupando as novas “ruínas urbanas” com espaços e usos bem
definidos.
Arquitetos renomados do star-system, também têm tido como desafio em seus projetos, a
tratativa de fazer intervenções em bens culturais.
É oportuno apresentar a (Figura 03) a seguir, a tentativa do arquiteto Norman Foster em 2006
em projetar uma torre comercial onde existia um bem histórico em Nova Iorque.
Verifica-se que houve a descaracterização espacial interna, com o mutilamento de toda a
matéria, mantendo apenas o invólucro. Há uma expressiva especulação comercial no edifício
histórico, apagando muito de sua autenticidade. Não seria o projeto correto no lugar
inapropriado, visto que nos parece um “mero encaixe” de sobreposição? O que conseguimos
reforçar através dessa intervenção é que a prática de reutilização de um patrimônio já necessita
ser tratada como uma disciplina pedagógica de tão complexa e tamanha sensibilidade que se
faz pertinente, e com maior correlação com as cartas patrimoniais que estão vigentes.
Para CHOAY (2017), nesse sentido, é muito difícil que uma adaptação ou reutilização para novos
usos seja rentável, que em geral só se consegue em prejuízo da funcionalidade, conforme a
Hearst Tower, o que faz restar apenas uma casca vazia entre seus invólucros, procedimento que

552
é definido por “curetagem”, porém discutível e inadmissível quando se trata de reduzir e
sacrificar as estruturas e o ambiente interno com as suas espacialidades em um edifício com
valores preservado. Defendemos conforme a autora, que colocar uma construção nova atrás da
casca anterior dessa maneira conforme a Figura 03, é uma forma lamentável de fazer as coisas,
e podemos dizer que até preguiçosa. Não estaria sendo digno no termo da arquitetura e do
restauro. Consideramos nesse caso, que a escolha padrão deveria ser sempre reaproveitar e
reconfigurar os edifícios existentes.

Figura 03: Hearst Tower em N.Y

Fonte: https://www.archdaily.com.br Acesso em: 26/11/2020

Portanto, há um desvio de conduta, pois considera-se a reutilização a forma mais eficaz para
garantir a preservação de um bem, pois um monumento sem uso se deteriora de modo rápido,
enquanto aquele mantido em funcionamento pode durar séculos. No entanto, a reutilização é
um meio para preservar o bem, mas não a finalidade da intervenção, portanto, somente se

553
necessário, não devendo as pressões econômicas incidir de forma incisiva para alterar o caráter
estético e histórico do edifício. (CARBONARA, 1992, p.56 apud KÜHL, 2008, p.208)
Dessa forma, deveriam ser analisadas as características da obra para, depois, definir funções e
programas compatíveis com elas, e não o contrário, adaptar um dado edifício a um novo uso
preestabelecido ou submetê-lo a transformações massificadas nem sempre de acordo com suas
particularidades, cuja implementação será feita em prejuízo do próprio monumento histórico.
Ou seja, deve-se respeitar a essência do bem, escolher um uso compatível com seus aspectos
documentais e formais, respeitando-se sua configuração, suas várias estratificações ao longo do
tempo e desenvolver o programa e o projeto de acordo com suas características.
KÜHL (2008) ressalta que não basta que o novo uso seja “nominalmente” compatível, ou seja,
transformar e massificar o uso cultural para atender o programa do turismo e lazer nas áreas
históricas podem desnaturar bens culturais. Deve-se pontuar que, ainda, não basta que o novo
uso leve em conta apenas os aspectos materiais, de distribuição espacial, documentais, se não
for uso compatível com o próprio significado do bem e pertinente ao local e situação em que se
insere e a comunidade a que se volta. Assim, a comunidade deve se apropriar também no uso
do patrimônio, não esbarrando nas questões de gentrificação.

4 – Conclusões
Reconhecer a importância do reuso para manter a preservação do bem é de grande valia, mas
atribuir um uso coerente sem renunciar o seu significado simbólico e a autenticidade é o que
defendemos ser o maior desafio na atualidade, pois um novo uso incongruente pode resultar
em danos irreparáveis ou comparáveis àqueles determinados por um abandono.
Assim, cada vez mais é exigido a presença de intérpretes conscientes, ou seja, de arquitetos de
qualidade e experientes, pois o artigo avança ao acreditar que as questões de reutilização, já é
uma questão de “nova pedagogia”. Todo esse entendimento é para compreendermos que a
utilidade pertinente no patrimônio é o que irá garantir sua maior longevidade.
Não é suficiente só realizar o tombamento apontando o que é “oficial”, é eminentemente
oportuno conferir-lhe o bom uso social que seja reflexo dos interesses da sociedade, para que
ela se sinta representada coletivamente e inclusa na comunidade.

Referências

BARDA, Marisa. Espaço (meta) vernacular na cidade contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 2009.

554
BASTOS, Paulo Mello. Entrevista na Revista Projeto e Design. São Paulo, nº 255, p. 8-10, maio, 2001.

BORDE, A.P.L. Vazios Urbanos: perspectivas contemporâneas. Rio de Janeiro, 2006. Tese (Doutorado
em Arquitetura). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. 6. ed. São Paulo: Estação Liberdade: Ed. UNESP, 2017.

DEZZI BARDESCHI, M. Restauro: construire, destruggere, conservare. Restauro: punto e da capo.


Frammenti per uma (impossibile) teoria. Milão: FrancoAngeli, p. 40-44, 2009.

____ . Nuove Risorse: dall’archeologia industriale ala vallorizacione del patrimônio industriale. Restauro:
due punti e da capo. Milão: FrancoAngeli, p. 197-219, 2004.

JEUDY, Henrri- Pieri. Espelho das cidades. Rio de Janeiro. Casa da Palavra, 2005.

KÜHL, Beatriz Mugayar. Preservação do patrimônio arquitetônico da industrialização: problemas


teóricos de restauro. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2008.

LYRA, C.C. A importância do uso na preservação na obra de arquitetura. Revista do pós-graduação de


artes visuais. EBA. UFRJ, p. 53-58, 2006.

TICCIH (2003). Carta de Nizthy Tangil para o Patrimônio Industrial. Disponível em:
https://ticcihbrasil.com.br/cartas/carta-de-nizhny-tagil-sobre-o-patrimonio-industrial/. Acesso em:
17/11/2020.

555
SILÊNCIOS E FORMAS DE NARRAR A ESCRAVIDÃO NO CENTRO HISTÓRICO DO
PENEDO, ALAGOAS
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Luana Teixeira
Historiadora, UFAL, luateixeira1@yahoo.com.br

Penedo viveu por três séculos a escravidão e carrega em sua paisagem inúmeros elementos
materiais e imateriais da história de homens e mulheres subjugados ao trabalho servil e à
desumanidade do regime escravista. No entanto, assim como em outras cidades históricas
brasileiras, nas narrativas construídas sobre seus centros antigos, as passagens sobre os
períodos escravistas são traduzidas em alegorias que mais ocultam que explicam o papel
fundamental que esse sistema e as pessoas subjugadas à condição escrava desempenharam na
formação do patrimônio cultural preservado. Partindo de um caso específico – a identificação
de um pequeno aposento encontrado dentro da Igreja da Corrente como esconderijo de
escravos – busca-se discutir elementos sobre a invisibilização e a suavização das narrativas sobre
a escravidão em cidades históricas.

For around three centuries, slavery was the main model of work in the city of Penedo. This
history shaped its landscape, built by the forced work of thousands of men and women
subjugated to servile labor and to the inhumanity of this system. However, as in another historic
Brazilian cities, the narratives about the slavery period are translated into allegories. This
situation more hide than show this history. The enslaved people who constructed this cultural
heritage almost are not exposed in these texts. This paper is about a case study of a hiding place
of the slaves located inside a church (Igreja da Corrente) to discuss the narratives about slavery
in historical towns.

556
A história do Penedo acompanha a história da colonização portuguesa no Brasil. A ocupação
européia no local onde hoje está localizada a cidade começou por volta de 1560, tendo sido
elevada à vila em 1636. Com o fim do período colonial, passou por um processo de decadência,
como notou o viajante George Gardner (1975, p. 66), que ali esteve em 1838. Apesar da perda
de prestígio, continuou sendo um importante porto fluvial ao longo do século XIX. Com o
desenvolvimento dos meios de transporte e os projetos de interiorização do Brasil a partir do
Rio São Francisco, passou por uma nova fase de florescimento econômico, entre os anos 1850 e
1870. No início do século XX, a cidade voltou a decair em importância, o que permitiu a
manutenção de grande parte dos imóveis e do traçado histórico de suas ruas. A preservação de
seus elementos arquitetônicos somadas ao seu importante papel na definição do território
colonial no Nordeste brasileiro levou ao tombamento de seu Centro Histórico pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1996.
A riqueza histórica verificada na materialidade de suas ruas, no entanto, não reflete na
valorização da produção de conhecimento e no desenvolvimento do turismo cultural. Apesar da
existência de iniciativas louváveis do poder público, através principalmente do Iphan, e da
iniciativa de particulares, como a Casa do Penedo, a produção de conhecimento acadêmico e
científico sobre a cidade ainda deixa a desejar. A maior parte do que se narra sobre sua história
continua sendo pautado pelos poucos escritos de historiadores tradicionais, afeitos a uma ótica
elitista e atrelada aos “grandes” homens e às alegorias históricas. Assim, há uma grande
valorização dos eventos que marcaram a passagem do Imperador Dom Pedro II, em 1859,
quando empreendeu viagem até a cachoeira de Paulo Afonso. Também existe o Museu do Paço
Imperial, localizado no sobrado onde ele se instalou e pautado pela valorização de sua visita.
Recentemente uma estátua foi erguida em frente ao cais da Rua da Corrente e um projeto,
chamado Rotas do Imperador, vem sendo esboçado há alguns anos para incentivar o turismo
histórico local.
As narrativas sobre a história do Penedo contrastam com um movimento mais amplo no Estado
de Alagoas de valorização da cultura popular e das populações que ergueram, pela força do seu
trabalho, a sociedade e a identidade alagoana. Seja pelo viés dos folguedos (mesmo que
marcados por um olhar do folclore, como bem coloca Jeferson Silva, 2014), como pela expressiva
presença do território onde formou-se o maior quilombo das Américas, o Quilombo dos
Palmares, e o olhar sobre a resistência à opressão ao sistema escravista monocultor, há um
movimento importante no estado de ressignificação de sua história a partir de uma pauta social.
Um olhar que privilegia as forças sociais coletivas e a multiplicidade cultural de Alagoas.

557
No entanto, a abertura dos pontos de vista sobre o passado ainda é muito tímida nas narrativas
que se produzem e reproduzem sobre um dos principais sítios históricos tombados do estado.
No Penedo – cidade que foi construída e produzida pela força do trabalho escravo e pelo sangue
que consumiu da população oprimida – a escravidão, quando não ausente, é narrada em um
discurso suavizador, oriundo de uma construção narrativa pautada por uma interpretação
consagrada no mito da democracia racial. Aos elementos históricos tombados são associadas
alegorias da escravidão e não uma história contextualizada e crítica, calcada em pesquisas sobre
o tema. E mesmo assim, a presença da escravidão nas narrativas sobre o sítio apenas estão
presentes quando eles são impossíveis de serem silenciadas, por exemplo, na Praça do
Pelourinho.
Há um contraste gritante entre aquilo que se descortina aos olhos do historiador quando
empreende uma pesquisa histórica sobre qualquer assunto que se refira à cidade antes de 1888
e aquilo que se ouve e lê sobre sua história ao visitar seu patrimônio edificado. Ainda que os
escravizados dificilmente tenham, eles mesmos, deixado seus testemunhos sobre a vida no
antigo Penedo, não há arquivo que se visite em que sua presença não se evidencie. Sejam listas
de coleta de impostos sobre a propriedade escrava nos arquivos da tesouraria, registros de
alforrias nos arquivos cartoriais, anúncios de compra e venda nos jornais, notícias de crimes
tendo-os como réus ou vítimas nos documentos judiciais, lembranças das festas imemoriais em
relatos de antigos moradores, a escravidão esteve por toda parte, não apenas por que ela era
marca indelével da sociedade brasileira como também porque, quantitativamente, era muito
expressiva. Na freguesia do Penedo, escravos eram entre nove e 20% dos habitantes ao longo
do século XIX. Em 1855, apenas nos limites estreitos do núcleo central, correspondente à área
tombada, dormiam e acordavam todo dia 429 pessoas escravizadas (TEIXEIRA, 2016). A presença
de população escravizada era marcante no cotidiano da velha Penedo e, mesmo que o foco da
pesquisa se atenha a qualquer outro tema, é inevitável que a instituição da escravidão fique
visível.
Mas, e nas narrativas atuais sobre a cidade tombada? Onde se encaixa a escravidão? Se encaixa?
Lembrar sobre a existência de um Brasil escravista entra em confronto com uma imagem idílica
do passado que se busca colar nas paredes de pedra e cal dos centros históricos tombados. Não
são as marcas de quem colocou as pedras que são lembradas, apenas daqueles que as
mandaram colocar. Por outro lado, observa-se a recorrência da atenção sobre o pelourinho,
lugar do castigo e exigência para a fundação de uma vila colonial. O viés da violência é a marca
da presença dos afrodescendentes escravizados nas cidades coloniais. As associações pontuais

558
da escravidão a locais identificados como senzalas ou a grilhões e correntes são a regra nos
museus de cidades históricas. Inegavelmente tratam-se de fatores importantes, mas ressaltados
como única presença do passado escravista reproduzem um discurso de subalternidade
construído através da opressão. De modo amplo (e coerente com o racismo estrutural do
ocidente), esta posição associa esse papel à posição da população negra na sociedade e desenha
um não-lugar para ela na memória construída sobre o seu próprio passado. Apagam-se assim
não apenas os traços da escravidão, mas da imensa população livre não-branca que se tornou
maioria com o passar dos séculos e que movia a cidade, construindo seus espaços e produzindo
uma urbanidade que é o mais profundo significado colado nas ruas e prédios de uma cidade
histórica.
Silenciar completamente nas narrativas é impossível, dada a importância e representatividade
da população escrava e seus descendentes na história desses centros históricos tombados. E o
que se percebe, então? Narra-se a presença dessa população em alegorias associadas a lugares
residuais, reproduzindo a marginalidade desejada, a exclusão planejada e o silenciamento
imposto. A presença dessa população vai para o subterrâneo de supostas senzalas as quais
dificilmente foram efetivamente lugares de moradia, a troncos e pelourinhos marcados pela
extrema exposição da violência contra seus corpos. E na melhor das hipóteses, a espaços de
esconderijo e fuga, classificando a resistência cotidiana também como exceção, como se a
humanidade daquelas pessoas apenas se expressasse quando elas se empenhavam em se retirar
da sociedade. Seu lugar nas narrativas sobre centros históricos continua sendo um não-lugar,
seu espaço, um não-espaço, uma manutenção narrativa de exclusão que atravessou 1888 e foi
reproduzida ao longo dos anos XX, adjudicando novos textos, mas mantendo distante do centro
a maioria da população que fez, efetivamente, a história desse país.
Um itinerário sobre esses silêncios pode ser proposto. Comecemos à frente da Igreja de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos, elemento fundamental de sociabilização e organização da
população escravizada e livre pobre brasileira.
A informação de que foi “construída pelos escravos” é fragmentária, associada à breve citação
sobre projetos de alforria e de boa morte. Não se trata de incorreção no enunciado, mas de
como ele torna-se vago ao flutuar sozinho em meio aos elementos que o cercam. Dali
caminhamos em direção à Praça do Pelourinho (atual Barão do Penedo), na qual a sinalização
do antigo instrumento de tortura parece quase incidental. A narrativa sobre a violência da
sociedade de outrora é deslocada para o Oratório da Forca. E mesmo ali, destaca-se que “não
se tem notícias de enforcamento em Penedo”. Da praça de martírios, descemos pela Rua da

559
Corrente até o Antigo Cais, onde a Igreja Nossa Senhora da Corrente divide o protagonismo na
paisagem com o Museu do Paço Imperial e, claro, o Rio São Francisco. Há ali muitos espaços
silenciados, alguns compreensíveis, visto que as pesquisas históricas são recentes. Local de
entrada de pessoas no período colonial, o cais assistiu um intenso movimento de desembarque
e embarque de escravos ao longo da segunda metade do século XIX por força do comércio
interprovincial. É no fim da Rua da Corrente, à beira rio, onde o maior comerciante de escravos
da cidade, José Maria Gonçalves Pereira, instalou sua principal casa de negócios e local no qual
pessoas escravizadas vindas pelo São Francisco aguardavam amontoadas em salas sujas e
apertadas o embarque para as fazendas de café do Sudeste (TEIXEIRA, 2017). Fatos esquecidos
e recentemente retomados, ainda urgem em ultrapassar os muros da Academia e tomar conta
das ruas e das narrativas sobre a cidade. A despeito do que ainda precisa ser investigado, é na
Igreja da Corrente que grita o principal sinal sobre a passagem da escravidão em Penedo. Um
sinal evidente, mas camuflado em uma alegoria que, contrapondo verossimilhança e história,
acaba produzindo um efeito contraditório: ao invés de expor a presença e a importância da
população escravizada na cidade, desloca sua narrativa para o grotesco, o fictício, levando a
dúvidas sobre seu papel na formação do centro histórico tombado.

Figura 1: Placa exposta em frente à Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Presto, Penedo.

Fonte: Rafael Arruda, 2021.

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Figura 2: Altar Secundário na Igreja Nossa Senhora da Corrente e o buraco à esquerda.

Fonte: A autora, 2021.

Figura 3: Totem com explicações sobre o esconderijo de escravos ao lado do altar localizado no interior
da Igreja Nossa Senhora da Corrente.

Fonte: A autora, 2021.

O texto da Figura 3 forma um conjunto de um guia imagético sobre o centro histórico


encomendado pelo Iphan. Quando foi elaborado, há mais de dez anos, pouco se havia levantado
sobre a história da escravidão na cidade. De fato, há na produção do painel uma evidente
intenção de inserir uma narrativa da escravidão. Uma estória conhecida pelos seus habitantes é
uma opção interessante para isso, visto a ausência de outras referências. Mas a transposição de
memórias sobre a escravidão para um totem carrega algumas questões. E passados os anos,

561
certa obsolência começa a pesar sobre as palavras que um dia tinham como objetivo destacar a
presença do escravo na cidade. Um movimento comum na história das narrativas raciais do
Brasil. A evidenciação das marcas da presença negra pelo olhar do extravagante, do
idissiocrático, do peculiar ocorreu ao longo de todo o século XX. Destarte a boa intenção de
inúmeros intelectuais, artistas, pesquisadores, há um paradoxo que coloca em desuso as
imagens deslocadas da escravidão nos idos dos anos 2020. Um movimento que acompanha a
derrubada de estátuas dos homens envolvidos com o tráfico de milhões de africanos no
Ocidente observado nos últimos anos.
A questão é menos a veracidade dos fatos que a produção e reprodução das narrativas sobre
ele. Por que é tão interessante em uma cidade na qual quase não se fala dos escravos que ali
viveram, trabalharam, foram oprimidos e subjugados, apontar com destaque para um buraco
ao lado do altar da igreja e identificar que ali eles se escondiam em fuga? Existem, no mínimo,
duas dimensões da questão. A primeira é aquela que se encontra em um movimento
intermediário entre a desumanização do escravo produzida por um discurso ideológico da
escravidão que perdurou e perdura em muitas formas de narrar o passado escravista e o
rompimento com essa visão que vem sendo operado desde meados do século XX pelos
movimentos sociais, setores acadêmicos e artísticos (PALERMO, 2017).
Nessa ótica, há a intenção de negar o discurso escravo-coisa indicando a ação própria do
escravo. No entanto, esse olhar é parcial e apenas consegue perceber essa humanidade na
revolta e na exceção. Desse modo, as pessoas escravizadas do dia a dia, maioria sem dúvida,
permanecem operando na narrativa como objetos, peças sem desígnio próprio de uma
estrutura que as desumaniza. Apenas na saída para fora é que o escravo ganharia humanidade.
No esconderijo ele evidencia uma vontade própria que não se expressava na servidão. Apesar
de focar em um ponto de conflito, a fuga, essa narrativa silencia sobre o processo de opressão
que sustentava o sistema. A exclusividade do olhar sobre a humanidade do escravo que foge
reitera a desumanidade de todos aqueles que foram mantidos sob o jugo da escravidão,
reforçando uma ideia de apatia e ausência de conflito que permeia inúmeras construções
ideológicas sobre o passado brasileiro, do racismo extremo à democracia racial (REIS; SILVA,
1989).
A segunda dimensão é aquela que apenas por meio do apoio de instituições brancas a rebeldia
escrava se concretizava. A narrativa mais aprofundada sobre a ação escrava que se encontra no
sítio histórico do Penedo é sobre um ato não autônomo: seria nos braços da Igreja que o sujeito
escravizado buscava apoio. Em última instância a narrativa pode ser lida pela fórmula: é pela

562
intermediação do branco que o negro procura a liberdade. O protagonismo não é do sujeito
oprimido, mas da instituição opressora. Inúmeras iniciativas individuais de membros da
cristandade foram realizadas em favor da população escrava, mas a absoluta maioria de seus
membros, assim como a instituição de forma geral, foram coniventes com a escravidão. A
alocação da resistência escrava no espaço da Igreja busca confluir para um discurso comum aos
centros históricos tombados no qual a Igreja, como instituição, e as igrejas, como patrimônios
materiais, são a centralidade.
É desta última afirmação que se chega ao cerne do argumento desse texto. Inúmeros são os
estudos que historicizaram e analisaram criticamente a atuação das ações de preservação do
patrimônio cultural no Brasil (RABELLO, 2009). O foco na pedra e cal, o viés elitista, a preferência
pelo sagrado e tantos outros elementos que caracterizaram a política desde a criação do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 1937, foram já devidamente criticados
(FONSECA, 2009). Desde os anos 1990, novas políticas buscaram reorientar essas ações,
valorizando as pessoas e não apenas os objetos. Incorporou-se a ideia de patrimônio imaterial,
valorizou-se os saberes dos vivos, investiu-se nas possibilidades reais de manutenção dos
sujeitos e na transmissão de conhecimentos. Também são muitos os estudos que se debruçaram
sobre a história da escravidão e do pós-abolição no Brasil, demonstrando a ampla organização
da população escrava, da população livre negra e dos demais grupos subalternos, como índios
e mulheres (ALBERTO, 2017; CARVALHO, 2021; SOUZA, 2002). A resistência foi constante, mas
tanto quanto ela, diversos outros mecanismos de sobrevivência e contestação operaram no
cotidiano das relações sociais e moldaram a sociedade e as cidades brasileiras. O medo do outro,
a necessidade de criar barreiras sociais, o conservadorismo, o esforço para manutenção do
status quo, o delírio, a ignorância que tão claramente têm sido expostos nos últimos anos não
são produtos do século XXI e nem reação a uma ou outra ação pontual e recente. Nas
micropolíticas diárias, como informou Foucault (1993), e nos discursos ocultos sobre os quais
trata Scott (2013), é que se produziu e reproduziu a desigualdade brasileira e também a luta
contra ela. E nenhum outro território conjugava melhor essa tensão que nas adensadas ruas que
marcaram os principais centros urbanos do período colonial e imperial.
O continente americano foi um grande pontilhar de cidades escravas encravadas entre enormes
espaços de monocultura e opressão. Penedo, sem sombra de dúvidas foi uma delas. Apenas
assumindo a dimensão que a escravidão tomou nessas cidades é possível se conhecer o papel e
o sentido de suas ruas e casas. Não é fora de cogitação que um dia um escravo tenha se
escondido no buraco da Igreja da Corrente, mas todo o dia muitos outros transitavam no paço

563
a sua frente, embarcando e desembarcando no cruel comércio de gente, passando carregando
tigres, mercadorias e pessoas, participando das procissões que marcavam o calendário festivo,
procurando parceiros amorosos, pensando sobre seus problemas, ou não pensando em nada,
ou pensando em fugir. As cidades americanas giravam em torno do escravo e de seu trabalho, e
mesmo quem não estava diretamente envolvido nos polos dessa relação era afetado por essa
organização social, flutuando entre o desejo de tornar-se senhor e o medo de ser escravizado.
Ao contrário das estátuas de traficantes de escravos, monumentos anacrônicos, o esconderijo
de escravos da Igreja da Corrente é um objeto patrimonial importante, não apenas por que traz
ao visitante do centro histórico a lembrança de que por ali havia escravos, como também
valoriza sua resistência. A crítica não se faz a narrativa em si, pois, ainda que fragmentária, ela
projeta a dimensão da multiplicidade que foram as cidades escravistas brasileiras. A questão é
a solidão na qual vive o buraco no contexto do que se diz sobre a escravidão no Centro Histórico
de Penedo e em como ele reforça a ideia do escravo como um outro. A essa ideia é tributária a
do negro como pária da história. Ou nas palavras de Beatriz Nascimento (2006, p. 99): “ser negro
é [...] a prática de não pertencer a uma sociedade na qual consagrou tudo que possuía”. É preciso
romper com os paradigmas narrativos que conformam nossos centros históricos tombados não
apenas visibilizando “os pés e as mãos” que os construíram enquanto serviram na condição de
escravos, mas demonstrando a forte presença da população que, descendendo dos povos da
diáspora, libertou-se, organizou-se e moveu as engenharias do processo histórico brasileiro. E
que até hoje amedronta aqueles que se esforçam em continuar confinados nas casas grandes
do Brasil.
Como escreveu Sandra Pesavento (2012, p. 397): “Por definição, a cidade é o lugar que produz
a diferença, estimula a diversidade, expõe o contraste, o pertencimento, a exclusão, a
identidade e a alteridade”. Onde se localiza essa multiplicidade nas narrativas coladas ao sítio
histórico de Penedo? Hoje, ao caminharmos por suas ruas admirando seu patrimônio cultural,
escutamos as vozes de comerciantes, imperador, juízes e barões. Não escutamos a voz dos
escravizados, da população pobre e trabalhadora que foi quem efetivamente erigiu aquele lugar.
O único grito que faz lembrar a opressão, a desigualdade e violência sai de dentro daquele
buraco na Igreja da Corrente. O historiador que se debruça sobre os documentos de história da
cidade se decepciona ao se propor a tal caminhada. Para seu ouvido treinado ecoam vozes dos
trabalhadores, homens e mulheres negras, escravizados ou não, de cada pedra, cada porta, cada
cais. As narrativas sobre a cidade tombada precisam trazer mais que um grito solitário, é preciso
imprimir berros e sussurros das pessoas que circularam e erigiram aqueles monumentos.

564
Embora os tempos não sejam propícios ao avanço (manter o que foi conquistado tem exigido
todos os esforços), é sempre bom observar o marchar da história, lembrando que a vida corre,
as pessoas passam, todavia, pedras, cal e narrativas permanecem.

Referências
ALBERTO, Paulina L. Termos de inclusão: intelectuais negros brasileiros no século XIX. Campinas, SP: Ed.
da Unicamp, 2017.

CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo. Recife, 1822 - 1850. Recife:
Ed. da UFPE, 2010.

FOUCAULT, Michel. Microfísicas do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1993.

GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil, principalmente nas províncias do Norte e nos distritos
do ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Ed. da
Universidade de São Paulo, 1975.

FONSECA, Maria Cecília Londres. Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla de patrimônio
cultural. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mário. Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de
Janeiro: Lamparina, 2009, pp. 59-79.

NASCIMENTO, Beatriz. Negro e racismo. In: RATTS, Alex. Eu sou atlântica: trajetória de vida de Beatriz
Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006, p. 99-102.

PALERMO, Luis Claudio. Disputas no campo da historiografia da escravidão brasileira: perspectivas


clássicas e debates atuais. Dimensões, v. 39, jul.-dez. 2017, p. 324-347.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História, literatura e cidades: diferentes narrativas para o campo do
patrimônio. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 24, 2012, pp. 397-410.

RABELLO, Sonia. O Estado na preservação dos bens culturais: o tombamento. Rio de Janeiro: Iphan,
2009.

SCOTT, James. A dominação e a arte da resistência: discursos ocultos. Lisboa: Livraria Letra Livre, 2013.

SILVA, Jeferson Santos. O que restou é folclore: o negro na historiografia alagoana. Tese (Doutorado
em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2014.

SOUZA, Marina de Mello. Reis negros no Brasil escravista: história da Festa de Coroação de Rei Congo.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.

REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. Rio de
Janeiro: Companhia das letras, 1989.

TEIXEIRA, Luana. Vapores e escravos no Penedo, Alagoas, década de 1850. Saeculum, Revista de
História, n. 34, João Pessoa, jan./jun. 2016, pp. 123-142.

TEIXEIRA, Luana. Estudo sobre identificação de antigos alojamentos de escravos no atual centro
histórico tombado da cidade de Penedo, Alagoas. In: RIBARD, Frank. Memórias da escravidão em
torno do Atlântico. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2016, p. 107-123.

565
TEIXEIRA, Luana. Negócios da escravidão em Alagoas: o comércio interprovincial de escravos em
Maceió e Penedo (1842-1882). Maceió: Fapeal, 2017.

566
UNIDADE E DESOLAÇÃO DE UM JARDIM PATRIMÔNIO DE BURLE MARX NO RECIFE:
a Praça Ministro Salgado Filho
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Wilson de Barros Feitosa Júnior


Arquiteto; Mestrando em Desenvolvimento Urbano na Universidade Federal de Pernambuco;
wilsonbarrosf@gmail.com

Pollyana Martins da Silva


Graduanda em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal de Pernambuco;
pollyana.martins123@gmail.com

Ana Rita Sá Carneiro


Arquiteta, doutora em Arquitetura pela Oxford Brookes University; Coordenadora do
Laboratório da Paisagem da Universidade Federal de Pernambuco, professora da graduação
em Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano
da UFPE; anaritacarneiro@hotmail.com

Joelmir Marques da Silva


Biólogo, doutor em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco;
Professor da graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFPE;
joelmir_marques@hotmail.com.

A Praça Ministro Salgado Filho foi projetada por Burle Marx em 1957 para ser o jardim do
Aeroporto do Recife, um conjunto arquitetônico moderno. Ao longo do tempo vários fatos
concorreram para sua descaracterização sendo restaurada em 2013. Em 2017, na tentativa de
garantir sua salvaguarda, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Iphan aprova
o tombamento inscrevendo-a em três Livros de Tombo. Contudo, a falta de conservação
acarretou, novamente, a perda dos atributos compositivos. Desta forma, objetiva-se neste
artigo discutir a descontinuidade quanto ao compromisso com a conservação da Praça Ministro
Salgado Filho abordando sua criação, as alterações no projeto original e o distanciamento dos
atores envolvidos para evidenciar como as posturas de tutela se repetem sem a prática da
conservação.
Palavras-chave: jardim histórico; conservação; Roberto Burle Marx; Recife.

The Ministro Salgado Filho Square was designed by Burle Marx in 1957 to be the garden of Recife
airport, a modern architectural complex. Over time, several facts contributed to its
mischaracterization and after that it was restored in 2013. In 2017, in an attempt to guarantee
its safeguard, Iphan approves the listing by registering it in three Books of the Tombo Collection.
However, the lack of conservation resulted, again, in the loss of compositional attributes. Thus,
the purpose of this article is to discuss the discontinuity of commitment about the conservation
of Ministro Salgado Filho Square addressing its creation, the changes in the original project and
the distance between the actors involved to show how the guardianship postures keep repeating
without conservation practice.
Keywords: Historic garden; conservation; Roberto Burle Marx; Recife.
Os jardins de entrada do Recife

567
A Praça Ministro Salgado Filho foi concebida pelo paisagista Roberto Burle Marx em 1957
compondo um conjunto arquitetônico e paisagístico com o prédio do Aeroporto dos
Guararapes, conferindo, assim, uma unidade plástica moderna, pela relação intrínseca entre
edifício e jardim, que ficou marcada na paisagem da cidade como um cartão-postal para
moradores e turistas (SÁ CARNEIRO e SILVA, 2017).
Uma série de matérias do Diario de Pernambuco, a partir de 1956, trata da construção do jardim
do aeroporto e da inauguração do prédio, ressaltando o jardim como elemento de composição
obrigatório. Após um período de incertezas sobre quem iria projetá-lo, o então prefeito
Pelópidas da Silveira confirma a participação de Burle Marx. O jardim seria construído à entrada
do aeroporto, na área reservada próxima às pistas, e passaria a exercer a função de porta de
entrada da cidade (DIARIO DE PERNAMBUCO, 1957a).
Nesse momento, muito se discutia a importância de projetos paisagísticos nos principais
aeroportos do país, e um caso de sucesso muito comentado era o jardim do Aeroporto Santos
Dumont, no Rio de Janeiro, projetado por Burle Marx em 1938 e requalificado em 1950. Como
o Recife possuía relativa importância no tráfego aéreo nacional, sendo o primeiro ponto de
chegada da Europa, comentava-se que a cidade merecia um jardim tipicamente pernambucano
e nordestino que exaltasse a flora nacional. É interessante mencionar as semelhanças
compositivas no desenho e no nome dos dois projetos. O do Rio de Janeiro com o nome de Praça
Senador Salgado Filho e o do Recife como Praça Ministro Salgado Filho, ambos em homenagem
ao primeiro-ministro da Aeronáutica (BRACK, 2016).
Apesar dos esforços para a inauguração do conjunto, que foi adiada inúmeras vezes, o Aeroporto
dos Guararapes é aberto para a população em outubro de 1957 sem o jardim construído. Críticas
foram feitas porque além do projeto se encontrar no escritório de Burle Marx no Rio de Janeiro,
havia a falta tanto de plantas nas sementeiras do Recife como de interesse do poder público,
que teve que construir um jardim improvisado para a inauguração.
As obras de implementação da praça causaram inúmeras repercussões nos principais jornais
locais já que, por falta de planejamento, se escolheu a “pior época do ano para fazer-se um
jardim: em pleno mês de outubro, mês de calor, de irradiação intensa” (DIARIO DE
PERNAMBUCO, 1957c, p. 4). Neste período Burle Marx integrava um grupo de profissionais com
escritório estabelecido também em Caracas, assumindo grandes projetos na Venezuela, motivo
que o impossibilitou de acompanhar a construção do jardim como um todo. Isso provocou
questionamentos quanto à sua autoria ou a interferência do Departamento de Bem-Estar
Público, órgão responsável pela construção da praça.

568
O ponto focal do jardim era o espelho d'água de formas curvas e com vegetação aquática,
terrestre e paludosa que norteava todo o traçado, emulando a configuração orgânica do lago
artificial e dando ritmo e movimento ao jardim. Segundo Sá Carneiro et. al. (2016, p.60), a “[...]
convergência para o lago valorizou a água e a vegetação e ofereceu abertura para o reflexo do
entorno e da edificação, confirmando a integração plena entre os dois objetos urbanos como
unidade”.

Figura 01: Planta do projeto original de ajardinamento do Aeroporto dos Guararapes, no qual é possível
observar o traçado e o estacionamento original.

Fonte: Laboratório da Paisagem da UFPE, editada por Pollyana Silva e Wilson de Barros, 2021.

As curvas presentes em todo o projeto a partir do espelho d’água geravam caminhos e áreas de
permanência, guiadas pelos canteiros emoldurados com forrações enquanto árvores
configuravam arranjos sinuosos (Figura 01). A vegetação se dividia em três estratos — herbáceo,
arbustivo e arbóreo — proporcionando uma explosão de cores, texturas e escalas como bem
podemos ver na análise realizada por Sá Carneiro et. al. (2016, p. 61):

569
Recantos que despertam as mais variadas sensações podem ser desfrutados
– seja quando degraus adentram o espelho d’água e permitem perceber o
formato escultural do conjunto de aninga (Montrichardia linifera),
complementado, mais ao fundo, pelas amplas copas dos abricós-de-macaco
(Couroupita guianensis) –, seja no ato de caminhar [...] e perceber a
diversidade de palmeiras, como a macaibeira (Acrocomia intumescens), o
açaí (Euterpe edulis) e o aricuri (Attalea butyracea), que se entrelaçam por
entre os ipês (Tabebuia heptaphylla), os paus-reis (Basiloxylon brasiliensis)
e as sibipirunas (Caesalpinia peltophoroides). A área da praça
complementava-se com um estacionamento bastante arborizado com
indivíduos de oiti (Licania tomentosa).

Analisando a vegetação prevista no projeto original e a comparando com as descritas nos


jornais, bem como as retratadas nas iconografias, é possível verificar mudanças perceptíveis na
inclusão de espécies durante a implementação da praça, como é o caso do flamboyant (Delonix
regia), mulungu (Erythrina velutina), tamareira (Phoenix dactylifera), coqueiro (Cocos nucifera) e

palmeira-leque (Licuala grandis). Tratava-se de um deleite contemplativo, como uma pintura,

enfatizando a relação de integração e continuidade com o edifício existente, que também se


abria completamente para o jardim através das cortinas de vidro e pilotis (Figura 02).

Figura 02: Vista do jardim para a edificação do Aeroporto dos Guararapes com foco para o lago com a
escadaria.

Fonte: De cima para baixo, tem-se: Acervo Alcir Lacerda, década de 1950; Alexandre Berzin, década de
1990, coloridas digitalmente para melhor visualização do conjunto vegetal.

570
Além dos problemas narrados sobre a implementação da Praça Ministro Salgado Filho, em julho
de 1958 já se falava do “abandono de um refúgio que parecia completar o jardim do aeroporto”
(DIARIO DE PERNAMBUCO, 1958, p. 4). Tal comentário refletia a falta de planejamento de um
jardim plantado a seco e fora de época, retrato do abandono em relação à arborização (DIARIO
DE PERNAMBUCO, 1957d).
A praça passou por fases de altos e baixos conforme é possível atestar em reportagens como a
de março de 1969, que salienta sua beleza e acolhimento, mas também a necessidade de
cuidados urgentes para não se degradar. A crítica se estendia, de maneira geral, à conservação
das praças, jardins, pontes e outros monumentos como parte da paisagem urbana recifense
(DIARIO DE PERNAMBUCO, 1963).
Ao longo do tempo o jardim passou por três intervenções. Na primeira, em 1974, coordenada
pela engenheira agrônoma Janete Costa, técnica da Prefeitura do Recife, quando a área foi
ampliada e o estacionamento do projeto original foi retirado e substituído por canteiros e área
gramada, e os bancos propostos tentam replicar as formas ameboides usadas por Burle Marx
no traçado do projeto original, conforme apontam Sá Carneiro e Silva (2017). A segunda, em
1993, assinada por Tereza Coelho, mantém os princípios do projeto de Burle Marx, com
pequenas alterações referentes à substituição de algumas espécies vegetais.
A última intervenção, em 2013, resultou na restauração realizada pela Prefeitura do Recife em
parceria com o Laboratório da Paisagem da UFPE, que levou em consideração os resultados da
oficina sobre jardins históricos ministrada pela arquiteta paisagista portuguesa Cristina Castel-
Branco no ano anterior. O objetivo da intervenção foi restituir ao bem cultural sua imagem e
unidade que, conforme González-Varas (2008), se faz por meio de operações de limpeza,
recomposição de lacunas e retirada de acréscimos prejudiciais para a leitura da obra.
A restauração não visa recuperar o jardim a um estado anterior e idêntico, mas recupera sua
ideia, a imagem e a leitura de seus significados (AÑON-FELIÚ, 1995). O problema é que a prática
de conservação deve ser pensada de maneira contínua através da interligação de diferentes
esferas e da presença de profissionais qualificados que atuem regularmente para evitar
interferências que possam ocorrer no jardim e não como ação pontual que se refaça cada vez
que seu estado chegue a condições graves de deterioração. Nesse caso, se perdem
principalmente os seus atributos históricos e, infelizmente, esse é o cenário encontrado após
sete anos desde essa última intervenção na Praça Ministro Salgado Filho.
A restauração que recuperou a ideia de Burle Marx — resgatando as condições formais de
vegetação, traçado e volumes — tem pouca duração, devido principalmente à ausência de

571
práticas regulares e qualificadas de manutenção por jardineiros e o despreparo de técnicos
responsáveis pelo jardim designados pelo município.
Por sua trajetória histórica e importância artística, cultural e simbolicamente assimilada pela
população recifense e a partir da restauração, a Praça Ministro Salgado Filho obteve nos anos
subsequentes o tombamento como Patrimônio Cultural pelo Iphan na tentativa de fazê-la
perdurar para as gerações futuras, bem como a categorização como jardim histórico pela
Prefeitura do Recife dentro do Sistema Municipal de Unidades Protegidas (Smup) como
Unidades de Equilíbrio Ambiental (UEA).
O jardim histórico é uma “composição arquitetônica e vegetal que, do ponto de vista da história
ou da arte, apresenta um interesse público [...] [e] se trata de um monumento vivo” (CARTA DE
FLORENÇA, 1981, Art. 1º, Art. 3º). Sua conservação, por conta disso, “depende da combinação
de vários itens que caracterizam sua complexidade [aos quais] [...] faz-se necessário conhecer
detalhadamente os componentes do jardim através da identificação dos atributos seguida do
reconhecimento dos valores patrimoniais” (SÁ CARNEIRO et. al., 2011, p. 2). Mas apesar desse
reconhecimento do jardim histórico enquanto bem cultural, o jardim do aeroporto não é
assumido institucionalmente como deveria.

Abandono e fragmentação do conjunto


A relação jardim-edifício, presente na paisagem recifense e inserida na compreensão do bem
patrimonial, foi se alterando desde o momento de sua criação, quando ocupava lugar de
destaque como ponto turístico e de encontro, até os dias de hoje, em que segue exilada e
apresenta oscilações em seu estado de conservação.
A conservação do jardim histórico como parte do conjunto moderno sofreu incisivamente com
a construção de um novo terminal em 2000 para comportar as demandas de transporte aéreo
e o fluxo de usuários, formando o Aeroporto Internacional do Recife/Guararapes — Gilberto
Freyre, interferindo drasticamente na dinâmica existente no conjunto jardim e edifício.
A falta de comunicação com o jardim alterou os eixos de contato físico e visual pela mudança de
acessos e interceptação do prédio antigo, que perdeu seu uso e permanece fechado até os dias
atuais. O novo terminal quebra a unidade e afeta diretamente as dinâmicas de uso,
evidenciando a exclusão do jardim. O diálogo, antes realizado visualmente a partir do antigo
prédio, passa a ser feito exclusivamente de maneira indireta através de um plano superior do
último pavimento do novo terminal e por uma passarela elevada que liga o aeroporto até a
estação de transporte metroviário, perdendo-se a compreensão de conjunto (Figura 03).

572
Figura 03: Vista aérea do jardim e visadas para o novo aeroporto

Fonte: Acervo Laboratório da Paisagem da UFPE, (A) 2014, (B) e (C) 2019.

O isolamento da Praça Ministro Salgado Filho faz com que ela se apresente como uma espécie
de jardim-ilha, circundada por um mar de tráfego de grande fluxo e alças de viadutos de acesso
ao entorno e ao próprio aeroporto. Não bastasse a dificuldade de acesso por parte da
população, os que conseguem nela chegar para fazer uso das paradas de ônibus se deparam
com uma realidade insalubre e sem vivacidade.
O ruído e a proximidade dos carros em velocidade elevada terminam por afastar a população
do jardim com exceção dos ambulantes, moradores de rua e passageiros de ônibus, que
precisam utilizá-la diariamente, fazendo-a exercer sua função de convívio e contemplação do
jardim.
Apesar de contar hoje em dia com nova administração1, os problemas de diálogo entre
aeroporto e a praça permanecem. O grupo Aena Desarrollo Internacional, responsável pela
concessão, pretende demolir o prédio do antigo aeroporto e transformar em um
estacionamento de superfície com 476 vagas, segundo consta no memorial descritivo das obras
de ampliação e reforma do aeroporto anexado ao processo nº 01498.000722/2020-34 da
Superintendência do Iphan em Pernambuco no qual o grupo solicita autorização de intervenção
no bem imóvel.
O parecer técnico nº 115/2020/Cotec Iphan-PE/Iphan-PE já ressalta em suas considerações o
impacto da ausência da volumetria do aeroporto. Além de destruir uma arquitetura de caráter

1
O aeroporto, que atualmente compõe o Bloco Nordeste junto com mais cinco terminais da região,
encontra-se concedido à iniciativa privada por meio de leilão e contrato assinado com a Agência Nacional
de Aviação Civil (Anac), sendo administrado desde março de 2020 pela empresa espanhola Aena
Desarrollo Internacional, que permanecerá com a gestão pelos próximos 30 anos.

573
moderno, o novo estacionamento afeta diretamente a Praça Ministro Salgado Filho, visto que
ocupa a maior parte de seu entorno e tem repercussão direta nos usos ali estabelecidos. Com o
aniquilamento da edificação ao qual estava conectada, o jardim também perde suas
configurações inicialmente pensadas. Sem as relações visuais, um espaço que antes era de
visibilidade e cartão-postal da cidade vai se decompondo quase como área residual,
desagregando cada vez mais as condições que já possuiu e garantiram seu tombamento.
Nas vistorias realizadas pelo Laboratório da Paisagem da UFPE para averiguar o estado de
conservação do jardim depois da restauração, foi constatada a presença de um funcionário
responsável pela manutenção. Independente da frequência, a qualidade dessa mão de obra não
atende à expectativa nos cuidados de um jardineiro treinado para tratar de um jardim histórico,
pois a vegetação revela a falta de cuidados (Figura 04). Hoje quem ocupa o cargo de jardineiro
na Prefeitura do Recife são auxiliares de serviços gerais contratados por empresas terceirizadas
sem vínculo direto, um reflexo do distanciamento dos atores envolvidos com a conservação do
jardim e da falta de compreensão de seus valores.

Figura 04: Vista do jardim com enfoque para a ausência de espécies ao redor do espelho d’água.

Fonte: Wilson de Barros, 2019.

A falta de práticas apropriadas de manutenção acarretou a morte de inúmeros indivíduos


vegetais do projeto original que foram repostos na restauração de 2013 (Figura 05), bem como
permitiu o crescimento desordenado de espécies espontâneas, resultando em parcela da
vegetação original suprimida e a restante apresentando problemas fitossanitários, pela

574
presença de pragas como erva-de-passarinho (Struthantus flexicaulis). A deficiência de
nutrientes no solo inibe o desenvolvimento da vegetação que, por sua vez, não cumpre com sua
função ambiental e plástica.

Figura 05: Comparação histórica do conjunto jardim e edifício.

Fonte:(A)Acervo Fundaj (197?); (B)Acervo Laboratório da Paisagem da UFPE (2013); (C)Wilson de Barros
(2019).

Dado o estado precário de conservação, o jardim expõe de todas as formas, a necessidade


latente de intervenção para recuperar, pelo menos parcialmente, os elementos que garantiram
a proteção patrimonial como jardim histórico. Além dos problemas ligados diretamente à
vegetação, outros empecilhos aparecem, como, por exemplo, as calçadas de pedras
portuguesas danificadas e as caixas de bomba expostas agredindo a visibilidade e dificultando a
locomoção dos pedestres.
Os alegretes, com dimensão inadequada, impedem o crescimento da vegetação de maior porte,
já as espécies aquáticas, que necessitam de tratamento especializado, sofrem com as caixas de
bomba que não funcionam adequadamente, assim como, todo sistema de hidráulica que
acarreta o encharcamento das herbáceas terrestres ao redor do lago pelo excedente nível da
água, além de vários outros fatores presentes que contribuem para o agravamento da
problemática.

Conclusão
As posturas descontínuas de gestão da conservação durante a trajetória histórica da praça se
repetem e se reafirmam, impactando, de forma cada vez mais incisiva, o bem patrimonial. Na
hipótese de um novo restauro, é preciso que se adote ações de manutenção contínuas e com
jardineiros treinados para garantir a conservação do jardim histórico. A condição de conjunto
moderno, uma unidade de jardim e edifício, exige uma intervenção completa para que as
relações formais entre os dois componentes sejam preservadas. Infelizmente só o jardim é de

575
fato protegido sob instância municipal e nacional e, embora o edifício do aeroporto se encontre
no polígono de amortecimento do jardim, isso não é capaz de impedir agressões desta
magnitude como a demolição do aeroporto, justamente por desconhecerem o valor patrimonial
presente no conjunto.
Ainda que se encontre em condições precárias, a força projetual do jardim, ainda é capaz de
expressar aspectos que garantam sua singularidade. Algumas condições como a topografia, as
linhas dos canteiros e o espelho d’água que reflete o edifício do aeroporto antigo e o céu, fazem
com que a praça revele sua persistência e beleza, impondo-se em meio ao abandono. É urgente
que se ponha em prática as ações do Plano de Gestão da Conservação dos Jardins Históricos de
Burle Marx no Recife (2019) oficializado pela Secretaria do Meio Ambiente e de Sustentabilidade
da Prefeitura do Recife para recuperar os atributos artísticos, históricos e botânicos desse
jardim. Ao lado disso se faz necessária a inclusão desse conjunto no inventário de arquitetura
moderna pernambucana.

Referências

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Recife/Guararapes – Gilberto Freyre. Recife: Aena Brasil, 2020.

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DIARIO DE PERNAMBUCO. Jardim e urbanismo. Recife está ficando feia e ninguém move uma palha.
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576
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SÁ CARNEIRO, Ana Rita.; SILVA, Joelmir Marques.; VERAS, Lúcia Maria de Siqueira Cavalcanti.; SILVA,
Aline de Figueirôa. The complexity of historic garden life conservation. CECI/ICCRON, 2011.

577
VAZIO LEGAL – REFLEXÕES SOBRE A GESTÃO DOS ESPAÇOS PATRIMONIALIZADOS NO
CENTRO TOMBADO DE GOIÂNIA-GO
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Arthur Henrique Araújo Vieira


Arquiteto e Urbanista; Mestrando do programa de Pós-Graduação em Conservação e
Restauração de Monumentos e Núcleos Históricos (MP-CECRE) da UFBA;
arthurvieira494@gmail.com.

Tornam-se cada vez mais urgentes reflexões sobre os desdobramentos da noção de patrimônio
e as ações de intervenção nos espaços patrimonializados na cidade contemporânea. Sob este
enfoque, percebe-se conflitos entre a gestão do espaço urbano e a salvaguarda do patrimônio,
criando vazios legais e projetos de intervenção que fazem uso da cultura como estratégia para
espetacularização do patrimônio, sobretudo de forma rentável aliada ao seu potencial turístico,
alterando e/ou, até mesmo, destruindo valores que ancoram os processos de patrimonialização
desses espaços da cidade. Portanto, neste artigo, procura-se examinar o desenvolvimento das
políticas patrimoniais nas últimas décadas em Goiânia/GO, os projetos de intervenção no espaço
patrimonializado e, por fim, as transformações da sua paisagem.
Palavras-chave: Espaço Patrimonializado; Intervenção; Paisagem; Goiânia;

Reflections about the unfolding of the notion of heritage and the actions of intervention in
heritage spaces in the contemporary city are becoming increasingly urgent. From this
perspective, conflicts between the management of urban space and the safeguarding of heritage
are perceived, creating legal vacuums and intervention projects that make use of culture as a
strategy for the spectacularization of heritage, especially in a profitable way allied to its tourist
potential, altering and/or even destroying values that anchor the processes of patrimonialization
of these spaces in the city. Therefore, this article seeks to examine the development of heritage
policies in recent decades in Goiânia/GO, the projects of intervention in the patrimonialized space
and, finally, the transformations of its landscape
Keywords: Patrimonialized Space; Intervention; Landscape; Goiânia.

578
1 - Introdução
Há muito as discussões sobre cultura vêm sendo ampliadas, em especial aquelas acerca da
gestão dos conjuntos urbanos protegidos em que a salvaguarda desses espaços deve fazer parte
das políticas de desenvolvimento socioeconômico a ser consideradas pelos gestores públicos na
elaboração de planos de ordenamento urbanístico. Para tanto, os encontros internacionais que
tratam da preservação desses conjuntos e a sua função na contemporaneidade, recomendam
por meio das Cartas Patrimoniais a sua apreensão multidimensional, a partir das relações entre
os diversos agentes urbanos e os processos de atribuição de valores que ancoram a
patrimonialização desses espaços na cidade. (CURY, 2004)
Castriota (2007) aponta para o deslocamento do “tipo de objeto” das políticas de preservação
dos sítios históricos, muitas vezes entendidas a partir do conjunto homogêneo e na ideia da
cidade como obra de arte, alcançando agora a compreensão da cidade como artefato construído
coletivamente ao longo do tempo, em que se estratificam valores, símbolos e criam-se relações
entre cultura e espaço construído.
A Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) reflete os novos deslocamentos conceituais do
patrimônio, bem como articula as práticas de preservação com as de controle urbano. Sob este
enfoque, incorpora na legislação brasileira a noção de patrimônio cultural e os seus
desdobramentos para além da materialidade dos bens patrimonializados, alcançando, portanto,
o Patrimônio Imaterial e os planos de conservação integrada. Enfatiza ainda, como aponta
Pinheiro (2013), a participação da municipalidade nas políticas de preservação, visto que na
esfera municipal pode-se apreender de forma mais clara ações sobre o patrimônio e o sobre o
tecido urbano vivo das cidades.
A partir desse quadro, é inevitável questionar o papel dos gestores públicos no que se refere aos
centros históricos, que apesar das ampliações conceituais apresentadas por ora ainda se limitam
a uma visão tradicional do patrimônio ligada aos monumentos isolados e ao instrumento do
tombamento como único articulador entre as políticas de salvaguarda e as políticas de
desenvolvimento urbano sem apresentar, portanto, diretrizes claras para a preservação desses
espaços patrimonializados na formulação das políticas urbanas e no desenvolvimento da sua
função social, aspecto basilar presente no Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001), principal
orientação que associa a preservação do patrimônio ao desenvolvimento urbano.
A partir desse conflito, Sant’Anna (2015), por sua vez, alerta para o “vazio legal” produzido a
partir do tratamento isolado das políticas patrimoniais, notadamente ligadas a disputa entre
proteger o patrimônio cultural versus gerir o espaço urbano o que, ainda segundo a autora, o

579
deixa livre para projetos de intervenções urbanas oportunistas que muitas vezes alteram ou até
destroem valores arquitetônicos, urbanísticos e paisagísticos que ancoraram os processos de
patrimonialização desses espaços na cidade.
Assim como em outras cidades brasileiras, em Goiânia não existe articulação entre o
desenvolvimento urbano e as políticas de salvaguarda, ficando estas reduzidas à projetos de
renovação e requalificação do centro tradicional, numa iniciativa de promoção do patrimônio,
sobretudo de forma rentável aliada ao seu potencial turístico. Este quadro se inicia na década
de 1980, notadamente ligado as primeiras ações de preservação do patrimônio goianiense,
acentuando-se, mais tarde, a partir da ampliação do acervo patrimonial e a instituição do
tombamento federal pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em
2003. Notada ampliação não gerou correspondentes legais, tampouco estimulou projetos de
envergadura que caminhassem para além do restauro da materialidade dos bens e alcançassem,
portanto, seu sentido na dinâmica urbana contemporânea.

Figura 01: Mapa de localização e acervo tombado da cidade de Goiânia/GO;

Fonte: Acervo do autor

Neste artigo, que contempla a pesquisa sendo realizada no âmbito do Mestrado Profissional
em Conservação e Restauração de Monumentos e Núcleos Históricos (MP-CECRE) da

580
Universidade Federal da Bahia, intitulada Elaboração de Normas e Critérios de Intervenção para
a Poligonal de Tombamento do Centro Histórico de Goiânia-GO, procura-se examinar o
desenvolvimento das políticas patrimoniais nas últimas décadas na capital goiana, os projetos
de intervenção no espaço patrimonializado e, por fim, as transformações da paisagem que o
vazio legal tem implicado.

2 - Os períodos de degradação e as intervenções urbanas


A década de 1990 assiste ao início de uma nova fase do planejamento urbano em Goiânia, por
meio do crescente número de propostas de intervenções urbanas para a região central da
capital. Essa nova fase, conforme Vargas e Castilho (2006), compreende um processo comum às
cidades contemporâneas e surge em decorrência da própria dinâmica urbana, sucedendo um
período de deterioração/ degradação, ocasionado pelo crescimento e expansão do espaço
urbano e o surgimento de novas centralidades.
Em Goiânia, o período entre as décadas de 1950 e 1980 é marcado pelo “desplanejamento” e
pela fragmentação do tecido urbano (GONÇALVES, 2002, p. 145) em que a ocupação do solo da
cidade assume características específicas, voltando-se para os interesses da iniciativa privada e
dos proprietários de terra: a) a verticalização de novos bairros, associada aos interesses dos
empreendedores imobiliários que buscavam a ampliação do mercado consumidor; b) a
expansão horizontal extensiva, com densidade rarefeita e a conurbação com os municípios
vizinhos; c) ações de grupos sociais excluídos do processo de urbanização, de forma organizada
forçam a ocupação dos espaços vazios na cidade.
Ao mesmo tempo em que a cidade se expande, o setor central enfrenta os primeiros sinais de
abandono e assiste ao êxodo da população de classe de renda mais alta e das atividades de
maior rentabilidade, como o mercado de luxo e instituições financeiras, sendo substituídas pelo
mercado informal de rua. A saída dessa parcela da população do centro não significou a sua
ocupação pela população de menor renda, que se manteve limitada aos novos bairros e
conjuntos habitacionais implantados na periferia da cidade, longe do centro urbanizado.
A perda do apelo residencial na região central de Goiânia intensificou o processo de
esvaziamento, contribuindo para a construção da imagem de deterioração presente
constantemente nos veículos midiáticos, associada, especialmente, à destruição do espaço
público e de representantes da arquitetura dos anos da construção da capital entre as décadas
de 1930 e 1940. Pode-se afirmar que esse quadro estimulou ações diretas da população em
busca da preservação destes representantes, levando em 1980, ao alargamento da Lei Estadual

581
de N.º 8.915 que dispõe sobre a proteção do patrimônio histórico e artístico do Estado de Goiás,
passando a incorporar dezessete bens imóveis da cidade de Goiânia à lista de bens
patrimonializados do Estado1.
O reconhecimento do patrimônio goianiense na década de 1980, estabeleceu as bases para o
processo de recuperação do centro de Goiânia, pautado principalmente na preservação de sua
história. Todavia, as propostas de intervenção urbana, executadas ou não, apresentaram
objetivos e estratégias que se distanciaram do discurso inicial de bases preservacionistas.
Recuperar o centro de Goiânia significou, entre outros aspectos, reconstruir a imagem de centro
urbano moderno e planejado, por meio de ações que atraíssem novos investimentos, a
população e turistas, a fim de dinamizar a economia local. Na Tabela 1, constam enumeradas os
projetos de intervenção para o Setor Central de Goiânia nas últimas décadas.

Tabela 01: Projetos propostos e executados para o Setor Central de Goiânia.


Projeto Ano Situação
Projeto Executivo – Avenida Anhanguera 1980 Executado
Revitalização do Setor Central 1995 Não Executado
Projeto Goiânia XXI – Operação Centro/Revitalização 1997/1999 Não Executado
Estudo Preliminar – Ótica do Mobiliário Urbano 1998 Executado
Mobiliário Urbano – Diagnóstico 1998 Executado
Revitalização do Setor Central – Operação Urbana 1998 Executado
Reformulación Urbanística del Núcleo Fundacional de 2000 Não Executado
Goiânia
Concurso Attilio Corrêa Lima 2000 Não Executado
Mercado Aberto da Avenida Paranaíba 2003 Executado
Concurso de Requalificação Paisagística da Avenida 2002/2004 Executado
Goiás
Projeto Cara Limpa 2008 Executado
Vila Cultural – Teatro Goiânia 2008/2013 Executado
Revitalização da Praça Cívica 2015 Executado
Centro de Excelência do Esporte 2002/2016 Executado
Fonte: VAZ, 2002; GOI, 2004; PEREIRA, 2016;

1
Por meio da Lei n.º 8.915 de 13 de outubro de 1980, são salvaguardados bens imóveis nas cidades de
Luziânia, Santa Cruz de Goiás, Jaraguá, Trindade, Natividades, Pirenópolis, Cidade de Goiás, Monte Carlo
e Goiânia (TELLES, 1988)

582
Tais intervenções, apresentaram, especialmente a partir da década de 1990, um caráter
publicitário, associado a construção de uma imagem positiva, em contraposição ao centro
degradado, por meio de projetos de revitalização, requalificação e/ou renovação do espaço
urbano destinados ao turismo e ao lazer. Neste panorama, comum à todas as cidades brasileiras
no final do século XX, caracterizado pela enxurrada de projetos de intervenções, na sua grande
maioria para as regiões centrais das grandes cidades e, conforme discutido por Sant’anna (2017),
cultura e patrimônio passam a ser considerados como recursos indispensáveis para a economia
urbana, atuando como catalisadores na venda e valorização de espaços da cidade.
Neste cenário destacam-se quatro grandes propostas para a revitalização da área, são elas:
Projeto Goiânia XXI – Operação Centro/Revitalização, 1997/1999; Reformulación Urbanistica del
Núcleo Fundacional de Goiânia – um centro para las metropoles, 2000; Concurso Público Attilio
Corrêa Lima, 2000; GECENTRO em 2003. Todas as propostas apresentaram estratégias baseadas
no marketing urbano, por meio de ações pontuais no tecido urbano e a construção de grandes
equipamentos urbanos de caráter midiático, associados ao patrimônio reconhecido e se
potencial turístico.
Todavia, os projetos elaborados na década de 1990 não foram executados na sua completude,
resultado das tensões entre a iniciativa privada e o poder público, o que demonstra certa
fragilidade na gestão do espaço urbano, que são desvinculadas as propostas iniciais dos
produtos finais, provocando rupturas e continuidades na paisagem urbana, bem como a perda
de sua legibilidade.
Quanto à proteção histórico-cultural, não era ainda uma área instituída e garantida por
legislação própria, gerando um vazio legal entre a gestão do espaço urbano e a preservação do
patrimônio, ficando este à mercê de projetos de revitalização. Dessa forma, o período assiste ao
desenvolvimento de um processo que utiliza a cultura como vetor econômico, associado,
principalmente, à indústria patrimonial e a valorização dos sítios urbanos ditos históricos por
meio da disseminação de espaços pasteurizados pelas intervenções urbanas. (JACQUES, 2003;
SANT’ANNA, 2015)
Este quadro se intensifica a partir do reconhecimento pelo Instituto Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN), em 2003, do acervo arquitetônico e urbanístico Art Déco de Goiânia,
quando são tombados 22 edifícios isolados no centro da capital e os traçados dos núcleos
pioneiros de Campinas e Goiânia. Boa parte desse acervo já estava tombado pelo Estado (1980)
e pelo Município (1992), todavia não houveram ações de envergadura que buscassem a sua
preservação, visto que a destruição dos edifícios históricos não pôde ser contida.

583
A paisagem desvelada na qual os elementos déco emergem, embora materialmente seja a
mesma, adquiri um novo valor após o reconhecimento do IPHAN em que o foco das políticas
municipais para o patrimônio volta-se para a área tombada pelo Instituto, com bases nos valores
que ancoraram a sua inserção no rol do patrimônio nacional. Nesse sentido, fragmentos do
Projeto Goiânia XXI e de outras propostas de intervenção elaboradas na década de 1990, sob a
gestão do Grupo Executivo para a Revitalização do Centro de Goiânia (GECENTRO), são
retomados e executados sob a égide da preservação do acervo Art Déco de Goiânia.

3 - Os projetos executados
Inicialmente o Projeto Goiânia XXI – Operação Centro, elaborado entre os anos de 1997 e 1999
pelo escritório goiano GRUPOQUATRO, buscou reverter o processo de deterioração do Setor
Central de Goiânia mediante a elaboração de 21 propostas de intervenção 2, com vistas para a
habitabilidade e para a recuperação dos espaços públicos, por meio da revitalização dos espaços
públicos e/ou construção de equipamentos de lazer e recreação. Sob o comando do GECENTRO,
já em 2002, destas 21 propostas apenas três foram executadas, são elas o projeto da Vila
Cultural – Teatro Goiânia (2008-2013), Centro de Excelência do Esporte (2002-2016) e o projeto
de Revitalização da Praça Cívica (2015).
O primeiro projeto a ser executado foi Vila Cultural e a intervenção na quadra do Teatro Goiânia,
que contou com a valorização de um dos principais expoentes déco da capital goiana, mediante
retirada dos edifícios vizinhos, ressaltando o edifício na paisagem, embora destaca-se sua
fachada posterior vazia dos elementos característicos do movimento artístico da década de
1930, presentes em sua fachada principal. Para o espaço desbastado foi construída uma praça
seca com referências as piazzas italianas sem ligações diretas com o Teatro e, em subsolo, a Vila
Cultural Cora Coralina que abriga atividades de apoio ao teatro, como salas de ensaio, música,
dança, além de atividades diversas voltadas para a recreação e o lazer.
O segundo projeto executado foi a Revitalização da Praça Cívica, inaugurada em 2016. O projeto
financiado pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) Cidades Históricas e coordenado
pelo IPHAN, contou com a retirada completa da massa asfáltica do interior da praça e a

2
1) Projeto Avenida Goiás; 2) Projeto Praça Cívica; 3) Projeto Praça dos Trabalhadores; 4) Projeto Shopping
Aberto; 5) Projeto Centro de Serviços; 6) projeto Teleporto; 7) Projeto Avenidas; 8) Projeto Manzanas; 9)
Projeto Centro Olímpico; 10) Projeto Parque Temático; 11) Projeto Parque dos Buritis; 12) Projeto
Cineteatro Goiânia; 13) Projeto Subárea Paranaíba; 14) Projeto Subárea Buritis; 15) Projeto Subárea
Catedral; 16) Projeto Subárea Centro Olímpico e Botafogo; 17) Projeto Patrimônio Histórico; 18) Projeto
Arte para a cidade; 19)Projetos Normativos; 20) Projeto Incentivo Fiscal; 21) Projeto Centro Vivo;
(GRUPOQUATRO, 1998)

584
substituição por piso drenante, dando fim aos estacionamentos que ocupavam grande parte da
sua área interna sob o discurso de “devolver a praça às pessoas”. (PEREIRA, 2018, p. 310)

Figura 2 – Projeto da Vila Cultural Cora Coralina. Acima, condição anterior à intervenção. Abaixo, estado
atual com a fachada posterior, nova praça e fachada principal.

Fonte: GRUPOQUATRO; Acervo do Autor;

Figura 2 – Antes e depois das intervenções na Praça Cívica de Goiânia.

Fonte: Prefeitura Municipal de Goiânia.

585
A última das três intervenções foi a construção do Centro de Excelência do Esporte, localizado
na Avenida Paranaíba. O projeto pretendia revitalizar a área, que concentra atividades ligadas
ao esporte desde a década de 1940 por meio do Estádio Pedro Ludovico, buscando a ampliação
da capacidade de espectadores e promover partidas televisionadas. As obras do Centro Olímpico
iniciaram-se em 2002 e o projeto foi inaugurado em 2016, o longo período de execução
possibilitou inúmeras alterações resultando em um produto distante da ideia original, de
grandes escalas e rompendo com a paisagem local.
Em síntese, os projetos propostos e executados ao longo das últimas décadas, pautados pelo
discurso da preservação do patrimônio, buscaram a renovação dos espaços da cidade e a sua
inserção em circuitos turísticos por meio de intervenções no seu meio físico e alterações de uso 3
para atender à nova dinâmica urbana.

4 – Considerações finais
Diante do exposto, percebe-se que a gestão dos espaços patrimonializados de Goiânia segue
uma norma, presente ao longo dos últimos 30 anos, que toma o instrumento do tombamento
como único articulador entre a preservação do patrimônio e o planejamento urbano. O
tombamento do acervo Art Déco em 2003 pelo IPHAN reitera esse posicionamento, uma vez
que, apesar da ampliação do acervo arquitetônico e urbanístico patrimonial goianiense
mediante a atribuição de novos valores, não são propostos correspondentes legais que
garantem sua articulação com as políticas de desenvolvimento da cidade e sua inserção na
dinâmica urbana contemporânea.
A formação desse vazio legal, possibilitou a elaboração de uma série de projetos de
requalificação/ renovação urbanas sob o enfoque da preservação do patrimônio, contudo, tais
projetos pouco contribuíram para a preservação dos edifícios valorados, bem como para a
construção de bases legais que auxiliassem a intervenção nos espaços patrimonializados. Os
projetos, portanto, voltam-se para a supervalorização de novos equipamentos urbanos de lazer
e recreação, notadamente ligados a construção de uma nova imagem de cidade associada a
espetacularização do patrimônio e ao seu potencial turístico.

3
Museu da Cidade (antiga Chefiatura de Polícia), Centro Cultural Pioneiros (atual Procuradoria Geral do
Estado), Palácio das Esmeraldas, Centro Audiovisual Marieta Telles machado, Arquivo Histórico Estadual
de Goiás (atual Tribunal de Contas do Estado), Museu Goiano Zoroastro Artiaga, Casa do Patrimônio (atual
sede do IPHAN) (PEREIRA, 2016, p. 319)

586
Finalmente, é possível afirmar que este período, com início na década de 1990 por meio das
primeiras propostas de intervenção, ainda se faz presente, visto que muitos dos problemas
levantados pelos órgão públicos na época de elaboração dos projetos ainda se fazem atuais,
como a efetiva preservação do patrimônio cultural e a degradação dos espaços centrais da
cidade, vítima ainda de intervenções oportunistas em curso que transformam ou até mesmo
destroem os valores que ancoram o processo de patrimonialização, silenciando as vozes do
patrimônio reconhecido.

Referências
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VAZ, Maria Diva Araújo Coelho. Transformações do centro de Goiânia: renovação ou reestruturação?
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2002.

588
O silêncio entre
vozes em diálogo...
A condição de silêncio possibilita ouvir o outro.
Abrange narrativas sobre: um lugar de fala; a
diversidade de discursos em confluência ou em
conflito sobre um mesmo bem; as reapropriações e as
ressignificações do patrimônio. Aborda também as
práticas que se dão através das interfaces promovidas
por diferentes universos, como o da arte (literatura,
cinema, música, dança) e o das redes digitais.
A PAISAGEM EM DIÁLOGO NA CONSERVAÇÃO DOS ESPAÇOS NATURAIS E A
FORMAÇÃO DE IDENTIDADE NO TERRITÓRIO RIBEIRINHO DA COMUNIDADE DO
BODE, RECIFE-PE
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Célio Henrique Rocha Moura


Arquiteto e Urbanista, mestrando do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento
Urbano (MDU/UFPE); Universidade Federal de Pernambuco; celiohrocha@gmail.com.

Lahys Katarina de Barros Alves


Arquiteta e Urbanista, mestranda do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento
Urbano (MDU/UFPE); Universidade Federal de Pernambuco; lahysalves@gmail.com

Dr. Tomás de Albuquerque Lapa


Arquiteto e Urbanista; UFPE, professor titular do programa de pós-graduação em
Desenvolvimento Urbano (MDU/UFPE); thlapa@outlook.com.

Julieta Maria de Vasconcelos Leite


Arquiteta e Urbanista; UFPE, professora do programa de pós-graduação em Desenvolvimento
Urbano (MDU/UFPE); julietaleite@gmail.com

Este ensaio se insere no âmbito da conservação de remanescentes naturais, discutindo a


inserção de populações relacionadas com estes bens no processo de gestão do território. Os
embates entre a gestão tradicional dos ecossistemas, coordenada pelo poder público, e atores
locais, despertam a necessidade de se mediar conflitos a partir da compreensão da relação
intrínseca que as comunidades desenvolvem com a paisagem de tais remanescentes, tendo em
vista que, muitas vezes, as relações humanas com ecossistemas são indissociáveis. Tomando
como objeto empírico de estudo o Parque dos Manguezais (Unidade de Conservação do Recife)
e a comunidade do Bode a este relacionada, discute-se seu empoderamento social na gestão,
entendendo os moradores como agentes ativos na apreensão e manejo do território natural.
Palavras-chave: Comunidade do Bode; Empoderamento Social; Paisagem; Parque dos
Manguezais.

This essay is part of the conservation of natural remnants in the city, discussing the insertion of
populations related to these assets in the management process of the territory. The clashes
between the traditional management of ecosystems, approved by the public authorities, and
local actors, arouse the need to mediate conflicts based on the understanding of the intrinsic
relationship that communities develop with the landscape of these remnants, when human
relations with ecosystems are often inextricably linked. Based on the empirical example of
Parque dos Manguezais (Conservation Unit of Recife) and the related Bode community, its social
empowerment in management is discussed, understanding residents as active agents in the
apprehension and management of the natural territory.
Keywords: Bode Community; Social Empowerment; Landscape; Mangrove Park.

590
1 - Introdução
Historicamente, a relação do ser humano com a natureza faz alusão ao universo simbólico e,
nesse sentido, o meio natural toma as formas que remetem às representações que os seres
humanos fazem sobre ele. Tais representações emergem a partir da relação cultural que estes
entes desenvolvem com o meio ambiente. Segundo Diegues (1994), essa percepção simbólica
convive paralelamente com a visão empírica, que remete à experiência e às percepções
racionais. Por outro lado, a relação dialética do ser humano com a natureza traz à tona o fato
de que, mesmo nas relações tipicamente utilitárias, estão presentes as percepções e relações
místicas ou etéreas.
Bezerra (2017) destaca a paisagem como possuidora de “uma materialidade que precisa ser
desvendada não pela dicotomia entre os dois mundos, mas pela inter-relação que se trava entre
eles” (p.34). Do mesmo modo Ab’Sáber (2003, p.9) assinala que a paisagem é a “herança de
processos fisiográficos e biológicos”, portanto, “patrimônio coletivo dos povos que
historicamente as herdaram como território de atuação de suas comunidades”. A partir da
consideração de que os indivíduos moldam a paisagem de acordo com as relações simbólicas
que estabelecem com o meio, a paisagem resultante seria, nesse caso, fruto da mútua interação
entre o antrópico e o natural.
No processo de manejo dos territórios naturais, estão inseridos valores simbólicos que norteiam
as ações humanas sobre um espaço, sendo necessário considerar as populações inseridas no
contato direto com o meio natural. Nesta perspectiva, o presente ensaio vem a discutir o
empoderamento das vozes das comunidades, no processo de gestão dos ecossistemas que lhes
estão relacionados e nas decisões que afetam diretamente seus modos de vida, considerando a
relação intrínseca da paisagem com seus habitantes. A discussão se dá a partir da observação
do ecossistema de manguezal da cidade do Recife e suas populações, mais especificamente o
Parque dos Manguezais, Unidade de Conservação Municipal e a Comunidade do Bode, Zona
Especial de Interesse Social (Lei de uso e ocupação do Solo – LUOS, 1996).
Relacionando as alegorias de homem-caranguejo com o homem-natureza e caranguejo com
cérebro com o homem-paisagem, constrói-se um diálogo acerca da apreensão destas
populações colocadas à margem dos processos de gestão. Tais populações, exaltadas a partir de
movimentos culturais como o manguebeat, convertem-se em agentes propagadores dos
conhecimentos dos manguezais, cientes de seu território e paisagem.

591
2 - Homem-caranguejo/natureza: a simbiose do ser humano com o meio natural
Os resultados do processo paulatino de ocupação da baía entulhada do Recife são expressos
através da paisagem, remetendo-se ao diálogo constante entre as duas forças preponderantes
na construção deste território, antrópica e natural, cujas dimensões se imbricam
indissociavelmente. No romance “Homens e Caranguejos” (1967), Josué de Castro, faz alusão ao
universo do manguezal e aos seres que nele orbitam e dele sobrevivem. Segundo o autor, os
mangues foram os primeiros conquistadores da baía do Recife, antes caracterizada como uma
vasta planície inundável, cercada por colinas e pelos arrecifes ao leste (BEZERRA, 2017).
Da úmida geografia do território do Recife, emergem as ilhas e depósitos de materiais aluviais,
onde, segundo Castro, fincam-se os mangues “Agarrando-se com unhas e dentes nesse solo para
sobreviver” (CASTRO, 1967, p.14). Simbolicamente, o mangue supera sua condição, enquanto
ecossistema de Mata Atlântica, e passa a construir o solo do que iria se tornar a metrópole que,
contraditoriamente, suprime seus manguezais. O Manguezal, visto como ente consciente, ainda
aparece em outras considerações de Castro:
[...] os mangues foram pouco a pouco entrelaçando suas raízes e seus braços
numa amorosa promiscuidade, e foram, assim, consolidando a sua vida e a
vida do solo frouxo das coroas de lodo, donde brotaram. Com os depósitos
aluvionais que foram se acumulando na trama do labirinto de raízes dos
mangues e debaixo das suas camadas de sombras verdes, foi
progressivamente subindo o nível do solo, e alargando a sua área sobre a
proteção desse denso engradado vegetal. Não há, pois, a menor dúvida, que
toda esta terra que hoje flutua à flor das águas, na baía entulhada do Recife
foi uma criação dos mangues. (p. 14)

Na construção do território, os que ocupam as terras erigidas pelo mangue passam a divinizá-
lo. Aos olhos incompreendidos dos seres humanos “não admira que hoje eles sejam divinizados
pelos habitantes desta área, embora não saibam os homens explicar como o mangue realiza
este milagre de criar terra como se fosse um deus” (CASTRO, 1967, p. 15). Assim, entre
glorificação e simbiose, o autor descreve os habitantes dos mocambos das margens dos rios do
Recife, imersos no ciclo do caranguejo. Esta imagem simbólica na qual Josué de Castro envolve
o mangue faz alusão à condição social das populações ribeirinhas do Recife que se verifica ainda
hoje.
O autor destaca que, convivendo associadamente com o manguezal, homens e caranguejos são
partícipes de um ciclo de retroalimentação, no qual os primeiros alimentam-se dos crustáceos,
presos na lama dos manguezais, enquanto o lixo e os detritos produzidos pelos homens vão
alimentar os caranguejos. O manguezal não apenas é o plano de fundo e locus do fenômeno,

592
mas elemento que fundamenta as relações de simbiose dos seres humanos com seus “irmãos
de leite”, os caranguejos.
A impressão que eu tinha era que os habitantes dos mangues – homens e
caranguejos nascidos à beira do rio – à medida que iam crescendo iam cada
vez mais se atolando na lama. Parecia que a vegetação densa dos mangues,
com seus troncos retorcidos, com o emaranhado de seus galhos rugosos e
com a densa rede de suas raízes perfurantes os tinha agarrado
definitivamente como um polvo... (CASTRO, 1967, p.12).

A assimilação ao caranguejo induz ao entendimento de que, imerso na condição ecológica do


mangue e sua biodiversidade, o homem é desumanizado, uma vez que sua visão sobre o
território se baseia nas necessidades de sobrevivência, metamorfoseando-se em um ser que se
perde na paisagem do mangue, confundindo-se com a lama e os caranguejos.
Sob a ótica da compreensão de Simmel (2009), Veras (2017) faz alusão a uma outra alegoria, a
do homem-natureza. Incorporado a ela “era um sujeito invisível” (P.18), relacionando-se com
seu território, sem compreendê-lo enquanto paisagem. Em contraposição, o “homem-
paisagem” é aquele que se distancia do ambiente e passa a compreendê-lo a partir da
racionalidade. Assim, um é concebido como ser consciente do entorno enquanto o outro está à
margem dessa consciência. Neste sentido, o homem-caranguejo de Castro assemelha-se ao
homem-natureza descrito por Veras, cuja representação pode ser complementada por Filho
(2003) quando questiona:
Qual seria então o significado de homem-caranguejo? No âmbito sociológico
ou mesmo filosófico, o homem-caranguejo encontra-se mergulhado na
particularidade ou vida cotidiana, comprometido fundamentalmente com a
conservação/reprodução de sua vida, não mantendo uma relação consciente
com a genericidade. Nesse caso, não poderia ser considerado um indivíduo,
pelo menos no sentido helleriano do termo. (p.514)

No caso do Parque dos Manguezais, a discussão empreendida pelos autores citados questiona
se os moradores da Comunidade do Bode seriam homens-natureza/homens-caranguejos,
vivendo puramente o ciclo ecológico das raízes do Rizophora e dos crustáceos, ou se são dotados
de consciência sobre o espaço, e, portanto, de plural saber sobre o ecossistema.

3 - O Parque dos Manguezais e a Comunidade do Bode entre caranguejos e paisagem


O Parque dos Manguezais, instituído como Unidade de Conservação pelo Sistema Municipal de
Unidades Protegidas (SMUP – Lei municipal nº 18.014/2014) é um maciço vegetado localizado

593
na Zona Sul da cidade do Recife, mais precisamente no bairro do Pina, em região estuarina da
cidade (Figura 1).
Figura 1: Parque dos Manguezais, mapa e localização.

Foto: Célio Rocha, 2019. Mapa: Google Maps 2021. Edição: Autores.

O processo de levantamento de dados da presente investigação correspondeu ao período de


março/2019 até maio/2019, durante o qual foram realizadas entrevistas semiestruturadas
compreendendo um total de 18 moradores da Comunidade do Bode, no entorno do Parque dos
Manguezais. Por meio das entrevistas, foram colhidas as principais percepções dos habitantes
sobre o ecossistema, sobre o território como um todo e sobre a paisagem, com o objetivo de
apreender suas impressões sobre o manguezal.
A Comunidade do Bode é pioneira no histórico de ocupação do bairro do Pina, tendo deixado
neste território as marcas da relação dialética entre o ser humano e a natureza. Desde o século
XVII, nas terras do charco, ao sul do que se consolidava como núcleo da urbanização do Recife,
foram erguidos os primeiros casebres. Ali, alguns habitantes se aglomeraram e passaram a viver
das atividades de pesca para subsistência e comercialização (SILVA, 1990).
Essa comunidade e as demais do entorno, invisibilizadas nos processos sociais e políticos da
cidade, podem ser relacionadas com a alusão do homem-caranguejo de Josué de Castro, quando
o autor disserta sobre a fome nas beiras de rio no Recife, e as condições insalubres de vivência
nos manguezais. No caso da comunidade citada, as áreas de contato com o manguezal são
ocupadas por palafitas, substitutas dos mocambos descritos por Josué de Castro, porém
igualmente insalubres (Figura 2):

594
Figura 2: Palafitas da Comunidade do Bode, no Pina.

Foto: Célio Rocha, 2019.

A contraponto das adversidades, as entrevistas realizadas com moradores da Comunidade


revelaram que, nas relações diárias de subsistência com o manguezal, experienciam a paisagem
ao contemplá-la e senti-la, remetendo a uma relação polissensorial com o meio. Das percepções
do sentido, emerge a conscientização sobre a paisagem da Unidade de Conservação, descrita
através dos aspectos cênicos relativos às suas águas, flora e fauna:
O canto dos pássaros quando dá cinco da tarde, você vê a maré cheia, você
vê uma paisagem. É bonita.1

Quando nós vê (sic) aquelas imagem do manguezal dali da ponte com a


lancha. Ali é um canal bonito. 2

Fica evidente que estes indivíduos desenvolvem uma relação afetiva com o meio em que vivem
que ultrapassa as relações puramente utilitárias. Por meio de uma consciência empírica,
destacam os elementos que despertam êxtase ou prazer. Porém, concomitantemente, a
consciência sobre o manguezal emerge e os faz produzir uma representação deste não apenas
como refúgio espiritual, sensorial mantenedor da vida, como também enquanto território
dotado de contradições e identidade simbólica. Daí, pode-se considerar que provém a inspiração
do movimento cultural Manguebeat, que emerge dos mangues do Recife.

3 - Caranguejos com cérebro/homens-paisagem: a tomada de consciência do meio


No ano de 1992, Fred Zero Quatro – Jornalista, Cantor e Compositor, fundador da banda Mundo
Livre S/A – escreve o Manifesto Caranguejos com Cérebro, anunciando o movimento
Manguebeat que, um ano antes, já aflorava das lamas do manguezal, do hip-hop e do pop, com

1
Mulher, 43 anos, Pedreira, moradora da comunidade desde que nasceu.
2
Homem, 49 anos, Pescador e Ajudante de Pedreiro, mora na comunidade há 1 ano e meio.

595
fortes influências culturais de Pernambuco, como o Maracatu. Simbolicamente, utilizando a
imagem de uma antena parabólica enfiada na lama – até então símbolo da comunicação
mundial– o manifesto anunciava:
Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso
ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um
sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar
e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar
os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que
paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar
as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e
estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife. (FRED ZERO
QUATRO, 1992)

Para muito além da referência à ecologia, o manifesto Caranguejos com Cérebro denunciava as
contradições das lamas do Recife, segundo o qual: “Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas,
inimigos das donas-de-casa, para os cientistas são tidos como símbolos de fertilidade,
diversidade e riqueza”. Assim emerge o Manguebeat, da mesma lama dos homens-caranguejo
de Josué de Castro. Porém, dessa vez, através da parabólica, manifestam ao mundo as
incongruências da “Quarta pior cidade do mundo”3 ou da Manguetown.
O homem-natureza invisível na paisagem, o homem-caranguejo invisibilizado politicamente,
dotados agora de “cérebro”, consciência, falam e denunciam as contradições sociais da cidade.
Emergindo da lama, dotados de senso crítico e percepção da realidade que os rodeia, passam a
ganhar voz, sendo o Manguebeat o interlocutor universal para quebrar as barreiras impostas
pelas condições de habitabilidade do manguezal. Filho (2003) destaca:
A exclusão social, hipertrofiando a parte (caranguejo), reforçou a
sinédoque: os habitantes dos mangues foram desumanizados e
transformados em “caranguejos”. Se Josué de Castro vai até aqui, o ideário
do Movimento Mangue continua a transformar. Esses “caranguejos” que
foram esquecidos pelo modelo de desenvolvimento excludente, assinala o
título Manifesto, têm cérebro. Um caso de personificação (transformação
do caranguejo em homem) ou de reumanização do que foi desumanizado?
A última opção parece mais plausível (p.518).

No caso específico da Comunidade do Bode, as entrevistas realizadas com os moradores revelam


que, tal qual as denúncias cantadas pelos integrantes do movimento Manguebeat, os
moradores estão cientes das pressões exercidas pela cidade formal na comunidade:
É criado empresariais, é criado Shoppings... enfim, não muda em nada na vida
das pessoas ao redor, na vida das comunidades ao redor, muito pelo

3
Música “Antene-se”, do álbum “Da Lama ao Caos”, Chico Science & Nação Zumbi (1994).

596
contrário, isola a população, faz as pessoas realmente entenderem que o
espaço delas não é esse e que elas vão viver sempre cercadas.4

É criado muita coisa em cima das casas, não tendo espaço pra própria galera
que mora lá....É como se cada vez fosse isolando mais o lugar com prédios ao
redor...É como se a galera lá de dentro estivesse sendo excluída, sabe? Como
se tivesse uma barreira... e existe gente ali, há existência ali. E cada vez mais
vão tirando o Manguezal, vão tirando área da galera que sempre teve isso pra
construir prédio, construir.5

A visão do homem-caranguejo, alcunha tradicional aplicada aos habitantes do mangue, se


mostra incompatível com os viventes da Comunidade, denunciantes das condições do
manguezal. Essa concepção é fundamental, pois, em se tratando dos moradores da Comunidade
do Bode, historicamente excluídos da dinâmica urbana, admite-se que eles são conscientes de
sua realidade e, consequentemente de seu território e sua paisagem.
Segundo Veras (2017), tal conhecimento empírico das áreas de manguezal pode ser entendido
como um paralelo à tomada de consciência sobre seu entornoe sobre a paisagem.
“[...] entre ser e apreender instaura-se uma cisão contraditória entre o
homem-natureza apartado do homem-paisagem. Enquanto natureza, o
homem sentia a paisagem sem compreendê-la como tal; enquanto paisagem,
distancia-se da natureza para compreendê-la como paisagem” (p.18).

Contrapondo-se à figura do homem-natureza/homem-caranguejo, o homem-paisagem toma


distância do meio e se torna capaz de formular um pensamento crítico acerca da paisagem na
qual está imerso, aludindo ao “caranguejo com cérebro”. Neste sentido, a consciência da
paisagem, entendida enquanto mediadora do homem, sua subjetividade e seu exterior, pode
ser considerada como instrumento de empoderamento.
No Parque dos Manguezais, o debate progressivo da inserção das populações em processos
decisórios é atualmente urgente, pois a Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade da
Prefeitura do Recife tem avançado nos trabalhos para elaboração dos Planos de Manejo de
Unidades de Conservação.

Conclusão
Com o auxílio das alegorias descritas de homem-caranguejo, homem-natureza, caranguejos com
cérebro e homem-paisagem, é possível discutir acerca de diferentes perspectivas que permeiam
o campo da literatura, da música e da academia sobre os indivíduos que convivem, apreendem

4
Mulher, 36 anos, Pescadora, moradora da comunidade há 32 anos.
5
Mulher, 24 anos, Estagiária ADM, moradora da comunidade desde que nasceu.

597
e moldam o espaço. Esta discussão enriquece o debate sobre o empoderamento das vozes
populares em processos decisórios, pois, por meio de símbolos, salienta a condição humana
enquanto ser pensante e reflexivo sobre o meio em que vive.
A percepção dos moradores de comunidades, correlacionados diretamente com seu território,
apoia-se na própria natureza híbrida da paisagem que conjuga o natural e o cultural. Dessa
maneira, o ser humano torna-se um agente ativo na compreensão e construção desta,
permitindo que se discuta o papel dos indivíduos não somente enquanto pessoas imersas na
natureza, como também dotadas de notável saber sobre este território e a paisagem.
A inserção dos indivíduos no processo de conservação da paisagem dos remanescentes naturais
na cidade é fator imprescindível. No caso específico do Parque dos Manguezais, os indivíduos
historicamente relacionados são dotados de consciência sobre o ecossistema que os cerca,
desenvolvida empiricamente ou transmitida por gerações de pescadores e pescadores que,
tradicionalmente, desenvolvem atividades de subsistência e técnicas de manejo no ecossistema.
Agregar os habitantes de comunidades situadas em áreas protegidas, à gestão pública torna-se
relevante a partir do entendimento de que, estando intimamente relacionados com o bem, são
os principais atores impactados pelas ações da gestão que os converte em agentes estratégicos
para a conservação do ecossistema. Levar em conta suas percepções sobre a paisagem e como
se inserem e se inter-relacionam, pode contribuir para a salvaguarda dos seus valores, bem
como da Comunidade e do modo de viver historicamente impresso na paisagem, visto como seu
atributo identitário.
Por fim, a cidade deve ser entendida como fenômeno complexo, fruto de processos históricos e
sociais que moldaram seu território, do qual a paisagem emerge como uma resultante.
Compreender a paisagem por meio da percepção dos atores envolvidos que, necessariamente,
a evocam nas suas vivências cotidianas, significa compreender os processos sociais e culturais,
que se converterão em ferramenta fundamental na elaboração dos planos de manejo de
remanescentes naturais. Mais que ecossistemas de relevantes características biológicas e
geológicas, os remanescentes naturais representam uma forma de emancipação dos povos
relacionados ao manguezal que, da lama, quiçá poderão voar um dia:

Nada como o firmamento


Para trazer ao pensamento
A certeza de que estou sólido
Em toda a área que ocupo1

598
E a imensidão aérea
É ter o espaço do firmamento
No pensamento
E acreditar em voar algum dia1

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FILHO, Djalma Agripino de Melo. Mangue, homens e caranguejos em Josué de Castro: significados e
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de Siqueira Cavalcanti et al. (Org.). Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, v.2. João Pessoa: Patmos
Editora, 2017. p. 16-33.

1
Música “O Encontro de Isaac Asimov com Santos Dumont no Céu", do álbum “Afrociberdélia”, Chico
Science & Nação Zumbi (1996).

599
A ARQUITETURA MODERNA BRASILEIRA PARA ALÉM DOS ARQUITETOS: as
residências projetadas por não arquitetos na cidade de João Pessoa nos anos 1960
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Surama Batista Vieira da Costa


Mestranda em Arquitetura e Urbanismo; PPGAU/UFPB; suramavieira@gmail.com.

Após a consolidação da arquitetura moderna brasileira, assistiu-se, na década de 1950, sua


disseminação pelo país. Como resultado dessa ampla aceitação por parte, sobretudo, da classe
média que crescia em número nessa época, o vocabulário formal do moderno foi assimilado por
engenheiros, mestres de obras e desenhistas, principalmente em cidades que possuíam um
quadro reduzido de arquitetos. Enquanto a historiografia consolidou a arquitetura moderna
erudita em sua narrativa, aquela realizada paralelamente por outros profissionais vem sendo
descartada, fazendo-se necessária a abertura de espaços para que ambas dialoguem. Para dar
voz a essa produção, objetivou-se identificar e analisar a apropriação de elementos formais
modernos nas moradias projetadas por não arquitetos e edificadas na cidade de João Pessoa,
na década de 1960.
Palavras-chave: arquitetura moderna brasileira; apropriação; popularização; não arquiteto;
João Pessoa.

After Brazilian modern architecture was consolidated in the 1950s, it got disseminated
throughout the country. The modern architecture was widely accepted by the middle class,
which was growing in number at that time. As a result of this acceptance, the formal modern
vocabulary was assimilated by engineers, master builders and designers, especially in cities
where the number of architects were limited. While historiography consolidated modern erudite
architecture in its narrative, the one carried out in parallel by other professionals has been
discarded. In this sense, it is necessary to open spaces for both of them to dialogue. In order to
give voice to this production, the objective of this article was to identify and analyze the
appropriation of modern formal elements in houses built in the city of João Pessoa, in the 1960s,
designed by non-architects.
Keywords: Brazilian modern architecture; appropriation; popularization; non-architect; João
Pessoa.

600
1 - Uma voz silenciada pela historiografia dominante
A arquitetura moderna brasileira consolidou-se, em meados dos anos 1940, após ganhar alcance
internacional através da exposição Brazil Builds, organizada pelo arquiteto norte-americano
Philip L. Goodwin, em 1943, no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), e da publicação
de livro homônimo, uma espécie de catálogo da exposição, também de autoria de Goodwin.
Afora o reconhecimento estrangeiro, a conquista do apoio do Estado, no contexto nacional,
desempenhou um importante papel na aceitação dessa produção no país. Nesse sentido,
escritórios governamentais encontraram na arquitetura uma ferramenta eficiente para
construir uma imagem moderna, gerando “um volume de experimentos capaz de permitir um
salto, não só quantitativo, mas também de qualidade, que garante a afirmação do movimento
brasileiro” (TINEM, 2006, p. 16).
O panorama geral da década seguinte, conhecida como “anos dourados” do país “pelo otimismo
de suas promessas, relativa estabilidade democrática e econômica e uma classe média que
crescia em importância, adotando um modo de vida mais urbano” (LARA, 2005a, p. 178),
beneficiou a disseminação da arquitetura moderna por todo o Brasil. O acelerado crescimento
populacional e das áreas urbanas experenciado pelo país nos anos 1950 foi acompanhado pela
intensificação do papel do Estado no desenvolvimento da autoimagem da nação – sobretudo no
governo de Juscelino Kubitscheck (1956-1961) –, estimulando a sociedade para a ideia de
modernização.
Assim, como um “fenômeno de moda” ou “signo de status” (LARA, 2005a), largos e significativos
estratos da população brasileira começaram a adotar elementos da arquitetura moderna como
um valor, capaz de expressar seu desejo de modernidade, traduzido, sobretudo nas fachadas de
suas residências. Consequentemente, em paralelo as manifestações eruditas da arquitetura
moderna brasileira, aqui entendidas como aquelas projetadas por arquitetos, o vocabulário
formal moderno passava a ser repetido por construtores populares e engenheiros em cidades
de todo o Brasil, como explica Segawa:
A repercussão internacional da moderna arquitetura brasileira representou,
no plano doméstico, uma legitimação e um reconhecimento social inéditos
para uma categoria e para uma prática profissional, até então visível como
uma derivação da engenharia ou apenas uma atividade artística associada à
construção. Elementos formais dessa arquitetura de prestígio foram
apropriados como modismo, quer por construtores populares (às vezes com
ingênua elegância), quer por engenheiros, tão ciosos quanto ignorantes do
conteúdo arquitetônico por trás dessas formas. [...] Cidades em todo Brasil
que expandiam seus limites urbanos nos anos 1950-1960 formaram
verdadeiros repositórios dessa arquitetura imitativa – às vezes, alcançando
resultados agradáveis ou, no mínimo, toleráveis (SEGAWA, 2002, p.129).

601
Diferente do que aconteceu em países do hemisfério norte, a disseminação da arquitetura
moderna, no Brasil, foi mais ampla e mais profunda, penetrando gradualmente até a classe
média baixa. O modernismo brasileiro popularizou-se, “chegando a se inserir no cerne da
identidade nacional” e a representar um papel fundamental na cultura do país a partir daí (LARA,
2005b). Desse modo, alguns elementos arquitetônicos começaram a se repetir nas fachadas das
residências por todo o país: volumes prismáticos, pilares em “V”, telhados invertidos, azulejos,
brises e cobogós, marquises inclinadas sustentadas por colunas de metal.
Apesar desse cenário e do crescente número de estudos voltados para a arquitetura moderna
brasileira, poucos trabalhos abriram espaço para discutir a produção realizada por um
“contingente de pessoas que não tinham formação em arquitetura [...], mas que foram
responsáveis por construir uma quantidade enorme de edifícios em diversas cidades brasileiras,
sobretudo, naquelas cidades onde a presença de arquitetos era quase nula” (ALMEIDA, 2015, p.
147). De fato, a própria historiografia arquitetônica consolidou a produção erudita em sua
narrativa, consagrando edifícios emblemáticos e a genialidade de alguns arquitetos
modernistas, não contemplando em seus discursos a arquitetura realizada paralelamente por
outros profissionais que, à época, podiam assinar projetos e muito contribuíram para a
construção da imagem moderna de nossas cidades.
Diante do exposto, este artigo volta o seu olhar para a produção moderna popular1 residencial,
assumida nos termos desta pesquisa como aquela desenvolvida por não arquitetos, sendo essa
uma expressão, ao menos quantitativamente, relevante nas paisagens urbanas brasileiras,
apesar de, em geral, marcada por uma maior simplificação formal. Essa arquitetura, além de
representar uma lacuna a ser investigada, tem sofrido com a descaracterização e demolição de
seus exemplares, tornando-se pertinente e urgente o resgate de parte da história da cidade
através do registro e análise dessa produção. A abertura de espaço para estudar esse complexo
processo de assimilação do modernismo por não arquitetos permite reconhecer a pluralidade
da produção brasileira vinculada ao movimento moderno, criando uma oportunidade para
“estabelecer uma dialética e arejar a produção erudita” (GUIMARAENS; CAVALCANTI, 2006
[1979], p. 12).
Para observar esse fenômeno, foi adotado como recorte espacial a Avenida Presidente Epitácio
Pessoa, importante eixo de estruturação da expansão urbana da cidade de João Pessoa, capital

1
Os termos “erudito” e “popular” foram adotados no âmbito desta pesquisa com o intuito de permitir a
distinção entre a produção arquitetônica de arquitetos e a de outros profissionais não arquitetos. Não se
pretende com isso estabelecer uma oposição rígida entre uma arquitetura dita “erudita” e outra
“popular”.

602
da Paraíba. Como recorte temporal, destacamos a década de 1960, uma vez que esse período
compreende o processo de difusão da arquitetura moderna na capital, ocorrida na sequência da
produção erudita, de meados dos anos 1950, mais valorizada na historiografia local.
Este estudo tem como objetivo principal identificar e analisar como elementos próprios do
moderno foram apropriados nas edificações projetadas por não arquitetos, buscando
estabelecer um diálogo entre as variadas manifestações do moderno no contexto local. Para
melhor abordar a temática, o artigo está estruturado em duas partes: primeiramente,
identificaremos os arquitetos que exerceram a profissão na cidade e algumas das obras mais
relevantes construídas nos anos 1950, na Avenida Epitácio Pessoa; na segunda parte, olharemos
para a outra produção, assinada por não arquitetos, analisando o emprego do vocabulário
moderno em suas obras.

2 - O moderno erudito em João Pessoa


De acordo com Pereira (2008), o quadro de arquitetos atuantes em João Pessoa passava por
uma renovação na década de 1950 com a chegada de profissionais de formação moderna
vindos, sobretudo, de Recife e do Rio de Janeiro. Entre eles destacaram-se os arquitetos:
Roberval Guimarães, paraibano que iniciou sua atuação em 1950 após retornar de seus estudos
no Rio de Janeiro; Acácio Gil Borsoi, carioca radicado no Recife desde 1951 e que passou a
realizar inúmeros projetos em João Pessoa a partir de meados de 1954; Mario Di Lascio, também
paraibano, começou a trabalhar na cidade após formar-se pela Escola de Belas-Artes de
Pernambuco (EBAP), em 1957; nesse mesmo ano, o baiano Leonardo Stuckert, formado no Rio
de Janeiro, também se instalou em João Pessoa, mantendo aqui uma curta permanência. Nos
anos 1960, somaram-se a esses profissionais os arquitetos Tertuliano Dionísio da Silva,
paraibano, e o potiguar Pedro Dieb, ambos egressos da EBAP; em 1963, o paraibano Carlos
Alberto Carneiro da Cunha iniciava seu exercício profissional na cidade, embora radicado no
Recife, onde se formara.
Dentre essas figuras que compunham o exíguo quadro de arquitetos em atividade na capital
paraibana, a historiografia nacional e local destaca a trajetória do arquiteto Acácio Gil Borsoi
pelo importante papel desempenhado na difusão da arquitetura moderna no Nordeste. Em João
Pessoa, a produção de Borsoi tinha uma clientela de alto poder aquisitivo, ocupando,
principalmente, os caminhos por onde a cidade se expandia e modernizava, estando a maioria
de seus projetos situados na Avenida Epitácio Pessoa ou nos bairros a ela conectados.

603
Aberta oficialmente em 1920, a referida via representou a primeira ligação mais consequente
entre as áreas central e litorânea da cidade, estruturando a expansão da malha urbana ocorrida
nas próximas décadas. Mas foi só quando recebeu sua primeira pavimentação de
paralelepípedos, em 1952, que a Avenida Epitácio Pessoa começou a valorizar-se e sua ocupação
tornou-se mais efetiva, originando novos bairros nas áreas adjacentes ao seu percurso e
incorporando, definitivamente, as praias de Cabo Branco e Tambaú à cidade (figura 01).
Esse processo foi impulsionado pelo próprio Governo Estadual que promoveu a construção de
dois conjuntos habitacionais às margens da avenida: os atuais bairros Expedicionários e Miramar
(COUTINHO, 2004, p.115). Este último, construído com financiamento da Caixa Econômica
Federal, foi noticiado como “situado num dos pontos mais saudáveis de João Pessoa” e como
“um dos mais belos e confortáveis conjuntos residenciais desta Capital [...] Planejado de acordo
com a moderna técnica de urbanismo” (UM NOVO, bairro..., 1950, p.5 apud CHAVES, 2012, p.
94). Com esses incentivos, o percurso atraiu uma classe média e média alta, seduzida pela
infraestrutura e pela proximidade com a praia, espaço de lazer que se tornou mais estimado. Os
bairros contíguos à avenida ocupados até então – Tambaú e Torre – também passaram a ser
cobiçados, devido ao status atribuído à via, como confirma artigo do Jornal A União, de 1957:
[...] a Torre, agora Santa Júlia, que era considerado pela sua situação fora do
perímetro urbano um local pouco propício a moradia, teve nos últimos
tempos seus terrenos muito mais valorizados em virtude da excelente
situação climática que possue [sic] a sua topografia e altitude, sendo agora
um dos locais preferidos para as novas e melhores construções, ao lado de
Tambauzinho, Tambaú, Miramar e outros de planejamento em núcleos.
(CRESCIMENTO urbano, 1957, p.3 apud CHAVES, 2012, p. 97)

Figura 01: Planta da cidade de João Pessoa de 1953. A pavimentação e melhorias na infraestrutura da
Avenida Epitácio Pessoa (trajeto marcado em azul) possibilitaram o planejamento de novos bairros ao
longo de seu percurso. (A) Torre, (B) Estados, (C) Expedicionários, (D) Tambauzinho, (E) Miramar, (F)
Tambaú, (G) Cabo Branco.

Fonte: Acervo pessoal de Wylnna Vidal.

604
Paralelamente ao surgimento de conjuntos habitacionais ao longo da Avenida Epitácio Pessoa,
lotes de maiores dimensões, especialmente em setores dos bairros dos Estados e Torre, eram
ocupados por edificações pertencentes a uma população de alta renda. Ricos agricultores e
comerciantes da Paraíba construíam suas mansões na avenida, demonstrando seu poder
aquisitivo através de uma nova arquitetura: a moderna. Nesse contexto, destacam-se as obras
projetadas pelo arquiteto Acácio Gil Borsoi, entre elas a Residência Cassiano Ribeiro Coutinho
(figura 02), edificada na via na altura do bairro da Torre, em 1955, e a Residência Joaquim
Augusto da Silva (figura 03), executada em 1957, no bairro dos Estados.

Figura 02 e figura 03: Residência Cassiano Ribeiro Coutinho, n° 1090, bairro da Torre, edificada no ano
de 1955 (esq.); Residência Joaquim Augusto da Silva, n° 2025, no Bairro dos Estados, construída em
1957 (dir.). Ambas as casas são projeto do arquiteto Acácio Gil Borsoi.

Fonte: respectivamente, PEREIRA (2008); Acervo Pessoal (2013).

Dentre as características formais recorrentes nesses projetos de Borsoi, podemos destacar a


presença de volumes trapezoidais, o uso de materiais in natura, a preocupação com o clima local
através do uso de venezianas e cobogós, a exposição de sistemas e elementos construtivos e o
a integração com as artes plásticas por meio do uso de painéis ou volumes revestidos por
trabalhos de pintura em azulejo.

3 - O moderno de não arquitetos


Enquanto os cursos de arquitetura existentes no país eram poucos até o final dos anos 1960, a
década de 1950 foi marcada pela autorização de vários cursos de engenharia na região
Nordeste: Alagoas, Ceará e Recife, em 1955, e Rio Grande do Norte, em 1959. Dentro desse
cenário de investimento no campo da engenharia, no ano de 1952, foram fundadas a Escola de
Engenharia da Paraíba, situada em João Pessoa, cujo funcionamento foi aprovado pelo Governo
Federal em 1956, e a Escola Politécnica da Paraíba, em Campina Grande, que rapidamente
começou a funcionar, em 1953 (PEREIRA, 2008, p. 54).

605
O número de engenheiros se ampliava na Paraíba, graças aos dois cursos aí instalados, num
ritmo que não era acompanhado pela arquitetura que só teria seu primeiro curso criado no
estado no ano de 1974, na cidade de João Pessoa (PEREIRA, 2008, p. 56). Desse modo, era
frequente a atuação de desenhistas e mestres de obras no contexto local, mas, sobretudo, de
engenheiros, que assinavam uma quantidade de projetos. Esse fato pode ser comprovado
através do levantamento realizado por Pereira (2008, p. 57) no Acervo Central da Prefeitura
Municipal de João Pessoa: “entre 162 autores de projetos aprovados em 1974 na cidade de João
Pessoa e cuja formação profissional foi por nós identificada, 135 eram engenheiros e 27,
arquitetos.” O autor aponta, ainda, que as obras desses engenheiros, “por vezes, assimilavam
elementos formais da arquitetura moderna” (PEREIRA, 2008, p. 57).
Com efeito, mesmo com a profusa atuação de não arquitetos na capital paraibana, era
perceptível, no ambiente construído, a presença do vocabulário moderno, ocorrência noticiada,
inclusive, nos jornais de circulação local, como pode ser lido no trecho a seguir, de 1968:
Hoje João Pessoa não é sòmente uma cidade que cresce como também se
apresenta com uma nova visão urbana feita de uma arquitetura
modernamente concebida, respeitados os requisitos de confôrto, higiene e
bom gôsto na arte de morar. Em síntese, já se mora bem em João Pessoa,
cidade que conseguiu com esmero harmonizar o encanto bucólico dos seus
verdes com as linhas de cimento e cal dos seus cubos geométricos. (CIDADE
de contrastes, 1968, p. 3 apud PEREIRA, 2008, p.139, grifo meu)

Embora a renovação do quadro de arquitetos na década de 1950 tenha coincidido com o


momento em que a Avenida Epitácio Pessoa iniciava seu processo de ocupação de modo mais
sistemático, não podemos negar que o cenário que se desenrolou na próxima década, com o
crescimento expressivo do número de engenheiros atuantes na cidade, também se refletiu na
arquitetura produzida na via. Entre os exemplares projetados por não arquitetos e que
assimilaram elementos modernos em sua fachada estão a Residência Yrlei Faraco, projeto do
engenheiro João Batista Toni, edificada na altura do bairro de Miramar (n° 3513), no ano de
1961, e a Residência José Carlos Dias de Freitas, projetada pelo proprietário, cuja profissão era
engenheiro civil, e construída no bairro de Tambauzinho (n° 2514), em 1962.

606
Figura 04: Fachadas das residências projetadas por não arquitetos na Avenida Epitácio Pessoa.
Respectivamente, fachada principal da Residência Yrlei Faraco (1961) (esq.); fachada principal da
Residência José Carlos Dias de Freitas (1962) (dir.).

Fonte: Redesenho da autora, a partir dos desenhos originais (2017).

Como ilustrado na figura 04, acima, ambas as casas possuem suas fachadas principais
caracterizadas pela racionalização da forma. Na Residência Yrlei Faraco, podemos destacar o
volume prismático que compõe o primeiro pavimento da edificação, sustentado pelo uso de
semi-pilotis, no térreo, liberando espaço para o terraço da casa (figura 05). A fachada principal
distingue-se, ainda, pela marcação horizontal das esquadrias, que parece simular uma fênetre en
longueur (janela em fita), um dos cinco pontos da arquitetura moderna de Le Corbusier. As
demais janelas da residência possuem uma espécie de moldura trapezoidal que se projeta para
protegê-las da chuva e da incidência solar direta em determinados períodos do dia,
demonstrando preocupação com elementos formais de adequação climática.

Figura 05: Destaque para o uso de semi-pilotis e o volume prismático suportado pelos pilares na
Residência Yrlei Faraco (1961).

Fonte: Acervo pessoal, 2013.

Na Residência José Carlos Dias de Freitas, a simplicidade da forma define a volumetria do


projeto. Podemos ressaltar em suas fachadas a presença de um sistema de vigas invertidas que
assume a função de platibanda, escondendo o telhado e reforçando a horizontalidade da
edificação. Além disso, marcam a volumetria, as janelas em madeira com venezianas, elemento

607
fortemente ligado à adequação climática da casa, e o revestimento em litocerâmica, que
aparece nas fachadas principal e leste. Já na fachada oeste, uma empena protege o terraço social
do sol da tarde e um pergolado aproxima as áreas verdes da residência.

4 - À guisa de conclusão: uma abertura ao diálogo


Considerando o caráter reduzido deste artigo e o estágio em que esta pesquisa se encontra,
buscamos nos aproximar do objetivo proposto através de um recorte espacial que representasse
a modernização e a construção de uma nova imagem para a capital paraibana. A Avenida
Epitácio Pessoa marcava essa transformação para a cidade que se afastava do centro tradicional
para se tornar, finalmente, litorânea, processo que se refletiu na arquitetura edificada na via. A
partir das residências aqui ilustradas, pretendeu-se destacar alguns dos exemplares modernos
mais emblemáticos construídos na cidade, além de elucidar algumas obras projetadas por não
arquitetos, com o intuito de demonstrar a presença dessas duas produções no tecido urbano de
João Pessoa.
A ampla assimilação do repertório de elementos formais do moderno resultou numa produção
diversificada, variando “desde casas projetadas por engenheiros ou desenhistas para famílias
com maior poder aquisitivo até pequenas casas construídas pelo proprietário ou por um mestre
de obras” (ALMEIDA, 2015, p. 148). Entretanto, compreender essa apropriação na produção
residencial de não arquitetos é um exercício complexo que envolve levar em consideração a
existência e a relevância dos mais variados meios de circulação de ideias ou de imagens
modernas, nos contextos nacional e local: edifícios construídos; revistas especializadas e
populares; até mesmo os contatos pessoais e as viagens realizadas pelos projetistas e clientes
podem indicar o caminho para entender uma determinada composição de fachada.
A narrativa dominante da historiografia vem descartando essa apropriação do modernismo
brasileiro por engenheiros, mestres de obras e desenhistas em milhares de moradias por razões
como “simplificação formal, consumo de elementos e ausência de unidade”. (LARA, 2005a, p.
173). Essas mesmas justificativas, como explica Lara (2005a, p. 173), “se aplicadas às obras dos
anos de 1960 e 1970, condenariam boa parte do trabalho dos melhores arquitetos do país”.
Apesar de já haver espaço para discutir esse processo, muitos estudos ainda têm feito uma
leitura dessa produção realizada por não arquitetos sem uma reflexão das múltiplas relações
que contribuem para expressar sua complexidade, tratando-a, segundo Almeida (2015):
ora como parte integrante da produção arquitetônica de determinada cidade
ou região – sem uma análise crítica da qualidade arquitetônica –, ora como
uma produção meramente desqualificada, de “mau gosto”. (ALMEIDA, 2015,
p. 147)

608
Esse cenário assinala a necessidade de uma visão mais inclusiva sobre o tema da
“difusão/recepção” do moderno no Brasil, que abra oportunidades para discutir essa
arquitetura que, ao menos quantitativamente, impregnou-se no nosso ambiente construído.
Através dessa discussão, procura-se afrouxar o nó da historiografia de modo a permitir a
incorporação de outras narrativas ao discurso principal, aproximando essa realidade em menor
evidência daquelas discussões até aqui consideradas relevantes, reconhecendo sua importância
como documento de uma época. Espera-se, assim, dar voz a uma produção plural que tem
desaparecido sem ocupar seu lugar de fala na história através da abertura de diálogo entre
arquitetura erudita e popular, possibilitando que esta última não seja renegada ao
esquecimento, mas, antes, valorizada como parte integrante da chamada arquitetura moderna
brasileira.

Referências

ALMEIDA, Adriana Leal de. Recepção e difusão da arquitetura moderna brasileira: uma abordagem
historiográfica. Tese (Doutorado) – PPGAU/IAU-USP. São Carlos, 2015.

ARAÚJO, Ricardo Ferreira de. Arquitetura residencial em João Pessoa – PB: a experiência moderna nos
anos 1970. Dissertação (mestrado) – PPGAU/UFRN. Natal, 2010.

CHAVES, Carolina Marques. Casa (moderna) brasileira: difusão da arquitetura moderna em João Pessoa
1950-60’s. Dissertação (mestrado) – PPGAU/IAU-USP. São Carlos, 2012.

COUTINHO, Marco Antônio Farias. Evolução Urbana e Qualidade de Vida: O caso da Avenida Epitácio
Pessoa. Dissertação (mestrado) – PRODEMA/UFPB. João Pessoa, 2004.

GUIMARAENS, Dinah; CAVALCANTI, Lauro [1979]. Arquitetura Kitsch: suburbana e rural. 3. Ed. São Paulo:
Paz e Terra, 2006.

LARA, Fernando Luiz Camargo. Modernismo popular: elogio ou imitação? In: Cadernos de Arquitetura e
Urbanismo. Belo Horizonte, Vol. 12, N. 13, pp. 171-184, dez. 2005a.

__________. A insustentável leveza da modernidade. Arquitextos. São Paulo: Vitruvius. Ano 05, N.
057.04, fev. 2005b. Disponível em:
<https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.057/500>. Acesso em: out. 2020

PEREIRA, Fúlvio Teixeira de Barros. Difusão da arquitetura moderna na cidade de João Pessoa (1956-
1974). Dissertação (mestrado) – PPGAU/EESC-USP. São Carlos, 2008.

SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil: 1900-1990. 2. Ed. São Paulo: Edusp, 2002.

TINEM, Nelci. O alvo do olhar estrangeiro: o Brasil na historiografia da arquitetura moderna. 2. Ed. João
Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2006.

609
A PAISAGEM DE “UMA ESTRANHA PASSAGEM EM VENEZA”
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Maria de Lourdes Carneiro da Cunha Nóbrega


Doutora; Universidade Católica de Pernambuco; lourdes.nobrega@unicap.br.

Carlos Eduardo Japiassú de Queiroz


Doutor; Universidade Federal de Sergipe; cjcejapiassu4@gmail.com

Através da análise do filme “Uma Estranha Passagem em Veneza” (The Comfort of Strangers,
1990), dirigido por Paul Schrader, baseado no romance homônimo de Ian McEwan, este artigo
apresenta discussões sobre conceitos, reflexões e definições referentes à paisagem, como
elemento de observação do espaço real, bem como espaço fílmico. Propondo, assim, uma visão
interdisciplinar do paisagismo e do cinema, utiliza-se, para tal, de reflexões de autores dos dois
campos, como Berque (2010), Simmel (2009), Lynch (2018), Aumont (2005), dentre outros. A
paisagem, no caso, é a cidade histórica de Veneza, onde se passa a trama, ressignificada através
da narrativa fílmica.
Palavras-chave: Paisagem; Narrativa; Cinema e Arquitetura.

Through the analysis of the film “A Strange Passage in Venice” (The Comfort of Strangers, 1990),
directed by Paul Schrader, based on the novel of the same name by Ian McEwan, this article
presents discussions about concepts, reflections and definitions related to the landscape, as an
element observation of real space as well as film. Thus proposing an interdisciplinary view of
landscaping and cinema, using reflections by authors from both fields, such as Berque (2010),
Simmel (2009), Lynch (2018), Aumont (2005), among others. The landscape in this case is the
historic city of Venice, where the plot takes place, reframed through the filmic narrative.
Keywords: Landscape; Narrative; Cinema and Architecture.

610
1 - Introdução
No Cinema, a paisagem se apresenta para o espectador em sua complexidade relativa à trama.
O espectador, por sua vez, traduz as imagens desta paisagem através de questões pessoais
próprias, que o influenciam na forma de percepção de seus espaços, pois, além da capacidade
perceptiva desse espectador sobre a paisagem apresentada, entram em jogo seus saberes, seus
sentimentos e suas crenças, que, por sua vez, são modelados por aspectos históricos, sociais e
culturais do lugar. Assim, enquanto a paisagem (urbana) é, por si, um elemento testemunho da
história a ser contada e da sua própria história, o espectador (ou observador) é também
testemunha dos processos que ocorrem no espaço que lhe é apresentado no filme, que redefine
seus significados a partir da diegese proposta. Entendendo-se, neste caso da leitura
cinematográfica, o conceito de diegese como sendo:
(...), a história compreendida como pseudo mundo, como universo fictício,
cujos elementos se combinam para formar uma globalidade. Sua acepção é
portanto, mais ampla do que a história, que ela acaba englobando: é também
tudo que a história evoca ou provoca no espectador. Por isso, é possível falar
de universo diegético, que compreende tanto a série de ações, seu suposto
contexto (seja ele, geográfico, histórico ou social), quanto o ambiente de
sentimentos e de motivações nos quais elas surgem (AUMONT, 2005, p. 115).

Na busca de aproximar a visão da paisagem do arquiteto e urbanista à linguagem


cinematográfica, propondo, assim, uma visão interdisciplinar entre esses dois campos, este
artigo trás, através da análise do filme “Uma Estranha Passagem em Veneza” (The Comfort of
Strangers), 1990 - dirigido por Paul Schrader e baseado no romance homônimo do escritor Ian
McEwan (de 1981), discussões, reflexões e definições referentes à paisagem, enquanto
categoria conceitual relativa à observação da realidade, e também como elemento fílmico de
observação.
A paisagem, neste caso, trata da cidade de Veneza (Itália), onde, na trama do romance, um casal
de ingleses passa as férias, e onde também se passa toda a história adaptada para o Cinema.
Para tal, o artigo traz, primeiramente, uma breve contextualização do filme. Em seguida, a
paisagem, como elemento de percepção do cinema e da vida real, é discutida através de autores
que abordam o tema nos dois campos de estudo, da paisagem e do cinema, como Berque (2010),
Veras (2017), Simmel (2009), Wenders (1994), Aumont (2005), dentre outros, para, a partir de
então, transcorrer sobre os aspectos da paisagem que tratam da narrativa do filme
propriamente dito. O filme, neste caso, foi escolhido para análise por pontuar os diferentes
momentos da narrativa na paisagem (histórica) que abriga a diegese.

611
2 - “Uma Estranha Passagem por Veneza” - breve contextualização
“Uma Estranha Passagem em Veneza” foi lançado no ano de 1990, podendo-se dizer que não
teve uma maior repercussão, seja comercial ou crítica, na época, tendo sido alvo de
considerações em círculos mais restritos de cinefilia. No entanto, o diretor e roteirista Paul
Schrader é um nome bastante renomado do Cinema dito “autoral”, fazendo parte do
movimento denominado “Novo Cinema Americano”, cujos integrantes tinham como projeto
artístico a renovação do Cinema feito nos EUA. Tais diretores começaram a produzir a partir da
segunda metade dos anos 1960, sendo “Bonny and Clyde, uma Rajada de Balas” o filme
inaugural do movimento, e tinham como característica principal o ímpeto de trazer uma maior
liberdade e originalidade estética às convenções fixas do cinema hollywoodiano.
Compondo um grupo de cineastas, a maioria com mais renome que ele, tais como Francis Ford
Coppola, Robert Altman, Martin Scorsese, Steven Spielberg, inicialmente ele se torna conhecido
como o roteirista de "Taxi driver” e “Touro Indomável”, de Scorsese. Depois, ele também
escreve o roteiro de “A Última Tentação de Cristo” (1987). Como diretor, seus filmes mais
conhecidos são “O Gigolô Americano” (1980), “A Marca da Pantera” (1982), “Mishima – Uma
vida em quatro capítulos” (1985), entre vários outros. A nosso ver, a escolha e a adaptação do
romance de McEwan vão de encontro à temática recorrente em seus filmes, a saber, a de
trajetórias trágicas, decorrentes de conflitos que envolvem o que há de recôndito, irracional e
misteriosamente perverso - como, em específico, no filme aqui analisado – no espírito e nas
relações humanas.

3 - A paisagem cinemática
Berque (2010), ao conceituar a “paisagem”, discorre-a como lugares que, compondo a
subjetividade do indivíduo, possibilitam-no se reconhecer nela, dando, assim, à paisagem,
aspectos identitários que vão além da simples contemplação de um dado meio ambiente. Para
isso, Berque faz a seguinte pergunta: “Como pode a lembrança de certas pessoas estar ligada a
certos lugares tornando-se, assim, lenda, isto é, o que precisa ser lido (legenda) na topografia?”
(BERQUE, 2010, p. 11). Portanto, considerando que a paisagem observada venha a ser a
paisagem cinemática, aspectos identitários (que unem na trama cinematográfica personagens e
lugares) podem ser entendidos também como a paisagem definida por Berque, pois a paisagem,
neste caso, é:
(...) feita de coisas e pessoas, não reside apenas no objeto, nem tão somente
no sujeito, mas da interação complexa entre eles, em diversas escalas de
tempo e de espaço, implicando tanto uma instituição mental da realidade

612
quanto a constituição da materialidade nas coisas (BERQUE, 1994, apud
VERAS, 2017, p. 24).

Ou seja, a paisagem, como conceituada por Berque, pode, assim, ser um elemento identitário
do filme, que dá forma a sua narrativa e se torna elemento da constituição de sua diegese.
Algumas paisagens carregam consigo elementos simbólicos que identificam lugares, de tal
forma que, mesmo com suas imagens apresentadas parcialmente, é possível que sejam
reconhecidas coletivamente na sua totalidade.
Mas, visando ampliar a discussão do que se entende por paisagem cinemática, vale ressaltar que
outras questões sobre o conceito de paisagem antecedem e dialogam com o conceito
apresentado por Berque. Portanto, partindo da definição encontrada nos dicionários digitais, a
palavra paisagem remete a dois aspectos essencialmente visuais: a existência de um observador
(que contempla a paisagem) e a demarcação (ou delimitação) de uma parcela do mundo (ou da
natureza) que é contemplada, a certa distância, por este observador.
Este conceito deriva do surgimento do próprio termo paisagem, que, nascido entre os séculos
XV e XVI, teve sua origem na Europa, com os pintores de paisagem, com o uso da palavra
francesa “paysage”, que, em outras línguas, como o italiano (paesaggio), ou o inglês (landscape),
significa literalmente “dar forma a terra” (DIAS, 2013, p. 283). Dessa forma, “a paisagem
depende de um sujeito que a constitui quando a percebe” (DIAS, 2013, p. 287). Assim, seja na
vida real ou no cinema, a paisagem é imagem, visualizada, contemplada e/ou observada em um
dado panorama ou vista. No cinema, a paisagem é exposta através de planos (pré) selecionados
e articulados entre si. A paisagem pode ser, então, entendida como um recorte da natureza
(uma partição exposta por um quadro ou uma cena). Mas, nesse aspecto, a paisagem seria
entendida como um pedaço de um todo.
Simmel (2009) destaca que entender a paisagem como um pedaço ou uma parcela da natureza
é uma contradição, pois, por natureza, entende-se que ela é o “nexo infinito das coisas, a
ininterrupta parturição e aniquilação das formas, a unidade ondeante do acontecer, que se
expressa na continuidade da existência espacial e temporal” (SIMMEL, 2009, p. 5). Não
existindo, assim, um pedaço de natureza, pois seria “uma contradição em si; a natureza não tem
fracções; é a unidade de um todo, e no momento em que dela algo se aparta deixará
inteiramente de ser natureza (...)” (SIMMEL, 2009, p. 5).
Apesar da contradição apresentada, para o entendimento da paisagem, seja no cinema ou na
vida real, é essencial a demarcação daquilo a ser contemplado, como faziam os pintores de
paisagem. E Simmel (2009, p. 7) esclarece que a paisagem não consiste de uma partição da

613
natureza (ou de um todo existente), mas é fruto de um “sentimento de paisagem”, que veio
aparecer através da pintura, inexistente na idade antiga ou na idade média, quando o
observador, a partir de um todo, percebe um outro (todo) independente, reivindicando para si
um direito a este outro todo ou a esta partição. Neste sentido, Simmel (2009) e Berque (2010)
convergem para o entendimento da paisagem através do seu observador, onde a paisagem
“sobressai da pura impressão das coisas naturais singulares” (SIMMEL, 2009, p. 8) e sua
interpretação acontece a partir dos “fundamentos configuradores da nossa imagem de mundo”
(SIMMEL, 2009, p. 11) ou, como expõe Berque (2010), para lugares que fazem parte do
indivíduo. Apesar de Simmel destacar este sentimento do observador para que haja a
construção mental da paisagem, ele, diferentemente de Berque, não associa a paisagem a
pessoas que possam estar associadas à paisagem observada, e sim, aos sentidos dados apenas
pelo seu observador.
Para esta apreensão da paisagem, Simmel (2009, p. 13) apresenta a necessidade de que ocorra
aquilo que ele chama de “disposição anímica da paisagem”, ou seja, o sentimento ou a sensação,
que ele nomeia de “stimmung”, que, no caso, é gerada a partir dos sentimentos psíquicos do
homem e/ou observador. Sendo a disposição anímica entendida como o elemento que “colora
constantemente ou só no momento presente a totalidade dos seus conteúdos psíquicos
singulares” (SIMMEL, 2009, p. 13). É neste sentido que Simmel retoma o significado da palavra
paisagem em sua origem e afirma:
Artista é tão-só aquele que realiza este acto plasmador do ver e do sentir com
tal limpidez e força que absorve integralmente em si o material fornecido pela
natureza e o recria como que a partir de si; enquanto nós, os outros,
permanecemos mais atados a este material e, por isso, costumamos sempre
percepcionar este ou aquele elemento particular, onde o artista efetivamente
apenas vê e modela uma “paisagem” (SIMMEL, 2009, p. 17).

Portanto, quando compreendida como um texto, como expôs Berque, e exposta como lugar
singular, a partir daquele que a observa e a modela, como apresenta Simmel, a paisagem se
constitui de uma sintaxe própria, cujas composições de signos guiam o olhar do observador a
uma narrativa, um discurso específico, construindo, assim, as suas diferentes formas de
interpretação.
Compreendendo que a narrativa exposta é a cinematográfica, e observando que a imagem do
cinema é limitada pelo quadro (ou janela) e que a porção do espaço (imaginário) projetado nesta
janela é denominada de campo, Xavier (2005) chama atenção para o fato de que este poder de
ilusão, promovido pelo cinema, não se aplica apenas à tela onde o mesmo é projetado, onde se

614
encontra o campo de visão do espectador, pois este poder de ilusão é ampliado e o cinema é
capaz de criar a possibilidade de se perceber o espaço em diferentes campos de visão.
Assim, “para entender o espaço cinemático, pode revelar-se útil considerá-lo como de fato
constituído por dois tipos diferentes de espaço: aquele inscrito no interior de enquadramento e
aquele exterior ao enquadramento” (XAVIER, 2005, p. 19). Ou seja, a visão de uma parte daquilo
que é apresentado na tela, o campo, passa a sugerir a presença de um todo que, nesse caso,
sugere se estender para a área exterior à tela, no extracampo.
Como a natureza descrita por Simmel (2009), que se constitui um todo infinito, o espaço
cinemático, que representa a paisagem a ser retratada no filme, também se constitui como um
todo, que passa a ter sua paisagem e/ou os recortes pertinentes a ela apresentados na tela.
Portanto, no cinema, considerando que este observador seja o espectador/analista do filme, a
observação e a percepção da paisagem se dão através das imagens projetadas sob diferentes
pontos de vista, a depender da trama (pontos de vista da câmera, do narrador, do personagem,
entre outros), que, nas suas diferentes variações, compõem o conjunto das imagens-
movimento, que se apresentam, de uma maneira geral, montadas e combinadas. Assim, o
sentimento de paisagem, que constitui a paisagem cinemática, deriva das coisas existentes
dentro desse espectador e/ou daquilo que a narrativa cinematográfica lhe apresenta e lhe
impõe através das diferentes formas como as imagens lhe são apresentadas. Desta forma,
A paisagem situa o espectador em um lugar, e sendo este um lugar
cinemático, espaço e tempo estão dinamicamente comprimidos ou
expandidos e os papéis sociais e valores morais podem ser sustentados ou
subvertidos. A paisagem fílmica não é, então, um lugar neutro para o
entendimento ou para uma documentação objetiva, muito menos mero
espelho do real, mas sim uma forte criação cultural e ideológica onde
significados sobre lugares e sociedades são produzidos, legitimados,
contestados e obscurecidos (COSTA, 2016, p. 8).

Quando a imagem apresentada é a imagem dos ambientes urbanos, ao mesmo tempo em que
a cidade se apresenta para o espectador em sua complexidade, este traduz suas imagens através
de questões pessoais próprias, que o influenciam na forma de percepção de seus espaços, pois,
além da capacidade perceptiva desse espectador, entram em jogo o seu saber, os seus afetos,
as suas crenças (AUMONT, 1999), modelados também por aspectos históricos, sociais e
culturais, deste observador em relação à imagem (do espaço) apresentada, ou aquilo que
Simmel traduz como “sentimento de paisagem”. E, enquanto paisagem (urbana), é, por si, um
elemento testemunho da história a ser contada e da sua própria história. Em contrapartida, o
espectador (ou observador) é também testemunha dos processos que ocorrem no espaço que

615
lhe é apresentado, como expõe Berque (2010) e Wenders (1994). Portanto, é a partir da diegese
proposta que as imagens que se constituem como paisagens fílmicas são apresentadas.
Enquanto panorama ou quadro que recorta um ambiente específico, seja ele natural e/ou
construído com cenários, a paisagem fílmica pode ser apresentada em planos gerais ou mesmo
como fundo de planos médios (ou de planos mais próximos, desde que situem o espectador em
uma dada localização), e de uma maneira geral ocorrem como: espaços que apresentam o lugar
da história (ou diegese); como espaços que apresentam o lugar no tempo (histórico, climático e
cronológico), ou da junção de duas ou mais dessas características simultaneamente.

4 - A paisagem e o lugar da história


No filme The Comfort of Strangers (título original), Veneza é a cidade paisagem escolhida para o
decorrer da trama, cujo papel é abrigar e servir de suporte aos “estranhos” - os estranhos casais
que se encontram na trama -, ou seja, que apresenta os lugares que fazem parte dos indivíduos
que nela procuram se reconhecer (BERQUE, 2010). Para o (incauto) espectador, apenas munido
de informações gerais sobre a cidade onde se passa o filme, Veneza é uma cidade Patrimônio
da Humanidade e turística, cuja singularidade construtiva e localização geográfica conotam a
imagem da cidade romântica e pitoresca, com vias que são canais navegáveis por gôndolas e
cujas ruas estreitas propiciam o andar a pé.
É partindo, assim, desta imagem, que procura traduzir o sentimento de paisagem do espectador
(SIMMEL, 2009) em relação a uma cidade romântica e pitoresca, que é possível compreender o
retorno do casal protagonista Mary (Natasha Richardson) e Colin (Rupert Everett) à cidade. Eles
são turistas, em sua segunda viagem a Veneza, que resolvem retornar à cidade em busca da
retomada da relação amorosa, desgastada pelo tempo do relacionamento. Já o casal formado
por Caroline (Helen Mirren) e Robert (Christopher Walken) constitui-se o casal antagonista,
moradores de Veneza e perseguidores do casal de turistas.
Na trama, o espectador é situado na paisagem da cidade de Veneza ainda nos créditos iniciais,
quando, em um plano-sequência, a câmera percorre os espaços internos da casa do casal
Caroline e Robert, em meio a espaços amplos ornados por móveis, quadros e objetos antigos.
Esta primeira sequência é finalizada com a apresentação da paisagem veneziana, vista por sobre
o seu Grande Canal, através das janelas do imóvel, ao nascer do sol. Ao espectador é mostrado,
portanto, o primeiro panorama do filme, situando-o no lugar da trama, e no momento temporal
em que ela se inicia.

616
Para referenciar urbanisticamente a cidade de Veneza no filme, o imóvel escolhido para
representar a casa dos personagens Caroline e Robert é o Palazzo Loredan dell'Ambasciatore,
edifício neogótico, situado às margens do Grande Canal, que se constitui um marco visual na
paisagem definida pelo trecho do canal onde se insere. Em seguida a esse plano sequência, a
história passa a apresentar os outros dois personagens, Colin e Mary, os quais estão hospedados
num hotel. Porém, antes de focalizar o segundo casal, dois panoramas conhecidos da cidade são
filmados em tomadas aéreas: o Grande Canal, de onde se vê o palácio Loredan ao longe, e a
vista das cúpulas da Basílica da Catedral de São Marcos.
Os três panoramas apresentados deslocam espacialmente o olhar do espectador do palácio –
onde Robert e Caroline moram –, ao hotel – onde Colin e Mary estão hospedados –, criando,
assim, a conexão inicial entre os personagens da trama e o espaço-paisagem, atribuindo valor a
este último enquanto elemento estrutural da narrativa do filme. É a partir do olhar do viajante
– que, como flâneurs, perambulam pelas ruas da cidade –, que as paisagens que acompanham
Mary e Colin são apresentadas. Planos médios emolduram a paisagem do caminhar em passeios
turísticos, como, por exemplo, o do entorno da Scuola di San Giorgio degli Schiavoni. As
paisagens alternam no espectador sentimentos que passam por leves momentos de lazer do
casal, quando a representação da cidade tende a ser estereotipada, apresentando Veneza como
uma cidade turística, a momentos de desconforto, quando a trama provoca no espectador um
estranhamento que desconstrói esse estereótipo, através do sentimento do medo, pela
presença de um perseguidor (Robert, no caso).

Figura 01: Fotograma do filme. Vista da Ponte de La Comenda, a paisagem que situa o passeio dos
viajantes e o lugar do seu perseguidor.

Fonte: https://www.criterion.com/films/29638-the-comfort-of-strangers.

5 - A paisagem dos que se perdem e que situa o lugar do fim


Estar orientado diz respeito à capacidade de leitura dos espaços do lugar. Quando a paisagem
fílmica trata da cidade, e remete o espectador à escala urbana, a complexidade dos seus espaços

617
é apresentada. Para Lynch (2018), urbanista que se dedicou aos estudos que tratam da imagem
da cidade (real), para compreender o espaço da cidade, é preciso que haja, a partir da leitura de
suas imagens, a “legibilidade” das mesmas. Ou seja, é preciso que haja “clareza” ou facilidade
para o reconhecimento das partes da cidade que possam ser organizadas de uma forma
coerente, tornando-se, assim, “visualmente apreendida como modelo correlato de símbolos
identificáveis” (LYNCH, 2018, p. 3). Para Lynch, marcos arquitetônicos e/ou urbanos, nós (ou
ponto de encontro de pessoas, como praças e estações de passageiros), acidentes geográficos
e vias são elementos imagéticos que situam aqueles que utilizam o espaço urbano. Besse (2006)
aponta, ainda, que a paisagem legível está ligada à existência de um horizonte. É no contexto da
cidade vista sem horizonte e elementos arquitetônicos situacionais que o casal de viajantes se
perde e encontra Robert pela primeira vez. Planos médios com a câmera situada na linha do
olhar dos personagens, em cenas noturnas, que ocultam uma linha visível do horizonte,
compõem as cenas onde viajantes e espectadores não conseguem se situar na cidade, e, ao
mesmo tempo, evocam medo no espectador, pois não se sabe o que está por vir.
Durante a história, enquanto o olhar do casal de turistas é voltado para os lugares que visitam,
o olhar de Robert é dirigido a Colin. Robert registra furtivamente os momentos turísticos de
Colin em fotografias. Enquanto para o casal Caroline e Robert as fotografias são uma forma de
capturar seu objeto de desejo (Colin), proporcionando-lhes um prazer escópico (no caso do
filme, um prazer que vislumbra a morte), para o casal Mary e Colin as fotos constatam a flagrante
obsessão nutrida pelo outro casal, até então não percebida. A paisagem derradeira e
ressignificada da trama é a da casa de Caroline e Robert. Paisagem vista do outro lado do canal,
por Mary e Collin, como um prenúncio da fatalidade que está por vir, onde a casa, morada dos
seus perseguidores (Caroline e Robert), cujo interior apresenta o início da trama, é também
onde se dá a morte de Colin.

6- Considerações finais

Segundo Xavier (1990, p. 369), os filmes pactuam com o espectador a proposta de uma cidade
imaginária, pois, no cinema, a cidade é (re)criada “a partir de imagens de esquinas , fachadas e
avenidas”, que, unidas através de diferentes formas de montagens, formam “fragmentos de
diferentes corpos”, passando a conformar uma nova geografia estabelecida para compor a
construção da narrativa. Ainda segundo Xavier (1990, p. 369), “não cabe perguntar de quem é o
corpo imaginário ou qual a estrutura real de um espaço visto na tela em fragmentos”. Todavia,
em “Uma Estranha Passagem por Veneza”, o diretor apresenta este corpo geográfico, suporte

618
intradiegético à trama, desde as cenas iniciais, localizando o espectador numa paisagem
específica, Veneza. Assim, a cidade que abriga as memórias é apresentada através do
personagem Robert, que já se apresenta ao espectador (assim como aos viajantes) através dos
vínculos que possui com seu passado e de aspectos que mascaram o seu presente. Robert é a
figura enigmática na paisagem, que habita um palácio, conhece a morfologia da cidade e que
expõe tradições familiares ligadas ao lugar, ao passo que Mary e Colin são os viajantes que
percorrem a cidade, com o olhar do flâneur, que ora se perde, ora a admira. E o filme é pontuado
por diferentes passagens da sua narrativa através das paisagens. O diretor faz com que o
espectador perceba que a paisagem é como bem expõe Besse (2006, p. 80): “o espaço do sentir”
– desejo do perseguidor, surpresa dos viajantes - e é também, como expõe Berque (2010),
legenda na topografia. Legenda de natureza fílmica, que condiciona os lugares à história criada.
Assim, as imagens dessas paisagens escolhidas apresentam: o lugar dos viajantes, o lugar dos
perseguidores, o lugar do amor e, por fim, o lugar da morte. Panoramas de uma mesma cidade
que são ressignificados com a narrativa e passam, como na vida real, a testemunhar os
diferentes momentos de uma história a ser contada, visto que é nela que elementos identitários
dos cenários urbanos se apresentam.

Referências

AUMONT, Jacques (et. al). A estética do filme. 3ª Edição, Campinas: Papirus, 2005.

AUMONT, Jaques. A imagem. Campinas: Papirus, 1999.

BERQUE, Augustin. “Território e Pessoa: a identidade humana”. Desigualdades & Diversidade: Revista
de Ciências Sociais da PUC – Rio, n. 6, jan-jul, 2010, pp.11-23. Disponível em:
<http://desigualdadediversidade.soc.puc-rio.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=92&sid=14> Acesso
em junho de 2018.

BESSE. Jean-Marc. Ver a Terra. Seis ensaios sobre a paisagem e a geografia. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2006.

COSTA, Maria Helena B. V. da. “Paisagens urbanas e lugares utópicos no cinema brasileiro”. (2016).
Anais do XIV Coloquio Internacional de Geocrítica Las utopías y la construcción de la sociedad del
futuro. Barcelona. Disponível em:
<http://www.ub.edu/geocrit/xiv_mariaecosta.pdf?fbclid=IwAR1n1FSpSpbvT0jpGPzlYdA9vHyAWj899zx4
Zc7kkhsnRXsanG8_MYKKiWQ> Acesso em maio de 2020.

DIAS, Inês Sapeta. Paisagem: sobre a reconfiguração cinematográfica da descrição da natureza. In:
GRILO, João Mário; APARÍCIO, Maria Irene. Cinema e Filosofia: Compêndio. Lisboa: Edições Colibri,
2013, pp. 283-300.

LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2018.

619
SIMMEL, Georg. A filosofia da paisagem. Covilhã: LusoSofia press, 2009.

SCHRADER, Paul. Uma Estranha Passagem por Veneza. Criterion Films, 1990.

VERAS, Lúcia Maria de Siqueira Cavalcanti. Paisagem – postal: a imagem e a palavra na compreensão do
Recife urbano. Rio de janeiro: Letra capital Editora, 2017.

WENDERS, Win. “A paisagem urbana”. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de
Janeiro: IPHAN, n. 23 – Cidade, 1994, pp.180-189.

XAVIER, Ismail. Cinema: Revelação e Engano. In NOVAES, Adauto. O olhar. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990, pp. 367-383.

XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico. Opacidade e transparência. São Paulo: Editora Paz e Terra,
2005.

620
A POTÊNCIA DO "NÃO-SER" NAS PAISAGENS URBANAS NOTURNAS DOS FILMES
‘TODA UMA NOITE’ E ‘SÁBADO À NOITE’
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Guilherme Henrique Pereira Mariano


Mestrando em Cinema e Narrativas Sociais; Universidade Federal de Sergipe;
guihpm96@gmail.com.

Fernando de Mendonça
Doutor em Letras (UFPE); Professor da Universidade Federal de Sergipe
(DELI / PPGL / PPGCINE); nandodijesus@gmail.com.

Por meio de uma análise comparativa, refletiremos acerca de uma possível potência do “não-
ser” presente nas paisagens urbanas noturnas dos filmes Toda uma noite (1982) e Sábado à
noite (2007), ambos pertencentes ao que se convencionou chamar de “Cinema de Fluxo”.
Partindo das reflexões de Aumont (2004), relativas ao modo de representação da natureza
durante o séc. XIX, até o encontro com a proposta de uma “Metafísica da Noite” feita por
Bachelard (2018), apresentaremos uma leitura da exploração da materialidade destas
paisagens, proporcionada pela estética de fluxo, segundo Oliveira Jr. (2010), como vestígios de
uma força ontológica capaz de retornar o humano e a paisagem às suas condições primordiais
de substância.
Palavras-chave: Cinema e Paisagem; Metafísica da noite; Cinema de fluxo; Análise fílmica.

Through a comparative analysis this article aims to reflect on a possible potency of the “non-
being” present in the nocturnal urban landscapes on the films Toda uma noite (1982) and Sábado
à noite (2007), both belonging to what was conventionally called “Cinema of flux". Starting from
Aumont's (2004) reflections regarding nature representation during the XIX century, until
gathering with the proposal of a “Metaphysics of the Night” by Bachelard (2018), we will present
a reading of the exploration of materiality on these landscapes, provided by the aesthetics of
flux, according to Oliveira Jr. (2010), as vestiges of a ontological force capable of returning
human and landscape to their primordial conditions of substance.
Keywords: Cinema and Landscapes; Metaphysics of the night; Cinema of flux; Film analysis.

621
1 - Introdução
O magnetismo da noite, algo que, à primeira vista, soa tão subjetivo, ganha tons míticos no
imaginário coletivo quando observada a recorrência histórica da constatação de sua força, no
meio social e científico. As artes, em suas diversas representações e reflexões, abordam o tema
com frequência, de modo a alçá-lo a um patamar além da lógica e da objetividade. Gaston
Bachelard (2018), um dos pensadores que se debruçaram sobre o assunto através de uma
perspectiva fenomenológica, em A Poética do Devaneio, toma o caminho de diversas obras-
primas, nos mais diferentes ramos artísticos, e enxerga a possibilidade de algo supra-físico, uma
“Metafísica da Noite”, em que o sujeito teria o potencial de ser raptado por seu “não-ser”
(p.139).
Nesse sentido, propomos uma abordagem de tal conceito filosófico na maneira como as
paisagens noturnas se manifestam em filmes primeiramente relacionados por uma filiação ao
que já se assimilou como o estilo de um Cinema de Fluxo, abordagem estética onde a matéria é
explorada como principal meio de acesso ao sensório. Com a aproximação dos filmes Toda uma
noite (1982), de Chantal Akerman, e Sábado à noite (2007), de Ivo Lopes Araújo, pretendemos
apontar como a materialidade dos espaços urbanos noturnos mostra-se para além de um meio
de representação, enquanto vestígio desta força do não-ser que paira noite adentro,
acometendo aqueles que ousam enfrentá-la acordados e devorando a paisagem.
Na primeira obra, composta por diversos fragmentos de narrativas (melhor seria chamarmos de
pulsões), testemunhamos comportamentos impulsivos de alguns personagens privados de
nome, motivação e, na maior parte do tempo, de fala. Aqui, o que parece estar em questão não
é a restituição lógica das possíveis tramas que culminariam em cada ação, mas sim a sensação
da presença de algo naquela noite em Bruxelas responsável por despertar essas ânsias ocultas.
Poderia ser o estado pré-subjetivo citado por Bachelard (2018, p. 139)? Já o segundo filme é um
mergulho no não-ser espacial, onde vagamos pelas ruas desertas da madrugada de Fortaleza,
observando os esqueletos das estruturas sociais adormecidas e as poucas pessoas que se
deixaram dominar pelo tempo-espaço. Retomando as teorias de Jacques Aumont (2004), em
torno da reflexão paisagística que conecta as artes plásticas ao enquadramento
cinematográfico, nos perguntamos: após a revolução nos modos de representação da natureza
no séc. XIX, em que o significado foi superado pela pura existência estética, seria a paisagem
temporal e a materialidade do Cinema de Fluxo o caminho para uma não-existência? Ou, quem
sabe, uma supra-existência, um vestígio metafísico?

622
2 – Cinema de Fluxo e Potencialidades Materiais
Em suas reflexões acerca das relações entre o cinema e as artes plásticas, Aumont (2004) propõe
uma revisão crítica do tom “milagroso” muitas vezes atribuído à invenção do cinematógrafo.
Detendo-se, inicialmente, na história da fotografia, o autor aponta que não seria o acaso o
responsável pelo atraso de 40 séculos entre as descobertas dos efeitos da luz solar em certas
substâncias químicas, ocorridas no Antigo Egito, e o surgimento das primeiras imagens
fotográficas no meio do séc. XIX, mas, sim, uma transformação na percepção social dos ideais
imagéticos da época:
É preciso assim colocar de saída que a condição de possibilidade (não
digo, portanto, claro, a causa) da invenção da fotografia é, a princípio,
que outro tipo de imagens - diferentes daquelas saturadas de sentido
e de escritura, do Egito - fosse desejável em uma sociedade, e, mais
precisamente, lá onde se produzem as imagens, ou seja: no início do
séc. XIX, na pintura. (AUMONT, 2004, p. 48).

As causas dessa mudança estariam localizadas, principalmente, na alteração no modo de


representação da natureza, provocada pela adoção do estudo (“registro de uma realidade ‘tal
como ela é’”) em detrimento do esboço (“registro de uma realidade já modelada pelo projeto
de um futuro quadro”) (p. 48). A natureza textual, então, utilizada até aquele ponto da história
da arte para finalidades significativas e alegóricas, começa a dar espaço a uma natureza
qualquer, pictórica por sua pura existência. Indo além, inerente ao estudo, surge um desejo de
imediatismo e mobilidade, precursor do “olho fotográfico”, que, aliado a um apreço menor pela
exatidão do que pela “primeira impressão”, faz dessa técnica o embrião de uma verdadeira
revolução na “função do olhar”. A partir das consequências do panorama levantado
anteriormente e de outros fatores socioculturais ocorridos durante o séc. XIX, o autor enxerga,
na invenção do cinematógrafo, a continuidade de um movimento natural que estava em
andamento nas artes visuais como um todo, definindo Lumière como “o último pintor
impressionista” (p. 25).
Cerca de um século depois, o cinema, já com uma bagagem histórica riquíssima e consolidada,
começa a aparentar um desejo de retomar os empreendimentos estéticos de seu criador,
através do chamado “Cinema de Fluxo”. A gênese desse estilo cinematográfico encontra-se num
contexto de crise, em meados dos anos 80, em que a definitiva consolidação de novas formas e
linguagens audiovisuais, como a tv, a publicidade e o vídeo, é responsável por instaurar uma
ideia de esgotamento; falava-se na "morte do cinema". Aliado a isso, era notável uma tendência

623
cinematográfica hiper-racionalista (maneirista), em que fazer cinema, com as bases formais
clássicas e modernas já consolidadas, significava um esforço mental enorme em prol da
utilização de técnicas e meios expressivos, de modo singular e autoral. A reação, para Oliveira
Jr. (2010), viria no final da mesma década com alguns cineastas, como Hou Hsiao-Hsien, que
retomaram a vontade de "captar alguma coisa da preciosa 'ambiguidade' do real" e filmavam
"como se o cinema tivesse acabado de ser inventado" (p. 83).
Oliveira Jr. (2010, p. 103) define essa estética como sendo o cinema “da trama sensorial
assignificante” e “da matéria primordial”. O autor retoma Schiller (1963 apud OLIVEIRA JR, 2010,
p. 102) para apresentar dois impulsos básicos presentes no ser humano: o impulso-forma, a
racionalidade que impõe ordem ao mundo; e o impulso-matéria, o sensível afetado pelo caos e
pela multiplicidade da natureza. Esses dois impulsos seriam atuantes durante a criação artística,
em que a predominância de um sobre o outro resulta em diferentes formas estilísticas e
estéticas, enquanto seu equilíbrio representaria, para o autor, uma "forma vitoriosa". No
entanto, Oliveira Jr. (2010, p. 116) aponta que seu objeto de estudo, o Cinema de Fluxo, seria
justamente o desequilíbrio dessa balança, a "reimersão na matéria" onde “reside o caos
originário, a ilimitada potência do ‘não-ser’”.
Aqui, encontramos uma ponte direta entre a materialidade do Cinema de Fluxo e a Metafísica
da Noite proposta por Bachelard (2018). Em meio a sua reflexão sobre a A Poética do Devaneio,
em que julga o próprio devaneio como “uma atividade onírica na qual subsiste uma clareza de
consciência” (p. 144), o autor se detém sobre a possibilidade de um cogito durante o ato
inconsciente do sonho noturno. No entanto, enxergando nisso um retorno a um estado
ontológico, substancial, pergunta-se:
“...onde colocar o eu nessa substância que sonha? Nela o eu se
dissolve, se perde... Nela o eu se presta a sustentar acidentes caducos.
No sonho noturno, o cogito do sonhador balbucia. O sonho noturno
não nos ajuda a formular sequer um non-cogito, que daria um sentido
à nossa vontade de dormir. É esse non-cogito que uma metafísica da
noite deveria associar a perdas do ser” (p. 143).

Pensando, então, na noite para além do ato de sonhar, teríamos, portanto, a potência do não-
ser no centro de uma reflexão de sua metafísica. Porém, apontando em direção a um “mistério
ontológico” em que “só um poeta pode nos oferecer uma imagem dessa remota pousada” (p.
141), Bachelard sugere, primeiramente, os estudos do “menos-ser” (p. 144), mas não antes de
apresentar indícios de uma possível definição. Ao vincular a noite a uma “ausência de história”,
o autor situa o noturno antes numa existência ontológica, material, espacial, do que numa
temporalidade propriamente dita, em que o indivíduo, “sem futuro”, estaria diante de um

624
abismo (p. 139). Nesta perspectiva de aniquilamento, a perda seria de nossa subjetividade, até
mesmo de nossa humanidade, ou melhor, de nosso ser humano:
“Ele acredita ser ele mesmo durante a noite e ele é qualquer um.”
Qualquer um? Ou talvez - desastre do ser humano - qualquer coisa?
Qualquer coisa? Algum impulso de sangue quente, algum hormônio
excessivo que perdeu sua compostura orgânica.
Qualquer coisa vinda de qualquer tempo? Algum leite demasiado
parco das mamadeiras de outrora? (BACHELARD, 2018, p. 143).

3 – Dois Filmes, Uma Noite, Uma Paisagem


É, também, a partir de um contexto instintivo/primitivo que alguns personagens anônimos,
habitantes das ruas de Bruxelas, nos são apresentados em Toda uma noite (1982). Propondo um
exercício observacional da força do noturno no comportamento humano, Chantal Akerman1 nos
leva por uma série de eventos com variados protagonistas cuja única conexão está na ocorrência
destes ao longo de uma única noite, em Bruxelas. Essas pequenas narrativas apresentadas e
resolvidas, na maioria das vezes, em apenas uma cena, são compostas, de início, por recortes
do cotidiano urbano noturno: uma mulher solitária toma uma bebida em sua poltrona; um casal
de meia-idade descansa em seu sofá; outro casal, dessa vez mais jovem, compartilha uma
cerveja numa mesa de bar em silêncio. Enquanto experienciamos a duração destes
acontecimentos, em prolongados planos típicos da diretora belga, comportamentos súbitos dos
personagens nos surpreendem: a mulher solitária larga a bebida, chama um táxi e vai até a
janela de um possível amante; livrando-se do sofá, a mulher convida o marido a aproveitar a
“adorável noite” fora de casa; num movimento brusco que leva as cervejas ao chão, o casal se
levanta da mesa do bar rumo ao primeiro local oportuno para um beijo caloroso.
Assim, Toda uma noite se configura como um filme de “impulsos de sangue quente”, como dito
por Bachelard (2018, p. 143). Sem acesso às possíveis causas desses episódios ou às construções
psicológicas desses personagens, testemunhamos apenas momentos de uma incontrolável
necessidade de abraçar, beijar, fugir, dançar. Não nos é dado nada como motivo, além dos

1
Definida, por Margulies (2016), como uma cineasta que opera nos limites entre a contenção e a
explosão, através de um "hiper-realismo minimalista", Chantal Akerman, a partir de obras de ficção,
documentários, instalações artísticas e experiências com vídeo, explorou e expandiu as fronteiras de cada
"gênero" em que se aventurou, tornando suas reflexões autorrepresentativas sobre o ser mulher e sua
origem judaica impactantes não apenas pelas temáticas sociais abordadas, mas também pelas
experiências formais propostas. Articulando a linguagem cinematográfica com "uma ausência proposital
de hierarquia entre a representação do drama e a representação da superfície das coisas" (p. 55),
caracterizou-se por realizar um “cinema corpóreo” através da exploração de diferentes temporalidades e
materialidades da imagem, tornando-se, assim, frequentemente apontada, ao lado de Michelangelo
Antonioni, Andrei Tarkovski e Hou Hsiao-Hsien, como precursora das tendências estéticas pautadas na
duração do plano como uma experiência sensória.

625
momentos anteriores a estes climax, onde vemos cada personagem confrontando sua condição
de esvaziamento noturno, tentados por algo responsável por fazê-los agir desta maneira
instintiva.
Em Sábado à noite (2007), por sua vez, uma simples premissa, apresentada nos minutos iniciais
do filme, leva-nos a esperar um desenvolvimento narrativo e formal mais próximo do
convencional. Num início de sábado à noite, numa rodoviária em Fortaleza, uma equipe de
filmagem extremamente reduzida (ao que tudo indica, apenas o diretor, Ivo Lopes Araújo2, que
também opera a câmera, um captador de som e um produtor para a “abordagem e sedução”,
como brincam os créditos finais) anuncia, para um grupo de pessoas num carro, que estão
realizando um documentário baseado na busca por caronas para lugares aleatórios, com a única
finalidade de gravar o trajeto e as conversas proporcionadas por esses encontros. Após esta
breve introdução dos objetivos da filmagem, é feita, então, a proposta de participação deste
grupo. As aventuras e personagens com histórias interessantes que possivelmente cruzarão o
caminho desta equipe noite adentro já começam a povoar nossa mente. Porém, a partir da
recusa da proposta por parte do grupo, o filme reconfigura-se.
O diálogo relatado acima, o primeiro do filme, torna-se também o último. Deste momento em
diante, os planos que compõem a obra passam, em sua maioria, a abrir mão da presença de
uma figura humana para chamarmos de personagem. A exploração pictórica de luzes, texturas,
movimentos e, principalmente, da presença material da cidade de Fortaleza, torna-se a
verdadeira razão destes enquadramentos. Até quando há uma presença corporal, vemos que o
interesse do quadro está na pura materialidade desse corpo. Porém, concluir, a partir disso, que
este será um filme em que não acompanharemos o desenvolvimento de um personagem
principal é um engano - a estrela em cena é a paisagem urbana de Fortaleza transfigurando-se
lentamente em algo que exala magnetismo e mistério, conforme se afunda cada vez mais em
sua existência noturna, ou, talvez, em uma não-existência.
Outro engano passível de ser cometido, dessa vez ao compararmos os delineamentos de cada
filme, conforme apresentados acima, é inferir que apenas em Sábado à noite temos uma

2
Nos anos seguintes à realização de Sábado à noite, Ivo Lopes Araújo consolidou-se como um dos
principais diretores de fotografia no cinema nacional, assinando tal função em obras de grande circulação
comercial nos últimos anos, como Quando eu era vivo (2014), de Marco Dutra; A cidade onde envelheço
(2016), de Marília Rocha; e Fim de festa (2020), de Hilton Lacerda. Sua projeção nacional se deu,
principalmente, devido aos anos de intensa atividade junto ao coletivo de realização Alumbramento, cuja
característica de liberdade artística, abrindo espaço a narrativas e formas cinematográficas mais
experimentais, permitiu o desenvolvimento de um estilo imagético austero e durativo, permeando a
"precariedade do encontro” como principal temática filmográfica do diretor (IKEDA, 2011 apud
CAPISTRANO, 2013).

626
reflexão paisagística, enquanto Toda uma noite estaria reservado às questões puramente
humanas. A obra de Ivo Lopes Araújo tem, sim, uma relação mais óbvia e palpável com a
paisagem, porém, a espacialidade no filme de Chantal Akerman, para além da materialidade
direta de seus cenários, mostra-se tão essencial quanto: apesar de ser um filme
majoritariamente de cenas internas, a situação de suas curtas narrativas num contexto urbano
noturno, através das constantes mudanças de cenários e dos diversos enquadramentos de
fachadas e janelas, aponta para uma existência material contínua desta paisagem temporal
como contentora e potencializadora desses dramas humanos. Desse modo, conforme o título,
estamos diante de uma noite, noite qualquer em Bruxelas, como se em todas as noites deste
lugar estivessem contidas virtualmente as possibilidades geradoras dessas narrativas. O que se
torna específico na obra, então, não são os episódios e as personagens apresentadas, a já citada
falta de acesso às subjetividades corrobora isso. Partindo para um filme imaginário, composto
por histórias da noite seguinte ou da noite anterior, a capacidade de se atingir os mesmos
sentidos e sensações também estaria ali. O particular, o “individual”, mostra-se, portanto, na
qualidade de força instintiva, anuladora de subjetividades e igualadora de todos os seres na
medida de suas vontades, presente em todas as noites, ou melhor, na noite, como se todas as
noites fossem uma só: “tornamo-nos seres sem história ao entrarmos no reino da noite sem
história” (BACHELARD, 2018, p. 140).
Sábado à noite também caminha neste sentido. A noite é apresentada na obra por cenas
externas que remetem à materialidade pura da paisagem urbana em seu silêncio, o que se
contrapõe à concepção hegemônica de uma noite de sábado, caracterizada pela possibilidade
de lazeres mais descomprometidos e, possivelmente, agitados - as famílias aproveitando um
justo descanso em suas casas e os bares povoados por quem busca diversão (por essa
perspectiva, Toda uma noite, sendo composto por cenas internas em algumas destas locações,
aproxima-se mais da representação de um sábado à noite do que o filme de Ivo Lopes Araújo).
Sendo assim, embora uma distinção entre as noites da semana, apontada pelo título, seja, em
certa medida, endossada pela ideia de recomeço de ciclo e início de uma nova semana,
apresentada ao final do filme através da nova manhã que nasce (aqui, percebemos um certo
grau de “otimismo” se compararmos à conclusão apresentada por Chantal Akerman, que será
abordada em breve), para a cidade, na plenitude de sua solidão noturna, todas as noites são a
mesma.
Provavelmente, o que há de mais exemplar nesta convergência de sentidos seja a constatação
de que ambos os filmes iniciam-se com abordagens estéticas e estruturais semelhantes, ou seja,

627
eles partem quase do mesmo lugar, rumo a uma significação análoga da noite. O ápice desta
harmonia mostra-se em planos quase idênticos contidos em ambas sequências introdutórias:
em um movimento de travelling para trás, a câmera, em ângulos frontais similares nos dois
filmes, acompanha a movimentação de carros em uma avenida. O que se destaca nesses planos
e em outros planos iniciais de ambas as obras é, a princípio, o caráter sensório dos
enquadramentos baseados na experimentação de luzes, movimentos e texturas, aspectos
recorrentes em um cinema dito de fluxo, porém, ao analisá-los dentro de seus blocos
sequenciais, é possível perceber que não apenas suas posturas estéticas são dialógicas, mas
também suas significações.
Nota-se, em ambas sequências iniciais, o intuito de marcar a movimentação de retorno às casas
feita pela população após o fim da jornada de trabalho, caraterística dos começos de noite
urbanos. Essa distinção, entre o diurno para fins econômicos e o noturno como espaço de
potências que superam os interesses meramente capitalistas, é exposta em estudo de Pedro
Rena (2020). O autor, ao observar um aumento da recorrência de filmes brasileiros compostos
majoritariamente por cenas noturnas, defende a utilização estética da noite como alternativa a
um regime neoliberal da visibilidade total, da transparência e da razão, associado ao diurno:
Filmes que aceitam a noite como território de invenção do sonho e da
fabulação, na força que a imaginação tem de expandir o campos (sic)
dos possíveis para a intervenção no real. Aceitar a noite como espaço
dos mistérios e dos enigmas, das imagens e dos povos que não se
deixam apreender como informação transparente e racional,
irredutíveis a uma explicação lógica ou à sua transformação em dados
categorizáveis pelos dispositivos de controle e dominação. (p. 11)

A cena final de Toda uma noite mostra-se como um exemplo categórico desta relação:
iluminados pela nova manhã, mas ainda tomados por seus não-seres noturnos, um casal dança
enquanto a mulher reflete sobre o porquê de amar outro homem (as tentativas de
racionalização dos sentimentos começam a aparecer, não por acaso, conforme o dia consolida-
se progressivamente na sequência final da obra), aos poucos, a música romântica que embala a
coreografia começa a disputar espaço com o barulho do trânsito que já se inicia, até ser
interrompida abruptamente por um toque de telefone - a mulher atende e, respondendo uma
série de monocórdicos "sims", entrega-se à mecanicidade, à burocracia, à funcionalidade de sua
existência diurna.
Embora a discussão exposta acima possua tons sociológicos e psicologizantes que rumam a uma
objetividade preterida por Bachelard em seu período de reflexão fenomenológica acerca da
imagem poética, contexto denominado de “fase noturna” (MACHADO, 2016), em que se insere

628
a obra A Poética do Devaneio, vemos nela aspectos importantes de serem considerados acerca
do modo de representação da paisagem urbana noturna destes dois filmes, sustentadas aqui
como possíveis vestígios de um não-ser noturno. Afinal, é possível observar, partindo mesmo de
nossas vivências imediatas com a cidade, que a relação com a paisagem urbana é fortemente
afetada por essa consciência capitalista diurna baseada no racionalismo e no funcionalismo,
citada por Rena (2020). Como indivíduos, construímos grande parte de nosso vínculo com o meio
urbano a partir, primeiramente, das utilidades práticas dos espaços, ou seja, a razão de ser
espacial é, para nós, condicionada à priori pelas funções sociais e econômicas. Esse modo de se
relacionar com o mundo, é claro, não poderia influenciar apenas nossas experiências com o
entorno paisagístico. Ele se mostra também em nossas relações humanas, interpessoais e com
nós mesmos - nossa essência, nosso próprio modo de ser.
É importante ressaltar que as questões relativas ao ser, e, por consequência, ao não-ser, são de
tamanha complexidade que, ao mesmo tempo em que comportam as discussões levantadas
acima, vão muito além destas, tendo despertado inúmeras outras reflexões de variadas
naturezas dentro das mais diversas vertentes das ciências humanas. Porém, justamente por
estar o ser humano sempre margeando a intangibilidade, inclusive imageticamente, é que
defendemos que as paisagens urbanas noturnas de Toda uma noite e Sábado à noite, ao nos
serem dadas em suas não-existências mais diretas, sejam capazes de se apresentar como
vestígios dessa força noturna que retorna o humano e a paisagem às suas condições primordiais
de matéria pura.

4 - Considerações finais
Ao decorrer das discussões aqui expostas, torna-se possível perceber, então, que os filmes
abordados caminham ao encontro de uma equivalência ontológica entre humano e paisagem,
baseada em suas substancialidades primeiras - Toda uma noite estaria, portanto, coisificando
seus personagens, enquanto Sábado à noite personifica a cidade. No cerne dessa convergência,
temos a exploração da paisagem urbana noturna por meio de um viés estilístico
convencionalmente denominado de Cinema de Fluxo. Conforme abordado por Oliveira Jr.
(2010), esta tendência estética teria, em seu âmago, o desejo de retomar uma certa inocência
presente no primeiro cinema de Lumière, definido, por Aumont (2004), como a continuidade de
uma postura impressionista em ascensão nas artes visuais desde o início do séc. XIX. É nesta
materialidade da natureza impressionista, uma natureza qualquer, que o Cinema de Fluxo
encontra seu característico apreço pela sensório e onde, para Oliveira Jr. (2010, p. 116), “reside

629
o caos originário, a ilimitada potência do ‘não-ser’”. Bachelard (2018), por sua vez, apresenta
sua proposta e reflete sobre uma possível Metafísica da Noite em torno desta mesma ideia de
não-existência. Este não-ser, de difícil definição, chega, a nosso ver, muito próximo de uma
conceituação imagética através das paisagens urbanas capturadas por Chantal Akerman e Ivo
Lopes Araújo, justamente por se mostrar inerente às qualidades noturnas e materiais dessas
imagens. Retomando Bachelard (2018, p. 140), uma última vez, em seu momento de devaneio
poético em que mais se aproxima de uma definição do não-ser como um “ausentar-se em seres
que se ausentam, tal é a fuga absoluta, a demissão de todas as potências do ser, a dispersão de
todos os seres do nosso ser”, propomos uma reflexão final: não seriam, então, as paisagens
urbanas noturnas do Cinema de Fluxo, aqui representadas por Bruxelas e Fortaleza, as imagens
precisas destes seres ausentes nos quais, em todas as noites, nos ausentamos?

Referências
AUMONT, J. O olho interminável: cinema e pintura. Trad. Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Cosac Naify,
2004.

BACHELARD, G. A poética do devaneio. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2018.

CAPISTRANO, R. O documentário (re)inventa a cidade: uma análise de Sábado à Noite (2007). Anais do
XXVII Simpósio Nacional De História: conhecimento histórico e diálogo social, Natal, p. 1-14, jun. 2013.

MACHADO, F. S. Diurno e noturno no pensamento de Gaston Bachelard. In: Cadernos do PET Filosofia,
Goiás, Vol.7, n.13, p.11-23, jan.-jun. 2016.

MARGULIES, I. Nada acontece: o cotidiano hiper-realista de Chantal Akerman. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2016.

OLIVEIRA JR., L. C. O cinema de fluxo e a mise en scène. 2010. 155 p. Dissertação (Mestrado em Meios e
Processos Audiovisuais) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

RENA, P. Na noite da noite escura: figuras da noite no cinema brasileiro contemporâneo. Anais do XX
Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, Bahia, p. 1-15, dez. 2020.

Filmografia

SÁBADO à noite. Direção: Ivo Lopes Araújo. Ceará: Alumbramento, 2007. 1 vídeo (62 min), p&b.
Disponível em: https://vimeo.com/71754704. Acesso em: 29 janeiro 2020

TODA uma noite (Toute une nuit). Direção: Chantal Akerman. Bélgica: Paradise Films, 1982. 1 DVD (90
min), color.

Este artigo foi contemplado pelo eixo de pesquisa do edital Janelas Para as Artes, promovido
pela Fundação Cultural Cidade de Aracaju (FUNCAJU) com os recursos federais da Lei Aldir
Blanc.

630
631
ARQUITETURA PARA OS NOSSOS SENTIDOS E CINEMA PARA NOSSA IMAGINAÇÃO: O
Centro Histórico de São Luís pela estética noir
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Larissa Bianca Anchieta


Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Universidade Estadual do Maranhão;
larissaanchieta.1004@gmail.com.

Rose-France de Farias Panet


Doutora em Antropologia e Políticas Públicas; Universidade Estadual do Maranhão;
rosepanet@gmail.com.

No Centro Histórico de São Luís, arquitetura e memória dialogam entre si e resultam em variadas
percepções e olhares. Da união de perspectivas entre arquitetura, traçados urbanos e cinema,
encontramos um modo de trazer novos olhares para esta paisagem urbana. Este trabalho é um
recorte de uma pesquisa sobre a estética arquitetônica do conjunto colonial português, do
Centro Histórico de São Luís e a linguagem narrativa e estética do cinema noir. Arquitetura
relaciona-se com o cinema de formas diversas, mas especialmente com a relação essencial que
o cinema possui com a cenografia. Casarões, lampiões, arcos, portões de ferro, janelões
envidraçados e escadas são elementos arquitetônicos encontrados nos filmes desta categoria
que caracterizam sua cenografia e também, o centro histórico ludovicense.
Palavras-chave: Cinema; Arquitetura; Centro Histórico.

In the São Luís’s Centro Histórico, architecture and memory dialogue with each other and result
in varied perceptions and views. From the union of perspectives between architecture, urban
planning and cinema, we found a way to bring new perspectives to this urban landscape. This
work is an excerpt from a research on the architectural aesthetics of the Portuguese colonial
ensemble, from the Historic Center of São Luís and the narrative and aesthetic language of
cinema noir. Architecture relates to cinema in different ways, but especially with the essential
relationship that cinema has with scenography. Colonial houses, lanterns, arches, iron gates,
glass windows and stairs are architectural elements found in the films of this category that
characterize its scenography and also, the historic center of São Luís.
Keywords: Cine; Architecture; Centro Histórico.

632
1 – Laços entre cinema e arquitetura: Coabitações e ressignificações de sentidos
O cinema, ao longo de sua história, reflete o contexto social e cultural do qual está inserido e
revela pelos olhos de cineastas, roteiristas, diretores e todos os componentes de cada uma das
obras, uma visão insólita e com construções estéticas bem articuladas sobre o mundo, de modo
que insira o expectador ao universo criado a partir da realidade que constitui a magia do cinema.
Para JOSINO (2017), pode-se notar uma relação entre a arte e arquitetura pelos intrínsecos
símbolos que os espaços carregam. A relação da percepção humana com a arquitetura é
notoriamente ampla. As experiências acerca da luz, da sombra, os símbolos cíclicos, as
sensações que se tornam possíveis pelo tato fazem parte da experiência da arquitetura. Neste
contexto de criação de mundos, o cinema traz a cenografia para nos abarcar em uma experiência
semelhante. Devido ao seu caráter bidimensional, a experiência sensorial é alimentada com a
intensificação das imagens e dos sons.
A percepção é cercada de subjetividades devido a sua inerente individualidade, desta maneira,
torna-se de grande complexidade realizar análises da arquitetura de forma sensorial em busca
de respostas objetivas e concretas. Existe uma tendência em estudos voltados para a arquitetura
e a fenomenologia, conceituando-se a experiência multissensorial das emoções gerados por
cada indivíduo a partir da vivência, mesmo que breve, em uma determinada edificação.
A arquitetura pode ser “absorvida” de várias formas: a luz que entra pela
janela, a ventilação natural que atravessa os cômodos, a isolação acústica ou
a falta dela, as aberturas e fechamentos para o exterior... tudo é considerado
na análise fenomenológica. A relação destes elementos intangíveis
relacionados às memórias do usuário e às convenções sociais é de suma
importância para entender a percepção humana pela abordagem
fenomelógica. (JOSINO, 2017, p.17)

Para MERLEAU-PONTY (1994), a percepção dá o primeiro contato de nossas relações com o


mundo assim como a própria ideia de verdade e a gênese da racionalidade. A percepção é o
contato inicial que temos com os estímulos externos antes mesmo de torná-los como aspectos
conscientes da nossa experiência. Durante a história de uma determinada cultura, pode-se
afirmar o desenvolvimento de convenções sociais comportamentais que influenciam a
concepção de conceitos gerais para a percepção humana, dado isso, um grupo de indivíduos
participantes de uma mesma cultura podem possuir grande semelhança acerca da percepção
sobre um certo aspecto, mesmo que tenham experiências individuais.
Deve-se compreender a história a partir da ideologia, ou a partir da política,
ou a partir da religião, ou então a partir da economia? Deve-se compreender
uma doutrina por seu conteúdo manifesto ou pela psicologia do autor e pelos
acontecimentos de sua vida? Deve-se compreender de todas as maneiras ao
mesmo tempo, tudo tem um sentido, nós reencontramos sob todos os

633
aspectos a mesma estrutura de ser. Todas essas visões são verdadeiras, sob a
condição de que não as isolemos, de que caminhemos até o fundo da história
e encontremos o núcleo único de significação existencial que se explicita em
cada perspectiva. (MERLEAU-PONTY, 1994, p.17)

A experiência estética está intimamente ligada com a percepção e as representações


simbológicas e imagéticas. DURAND (2002) reúne um conjunto de classificações simbológicas
acerca das estruturas antropológicas componentes do imaginário humano. Símbolos
nictomórficos, espetaculares, diairéticos e catamorficos serão abordados com mais
profundidade nos próximos capítulos sobre a estética noir. A experiência da arquitetura é
subjetiva e individual, mas não é isolada para um único sujeito, devido a semelhança que esse
carrega com algum determinado grupo, a construção da estética para a experiência individual
do expectador no cinema baseia-se em percepções sobre o mundo que são coletivas.
Podemos relacionar a arquitetura com o cinema de formas diversas, mas especialmente com a
relação essencial que o cinema possui com a cenografia. SVOBODA (apud URSSI, 2003), descreve
a cenografia como o entreato do espaço, do tempo, do movimento e da luz além de possuir o
poder de expressar-se através das qualidades inerentes do espaço com os conceitos básicos
arquitetônicos. Forma, escala e iluminação são concepções que se encontram tanto na
arquitetura como no cinema. Enquanto no campo arquitetônico esses conceitos consideram
essencialmente as condições de bem-estar do usuário do espaço, na cenografia esses conceitos
são responsáveis pela aproximação do expectador com a obra cinematográfica.
O arquiteto Robert Mallet-Stevens (apud BARATTO, 2017), defendia que o cinema tem uma
influência na arquitetura moderna, que por sua vez, a arquitetura evidencia seu lado artístico
no cinema e que não se trata apenas de mero cenário cinematográfico, mas uma possibilidade
de “romper” o enquadramento para aproximar e imergir o expectador de modo que a
arquitetura também “atua” em um filme. O cenário é construído com cada elemento pensando
estrategicamente para fazer parte do sentido de uma determinada cena.
BETTON (1987) exemplifica a relação do expectador com os elementos cenográficos através do
paradoxo da arte realista usando a ideia de como a aquarela de um determinado objeto comum
e cotidiano pode ganhar atenção, admiração e até certo deslumbre do observador pelo enfoque
colocado. Colocar valor poético ao que muitas vezes passa despercebido é uma forma de
restringir o campo de visão e fortificar toda a relação estética e simbólica que cada elemento
possa possuir. A estética cinematográfica construída com a cenografia possui uma série de
representações simbológicas que dialogam com a arquitetura. BETTON (1987) ressalta a

634
necessidade de compreender que todos os elementos são importantes para o conjunto da
estética cinematográfica e que todos interferem no mesmo.

2 – Entre sombras e mistérios: O Cinema Noir


Não existe um consenso sobre o que precisamente defina um filme noir (LIRA, 2015, p. 27).
PAVÉS (2003 apud LIRA, 2015) revela que a quantidade de trabalhos publicados acerca do
cinema noir contribuiu fortemente para a popularidade do tema, mas aumentou as teorias e
definições amplamente sobre o que seria de fato um filme noir. Ainda no entender de PAVÉS
(2003 apud Lira, 2015) seria a repetição de temas, tipos de personagens, cenários, técnicas e
elementos iconográficos que levam ao agrupamento de diversos filmes com a classificação de
noir.
[O cinema noir consiste num] desvio ou evolução dentro do vasto campo do
gênero drama criminal, que teve o seu apogeu durante os anos 40 até meados
dos anos 50 e foi uma resposta às condições sociais, históricas e culturais
reinantes na América durante a Segunda Guerra Mundial e no imediato pós-
guerra. Nele se combinariam, basicamente, as formas da ficção criminal
americana (...) com um estilo visual inspirado nos filmes expressionistas dos
anos 20 (MATTOS, 2001, p. 23 apud LIRA, 2015, p.27)

No início da década de 1930, com a Lei Seca, os Estados Unidos introduzem personagens como
gangsters e mafiosos na cinematografia estadunidense. Cenas urbanas marcadas por temas
como violência, corrupção e criminalidade estão no centro destas narrativas. Apesar da grande
influência do expressionismo alemão, temas mais mórbidos dão lugar a dramas criminais. O
cinema noir tem sua produção marcada nos anos 40 e 50 nos Estados Unidos, segundo Silvia
Harvey, citada por Mattos (2001 apud LIRA, 2015), Relíquia Macabra (1941) de John Huston
inaugura essas produções e o fechamento ocorre com A Marca da Maldade (1958) de Orson
Welles. No noir encontra-se a ambiguidade de ser reflexo do social, do que a sociedade quer
ocultar, quer censurar ou perseguir e que o cinema noir virá apontar de modo sublimado, obtuso
e até perverso em sua estética subjetiva do real. (ORTEGOSA, 2010, p. 38)
O noir é marcado pelo Regime Noturno estudado por DURAND (2002) com as representações
simbológicas nictomorficas (relativas à noite, sombra, trevas e escuridão), catamórficos (a queda
moral e física), cíclicos (retorno) e diairéticas (divisão) em contrapartida com o Regime Diurno
com os símbolos ascensionais (verticalizantes) e espetaculares (em relação a luz). A estética noir
é marcada pelo do contraste do preto-branco que proporciona um jogo acentuado de luz e
sombra, uma influência herdada do expressionismo além de atmosfera de mistério constante.
As cores, a noite e a cenografia fazem parte da narrativa e ajudam a imergir o expectador nas

635
histórias. A arte torna-se a mediadora entre o filme e o expectador através da estética. A
arquitetura presente nos cenários dos filmes noir, é aquela composta por espelhos, portões de
ferro, grandes frontões, arcos, lampiões de rua, escadas e janelas. A estética construída através
destes elementos arquitetônicos pode simbolizar temas, sentimentos e até mesmo uma própria
linguagem para adentrar o expectador na narrativa.
Cada objeto, elemento arquitetônico, a iluminação, os planos e os enquadramentos podem
provocar sentimentos diferentes. São representações simbológicas para enfatizar o contexto do
qual está se tratando. A cenografia não só faz parte como também é a própria narrativa. As
frestas de uma persiana podem revelar ou ocultar informações enquanto a luz pode dar enfoque
ou a sombra pode distorcer as formas em um jogo de cumplicidade e ilusão entre o cinema e o
expectador.

3. O Centro Histórico de São Luís e as interfaces da cenografia noir


Fundada em 1612 pelos franceses Daniel de La Touche e François de Rassily, conquista por
portugueses em 1615, invadida por holandeses em 1641 e colonizada por portugueses a partir
de 1645. A história de São Luís é repleta de batalhas e influências da arquitetura europeia. A
tipologia arquitetônica ludovicense dos séculos XVIII e XIX caracteriza-se de construções em
alvenaria de pedra e argamassa com óleo de peixe, serralheria e cantarias de lioz de origem e
madeira de lei. No Centro Histórico de São Luís é possível encontrar uma grande diversidade de
estilos, tais como o tradicional português, neoclássico, moderno, art decor, neocolonial, eclético
e popular. Entre a segunda metade do século XIX, os casarões passaram a apresentar porões
altos com introdução de óculos e a utilização de plantibandas, janelas com peitoris e gradis e
ferro, bandeiras de vidro nas folhas e uma elevação no solo (REIS FILHO, 1970).
O traçado urbano do Centro Histórico foi preservado, assim como um grandioso número de
casarões, tais fatores fizeram com que este espaço fosse tombado pelo Governo Federal, tem
grande importância histórica e é reconhecido como Patrimônio Mundial da Humanidade pela
UNESCO. As edificações também possuem outros aspectos que favorecem sua adequação ao
clima local, como os pés-direitos e as varandas guarnecidas de esquadrias como venezianas,
voltadas para os pátios internos. Além destes elementos, as fachadas azulejares de origens
portuguesas, francesas e holandesas assim como os lampiões seculares, caracterizam o Centro
Histórico em um espaço rico de memórias, detalhes e muita história.
Ademais de tanta história, o Centro Histórico passou por grandes momentos de muita
desvalorização e desprezo pelo poder público no século XX, o que culminou em anos de

636
abandono e marginalização. Atualmente, devido a projetos governamentais de preservação e
ocupação deste espaço, o berço da história ludovicense retorna a pequenos passos a um
passado de movimentação e valorização pela população. Ressignificar o Centro Histórico sob
nuances de novos aspectos e linguagens colabora para que toda espécie de marginalização
destes espaços seja mitigada e novas possiblidades de pertencimento e ocupação possam ser
realizadas. O conjunto arquitetônico e urbanístico do Centro Histórico assemelhasse com a
cenografia noir, arquitetura e cinema encontram-se nas encruzilhadas deste espaço repleto de
histórias e originam novas percepções sob a luz da imaginação.
No noir, a iluminação pode ser uma mensageira, um relato de terror, a personificação da tensão
e do mistério. Segundo JOSINO (2017), a arquitetura tem uma relação íntima com a iluminação
em todas as suas nuances, podendo trazer sensações de conforto, agradabilidade, descanso e o
oposto, mal-estar, medo e inquietações, tudo irá depender da técnica usada. Na estética noir, a
luz tem grande valor simbólico e um elemento narrativo para expressar a subjetividade de um
personagem, a tensão e os signos de uma cena (Figura 1). Tão importante como compreender
o uso da luz nesta estética, é preciso estar ciente também de sua antítese, a sombra. O contraste
da luz âmbar na escuridão da noite no Centro Histórico de São Luís é produzido pelos lampiões
que contornam as ruas. Do mesmo modo que nos filmes noir, os funcionamentos destes
instrumentos são utilizados para iluminar e caracterizar o aspecto temporal. Enquanto pode-se
encontrar tipos de lampiões variados em cada filme noir, em São Luís há um modelo bastante
comum (Figura 2).

Figura 1 - Postes na rua do cenário do filme Almas Perversas de 1945.

Fonte: Universal Studios, 1945.

637
Figura 2: Rua do Egito no Centro Histórico de São Luís.

Fonte: Arquivo pessoal, 2019.

As sensações trazidas através da iluminação são diversas a depender de seus aspectos


projetuais, se no cinema noir é um componente primordial para a inserção do espectador nas
narrativas, pelas ruas do Centro Histórico são os lampiões que guiam e direcionam os passos de
quem as habitam. A semelhança entre as tipologias de lampiões encontradas é notória, ainda
mais pela relação entre os reflexos e os casarões coloniais de tantos elementos que também
podem ser relacionados.
Ao caminhar pelas ruas seculares do Centro Histórico, os reflexos das luzes âmbares de seus
lampiões elucidam portões e gradis de ferro assim como janelas largas e envidraçadas. Ao
falarmos da estética noir, observa-se o uso de portas largas e com vidros e também, portões de
ferro. São elementos que não ocultam completamente e nem revelam tudo, trazendo um ar
misterioso, tenso e de suspense para o expectador acerca do que irá acontecer. Torna-se a
entrada ou saída de um novo acontecimento ou a transição para um novo contexto. Na parte
externa, em maior parte dos filmes noir analisados foi possível notar o uso de portões de ferro
largos com linhas bem rebuscadas. O uso do portão de ferro é presente e semelhante como
encontrado no Centro Histórico de São Luís (Figura 03).

638
Figura 3: Rua da Palma no Centro Histórico de São Luís.

Fonte: Arquivo pessoal, 2019.

Tanto nas fachadas como nos interiores, outro elemento marcante do Centro Histórico são os
usos de arcos e formações arqueadas em portas e janelas. Os arcos são elementos que surgem
na antiguidade com o Egito e a Mesopotâmia, mas é em Roma que começam a serem utilizadas
em grande escala. Ching (2019), define o arco como uma estrutura curva destinada a vencer um
vão e que a finalidade de transferir uma carga vertical. Ao longo da história, muitas vezes os
arcos foram usados também para evocar a ideia de poder e beleza. São elementos muito
recorrentes na estética noir, sempre caracterizando espaços luxuosos (Figura 04). No cinema e
no Centro Histórico, o arco é uma mensagem, um componente histórico, um sinalizador de
poder e grandiosidade (Figura 05).

639
Figura 4: Cena em que mostra arcos como elemento da fachada em A Marca da Maldade (1958).

Fonte: Universal Studios, 1958.

Figura 5: Convento das Mercês, localizado em São Luís (MA).

Fonte: Arquivo pessoal, 2020.

Os elementos arquitetônicos presentes nas ruas do Centro Histórico contam histórias,


memórias, (des)afetos, ideias e discursos. Cada aspecto advém de composições estéticas e
funcionais da semiótica de imaginários coletivos que coabitam em sentidos materializados. Ao
estabelecer um comparativo destes elementos com a cenografia dos filmes noir, encontra-se
semelhanças de acepções e perspectivas. Cada plano e enquadramento destaca um elemento
cenográfico de modo que este participe da narrativa e seja um elemento de persuasão do
diálogo do irreal e o real aos olhos espectador. A arquitetura e a cenografia direcionam nossos
sentidos e o nosso imaginário caminha com o cinema para novas ressignificações. O noir e o

640
centro histórico são palcos para o estabelecimento de novas relações que dialogam sobre o
imaginário e as sensações.

Considerações finais
O desenvolvimento do presente estudo possibilitou uma análise das relações existentes entre a
arquitetura e a estética construída com o cinema noir assim como seus elementos
correspondentes e sua importância. O cinema coloca a arquitetura em evidência, por esta, ser
parte inerente da narrativa, pode-se criar cenas de conforto estético ou desgosto visual dando
ênfase para compreender o contexto do qual está sendo tratado. Para cada estilo, escola ou
movimento cinematográfico, a arquitetura pode possuir propósitos diferentes carregando
símbolos em cada elemento que podem ser usados de acordo com a relação de interação
almejada para o espectador. O cinema noir é um exemplo do uso de contrastes e simbologias
na sua estética cenográfica cuja relaciona-se diretamente com a arquitetura.
Cada elemento cenográfico não é por acaso, analisar contextos históricos, antropológicos,
perceptivos e simbólicos são importantes para entender o processo básico da similitude entre a
arquitetura e o cinema. Com base nos estudos e nas análises dos filmes expostos, verificamos
que os usos dos elementos arquitetônicos como escadas, arcos, portões de ferro, portas largas,
janelas com persianas e espelhos são semelhantes e recorrentes em diversos detalhes e são
alguns dos aspectos responsáveis por constituir a estética noir. Apesar de que o cinema noir
possui origens e influencias internacionais, foi possível verificar que o Centro Histórico de São
Luís possui vários elementos arquitetônicos encontrados em cenários da estética noir e que
poderia ser o cenário ideal para a produção de um filme desse tipo, no caso deste gênero
cinematográfico ser caracterizado apenas pela sua estética, além do seu conteúdo.
Reconhecimento, valorização, análise de detalhes arquitetônicos e a produção de fotografias
com diferentes técnicas do Centro Histórico também foram resultados desta pesquisa. A
arquitetura do Centro Histórico faz parte da narrativa de milhares de pessoas que por lá já
passaram ou viveram. Entre suas ruas e becos, na noite com seus lampiões acesos refletindo nos
azulejos e que contornam as calçadas de pedras de cantaria, as portas largas e os portões de
ferro dos casarões aliados as escadas e os arcos nos ambientes internos nos seus casarões
seculares e em toda sua poeticidade encontramos narrativas que se apresentam ao imaginário
cheias de encanto e mistério, luzes e sombras, ao mesmo tempo, arquitetura para os nossos
sentidos e cinema para nossa imaginação.

641
Referências

BARATTO, Romulo. Como a arquitetura fala com o cinema. Archdaily, 2017. Disponível em
<https://bit.ly/37TUJRQ>. Acesso em 07 de janeiro de 2020.

BETTON, Gerard. Estética do cinema. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

CHING, Francis; BINGGELI, Corky. Arquitetura de Interiores Ilustrada. Porto Alegre: Bookman, 2019

DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

JOSINO, Amanda. Narrativas do espaço: O papel do arquiteto na concepção cenográfica do cinema.


Trabalho de conclusão de curso – UEMA: São Luís, 2017.

LIRA, Bertrand. Cinema noir: a sombra como experiência estética e narrativa. João Pessoa: Editora da
UFPB, 2015.

LIRA, Bertrand. Luz e Sombra: significações imaginárias na fotografia do cinema expressionista


alemão. João Pessoa: Editora da UFPB, 2013.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins-Fontes, 1994.

ORTEGOSA, Marcia. Cinema noir: espelho e fotografia. São Paulo: Annablume, 2010.

PEDROSA, Mário; ARANTES, Otília. Forma e percepção estética. São Paulo: EDUSP, 1997.

REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da Arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1970.

URSSI, Nelson. A linguagem cenográfica. São Paulo: EdUSP, 2003.

642
BRASÍLIA EM MOVIMENTO: conexões entre a preservação e a percepção da
paisagem urbana.
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Liz da Costa Sandoval


Doutorando em Arquitetura; FAU-UnB; arq.liz.sandoval@gmail.com.

Rogério Rezende
Doutorando em Arquitetura; KU Leuven; rr.kuleuven@gmail.com

Luciana Sabóia Cruz


Professora Adjunta; FAU-UnB; lucianasaboiacruz@gmail.com

Este artigo propõe a discussão sobre a possibilidade de se considerar o movimento como


elemento perceptivo e interpretativo da paisagem urbana de Brasília. Ao analisar a Memória
Descritiva do Plano Piloto, documentos, fotografias e filmes, é notável que as representações da
cidade sugerem o movimento e sua duração como uma das características fundamentais do seu
desenho urbano e da construção e da percepção da paisagem de Brasília. Considera-se que a
construção de Brasília se constitui não apenas de um registro material, mas também de um
imaginário que corporifica essa relação entre modernidade e movimento. Pretende-se, sem
apontar uma conclusão, instigar o debate sobre a possibilidade de incluir o movimento como
uma categoria constitutiva do projeto nas iniciativas de preservação de Brasília.
Palavras-chave: Brasília, Paisagem, Cinema, Movimento, Preservação

This article proposes a discussion on the possibility of considering movement as a perceptive and
interpretive element of the urban landscape of Brasilia. When analyzing the Descriptive Memory
of the Pilot Plan, documents, photographs and films, it is notable that the representations of the
city suggest movement and its duration as one of the fundamental characteristics of its urban
design and the construction and perception of the landscape of Brasilia. The construction of
Brasília constitutes not only a material record, but also an imaginary that embodies this
relationship between modernity and movement. It is intended, without pointing to a conclusion,
to instigate the debate on the possibility of including the movement as a constitutive category of
the project in Brasilia's preservation initiatives.
Keywords: Brasília, Landscape, Cinema, Movement, Preservation

643
1 –Introdução
Nas cenas de filmes realizados na primeira década da inauguração da capital, como “Brasília,
Planejamento Urbano” (FERNANDO CONY CAMPOS, 1964) e “Brasília: Contradições de Uma
Cidade Nova” (JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE, 1967), percebe-se a preocupação em mostrar o
funcionamento do tráfego dos veículos, a organização e setorização da cidade, mostrando-a
como um organismo resultante de um planejamento minucioso e preciso, semelhante a uma
máquina. São também exaltados os edifícios-símbolo da capital enquanto a cidade é percorrida,
de carro ou avião, e a narração em off a apresenta ao espectador (provavelmente não
habitante). Como exemplo, o filme “Brasília: Planejamento Urbano”, as principais inovações do
Plano de Lucio Costa são apresentadas:
Assim, foi dado ao motorista da cidade todas as vantagens do motorista de
estrada: tráfego desimpedido e contínuo. Deste modo, e com a introdução de
trevos completos e passagens de níveis, o tráfego de automóveis e de ônibus
se processa tanto na parte central como nos setores residenciais sem
qualquer cruzamento. Fixada a rede geral do tráfego, estabeleceu-se tramas
autônomas para o trânsito local dos pedestres garantindo-lhes o uso livre do
chão.(FERNANDO CONY CAMPOS, 1964)

A identidade de Brasília foi durante algum tempo hegemonicamente representada pela ideia de
modernidade e renovação, de uma cidade desenhada “a partir dos critérios e sensibilidade da
arquitetura moderna” (SOLÀ-MORALES, 1994, p. 40), sendo sua construção rapidamente
considerada um dos grandes feitos da humanidade. Algumas das mais conhecidas teorias e
projetos urbanos modernistas priorizavam soluções de circulação e distribuição através de
grandes eixos de circulação e hierarquia viária. O novo paradigma da rua - tratada mais como
espaço de circulação e menos como espaço de convivência - criou uma nova experiência que se
identifica no fluxo de veículos em velocidade e nos percursos dos pedestres em espaços
distintos.
Os princípios da forma urbana em Brasília, como as áreas livres entre os edifícios, as pistas de
circulação de automóveis e os eixos perspectivos que enfatizam o caráter monumental dos seus
edifícios mais representativos foram amplamente divulgados em filmes nos quais a câmera se
confundia com o olhar de um observador que a percorria em automóvel. As imagens oficiais,
produzidas para divulgação de Brasília, exploravam a iconografia e expressão plástica da
arquitetura modernista, assim como a presença da velocidade, da máquina e do automóvel
como um símbolo da modernidade.
Ao analisar os filmes, assim como a Memória Descritiva do Plano Piloto (COSTA, 1995a), os
discursos oficiais, publicidade e fotografias é notável a presença do automóvel e das máquinas

644
em suas prerrogativas projetuais e narrativas. Muitos dos filmes realizados na cidade
celebravam o triunfo do homem sobre o automóvel, então “domesticado". Enfatizava-se os
grandes eixos de circulação e, seja por meio das imagens dos carros em movimento, ou do
observador que via a cidade através do para-brisas, assim como dos percursos a pé ou de cenas
contemplativas da amplitude de sua paisagem.
As representações da cidade sugerem o movimento e sua duração como uma das características
fundamentais do seu desenho urbano e atuam na construção da percepção da paisagem de
Brasília. Doravante faz sentido considerar o entrelaçamento da trajetória da fotografia e do
cinema com a das cidades, registrando e revelando as novas condições da experiência cotidiana
moderna e dos fluxos urbanos. Neste sentido, a construção de Brasília constitui-se não apenas
de um registro material, mas também de um imaginário que corporifica essa relação entre
modernidade e movimento. Para Lara, “a própria ideia de construção de modernidade esteve
sempre intimamente ligada ao desenvolvimento da mobilidade”.(LARA, 2016)
No filme “Brasília, ano 10” (GERALDO SOBRAL ROCHA, 1970), que comemora o décimo
aniversário da capital, também se nota a intenção de explicar o funcionamento e as diferenças
em relação às outras cidades, no que diz respeito à circulação e setorização, utilizando os
mesmos percursos pelos eixos rodoviário e monumental, a bordo do automóvel. A maneira
como a sociedade se organiza em cidades é a questão principal nesse filme, que intercala trechos
de textos de Henri Lefebvre, Pero Vaz de Caminha e Lucio Costa, para discorrer sobre a maneira
de habitar no Brasil pré e pós-colonial. Entre imagens de uma corrida de automóveis no eixo
monumental, a corrida dos atletas com a tocha olímpica e uma partida de futebol, no entanto,
é possível perceber uma cidade viva, pessoas ocupando as vastas áreas públicas, jardins,
calçadas, e também os automóveis. Porém, em sua narração e ao retratar as paisagens amplas
e a arquitetura monumental, percebe-se uma marca da representação de Brasília: “Se se desejar
uma representação de cidade ideal e das suas relações com o universo, não é entre os filósofos
que se deve procurar essa imagem, e sim entre os autores de ficção científica”.
Os filmes que se produziram nesses 60 anos de existência de Brasília testemunham uma busca
por identidade e reconhecimento. A construção de suas paisagens é feita nos intervalos e
interseções entre os fatos históricos, a comunidade, as promessas, as ficções e a crítica. Nessas
múltiplas temporalidades se faz presente a condição da paisagem: “a memória ligada ao desejo
de habitar e a promessa de algo “permanente” frente à ansiedade e sentimento de “desabrigo”
que o mundo moderno nos impõe”. (CRUZ; TREVISAN, 2021)

645
Figura 01: frames do filme Brasília Ano 10.

Fonte: acervo do diretor (Geraldo Sobral Rocha).

Brasília, como representante da história e da cultura brasileiras, tem o fluxo e o movimento


como condição de sua paisagem – a conquista do país e seu progresso geraram intensas
migrações, os percursos e estradas que se abriram no centro e norte do país, e as vias de
circulação que definiram o projeto da capital – e vêm construindo uma identidade que transita
entre exaltação e decepção, memória e promessa, entre permanências e fluxos.
O texto aborda o conceito de paisagem como forma de integrar as escalas de permanências e
fluxos no território e na arquitetura. A paisagem aqui, portanto, não se refere a apenas um
enquadramento visual, mas à experiência vivida no tempo e no espaço. Diante disso, quais
sensações podem ser experimentadas quando se incorpora a experiência sensorial da cidade e
seus percursos a pé ou automóvel? Os conceitos da espacialidade moderna ainda estão
impregnados no ambiente construído? A partir das questões apresentadas, este trabalho
propõe a discussão sobre a possibilidade de se considerar o movimento como elemento
perceptivo e interpretativo da paisagem urbana de Brasília. Pretende-se, sem apontar uma
conclusão, instigar o debate sobre a possibilidade de incluir o movimento como uma categoria
constitutiva do projeto nas iniciativas de preservação de Brasília.

2. Brasília: paisagens em transição


Inaugurada em 1960, Brasília incorporou o ideário do urbanismo moderno da primeira metade
do século 20, como aquele expresso na Carta de Atenas (1933). Presente em todos os projetos
que concorreram à seleção do projeto para a nova capital do Brasil, a inspiração do urbanismo
funcionalista traçaria certamente o seu destino (CARPINTERO, 1998). Percebe-se que Brasília
incorporou também outras fontes: Carpintero (1998, p. 125) destaca a “estrutura linear

646
proposta por Soria y Mata, em 1882, a cidade-jardim, de Howard, de 1898, as técnicas
rodoviárias desenvolvidas na Alemanha e nos Estados Unidos na década de 20, além da evolução
dos instrumentos jurídicos de propriedade”. O autor acrescenta:
O caráter funcional comparece em todos (os projetos que concorreram ao
edital) e está como que entranhado na cultura brasileira. Todos definem, de
modo mais ou menos direto, zonas específicas, e talvez não fosse mesmo
possível pensar uma cidade, àquela época, sem usar tal recurso. Todos,
entretanto, apontam para as mesmas raízes positivistas do início do século
XIX, uns pela via racionalista, formal ou funcional, outros pelas vias orgânicas.
(CARPINTERO, 1998, p. 110)

Todas as propostas mostravam um deslumbre com as tecnologias, tanto de construção como de


circulação. O Plano de Lucio Costa apresentava apenas uma síntese do desenho da cidade, e
seu projeto foi desenvolvido a partir das diretrizes propostas pelo arquiteto. Embora a cidade
projetada e construída conserve grande parte dos princípios presentes na Memória Descritiva e
não a sua materialização exata, ela vem sofrendo inúmeras modificações desde a sua
construção, pelos mais diversos agentes.

Figura 02: Indicação dos percursos de automóveis e eixos viários.

Fonte: Relatório do Plano Piloto (1957)

Brasília é, portanto, um projeto em continua transformação, mas que, apenas 27 anos após a
sua inauguração, teve uma parte de sua área inscrita em um perímetro de conservação, mas
não apenas isso: a sua construção foi, além do conjunto de vias, espaços públicos e edifícios que

647
a compõem, o resultado de uma construção teórica e simbólica que se materializou nas
propostas do urbanismo modernista e notadamente em Brasília.
3. Modernismo, paisagem e movimento
Leonardo Benevolo, em “As origens da urbanística moderna” (BENEVOLO, 1994), define a cidade
industrial como um “fato novo” pela rapidez com que esta cidade se transformou e estimulou
mudanças, ressaltando a importância da indústria (e da máquina) e como ela representava ao
mesmo tempo a causa e a expectativa de transformação. A indústria e a máquina tiveram uma
presença importante no processo de alteração da paisagem, inclusive influenciando os
processos sociais relacionados a essa nova maneira de viver o espaço e o tempo na
modernidade.
Nos países industrializados, o período de instabilidade que correspondeu à virada do século XIX
para XX, colocou a difícil perspectiva entre escolher entre uma herança cultural do século
anterior, o repúdio ao ambiente urbano pré-industrial e as promessas de um mundo novo e
melhor da era da máquina. A reconfiguração do ambiente urbano demandou colocar em prática
ideias, conceitos e ideologias em busca de soluções urbanísticas, incentivadas, na primeira
metade do século XX, pela urgente reconstrução demandada pelas duas grandes guerras
mundiais (1914-1918 e 1939-1945) que acabaram por deixar o campo aberto para essas
experimentações.
A transformação na paisagem pelos projetos urbanos do período buscava mais eficiência na
organização da cidade. Eixos de circulação e vias expressas favoreceriam circulação de meios de
transporte conectando zonas de trabalho e moradia, e visavam uma melhor distribuição espacial
das funções na cidade acompanhada do discurso de que a arquitetura seria responsável por
pensar e organizar a estrutura social. Arquitetos e urbanistas do início do século XX acreditavam
que a reorganização do espaço urbano baseada em princípios de racionalidade seria a indutora
de transformações sociais.(FISHMAN, 1982)
O dilema colocado pela sociedade industrial foi absorvido pela arquitetura na modernização
urbana, assumindo a dificuldade de adaptação a este ambiente, que configurava uma nova
ordem, entre o público e o privado, entre as classes sociais, num novo espaço segregado pelo
acesso à cidade e aos bens de consumo e informações (SENNETT, 1976). A sensação de
movimento e fluidez se percebem pela utilização dos novos materiais e tecnologias resultando
em novas concepções de espaços, que buscavam representar a experiência dos corpos, da visão
e da velocidade das máquinas.

648
Essas características apreendidas das estruturas metálicas e o vidro das estações ferroviárias,
pontes, conservatórios e salas de exposições do século XIX seduziram os arquitetos modernos
por representarem o prelúdio da arquitetura do futuro. São estruturas que remetem à sensação
de movimento a partir da experiência de uma interpenetração de espaços em que a relação
entre o exterior e interior é constante e indefinida, de tal forma que, no final, não se pode fazer
uma distinção clara entre os dois. Esse novo tipo de experiência espacial é fundamental no
edifício moderno. (GIEDION, 2004)
Os conceitos de transitoriedade, fluidez, simultaneidade e a materialização desses conceitos em
forma de espaços funcionais foi a característica marcante dos movimentos de vanguarda nas
artes, arquitetura e cinema e predominaram o início do século XX. Como resultado dos enormes
avanços tecnológicos e industriais do século XIX e XX, o “novo homem” é moldado por uma nova
maneira de habitar e pensar em sua contradição: entre o avanço do pensamento (razão e
técnica) e o sentimento (angústia e transformação).
As grandes mudanças advindas dos processos de modernização e industrialização alteraram a
estrutura e organização do espaço. O aumento populacional nas cidades gerou uma nova
experiência relacionada ao ambiente urbano e a paisagem que sofreu rápidas mudanças depois
de anos presenciando lentas transformações. Todas essas mudanças espaciais, a aceleração das
trocas e do ritmo de vida propiciaram o surgimento de diversos dispositivos tecnológicos, tais
como a fotografia e o cinema, que modificaram diretamente a representação e a interação com
a paisagem urbana. A fotografia e, posteriormente, o cinema aboliram as barreiras de espaço
criando “simulacros transportáveis”(SOLÀ-MORALES, 1994), transformaram o espaço físico, e
também as estruturas sociais, promovendo novas maneiras de vivenciar o tempo e o espaço,
pensar e representar a vida nas cidades.
Sola-Morales (2002) lembra que os espaços construídos e materializados que associam a
arquitetura a uma técnica ligada à permanência, são também relacionados ao movimento, ao
tempo e à duração, que têm cada vez mais vitalidade na experiência urbana contemporânea.
Nesse sentido, a paisagem que era entendida, e vista, inicialmente como uma representação
contemplativa e presencial de um determinado território - um pano de fundo, estabilizado pela
presença da linha do horizonte e concebida por objetos inertes e naturais - tem gradualmente
dado lugar a novos entendimentos. A partir do desenvolvimento de novas tecnologias o conceito
tem se ampliado e incorporado outras dimensões espaço-temporais, movimento, velocidade e
virtualidade.

649
A paisagem surge como um conceito que abrange tanto a experiência do indivíduo e seu
contexto - o seu lugar - e não somente a visualidade. Assim, consideram-se os vínculos entre as
dimensões materiais e perceptivas do espaço, que evidenciam a paisagem como uma
construção social, pois somos nós, os habitantes, que reconfiguramos os espaços e, ao habitá-
los, redesenhamos e completamos a paisagem.
Para Solà-Morales a paisagem se caracteriza também pela definição dos limites, quando o
espaço é apreendido pela experiência do vagar pela sua superfície, pelo percurso que o desvela
e o torna acessível, reconhecível e familiar. Ainda que se encontrem abordagens distintas e
ampliadas sobre a paisagem, busca-se aqui abordar a unicidade que este conceito carrega, para
observar a experiência sensorial, o percurso e a duração como constituintes de uma experiência
sensorial de espaço - tempo.

4. Escalas como fluxos e ritmos: o patrimônio em movimento


Nos anos que sucederam a sua inauguração, Brasília já era considerada uma das maiores
materializações das premissas do urbanismo funcionalista e da arquitetura modernista. Com
esse reconhecimento, surgiu a “necessidade de abordar (a memória da cidade), de forma
culturalmente consciente, tecnicamente sistematizada e politicamente institucionalizada”. Em
1981 foi criado o Grupo de Trabalho (GT) para a criação de diretrizes para a preservação do
patrimônio histórico e cultural de Brasília. O grupo foi dividido em 3 frentes trabalho que
buscavam abordar as complexidades morfológicas e descontinuidades territoriais. O GT
preocupou-se com “o pré-existente (fazendas e núcleos urbanos vernaculares), as
manifestações pioneiras do movimento de arquitetura modernista, as de caráter provisório
(acampamentos de construtoras), e o meio natural e as morfologias paisagísticas”. O documento
produzido pelo grupo assumiu a importância da “natureza dinâmica de qualquer situação
arquitetônica” e que a preservação deve se submeter a esses atributos metamórficos à escala
na edificação e à escala de grandes frações urbanas, evitando a “cristalização dos espaços.” E
também “a flexibilidade do espaço arquitetônico e sua temporalidade; os aspectos ao mesmo
tempo concretos e perceptivos do espaço arquitetônico”. (GT Brasília, 2016, p. 55–60)
Embora o entendimento proposto sugira a percepção da cidade, eles estão associados apenas
aos seus aspectos morfológicos estáticos. As características relativas à circulação de Brasília e a
dinâmica dos fluxos em seu território parecem não ter sido considerados àquela época. Ainda
que “o foco em questões morfológicas atenda a necessária abordagem perceptiva dos lugares

650
porque ela é dirigida a sua forma física mediante atuação principalmente, dos sistemas tátil-
cenestésico e visual.”(GT Brasília, 2016, p. 60)
Em 1987, na ocasião da candidatura a Patrimônio Cultural da Humanidade e seu posterior
reconhecimento, um plano de preservação precisou ser elaborado. Junto a ele foi anexado o
texto Brasília Revisitada, redigido por Costa em 1987 (COSTA, 1995b), no qual foram destacadas
quais as características essenciais do Plano deveriam ser preservadas em vista da rápida
expansão que a cidade já apresentava naquele momento. De acordo com Costa, a articulação
entre quatro escalas: monumental, gregária, residencial e bucólica, era o princípio que
sintetizava a concepção urbanística da cidade. Apesar da importância atribuída ao conceito de
“escala”, ele não estava presente na Memória Descritiva de 1957, ao menos não de forma
explícita. Ainda que muito difundida, a ideia de escala ainda gera dúvidas e, consequentemente
diversas tentativas de clarificar o conceito.
Neste artigo, as escalas propostas por Costa são entendidas não como elementos estáticos ou
bem definidos, mas como relações entre as partes e o todo. Configurando, em cada uma das
quatro, diferentes relações de intensidade entre usos predominantes/complementares, áreas
naturais/construídas, paisagismo, densidade de construção, espaçamento entre edifícios, entre
outras. Neste sentido, cada escala apresenta características que estabelecem ritmos e se
relacionam com gradações de intensidade.
Apesar das inegáveis relações entre Brasília e o urbanismo funcionalista, como já foi
demonstrado, existem também particularidades distintivas entre ambos. A elaboração do plano
de Brasília se insere em um contexto de revisão dos princípios do urbanismo funcionalista.
Apesar de não ser um membro presente nos CIAM, Costa era um dos delegados responsáveis
pela disseminação do modernismo na América Latina desde 1937 (LE CORBUSIER, 1973, p. 109).
Na década de 1950 a rejeição aos postulados da Carta de Atenas foi reforçada pelo CIAM 8,
quando se questionou o mecanicismo do urbanismo funcionalista em favor dos aspectos
simbólicos e culturais. A discussão havia sido levantada por arquitetos italianos, no contexto de
reconstrução de suas cidades no pós-guerra, pela necessidade de se valorizar aspectos culturais
que se refletiam no desenho das cidades. Os centros urbanos foram reconhecidos como uma
quinta função da cidade e responsáveis pela vida coletiva por concentrar os edifícios públicos,
monumentos, equipamentos culturais e comércio. Questionou-se também as premissas
rodoviaristas, das vias expressas, em defesa da necessidade de se criar espaços urbanos que
possibilitassem a circulação de pedestres em segurança. (TYRWHITT, 1979)

651
Figura 03: Representação dos percursos de exclusivos de pedestres.

Fonte: Relatório do Plano Piloto (1957)

Embora pouco explorada, a questão do rodoviarismo e do centro cívico em Brasília as conectam


com o movimento de revisionismo da Carta de Atenas. Ao analisar o desenho de Costa para
Brasília se percebe a ideia do centro cívico como uma quinta função da cidade, que relaciona o
centro da vida cívica com a escala gregária, a notar a presença dos elementos discutidos no CIAM
8 tais como: maior proximidade entre edifícios, densidade, espaços públicos diversificados,
centro de compras, e passeios de pedestres.
Nos desenhos que ilustram a Memória Descritiva pode ser percebida a diferenciação dada à
representação das áreas de circulação de pedestres e veículos. Na Figura 02 os eixos de
circulação de veículos são representadas como setas e percursos definidos. Já na Figura 03 as
linhas pontilhadas mostram as múltiplas possibilidades de percursos de pedestres em diferentes
setores da cidade. A configuração destes espaços, projetados para finalidades específicas,
configuram percursos em velocidades diferentes e resultam em percepções distintas para cada
observador.
Nota-se também que a circulação não representa uma “função”, como postulava a Carta de
Atenas, mas um elemento articulador das escalas, que as conecta em diferentes níveis e
velocidades, sugerindo, mas não definindo, em cada escala, a predominância de circulação de
pedestres e veículos. Se, por um lado, Costa reforça no documento Brasília Revisitada que nas
longas distâncias: “o plano de Brasília teve a expressa intenção de trazer até o centro urbano a
fluência de tráfego própria, até então, das rodovias (…) vontade de desafogo viário, a ideia de
se poder atravessar a cidade de ponta a ponta livre de engarrafamentos” (1995b). Nas escalas

652
residencial e gregária, a predominância dos percursos a pé foi possibilitada, no que consistem
os percursos cotidianos de poucas distancias. Apesar de não constituir uma função-escala, o
“circular” é um elemento crucial no desenho da cidade e presente no seu imaginário, tendo um
impacto direto em como a cidade é percebida por seus habitantes, e evidenciados em suas
representações.

5. Debate
As tecnologias, as máquinas, e dispositivos que deram movimento às imagens foram capazes de
criar sensações cinemáticas, explorando crescentemente a experiência sensorial oferecida pelo
ambiente urbano. Elas também alteraram o modo como enxergamos, narramos e
experimentamos as cidades desde o século XIX. Neste sentido, a temporalidade pode ser vista
como uma constituinte da experiência sensorial e cinemática da paisagem e da percepção
espacial do fenômeno arquitetônico, e não somente em sua dimensão historiográfica e
cronológica.
A vida urbana se organiza ao redor dos deslocamentos e o tempo se mede nas distâncias - que
a tecnologia prometeu superar – mas também se percebe nos ritmos da comunidade, nas
memórias que se enredam com o presente, borrando limites e percepções do real em meio aos
sonhos e expectativas do futuro. A ideia de movimento é elemento constitutivo do desenho de
Brasília, e reforçado pelas representações da cidade em fotografias, cinema e literatura. Apesar
de não ser uma característica a ser preservada pelo tombamento, ela tem influenciado
diretamente a forma como a cidade é representada e vivenciada.
A interação entre as escalas é uma interpretação possível sobre importância da circulação (de
veículos e pedestres) no projeto de Brasília. Nesse sentido considera-se a percepção da
paisagem de Brasília em movimento, pois, além dos aspectos funcionais e de organização da
cidade, ela é um princípio estruturante da modernidade que se materializa na cidade. Como foi
apresentado, a própria modernidade se relaciona com a ideia de transitoriedade, de fluxos, e de
movimento.
A circulação em velocidade que visava essencialmente propor soluções para os problemas da
cidade moderna é vista hoje mais como um problema do que como base conceitual do projeto
que Brasília representa, e muito menos como potencialidade. Para Lara, cabe entender Brasília
assim como todo o urbanismo brasileiro do século 20 como uma apologia ao automóvel, que
representa a máquina hegemônica na construção da mobilidade e com grande força na
identidade construída entre arquitetura, modernidade e automóvel. Mas também cabe

653
entender, por um lado, quais os valores da espacialidade moderna estão impregnados no
ambiente construído e por outro, quais os problemas que ainda acarretam e persistem. (LARA,
2016)
A questão do movimento enquanto um elemento importante no conceito e na percepção das
cidades em geral, mas, especialmente no caso de Brasília, configura-se como um importante
debate a ser feito. Se o tombamento é um recurso importante para se evitar a descaracterização
da cidade, por outro lado ele impede discussões ou intervenções que busquem adequar a
cidades as novas realidades.

Referências

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BENEVOLO, L. As origens da Urbanística Moderna. Lisboa: Editorial Presença, 1994.

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655
CASAS DE FARINHA: a memória dos saberes populares das comunidades rurais de
Pinhão/SE
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Leiliane de Oliveira Silva


Arquiteta e Urbanista; Universidade Tiradentes; leilianeos18@gmail.com

As comunidades rurais carregam uma rica expressividade no modo de viver e nas atividades
cotidianas de como lidar com à terra, porém, seu anonimato permanece inerte na história. Visto
que o tempo é um dispersante das heranças históricas, o mesmo consegue propagar e também
dissipá-las, é então que esses saberes começam a se perder. É nesse contexto que o atual
trabalho busca registrar a memória das práticas populares da utilização das casas de farinha das
zonas rurais do município de Pinhão, Sergipe, analisando os modos de produção, o contexto
histórico e a dinâmica desse espaço, de modo a proporcionar a valorização do patrimônio de
comunidades rurais.
Palavras-chave: Farinha; Memória; Saberes; Rural.

Rural communities carry in themselves a rich expressiveness in the way of living and in the daily
activities of how to deal with the land, however, their anonymity remains inert in history. Since
time is a dispersant of historical inheritances, it has the power to propagate and to dissipate
them, it is then that these knowledges begin to get lost. It is in this context that the current work
seeks to record the memory of popular practices of the use of flour houses in rural areas of
Pinhão, Sergipe, analyzing the mode of production, the historical context and the dynamics of
the space, so to provide the valorization of the heritage of rural communities.
Keywords: Flour; Memory; Know; Rural.

656
1 - “PÃO DA TERRA”: A MANDIOCA NA HISTÓRIA COLONIAL
Quando a posse da terra começou a ser feita nasceu o elogio da mandioca e
seu registro laudatório em todos os cronistas. Afirmavam, unânimes, ser
aquela raiz o alimento regular, obrigatório, indispensável aos nativos e
europeus recém-vindos. Pão da terra em sua legitimidade funcional.
Saboroso, fácil digestão, substancial (CASCUDO, 1967, p. 93, grifo meu).

Assim, Câmara Cascudo (1967) em seu livro História da alimentação no Brasil, anuncia a
mandioca, tubérculo que guarneceu às populações destas terras, antes mesmos de serem
chamadas Brasil e que alcançou uma importante influência social, cultural e econômica para o
país conservando até hoje grande prestígio na pirâmide alimentar da nossa sociedade.
Registros das primeiras expedições ao Brasil, realizadas com o intuito de explorar e reconhecer
o novo território, já fazem referência a mandioca, apresentando-a como um dos alimentos
consumidos pelos indígenas. Dentre eles, Pero Vaz de Caminha, em carta ao Rei de Portugal:
“Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e
as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios, que o não somos nós
tanto, com quanto trigo e legumes comemos” (1500, p. 12).
Reforçam a presença marcante desta raiz no litoral brasileiro, bem como sua associação ao
vocábulo inhame, Gabriel Soares de Sousa em seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587:
“Mandioca é uma raiz da feição dos inhames e batatas...” (1587, p. 172), e o Padre Manoel da
Nóbrega (1931, p. 98) em Cartas do Brasil 1549-1560, que também nos traz notícias sobre “o
mantimento comum da terra é uma raiz de pau que chamam de mandioca”.
Gabriel Soares de Sousa (1587), além de se referir a “que coisa é a mandioca”, tratará das “raízes
da mandioca e do para que servem”, minuciando sobre o preparo desse alimento e os utensílios
usados, destacando-se “o mantimento de mais estima e proveitosos que se faz da mandioca”, a
farinha.
As raízes da mandioca comem-nas as vacas, éguas, ovelhas, cabras, porcos e
a caça do mato, e todos engordam com elas comendo-as cruas, e se as comem
os índios, ainda que sejam assadas, morrem disso por serem muito
peçonhentas; e para se aproveitarem os índios e mais gente destas raízes,
depois de arrancadas rapam-nas muito bem até ficarem alvíssimas, o que
fazem com cascas de ostras, e depois de lavadas ralam-nas em uma pedra ou
ralo, que para isso têm, e, depois de bem raladas, espremem esta massa em
um engenho de palma, a que chamam tapeti, que lhe faz lançar a água que
tem tôda fora, e fica essa massa toda muito enxuta, da qual se faz a farinha
que se come, que cozem em um alguidar para isso feito, no qual deitam esta
massa e a enxugam sobre o fogo, onde uma índia a mexe com um meio
cabaço, como quem faz confeitos, até que fica enxuta e sem nenhuma
umidade, e fica como cuscuz, mas mais branca, e desta maneira se come, é
muito doce e saborosa. Fazem mais desta massa, depois de espremida, umas

657
filhós, a que chamam beijus, estendendo-a no alguidar sobre o fogo, de
maneira que ficam tão delgadas como filhós mouriscas, que se fazem de
massa de trigo, mas ficam tão iguais como obreias, as quais se cozem neste
alguidar até que ficam muito secas e torradas (SOUSA, 1587, p. 174, grifos
meus).

Para tanto, a mandioca, que já ocupava uma posição notável na alimentação local, recebeu
títulos simbólicos e ganhou prestígio quando passou a ser documentada pelos europeus. De
acordo com Cascudo (1967, p. 77), “todas as coisas tem títulos portugueses”, a percepção,
nomeações e julgamentos partiam da ótica do colonizador, com efeito, toda a vanglória é válida
visto que suas preparações gastronômicas seguem resistindo no paladar nacional.
Desse modo, o reconhecimento da farinha de mandioca e os processos que a envolveram como
a adoção para os eventuais cenários que ocorreram como estratégia política e a sua importância
na sabedoria culinária foi pertinente para cada momento histórico do Brasil, sendo perceptível
os reflexos que hoje encontramos de forma espontânea introduzida nas nossas rotinas.

2 – LUGARES DE MEMÓRIA
A memória é tida como o ato de lembrar que só é possível por conta da determinação temporal
do passado, ela é preenchida através do fluxo contínuo da vida e são trazidas à tona pelas
necessidades do presente.
A consciência de si a um determinado período da sua história pessoal faz associação a um signo
pois a memória encontra-se por encerrada e para articular o sentimento de continuidade ela
reside a locais, chamando-os de locais de memória nos quais possibilitam o retorno do que se
viveu, ressignificando o passado, instalando as lembranças a coisas concretas e emergindo delas
significações (Pierre Nora, 1993).
Por sua vez, as casas de farinha enquanto espaço construído, protagonizadora de experiências,
de troca de saberes, de memórias, sentimentos, hábitos e costumes coletivos, evidenciam
singularidades simbólicas a respeito das pessoas que a vivenciaram, denominando-a um “objeto
biográfico”. No processo que compõem a história oral, os objetos geográficos “são construções
do mundo material sobre as quais são projetadas experiências de vida do seu possuidor (...)
ancora memórias e representações (...) contemplam significados simbólicos e idiossincráticos:
“contam” a história de seus donos (ALMEIDA, AMORIM, BARBOSA, 2007, p. 102).
Além do lugar de memória ancorada as casas de farinha, ela comporta internamente em seu
espaço edificado os instrumentos de trabalho para o processo de produção da farinha, objetos
esses, que em sua maioria guardam as digitais das mãos dos artesãos que o confeccionaram e

658
por conseguinte as mãos dos trabalhadores que os manusearam. Conferindo-lhe sentidos
simbólicos e aspectos valorativos a seus detalhes no modo do “saber fazer”. Há também o valor
da sua função diante do ofício que dela deriva e que ela “alimenta”. O valor subjetivo atribuído
a memória das dinâmicas das farinhadas tanto ao lugar estabelecido demograficamente, quanto
a sua materialidade arquitetônica e seus objetos que compõe o conjunto, proporcionam a
sensação de pertencimento e identidade. Dessa forma, como forma de expressão dessas
singularidades, a memória é retomada e exposta através da oralização, assim “a memória e a
identidade são matéria-prima das narrativas em história oral” (ALMEIDA et al, 2007, p. 107).
Ademais, coletar memórias de experiências coletivas de tradições populares anônimas, onde se
inclui os indivíduos que participaram das vivencias proporcionadas da atividade de farinha é
registrar essas expressões recompondo ressignificação a essas histórias de vida, rica de valores
e simbolismo garantindo a preservação e valorização dessas atividades para as pessoas e para o
local que ela está inserida, como também uma possibilidade futura de sua continuidade aberta
a outras formas de retomada.

3 - A MEMÓRIA DA FEITURA DA FARINHADA E SUAS DERIVAÇÕES DENTRO DESSE PROCESSO


O cenário geográfico em que se assentam a memória dos agricultores que vivenciaram a cultura
da mandioca se localiza na zona rural do município de Pinhão, situado no agreste central do
estado de Sergipe, no qual possui um histórico de atividades agrícolas como principal atuação
econômica. A mandioca, no que lhe concerne, possuía relevância por volta dos anos de 1970
para os produtores rurais do município por ser a matéria-prima no fabrico da farinha, alimento
chave na composição nutricional do prato dos que lidam diariamente com à terra. Atualmente
as suas raízes perderam as fortes ligações que tinham com o solo dos que a manuseavam e
consequentemente a prática de fazer farinha e beijus também, encontrando-se apenas, ainda
que em pouca quantidade em algumas propriedades das zonas rurais do município para
consumo próprio da raiz cozida ou para alimentação de animais. Ainda assim, a farinha continua
sendo a unidade alimentar nos pratos da população pinhãoense, porém não mais com a
competência de suas mãos.
Mediante esse contexto, as casas de farinhas entram em cena se estabelecendo como extensão
da terra, espaço de transformação e multiplicação de sustento. Santos e Souza (2014) descreve
o que chama de reprodução camponesa “sempre gravitando em torno da trilogia terra, trabalho
e família”, compreendendo o espaço e lugar como vivência do camponês, da sua subjetividade
com à terra e o sentimento de pertencer da representação dessa atividade agrícola que percorre

659
desde o plantio e colheita da mandioca e a produção da farinha. A casa de farinha materializa a
produção camponesa e se torna símbolo e identidade do homem no campo. Espaço vivido pela
mão de obra familiar englobando as participações de amigos e parentes. “O fazer farinha
configura-se como um processo que está para além do resultado de um sistema produtivo,
porque alberga também relações de convivência e vínculos familiares na sua prática" (SILVA,
SILVA, 2015, p. 62).
Atualmente as casas de farinha existentes localizam-se em quatro dos doze povoados do
município de Pinhão, são eles, Rajas, Lagoa Branca, Beija-Flor de Baixo e Beija-Flor de Cima,
dentre elas encontram-se as casas de farinha tipificadas em familiar e comunitária, em
construção de taipa de mão e alvenaria de tijolos cerâmicos respectivamente (Figura 01).

Figura 01: Localização dos povoados do município de Pinhão/SE.

Fonte: Elaborado pela autora com base em informações do geoftp.ibge.gov.br, 2020.

Dentro desse transcurso na prática de fazer farinha das comunidades rurais visitadas, a cultura
da mandioca se estende por um conjunto de atuações dentro desse cenário, harmonizadas entre
os modos de cultivar e produzir, conduzida por etapas, técnicas e organização, na resultância de
especiarias e experiências proporcionadas pelo ato de fazer.
A realização das farinhas é relatada no passado pelo fato de que sua prática se encontra
paralisada, mas não muito longe de chegar ao fim. Nos quatro povoados visitados a produção

660
de farinha e plantação de mandioca já não acontece com a frequência dos “anos farinháveis” e
sim esporadicamente.
O saber fazer farinha demonstra uma ordenação sequencial de procedimentos que garante
apropriação do espaço, por tanto o zelo e organização acontecia para dar continuidade a “luta”
da farinha que dá prosseguimento com a tarefa de descascar a mandioca. Essa etapa é o
momento no qual se insere todos os membros da farinhada, da socialização sem divisão de
gênero nem faixa etária. Trata-se, portanto, do processo dinâmico de transmissão de saberes e
práticas e dos valores partilhados coletivamente (Figura 02).

Figura 02: Raspagens das mandiocas

Fonte: José Rochão de Andrade, 1996.

Lenice Martins de Oliveira filha de seu Zequinha, um proprietário de casa de farinha em taipa
muito conhecido do povoado Rajas, conforme suas lembranças, faz a descrição sequencial de
todas as etapas nas casas que faziam a utilização do rodete para fabricar a farinha.
Na época que a gente trabalhava na casa de farinha era assim, primeiro
colocava a mandioca na casa de farinha, a gente raspava. Depois ralava no
rodete, tinha aquela pessoa de ralar a mandioca, aí a massa ia para o cocho,
do cocho tinha uma prensa, aí as pessoas colocava a massa na prensa. Aí
passava um tempo, depois tirava aquela massa, ai já tava enxuta. Ai agora
tinha uma arupemba, grande, arupenga grande. E a gente peneirava a massa,
aí tinha o forno que era de lenha, colocava a lenha no forno lá atrás, e em
cima, conforme o fogo ia esquentano, o forno. Ai a gente ia colocando a
massa já peneirada, saia da prensa peneirava no cocho, aí ia colocar no
forno. Ai assim, tipo um rodo, tá entendendo? Tipo um rodo! Aí ia duas
pessoas, no caso ou duas uma ou pessoas, aí ia passano, era rodando pra lá e

661
pra cá, pra lá e pra cá. Quando a farinha tivesse seca, sequinha, aí a gente, as
pessoas tirava de dentro do forno e ia colocando no saco e guardava ali.
(LENICE MARTINS DE OLIVEIRA, 2020. Grifos meus).

Para um maior entendimento do processo de produção, elaborei um fluxograma abaixo (Figura


03), a partir das narrativas orais obtidas dos entrevistados nos quatro povoados, organizando
de forma sequencial as etapas dentro da casa de farinha, vinculadas aos equipamentos
utilizados na fase mencionada e a divisão por gênero em cada atividade.

Figura 03: Etapas da farinhada

Fonte: Elaborado pela autora,2020.

Esse ambiente vai além da configuração de galpão de trabalho, ele ocupa a posição de uma
estrutura material receptáculo de “sentimentos, emoções, discórdias e esperanças” que são
postas em ações durante as estabelecidas normas de conduta e convívio (COUTINHO, 2015). As
casas de farinha e seu movimento é um espaço de sensações, definida pelo uso que os
farinheiros fazem do seu ambiente interno e dos seus utensílios, vai além de um conjunto
arquitetônico, por mais que seja tomada como tal.
Historicamente produto de um ofício, o fazer farinha se desdobrava em vivências coletivas que
enriqueciam o dia árduo de trabalho em momentos prazerosos, divertidos e festivos. Considera

662
para muitos entrevistados um evento nas comunidades rurais, as casas de farinha tornavam-se
espaços de reprodução cultural aos grupos sociais que manejavam com a mandioca. Diante
dessa solenidade, “a farinhada, é tomada como um evento, por atribuir a um determinado
recorte de tempo uma dimensão de unidade de um determinado grupo e a confirmação de laços
sociais. Um evento mais que um acontecimento é um fato social” (COUTINHO, 2005, p. 235). É
a reafirmação de traços culturais, celebração do próprio ato de farinhar.
O lavrador José Batista Dias, deixa evidente em sua fala como as farinhadas além de atraírem as
pessoas como um acontecimento para socialização, eles suscitavam o comprometimento das
trocas.
Agora enchia assim de gente, do lado e de outro e fora o povo que ficava nas
áreas fora dos terreiros, quando era mais ou menos com umas 5 horas de
relógio tinha mais nenhuma mandioca pra raspar não, o povo gostava
daquela reunião, era tipo de uma parceria do povo, (...) tinha união pra fazer
as coisas. A gente só não tinha parceria pra você cuidar, você plantar, zelar e
chegar o ponto de você colher né, ai não, aí é sua luta, você que tinha que ter
despesa (JOSÉ BATISTA DIA, 2020).

Tamanhas as abordagens que afloram dentro esses lugares, estavam os momentos de


descontração. Se não houvesse o rádio tocando músicas e toadas, os próprios farinheiros
cantavam e toavam versos, os talentos emergiam e a casa de farinha tornava-se o palco para os
farinheiros se expressarem. O momento da raspagem da “meia” concedia espaço para as
conversas, brincadeiras, as contagens de história, lendas e superstições, os ensinamentos e o
aprendizado, a paquera entre os jovens e o beijo escondido dos pais.
Dentre as crenças populares e lendas propagadas nas farinhadas, os entrevistados citaram a
superstição que se tivesse a “cabeça ruim” não conseguia juntar a goma da tapioca, para juntar
uma boa quantidade de tapioca na bacia era preciso ter a “cabeça boa”. Além dessa, das
narrativas folclóricas, o simbólico lobisomem amedrontava no período da quaresma os que
acreditavam que ele gostava de beber o líquido da manipueira. Característico do imaginário dos
mais velhos, é nesses espaços de encontros que acontecem a manutenção das tradições
populares, costumes e manifestações culturais que fazem parte da vida dessas pessoas e
consequentemente o fortalecimento da noção de pertencimento dos indivíduos a esse lugar
(BRAYNER, 2012).
Todas as variações de atuação dentro desses lugares são condicionadas pelos tecidos de
interações entre pessoas, o homem do campo tornava suas ocupações fontes de lazer e de
apreciação da vida, tanto partilhadas, quanto no seu momento individual. Em harmonia com as
expressões de Mauss, “trata-se, no fundo de misturas. Misturam-se as almas nas coisas,

663
misturam-se as coisas nas almas. Misturam-se as vidas, e assim as pessoas e as coisas misturadas
saem cada qual de sua esfera e se misturam: o que é precisamente o contrato e a troca” (apud
COUTINHO, 2005, p. 233). Assim sendo, cada relato assistido, podia-se notar essas fusões entre
homem e suas ações.
Eu gostava de farinhar, fala a verdade, eu gostava, eu pra mim a luta melhor
do mundo é farinhada de mandioca. Ói quando eu chegava na roça que eu
alimpando a mandioca de enxada que eu olhava assim por baixo e via só as
manaiba de mandioca assim e a mandioca lhe cobrindo, rapaz é bonita viu,
uma coisa linda, cê é doido é uma admiração que eu tinha quando levava pra
casa de farinha (JOSÉ BATISTA DIAS, 2020).

Tal qual essa reflexão, as misturas se sobressaiam na contemplação, na apropriação dos rituais
do cotidiano, na esfera de toda a relação campo e trabalho, cultivo e colheita, preparar e comer,
enfim nas vivências encarregadas e derivadas do fazer farinha de mandioca.

4 – Considerações Finais
Partindo das discussões suscitadas na feitura deste trabalho, as narrativas orais transcorreram-
se o fator mais significativo para a análise das abordagens e registros dessas práticas,
intrinsecamente ligada a vida das pessoas que vivenciaram esse feitio dentro das casas de
farinha das zonas rurais do município de Pinhão, Sergipe. Caracterizando-se como espaços que
abrigavam tanto o ofício do saber fazer, quanto a memória de vivências e histórias coletivas.
A prática de fazer farinha, além de suas derivações culturais, eram economicamente
importantes para a subsistência dessas famílias que viviam da labuta do roçado. Porém como
uma renda extra, pois se ocupavam de fazer a farinha para alimentação interna e
posteriormente como mercadoria, a farinha alimentava e sustentava as famílias. As trocas de
saberes para os herdeiros configuravam também como manutenção do ofício e da mão de obra,
era também apresentada como alternativa de trabalho para o futuro dos filhos.

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665
CORPOS EM MOVIMENTO: (Re)tomada de narrativas negras através da apropriação
do espaço no centro histórico de Cuiabá-MT
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Thais Soares Cavalcante Costa


Graduanda em Arquitetura e Urbanismo;
Universidade Federal de Mato Grosso-UFMT;
thais.soares.c16@gmail.com

Maria Bárbara Thame Guimarães


Arquiteta e urbanista;
Secretaria de Estado de Cultura, Esporte e Lazer de Mato Grosso;
mbtguimaraes@gmail.com

Partindo da reflexão sobre a dimensão social e o espaço físico da cidade, desde sua ocupação
inicial, até atingir suas expressões contemporâneas, o objetivo deste estudo é verificar a
manutenção, ou não, de práticas e territorialidades da comunidade negra em Cuiabá.
Considerando a esfera simbólica desses lugares, a investigação foi conduzida através de três
marcos referenciais, monumentos de figuras negras emblemáticas no imaginário popular e que
permanecem resistindo à ação do tempo e de outros agentes.
Palavras-chave: Cuiabá/MT; população negra; centro histórico; espaço urbano.

Through the research about social and material space in the city, from its initial occupation until
its contemporary cultural expressions, this paper aims to verify the maintenance of social
practices and territories of the black population in Cuiabá, Brazil. Considering the symbolic
dimension of these places, the narrative is organized by three referential marks in the urban
landscape, which are monuments dedicated to iconic black personalities that remain in the public
space and resist the action of time and other agents.
Keywords: Cuiabá/MT; Black population; Historical center; urban space

666
1 – Considerações iniciais
Como podemos identificar no centro histórico de Cuiabá a presença da população negra no
início da formação da cidade? De que forma podemos verificar a impressão das narrativas de
grupos marginalizados no espaço urbano no passado e no presente? Quais suas contribuições
para a formação da cidade, manifestações culturais e apropriações do espaço público? Sem a
pretensão de dar respostas definitivas a estas questões, este estudo busca oferecer pistas para
a compreensão da participação da população negra no processo histórico e cultural de Cuiabá,
e seus reflexos na atualidade.
A história tricentenária da capital de Mato Grosso é frequentemente retratada através da
participação dos colonizadores paulistas, migrantes e imigrantes. Neste contexto, as
contribuições das populações não brancas, sejam negras ou indígenas, são reduzidas pelo senso
comum à sua força de trabalho, não reconhecendo nestes grupos seus traços culturais e
conhecimentos ancestrais. Na busca por superar a narrativa que limita corpos negros a
“escravos” no período colonial e imperial, foram elencadas heranças culturais construídas no
passado por este grupo, a partir de saberes e trocas entre os seus, identificando no presente
seus resquícios e reformulações. O uso do trabalho forçado deste segmento social na construção
e manutenção do núcleo urbano inicial é permeado por acontecimentos, lugares, sujeitos e
histórias que povoam o imaginário popular cuiabano, perdurando ao longo do tempo através da
transmissão entre gerações, principalmente de forma oral.
O foco deste estudo é delimitado geograficamente pelo Conjunto Arquitetônico, Urbanístico e
Paisagístico de Cuiabá-MT, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN) em 1992 e suas proximidades imediatas, que compreendem a porção mais antiga da
cidade, hoje popularmente conhecida como centro histórico. O Conjunto é caracterizado pela
heterogeneidade arquitetônica e urbanística: é possível reconhecer diversas camadas de tempo
e contribuições de origens distintas num mesmo recorte geográfico. A partir da leitura dos
espaços identificados no processo de tombamento, este estudo procura verificar a manutenção
de apropriações negras no centro histórico. Por meio da análise da toponímia, confirma-se a
presença e circulação negra, como nas ruas da Alegria, das Pretas e do Sebo. Como tentativa de
apagamento dessa ancestralidade, as mudanças de nome devem ser consideradas nesta análise,
pois o ato de grafar o espaço é uma ação de pertencimento e apropriação que não deve ser
desracializada.
Como exercício de apreensão das manifestações contemporâneas, elencamos apropriações
reconhecíveis dentro da área do centro histórico, bem como identificamos monumentos
escolhidos a partir de sua carga simbólica, em homenagem a figuras negras e marginalizadas. A

667
persistência destes marcos possibilitam o despertar da memória, do reconhecimento e da
identificação entre os transeuntes e os monumentos.

2 – Apropriações de outrora
Objetivando empreender um exercício de espacialização de territórios e espaços ocupados
majoritariamente pela população negra e/ou marginalizada principalmente nos séculos XVIII e
XIX, foram analisados estudos sobre o início da formação da cidade, como o processo de
tombamento e publicações da historiografia mato-grossense. O processo de tombamento do
centro histórico parte do estabelecimento de uma “bipolarização fundamental” do núcleo
urbano inicial: dois espaços com características e funções distintas são apontados como
essenciais para a ocupação e caracterização do centro (ROSA, 1985). A região central da cidade
teve sua ocupação iniciada em 1722, com a descoberta de ouro nas margens do córrego da
Prainha, e foi determinada em parte pela formação morfológica do sítio: de um lado do córrego
um terreno em aclive suave, e do outro uma colina. Adotando esta caracterização do espaço
urbano, dentro do adensamento principal é possível fazer a leitura dos dois espaços. O espaço
de poder, em terreno com leve aclive, passou a abrigar equipamentos públicos e religiosos,
como sede do governo, órgãos públicos e Igreja Matriz. Os imóveis balizaram o surgimento de
duas ruas principais: a de cima e a de baixo, que ligavam a região da Matriz à região da Mandioca.
Do outro lado do córrego, o espaço de produção desenvolveu-se nas encostas do atual Morro
da Luz e nos arredores da Capela do Rosário, hoje dentro da área de tombamento e de entorno.
A área era caracterizada no século XVIII pela “concentração de moradias das famílias negras
forras, cuja estrutura familiar era geralmente composta por mulheres pretas que viviam com
seus filhos” (MENDES, 2011, p. 85).

668
Figura 01: Apropriações antigas.

Fonte: Autoras, 2021, com base em (ROSA, 1985) e (PEREIRA, 2016). Elaborado no Google My Maps.

A região da Mandioca possui forte presença negra: identifica-se a ocupação do território do


Largo da Mandioca, ou do Sebo, no início da formação do núcleo urbano pela população
escravizada. Em 1722 foi erguida ali a primeira capela em louvor a São Benedito, configurando
o “primeiro registro de culto e devoção ao santo na área urbana de Cuiabá” (ROSA, 1976 apud
MENDES, 2011, p. 87). A capela ruiu alguns anos depois, e posteriormente foi construída junto
à Igreja Nossa Senhora do Rosário, “outra confraria que congregava negros e mulatos, livres ou
escravos” algo comum em outras partes da colônia, embora as irmandades mantivessem
territórios distintos (MENDES, 2011).
Com a elevação de Arraial a Vila do Bom Jesus de Cuiabá (1727) e criação da capitania de Mato
Grosso (1748), o espaço de poder recebeu novos equipamentos públicos, contribuindo com o
adensamento e intensificação de uso das Ruas de Cima e de Baixo. No largo da Mandioca foi
instalado o Pelourinho. A Rua do Meio, antes fundo de lotes, foi aberta apenas em 1776, com
uso predominante de serviço e teve seu prolongamento denominado Rua das Pretas até o Largo
da Mandioca. (BARRETO, 2015). Neste período, a região da Mandioca passou por
transformações: foi local de instalação de residência do Capitão General da Capitania e com a
abertura do caminho terrestre para Goiás, tornou-se uma saída norte da Vila (ROSA, 1985). No
século seguinte, destacamos Capela, posteriormente Igreja, da Nossa Senhora da Boa Morte nas
proximidades do núcleo adensado, dirigida por uma irmandade de homens pardos. As

669
irmandades católicas refletiam o ordenamento social da época, pautado na divisão racial
(SILGUEIRO, 2019).
Após o fim da Guerra do Paraguai (1864-1870) e a decorrente abertura da navegação fluvial, o
espaço urbano de Cuiabá ganhou novo dinamismo. A navegação permitiu, além do escoamento
de produtos, a “penetração maciça de capitais e mercadorias européias” (ROSA, 1985). A cidade
ganhou nova feição, com a substituição dos beirais coloniais por platibandas decoradas, novas
edificações produzidas por imigrantes europeus, rompendo com os padrões construtivos
coloniais. Apesar de um pequeno grupo de estrangeiros imprimirem no espaço urbano suas
marcas, principalmente através da arquitetura, a maior parte da população de Cuiabá era
composta por pessoas não brancas, variando entre 70% e 60%, na segunda metade do século
XIX (PERARO, 2001, apud BARRETO, 2015).
Os locais públicos de abastecimento de água potável eram pontos de circulação, trabalho e
encontro da população negra. No período colonial Cuiabá contava com 7 fontes públicas de água
sendo a mais antiga a do Chafariz do Rosário, gerando preocupação nas autoridades que temiam
a “desordem” e possíveis revoltas, por causa do agrupamento de escravizados, forros e
lavadeiras em suas imediações (PEREIRA, 2016). Parte da população possuía cisternas e poços
particulares, mas a inexistência de um sistema de distribuição de água resultava na dependência
de seu fornecimento através das bicas públicas:
“A venda de água trazida dessas bicas ou do rio Cuiabá era um importante
setor de atuação tanto de escravos de ganho como de libertos. Aqueles que
dispunham de recursos enviavam seus próprios escravos em busca de
suprimento d’água, bem como da eliminação das águas usadas. As fontes
mais concorridas eram as do Mundéu e do Rosário, onde um encontro casual
podia se transformar em boa oportunidade para se projetar um ato ilícito que
trouxesse alguma vantagem material capaz de atenuar as privações da
escravidão”. (VOLPATO, 1993, p.33)

Considerando que o ordenamento social e divisão do trabalho durante o período colonial eram
pautados majoritariamente em aspectos raciais, o espaço da rua, portanto espaço público, era
ocupado por pessoas não brancas: negros, indígenas e mestiços. Mulheres brancas
permaneciam na esfera doméstica e os homens brancos circulavam a cavalo: andar na rua era
destinado às classes subalternizadas, encarregadas de fazer circular mercadorias e outros bens.
“Esses lugares delimitavam as fronteiras sociais e jurídicas (seria humilhante
para uma pessoa não escrava buscar água nas fontes ou ficar perambulando
pelas ruas da cidade). Os espaços negros eram delimitados pela presença
física, pelo corpo ou melhor, pela cor do corpo. Ruas, becos, travessas, largos,
praças, fontes de água eram utilizadas pelos negros e negras em Cuiabá/MT
desde o período colonial.” (PEREIRA, 2016, p.66)

670
É possível identificar a existência de uma “Cidade Negra”, paralela e invisibilizada, constituída
por interações sociais em espaços públicos e privados, como ruas, fontes e tavernas (PEREIRA,
2016). As tavernas, neste contexto, faziam parte desse território consolidado pelos negros e
eram locais de fortalecimento da relação de solidariedade e também de conflitos.
Nos séculos XVIII e XIX a presença negra no espaço urbano influenciou na configuração espacial
e social da cidade, cujos reflexos nas apropriações e manifestações culturais na
contemporaneidade exploraremos a seguir. Buscamos evidenciar brevemente que as
territorialidades negras são expressas através de seus locais de interações sociais, moradias e
culto religioso, como forma de contrapor à narrativa pautada exclusivamente na dinâmica do
trabalho e seus desdobramentos. O reforço exclusivamente da dimensão do trabalho colabora
para a reafirmação estereotipada da força braçal como única contribuição do povo negro na
formação espacial e cultural cuiabana.

3 – Monumentos no espaço urbano - Maria Taquara, Mãe Preta e Memorial do Beco do


Candeeiro
Buscando evidenciar a presença, circulação e memória de populações negras no centro histórico
através de testemunhos materiais, elencamos três marcos referenciais no espaço urbano: são
esculturas em homenagem a personagens e eventos presentes no imaginário popular que
tornaram-se pontos de referência dentro da dinâmica urbana.
Maria Taquara foi uma lavadeira negra, de poucas palavras e de corpo alto e magro. Aparentava
ser migrante da região nordeste, e viveu em Cuiabá entre as décadas de 1940 e 1950 (BARRETO,
2019). Não se sabe muito sobre ela: há relatos de historiadores e memorialistas que afirmam
que Maria Taquara foi a primeira mulher a usar calças na cidade e que sua segunda fonte de
renda era a prostituição (ARAUJO, 2019 apud SAMPAIO, 2019; MARIMON, 2014). Por ter se
tornado uma figura do imaginário popular, tema de versos e poesias (MARTINS, 2011), e forte
representação das lavadeiras enquanto classe de trabalhadoras, foi homenageada pela
escultura em 1982 do artista plástico cuiabano Haroldo Tenuta. A escultura da figura esguia com
uma trouxa de roupa na cabeça assinala uma praça na Av. da Prainha, é um ponto de referência
na região central e também um terminal de ônibus.
Na mesma avenida, próximo ao território da Igreja do Rosário e Capela de São Benedito, estão
localizados os outros monumentos. A Praça da Mãe Preta abriga a escultura que representa uma
ama de leite cuja identidade é descrita por duas versões: segundo a placa fixada na base da obra,
Ana Benedita das Neves foi uma ama de leite, lavadeira e cozinheira nascida em 1919 no bairro
Baú em Cuiabá e de acordo com (BARRETO, 2019) Ana Luiza foi lavadeira e mãe de santo,

671
moradora do antigo bairro Quarta-feira. As histórias convergem mesmo com algumas
alterações, porém sendo ela uma personagem popular mantida viva nas memórias, sua história
foi transmitida de forma oral, ou seja, sujeita a imprecisões. A escultura foi implantada por
iniciativa da Associação do Bairro do Baú, presidida pelo Senhor Cide, em 1997 de autoria do
artista Angelos Ktenas (CUIABÁ, 2009).
O Beco do Candeeiro configura uma das primeiras ruas do núcleo inicial da cidade,
desembocando na Praça Dona Euphrosina, onde encontra-se o memorial da chacina, evento em
que foram mortos 3 adolescentes em 1998. Os meninos assassinados estavam em situação de
vulnerabilidade social e viviam nas ruas do centro histórico (SILGUEIRO, 2019). Por iniciativa de
ativistas do movimento negro e direitos humanos e com apoio de vereadores, a obra do artista
plástico Jonas Corrêa foi implantada no mesmo ano e retrata os três meninos: um caído, outro
escondendo o rosto com as mãos e o outro buscando proteção junto ao amigo. Silgueiro (2019)
explora a relação de pertencimento entre os habitantes do Beco e o memorial, visto que seus
interlocutores em situação de rua identificam-se como sobreviventes: à chacina, à rua, à
violência policial.
Estes marcos, compreendidos enquanto monumentos, pois foram criados com a finalidade de
rememorar e preservar a memória (CHOAY, 1994), construídos através da iniciativa e interesse
de grupos que desejam a impressão e permanência de suas narrativas no espaço urbano.
Considerando o número inexpressivo de outros monumentos em homenagem a grupos ou
eventos relacionados a grupos sociais não dominantes, a implantação e permanência destes
monumentos chama a atenção. É através da representação no espaço público de personagens
negros marginalizados (uma lavadeira, uma mãe-de-leite e meninos “de rua”) que grupos
historicamente invisibilizados reivindicam o reconhecimento de sua contribuição para o
patrimônio cultural e história da cidade, assim como de suas dores e perdas. Para além da
homenagem aos personagens retratados, estes monumentos representam segmentos inteiros
da sociedade, acionando sentidos diversos e por vezes conflitantes e mobilizando grupos em
prol de sua manutenção e perpetuação de sua mensagem.

672
Figura 02: Marcos referenciais no espaço urbano.

Fonte: Maria Taquara, foto Ana Frigeri, 2021; Praça Mãe Preta, foto Márcia A. S. Silva, 2019; Memorial
da Chacina no Beco do Candeeiro durante obras na praça foto Junior Silgueiro, 2018.

4 – Apropriações contemporâneas
Com a intenção de observar as territorialidades e expressões culturais negras na área central da
cidade, foram identificadas algumas manifestações de maior visibilidade e que mobilizam mais
indivíduos, ações estas de cunho artístico-cultural, comercial e religioso-ritual. Entretanto, faz-
se necessário caracterizar brevemente a área do centro histórico na atualidade, a região possui
intenso uso de comércio popular principalmente nos calçadões. O uso residencial é expressivo
somente na região da Praça da Mandioca e Igreja do Rosário, espaços historicamente ocupados
por populações negras. Entre a Praça da Mandioca e os calçadões há uma região caracterizada
pela circulação de pessoas em situação de rua, que Silgueiro denomina como “região moral do
baixo centro”. O adjetivo baixo refere-se à conformação geográfica (mais baixa pois está mais
perto do antigo córrego) e também à “degradação moral” de seus habitantes e transeuntes
(SILGUEIRO, 2019). A área coincide com a região com menor circulação de pessoas e veículos e
maior concentração de imóveis vazios e em pior estado de conservação (GUIMARÃES, 2019).

673
Figura 03: Apropriações contemporâneas.

Fonte: Autoras, 2021, com base no processo de tombamento (IPHAN), elaborado no Google My Maps.

Ocupando espaços antagônicos, são identificadas duas formas de expressão populares: Batalha
da Alencastro, na praça em frente à Prefeitura e o Slam do Capim Xeroso, no Beco do Candeeiro.
A literatura marginal é uma expressão artística que através da poesia, rimas e falas trazem para
competições a realidade e as vivências da periferia.
O Grafite é uma manifestação artística da cultura hip-hop que ocorre geralmente em espaços
públicos, possui vários estilos mas essencialmente vêm em forma de protesto, expressando uma
crítica social, e se comunicando com quem passa e os vê na rua como uma galeria a céu aberto,
acessível a todos da cidade. É muito comum encontrar grafites e pixos na área tombada e nos
setores de entorno em casarões abandonados, em becos e travessas, e em lugares que carregam
um significado que o grafite escancara e provoca reflexão.
O Centro Cultural Casa das Pretas foi implantado em 2020 em imóvel colonial na Praça da
Mandioca. A Casa é dirigida pelo Instituto das Mulheres Negras de Mato Grosso - IMUNE e tem
por objetivo oferecer espaço e apoio para atividades voltadas ao protagonismo e visibilidade
negra em variadas áreas. A Casa abriga atividades comunitárias, educativas e profissionais:
através do uso diversificado do espaço, busca favorecer o empreendedorismo, autonomia
financeira e seguridade de direitos da comunidade negra em Cuiabá e região. O espaço é aberto
ao público geral e possui programação cultural centrada no fortalecimento comunitário e
identitário (COALIZÃO NEGRA POR DIREITOS, 2020).

674
A Feira do Quilombo Mata Cavalo de Cima ocorre desde 2019, através de iniciativa de lideranças
da comunidade e apoio de produtores culturais, realiza-se periodicamente na Praça da
Mandioca. São comercializados, no espaço público, produtos artesanais e orgânicos produzidos
no Quilombo, gerando renda para a comunidade e retomando o caráter de trocas comerciais da
Praça (SILVA, 2021).
Ação iniciada em 2011 como “Kizomba África somos todos nós”, reunindo artistas, grupos de
samba, de capoeira, religiões de matrizes africanas, coletivo negro, instituições públicas
culturais e a sociedade civil na busca pelo resgate dos territórios e narrativas negras na área
central de Cuiabá. Dentro da programação havia o cortejo afro que, em 2018, torna-se “Kizomba
- na Rota da Ancestralidade” e percorre pontos de relevância para a contação desta história,
retomando o elo com a ancestralidade presente nesses lugares, “quilombos invisíveis” e
urbanos, reafirmando a importância e contribuição do povo negro para a capital (SILVA, 2021).
Possivelmente a celebração religiosa mais conhecida da cidade, a Festa de São Benedito mobiliza
uma extensa rede de indivíduos e grupos. Realizada na Igreja do Rosário e São Benedito e em
seu entorno, a celebração é composta por diversos momentos: além de meses de preparação,
a festa inclui missas, procissão, elevação do mastro, festa popular e mais recentemente feira
gastronômica e apresentações musicais e culturais de artistas locais. Inserida em 2018 na
abertura da festa, a Lavagem das Escadarias da Igreja Nossa Senhora do Rosário e Capela de São
Benedito é uma manifestação cultural afro-brasileira que busca celebrar a memória num
movimento de saudação aos ancestrais que, escravizados, edificaram a igreja. A água tem
significado sagrado para as religiões de matriz africana, de purificação e energização, sua
presença é acompanhada de flores e ervas destinadas aos orixás ou entidades. Durante o evento
a música, o canto e a dança se fazem presentes, para enfim a lavagem das escadarias ocorrer
simbolizando união e paz entre as pessoas (ROMANCINI & MOURA, 2020).

5 – Considerações finais
Em contraponto à ideia consolidada sobre a formação da cidade, pautada na contribuição
exclusiva da população negra como força de trabalho, buscamos evidenciar outros aspectos de
sua vida social e cultural. Dentro da hierarquia social existente na época, e considerando a
complexidade das relações cotidianas, cada grupo evitava transitar pelo território alheio,
deixando as ruas e espaços públicos para os sujeitos marginalizados. Estas ruas foram cenários
de acontecimentos e fatos históricos, sendo o meio pelo qual a população negra estabelecia
seus encontros e vínculos, e hoje, esses lugares assistem a tentativa de expulsão destes mesmos
grupos que os configuraram.

675
Na atualidade, a presença preta também se demonstra predominante em outras posições, como
na população em situação de rua, nos usuários de comércios populares do calçadão e usuários
de transporte coletivo, como aponta Silgueiro (2019). Observamos considerável manutenção da
ocupação de lugares e de práticas de caráter religioso-ritual, artístico-cultural, esportivo e
comercial de protagonismo negro na região central da cidade. Como os territórios do Rosário e
da Mandioca, que ainda resistem com suas apropriações, agora contemporâneas, de devoção e
trocas comerciais respectivamente. Perpassando a permanência, notamos também
manifestações novas que expressam uma retomada de espaços ancestrais, ressignificados
através do tempo pelos mesmos grupos étnico-raciais de outrora.

Referências
BARRETO, Neila Maria Souza. Bicas, fontes, chafarizes, caixa d’água velha e a água de beber no espaço
urbano de Cuiabá (1790-1886). Cuiabá-MT: Carlini & Caniato Editorial, 2015.

_________________. As lavadeiras Cuiabanas. Cuiabá, 2019. Disponível em:


<https://www.neilabarreto.com.br/single-post/2019/04/06/As-Lavadeiras-Cuiabanas> Acesso em:
12/01/2021.

CHOAY, Françoise. A alegoria do Patrimônio. Tradução de Luciano Vieira Machado. 4º Ed.-São Paulo:
Estação Liberdade: UNESP, 2006.

COALIZAÇÃO NEGRA POR DIREITOS. Casa das Pretas é o 1° centro de ações culturais e comunitárias do
movimento negro, no Mato Grosso. Cuiabá, 2020. Disponível em
<https://coalizaonegrapordireitos.org.br/2020/10/12/casa-das-pretas-e-o-1-centro-de-acoes-culturais-
e-comunitarias-do-movimento-negro-no-mato-grosso/> Acesso em 18/02/2021.

CUIABÁ. Ementário da Legislação Municipal. Ano 2009. Vol. XV. IPDU - Instituto de Planejamento e
Desenvolvimento Urbano. Cuiabá: 2010.

GUIMARÃES, Maria B. T. Levantamento do centro tombado. Produto de práticas supervisionadas.


Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural. Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional. Cuiabá, 2019.

IPHAN. Processo de tombamento nº 1.180-T-85. Conjunto: Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico da


Cidade de Cuiabá – Mato Grosso. IPHAN, 1985.

MARIMON, Mariana. Uma figura folclórica a caminhar por Cuiabá, mulher da vida e de calças, assim foi
Maria Taquara. Olhar Conceito, 2014. Disponível em
<https://www.olharconceito.com.br/noticias/exibir.asp?id=3947&noticia=uma-figura-folclorica-a-
caminhar-por-cuiaba-mulher-da-vida-e-de-calcas-assim-foi-maria-taquara> Acesso em 25/02/2021.

MARTINS, Moisés. Maria Taquara. Letra de Moisés Martins. Disponível em


<https://moisesmendesmartins.wordpress.com/2011/02/22/maria-taquara/> Acesso em 25/02/2021.

MENDES, Marcos Amaral. Devoção e território: A irmandade de São Benedito em Cuiabá (1722-1897).
Revista Territórios e Fronteiras V.4 N.1 – Jan/Jul2011. Programa de Pós-Graduação – Mestrado em
História do ICHS/UFMT.

676
PEREIRA, Antuterpio Dias. O viver escravo em Cuiabá/MT: Relações sociais, solidariedade e autonomia
(1831-1888). Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal da Grande Dourados. Dourados,
2016.

ROMANCINI, Sônia Regina; MOURA, Edenilson Dutra de. “A Lavagem das Escadarias da Igreja Nossa
Senhora do Rosário e Capela de São Benedito em Cuiabá - MT - Brasil”. Narrativas, Geografias e
Cartografias: para viver, é preciso espaço e tempo. Porto Alegre: Editora Compasso Lugar - Cultura e
Editora IGEO, 2020. Vol. 2, pp.1079 - 1108

SAMPAIO, V. Maria Taquara, um dos principais símbolos da história cuiabana, retoma seu lugar de
origem. Unicanews, 2019. Disponível em <https://www.unicanews.com.br/geral/maria-taquara-um-
dos-principais-smbolos-da-histria-cuiabana-retoma-seu-lugar-de-origem/45416> Acesso em
25/02/2021.

SILGUEIRO, Gabriela Rangel. Luz no Candeeiro: Vínculos de pertencimento em torno do memorial de


uma chacina no Centro Histórico de Cuiabá. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social,
Universidade Federal de Mato Grosso, 2019.

SILVA, Cristóvão. Depoimento em texto. Entrevistadora Thais S. C. Costa. Cuiabá, 21/01/2021. PDF, 1 p.

VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Cativos do Sertão: vida cotidiana e escravidão em Cuiabá: 1850 / 1888.
Cuiabá: Editora da UFMT, 1993.

677
DISTRITO DE PASSO VELHO, NÓ HISTÓRICO DE LIGAÇÃO ENTRE TERRITÓRIOS
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Tainara Meneghel Dal Lago


Arquiteta e Urbanista UCS; UCS - Universidade de Caxias do Sul; tainaramdallago@gmail.com.

Margit Arnold Fensterseifer


Arquiteta e Urbanista UFRGS, Mestre em História UCS, doutoranda em história UCS,
professora universitária desde 2007; UCS - Universidade de Caxias do Sul; mafenste@ucs.br.

O artigo tem como objetivo conhecer a história da localidade de Passo Velho, situada às margens
do Rio das Antas, município de Bento Gonçalves, RS. Atualmente, encontram-se alguns dos
remanescentes históricos do auge econômico do início do século passado. O local é um nó de
encontro da antiga estrada Buarque de Macedo que ligava cidades sendo interrompido pelo rio,
havia uma balsa para passagem. Durante a semana, observa-se um aglomerado de edificações
com ausência de moradores. Este silêncio provém da paralisação das atividades econômicas. A
pesquisa se propõe a entender o porquê deste fenômeno e conhecer o passado esquecido. A
quebra do silêncio ocorre nos finais de semana, ganhando vida com a presença de proprietários
de sítios.
Palavras-chave: Patrimônio Cultural; Preservação; Memória; Silêncio; Nó de encontro;

The article aims to know the history of the town of Passo Velho, located on the banks of the Rio
das Antas, municipality of Bento Gonçalves, RS. Currently, mention is made of some of the
historical remnants of the economic boom of the beginning of the last century. The site is a
meeting point of the old Buarque de Macedo road that connected cities, being interrupted by the
river, there was a ferry to pass. On weekdays, there is a cluster of buildings with absent residents.
This silence comes from the paralysis of economic activities. The research aims to understand the
reason for this phenomenon and to know the past that is forgotten. The break of silence occurs
on weekends, coming to life with the presence of residents of weekend sites.
Keywords: Cultural heritage; Preservation; Memory; Silence; Meeting node;

678
1. INTRODUÇÃO
Este artigo tem como objetivo apresentar algumas facetas de um sítio histórico localizado na
cidade de Bento Gonçalves. O local é chamado de Passo Velho, e hoje possui várias construções
seculares e ausência de atividade econômica. A comunidade local utiliza o espaço nos finais de
semanas, devido à beleza local e à presença de sítios de final de semana.
Para compreender melhor o sítio histórico, foram efetuadas quatro visitas ao local, inclusive
acessando algumas edificações. Mas o silêncio foi realmente quebrado a partir de entrevistas
com antigos e atuais moradores. Nestas, foi utilizada a metodologia de resgate da história oral
local adotado por Alberti que trabalha a compilação de informações com as similaridades das
entrevistas aliadas a documentos históricos (2004). O método também incentiva a elaboração
de perguntas prévias para que haja um melhor aproveitamento do diálogo (ALBERTI, 2004). Em
especial foi entrevistado o atual proprietário, que adquiriu em 2019 quatro prédios históricos
por ter laços afetivos com o espaço. O texto irá descrever os dados compilados. Existe também
uma escassa literatura do histórico destes sítios históricos chamados de distritos pelo município.
Em primeiro lugar será esclarecida a localização geográfica e histórica.
A questão que fica em aberto é como este material coletado poderia ser divulgado de modo a
quebrar este silêncio que acomete os visitantes. A prefeitura do município a partir da secretaria
de turismo e o museu de Bento Gonçalves está trabalhando para fomentar e divulgar através de
plataformas digitais o maior número de informações, para que não se percam estas informações
e o espaço possa criar vitalidade e utilização cultural do sítio histórico Passo Velho.

2. PASSO VELHO
A linha Passo Velho se encontra no município de Bento Gonçalves, situado no nordeste do
estado do Rio Grande do Sul. Atualmente, faz divisa com os municípios de Garibaldi (ao sul),
Veranópolis (ao norte), Pinto Bandeira e Farroupilha (a leste), e Monte Belo do Sul (a oeste),
distante 121 km da capital estadual Porto Alegre. A Linha Passo Velho, pertencente ao Distrito
de Tuiuty e localiza-se ao norte do perímetro rural da cidade, guarda traços e características que
deram início à constituição do município. A localidade se apresenta articulada à uma importante
paisagem natural turística da cidade, o Rio das Antas. Com o objetivo de compreender sua
importância no processo de formação do município, serão citados, a seguir, aspectos históricos
que abrangem o desenvolvimento do local (TOMASI, 2010). Os dados coletados são
consequência de pesquisa em escassa bibliografia e em grande parte resultado das entrevistas
orais.

679
Figura 01: Visão Geral Local Passo Velho

Fonte: A autora, 2018.

Os primeiros imigrantes italianos que chegaram a Bento Gonçalves instalaram-se no entorno do


Vale do Rio das Antas. Assentados ao longo da única via de acesso existente “A estrada geral”,
que depois veio a se chamar “Buarque de Macedo” e que hoje compreende um trecho da BR
470, onde fazia a ligação entre São Jorge de Montenegro (hoje cidade de Montenegro) e as
localidades da Serra onde os imigrantes estavam se instalando, eles deram início à formação do
Distrito de Tuiuty. A estrada geral cortava a Colônia Dona Isabel (hoje cidade de Bento
Gonçalves) em direção à Roça Reúna (Posterior Alfredo Chaves, hoje Veranópolis), continuava
do outro lado do rio em direção aos Campos de Cima da Serra. A presença da estrada facilitou o
povoamento e a ocupação dos lotes demarcados ao longo dela (TOMASI, 2010).
Essa passagem era o caminho para tropeiros ou carreteiros, era estreita e só passavam burros e
mulas, muitas vezes as carroças atolavam devido às más condições. E em certo ponto, os
viajantes e os moradores locais, tinham um obstáculo natural nesse percurso, o Rio das Antas,
então surgiu a necessidade de superar esta barreira, com a instalação de uma balsa (Figura 02),
permitindo a travessia do final do século XIX até pouco depois da construção da ponte Ernesto
Dorneles sobre o Rio das Antas, tornando a passagem obrigatória e próspera, nascendo o local
atualmente conhecido como Passo Velho (TOMASI, 2010).

680
Figura 02: imagem da Balsa

Fonte: Tomazi, 2010

A região abrangida pela Linha Passo Velho corresponde às antigas terras particulares de Pascoal
Corte (Foi Cônsul da Itália no Brasil). Sendo a única localidade da antiga Colônia Dona Isabel,
onde as terras não foram divididas em lotes coloniais pela Comissão de Terras do Governo. Essas
terras receberam os primeiros imigrantes a partir do final do século XIX e foram divididas em
dois tipos de lotes: as colônias e as chácaras (menores, medindo um hectare e seriam a zona
urbana), onde o traçado foi pensado para a criação de um povoado. Mas esse povoado não se
concretizou, devido a algumas poucas famílias serem proprietárias da maioria das chácaras
(CAPRARA, 2001). Luis Colau (2018) comentou, em entrevista, que um homem chamado
Diacomo Zaniol comprou quase a metade das chácaras – na época, o dinheiro era a troca de
ouro, ocasionando a não vinda de novos moradores.

Figura 03: Mapa das chácaras

Fonte: CAPRARA, 2001.

681
A balsa era responsável por transportar pessoas, carroças, mercadorias e animais, pelo Rio das
Antas. O local inicialmente era chamado de “Passo das Antas”, na cidade onde hoje é
Montenegro, ocorriam concorrências para o arrendamento do passo (contrato de arrematação
do pedágio do Passo das Antas). Devido a uma série de problemas e reclamações dos
passageiros, no ano de 1920, o Governo tornou-se responsável pelo Passo, que começou a ser
chamado de “Passo do Governo” (CAPRARA, 2001).
A balsa então era conduzida por barqueiros, onde o trajeto nas margens do rio era perigoso. E
o progresso continuava, mais pessoas e mercadorias precisavam utilizar o transporte que estava
sendo insuficiente (CAPRARA, 2001). A implantação e a localização do Passo do Governo foram
o marco do desenvolvimento da atual Linha Passo Velho, onde inúmeros negócios, casas
comerciais, hotéis e manufaturas se desenvolveram juntamente com a estrada Buarque de
Macedo, o embalsamento da madeira e o trem, formam juntos os principais autores do
desenvolvimento da comunidade nas primeiras décadas do século XX (CAPRARA, 2001).
Foi através dos transportes que a localidade cresceu, expandindo a atividade agrícola e trazendo
a necessidade de melhorias administrativas. A comunidade se encontra atualmente com pouco
movimento de pessoas, no entanto, o local permaneceu em seu auge até a década de 1950
quando o local contava com Hotel, cooperativa, alambique, moinho e com a balsa, “[...] tinha
tudo o que se podia encontrar no centro de Bento, destaca Orestes Salvadori. ” (TOMASI, 2010,
p. 27).
Na década de 1950, as autoridades decidiram transferir o local de passagem da balsa do Passo
do Governo para as proximidades da atual ponte do Rio das Antas, funcionando a motor. Com
o novo, o antigo local passou a se chamar “Passo Velho” (CAPRARA, 2001). No entanto, a
extinção total das barcas ocorreu com a inauguração da ponte sobre o Rio das Antas (que liga
os municípios de Bento Gonçalves e Veranópolis). Esta ponte facilitou o transporte de pessoas
e mercadorias, símbolo de desenvolvimento da região, no entanto foi o principal motivo da
parada de crescimento e progresso da comunidade do Passo Velho, pois a população não
precisava mais passar pelo local para utilizar a balsa (TOMASI, 2010).
Na atualidade, apenas oito edificações de valor arquitetônico e histórico sobreviveram ao
tempo, o local possui uma igreja e o salão da comunidade, onde ocorrem as festividades
religiosas, apresenta também casas e um prédio, mas esses não possuem valor arquitetônico. A
antiga capela em madeira, adornada com lambrequins, foi local de muita festividade religiosa,
mas hoje vive apenas na memória dos antigos moradores, pois foi desmanchada para a
construção da nova igreja, onde a tradição das festividades continua. Outro costume que é
preservado até hoje, é a procissão com a balsa, em honra a Nossa Senhora de Navegantes, onde

682
as duas comunidades vizinhas, separadas pelo rio, Comunidade Navegantes e Passo Velho se
uniam e ainda se unem para a festividade religiosa (TOMASI, 2010).
Em entrevista com antigo morador, Colau comenta que a rota turística poderia se chamar
“Caminhos da Madeira”, devido, onde próximo se localizava a balsa, também ocorria o ponto
de partida do transporte da madeira, que era feito quando o rio estivesse mais cheio, no mês de
setembro. Após as chuvas, era levada sobre as águas do rio até Porto Alegre (2018). A madeira
vinha de Nova Prata, Veranópolis e outros locais dos Campos de Cima da Serra, era transportada
até as margens do rio e ali eram separadas em molhos e amarradas, inicialmente com cipós.
Juntavam-se sete molhos e assim formava um quartel, cerca de cinco homens viajavam nele,
um ficava na frente e os demais atrás com os remos. Durante a descida os quartéis iam sendo
emendados, oito a nove quartéis formavam a balsa (um total 1000 a 1220 tábuas), então
seguiam viagem que durava cerca de dez dias, se tudo ocorresse bem, passavam por várias
cachoeiras, aproximadamente setenta delas. Na capital Porto Alegre, os balseiros eram
chamados de Gente do mato (CAPRARA, 2001).
Colau fez sua primeira viagem com seu pai aos 8 anos de idade, disse que era uma aventura
descer rio abaixo com a balsa. Não foram guardadas muitas recordações, pois na época era algo
comum (COLAU, 2018). Após analisar esses aspectos, nota-se que o sítio histórico em questão
apresenta uma série de elementos, edificados e naturais, carregados de valores culturais que
permanecem guardados na memória dos moradores e antigos moradores e são fundamentais
para a construção da identidade de Bento Gonçalves. Desse modo, quebrar o silêncio começa
com a identificação dos edifícios que contribuem para a preservação desta memória é
indispensável para a sua preservação e para um possível desenvolvimento da atividade turística
do município.
Estes dados ainda estão silenciados na pesquisa realizada. No entanto, servirá de aporte
bibliográfico para que a prefeitura através do projeto “Laços Patrimoniais” do museu de Bento
Gonçalves lance um livro e realize palestras para a rede de educação municipal. Portanto, o
silêncio somente é quebrado, pois a partir da curiosidade e do diálogo com moradores foi
possível agregar informações aos referenciais bibliográficos existentes. Lembrando que algumas
imagens foram disponibilizadas por estes. E entender que a história revelada pode vir a auxiliar
na preservação deste sítio que na sua maioria é de material muito sensível: a madeira.

3. PARTICULARIDADES DE ALGUMAS EDIFICAÇÕES


Nesta pesquisa foram analisadas oito edificações que possuem valor histórico e de arquitetura
vernacular, realizando a metodologia de atribuição de valores identificando os bens que são

683
importantes preservar, destas edificações foram escolhidas duas, onde foram realizadas fichas
de inventário de patrimônio materiais individuais, juntamente com o levantamento técnico, e
também uma ficha de inventário do conjunto urbano.
Uma das edificações é o CASARÃO FAVARETTO, construído há aproximadamente 100 anos, por
Frederico Favaretto. Um dos materiais utilizados foi a areia do Rio das Antas, a casa possui três
pavimentos, seu estilo arquitetônico é vernacular, e seu uso inicial e atual é residencial, mas
agora apenas utilizada nos finais de semana. O porão feito com paredes de pedra basalto e com
chão batido, permitia que o ambiente ficasse fresco, funcionava como uma espécie de geladeira
para armazenar produtos. A família possuía dois alambiques que ficavam do outro lado da
estrada próximo ao riozinho, assim aproveitavam a água para a fabricação da cachaça, que se
chamava “caninha amável”, acrescentando a economia do local.
A outra edificação é o HOTEL REBESQUINI, antiga casa de pasto e hotel. Chamava-se,
anteriormente, Hotel Riograndense, e era propriedade da família Rebesquini. O hotel servia
refeições e abrigava os viajantes que passavam pela comunidade. Tinha, também, uma área
cercada, onde ficavam os animais dos viajantes, que eram tratados com alfafa e milho. Foi
iniciado em 1922, por José Brezolin, que o vendeu, mais tarde, para Alberto Rebesquini, que o
manteve até 1968/1969.
Além destas destacadas, também citamos o Moinho e a cooperativa, edificações de suma
importância para a população e economia da época, moradores da região desciam até o passo
velho com grãos para realizarem a moagem, onde compravam e trocavam alimentos.

4. CONCLUSÃO
A partir dos levantamentos técnicos, históricos e sociológicos poderá ser iniciado um processo
de turismo para que este local possa sobreviver ao descaso e ao abandono, quebrando o silêncio
e acarretando na preservação e conservação da memória e identidade desse sítio histórico que
faz parte do contexto de Bento Gonçalves.
O principal entrevistado após alguns meses da entrevista acabou falecendo, sendo seu filho
Jorge atualmente o proprietário de quatro edificações históricas incluindo o moinho e o hotel.
Esse antigo morador que viveu a história local e suas particularidades tinha grande interesse em
que os dados compilados fossem divulgados assim quebrando o silêncio deste nó de transportes
que foi importante para o desenvolvimento econômico de toda a região pois possibilitou o
deslocamento de mercadorias através do Rio das Antas.

684
Referências

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<http://www.camarabento.rs.gov.br/leis/legislacao-municipal>. Acesso em: 28 nov. 2018.

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2018. Entrevista. LAVILLE, Christian; DIONNE, Jean; SIMAN, Lana Mara. A construção do saber: manual
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R. Cidade Fotografada, Memória e esquecimento nos álbuns fotográficos - Porto Alegre, décadas de
1920 e 1930. 2005. Tese de Doutorado - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. UFRGS, Porto Alegre,
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TOMASI, Fernanda; SCARTON, Marciele Bertoldi; FERNANDES, Guilherme. Passo Velho: a história da
colonização de Bento Gonçalves: da ocupação do Vale das Antas ao distrito de Tuiuty. Bento Gonçalves,
RS: Associação Vale das Antas, 2010.

685
DO JARDIM À PAISAGEM (E VICE-VERSA)
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Sergio Luiz Valente Tomasini


Eng. Agr., Dr.; UFRGS - Departamento de Horticultura e Silvicultura; sergio.tomasini@ufrgs.br.

Lilian Maus Junqueira


Artista Visual, Dra.; UFRGS - Departamento de Artes Visuais; lilimaus@gmail.com.

O artigo traz reflexões sobre a atividade artística enquanto estratégia de ativação, revelação e
ressignificação do patrimônio cultural e natural. Experiências artísticas, desenvolvidas pelos seus
autores, são apresentadas e postas em diálogo a partir da perspectiva de possíveis intercâmbios
simbólicos, perceptivos e afetivos entre o jardim e a paisagem. Enquanto a primeira experiência
se inspira na prática do paisagismo para explorar a imaterialidade do jardim por meio de um
jogo poético, a segunda constrói um percurso alegórico do jardim à paisagem pelo viés da
representação pictórica e produção de imagens. Discute-se o potencial desse tipo de prática
para a sensibilização e o reconhecimento de patrimônios vulneráveis por condições de
esquecimento e invisibilidade.
Palavras-chave: patrimônio cultural; patrimônio natural; paisagem; jardim; arte e natureza.

The article presents reflections on artistic activity as a strategy for activating, revealing and
reframing cultural and natural heritage. Artistic experiences, developed by their authors, are
presented and put into dialogue from the perspective of possible symbolic, perceptive and
affective exchanges between the garden and the landscape. While the first experience is inspired
by the practice of landscape design to explore the immateriality of the garden through a poetic
game, the second constructs an allegorical journey from the garden to the landscape through
the bias of pictorial representation and image production. The potential of this type of practice
for raising awareness and recognizing vulnerable assets due to conditions of forgetfulness and
invisibility is discussed.
Keywords: cultural heritage; natural patrimony; landscape; garden; art and nature.

686
1 - Patrimônio, Cultura e Natureza
De acordo com Zanirato e Ribeiro (2006), a relação entre patrimônio cultural e natureza é
resultado do amadurecimento do conceito de patrimônio, possível a partir da ruptura com uma
concepção que reconhecia como passíveis de serem mantidos à posteridade apenas os feitos de
heróis e das camadas dominantes.
De um discurso patrimonial referido aos grandes monumentos artísticos do
passado, interpretados como fatos destacados de uma civilização, se avançou
para uma concepção do patrimônio entendido como o conjunto dos bens
culturais, referente às identidades coletivas. Desta maneira, múltiplas
paisagens, arquiteturas, tradições, gastronomias, expressões de arte,
documentos e sítios arqueológicos passaram a ser reconhecidos e valorizados
pelas comunidades e organismos governamentais na esfera local, estadual,
nacional ou internacional. (ZANIRATO; RIBEIRO, 2006, p.251).

A formulação atual do conceito de patrimônio natural está diretamente ligada à emergência das
preocupações com o esgotamento dos recursos naturais do planeta, a partir da década de 1960,
que culminaram com a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano,
ocorrida em Estocolmo em 1972. No mesmo ano, em Paris, aconteceria a Convenção sobre a
Proteção do Patrimônio Cultural e Natural, convocada pela UNESCO, onde se buscou definir o
patrimônio pelo duplo aspecto cultural e natural, por entender que o homem interage com a
natureza e se faz necessário preservar o equilíbrio entre ambos, incluindo no rol de bens
patrimoniais as criações da cultura e da natureza (ZANIRATO; RIBEIRO, 2006).
A dicotomia entre patrimônio cultural e natureza, contudo, somente seria superada em 1992,
através da Convenção do Patrimônio Mundial, primeiro acordo internacional a reconhecer as
denominadas “paisagens culturais” como patrimônio a ser protegido (CARVALHO; MARQUES,
2019). A construção do conceito de paisagem cultural envolve uma longa discussão oriunda, de
um lado, da produção acadêmica, sobretudo na ciência geográfica, e, por outro, da experiência
internacional a partir dos trabalhos da UNESCO e da Convenção Europeia da Paisagem. Segundo
o conceito, a paisagem é produto de uma construção social e histórica que se dá a partir de
acréscimos e transformações sobre a base material constituída pela natureza (NASCIMENTO;
SCIFONI, 2010).
A Convenção do Patrimônio Mundial organiza as paisagens culturais em três principais
categorias: a) paisagem claramente desenhada e criada pelo homem; b) paisagem evoluída
organicamente; c) paisagem associativa. Dessas, a primeira seria mais fácil de ser identificada,
incluindo, por exemplo, paisagens de jardins e parques. A segunda abrangeria paisagens
resultantes de um imperativo inicialmente social, econômico, administrativo e/ou religioso,
tendo desenvolvido sua forma atual através da associação com seu meio natural e em resposta

687
ao mesmo. Por fim, a terceira incluiria paisagens que apresentam poderosas associações
religiosas, artísticas ou culturais do elemento natural, em vez de evidências culturais materiais,
que podem ser insignificantes ou mesmo ausentes (ICOMOS, 2009).
Carvalho e Marques (2019) lembram que, ao ser concebida como um produto da cultura, a
paisagem cultural representa uma especificidade de um conceito mais amplo, que é o da
paisagem em si. Interessa a este artigo abordar não somente esse conceito, mas também o
conceito de jardim e a diferença entre ambos, dado que, segundo a Convenção do Patrimônio
Mundial, reconhece-se o primeiro enquanto patrimônio a partir de uma das categorias das
paisagens culturais.
A teórica francesa Anne Cauquelin, no livro A Invenção da Paisagem, busca diferenciar as noções
de “paisagem” e de “jardim” sem situar este último apenas como um “gérmen” daquela. A
autora localiza o nascimento do termo “paisagem” por volta de 1415, na Holanda, a partir do
refinamento das leis da perspectiva (CAUQUELIN, 2007, p.35). Em razão disso, a autora define
ser ela concebida a partir do ponto de fuga na representação pictórica – lugar utópico onde as
linhas da perspectiva convergem no horizonte do olhar do observador. Desse modo, a partir
dessa noção, o homem estabelece uma relação com o mundo natural mediante a um olhar para
“além da linha do horizonte”, que aponta para o “absoluto”. Por outro lado, o jardim seria um
lugar habitado, que estabelece um outro tipo de relação do homem com a natureza: trata-se de
um espaço de convívio aprazível com o mundo natural, onde os pés pisam a terra e as mãos
cultivam flores e hortas com suas técnicas e artifícios. Nas palavras da autora: “O jardim oferece,
com efeito, esse paradoxo amável de ser 'um fora dentro'” (CAUQUELIN, 2007, p.63). Em síntese,
a filósofa busca diferenciar a noção de “jardim” daquela de “paisagem”, sublinhando que
enquanto esta última está atrelada à linha do horizonte e ao conceito de absoluto, o jardim, pelo
contrário, é aquele espaço íntimo concebido para o cultivo do conhecimento junto à experiência
com a terra.
Por outro lado, para Ailton Krenak (2020), líder indígena e escritor, em entrevista a Vozes da
Floresta – A Aliança dos Povos da Floresta de Chico Mendes, a diferença entre jardim e a
paisagem da mata é inexistente. O pensador reforça a ideia – atualmente defendida por dezenas
de arqueólogos – de que mesmo florestas originárias como a Amazônia, tidas como selvagens,
são fundamentalmente resultados do cultivo e da interação permanente entre os diversos entes
do sistema ecológico que a conformam. Nas palavras de Krenak:
A floresta nós cultivamos. A floresta é um jardim que a gente cultiva. A
floresta não é a pré-histórica. A floresta é agora! A floresta é alguma coisa
dinâmica, que vive. Diferente daquela ideia do séc. XIX, do Darwin e demais
naturalistas, de que a floresta era uma espécie de Jardim do Éden que Deus

688
esqueceu aqui na Terra, no último assalto. Não! A floresta é uma coisa
produzida por pássaros, primatas, gente, chuva... A floresta foi feita assim:
não teve nenhum evento que a implantou, feito Jardim Botânico. (KRENAK,
2020).

O antropólogo da natureza Phillipe Descola, integrante da escola de Lévi-Strauss e influenciado


pelas tribos amazônicas, também reforça o limite tênue das categorias simbólicas construídas
na relação entre humanidade e natureza (CAMPOS, 2013, p.23). No que diz respeito ao conceito
de paisagem, Descola apoia-se nas ideias de “artialização in visu” e “artialização in situ”,
cunhadas pelo filósofo da paisagem Alain Roger. O primeiro termo definiria a transformação
visual da pintura sobre o ambiente, por meio do gesto mimético. O segundo, reforçaria o
paisagismo como ação direta sobre o espaço, a exemplo dos jardins de lazer chineses ou ingleses
ou mesmo de alguns jardins de subsistência, em que os elementos têm uma função utilitária e
também uma estética. Estão imbricadas, nessas ações, também manipulações de escala para
facilitar a percepção de mundo. O cultivo da paisagem permitiria criar “um protótipo realizado
de uma única maneira”, como se fosse uma “miniatura” que permitisse a “emoção estética” a
partir da relação entre homens, bichos, pedras e plantas com o ambiente, resultando tanto em
uma imagem sintética, como analítica. Desse modo, a paisagem pode ser definida como “um
pedaço de meio ambiente transformado num signo de outra coisa que ele mesmo. Ele pode ser
uma figuração, ou ainda um pedaço de meio ambiente manipulado (como um jardim).” Nesse
sentido, o antropólogo francês também anula a diferença entre paisagem e jardim.
Retomando a discussão sobre jardim e paisagem como patrimônio, é interessante lembrar que
os denominados jardins históricos são atualmente reconhecidos como paisagens culturais
classificadas como “paisagens claramente definidas”.
[...] Essa atribuição evidencia uma tendência atual no âmbito internacional
para incluir os jardins históricos na globalidade da paisagem cultural. Em
contrapartida, dado o fato de a discussão ser recente, inclina-se a deduzir que
a definição de jardim histórico aparece ainda como um conceito em
transformação, cujo caráter monumental cede cada vez mais lugar à
abordagem culturalista. (CARDOSO, 2016 p.153).

A abordagem culturalista sobre a preservação patrimonial tem trazido reiterados


questionamentos sobre o que preservar e para quem. Iniciativas recentes têm recorrido ao
campo das artes visuais para problematizar e redefinir os usos da memória e do patrimônio,
como o interessante exemplo do edital “Arte e Patrimônio”, promovido pelo Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Ao analisar a efetividade do edital, nas suas
diferentes convocatórias (2007, 2009 e 2013), em seu objetivo de promover a reinterpretação

689
do patrimônio cultural brasileiro a partir das poéticas visuais contemporâneas, Macedo (2017)
faz a seguinte ressalva:
[...]“ o incentivo a essas reconsiderações não modifica necessariamente a
seleção dos bens culturais, porque seus critérios permanecem intrínsecos,
dificultando a compreensão de escolhas, a reafirmação de heranças, bem
como a resistência a transformações e atualizações mais amplas”. (MACEDO
2017, p. 3112).

Com o objetivo de contribuir para a reflexão sobre as práticas artísticas enquanto estratégia de
ativação, revelação e ressignificação do patrimônio cultural e natural, apresenta-se, na
sequência do artigo, duas experiências artísticas, desenvolvidas pelos seus autores. Através de
poéticas que envolvem os conceitos de jardim e paisagem, ambas as experiências se constroem
a partir de ações colaborativas que envolvem processos de sensibilização e o reconhecimento
de valores associados a lugares, observados mediante diferentes contextos e escalas, os quais
podem se constituir em patrimônios para os atores locais e que se encontram potencialmente
vulneráveis.

2 - Jardim, presença e cuidado


A pesquisa artística intitulada “O Jardim Essencial” foi apresentada, em 2013, como parte do
trabalho de conclusão de curso em Artes Visuais de Sergio Tomasini, desenvolvida junto ao
Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (TOMASINI, 2013). Partindo de
seu envolvimento com a prática paisagística, o autor propôs-se a realizar uma investigação
poética sobre a presença de espaços abertos residuais, localizados junto aos prédios históricos
do Campus Centro da UFRGS, partindo dos questionamentos: Poderiam existir ali jardins? Como
eles seriam?
O Campus Centro da UFRGS não foi projetado originalmente como um campus universitário,
mas se adaptou e se desenvolveu com essa função ao longo de mais de cem anos de ocupação
de uma área situada, atualmente, no Centro Histórico de Porto Alegre1 (TONIOLI, 2013).
Recorrentes sobreposições de planos e projetos de edificações e espaços abertos resultaram em
um conjunto bastante diversificado dos pontos de vista espacial e arquitetônico, composto por
dois quarteirões que somam, aproximadamente, 69.000 m². Uma característica comum em

1
Núcleo original da instituição, o Campus Centro se localiza em região central da cidade e é composto por
dois quarteirões contíguos que abrigam um conjunto edificado formado por prédios construídos entre os
anos de 1898 e 2013, dentre os quais se encontram exemplares com características das arquiteturas
eclética e modernista, reconhecidos como patrimônio cultural nos âmbitos municipal, estadual e nacional.
(TONIOLI, 2013 p.VI).

690
meio a essa diversidade, contudo, é a presença de fragmentos de espaços abertos,
aparentemente desprovidos de cuidados e uso, dispersos ao longo de toda a área do Campus.
O processo de desenvolvimento da proposta para “O Jardim Essencial” inicia com o
percorrimento do Campus Centro pelo autor em busca desses espaços e com a atenção voltada
às impressões causadas em si pelos mesmos, registradas através de fotografias, desenhos e
anotações. A experiência é guiada pela observação de possíveis intenções da construção de
jardins naqueles locais e pela imaginação do autor, que procura atribuir relações entre os
espaços observados e sua compreensão sobre o conceito de jardim.
Dessa experiência, resultou a definição de um percurso, a partir do qual foi construído um
dispositivo relacional na forma de um “guia de jardins”, com o objetivo de promover a interação
entre o “Jardim Essencial” e o público que circula diariamente pelo Campus. O guia foi produzido
como um livro-mapa, contendo textos e desenhos, elaborados pelo autor, sobre os seis jardins
do percurso (Figura 01)2. Cada página é dedicada a um dos jardins e, ao seu final, são
apresentadas as instruções para o uso do dispositivo, as quais orientam as pessoas a produzirem
seus próprios registros ao percorrerem esses espaços, repetindo a ação do artista, utilizando,
para isso, os espaços em branco deixados junto ao mapa (TOMASINI, 2013).
A proposta para “O Jardim Essencial” sugere ao participante a experiência do deslocamento
através e entre os espaços do percurso e a tentativa de decifrar o próprio significado do jardim.
Assim, ao longo do trajeto, o leitor-caminhante, provavelmente, defrontar-se-á, a cada espaço
visitado, com perguntas como: Isto é um jardim? Se sim, por que o é? O dispositivo constituído
pelo mapa, portanto, permite que se estabeleça uma situação de jogo baseada no potencial
simbólico do jardim para promover a significação ou ressignificação desses espaços, trazendo-
os de volta ao sensível através de uma operação de “resgate poético”.
Embora o deslocamento sugerido pelo guia possa, eventualmente, permitir a apreciação dos
prédios históricos do Campus, formalmente reconhecidos como bens culturais, o “Jardim
Essencial” propõe-se a trazer à tona impressões, afetos e memórias relacionadas a espaços
abertos não reconhecidos pela memória institucional. Ao colocar os participantes em diálogo
com o artista, procura-se romper as condições de invisibilidade e de vulnerabilidade de um
componente importante na paisagem do Campus Central, recorrendo-se às concepções
individuais de cada participante sobre o jardim e o seu significado.
Como aponta Cooper (2006), o jardim pode ser muitas coisas e ter muitos significados diferentes

2
O guia foi confeccionado através de impressão em papel offset (60x40cm) com tiragem de 300 cópias.

691
para as pessoas. Há jardins que podem ser comparados a obras de arte, por estarem muito
próximos às mesmas à nível de concepção e objetivos. No outro oposto, tem-se o jardim do
cotidiano, mais próximo da intimidade das pessoas (talvez muito mais carregado de valor
simbólico), ou seja, o jardim da “boa vida” (good life).
O “Jardim Essencial” procura aproveitar a fertilidade dos espaços residuais do Campus Centro,
dada pela sua aparente condição de abandono e descuido, enquanto possibilidade de acessar
os jardins do cotidiano das pessoas que circulam diariamente pelos espaços da instituição.
Citando as palavras do autor, contidas no verso do livro-guia “:

Os “Jardins do Campus Central da Universidade Federal do Rio Grande Sul”


não são os jardins dos planejadores e dos paisagistas.
São os jardins:
das intenções,
das pequenas iniciativas,
da ausência de iniciativa,
dos olhares indignados e passivos,
das vivências individuais ou partilhadas,
do lembrado e do esquecido.
Este guia convida você a percorrer esses jardins, senti-los e tentar
compreender conosco o que eles são e o que significam. (TOMASINI, 2013
p.7).

Figura 01: Projeto gráfico do dispositivo – frente (esquerda) e verso (direita)

Fonte: (TOMASINI, 2013)

3 - Viver a paisagem na Paragem das Conchas


A Paragem das Conchas não é um lugar inventado e, sim, descoberto. Ao procurar pistas em
enciclopédias e arquivos históricos, o nome aparece registrado como a primeira sesmaria do Rio
Grande do Sul – terra concedida por Portugal, em 1732, ao colono lusitano Manoel Gonçalves
Ribeiro, para o cultivo e a criação de gado. Hoje esse território corresponde a um conjunto de
municípios do Litoral Norte Gaúcho, dentre os quais está Osório.

692
Com aproximadamente 44 mil habitantes (IBGE/2016), Osório é um corredor ecológico onde o
vento sopra com vigor sobre um relevo dividido. De um lado está a Planície Costeira – formada
pelos campos banhados por 23 lagoas e pelo mar, na qual reside a maior parte dos moradores
e onde também está localizado o centro histórico, com sua catedral, hospital e a maior parte
dos serviços – e de outro, a Serra Geral – revestida pela Mata Atlântica, preservada nas Áreas
de Proteção Ambiental (APAs), além das áreas rurais, onde reside a comunidade do Morro da
Borússia e se encontram as vertentes que deságuam nas lagoas da planície. Desde 2006, a cidade
recebeu o slogan “Terra dos Bons Ventos”, em razão da implantação, na época, do maior
complexo de Parques Eólicos da América Latina. Os mais de 425 gigawatts de energia anuais
produzidos pelo contato do ar com as pás dos rotores – acoplados às torres de concreto dos
cata-ventos de 98 metros – vêm repelindo das conversas dos moradores as queixas sobre o
vento. Trata-se de um importante projeto de geração de energia para o estado do Rio Grande
do Sul e que vem trazendo benefícios à cidade. Apesar da energia dos cata-ventos ser
considerada limpa por não emitir CO2 na atmosfera, há uma série de impactos ambientais
implicados na sua distribuição. A construção das torres de transmissão requer o desmatamento
das áreas em que são implantadas e, depois de instaladas, geram ondas eletromagnéticas que
afetam o desenvolvimento da fauna e da flora ao seu redor, além de obstruir a rota natural de
voo das aves. Ainda hoje a expansão das torres para transmitir a energia excedente dos cata-
ventos é alvo de disputa jurídica, já que o desenho inicial da empresa executora do projeto
definiu áreas prioritárias de APA para a passagem das linhas, o que é ilegal.
Foi esse o local escolhido para a expedição que acompanhou, de 2012 a 2016, a tese de
doutorado intitulada (Des)apre(e)nder o ver com a paisagem: a expedição pela Paragem das
Conchas. As incursões por terra permitiram ir (vi)ver a paisagem e apre(e)nder o ver enquanto a
artista andava pela mata, navegava pelas lagoas, voava de parapente ou retornava ao
ateliê/casa para pintar e estudar. Nossa análise se centrará apenas no conjunto de trabalhos da
série de cartões postais Estudos sobre a terra (MAUS, 2017). O conjunto de dezoito aquarelas
com poemas no verso que formam um atlas que mescla linguagem poética e científica. A
experiência fenomenológica de observação dos animais e das plantas estudadas e pintadas deu-
se no terreno de um sítio do Morro da Borússia (local previsto, inicialmente, para passagem das
linhas de transmissão de energia). O objetivo era, por meio dessas ilustrações e poemas,
despertar a sensibilidade da comunidade sobre os tesouros encontrados na montanha
recoberta pela mata. Por fim, o trabalho, surpreendentemente, integrou tanto a audiência

693
pública promovida na Câmara dos Vereadores de Osório, como o relatório técnico desenvolvido
para a ação judicial, contribuindo com a preservação do patrimônio.
A expedição foi desenvolvida a partir do olhar itinerante que não se identifica – embora
empatize – com a figura do flâneur, cunhada pelo poeta Charles Baudelaire na multidão da Paris
modernizada no século XIX. Há aqui uma retomada das experiências do viajante-expedicionário,
presente já na Antiguidade e que se fortalece a partir da colonização das Américas. Embora
possuam origens e demandas diferentes, ambos os olhares têm em comum a curiosidade, a
sensibilidade e o senso crítico, que impulsionam o perambular rumo ao desconhecido, a fim de
apreender o que o primeiro chamará de paisagem e o outro, natureza. A paisagem não está em
um lugar externo, nem reside apenas dentro da imaginação do viajante, ela é um espaço de
encontro da linguagem com o mundo. Segundo o teórico Michel Collot (2013, p. 27), “essa troca
entre o interior e exterior não diz respeito apenas à percepção individual, mas também à relação
que as sociedades humanas mantêm com seu ambiente.” A noção de paisagem, segundo o
autor, envolve pelo menos três componentes, imbricados em uma relação complexa: “um local,
um olhar e uma imagem.” (Ibidem, p.1) Nesse sentido, Lilian Maus busca atribuir a suas pinturas
o gênero paisagem mesmo quando representam detalhes da natureza, como pode ser visto na
Figura 02.

Figura 02: Cartões Postais da coleção Estudos sobre a Terra – Sítio da Borússia/Osório-RS

Fonte: (MAUS, 2017)

Abaixo segue um dos poemas, publicado no verso do postal da Abelha Tubuna (Ibidem), em
comemoração aos 200 anos da viagem do naturalista Saint-Hilaire ao Rio Grande do Sul:

ABELHA TUBUNA – Scaptotrigona bipunctata


Matutinas, as cinco mil abelhas evitam forragear nas horas mais quentes do
dia. Negras e pequeninas, parecem moscas musicistas. No tronco da açoita-
cavalo desmiolada, constroem sua trombeta de cerume escuro, onde sopra
uma melodia oca que ambienta o cultivo do mel úmido. Com sabor ácido e

694
pouco adocicado, seu aroma varia de acordo com a flor polinizada no pampa
e na mata. Há séculos os sábios índios utilizam esse mel como remédio, por
sua ação antibactericida, antifúngica, cicatrizante e antioxidante, que a
medicina ocidental só agora comprova. Durante o zum zum zum, as abelhas
são arredias à plateia, mas, sem ferrão, revidam em ataques camicases,
grudando nos cabelos do espião com suas mandíbulas vorazes. Durante a
coleta e degustação, nem tudo são flores. Entre 1820 e 1821, o abelhudo
Saint-Hilaire, em expedição pelo Rio Grande do Sul, provou do mel da vespa
lechiguana. Acompanhado de José Mariano e Matias, sentiu o cheiro da
morte ao provar, curioso, apenas duas colheradas. Atirado embaixo da
carruagem, com a cabeça apoiada sobre a pasta de um herbário, melava-se
no terror de vozes fantasmagóricas que, aos gritos, alertavam: “Ele não se
perderá, há um anjo que o protege”.

5- Considerações finais
A difusão do conceito de paisagem cultural tornou possível uma importante aproximação entre
as noções de patrimônio cultural e natural. Revisões recentes do conceito, entretanto, têm
levado a uma superação da ideia de uma paisagem natural fisicamente alterada pelo Homem
para dar lugar a abordagens que “(...) integram a consciência social sobre o lugar, os significados
conferidos pelas comunidades locais e pelos visitantes (...)” (CARVALHO e MARQUES, 2019,
p.94).
As pesquisas artísticas apresentadas neste artigo, embora não tenham sido desenvolvidas com
o propósito explícito de participar de processos de identificação e de proteção do patrimônio
cultural, associam-se às discussões atuais sobre o tema a partir de uma perspectiva culturalista
sobre os estudos da paisagem. Da mesma forma, do ponto de vista metodológico, convergem
na utilização da abordagem fenomenológica sugerida por Freire (2019) como uma alternativa
para os estudos sobre patrimônio. Tanto no espaço delimitado do jardim, como no horizonte
expandido da paisagem, ao percorrerem o espaço com o olhar “flâneur” e “expedicionário” em
exercícios de alteridade, ambas as propostas artísticas buscam renovar percepções e afetos em
ações colaborativas.
É a partir de um pensamento sistêmico e através de uma perspectiva holística da fenomenologia
da paisagem que buscou-se desenvolver as práticas artísticas aqui descritas. Propondo o cultivo
da relação entre arte e natureza, objetivou-se semear uma consciência ecológica em que a
paisagem pudesse ser considerada – assim como nos propõe o ecologista Eduardo Gudynas
(2019) – não apenas como valor utilitário humano. Nesse sentido, a compreensão do patrimônio
paisagístico faz-se inseparável do estudo e da tomada de consciência estética, histórica, cultural,
religiosa e espiritual das comunidades a que pertencem.

695
Referências
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697
ENTRELAÇAMENTOS ARTÍSTICO-GEOGRÁFICOS: por uma geografia das histórias
contadas
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Carlos Eduardo Cinelli Oliveira de Campos


Bacharel em Artes Cênicas pela UNIRIO, Doutorando em Geografia no Programa de Pós-
graduação em Geografia da Universidade Federal do Paraná, Brasil. cecinelli@hotmail.com

Marcos Alberto Torres


Licenciado e Bacharel em Geografia, Doutor em Geografia, docente e pesquisador no
Departamento de Geografia e no Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade
Federal do Paraná, Brasil. marcostorres.geo@gmail.com

Ao entrelaçar Geografia e Artes, o presente trabalho tem o intuito de refletir sobre uma
geografia para/com/nas/pelas artes a partir das experiências espaciais provocadas pelas
narrações de histórias, e consequentemente com as problematizações demandadas, ao se
seguir por uma criação artística como pesquisa, como caminho, metodologia, e não como
ferramenta, meio ou objeto de análise. Para tal, são apresentadas algumas das reflexões da
pesquisa, numa relação direta com as experiências do trabalho em campo com um grupo de
jovens frequentadores do Centro da Juventude da Borda do Campo, em São José dos Pinhais –
PR. Experiências estas que envolvem itinerâncias com bicicletas pelo bairro e a criação de
narrações de histórias, pelos jovens participantes.
Palavras-chave: Geografia; Arte; Narração de Histórias; Bicicleta;

By interweaving Geography and Arts, the present work aims to reflect on a geography for / with
/ in / by the arts from the spatial experiences provoked by the storytelling, and consequently with
the problematizations demanded, when followed by an artistic creation as research, as a path,
methodology, and not as a tool, device or object of analysis. To this end, some of the research
reflections are presented, in a direct relationship with the experiences of fieldwork with a group
of young people who frequent the Youth Center of Borda do Campo, in São José dos Pinhais - PR.
Experiences that involve roaming with bicycles through the neighborhood and the creation of
storytelling by the young participants.
Keywords: Geography; Art; Storytelling; Bike;

698
1 – Experiências narrativas e espaciais pela borda
A geografia pressupõe e consagra uma liberdade. A existência, ao escolher essa
geografia, exprime frequentemente o que há de mais profundo nela mesma.
(DARDEL, 2015, p.95)

O que será contado aqui é uma pesquisa que foi interrompida. O que será contado aqui são os
primeiros passos de um processo de pesquisa, de um trabalho em campo que foi desenvolvido
com um grupo de jovens frequentadores do Centro da Juventude da Borda do Campo em São
José dos Pinhais/PR. O trabalho em campo fazia parte da pesquisa do mestrado de Carlos
Eduardo C. O. de Campos com orientação do Professor Marcos Alberto Torres no Programa de
Pós-graduação em Geografia da UFPR, autores desse texto. Por se tratar de uma pesquisa que
tem como eixo a relação entre geografia e arte, e particularmente a narração de histórias, a
proposta é experienciar o espaço, no caso o bairro da Borda do Campo, pedalando; e, ao longo
do percurso, acolher, provocar e escutar as histórias contadas pelos participantes. Esse processo
de trabalho em campo foi interrompido em seu quinto encontro em respeito às regras sanitárias
impostas para o combate do novo coronavírus. Mas no ensejo de registrar o caminho percorrido
até esse ponto gerado pelas reflexões entrecruzadas traz a urgência desse texto para que as
experiências narrativas e espaciais pela borda não fiquem esquecidas na frustração de um
mundo que se descontinuou após (e ainda) à pandemia do SARS COV-2. O texto se divide em
duas partes: numa primeira sobre os caminhos que levam ao processo do trabalho em campo e
na segunda parte descrições do trabalho em campo, onde se pode notar as interferências de
uma perspectiva de um fazer geográfico artístico ou um fazer artístico geográfico.

1.1 Caminho | percurso | método


A palavra grega para designar caminho é méthodo. Essa palavra também é
formada de duas partes: “odos”, que significa estrada e “meta”, que significa
por meio de, através. Temos, portanto, necessidade de percorrer um caminho
e essa é uma característica da história da filosofia ocidental, que sempre fez
esse caminho para se chegar à compreensão do sentido das coisas. (ALLES
BELLO, 2006, p.21)

Por ver que esta pesquisa tem proximidades com a Fenomenologia, abriu um precedente para
a seguinte reflexão que se relaciona inclusive com a hipótese pela qual se segue todo este
trabalho: se a experiência artística é um dos pilares deste projeto, como meio de experienciar
espacialmente com as narrações de histórias, não seria o próprio fazer artístico a metodologia
deste trabalho? Carlos Eduardo Campos, um dos autores deste texto, é também artista cênico e
contador de histórias, desenvolve um projeto artístico de contar histórias de forma itinerante

699
com bicicletas, intitulado Percursos Afetivos. Projeto que inspira sua ida para o Programa de
Pós-graduação em Geografia na UFPR e que também contribui para o diálogo com sua pesquisa
ao pensar o uso das bicicletas e as narrações de histórias itinerantes (CAMPOS, 2020). Assim se
alinhava a ideia de ter os Percursos (o projeto artístico), como método, como caminho para
encontrar as possibilidades narrativas que se relacionam com as espacialidades vividas, a partir
da experiência estética (CARERI, 2015).
Mas como abordar, aplicar, pesquisar e consequentemente escrever sobre isso, de forma que o
caráter artístico não seja apenas utilitário, ou uma ferramenta, e que sim, possa permear a
forma de fazer, pensar, e estar diante e na investigação? (MELKDJIAN e OLMEDO, 2016) Como
a perspectiva artística pode estar em consonância epistemológica com uma geografia
das/com/nas artes?
Duas referências bibliográficas indicam caminhos para estas epistemologias: No texto de
Melkdjian e Olmedo (2016) há uma reflexão sobre as abordagens artísticas não como
ferramentas, um meio de, ou mesmo da obra de arte ser como um objeto para ser analisado à
luz do fazer geográfico, mas que estas abordagens em si possam ser caminhos epistemológicos
em que o fazer artístico possa ser legitimado como um fazer geográfico, abrindo os horizontes
da produção de conhecimento em comunhão com as linguagens artísticas. Fernandes (2015) em
“Quando o Todo é mais que a Soma das Partes: somática como campo epistemológico
contemporâneo” relata sobre a somática como epistemologia dentro das cênicas,
principalmente na dança. A autora questiona a problemática e a dicotomia, muitas vezes
presente nas pesquisas acadêmicas dentro das Artes Cênicas, quando tem em seu cerne o fazer,
a criação e o processo artístico. Para Fernandes (2015) muitas vezes há uma incompatibilidade
epistemológica que acolha o espaço/tempo da criação como uma possibilidade legítima de
produção de conhecimento, e por que não, ganhando o reconhecimento acadêmico. No campo
da dança, do teatro e das artes performativas isso se torna urgente e em crescimento. A
corporeidade traz e encarna a presença e perspectiva muitas vezes do pesquisador. Na interface
com outras áreas há uma ocorrência maior dentro do campo da Psicologia. Mas e em outras
áreas e campos do conhecimento? A palavra somática tem em sua etimologia “(as palavras
gregas soma (o corpo em sua completude) e somatikos (corpo vivido) como corpo experienciado
e regulado internamente)” (FERNANDES, 2015, p. 12). Ademais as reinterpretações das palavras
gregas, há também o sentido de soma para os Vedas hindus, que significa daquilo que se vai
para além do “corpo”, o que traz uma conformação para além da materialidade, em consonância
e integração com níveis e aspectos constituintes dos conceitos objetivistas do corpo. Nesse

700
sentido, a somática em qualquer dos campos em que se relaciona, não está a serviço de, ou
mesmo é uma ferramenta, uma metodologia a ser aplicada, mas sim como princípios de
abordagem e experienciação.
É o pensar para além do corpo objetificado, inclusive nas Artes Cênicas ou nas Geografias, para
que se possa incorporar a relação com o espaço-tempo, também em consideração com o mundo
vivido. Neste ponto, há profunda relação com os aspectos levantados até agora com a pesquisa
de mestrado de Carlos Eduardo, que diz respeito às relações existenciais com as experiências
geográficas, no que se configura como geograficidade (DARDEL, 2015), ou seja, a pessoa em
relação com as realidades geográficas, em contato com o que se conforma como mundo vivido
a partir das experiências. E no caso deste trabalho ao se relacionar com a arte, o que se conforma
como mundo vivido, se dá a partir da experiência estética, da narração de histórias.
Uma das possibilidades apresentada por Fernandes (2015) de estruturar a pesquisa acadêmica
de forma a considerar uma outra epistemologia a partir da somática é a Prática como pesquisa:
(forma de pesquisa acadêmica que através da prática busca desenvolver novas visões,
conhecimentos e aprendizados, com resultados que se apresentam tanto teóricos quanto
práticos. A partir da exploração e experimentação prática, os caminhos, métodos e os possíveis
desdobramentos da pesquisa são realizados – podendo ser coleta de dados, criações artísticas,
construções de redes de informações, obras em processo).
Assim, a relação mais aproximada com o que se começou a realizar como trabalho em campo
nesta pesquisa e com o que está levantado até o momento, é o que Fernandes chama de Prática
como pesquisa.
Ao mesmo tempo, ao pensar na utilização da prática artística como caminho relacional e de
experienciação e ao trabalhar com grupos há os princípios orientadores da Pedagogia da
Autonomia, posta por Paulo Freire (2019): no sentido da escuta, no acolhimento e consideração
da experiência do outro, da constituição das histórias e saberes do outro como caminho de
legitimação do estar no mundo, da abertura de olhar, da escuta, das percepções em movimento
inaugural de criação artística.
Freire inspira e abre as portas para estabelecer e sedimentar princípios e rigor nas possibilidades
de abordagens de escutas e considerações sobre o que pode ser vivenciado ao longo do
processo criativo. Como também se deixar, portanto, permitir ser afetado na experienciação
com a perspectiva crítica de não reproduzir uma visão unilateral e autocentrada dentro dos
caminhos do processo criativo.

701
Além da experiência de contato que a narração de histórias permite há também o uso das
bicicletas como veículo, meio, para se vivenciar a proposta. Uma outra forma de perspectiva e
reconhecimento do espaço. É importante ressaltar que o uso das bicicletas modifica a
experiência habitual do contar histórias tal como vem se estabelecendo, seja num palco, numa
sala, num parque, situações em que sempre há um público parado ouvindo a história de alguém.
Ao se colocar em movimento e pedalando com as bicicletas, algumas vezes parando, mas outras
não, a percepção do espaço e a experienciação dele muda completamente.
A cidade vista sobre duas rodas se torna uma experiência existencial, e a arte um convite para
vivê-la. Mas como fazer esse convite existencial para um grupo de jovens, de uma situação e
contextos sociais em que a vulnerabilidade se apresenta de forma tão escancarada? A bicicleta
é muito usada por muitas pessoas ao longo de suas vidas, se torna um desafio que acaba
marcando certas autonomias do corpo e adquirem um status de um novo momento em que a
liberdade pode ser vivida (AUGÉ, 2008). Qual a pessoa em que não se lembra de quando tirou
as rodinhas de apoio da bicicleta e começou a pedalar sem elas? A sensação do vento no rosto
e da paisagem se alargar a sua frente trazem a percepção de um corpo mais amplo e
empoderado. Em lugares que populações que vivem em vulnerabilidade, de difícil acesso a
transporte coletivo ou individual com qualidade, as bicicletas se tornam uma saída, em alguns
casos uma maneira de existir para grupos invisibilizados ou marginalizados, como mulheres
negras e indígenas (SOARES e GUTH, 2018).
A experiência da bicicleta se torna a possibilidade de se relacionar e experienciar as
espacialidades a partir de um vocabulário/ veículo comum.

1.2 Abordar a Borda ou A bordar a Borda


Para delimitar bem a ideia de abrir esses espaços de experiências espaciais a partir das narrações
de histórias com bicicletas, ocorre a proposta de olhar para as experiencias espaciais vividas por
grupos em situação de vulnerabilidade, grupos que possam contribuir para enxergarmos
percepções, apropriações, desapropriações e afetos sobre os lugares e paisagens vividas por
eles. Em encontro com as críticas levantadas por Lindón (2012) e Hernandez (2006) do quanto
se criam narrativizações que colaboram com as hegemonias que mantém uma vida precarizada
nas periferias em detrimento à especulação imobiliária em outras áreas das cidades, que
favorecem manutenções da desigualdade social em contraponto ao enriquecimento de
pequenos e desproporcionalmente grandes poderes de riqueza. Escolher um grupo social
presente nas periferias de Curitiba e Região Metropolitana era poder reencontrar nas

702
narrativizações os resquícios das narrativas íntimas de um grupo, de um coletivo, de
representantes de uma comunidade. Encontrar essas narrativas como possibilidades de
mudanças de perspectivas em favor de novas geografias e, por que não, outras artes, que
possam estar mais conectadas a essas pessoas. Por isso a escolha o Centro da Juventude.
O Centro da Juventude (CJ) é um espaço de convívio social que foi criado ao longo dos anos 2000
como um centro de referência para jovens e adolescentes poderem desenvolver atividades
educativas, esportivas, artísticas e culturais no contraturno ao longo da semana. Ganhou força
por ter sido implementado em regiões de vulnerabilidade social, com baixos índices de
desenvolvimento humano e altas ocorrências de violência. Alguns dos jovens que ali estão
presentes, foram encaminhados através da prefeitura ou do governo estadual para cumprirem
medidas sócio educativas após terem cumprido pena dentro dos CENSEs (Centro de Socio
Educação), que funcionam como centros de detenção e educação para menores infratores.
Outros que estão ali são moradores dos bairros adjacentes. Alguns dos frequentadores se
tornam agentes da cidadania, e recebem uma bolsa de ajuda de custo para estarem lá. Com isso
precisam desenvolver projetos no CJ, cumprir estágios em espaços da prefeitura ou do governo
do Estado, e com o apoio das educadoras e assistentes sociais recebem suporte para
encontrarem possibilidades de trabalho, estudos técnicos e/ou acadêmicos em universidades
públicas ou em universidades particulares com bolsas de estudo. Como muitos dos jovens
frequentadores dos Centros da Juventude vivem próximos, compartilham uma mesma realidade
socioespacial. Isso não era diferente na região da Borda do Campo em São José dos Pinhais.

2 – Das primeiras experiências espaciais às reflexões em processo


Com o aceite por parte do Centro da Juventude para o desenvolvimento do trabalho em campo
com o grupo de jovens, foram marcados uma série de encontros. A partir de agora neste texto
serão colocados alguns dos relatos do diário de campo com os pontos de reflexão levantados
durante o processo vivido entre o final de janeiro a início de março de 2020. Foram quatro
encontros realizados até a interrupção em respeito às medidas de contenção a propagação do
novo coronavírus. Também a partir de agora será assumida a primeira pessoa, do pesquisador,
incorporando sua corporeidade fazedora de uma geografia das histórias contadas.

2.1 – 29 de janeiro de 2020: o primeiro encontro


Neste dia foi realizada uma Roda de Conversa com as pessoas interessadas em participar do
projeto. Estavam presentes dezoito jovens, sendo 17 da faixa etária de 14 a 17 anos e um com

703
idade 18 entre 24 anos. O grupo era igualmente dividido entre homens e mulheres, não falamos
de como eles se autodeclaravam: se negros, pardos ou brancos. Nos encontramos numa sala e
eu abri a conversa falando sobre o porquê de estar ali, o que eram os Percursos Afetivos, sobre
o mestrado, a vinculação desse projeto com uma proposta mais ampla dentro do Centro da
Juventude para reconhecimento do território deles e um pouco da minha trajetória de vida
profissional. Após essa fala, cada um dos jovens foram trazendo um pouco as motivações deles
estarem ali, também dizendo quais oficinas e projetos desenvolvem e/ou participam dentro do
CJ, quantos anos eles têm, se sabem andar de bicicleta e se possuem uma.
Dentre eles apenas uma moça não sabia andar de bicicleta. Oito tinham bicicletas, mas nem
todas estavam aptas a serem usadas e os outros dez não tinham. Para solucionar o uso das
bicicletas foi levantado por eles a possibilidade de conversar com duas bicicletarias do bairro
para pedir o empréstimo nos dias do projeto. Eles não se sentiam à vontade de fazer isso, mas
me encorajaram veementemente para que eu o fizesse. Considerei isso como um sinal de algo
que eu deveria ficar atento, e acatei no próprio encontro. No encerramento deixei uma pergunta
para todos que estavam ali: por quê a Borda do Campo se chama assim, e quais histórias,
lembranças, memórias marcantes das vidas deles poderiam ser compartilhadas. Combinamos
que o próximo encontro ainda seria para conversarmos sobre essas histórias e sobre a Borda

2.2 - 05 de fevereiro de 2020: preparando o terreno


Saí mais cedo com minha bicicleta dobrável e a coloquei dentro do ônibus para ver a
possibilidade disso e para conversar com os donos das bicicletarias. Para minha alegria ambas
aceitaram em fazer os empréstimos. A cada vez seriam entre 5 a 8 bicicletas usadas. Houve
resistência de um dos donos que fez comentários sobre os jovens que frequentam o Centro da
Juventude, insinuando que eles estavam relacionados ao uso de entorpecentes, ou que foram
bandidos e por isso estavam ali. Eu simplesmente respondi, “que eu não sabia se eles usavam
ou não drogas, e que isso não me interessava saber. E se alguns um dia se envolveram ou não
com alguma situação ilegal, ainda bem que eles estavam ali no Centro da Juventude, porque era
uma possibilidade de repensar o passado, viver um presente e vislumbrar um futuro”. Ainda
perguntei se ele não gostaria de contribuir para o futuro desses jovens emprestando as
bicicletas. Claro que eu fiz um jogo de argumentação usando e apelando para o aspecto
emocional! Tenho isso de forma clara! Mas depois de tudo isso que falei, tranquilamente, ele
aceitou.

704
A partir desse ocorrido comecei a pensar de como eles são vistos pelo entorno e de como eles
mesmos se veem.
O encontro com os jovens participantes ocorreu no próprio Centro da Juventude. Ao perguntar
se eles sabiam por que a Borda do Campo se chamava assim, eles falaram que era porque ali era
o limite do perímetro urbano, a borda mesmo... porque era uma região antes de se tornar rural.
Contei a partir do que eu havia lido no site da prefeitura de São José dos Pinhais e na reportagem
do blog Revista Pública de São José dos Pinhais (http://revistapublicasjp.blogspot.com/) que
falava sobre a origem de alguns bairros da Região Metropolitana de Curitiba.
A Borda do Campo surgiu como bairro na década de 1970, como resultado da regulamentação
da Região Metropolitana de Curitiba que regulariza os loteamentos e terras nos municípios. O
bairro fica no limite fronteiriço com os municípios de Piraquara e Quatro Barras e com o bairro
Dom Rodrigo, último bairro periférico de São José dos Pinhais. De fato, a Borda fica na borda,
nesse limite entre o urbano e rural. A ocupação desse território é datada antes mesmo da
invasão dos colonizadores europeus. Os tupiniquins e carijós do grupo étnico tupi-guarani, e os
botocudos do grupo Jê, estavam bem presentes ali. Com a ocupação do litoral paranaense no
século XVII e relatos de indígenas da promessa de presença de minério acima da serra, abriu-se
o caminho para a chegada de colonos na região que pouco a pouco foram se instalando,
demarcando terras e afastando os povos originários. Essa região, no entanto, ficou marcada pela
presença de colônias de italianos, poloneses e alemães, tendo inclusive hoje uma rota turística
denominada caminho do vinho. Só que a expansão metropolitana das cidades de Curitiba e São
José dos Pinhais, e consequente instalação de indústrias próximas às rodovias de acesso ao
litoral, ao Porto de Paranaguá, (LIMA, MENDONÇA, 2001) trouxe um povoamento e ocupação
maior ao que era esperado, e esse agrupamento que ali se instalou; tornou-se no que hoje é a
Borda do Campo. As consequências disso são o crescimento desordenado, sem estrutura e
saneamento básico para a população, a negligência governamental somada à ausência de
políticas públicas de suporte e amparo, gerando vulnerabilidade, instabilidade social, aumento
de criminalidade e o estigma da pobreza. Ao se pesquisar na Internet sobre a Borda do Campo
e as notícias relacionadas a ela, entre os anos 1990 e 2000, predominam nos resultados notícias
sobre assassinatos, roubos de carros, tráficos de drogas e armas. Em algumas matérias se criam
relatos e menções do quão perigoso é estar ali. E nem falo que essas narrativizações tenham
desaparecido por completo...

705
Eu contei isso para os jovens presentes no encontro. Alguns me confirmavam que conheciam as
colônias, falaram da reserva indígena, que não ficava muito longe dali, e todos diziam que sim
que a Borda já foi muito perigosa, mas que agora não estava tanto...
Depois fizemos uma rodada para que cada um contasse sua história, ou memória, um fato que
aconteceu com eles e que os marcou. Foram quatorze histórias diferentes: sobre a chegada
recente na região para viver com a tia, porque sofria com assédio moral em casa; momentos de
respiro e tranquilidade longe do centro da Borda do Campo; aventuras e tragédias que ocorriam
na rodovia que corta o bairro; histórias de relacionamentos amorosos e seus desfechos tristes;
situações de abordagem agressiva e violenta da polícia ou testemunho de assassinato.
Em seguida, como praticamente todas as histórias ocorriam ali na Borda, foi sugerido que
pudéssemos desenhar um mapa localizando onde cada história de cada um tinha ocorrido. Eles
se dividiram em pequenos grupos de acordo com as proximidades dos lugares onde suas
memórias tinham acontecido e rabiscaram em cartolina, juntos numa tentativa de localizar suas
histórias. O que mais aconteceu na hora de tentar desenhar o mapa, era a dificuldade de se
localizar e entender espacialmente de onde se estava falando exatamente. Foi um esboço de
mapa. Comecei a pensar que os encontros poderiam nos ajudar inicialmente a reconhecer
melhor os lugares dos quais eles falavam em suas histórias pessoais.

2.3 - 19 de fevereiro de 2020: sobre duas rodas


Uma vez que todos estavam de bicicleta reunimo-nos em roda e lancei a proposta para que eles
escolhessem um caminho, um trajeto, e que ao longo dele pudéssemos observar os lugares e as
paisagens, e caso eles quisessem contar alguma coisa a respeito ao longo do caminho poderiam
ficar à vontade para falar ou guardar para depois expor ao grupo. Em seguida saímos. O início
do percurso foi ainda dentro do centro da Borda do Campo, mas logo saímos e fomos para uma
estrada que se afasta e faz o contorno do bairro. Ao longo do caminho víamos chácaras, casas,
muitas árvores, araucárias e pinheiros, mas também pasto, e espaços onde árvores foram
derrubadas. Um dos jovens apontou e falou para que todos soubessem que ali, até pouco tempo
atrás, era um bosque e que agora era um pasto. De longe se pôde ver Curitiba, bem de longe na
linha do horizonte. Paramos em frente a dois cemitérios e seguimos. O percurso como um todo
durou aproximadamente 1 hora e 20 minutos. Quanto mais pedalávamos e fazíamos
comentários sobre o que estávamos vendo, mais do que exatamente havia uma narração de
alguma história. Mas preferi deixar assim e entender que estávamos experienciando o espaço e
pedalando juntos. Passamos pelo Centro da Juventude para lanchar e fazer uma conversa: se

706
falava bastante sobre a possibilidade de irmos para outros lugares dali da Borda. Eles
comentavam que gostavam da experiência do projeto, mas que era difícil de fazer isso
constantemente já que não tinham, em sua maioria, uma bicicleta. Encerrado o encontro às 16h
20 entregamos todas as bicicletas e marcamos o encontro do dia 04 de março.

2.4 - 04 de março de 2020: uma freada abrupta num trabalho artístico geográfico sobre rodas
em processo
Novamente nos encontramos na bicicletaria, quem tinha que pegar bicicleta pegou e quem já
tinha apenas chegou. Se juntou a nós um amigo de um dos rapazes que estava participando. Na
mesma linha de proposição da última vez, entramos em acordo, antes da partida, sobre qual
seria o trajeto a ser feito. E dessa vez a ideia era alcançar o caminho do vinho. Esse caminho era
mais longo e fazia de fato a travessia do perímetro urbano para o rural. Havia essa marca clara
não só em placa sinalizando isso, como o asfalto na estrada terminava e entramos num caminho
de terra.
Um dos participantes me falou, enquanto pedalávamos que aquele trajeto era mais bonito, que
teríamos mais “paisagens” para ver do que perto do centro da Borda do Campo. Essa fala me
chamou muito a atenção para pensar melhor sobre essas ideias do que é paisagem e as medidas
para cada um do que é belo e feio.
Um outro fato importante para esse percurso foi a presença de músicas para escutarmos ao
longo do caminho. Nos quinze dias prévios, cada um me mandou por Whatsapp alguma música
que tinha interesse em escutar. Elas eram tocadas através de uma caixa amplificadora que
estava acoplada à minha bicicleta.
Paramos à beira do Rio Pequeno, perto da nascente do rio, e ali todos queriam entrar nas
margens e ver mais de perto. Ao chegar ao local um dos jovens começou a contar uma história
de que ali tinha um Opala azul, no fundo das águas, consequência de ocultamento de uma prova
de um crime, que ele sabia por que esteve envolvido. Todos foram ver, mas o Opala não estava
ali!!! Então ele, rindo, revelou que era invenção dele! Foi então que perguntei que outras
histórias poderiam existir ali. Um dos rapazes contou uma que veio à cabeça dele ali naquele
momento, que uma deusa da água criou o Rio Pequeno ali.
Fomos até o fim do caminho de terra que ganha pavimentação quando entra no Caminho do
Vinho. Paramos em frente a um Pesque e Pague, que muitos deles já tinham frequentado para
lazer com seus familiares. Todos falavam de que era bom ir ali, que eu deveria visitar um dia.

707
No caminho de volta um outro rapaz do grupo estava mais à frente de todos e parou para nos
esperar. Onde ele esperava foram encontrados quatro gatinhos filhotes recém-nascidos. Todos
ficaram extremamente comovidos e decidiram levá-los para o CJ onde poderiam arranjar
pessoas que pudessem adotá-los. Os gatinhos foram colocados em nossas mochilas. Eu mesmo
levei dois comigo. Ao longo do percurso, me dei conta de que o trabalho artístico já estava
acontecendo. Os Percursos Afetivos já estavam acontecendo, de que não haveria uma
preparação, ou uma coleta das histórias para serem contadas, para posteriormente, numa
apresentação num outro percurso para um público, mas que as histórias poderiam ser
desenvolvidas e vividas ali mesmo, a cada saída, a cada trajetória escolhida e que eu deveria
criar dispositivos para que pudéssemos estar mais atentos a isso. Que de alguma forma eu
deveria ter algum instrumento para capturar esses momentos para além da minha câmera de
celular. E que provavelmente, uma boa maneira de marcar o que foi vivido, pudesse ser a partir
da configuração de uma cartografia afetiva com as trajetórias e as histórias ali vividas.

Referências
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ALLES BELLO, Angela Introdução à fenomenologia. Bauru: Edusc, 2006.

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Disponível em: http://revistapublicasjp.blogspot.com/2017/03/conheca-historia-de-sao-jose-dos-
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BYRNE, David. Bicycle Diaries. Londres: Farber and Farber, 2009.

CARERI, Francesco, Walkscapes: o caminhar como prática estética, Editora G. Gilli, 2013.

CAMPOS, Carlos Eduardo C.O. de. Percursos criativos e geográficos para a Arte de Contar Histórias: uma
perspectiva geográfica para as histórias contadas in Anais do SIGEOLITERART 2019: Uma interface entre
Geografia, Turismo, Literatura e Arte: entre viagens reais e imaginárias / IV Simpósio Internacional e V
Simpósio Nacional de Geografia, Literatura e Arte; organização Adriana Carvalho Silva ... [et al.], Rio de
Janeiro. Rede Entremeio, 2020., (p 567 – 579)

DARDEL, Eric, O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica, Perspectiva, 2015.

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contemporâneo Rev. Bras. Estud. Presença, Porto Alegre, v. 5, n. 1, p. 9-38, jan./abr. 2015.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia, saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro | São
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in KURI RAMIREZ, Patricia e DÌAS AGUILAR, Miguel. Pensar y habitar la ciudad: afectividad, memoria y
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708
LIMA, C. A.; MENDONÇA, F. Planejamento Urbano-Regional e a Crise Ambiental: Região Metropolitana
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LINDÓN, Alicia e HIERNAUX, Daniel. Geografías de lo imaginário. Madrid: Anthropos, 2012.

MEKDJIAN, Sarah e OLMEDO, Élise. Médier les récits de vie. Expérimentations de cartographies narratives
et Sensibles in Mappe Monde, no 118 junho/2016

SOARES, André e GUTH, Daniel (org), O Brasil que pedala, Rio de Janeiro, Jaguatirica, 2018.

709
ENTRE PLANTAS E PRAZERES: notas de uma paisagem sexual do Parque do Flamengo
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Bruno Amadei Machado


Mestre em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR - UFRJ)
bruno@brunomadei.com

Gabriel Santiago Pedrotti


Doutorando em Urbanismo (PROURB – UFRJ)
gabrielpedrotti@gmail.com

Percorrendo pontos erógenos que compõem certa paisagem sexual do Parque do Flamengo,
este artigo ensaia uma leitura informada pela prática silenciosa e silenciada da pegação. Na
esteira dos estudos multiespécies e atentos à morfologia do jardim, situamos desejo e prazer
enquanto processos que não apenas indicam uma topologia, mas que, nos termos ecológicos,
atravessam e se constituem para além do indivíduo, em aliança com seres mais-que-humanos
que fazem algo à medida que são postos em relação. Buscando manejar outras ferramentas
teóricas que contribuam para a renovação dos estudos de paisagem, arriscamos: de que
maneira práticas sexuais observadas neste e em outros parques urbanos expandem o repertório
paisagístico, alargando aquilo e aqueles que somos capazes de sentir, enxergar, imaginar e
interpretar?
Palavras-chave: paisagem; sexualidade; ecologia queer; estudos multiespécies.

Roaming erogenous points that draw a certain sexual scape in Parque do Flamengo, this article
experiments a reading informed by the silent and silenced cruising practice. In the wake of the
multispecies studies regardful to garden morphology, both desire and pleasure are placed as
processes that not only informs topology, but, in ecological terms, cross and constitute
themselves beyond the subject, partnering with more-that-human beings that play a role as they
are put into relation. Seeking to handle theoretical tools that contribute to the renewal of
landscape studies, we risk: in what ways sexual practices observed in this and other urban parks
does expand the landscape repertoire, widening what and those capable of feeling, seeing,
imagining and interpreting?
Keywords: landscape; sexuality; queer ecology; multispecies studies

710
"Jardim não é apenas para me dar prazer. É para dar prazer aos outros. Visualmente, ou através
da sombra." Tal afirmação surge aos 21 minutos de "Filme Paisagem, um olhar sobre Roberto
Burle Marx" (2018), longa-metragem dirigido por João Vargas Penna. Ao longo de todo o
documentário, esta e muitas outras citações atribuídas ao paisagista ajudam a recompor sua
trajetória de vida e produção excepcional, nos seus mais variados campos de atuação
profissional.
Espaços projetados, prazer, alteridade e sombra são ideias que tomaremos de empréstimo de
Burle Marx para nos acompanharem ao longo desta reflexão. Em complemento, acrescentemos
erotismo e sexualidade. O primeiro termo, recorrentemente acionado para caracterizar a
produção arquitetônica e paisagística da escola carioca, seja pelos traços sinuosos inspirados
nas formas humanas e da natureza, seja pela licença poética que sustenta argumentos de
autores e críticos (MAHFUZ, 2010; FLORIANO, 2006). O segundo termo, ao invés, é raramente
mencionado por estes mesmos grupos, sobretudo quando o repertório moderno está sob
análise1. Lembremos do próprio Burle Marx, homem gay que, enquanto seus feitos profissionais
e mesmo suas habilidades sociais eram exaustivamente celebrados, tinha sua orientação sexual
omitida na maior parte do tempo.
Seguramente, a atenção a marcadores identitários pode despertar um novo olhar sobre
biografias, mas também sobre trajetórias profissionais e obras já consagradas. Aqui, contudo, a
questão da autoria só nos servirá de prelúdio para observarmos prazeres outros, às sombras,
naquela que talvez seja a obra de paisagismo mais célebre de Burle Marx.
O Parque do Flamengo é o maior parque urbano do Rio de Janeiro. Se estende por mais de três
quilômetros desde a área central até o bairro de Botafogo, em trecho da Baía de Guanabara
conquistado por sucessivos aterros executados durante o século XX. Embora sua construção
tenha se alongado por décadas sem nunca atingir a configuração originalmente prevista,
convencionou-se celebrar sua inauguração em outubro de 19652. Três meses antes, o parque já
havia sido tombado pela Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (atual IPHAN),
em um movimento inédito, sob o argumento de que o instrumento viria a protegê-lo contra
ameaças de gestores e especuladores imobiliários.

1
Recordemos da carta em que o escritor Mário de Andrade discute abertamente sua
homossexualidade, escrita em 1928 e sob salvaguarda da Fundação Casa de Rui Barbosa desde a década
de 1980, tendo sido sistematicamente ocultada por pesquisadores e familiares até muito recentemente.
Cf. BORTOLOTI, 2015.
2
A data marca a finalização da Cidade das Crianças e o Teatro de Marionetes e Fantoches. [Online]
Disponível em: http://www.parquedoflamengo.com.br/sobre-o-parque/

711
Tensionando questões relativas à função social do patrimônio e ecologia urbana, os dois milhões
de metros quadrados do parque continuam abarcando centenas de espécies vegetais e servindo
a uma miríade de usos. Por seu caráter público de acesso irrestrito, pela posição privilegiada que
ocupa, mas também pelos equipamentos que abriga ou deixou de abrigar em meio século de
funcionamento, a lista envolve atividades recentes e antigas, regulares e esporádicas,
projetadas e espontâneas, individuais e coletivas, permitidas e clandestinas, estimuladas,
toleradas e coibidas.
Dentre essas atividades, através da sombra, o olhar atento logo percebe que alguns trechos do
parque servem à pegação, termo nativo que caracteriza encontros sexuais casuais envolvendo
homens que fazem sexo com homens (HSH). Todos os dias à noite, estes homens interagem com
um ou mais desconhecidos enquanto percorrem trajetos, adentram maciços vegetados e se
põem novamente a caminhar, compondo aquilo que chamaremos de paisagem sexual. O
presente artigo busca mobilizar algumas pistas desta paisagem sexual do Parque do Flamengo.
Se, por um lado, arquitetos e paisagistas vêm se debruçando exaustivamente nos atributos do
parque, por outro, o enquadramento analítico que os sustenta se mostra essencialmente
normativo e na maioria das vezes assexuado, muito ancorado nas premissas do modernismo,
nos seus limites morais e conteúdo programático que, hoje sabemos, jamais se realizou por
completo. Além disso, não nos caberá investigar aqueles que, por motivos e estímulos diversos,
recorrem ao local para fazer pegação. Ao invés, partimos do acúmulo de estudos originados nas
Humanidades que há décadas desenvolvem reflexões valiosas sobre práticas sexuais
desviantes3, embora seus rebatimentos ainda sejam bastante tímidos nos campos da ecologia e
paisagem. Ao mesmo tempo, é necessário reconhecer que, tradicionalmente, tais estudos se
restringem a analisar a socialidade nos termos exclusivamente humanos.
Nos movimentando na arena dos Estudos Multiespécies tão propícia à reflexão sobre a
paisagem, aqui buscaremos abarcar socialidades mais-que-humanas, expressas nas trocas
inesperadas que ocorrem entre sujeitos humanos e demais elementos da natureza. Com foco
na matéria vegetal, inspirados pelas histórias de cocriação contadas por Anna Tsing (2019),
afirmamos que, na pegação do Parque do Flamengo, aquilo que se entende por natureza não se
reduz a um pano-de-fundo, ou seja, a um suporte material que possibilita ou representa
encontros sexuais. Em seu lugar, defendemos que a paisagem se constitui dos encontros em si,

3
Em muitos casos, complexificando as rígidas distinções estabelecidas entre público e privado. Cf.
CLEMENTE, 2018; GASPAR NETO, 2008.

712
onde desejo e prazer são efeitos de relações circunstanciais que se estabelecem na assembleia
de humanos, plantas e outros seres que fazem algo à medida que são postos em relação.
Após esta introdução, traremos evidências históricas que sugerem a existência desta paisagem
sexual do Parque do Flamengo há muitas décadas, mas também conexões com outros espaços
públicos que serviram a interações homoeróticas muito antes da sua construção. Em seguida,
tomaremos a liberdade para fabular e refletir sobre algumas idas a campo - ora como
participantes, ora como observadores que, corporificando a pesquisa, também participam e
extraem prazer na condição de voyeurs. Em ambos momentos, buscaremos pôr em relevo a
intrusão de elementos naturais que conformam espaços e atravessam a construção de
subjetividades masculinas.

1 - Antecedentes históricos, permanências indesejadas


Em 1883, o jornal carioca Carbonario fazia um apelo ao recém-nomeado Chefe de Polícia da
cidade:
"Entre os bons serviços que S. Ex. prestaria, [...] seria o de conseguir qualquer
meio para extirpar o cancro da pederastia, que de dia a dia invade esta cidade.
É preciso que seja atirada para bem longe essa horda de rapazes sem vergonha,
que à noite, nos largos de S. Francisco, do Rocio, da Carioca e em outras ruas
estacionam, com a mira na obtenção de alguns vinténs, prestando-se à maior
da torpezas" (CARBONARIO, 1983, p. 3).

A carta prossegue por mais alguns parágrafos defendendo a repressão a transgressões que
combinavam pederastia, prostituição e roubos na área central. Anos depois, naquele mesmo
jornal, as queixas convergiam para um local específico:
"O espetáculo a que a pederastia dá lugar horroriza. [...] Um ponto há, no Largo
do Rocio, em que ela se torna mais terrível. À noite, quando a sombra das
árvores cai por sobre os cantos encobertos pelas plantas, quando a voracidade
torpe se incendeia, não é dado a ninguém atravessar o dito largo sem o risco
de incômodo encontro com uma aluvião desses entes corrompidos pelos
vícios. É uma praga, uma miséria, que causa asco e terror." (CARBONARIO,
1888, p. 1)

Na virada do século, o Largo do Rocio (atual Praça Tiradentes) despontava como espaço público
privilegiado do desejo sexual, sob influência da vida noturna pujante que emergia no seu
entorno (GREEN, 2019). Não raro, menções à sociabilidade homoerótica se associavam a
referências da densa vegetação arbórea e arbustiva que ocupava seus canteiros de traçado
sinuoso. Em 1903, por exemplo, ao comentar a remodelação que em breve seria executada pelo
prefeito Pereira Passos, afirmava-se em verso: "Sabe perfeitamente o Dr. Passos / Que onde não

713
há jardim, fresco não há. [...] - Se acabam com o jardim, depois, ai manos! / Não sabe a gente
onde há de fresco achar" (O RIO NU, 1903, p. 2). Ali, o termo fresco também faz referência a
homens lidos como afeminados.
Estabelecer equivalências entre uma paisagem sexual do Largo do Rocio e aquela que emergiu
décadas depois no Parque do Flamengo é tentador, mas exige cautela. Se um dia o largo ocupou
o epicentro da vida cultural carioca, o parque jamais conseguiu atrair a mesma atenção da classe
média que há tempos preferia morar e se divertir longe do Centro. Além disso, os muitos
registros da homossociabilidade do primeiro contrastam com a pouca atenção dada a interações
similares que emergiram no Parque do Flamengo, nos obrigando a centrar a análise em poucas
fontes jornalísticas que apresentam discursos bastante alinhados entre si4.
Não obstante, reconhecidas suas diferenças, as conexões entre o Largo do Rocio e o Parque do
Flamengo permitem situar a pegação em um continuum mais ou menos silencioso, que hoje em
dia se estende a vários pontos do território carioca5. Nas semelhanças que aproximam tempos
e espaços tão distintos, a homossociabilidade sempre foi e permanece retratada de forma
negativa.
Tal como no discurso midiático que informava sobre a pederastia do Largo do Rocio, o
imaginário do homossexualismo do Parque do Flamengo se manteve associado à prostituição e
ao crime. Ainda em 1972, surge no Jornal do Brasil uma primeira menção à pegação no Parque,
que ocorria em uma área "de vegetação alta":
"Todas as tardes, dezenas de homossexuais e maconheiros procuram o Ninho
das Cobras, como é chamado. O Ninho é um lugar perigoso. A falta de
iluminação e de policiamento deixa o campo aberto para encontros de
homossexuais e maconheiros. Os dois grupos olham a península como
território seu, não admitindo a infiltração de curiosos." (JORNAL DO BRASIL,
1972, p. 4)

Já em 1976, uma matéria do mesmo jornal afirmava que, devido ao policiamento ostensivo,
o "homossexualismo praticamente desapareceu do parque" (JORNAL DO BRASIL, 1976, p. 19).
Na trincheira oposta, em tom jocoso, a repressão reaparece n'O Lampião da Esquina, periódico
voltado ao público gay:

4
Para este artigo, foram levantadas 12 notícias que mencionam a existência de interações homossexuais
no Parque do Flamengo, publicadas ao longo de quatro décadas, nos jornais O Globo e Jornal do Brasil.
5
Entre as áreas livres mais procuradas para a pegação estão, além do Parque do Flamengo, a Pedra do
Arpoador, o Parque Garota de Ipanema, Praias de Abricó e da Reserva. A prática hoje ocupa desde
fragmentos preservados de restinga a maciços rochosos e parques de caráter marcadamente urbano.

714
"A praça é nossa: Santa Burle Marx povoou o Aterro do Flamengo de
amendoeiras, mas não protege os devotos que lá vão. Os PMs que lá dão
guarda às vezes andam com uns cães pastores treinados para arrancar a
dentadas a parte mais em evidência nas bichas, ou seja, as nádegas." (LAMPIÃO
DA ESQUINA, 1979, p. 4)

Segundo reportagem publicada em 1980 naquele mesmo jornal, mais um ponto florescia avesso
às normas e morais dominantes: "(...) as populosas colônias de desocupados que acampam nas
pedras do Aterro do Flamengo, em frente ao Museu de Arte Moderna, quase todas quase que
exclusivamente masculinas, e onde os casamentos homossexuais são uma realidade" (LAMPIÃO
DA ESQUINA, 1980, p. 17).
Observados desde fora, os encontros continuaram sendo visibilizados pela grande imprensa
atrelados à ira e ao medo, chegando a figurar no rol das "cinco pragas do Aterro" (JORNAL DO
BRASIL, 1998, p.29). Devido à ocorrência de assaltos, mortes violentas (JORNAL DO BRASIL,
1989, p. 5), detenções de frequentadores por atentado ao pudor (O GLOBO, 2002, p. 18) e
denúncias de espancamentos e extorsões praticados por agentes policiais (O GLOBO, 1993, p.
9), a questão mobilizou jornalistas, leitores, vizinhos e até mesmo o prefeito da cidade:
"Durante a visita ao Parque do Flamengo, César Maia prometeu 'acabar com a
bagunça dos homossexuais que praticam sexo no parque.' Ele orientou os
guardas municipais a reprimirem qualquer cena de sexo: 'Pode namorar, dar
beijinho, o que não pode é sexo. Eles costumam fazer o parque de motel.' O
prefeito conversou com os policiais e pediu rigor no policiamento." (O
GLOBO, 1993, p.11)

Fato é que, mesmo patrimonializada, aquela paisagem nunca esteve imune a apropriações
inesperadas e indesejadas - tanto pelos seus administradores quanto pela opinião pública. As
tentativas de controle apontadas até aqui podem ter influenciado certas adequações
compulsórias à heteronorma, mas jamais por completo. Ao longo de meio século, enquanto as
árvores do parque se reduziam à metade originalmente plantada6, certos pontos erógenos
também desapareciam ou perdiam força. Mas para o desespero de muitos e deleite de muitos
outros, novos pontos continuaram sendo ativados.

6
Em levantamento florístico feito em 2016, o parque já havia perdido 9.913 das 17 mil árvores
plantadas até o ano de 1965. [Online] Disponível em
www.parquedoflamengo.com.br/equipamentos/flora-do-parque/

715
2 - Entre plantas e prazeres
"Sabemos que entre um homem e uma mulher passam muitos seres, que vêm
de outros mundos, trazidos pelo vento, que fazem rizoma em torno das raízes,
e não se deixam compreender em termos de produção, mas apenas de devir."
DELEUZE & GUATTARI (2012:23)

Quarta-feira, oito e meia da noite. Pouco se vê desde o interior de um conjunto de Pandanus


utilis, mas o ruído do pisoteio das folhas secas acompanha o movimento lento de uma dezena
de vultos. Formando uma espécie de círculo, a atenção da maioria converge para dois homens
que transam em pé, o passivo sendo penetrado enquanto apoia braços e perna na saliência de
um tronco. Os gemidos quase imperceptíveis concorrem com o vai-e-vem dos veículos na via
expressa que passa ao lado.
Enquanto observa os demais homens que gesticulam segurando suas genitálias, a visão
periférica percorre outros ambientes, como se vigiasse movimentos suspeitos. Nas margens,
iluminados pelos altíssimos postes que no passado provocaram a ira de Burle Marx7, um casal
treina funcional no gramado e muitos ainda correm pela ciclovia, a poucos metros do maciço
vegetal. Embora seja impossível identificar os detalhes, mesmo à distância se nota que algo
estranho acontece no interior daquele canteiro. De fora ninguém parece se importar com a sutil
movimentação.
A cena dura poucos minutos. Assim que a penetração termina, o círculo intergeracional se desfaz
e quase todos se põem a caminhar em dispersão. A partir dali, sem respeitar os passeios formais
do projeto paisagístico, percursos alternativos serão feitos e refeitos muitas vezes ao longo da
noite, culminando em outros pontos erógenos onde novos arranjos ocorrerão. Mas a caminhada
não se resume a ligar pontos, ela também compõe a malha à medida que se mostra oportuna
ao encontro. Se traçarmos um paralelo com estudos de ecologia da paisagem (METZGER, 2001),
uma ecologia sexual da paisagem (INGRAM, 2010) do Parque do Flamengo não estaria restrita a
identificar manchas e fragmentos, devendo também contemplar a existência de outros padrões,
tais como corredores e bordas, bem como seus distintos graus de conectividade.
No meio do caminho, o grupo de Phoenix reclinata provê bastante privacidade. Suas touceiras
se avolumam desde o chão, mas a topografia em aclive que bloqueia a visão também impede
qualquer reunião mais numerosa. Situação similar é observada embaixo de uma enorme Ficus
religiosa, onde outro casal que disputa o solo com suas raízes protuberantes logo desiste. Mais

7
Em várias ocasiões, Burle Marx criticou publicamente decisões tomadas por Lota de Macedo Soares,
que esteve à frente do Grupo de Trabalho para a Urbanização do Aterrado Glória-Flamengo. Cf. "Burle
Marx acusa: desmandos criarão o aterro absurdo" (CORREIO DA MANHÃ, 1966, caderno 2).

716
à frente, em uma pequena ilha de vegetação no centro de um extenso campo de saibro, a copa
baixa de um Pithecolobium tortum serve à interação de um trisal. Sentado em um galho baixo,
o ativo busca uma posição para penetrar o segundo, que, por sua vez, se ocupa fazendo sexo
oral no terceiro, equilibrando um dos braços em outro galho.
Em todas as situações descritas até aqui, a matéria vegetal não só serve de suporte às
interações, mas à própria composição relacional do desejo. Ali, o ato sexual parece se situar
menos em indivíduos do que na complexa estrutura atravessada pelos corpos que ocupam
aquele espaço, nas suas capacidades de afetarem e serem afetados - inclusive por aquilo que
em muitos casos escapa à agência humana.
Ao acompanhar pegações em banheiros públicos, Gavin Brown constata que "os homens são
levados a estruturas relacionais não só com os corpos dos outros homens, mas com a trama do
espaço onde estes encontros ocorrem" (BROWN, 2008, p. 929). No rol dos Public Sex
Environments (PSE) que vão desde o banheirão à pegação em parques urbanos e reservas
florestais, sua afirmação lança luz sobre a transindividualidade do desejo, da forma como
qualificamos e com quem partilhamos momentos de prazer, mesmo aqueles que são raramente
nomeados. Desejo que certamente compreende a agência humana, mas que também se
constrói através de todos os hibridismos que a excedem, da atmosfera à matéria viva que a
conforma. Acompanhando a brisa que sopra na Baía de Guanabara, o cheiro forte de perfume
masculino alterna com aquele exalado pelas inflorescências noturnas das árvores, e com aquele
dos frutos apodrecendo no chão.
Ao lado, o pequeno bosque de Pachira aquatica também acolhe alguns casais. A depender do
ângulo de observação e da posição ereta ou agachada adotada por um deles, tem-se a visão de
indivíduos biofílicos, cada qual abraçando seu tronco. Nesses casos, quando a árvore passa do
terceiro ao segundo elemento da pegação, a "intimidade impessoal" (ENSOR, 2017) praticada
por anônimos se aproxima mais do que nunca da matéria vegetal (igualmente anônima),
dificultando a distinção de onde começam e terminam os corpos. Mais além, tal exercício
imaginativo nos possibilita vislumbrar alianças materiais e estranhamente familiares. Não
somente trocas interespécies que desde sempre compuseram estas e muitas outras práticas
desviantes, mas que, em um exercício urgente de futuridade, também se mostrarão cada vez
mais essenciais à sobrevivência da vida no planeta, sobretudo nas cidades.

717
Neste caminho, autores vêm ensaiando uma maior interação entre elementos da teoria queer8
e o campo da ecologia, em especial a ecologia urbana (MORTON, 2010; MORTIMER-
SANDILANDS & ERICKSON, 2010; GANDY, 2012). Em um primeiro momento, a tarefa de uma
ecologia queer passaria por examinar as multiplicidades que emergem entre sexo e natureza,
mirando o desenvolvimento de uma política sexual capaz de incluir (ou refutar) considerações
do mundo dito natural. No sentido oposto, desde a política ambiental, a queerificação da
ecologia também permitiria lançar luz sobre a forma como práticas desviantes interpelam a
constituição do mundo natural, bem como as percepções modernas construídas acerca dele
(HALBERSTAM, 2020; ENSOR, 2017).
No momento em que os distúrbios gerados pela ação humana vêm alterando de forma drástica
a própria constituição geofísica do mundo, a conversa estabelecida entre campos até então
incomunicáveis pode indicar caminhos rumo a uma ética do cuidado mais atenta a certos
movimentos minoritários, que nem por isso são menos potentes (PATRICK, 2013). Movimentos
que, em última instância, desafiam a leitura normativa daquilo que se entende por natureza e
paisagem. Afinal, se considerarmos que “as núpcias antinatureza são a verdadeira Natureza que
atravessa os reinos” (DELEUZE & GUATTARI, 2012, p. 23), a problemática instaurada pela teoria
queer se mostra essencial à renovação destes enunciados. E, quiçá, da criação de outros novos.
Entre plantas e prazeres, nas sombras do Parque do Flamengo e para além dele. Se por alguns
instantes deixássemos de lado a singularidade humana, que outros encontros singulares
passaríamos a perceber?

8
Embora sua definição esteja em trânsito constante, aqui adotamos a teoria queer enquanto corrente
epistemológica disposta a romper a ordem compulsória e padronizante, escapando das classificações
habituais. Em linhas gerais, o queer busca se afastar de classificações binaristas, se aproximando de uma
postura antidentitária e antiessencialista, atenta à construção de subjetividades dissidentes. Cf.
PRECIADO, 2018.

718
Figura 01: evidências materiais de uma paisagem sexual do Parque do Flamengo

Fonte: acervo dos autores, 2021

Referências

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719
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O Globo. Rio de Janeiro, 25 out. 1993.

O Globo. Rio de Janeiro, 2 mar. 2002.

720
ENTRE VÉUS E RODOPIOS: olhares profusos a partir do folguedo Mané do Rosário
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Arlindo da Silva Cardoso


Mestrando em Arquitetura e Urbanismo; PPGAU-UFAL; arlindocardosoiu@gmail.com

Karina Mendonça Tenório de Magalhães Oliveira


Mestranda em Arquitetura e Urbanismo; PPGAU-UFAL; karidemgalhaes@gmail.com

Paula Louise Fernandes Silva


Arquiteta e Urbanista; Prefeitura de Marechal Deodoro/IPHAN-AL; paulalouise93@gmail.com

Esse texto busca analisar o folguedo Mané do Rosário, no povoado Poxim, da cidade de
Coruripe-AL, a partir de uma experiência etnográfica realizada pelos autores, fazendo uso da
fotografia e do vídeo como principais ferramentas, culminando no curta-documentário Mané
(2019). A pesquisa se baseia em dois momentos principais: a entrevista com a mestra Dona
Maria Benedita - Patrimônio Vivo de Alagoas - e a vivência durante a apresentação do festejo,
nas comemorações de São José, o santo padroeiro. Propõe-se um diálogo com as imagens
permeando os silêncios, tomando aquilo que não se conhece sobre sua origem e conformação,
seja através dos sons, da iconografia, dos gestos, das espacialidades, bem como dos mistérios,
do anonimato e das condições sociais do grupo.
Palavras-chave: Mané do Rosário, etnografia, audiovisual, folguedo.

This paper seeks to analyze the folguedo Mané do Rosário, in Poxim village, in the city of
Coruripe-AL, from an ethnographic experience conducted by the authors, making use of
photography and video as main tools, culminating in the short documentary Mané (2019). The
document is based on two main moments: the interview with the master Maria Benedita -
Patrimônio Vivo de Alagoas - and the experience during the presentation of the feast, in the
celebrations of São José, the patron saint. A dialogue is proposed with images permeating the
silences, taking what is not known about its origin and conformation, whether through the
sounds, iconography, gestures, spatialities, as well as the mysteries, anonymity and social
conditions of the group.
Keywords: Mané do Rosário; ethnography; audiovisual; revelry.

721
Dos primeiros rodopios
Os nossos primeiros contatos com as manifestações culturais, através do olhar acadêmico, se
deu através do Projeto de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial de Alagoas, decorrente de um
convênio firmado entre a Secretaria de Estado da Cultura de Alagoas (SECULT-AL), o Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN-AL), a Fundação Universitária de
Desenvolvimento de Extensão e Pesquisa (FUNDEPES) e a Universidade Federal de Alagoas
(UFAL). O projeto fez uso da metodologia do Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC)
e os autores deste artigo integraram a equipe do Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem - da
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-UFAL), o qual percorreu 48 cidades do Estado - dos
102 municípios mapeados - buscando retratar parte das referências culturais dessas localidades.
Tal experiência se deu através de encontros, por vezes rápidos, mas significativos, construídos
por meio de registros - áudios, vídeos e fotografias - das memórias, entrevistas e conversas.
O contato com essa multiplicidade cultural durante a construção do projeto, fez florescer em
nós o interesse em conhecer o “outro” de forma aprofundada, imergindo nas histórias de vida,
na cultura, nos modos de fazer, manifestações, religiosidades, sabores, odores, lugares, dentre
tantas outras características inerentes do que é adquirido e construído pelas pessoas, de
natureza material e imaterial. Esse desejo nutriu a formação do Coletivo Muvuca - nome que
remete às celebrações populares e seus aglomerados de pessoas, que ano após ano resistem às
convenções dominantes -, que inspirado pelas técnicas da academia, dessa vez desembaraçado
de suas balizas, se lança em campo para novos encontros. O coletivo tem como principal objetivo
o estudo e a disseminação do patrimônio cultural alagoano, através da vivência com seus gestos,
músicas, danças e outras simbologias por meio da fotografia e vídeo, sendo essas, tomadas
como ferramentas de análise.
Para iniciar as atividades do coletivo, escolhemos os folguedos, considerados brincadeiras que
se utilizam da alegria para reafirmar e fazer comum a simbologia de pessoas e seu respectivo
lugar. São entendidos como um patrimônio ou bem cultural porque são reconhecidos por seu
grupo social como referência de sua história, “algo que está presente na memória das pessoas
do lugar e que faz parte do seu cotidiano” (BRAYNER, 2012, pg. 16). Enquanto referência, podem
denunciar através de sua plasticidade, gestos e sons, os aspectos da religiosidade, dos hábitos
cotidianos e do saber-fazer desses grupos sociais.
O primeiro folguedo escolhido para imersão foi o Mané do Rosário. Visitou-se o povoado Poxim,
na cidade de Coruripe, em março de 2019 durante a festa do padroeiro São José, onde
tradicionalmente o folguedo sai às ruas para se apresentar.

722
A experiência em campo com o folguedo foi registrada através do olhar fotográfico e fílmico da
equipe e transformando-o em um curta-metragem intitulado Mané1(2019). Nesse material,
foram expressas na imagem em movimento, memórias da prática através da oralidade da
mestra do folguedo, dona Traíra, da religiosidade envolvida no universo da festa, as cores e
formas de seus trajes e adereços, dentre outros elementos que enfatizam aspectos das
memórias relacionadas à festa. Memórias essas que conectam o mundo individual ao coletivo,
levantam questões de cor, preconceito, mas sobretudo de pertencimento e resistência.
O objetivo desse texto é imergir na prática desse folguedo ainda pouco abordado na academia,
conferindo-se em pequenos passos de análises sobre o universo simbólico dessa manifestação
cultural, baseando-se especialmente na experiência etnográfica por meio das imagens durante
a brincadeira. Os registros audiovisuais aqui não são tomados – nem poderiam – como
certificações de totalidades ou veracidades no que confere a manifestação. Consideramo-las
interpretações, “olhares” sobre algo, registros que possuem em si lacunas, rastros, entrelinhas,
que ajudam a discorrer conceitos e ideias.

O campo, as imagens: profusão de diálogos


O município de Coruripe, chamado pelos povos indígenas Caetés Cururugi, em tupi formado por
cururu (sapo), mais ype (no rio) - rio do sapo, tem sua história atravessada pela então Vila do
Poxim, a que estava subordinada, sendo desenvolvida a partir da exploração de pau brasil, após
o extermínio dos Caetés pelos portugueses. A povoação nasceu em consequência da construção
de uma capela, em meados do século XIX, ao ponto de seu desenvolvimento fomentar a
transferência municipal para a região, onde a Vila do Poxim perdeu seu posto e a condição de
Vila, tornando-se o que hoje é conhecido como povoado (TICIANELI,2016).
Margeado por extensos coqueirais, em estrada estreita e iluminação escassa, Poxim surge
enraizado por marcas e memórias que o referenciam diante da história e cultura do Estado. Suas
casas são de porta e janela, de meia morada, abrigando famílias que atualmente vivem da pesca,
do coco e da cana de açúcar.
É através da experiência empírica de campo, de uma curiosidade latente em nossos olhares de
pesquisadores, que chegamos até o povoado em busca de relatos, na tentativa de entender e
vivenciar através de narrativas, as camadas que compõem o folguedo Mané do Rosário.

1
O filme participou de festivais pelo Brasil, como o Festival de Cinema Universitário de Alagoas (2019), X
Mostra Sururu de Cinema Alagoano (2019), Festival de Cinema Vale do Pindaré (2019), OXE Festival do
Audiovisual Universitário (2020), Mostra (em) curtas (2020).

723
A mestra Maria Benedita, conhecida popularmente como dona Traíra2, mulher negra,
umbandista, parteira e benzedeira, é uma referência no povoado e em Alagoas, sendo registrada
Patrimônio Vivo do Estado3. Ao nos receber em sua casa, concedeu uma entrevista - em tom de
conversa informal -, com proposta de “descoberta”, onde existiu uma condução mútua entre
pesquisadores e interlocutora.
A entrevista condicionou o olhar para uma sensibilidade diante de aspectos do folguedo, como
as origens da brincadeira, as relações com sua ancestralidade, os figurinos, adereços e seus
significados, a forma como o grupo se organiza até o dia da festa, as relações com as pessoas do
lugar, a importância que ele tem para seus brincantes e a comunidade; e como dona Traíra,
enquanto mestra, trabalha para que a tradição se preserve entre adultos e crianças.
Com isso, foi possível entender a história do folguedo e seus cruzamentos com a maior
celebração religiosa do povoado - a festa do Padroeiro São José -, além da tradição familiar de
dona Traíra e suas particularidades, principalmente na formação dela enquanto mestra.
"O Mané do Rosário surgiu na porta da igreja de São José, era dois homens
que se apresentavam na porta da igreja durante as nove noites de festa. Na
hora que começava o terço os homens chegava e só saia depois que
terminava o terço. Com um tempo eles aparecendo assim, agora quando
terminava o terço eles desapareciam e ninguém sabia pra onde eles iam, nem
sabiam de onde vinham, nem sabia pra onde ia, esses dois homens. Aí com
muito tempo eles lá brincando, muitos anos né?! Aí um do povo do Poxim
perguntaram: como é o seu nome? Um respondeu: é Mané! E o outro disse:
do Rosário! Aí ficou Mané do Rosário (Maria Benedita, MANÉ, 2019).”

Por ser um folguedo com mais de 300 anos, esse relato nos fez atentar para as lacunas dessa
narrativa, e de como a construção do festejo e a forma como ele se apresenta atualmente, pode
vir a ser atravessado pela contemporaneidade, onde novos hábitos e práticas vão sendo
inseridos e ressignificados ao longo do tempo. O próprio discurso sobre “dois homens que
surgiram na porta da igreja”, já fora por vezes narrado, inclusive por dona Traíra, em entrevistas
de jornais locais, como o surgimento de “um homem só”. Com sua narrativa a mestra empresta
as suas reminiscências e promove a construção da identidade cultural do folguedo, sendo o

2
“Traíra” é um gênero de peixes carnívoros de água doce, presente em açudes, lagos, lagoas e rios.
Segundo Dona Maria Benedita, o apelido deriva dessa espécie de peixe, o qual a mestra gostava de
pescar para comer.
3
É considerado Patrimônio Vivo (Lei Estadual n.6513/04, alterada pela LEI Nº 7.172, DE 30 DE JUNHO DE
2010) a pessoa que detenha os conhecimentos e técnicas necessárias para a preservação dos aspectos da
cultura tradicional ou popular de uma comunidade, estabelecida em Alagoas há mais de 20 anos,
repassando às novas gerações os saberes relacionados a danças e folguedos, literatura oral e/ou escrita,
gastronomia, música, teatro, artesanato, dentre outras práticas da cultura popular que vivenciam (Fonte:
SECULT-AL).

724
imaginário social quem preenche simbolicamente a construção de uma memória coletiva,
legitimando-a.
Para Halbwachs (2006, pg. 31), não é preciso que as pessoas estejam presentes materialmente
para construir uma memória, pois “para confirmar ou recordar uma lembrança, não são
necessários testemunhos no sentido literal da palavra, ou seja, indivíduos presentes sob uma
forma material e sensível”. Ressalta-se que as brechas na história, assim como as
ressignificações ocasionadas pelo tempo, acabaram por fortalecer o folguedo enquanto
representação cultural, fomentando o interesse dos autores em entender os meandros que
constroem a imagem do “Mané”.
Temos como referências aqui o material produzido junto à apresentação do folguedo, um
conjunto de fotografias e vídeos e o próprio documentário Mané (2019). Embora sejam objetos
igualmente iconográficos, a forma de abordá-los é diferente, devido à sua forma de execução.
Enquanto as imagens projetadas levam o espectador num fluxo temporal
contínuo, que procura seguir e entender, as fotografias, por sua vez, o fixam
num congelamento do tempo do mundo e o convidam a entrar na espessura
de uma memória. Diante da tela, somos viajantes e navegadores; diante da
fotografia, tornamo-nos analistas e arqueólogos (SAMAIN, 2012, pg. 159).

Dessa maneira, é possível compreender a importância e a complexidade em abordar as


fotografias e vídeos como processo comum de etnografia e enquanto objeto de análise. O que
leva o pesquisador a registrar tal momento com uma fotografia ou um vídeo? O que esse
material pode suscitar num processo de investigação?
Para Berger (2017), as fotografias são o resultado da opção humana, ou seja, uma mensagem
formulada através da decisão do fotógrafo e a sua importância se dá no grau com que elas
conseguem decodificar a mensagem. Para imergir nesse processo de decodificação é necessário
também adentrar os acontecimentos, os eventos nos quais elas foram geradas, porque suas
referências são externas a si, estão na conjuntura do ato fotográfico e não absolutamente na
iconografia. Apoiado nessa ideia, é possível compreender a relevância que as fotografias podem
ter em processos de pesquisa, entendendo-as não como meras ilustrações, mas também como
ferramenta de discurso.
É nesse processo de decodificação onde são decididos os caminhos necessários ou aqueles que
nos parecem possíveis. Para Samain (2012, pg. 158), a imagem “é a eclosão de significações,
num fluxo, amplo e contínuo, de pensamentos que sabe carregar”. Diante disso, entende-se que
imagens contam, comunicam, proseiam. Não como uma fala, mas por meio de interpretações e
interlocuções. Dessa maneira, escolhemos aqui “conversar” com elas, apresentando uma trama

725
de impressões sobre alguns aspectos simbólicos do folguedo. Os autores diante das imagens
realizam aqui uma espécie de “costura de sentidos” que elas – associadas a outras narrativas –
nos apresenta, perpassando suas lacunas e descobrindo novas brechas.

O levantar dos véus


Essa experiência com o Mané nos permite falar sobre eles sem o compromisso da historiografia,
não se intenta uma descrição. Busca-se confrontar as imagens por meio de uma característica
fundamental dos folguedos: o ilógico, o irracional que compõem a espontaneidade dessas festas
(CARNEIRO, 2008), baseando-se em nossas vivências e falas dos próprios brincantes. Com isso,
modela-se uma conversa com o acervo imagético, onde aqui quatro fotografias convocam nossa
atenção para pontos importantes.
A brincadeira tem início na casa de Dona Traíra. Na frente do cortejo, os palhaços - personagens
masculinos -, com rostos pintados, carregam seus chicotes e cintos de chocalhos, gritando e
anunciando a passagem do grupo. Dentre eles, um líder, o Goiaba. É ele o anunciante, o que
decide e indica o percurso sem predefinições. Atrás deles, vêm as “moças”, que têm como
figurino longas saias coloridas, chapéu de palha, toalha sobre os braços e um véu que cobre todo
o rosto, traje ícone do folguedo. Quem são essas “moças”? Podem ser mulheres, homens,
crianças, disfarçados em uma aparência misteriosa que encanta com duradouros rodopios, ao
som singular da banda de pífano. O pifeiro, maestro da banda, dá o rumo das melodias que
despertam sorrisos, olhares e movimentos lúdicos dos brincantes e demais pessoas que dançam
ao redor do estandarte que possui a imagem do padroeiro. Além das palmas e olhares de
admiração, a comunidade participa oferecendo bebidas e espaço nas calçadas para curtas
pausas. Por fim, no adro da pequena e antiga igreja em honra a São José, chega-se ao destino
do espetáculo. Alguns, em agradecimento, adentram a igreja e fazem suas orações. Outros riem
e conversam na quermesse que toma conta da praça defronte à matriz.
Uma das heranças da histórica Vila Real do Poxim foi o trabalho com a cana de açúcar, presente
até os dias de hoje na região. Essa experiência é algo que aguça elementos importantes do
folguedo. No vestuário, composto pelas roupas com saias, blusas de mangas compridas e chapéu
de palha, percebe-se a relação com as antigas vestes do cotidiano adotadas para esse ofício, que
se utilizavam desses múltiplos tecidos como proteção ao forte sol e aos possíveis cortes sofridos
pelo manejo da planta.
Foram nos antigos engenhos também que os negros escravizados - principal mão de obra para
produção do açúcar -, em seus tempos livres realizavam encontros lúdicos e atos de fé - repletos

726
de sincretismos, como forma de resistência - nos terreiros, nos quintais, nos espaços abertos -
muitas vezes proibidos de adentrarem igrejas. Algumas dessas manifestações são fontes de
festejos carregados no transcurso da história, praticados até os dias de hoje, guardando em si
uma memória de silenciamentos utilizados também como força criativa.

Figura 01: Personagem moça defronte à igreja matriz

Fonte: Coletivo Muvuca, 2019

Sabe-se que nesses festejos eram expressas as diferenças sociais vigentes entre senhores e
escravos e os louvores aos santos padroeiros (Carmen Dantas em PAUTA ESPECIAL, 2017). A
religiosidade nesse contexto é um grande complexo de crenças: deuses e entidades das fés
ameríndias e africanas eram mascarados em santos católicos. As representações do
sobrenatural adquirem faces múltiplas, reveladas no indivíduo através de seus pensamentos e
sentimentos.
É nessa associação entre a cana e a herança dos negros escravizados que nos referimos ao
grande mistério do Mané: sua história de origem. Desse enigmático personagem – ora um, ora
dois homens, apresentados na fala da mestra -, que através do anonimato chama todos para
festejar o santo padroeiro no terreiro defronte à igreja matriz. A incógnita desse sujeito ramifica-
se até os dias de hoje, se faz presente em cada personagem que cobre o rosto e nos deixa em
dúvida, curiosos para desvelar, encantados com o inesperado.
Pode-se entender então uma “dinâmica de silêncios” nesses mistérios? O segredo do homem
chamado Mané; o segredo dos santos associados num forte sincretismo; as personagens que
até hoje fazem uso dessa “não-autoria”. Podemos pensar também que, seria uma autoria
individual adotada durante a construção dessas personagens? Elas são personagens
teatralizadas, máscaras de individualidades que não são expressas no cotidiano? Insere-se nos
silêncios essas questões infindáveis sobre as autorias expressas na fé que, no dia a dia,

727
conformam esse folguedo através das interações.
O anonimato é também fonte da organicidade da festa no espaço. Seguimos essas personagens
rua afora, sem muita referência ou indicação formal de percursos. Os palhaços escolhem
espontaneamente por onde passar e guiam os curiosos (ou os fazem se perder?).

Figura 02: Palhaço (esq); cortejo nas ruas do Poxim (dir).

Fonte: Coletivo Muvuca, 2019

O improviso é o principal combustível dos brincantes. Ele é tomado geralmente como aquilo que
não tem preparação ou um acordo prévio. No entanto, assim como no teatro, só se improvisa
algo quando se conhece os seus elementos essenciais, a ideia geral. Então, o que prepara o
brincante para o improviso? A interação com as pessoas, a conformação da memória e da rede
de significados construídas na interação social, no dia a dia, na conversa, na troca. Cada
apresentação torna-se única, porque é também a espontaneidade no improviso que permite
criar: “nessa possibilidade de expansão da capacidade criadora do povo reside a condição para
a atualidade do folclore” (CARNEIRO, 2008, pg. 21).
E nessa “atualidade”, entendida aqui como a transformação inerente à dinâmica das
manifestações populares, é possível perceber também as relações de gênero. Os palhaços são
personagens masculinos em sua totalidade, ou seja, percebe-se durante a apresentação e nas
falas da mestra que somente os homens os representam. Dona Traíra conta que, no caso das
moças, em tempos antigos apenas mulheres faziam uso dessa personagem. No entanto, nos
últimos tempos é possível perceber homens performando seus gestos e vestes. As moças ficam
logo atrás dos palhaços, acompanhando-os.
Num panorama geral do festejo entende-se, num primeiro plano, o relevante poder que os
palhaços têm: são os únicos que emitem sons característicos e indicam o caminho do cortejo;
são os anunciantes da festa. Ou seja, poderíamos concluir então que os homens em um

728
personagem masculino possuem uma relevância significativa a mais que o feminino. No entanto,
olhando sob outro ângulo, podemos então questionar esses parâmetros. As moças, embora
acompanhando os palhaços, estão em maior número e são as que possuem os elementos
simbólicos mais significativos da festa: as saias coloridas, os rodopios intermináveis, o maior
grau de anonimato. Dessa maneira, do ponto de vista do iconográfico, da caracterização visual
e simbólica da plasticidade da festa, seriam essas personagens as que mais se sobressaem.

Fim de ato
A ideia de coletivo, de um processo de ideias filtradas para um percurso em comum, pode de
certa forma, desfocar a importância da individualidade. No entanto, em processos artísticos e
de pesquisa em campo é construída uma rede de interlocuções edificadas por meio da expressão
particular de cada integrante. No filme Mané (2019), as fotografias e as análises sobre elas foram
construídas por meio desse entrelaçar de pensamentos e questionamentos pessoais.
Para pesquisas como esta, que abraça a etnografia como alicerce, as trocas entre o grupo de
pesquisadores se tornam ricas nesse caminho de imersão no universo simbólico do “outro” -
neste caso, os moradores do Poxim, brincantes do Mané do Rosário. Mas também enxergamos
nossa silhueta como o outro desse “outro”, os estrangeiros, os “estranhos” nesse lugar. O grupo
se lançou e se convidou a registrar e buscar apreender elementos soltos num universo com suas
formas de viver e ser, com suas visões de mundo e tentar relacioná-los de alguma maneira.
Portanto, a etnografia é entendida aqui não somente como vivência e experiência de campo,
mas como o erguer de pontes, construção de vínculos múltiplos entre os pesquisadores e
interlocutores, bem como entre os próprios investigadores.
As imagens revelam-se também não apenas como ferramentas de registro e análise, mas como
companheiras de prosa, aquelas que nos ajudam a conformar discursos racionais, estimulando
ideias, produzindo novas associações. Buscou-se aqui tê-las não somente como quem nos conta
algo, mas também como artifício de suspeita do que se conta. Pois é também na desconfiança,
no duvidar que enxergamos novos caminhos.
É nesse horizonte que nos colocamos a “olhar pelas brechas” os silêncios nesse folguedo tão
rico. Intentou-se ir além de sua plasticidade, do que é visualmente encantador, mas dialogar
com o que não é dançado, escutado, avistado. Mas, com o que está além das cores, da banda
de pífanos, dos giros, sorrisos e do que não pode ser proferido.
Assim, apresentamos neste ensaio algumas associações desse processo que para nós é, de certa
forma, um experimento, uma degustação, mas também provocação, desafio. Poderiam ser

729
exibidas outras impressões, mas escolhemos essas, como novos passos nessa imersão através
das imagens e das memórias que vêm dando luz às dinâmicas e transformações de um dos
folguedos mais antigos e marcantes da cultura alagoana.

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https://www.historiadealagoas.com.br/coruripe-a-cururugi-dos-caetes.html. Acesso em: 18 de março de
2021.

730
ESPAÇOS INVISÍVEIS NA CIDADE DE UBERLÂNDIA: uma analogia entre a arte e
urbanismo para leitura e identificação de lugares de grupos sem voz
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Denise Fernandes Geribello


Doutora em Arquitetura e Urbanismo, Mestre em História e Graduada em Arquitetura e
Urbanismo; PPGAU/FAUeD/UFU; denise.geribello@ufu.br.

Glauco de Paula Cocozza


Doutor em Arquitetura e Urbanismo, Mestre em Engenharia Urbana e Graduado em
Arquitetura e Urbanismo; PPGAU/FAUeD/UFU; glauco_cocozza@yahoo.com.br.

São muitos os sujeitos e obras que vêm sendo historicamente invisibilizados nas narrativas
predominantes no campo da história da arquitetura e da cidade e, consequentemente, no
currículo dos cursos de Arquitetura e Urbanismo. Frente a esse cenário, é possível notar um
movimento de incentivo a novos olhares sobre temáticas que envolvem a participação de
personagens, obras e situações urbanas outrora não contemplados pela historiografia
tradicional. Tal mudança de perspectiva abre espaço para novas possibilidades de interlocução
e, também, novas fontes documentais. Assim, é ampliada a reflexão sobre a importância do
lugar de fala e o questionamento do discurso autorizado de determinados sujeitos. Da mesma
forma, outras fontes, para além dos documentos institucionais e da materialidade e práticas
sociais da cidade oficial, passam a ser cada vez mais mobilizadas para a reflexão e escrita de uma
nova história da arquitetura e da cidade. Nesse contexto, este trabalho convida a uma reflexão
sobre possibilidades de instigar novos olhares sobre a arquitetura, a paisagem e a cidade a partir
da arte e da vivência urbana individual. O texto aponta caminhos possíveis de análise a partir
do entrelaçamento de três fontes: o livro “Quarto de despejo: diário de uma favelada”, de
Carolina Maria de Jesus (1960), o filme “Linha de passe”, dirigido por Daniela Thomas e Walter
Salles (2008) e a música “Negro drama”, da banda Racionais MCs (2002), associados a
experiências pessoais na cidade.
Palavras-chave: espaços invisíveis; espaços urbanos; história da cidade.

Many people and works have been historically obscured in the predominant narratives about
architecture and the city. Consequently, they are also obscured in the architecture and urban
planning curriculum. In this context, many efforts are being made towards a praxis that
comprises subjects, works and urban situations that are not usually present in the traditional
historiography. This perspective turn opens new possibilities regarding interlocutions and
documental typologies used as references. This way, references other than institutional
documents and the materiality and social dynamics of the official city start to support the writing
of a new history of the architecture and the city. This paper invites to reflect about possibilities
to instigate new looks toward the architecture, the landscape and the city through art and the
individual experience of the city, specifically, through the confront of the book “Quarto de
despejo: diário de uma favelada”, witten by Carolina Maria de Jesus (1960), the film “Linha de
passe”, directed by Walter Salles and Daniela Thomas (2008) and the song “Negro drama” from
the band Racionais MCs (2002) and the daily experience of the city.
Keywords: invisible spaces, urban spaces, city history.

731
1 - Introdução
Este ensaio propõe uma reflexão sobre possíveis estratégias de sensibilização do olhar com
relação a paisagens que nos rodeiam no dia a dia. Busca-se, por meio da análise de obras de arte
de naturezas diversas, a saber, a música Negro Drama (RACIONAIS MCS, 2002), o filme Linha de
passe (SALLES & THOMAS, 2008) e o livro Quarto de despejo: o diário de uma favelada (JESUS,
1960), despertar o interesse pela cidade, aguçar a percepção das situações urbanas e provocar
uma reflexão sobre os valores que atribuímos aos nossos espaços de vivência cotidiana.
Dentre os diversos valores passíveis de serem atribuídos à paisagem que nos cerca, ou mesmo
a elementos específicos que a compõe, um tipo de valor ganha destaque nesta reflexão: o
sentido patrimonial. Por muito tempo, a condição de patrimônio foi – e em alguns contextos
restritos ainda é – entendida como um atributo intrínseco de determinados bens, passível de
ser revelada exclusivamente pelo expert, ou, conforme coloca Smith (2006), revelada por um
Discurso Patrimonial Autorizado, ou Authorized Heritage Discourse (AHD) termo cunhado pela
autora. Trata-se de um discurso dominante, imposto por profissionais predominantemente do
campo da arquitetura e da arqueologia, para endossar a seleção de determinados bens como
patrimônio com base no reconhecimento de valores inerentes aos objetos e reconhecidos,
sobretudo, pelos olhos dos especialistas (SMITH, 2006). Nesse cenário, o discurso autorizado do
especialista é cristalizado por meio de chancelas oficiais de salvaguarda do patrimônio cultural.
Apesar dessa compreensão, em alguma medida, se estender até os dias de hoje no âmbito da
prática patrimonial, desde meados do século XIX, é possível identificar que a ideia de patrimônio
já vinha sendo abordada a partir de uma outra perspectiva. Na década de 1960, com a Carta de
Veneza, documento internacional que tem grande influência do pensamento brandiano, a
percepção do patrimônio como construção a partir da atribuição de valores ganha destaque
cada vez maior nos debates do campo. Tal ampliação recebe impulso com a aproximação da
antropologia nas discussões patrimoniais. Nesse sentido, como sintetiza Meneses, entende-se
que
os objetos materiais só dispõem de propriedades imanentes de natureza
físico-química: matéria-prima, peso, densidade, textura, sabor, opacidade,
forma geométrica, etc.etc.etc. Todos os demais atributos são aplicados às
coisas. Em outras palavras: sentidos e valores (cognitivos, afetivos, estéticos
e pragmáticos) não são sentidos e valores das coisas, mas da sociedade que
os produz, armazena, faz circular e consumir, recicla e descarta, mobilizando
tal ou qual atributo físico (naturalmente, segundo padrões históricos, sujeitos
a permanente transformação) (1994, p. 27).

732
Essa abordagem implica na percepção de que as chancelas oficiais deixam de ser condição sine
qua non para determinação do patrimônio. É o sentido patrimonial, conferido ao bem a partir
da atribuição de valores, que determina o status de patrimônio e não apenas a
institucionalização de sua salvaguarda.
Para além de se debruçar sobre o patrimônio reconhecido pelas chancelas oficiais, essa reflexão
busca trazer subsídios para que as pessoas possam identificar e reconhecer bens que, para elas,
possuem sentido patrimonial. Nesse sentido, também se propõem um cotejo entre as
percepções apresentadas pelos cidadãos e as ações institucionalizadas de preservação,
buscando identificar possíveis lacunas e apagamentos.
Apesar de a ideia de patrimônio cultural ser associada ao passado e da própria paisagem que
nos envolve ser constituída por elementos de épocas diversas, é preciso ressaltar que nossa
análise se volta para a cidade tal qual a encontramos no presente. Conforme Lepetit,
A cidade, como vimos, nunca é absolutamente sincrônica: o tecido urbano, o
comportamento dos citadinos, as políticas de planificação urbanística,
econômica ou social desenvolvem-se segundo cronologias diferentes. Mas ao
mesmo tempo, a cidade inteira está no presente. Ou melhor, ela é
inteiramente presentificada por atores sociais nos quais se apoia toda carga
temporal (2001, p.145).

Nesse mesmo sentido, Santos aponta que


A Paisagem não se cria de uma só vez, mas por acréscimos, substituições; a
lógica pela qual se fez um objeto no passado era a lógica da produção daquele
momento. Uma paisagem é escrita sobre a outra, é um conjunto de objetos
que têm idades diferentes, é uma herança de muitos diferentes momentos.
(SANTOS, 1994, p. 66)

A paisagem resulta da apreensão e dos filtros que são definidos por cada indivíduo (GOMES,
2001). Ela só existe através de um observador que estabelece relações entre os elementos que
formam o mosaico urbano e social, portanto, à paisagem serão atribuídos significados e valores
dependendo do observador e da forma de análise. Segundo Luchiari (2001) a paisagem é forma
e aparência e seu verdadeiro conteúdo só́ se revela por meio das funções sociais que lhe são
constantemente atribuídas no desenrolar da história.
Ainda que a atribuição das funções sociais à paisagem seja constante, na experiência cotidiana,
pouco nos damos conta das características e peculiaridades da paisagem em que estamos
inseridos. Nesse sentido, este ensaio propõe a fruição de um conjunto de obras de arte
selecionadas como mecanismo para sensibilizar o olhar sobre essas paisagens que são
vivenciadas no dia a dia, criando oportunidade, inclusive, para a identificação e o

733
reconhecimento de bens aos quais é atribuído sentido patrimonial por grupos sociais
específicos. Incialmente, serão apresentadas as obras escolhidas e destacados alguns trechos
que apontam para a leitura de elementos e dinâmicas da paisagem urbana. Em seguida, essas
questões serão tomadas como ponto de partida para uma reflexão sobre a cidade de
Uberlândia, MG. Finalmente, nas considerações finais, são apresentadas algumas reflexões
sobre as possibilidades da abordagem proposta.

2 – Traços de uma metrópole em três obras


A sensibilização do olhar para as paisagens da vida cotidiana parte, neste ensaio, do contato
com três obras de arte: a música “Negro drama”, da banda Racionais MCs (2002), o filme “Linha
de passe”, dirigido por Walter Salles e Daniela Thomas (2008) e o livro “Quarto de despejo: o
diário de uma favelada”, escrito por Carolina Maria de Jesus (1960). As três obras mostram
camadas de uma mesma metrópole por meio da experiência da vida cotidiana, trazendo
aspectos de histórias e memórias que escapam da escrita da história oficial da arquitetura e da
cidade.
A música “Negro drama” é um rap de quase sete minutos do grupo de Racionais MCs, que faz
parte do álbum “Nada como um dia após o outro”. O próprio nome do álbum já remete ao
universo que almejamos adentrar: o dia a dia. A música “Negro drama”, conforme aponta Zeni,
retoma temas recorrentes nas letras do grupo, como, por exemplo, o cotidiano de violência
hiperbólica da periferia, a denúncia do preconceito racial contra os negros e um sentimento de
pertencimento à Zonal Sul da cidade de São Paulo, local onde nasceu e vive Mano Brown, líder
do grupo (2011, p.1).
Ao final do primeiro minuto de música, a letra traz uma provocação que está diretamente ligada
com o teor da análise aqui proposta.
Periferias, vielas, cortiços/Você deve tá pensando/O que você tem a ver com
isso?
Desde o início, por ouro e prata/Olha quem morre, então/Veja você quem
mata
Recebe o mérito a farda que pratica o mal/Me ver pobre, preso ou morto já
é cultural
Histórias, registros e escritos/Não é conto nem fábula, lenda ou mito

A partir desse trecho, endereçado a um interlocutor externo e não àquele que vive o negro
drama mencionado na música, é possível refletir sobre nossa capacidade de pensar
historicamente com relação à cidade, ou seja, a capacidade de nos relacionarmos

734
estruturalmente com aquilo que se passou antes de nossa existência e com aquilo que se passará
depois dela. Nesse sentido, nos leva a pensar a cidade para além de nossas trajetórias individuais
situadas no tempo presente e em nosso papel nesse processo de produção e reprodução do
espaço urbano. A essa capacidade de se pensar historicamente é acrescentada a questão da
naturalização do racismo e da exclusão social, que nos leva a refletir sobre a persistência de
lógicas de exploração no processo histórico do país, que, inclusive, estão registradas em nossas
narrativas históricas oficiais.
Esse trecho também dá pista de sentidos que são atribuídos a determinadas situações urbanas
e que podem nos instigar a pensar sobre os processos de construção dessas percepções. Porque
e desde quando os termos “Periferias, vielas e cortiços” se tornaram metáfora para todo um
contexto específico que referido pelo cantor? Em outro momento da música, outros elementos
desse mesmo contexto aparecem: “Ei bacana quem te fez tão bom assim?/O que cê deu, o que
cê faz, o que cê fez por mim?/Eu recebi seu tic, quer dizer kit/De esgoto a céu aberto e parede
madeirite”. Nesse caso, é utilizada uma metonímia da parte pelo todo, em que o esgoto a céu
aberto e a parede madeirite representam toda uma situação urbana que é marcada pela
precariedade de infraestrutura e de suas edificações.
Nos dois trechos citados acima, as falas partem da periferia, marcada pela exclusão e
precariedade, e se direciona a um interlocutor externo, que implicitamente ocuparia outros
espaços da cidade. A experiência de diferentes grupos sociais dentro da cidade se espacializa de
maneiras muito diversas, de forma que, enquanto algumas áreas são extremamente familiares,
outras são utilizadas apenas para deslocamento ou em atividades relacionadas ao trabalho e
outras áreas, ainda, são completamente desconhecidas. Essa relação instiga um olhar sobre as
diversas cidades que podem coexistir em uma mesma cidade.
Em diversas passagens, a música enfatiza a conexão de sua narrativa com a realidade. “Eu prefiro
contar uma história real/vô contar a minha” e “Eu não li/eu não assisti/eu vivo o negro drama”
são exemplos dessa valorização da experiência, que coloca a música como uma crítica
fundamentada na realidade, sem incorrer na romantização das condições precárias. A dureza da
cidade e das trajetórias de vida que se desenvolvem nela são enfatizadas quando, após
mencionar que sua vida daria um filme, a música diz “Uma negra e uma criança nos
braços/solitária na floresta de concreto e aço/veja, olha outra vez/o rosto na multidão/a
multidão é um monstro sem rosto e coração”. A luta cotidiana e solitária da mulher na cidade,
mais especificamente da mulher que é mãe, nos convida a pensar a cidade a partir da
perspectiva de gênero. Esse tema é recorrente nas três obras tomadas como referência aqui.

735
No livro “Quarto de despejo: diário de uma favelada” (1960), Carolina Maria de Jesus, mulher,
mãe de três filhos e moradora da favela do Canindé na cidade São Paulo, relata seu dia a dia,
que é marcado pela solidão, miséria e dureza da cidade. O ritmo da narrativa é conferido pelos
deslocamentos constantes que fazem parte de sua luta cotidiana pela sobrevivência: saídas para
buscar água, catar papel, vender o material coletado, lavar roupa no rio... A frequente
necessidade de se afastar do local de moradia gera preocupação com os filhos, com relação
tanto à sua saúde das crianças quando às rusgas entre elas e moradores da vizinhança, e
também o medo de ter seus poucos pertences, como seu rádio, roubados. A compreensão de
como a subsistência de Carolina está associada ao caminhar constante na cidade pode
sensibilizar o leitor no sentido de individualizar os rostos presentes na multidão das cidades e
alargar sua compreensão sobre as diferentes trajetórias de vida que se sobrepõem no espaço
urbano, o que leva a pensar, ainda, em como a cidade acolhe as necessidades das diversas
pessoas que por ela circulam.
A movimentação de Carolina entre a favela e a “cidade” revela a já mencionada coexistência de
diversas cidades em uma mesma cidade, identificada em “Negro drama”. Essa cidade dupla
também fica evidente no trecho que segue, que inclusive traz o nome do próprio livro.
As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que
mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na
sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E
quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar
num quarto de despejo (JESUS, 1960, p.37).

Mais à frente, Carolina caracteriza a cidade de São Paulo a partir da existência dessas duas
cidades: “Oh! São paulo rainha que ostenta vaidos a tua coroa de ouro que são os arranha-céus.
Que veste viludo e seda e calça meias de algodão que é a favela” (1960, p.41).
Além de apresentar características diferentes, a essas duas cidades são atribuídos significados
distintos. Carolina menciona em trechos do livro o preconceito sofrido em função de seu local
de moradia. Um dos registros do diário traz a seguinte fala de uma moradora do entorno da
favela: “(...) ouvi dizer que vocês lá da favela vivem uns roubando os outros” (p.27). O livro nos
instiga a pensar nos estigmas que se especializam na cidade, como perduram até os dias de hoje
e são naturalizados na vivência cotidiana.
Assim como em “Negro drama”, em “Quarto de despejo” a experiência direta é colocada como
elemento fundamental para compreensão da realidade. Carolina coloca que “É preciso conhecer
a fome para saber descreve-la. O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome,
a fome também é professora” (p.29). O destaque dado à experiência vivida nessas duas obras

736
aponta a importância da voz, do lugar de fala e da escuta para o conhecimento da cidade em
sua multiplicidade e complexidade.
A terceira obra mobilizada nesta reflexão é o filme “Linha de passe” (2008), dirigido por Walter
Salles e Daniela Thomas. Ainda que não se trate de um documentário, é uma obra que retrata a
de maneira muito fidedigna a experiência cotidiana de uma família pobre que mora na Cidade
Líder, distrito localizado na periferia da cidade de São Paulo. A família é comandada pela
empregada doméstica Cleuza, que possui quatro filhos e está grávida de outro. O filho mais
velho é motoboy, o segundo é frentista de posto e fiel da igreja evangélica, o terceiro filho busca
realizar o sonho de se tornar jogador profissional de futebol e o mais novo passa a maior parte
do tempo andando de ônibus pela cidade em busca de seu pai, um motorista de ônibus que ele
não chegou a conhecer. Ainda que sejam unidos pela relação familiar, cada um deles possui uma
trajetória própria, atravessada por desafios particulares.
Assim como o livro de Carolina de Jesus, o filme é marcado pela circulação constante dos
personagens pela cidade em busca de sobrevivência. Nos deslocamentos diários, os ônibus
possuem um papel de destaque. Diversas cenas mostram ônibus cheios de pessoas, cada uma
delas imersas em suas próprias vidas, nos remetendo a uma multidão de trajetórias que se
colocam lado a lado naquele espaço. A trama de viadutos que marca a paisagem urbana do filme
também pode remeter a essa multiplicidade de trajetórias que se sobrepõem na cidade e que,
como os viadutos, muitas vezes não se cruzam. A dureza e a impessoalidade da cidade são
incorporadas na linguagem do próprio filme. Conforme Fernando Meireles,
A fotografia avessa a enfeites reforça a dureza de SP que espelha assim a dureza
emocional da família. Não há quase demonstração de afeto naquele ambiente
masculino e árido. Eles são solidários, mas cada um parece viver seus próprios dramas
sozinhos (2008).

Enquanto cidade é vista como o lugar do outro, como um espaço que não lhes pertence, a casa
é o espaço onde se sentem seguros, apesar da existência de atritos entre os membros da família.
Além de inseridos na família, cada um dos personagens também pertence a comunidades
externas a ela, como a torcida de futebol, a igreja e até mesmo o grupo dos motoboys, que,
apesar de não necessariamente se conhecerem, se mobilizam em favor uns dos outros em
momentos críticos, como é o caso do de acidente de trânsito mostrado no filme. São pequenos
momentos de aproximação de pessoas, ainda que desconhecidas, que partilham interesses
comuns.

737
Este pequeno passeio por alguns aspectos dessas três obras revela olhares possíveis sobre a
cidade a partir de pontos de vista que fogem das vozes predominantes na indústria da música,
do cinema e do mercado editorial. Além de conhecer mais sobre a cidade de São Paulo e
possíveis significados atribuídos a ela, esse exercício permite a reflexão sobre outras cidades e
outros contextos.

3- Um olhar para Uberlândia


Uberlândia não é uma cidade reconhecida pelo seu patrimônio cultural, muito menos por
apresentar marcos arquitetônicos reconhecidos. A famosa igrejinha da Lina Bo Bardi, o centro
cívico projetado Acácio Gil e Borsoi, a biblioteca da Universidade Federal de Uberlândia
projetada por Paulo Zimbres e o teatro de Oscar Niemayer são exemplos de marcos
arquitetônicos assinados por arquitetos renomados nacional e internacionalmente. A cidade
que se desenvolveu rapidamente no interior do Brasil a partir dos anos 1960, apagou parte dos
traços do seu passado arquitetônico para construir uma nova ideia de cidade do futuro, do
desenvolvimento, e, não à toa, seus marcos arquitetônicos enfatizam essa modernidade no
cerrado brasileiro.
Essa modernidade veio a galope, transformando e alterando a sua paisagem, escrevendo uma
nova história sobre a recente construção de seu espaço. A cidade cresceu sempre focando em
novos modelos urbanos, que vislumbravam um horizonte que não era o seu passado, da sua
memória de vila, da cidade da ferrovia Mogiana, gerando uma nova identidade para a então
pequena cidade no sertão da farinha podre, e construindo novos signos de uma modernidade
em construção.
Pode-se afirmar que o processo de desconstrução do patrimônio edificado foi uma ação, e não
uma obra ao acaso, assim como a ideia de construção da sua paisagem contemporânea, pensada
para demonstrar a grandiosidade de uma cidade do interior no Brasil. Mesmo substituindo
grande parte de suas construções, reescrevendo uma nova história, ainda há traços de uma
Uberlândia que pode ser contada através do seu espaço urbano e da sua arquitetura, seja nos
bairros centrais e pericentrais, nos bairros periféricos construídos para abrigar a população que
chegou em busca de novas oportunidades, em sua maioria excluídos do processo de
“modernidade”, criando um patrimônio silencioso, lugares que devem ser enfatizados nas
narrativas urbanas.
Reconhecemos e reconheçamos esses lugares como patrimônio representativo de uma
sociedade, e não somente definidos por um corpo técnico e pelos inventários patrimoniais, ou

738
de marcos arquitetônicos reconhecidos pela sociedade. A sua representatividade deve
considerar o reconhecimento coletivo e social, de grupos sociais geralmente invisíveis para o
restante da sociedade. Esses espaços se caracterizam pelo modo de fazer, pelo concebido e
vivido, e não somente pela erudição imposta por parte da sociedade
Para Solá-Morales (2008), a urbanidade está nas “coisas urbanas”, e é preciso buscá-las.
Segundo o autor é preciso ficar atento aos pequenos atos do cotidiano para compreender a
importâncias dos lugares urbanos, para assim, planejar uma cidade com urbanidade. As “coisas”
podem estar em lugares banais, não pelo significado depreciativo que o termo pode nos trazer,
mas pela simplicidade e excepcionalidade que alguns lugares e edifícios se inserem na paisagem
das nossas cidades.
Al final, la vida diária de las ciudades globales se reduce a cosas tan prosaicas
como el bar de la esquina, la panadería de enfrente, y espacios de esa
naturaleza. En pocas palavras, se reduce precisamente a esa combinación de
mezcla y densidade que permite a los residentes de la urbe participar y ser
parte de la sociedade urbana través de la posibilidad de encontrarsse unos
con otros (Solá-Morales, 2008, p. 13)

O cotidiano das cidades pode revelar parte da segregação imposta pela forma com que nos
organizamos enquanto sociedade. Grupos que podem ser considerados invisíveis, como garis,
empregadas domésticas, pedreiros, pessoas com uniformes, pessoas em situação de rua,
vivenciam espaços urbanos onde não criam senso de pertencimento, geralmente de um
cotidiano que não é o seu. É preciso compreender quais são seus espaços representativos,
espaços esses que remetem o senso de comunidade, identidade, e assim valoriza-los enquanto
lugares.
Se a cidade é das pessoas, como afirma Ghel (2013), mas para os grupos de pessoas invisíveis,
qual seria essa cidade? Novamente, há que buscar nas coisas urbanas o elo que falta entre
espaço e identidade. Os lugares do vivido são espaços que trazem o reconhecimento enquanto
parte de uma comunidade. Ao se deslocarem pela cidade, esses grupos compartilham os
espaços públicos urbanos, os modais de transporte, os locais de consumo, porém se sentem
pertencentes?
A realidade urbana é dura. Uma das questões mais relevantes do urbanismo contemporâneo é
sobre cidades mais caminháveis. O caminhar urbano apresenta distintas conotações, mas para
aqueles grupos que o caminhar é a única forma mover-se pela cidade em função de sua situação
financeira, em situações muitas vezes adversas, o deslocar-se pela cidade apresenta outro
significado. No caso de Uberlândia é ainda pior, dado aos inúmeros conflitos existentes no

739
espaço urbano da cidade, como falta de calçadas, arborização, cruzamentos perigosos,
principalmente para ir da periferia ao centro. Segundo Portas (2011) o urbano só pode ser
confiado a uma estratégia que ponha em primeiro plano a problemática do urbano, a
intensificação da vida urbana, a realização efetiva da sociedade urbana.
Muitos moradores da periferia que se deslocam diariamente pelo transporte público tendem a
ser despersonalizados pela forma com que a mobilidade é tratada em nosso país. Andar de
ônibus é algo que é visto como última opção pela classe média e alta, enquanto há uma classe
que só pode andar de ônibus e outra que nem de ônibus consegue andar. Dentro do ônibus as
pessoas estão se deslocando de um ponto a outro da cidade, juntas e ao mesmo tempo
separadas por diferentes cotidianos, problemas e graus de invisibilidade. De dentro da janela a
cidade se modifica, e as paisagens se transformam. É como se o ônibus fosse um portal que te
leva a outra dimensão do espaço da cidade, despersonalizando as relações com os lugares
urbanos.
Um pedreiro que constrói casas e vive o cotidiano de uma construção dificilmente poderá morar
em uma casa como a que está construindo. A vida cotidiana precisa ser entendida através dos
espaços identitários, e não somente de uso diário. É preciso compreender os diferentes
significados que a paisagem pode revelar. O mesmo edifício, a mesma rua, a mesma praça
podem apresentar diferentes graus de pertencimento de acordo com a experiência urbana de
cada cidadão ou grupo social.
As periferias da cidade de Uberlândia são repletas de espaços vividos, que apresentam uma
memória cultural própria de cada lugar, de cada relação com as contradições impostas pelos
espaços da cidade. Esses lugares moldam paisagens que podem ser definidas como patrimônio
reconhecido por essa população.
Alguns locais da cidade de Uberlândia podem ser representativos e não estão nos manuais e
tampouco em inventários patrimoniais, e apresentam diferentes graus de legibilidade no espaço
urbano da cidade. Tais locais foram selecionados para demonstrar essa relação entre música,
cinema e literatura e o valor que pode ser aferido através da sua representatividade.
É necessário compreender quais paisagens, conceitualmente entendida como processo e
resultado (Santos, 1994), como ação e conformação, se moldaram com o tempo e são definidas
por essa representação. A leitura dessas paisagens pode ser um instrumento de identificação de
quais locais tem essas características, e de como essas podem ganhar representatividade no
planejamento das nossas cidades, através de inúmeras outras formas de mirá-la e captá-la.

740
A segregação social e urbana está na gênese de muitas das nossas cidades, na gênese de nossa
consolidação como país urbano, através de muitos bairros desconectados fisicamente e
estruturalmente de outras partes da cidade. Historicamente, os excluídos foram responsáveis
pelo surgimento de diversos espaços urbanos que contém os traços dessa segregação, mas
também apresentam os traços de sua cultura, de suas origens, de sua resistência, imprimindo
os traços de sua história. Resgatar esses espaços urbanos é fundamental para compreender o
seu papel na conformação das cidades, e como salvaguarda de uma memória urbana que tende
a desaparecer pouco a pouco, sem deixar os rastros de um passado que muitos querem
esquecer e esconder.
O bairro Patrimônio é um dos mais antigos da cidade de Uberlândia, datando do final do século
XIX, quando a cidade se concentrava na colina acima do córrego São Pedro. A região onde ele se
situa era habitada no final do século XIX por negros que migravam para o local em decorrência
da abolição da escravatura, ocorrida em 1889. Com isso, o número e tamanho das senzalas
diminuíam, ao mesmo tempo em que as aldeias e colônias de negros aumentavam, espalhando-
se pelas áreas marginalizadas da cidade - entre elas o Patrimônio.
Esses aglomerados eram chamados de Patrimônio, na qual algum fazendeiro, ou grupo deles,
oferecia terras a uma igreja ou santo, nos quais iriam organizar um núcleo inicial do novo
aglomerado. Esses patrimônios de doação, a santos ou igrejas, foram comuns até fins do século
XIX. Os negros encontravam ali um lugar barato para construírem seus casebres, situados
próximos às chácaras e fazendas, e ali vendiam sua força de trabalho. A população do bairro,
nas primeiras décadas do séc. XX, foi gradativamente aumentando com moradores negros ou
de baixa de renda, que eram afastados das áreas centrais da cidade por marginalização ou por
força da valorização imobiliária. O bairro Patrimônio é assim fruto dessa marginalização as
margens do ribeirão São Pedro, do outro lado do rio, longe do núcleo que abrigava as elites
locais.
Atualmente o bairro está em processo de descaracterização de suas origens, com crescente
verticalização, gentrificação e transformação da sua paisagem. Alguns espaços ainda mantêm
traços do que foi seu passado e que refletem um grupo social e um patrimônio edificado cada
vez mais invisível para a população de Uberlândia.

4- Considerações finais: em busca de novas possibilidades de olhar para a cidade


As expressões artísticas, sejam elas musicais, literárias, gráficas ou visuais, buscam nas coisas
urbanas um rico material para as suas idealizações e realizações. A arte não imita a vida, a arte

741
é parte da nossa vida e nos revela diferentes traços de nossas realidades, através de filtros que
refletem realidades das nossas cidades, paisagens, sociedade, ou de filtros imagéticos de
cidades, paisagens e sociedade tidas como ideais.
Essas expressões podem nos fazer questionar a existência de outras cidades dentro da mesma
cidade, e a visibilidade de grupos sem voz para identificação de outros lugares urbanos, lugares
representativos dos invisíveis. Arquitetos e urbanistas historicamente tendem a serem
interdisciplinares, buscando respostas para inúmeros problemas colocados pelo urbano. Os
lugares urbanos apresentam as narrativas da nossa existência, transformada em paisagem
através das suas arquiteturas.
Esse olhar atento às nuances da cidade e de suas coisas urbanas, em sua diversidade e
complexidade, deve ser estimulado desde à formação profissional do arquiteto urbanista. Para
isso, é fundamental uma reflexão profunda sobre o que é (ou não) tomado como fonte para a
leitura da cidade. A música, o cinema, a literatura, o grafite, ou mesmo as variações da língua
faladas em lugares específicos da cidade podem transformar a compreensão da cidade e de seu
patrimônio cultural e, consequentemente, os modos de se intervir sobre eles.

Referências

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742
FEIRA DE ARAPIRACA: REFERÊNCIA PARA QUEM?
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Camila Gonzaga de Oliveira


Arquiteta e urbanista UFAL – Campus Arapiraca; mestranda DEHA/PPGAU/UFAL;
arq1camilaoliveira@gmail.com

Juliana Michaello Macêdo Dias


Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em
Arquitetura e Urbanismo da UFAL, coordenadora do Grupo de Pesquisas Nordestanças;
juliana.dias@fau.ufal.br

A feira livre representa uma experiência peculiar de uso da rua, uma tradição urbana que vem
resistindo, desde a expansão do moderno varejo, e que luta para persistir na paisagem urbana.
Através da territorialidade popular das feiras livres, acredita-se na contribuição que o
desenvolvimento de uma reflexão ampliada acerca das feiras nordestinas, em particular da Feira
de Arapiraca enquanto referência cultural da cidade e do Estado de Alagoas, poderia
proporcionar. O trabalho objetiva analisar a feira de Arapiraca a partir do conceito de referência
cultural, investigando a maneira através da qual as mudanças espaciais sociais ocorridas na
cidade interferiram no afastamento da ideia da feira como referência cultural, bem como seu
espraiamento pós-remoção do bairro do Centro.
Palavras-chave: Feira; Arapiraca; referência Cultural

The local street fair represents a peculiar experience of using the street, an urban tradition that
has endured since the expansion of modern retail, and which struggles to persist in the urban
landscape. Through the popular territoriality of street fairs, we believe in the contribution that
the development of an expanded reflection about the northeastern fairs, in particular the Feira
de Arapiraca as a cultural reference of the city and the State of Alagoas, could provide. The work
aims to analyze the Arapiraca fair from the concept of cultural reference, investigating the way
in which the social spatial changes that took place in the city interfered in moving away from the
idea of the fair as a cultural reference, as well as its spread after removal from the Center.
Keywords: Arapiraca; cultural reference.

743
1 – Introdução
Os aspectos que permeiam a apropriação da Feira de Arapiraca revalidam um modo de
expressão consolidado pela historicidade da feira no lugar. Ao longo dos anos, a cidade se
firmava como capital do fumo no Brasil, o que perdurou até meados de 1970, quando do declínio
da cultura fumageira. Impregnando a ambiência da feira, como um traço da identidade cultural
local até os dias atuais, colocam-se em foco os fatores degradativos – sua remoção do bairro do
Centro - ou que não regem a convivência entre a imaterialidade da feira e a cidade, ao se querer
averiguar se existe uma relação intrínseca entre ambos. Para tal, fez-se necessário apreender de
seus principais agentes, os feirantes, sua corporeidade, e desta autora, alguém que possui uma
relação familiar com a feira, a atividade perceptiva com o qual poderia ser traduzido o seu modo
de apropriação, sua percepção sobre o meio. A intenção é de construir uma apreensão realizada
por dentro, além do visível, além dos mapas oficiais.
As feiras populares persistem hoje através de diferentes formas de articulação e de sua
capacidade de organização. Entretanto, quando se trata das feiras tradicionais presentes nas
diversas cidades do interior nordestino, as ações de gestão públicas, norteadas por uma
perspectiva que não as insere como parte da dinâmica urbana, acabam sendo impeditivas.
Constantemente ameaçadas, as feiras permanecem, como é o caso da Feira de Arapiraca, e
algumas delas vão além, tornando-se referências culturais de suas cidades e Estados, como é o
caso da Feira de Caruaru. “Não se trata de uma feira que se estabeleceu numa cidade, mas uma
cidade que se formou em torno de uma feira”. A frase de Hermeto Pascoal, em entrevista1 para
o portal da Prefeitura de Arapiraca, concedida em 2012, cai quase como uma descrição da
origem da cidade de Arapiraca, Alagoas.
Após a sua descentralização, que ocorreu no ano de 2001, quando toda sua estrutura foi
transferida para outra região do centro, a feira de Arapiraca foi consideravelmente reduzida,
mas continuou sendo parte importante do cotidiano dos arapiraquenses e alagoanos.
Atualmente, existem pontos espalhados pela cidade, numa espécie de desmembramento, que
transformou a Feira de Arapiraca, que acontecia às segundas-feiras, em onze feiras, em
diferentes bairros, não excluindo a feira das segundas-feiras – agora chamada feira tradicional.

1
Entrevista concedida no ano de 2012, disponível em
<https://www.cadaminuto.com.br/noticia/338887/2019/05/12/feira-livre-deu-origem-ao-
desenvolvimento-de-arapiraca>, acesso em 03 de janeiro de 2020.

744
A construção do trabalho proposto possibilitará uma compreensão acerca da referenciação
cultural da feira de Arapiraca, principalmente em se tratando do ponto de partida desta possível
referenciação: a feira é referência para quem? Por que?

2 – As feiras de Arapiraca e Caruaru e suas relações com as cidades


No Brasil, o valor consolidado como prática cultural da manifestação das feiras livres teve seu
marco no processo em que se configurou a Feira de Caruaru como Bem Cultural de Natureza
Imaterial registrado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 2006
na categoria lugar ao fundamentar-se como: (...) Um lugar de memória e de continuidade de
saberes, fazeres, produtos e expressões artísticas tradicionais que continuam vivos no comércio
do gado e dos produtos de couro, nos brinquedos reciclados, nas figuras de barro inventadas
por Mestre Vitalino, nas redes de tear, nos utensílios de flandres, no cordel, nas gomas e farinhas
de mandioca, nas ervas medicinais. Sem sua dinâmica e o mercado que a feira proporciona,
esses saberes e fazeres já teriam desaparecido (CASTRIOTA, 2011, p. 58, grifo nosso) A
associação de referência cultural está diretamente relacionada à concepção do símbolo como
valor social. Chaui (2002 apud FONSECA, 2008) alega não atribuir a coisa em si como o dado
importante, mas sim a representação simbólica nela implícita. Embora, ainda nos dias atuais, o
reflexo do predomínio das classes “dominantes” seja observado pelo modo sistêmico em que as
interferências no patrimônio cultural são praticadas, é importante considerar que se trata de
uma categoria ambígua e que transita entre o material e o imaterial, reunindo em si as duas
dimensões. De fato, Mário de Andrade, ao elaborar em 1937 o anteprojeto do que viria a ser o
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) ─ hoje Instituto ─, abordava com
olhar artístico e antropológico o papel das expressões da cultura popular na formação da
identidade cultural brasileira, mas naquela época os sítios, monumentos históricos e obras de
arte do período colonial encontravam-se sob grave ameaça de desaparecimento devido ao
processo de modernização urbana das nossas cidades. Assim, sua preservação tornou-se uma
prioridade incontornável, como trata Sant’Anna (2008). Esse foi o marco legal do estreitamento
conceitual e prático na defesa do patrimônio cultural brasileiro.
Localizadas no Agreste alagoano e pernambucano, respectivamente, as cidades de Arapiraca e
Caruaru são portadoras de uma dinâmica singular, que as diferencia de outras cidades
localizadas na mesma região, e as faz despontar como centros regionais no interior do Nordeste
brasileiro. Arapiraca, em Alagoas, é uma cidade com população superior a 230 mil habitantes,
de acordo com a estimativa do IBGE para o ano de 2018. Caruaru, em Pernambuco, possui uma

745
população de 350 mil habitantes, também de acordo com estimativa do IBGE para 2018. A
gênese do processo que resultou na referenciação dessas suas cidades nordestinas apoia-se,
sobretudo, em suas feiras livres, que assumem relevância e acabam por refletir-se na expansão
do comércio e no surgimento de diversas iniciativas industriais. A feira acaba por contribuir
ainda à criação de uma gama de novos e diversificados serviços, proporcionando o consequente
crescimento de suas econômicas. No caso de Arapiraca, de acordo com MACÊDO (2010), a feira
ganha impulso com o desenvolvimento da cultura fumageira, enquanto em Caruaru, FONTES
(1979) cita que o início da feira mistura-se ao início da cidade, numa época em que vaqueiros
traziam o gado do Sertão para o Litoral e mascates faziam o sentido inverso.
Na produção desta análise foi essencial revisitar os eventos que marcaram a história econômica
destas cidades e de seus respectivos estados e a influência na economia de Arapiraca e Caruaru,
ao tempo em que buscou fazer relação da feira livre com seu desenvolvimento urbano. Faz-se
então necessário uso de um referencial teórico centrado no entendimento de variáveis como
feira livre, desenvolvimento econômico e regional e referência cultural.
Compreender a história da feira livre é analisar simultaneamente a cronologia da economia no
sistema capitalista, pois foi no fortalecimento dessa estrutura econômica que as atividades
comerciais possibilitaram a geração de riquezas e a ascensão de novas classes sociais como os
mercadores que mais adiante formariam a burguesia.
[...] os mercadores empreendiam suas viagens de negócios, reunindo-se nas
feiras, que eram pontos de comércios temporários. [...] Com isso, a terra
deixava de constituir a única expressão de riqueza, aparecendo com destaque
um novo grupo social, os mercadores. (VICENTINO, 1997, p. 137)

O desenvolvimento econômico em um determinado período e o crescimento de uma localidade


estão, em muitas situações, agregados a implantação de uma feira livre, ou da setorização
comercial de uma região. Pode-se notar isso desde a Idade Média, em que nos burgos os
negócios com os produtos tanto de origem agrícola quanto os produzidos artesanalmente eram
feitos a partir da troca dos excedentes da produção adquirida, aquele que tinha algo que o outro
necessitava permutava para satisfazer a necessidade de consumo do momento.
Atualmente, as feiras além de centralidades nas quais há intercâmbio de mercadorias, ainda
preservam o caráter de festividade, de lazer e de apresentação de novidades. São elas que
promovem os encontros de relações urbanas e rurais, pois podemos dizer que é o ponto de
interseção de produtos dessas duas áreas citadinas, assim através dos produtos oferecidos nas
feiras também é possível identificar o tipo de consumidor e seus costumes que

746
consequentemente são aspectos que apresentam a cidade. Percebe-se ainda que a feira
estabelece uma dinâmica, provoca um fluxo de mobilidade e em alguns casos é por causa da
existência dela que uma localidade é considerada uma centralidade urbana. Primeiramente,
esclarece-se o que é uma centralidade.
Existem princípios gerais que regulam o número, tamanho e distribuição dos núcleos de
povoamento: grandes, médias e pequenas cidades, e ainda minúsculos núcleos semi-rurais,
todos são considerados como localidades centrais. Todas são dotadas de funções centrais, isto
é, atividades de distribuição de bens e serviços para uma população externa, residente na região
complementar (hinterlândia, área de mercado, região de influencia), em relação à qual a
localidade central tem uma posição central. A centralidade de um núcleo, por outro lado, refere-
se ao seu grau de importância a partir de suas funções centrais: maior o número delas, maior a
sua região de influência, maior a população externa atendida pela localidade central, e maior a
sua centralidade.” (CORRÊA, 1989ª apud REIS, 2005, p.13)
Em Arapiraca, foi por meio da implantação de sua feira livre que a cidade passou a exercer uma
função central, fundamental na distribuição de bens e assim ao atrair um quantitativo
populacional que não habitava o município fixou-se como uma localidade central. A
convergência de feirantes e consumidores para a cidade dinamizou em vários aspectos a área
urbana que também centralizou e desenvolveu outros serviços oferecidos na cidade,
transformando-a em um polo regional para o Agreste alagoano.
Contudo, a feira foi um dos fatores que contribuiu para que houvesse a cristalização da
centralidade de Arapiraca, mas o comércio formal foi outro importante elemento para a cidade
ser destaque no Estado.
Um estudo da Fundação Ford (2004, p.52) observa o seguinte sobre as feiras livres:
Um dos métodos mais óbvios, porém talvez menos entendidos, de aumentar
a integração social em espaços públicos e encorajar o crescimento de
mobilidade [é a feira]. Cada vez mais, líderes comunitários e governo veem as
feiras públicas como local dos maiores problemas da cidade: a necessidade
de trazer pessoas de grupos diferentes; a necessidade de tornar os espaços
públicos convidativos e seguros, de revigorar a vizinhança e apoiar a pequena
escala de atividades econômicas, de prover produtos frescos e de alta
qualidade para os moradores da cidade, e de proteger o espaço aberto e
preservar a agricultura das cidades vizinhas.

MACÊDO (2010, p.27), concorda com a citação acima quando diz que as feiras livres são um
complexo de relações sociais e econômicas que ocorre dentro de um determinado espaço
público. Apresenta relevância irrefutável principalmente no nordeste brasileiro. É a feira que

747
muitas vezes representa a única fonte de renda de inúmeras famílias que por vários fatores
permanecem excluídas do mercado de trabalho via empregos e a feira livre é uma das poucas
alternativas de sobrevivência. Na maior parte dos casos as feiras são geridas pelas prefeituras.
Através da aglomeração de pessoas no dia da feira (às segundas-feiras) gerava consumo em
rede, onde se interligavam de acordo com a necessidade de cada consumidor. Essas pessoas
vinham fazer compras na feira e acabavam procurando outros serviços que encontravam na
cidade. Consumiam sem perceber serviços bancários e outros relacionados ao comércio, à
saúde, alimentação e ao transporte.
Sabe-se que, de acordo com IBGE de 2000, 76,3% da população de Arapiraca não tinha uma
renda maior que um salário mínimo, coube a essa população recorrer ao trabalho informal e em
muitas situações foi a feira que acolheu essa parcela populacional que não foi apenas o caso de
Arapiraca, mas também de cidades circunvizinhas. Na época desse censo (2000) a feira
tradicional ainda ocupava o centro da cidade, mais precisamente 24 ruas do mesmo. A
administração do município de Arapiraca observou o crescimento desordenado da feira livre,
então vários conflitos surgiram neste cenário onde a feira era geração de renda e uma
alternativa contra o desemprego para alguns, porém também nela se encontravas ações de
criminalidade.
Outro fator dentro do qual a feira contribuiu para a modificação no aspecto social foi em relação
à mobilidade de classe social. Diferentemente de outras localidades, em Arapiraca não houve
uma cristalização na hierarquia social, exemplo disso são alguns feirantes que obtiveram
ascensão e notoriedade na vida pública como políticos e no fortalecimento do setor comercial
e industrial. Em relação à cultura da cidade, a feira livre segundo o Plano Diretor de Arapiraca
no Art. 28 é apresentada como referência de Patrimônio Material da zona urbana, porém não
há nenhum registro para a salvaguarda desse bem.
A relevância das feiras livres para a economia formal e informal de Arapiraca e de outras cidades
circunvizinhas desperta o interesse em evidenciar a perspectivas da gestão e o planejamento
municipal. As administrações, tanto Estadual quanto Municipal, ignoram a força da feira livre
quando exposta como elemento gerador de renda e consequentemente de riqueza e também
em seu aspecto cultural, não investindo e nem fortalecendo como um agente que poderia
impulsionar diversos setores como o comercial, o de turismo e o de prestação de serviço.
Convergindo e acentuando ainda mais o fluxo de pessoas para a cidade.
A feira livre de Arapiraca pode ser considerada um dos pilares para o fortalecimento e progresso
da cidade, pois foi dela que se irradiaram várias referências sendo elas sociais, culturais,

748
econômicas e urbanísticas. Compreende-se a feira livre como paralelamente ligada à história da
cidade, contribuindo para ascensão e desenvolvimento do município.
Compreende-se que, na ocupação e no crescimento do município de Arapiraca, as atividades
econômicas de agricultura e do comércio formal e informal definiram o caráter comportamental
da população que habitava até então, as zonas urbana e rural estavam presentes, já que era
perceptível encontrar plantações agrícolas e criação de animais em áreas definidas como
perímetro urbano e se entender como o pequeno agricultor dependia do comércio no centro
urbano para sua sobrevivência, e que a partir dessa troca tivesse a garantia em investir na sua
próxima safra. Diante dessas observações, é possível perceber a cidade de Arapiraca no
entremeio dessas duas questões, a urbanização e a ruralidade.
A feira livre, como ponto de intersecção dessas duas concepções territoriais fala sobre esse
fenômeno que se apresenta em Arapiraca. A cidade que possui influências rurais absorve
conceitos da modernização como valor positivo tentando apagar as marcas rurais presentes na
cidade, talvez essa seja a causa de que nos dias atuais a feira livre esteja sendo marginalizada
das ações da gestão pública que tem a perspectiva de Arapiraca - que há pouco tempo alcançou
o nível de cidade média – sendo por diversas vezes proclamada “a metrópole do futuro”.
O refletir sobre as questões que envolvem a feira livre e a configuração urbana do município de
Arapiraca é de suma importância para que se possa identificar e possivelmente prosseguir
estudos sobre um modelo de urbanismo próprio para o município em questão. Observa-se que
a feira livre foi um dos meios que Arapiraca teve para se solidificar. Busca-se entender as
dinâmicas que envolvem a feira e as dinâmicas que ela gerou, procurando compreender
primeiramente a formação do município e percebendo nesse meio caminho que feira por si só
já exerce uma dinâmica urbana, desde seu surgimento na sociedade global como também na
local, entendendo que ela cria e dá continuidade a fatores inclusivos de uma região.
Dewar e Watson (1990) tratam do sucesso das feiras a longo prazo como fator dependente da
simplicidade da intervenção nos momentos de desenho e da implementação, o que ocorreu no
início da Feira de Caruaru, pois sua localização e o início das atividades foram, de certa forma,
ingênuos e espontâneos. Existem inúmeros relatos sobre a evolução de cidades que tiveram
seus inícios marcados pela atividade mercantil e pela presença de uma feira, por estarem em
rotas de comércio ou em situações geográficas benéficas. As primeiras feiras do Brasil, no século
XVII, se desenvolveram da mesma forma que tantas outras na Europa. Foram instaladas em
grandes pátios em frente a algum marco, como igrejas ou largos, rodeadas por inúmeras casas
comerciais, vendendo os produtos da região. Sampaio (Reis Filho, 1968), em relato sobre a

749
história da fundação de Salvador - Bahia, destaca o forte papel da feira livre na determinação do
comércio e na vida dos habitantes da cidade:
“Era nas feiras que se realizava o comércio regular de produtos agrícolas, mas
sobretudo de pescado. Às feiras afluíam os vários produtos da terra e os de
maior procura. A farinha de mandioca, pelas várias maneiras como os índios
a fabricavam, a tapioca; as raízes comestíveis, aipins e batatas; o milho e o
feijão; o mel da terra; as frutas indígenas, em que sobressaíam as bananas, os
ananazes (sic), cajus e maracujás; a caça grossa e miúda; os animais vivos
trazidos à feira, pela estima que lhes davam os europeus, como os bugios e
sagüis, papagaios e tuins; bom e variado como o número de aves canoras; o
peixe e os mariscos abundantes, oferecidos por baixo preço, tudo aí se
encontrava. Situavam-se as antigas feiras de Salvador na cidade baixa, junto
à praia e na cidade alta, na praça principal. ‘Por facilitar o mercado, consentia-
se que a feira realizasse à beira-mar, na Praia dos Pescadores, vizinha da
ermida da Conceição’ (...).”

Diferentemente do exemplo anterior, a Feira de Caruaru “nasceu e se criou” em conjunto com


a cidade. A cidade Caruaru tem seu surgimento entrelaçado ao surgimento da feira, bem como
sua expansão e consolidação como referência cultural. Não há como separar uma da outra, tão
dependentes entre si, que compõem um todo orgânico, numa verdadeira simbiose. De acordo
com MEDEIROS (2006), a sua história remonta ao final do século 17, no ano de 1681, quando do
surgimento da Sesmaria do Caruru, doada pelo então governador Aires de Souza de Castro a
uma família portuguesa chefiada pelo cônego Simão Rodrigues de Sá, radicado em Olinda e no
Recife. Das diversas fazendas e sítios ali estabelecidos, a mais central e mais movimentada seria
justamente a que deu nome à sesmaria, situada a partir do caminho das boiadas, entre o sertão
e a zona canavieira, por onde passavam vaqueiros, tropeiros e mascates. A realização de festas
religiosas, sobretudo as que homenageavam a padroeira, contribuiu para o crescimento da feira
e, simultaneamente, o desenvolvimento da cidade. O fortalecimento desse comércio informal
favoreceu, por sua vez, a consolidação do comércio formal de Caruaru, mantendo com este,
desde então, uma relação de complementaridade.
Ao longo dos séculos 19 e 20, com a acessibilidade reforçada pela estrada de ferro da Rede
Ferroviária do Norte e, mais tarde, pelas rodovias estaduais e federais – que a conectaram com
outras localidades do Nordeste – Caruaru se transformou no polo comercial mais importante da
região; posição mantida até os dias de hoje. A pequena feira transformou a área central do
povoado, agregando valores econômicos, sociais e culturais, estreitando cada vez mais a ligação
da vida cotidiana do lugar com a Feira de Caruaru. Com o passar dos anos, a Feira se firmou
como um lugar de socialização, de permanente construção de identidades e de exposição da
sabedoria e criatividade populares. A Feira de Caruaru, na verdade, são muitas feiras que

750
compõem um lugar de referência viva da história do agreste pernambucano. Sintetizando a
riqueza cultural do Nordeste, o maior centro de comércio popular do interior da região conta
com 30 mil feirantes. A Feira de Caruaru é também lugar de cultura, de memória e de
continuidade de saberes, fazeres, produtos e expressões artísticas tradicionais – que continuam
vivos no comércio de gado e dos produtos de couro, nos brinquedos reciclados, nas figuras de
barro do Mestre Vitalino, nas redes de tear, nos utensílios de flandres, no cordel, nos poetas e
repentistas, nas bandas de pífanos, nas gomas e farinhas de mandioca, nas flores, ervas e raízes
medicinais. Sem a dinâmica social e o mercado que a Feira proporciona, esses saberes e fazeres
já poderiam ter desaparecido. Portanto, nada mais justo que a inscrição da Feira de Caruaru no
Livro de Registro de Lugares, destinado a englobar locais que, independentemente de valores
arquitetônicos, urbanísticos, estéticos ou paisagísticos, constituem suportes fundamentais para
a continuidade das práticas e atividades que abrigam.
A Feira de Caruaru esteve localizada no centro da cidade, mais propriamente na Rua do
Comércio, por mais de dois séculos até ser transferida, em 1992, para o Parque 18 de Maio,
situado na margem sul do rio Ipojuca. A transferência da Feira foi determinante para a melhoria
da qualidade no fluxo de pedestres e de veículos em Caruaru, principalmente a partir da década
de 1970, pois no Parque 18 de Maio há vias específicas internas para o acesso de automóveis,
além de estacionamentos, numa área de mais de 150 ha. Enquanto esteve localizada no centro,
nas imediações da Igreja da Conceição, a Feira ocupava um espaço limitado pelas ruas do centro,
com apenas 22 ha. A mudança contribuiu para o crescimento no número de feirantes em mais
de 500% - de 5 mil em 1970 para 28 mil em 2004. O Parque 18 de Maio já foi o local onde se
realizava o abate, a reprodução de animais, além de exposições, o chamado Campo de Monta.
Esse espaço, na década de 1980, pertencia ao Ministério da Agricultura e começou a ser utilizado
para a transferência de parte da Feira. Desde 1992, toda a Feira acontece lá. A atual Feira do
Gado, localizada no bairro do Cajá, é precursora da atual Feira de Caruaru. Foi nesta feira a
origem do comércio que resultou na grande Feira.
A feira de Caruaru possui diversas nuances que, embora sejam muito comuns para os que
moram na cidade, surgem como um bonito exotismo para os visitantes. É um ponto de atração
para artistas, poetas, boêmios e turistas de todos os cantos do Brasil e do exterior, que se juntam
ao povo da terra, superlotando as barracas, constituindo-se também, uma substancial fonte de
renda para o município de Caruaru.
O crescimento da cidade de Caruaru abraça e impulsiona o crescimento de sua feira, e, como já
dito, ambas cresceram (e continuam a crescer) compondo um todo orgânico, numa verdadeira

751
simbiose. O abraçar da Feira de Caruaru e da cidade, ainda que com pontuais problemáticas e
questões a serem consideradas, permite que a troca seja mútua, existindo reciprocidade na
relação feira x cidade em se tratando de ascensão e desenvolvimento econômico. Arapiraca por
sua vez, cresce e expele a feira, no ato de afastá-la e reduzi-la ao papel de uma das diversas
feiras da cidade, ainda que possua grande força dentro do cenário econômico local. A feira de
Arapiraca pode ter sido a mola propulsora do desenvolvimento comercial e urbano da cidade,
mas, a cidade de Arapiraca não parece ter sido recíproca dentro desta relação.

Considerações finais
É possível constatar que as economias de Arapiraca e Caruaru, cada uma com suas
particularidades, tiveram de forma direta ou indireta impulso a partir da feira livre, e a partir daí
é possível afirmar a dinâmica presente da região Agreste dos estados nos quais as cidades se
localizam: Alagoas e Pernambuco, respectivamente.
Diante do que foi exposto, constata-se que as feiras tiveram grande importância na economia
da região Nordeste como um todo, e ainda mais para suas cidades. Arapiraca e Caruaru tiveram
na feira sua gênese econômica e, atualmente, cada uma em uma proporção, continuam
mobilizando grande parte da economia que permeia a cidade, atingindo diversas áreas em seu
entorno, proporcionando maior dinamicidade e um fluxo mais intenso de pessoas que
convergem de suas cidades para elas, nos dias de feira.
A feira livre nordestina, que teve por muitos anos as feiras de Arapiraca e Caruaru como grandes
referências, tem por característica unir questões econômicas, sociais, políticas e culturais em
um mesmo espaço. É claramente possível constatar um desenvolvimento centrado nas
iniciativas locais, com surgimento de pequenos negócios originados do circuito inferior, onde a
mão de obra local, o capital próprio e as técnicas não tão modernas, foram a base para o sucesso
de iniciativas em diversos ramos. Dessa forma, refletindo-se decisivamente no desenvolvimento
econômico desses dois importantes centros regionais do interior do Nordeste brasileiro.

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753
GARÇA TORTA, MACEIÓ: AS VOZES NÃO OUVIDAS DA TRADIÇÃO
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Luiz Antonio Lopes Siqueira


Historiador; Ufal; luiz_antonio_ls@hotmail.com

Uns dos maiores desafios que vivemos hoje, está na forma que ocupamos, vivemos e
construímos nossas cidades. As mudanças que ocorrem em ritmo acelerado, normalmente, são
feitas de cima para baixo, seguindo lógicas incompreensíveis à grande parte da população, que,
quase sempre, fica deslocada em seus próprios habitares. Tendo como referência, Garça Torta,
bairro de Maceió que entendemos oferecer um retrato das situações vividas em nossa
atualidade, analisaremos essas questões a partir das histórias mais recentes do lugar.
Palavras-chave: tradição; Garça Torta; modernidade

One of the biggest challenges we face nowadays is the way that we occupy, live and build our
cities. The changes that occur in an accelerated rhythm, usually happened from the top to the
bottom, following logics incomprehensible to the major pat of the population, which, almost
always, became dislocated in their own places. Taking as reference, Garça Torta, a
neighbourhood of Maceió, we believe that it can offer a portrait of the situations experienced
today, starting from the most recent histories of the place.
Keywords: tradition; Garça Torta; modernity

754
1 – Introdução

Um dos maiores desafios que vivemos hoje, está na forma com que ocupamos, vivemos e
construímos nossas cidades. As mudanças que ocorrem em ritmo acelerado, normalmente, são
feitas em formas verticais, seguindo lógicas incompreensíveis à grande parte da população, que,
quase sempre, fica deslocada em seus próprios habitares.
A princípio, nos parece que a insensibilidade de nossos dirigentes, acompanhados de nossas
elites sociais que pensam em formas individuais o construir coletivo, são os grandes problemas.
No entanto, a situação é mais complexa, pois, as cidades estão se tornando espaços mecânicos,
vazios e impessoais que não atendem aos anseios da população, em seu total, espalhando
desigualdades sociais e embates improdutivos.
Esta dinâmica dicotômica, entre construções e usuários, indicam um erro conceitual nos espaços
das cidades que, sofrendo com a insensibilidade de seus zeladores, produzem deslocamentos
danosos nas realidades vividas, em seu interior. Tendo como referência, Garça Torta, bairro de
Maceió que entendemos ser um exemplo interessante e oportuno para nosso trabalho,
oferecendo um retrato das situações vividas em nossa atualidade, analisaremos essas questões
a partir das histórias mais recentes do lugar.

2 – “Eu era feliz e não sabia”


(Ataulfo Alves, Meus tempos de criança, 1957)

Figura 01: Habitante da Garça Torta exibindo foto antiga do lugar

Fonte: Autor

Marshall Berman, que dedicou boa parte de sua vida a pesquisar a Modernidade, escreveu:

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Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promove aventura,
poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das
coisas ao redor, mas ao mesmo tempo ameaça destruir o que temos,
tudo o que sabemos, tudo o que somos. (BERMAN,1986:14)

É como encontrar o “paraíso e depois descobrir que ele não existe mais, foi perdido. Conforme
trata Diegues (1996) ao falar do mito da natureza intocada.
Autores como Guiddens e Bauman, se referiram, a esse momento histórico, como sendo a
segunda fase da “Modernidade”, pois os mecanismos de funcionamento continuam os mesmos,
ficando apenas mais fortes e velozes, devido aos avanços tecnológicos obtidos nesse período,
ou devido à “Modernização” de seus sistemas ou mecanismos operacionais.
A Modernização, que surge em nossa história, juntamente com a Modernidade e os ideais de
liberdade, em relação ao mundo Medieval, trazem novas perspectivas para a vida humana, no
entanto, carregam, em si, os mesmos problemas de eras anteriores, não conseguindo superar
os sistemas de dominação e controle que, normalmente, são hierarquizados e excludentes.
Marx já havia nos alertado acerca disto em seu “Manifesto Comunista”, indicando a existência
dessas relações, reforçando a ideia de que esses problemas estão na concepção do “Modelo
Moderno de Desenvolvimento” que demonstra sinais do mal funcionamento, desde a sua
origem.
Essa contradição que carrega a Modernidade, de um lado as necessidades do homem
corresponder às suas aspirações materiais, e, do outro, às inerentes necessidades humanas de
ser e de estar em contato com os seus sentidos, se expandem contaminando quase todos os
ambientes de nossas vidas, se apresentando hoje, em quase todas as nossas atividades.
Essa movimentação da “Modernidade”, que envolve e impregna as pessoas, criando dúvidas em
torno de seus sentidos, provocando confusões nas existências pessoais, são resolvidos e
justificados nos espetaculares avanços científico-técnico-informacionais conquistados, ou nas
ideias da “Modernização”. Para entendermos melhor esse conceito, podemos utilizar o exemplo
do fato da presença do homem na Lua, um espetacular passo para a humanidade, que nos
contemplou, como decorrência, com chicletes, fornos de micro-ondas, telefones celulares e
outros bens de consumo.
Para Guy Debord, que escreveu sobre a “Sociedade do Espetáculo”:
As imagens fluem desligadas de cada aspecto da vida e fundem-se num curso
comum, de forma que a unidade da vida não mais pode ser restabelecida. A
realidade considerada parcialmente reflete em sua própria unidade geral um
pseudo mundo à parte, objeto de pura contemplação. A especialização das
imagens do mundo acaba numa imagem. A Sociedade do Espetáculo, onde o

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mentiroso mente a si próprio. O espetáculo em geral, como inversão concreta
da vida, é o movimento autônomo do não-vivo. (DEBORD, 1997:1)

A espetacularização da vida, serve como metáfora para os fatores alienantes desse “Modelo de
Desenvolvimento Moderno, Industrialmente Modernizado” que expande de forma desenfreada
pelo mundo.
Essa analogia vale e nos ajuda a entender as falas publicitárias dos grandes empreendimentos
imobiliários que hoje habitam Garça Torta, como: “Venha morar no Paraíso da Garça Torta”.
Citação irresponsável e fantasiosa que cria uma espetacular mentira, pois o “Paraíso” que
sugerem existe, apenas, no morador constituído no lugar. Aquele que se institui do lugar, é
desprovido do lugar e troca as suas realidades correntes, criando uma Ilha da Fantasia, em si
mesmo, à qual passa a viver.
Jacques Tati, no filme “Meu tio” (1958), demonstra bem isso, quando narra a história de um
senhor que vivendo os desajustes da “Modernidade”, desloca-se de seu habitat e protagoniza
inúmeras confusões. É uma comédia que brinca com questões inspiradas nos desencontros
temporais do espaço que o personagem vive, que não respeitando ou ouvindo as vozes das
tradições, acaba por causar sérios desequilíbrios e danos na França dos anos 50.
Através dessa situação podemos entender o vivido, nesse momento, na Garça Torta,
identificando alguns pontos que nos ajudam a construir e a pensar nas dinâmicas dimensões
contemporâneas, reveladas no encontro da Garça e a cidade de Maceió.

3 – “A força da grana que ergue e destrói coisas belas”


(Caetano Veloso, Sampa, 1978)
Figura 02: Moradia de pescador e edifício em construção na Garça Torta

Fonte: Autor

757
Os problemas assistidos hoje na cidade de Maceió, são comuns em quase todos os municípios
que vivenciam a falta de sentido em seus usuários, em virtude das constantes mudanças
espaciais que, normalmente, ocorrendo em formas alheias ao lugar, desrespeitam seus sensos
comunitários e destroem seus modos de viver. A exemplo dos recentes edifícios que sobem pela
região da Garça Torta, em claro confronto com a escala das habitações vernaculares do lugar.
O bairro abriga hoje mudanças que sugerem uma possível alienação do lugar, que se modifica
seguindo razões e lógicas externas que demonstram essa insensibilidade detectada. O encontro
da moderna cidade de Maceió e o contemporâneo bairro de Garça Torta, traz novos hábitos e
costumes que, provocando, em suas dinâmicas, estranhamentos entre os seus envolvidos,
chocam-se nos diferentes tempos de seus espaços, abalam as práticas e suas tradições.
Uma das maiores críticas que acompanha a vida moderna, desde o seu início, está na confusão
dos sentidos que ela provoca. O bairro de Garça Torta, que até pouco tempo vivia numa
organicidade, quase plena, seguindo práticas e costumes baseados em suas tradições, hoje se
posiciona na dinâmica das aceleradas mudanças espaciais, característica dos tempos
“Modernos” e chama a atenção, justamente, para os problemas que, já denunciados, provocam
rupturas em seus meios naturais, promovem rompimentos em seus lugares, alterações em suas
referências e confundem os seus integrantes.
É um processo que, reorganizando o espacial, produz crises nas identidades interiores, ou em
suas espacialidades, pois ao desenvolver novos hábitos e costumes em seu cotidiano, inspira
falsas ideias de progresso, acabando por confundir seus habitantes, transformando-os em
estrangeiros de seus próprios lugares, retirando-os de seus sentidos originais e recolocando-os
dentro de uma lógica de vida, com preposições hierarquizadas, pré-estabelecidas e pré-
determinadas fora do lugar.
O ponto chave desse momento da Garça como um todo, está, justamente, na perda de sua
identidade, de sua história, de suas Tradições, fragmentando seus sentidos que perdem forças
e, posteriormente, se desintegram.
O avanço municipal que dispara esse processo de reorganização espacial, nos remete a pensar
nos desencaixes dos sistemas sociais, citado por Guiddens, onde “o dinamismo da modernidade
deriva da separação do tempo e espaço e da ordenação e reordenação das relações” (1990,
p.25).

758
A perda de noção do tempo e espaço são as perdas das referências pessoais que passam a ter
relações de estranheza com o lugar e consigo mesmo, percebidas nas sensações de estar fora
do tempo-espaço, ou nas faltas de referências que conhecemos e que não mais existem.
Esse tempo-espaço é ligado a uma unidade temporal que, se formando nas práticas do lugar,
constituem um tempo-lugar. Como por exemplo, o soar dos sinos das igrejas de antigamente
que, ouvido por todos, indicava os tempos da cidade. Estes passaram, a seguir, para as sirenes
das fábricas. Hoje, talvez esta marcação esteja nos horários de funcionamento dos bancos ou
das repartições públicas, sinalizações implícitas e sutis que, não ouvidas por todos, ilustram os
movimentos formadores de privilégios e desigualdades presentes nas dinâmicas das nossas
cidades.
No espaço que habitamos existem referências que regem e organizam nossas vidas, dando
sentido a tudo que fazemos e, nesse momento, Garça Torta, vive as confusões das
desorganizações e das mudanças de suas referências que ocorrendo, em formas autoritárias,
rápidas e truculentas, são extremamente excludentes e hierarquizadas.
Sabemos que o homem é um produto do meio, construído nas referências de seus espaços, em
formas dialéticas e relacionais. Então, como constituir tais referências na confusa
desorganização que vive seu meio nesse momento?

4 – “ O Real Resiste”
(Arnaldo Antunes, O Real resiste, 2020)

Figura 03: Dona Marival

Fonte: Autor

759
Esses problemas são tão evidentes em nossas sociedades, que para qualquer lado que você
olhar, vai encontrar essas situações de conflito.
Garça Torta, por exemplo, agora será aqui representada pela Marival, moradora há 40 anos do
lugar, e a Balança, ou seja, o local de guarda das embarcações e venda de peixe, que vem de
tempos longínquos e traduz a própria identidade do lugar construído. Hoje ambos se veem
intimados por uma ação de despejo e derrubada de suas edificações. Notificada no dia 3 de
março de 2021 e expedida no dia 11 de março de 2021, deveria ser executada no dia 15 do
mesmo mês e ano, pelo Município de Maceió, sob a alegação de Invasão do Espaço Público, com
ameaças de prisão, caso houvesse alguma resistência.
Essa alegação arbitrária e contraditória, qualifica e delimita o Espaço Público, fechando sua
compreensão para os que o habitam há décadas, sem ouvi-los, mesmo sendo, eles os atores e
agentes naturais, materiais e imateriais da Tradicional comunidade de Garça Torta. Através de
medidas punitivas, abre suas paisagens aos ventos da Modernização “estrangeira” que
amparada em projetos ditos modernizadores, modificam um passado, sem conceder aos seus
alvos, um mínimo de sentido de futuro.
Zygmunt Bauman conceitua esse efeito de “Modernidade Líquida” (2001), devido ao seu rápido
poder invasor e modificador dos espaços, onde a operação se realiza na capacidade de fluidez
dos seus sistemas, ou modelos de desenvolvimento. Penetrando com intensa velocidade nas
regiões focadas, atuam como fatores de entropia e precipitam modificações, à seu favor, sem
levar em consideração as dinâmicas coletivas, acarretando profundas mudanças em todos os
aspectos da vida local.
É um processo de transição, ou de câmbio, entre os diferentes projetos de vida que se embatem
nos mesmos espaços, convivendo sociedades nativas locais e as estrangeiras globais, impondo
ao meio um caos que compromete as existências do lugar.
A reordenação dessas dinâmicas socioespaciais acontece de forma excludente e desigual, pois
as forças que regem as ações, se baseiam num absoluto e autoritário conhecimento científico-
técnico-informacional que despreza e não interage com estruturas consideras mais simples e
populares.
Essas ações que partem dos Órgãos Públicos, atendendo a projetos dirigidos pelas forças do
poder político econômico, favorecem propostas hedonistas e particularizadas, em si, cujo maior
objetivo e ambição, é satisfazer seus interesses capitais individualizados e sugerem as raízes dos
problemas do grande vazio existente, nessas ilhas das fantasias construídas.

760
Não pretendemos ser reacionários às transformações naturais dos espaços, ou nos opormos a
elas, apenas argumentamos favoravelmente à necessidade dos projetos serem empáticos e não
entrópicos às dinâmicas das comunidades locais, como assistimos nesse momento.
Arnaldo Antunes explica bem este fato na música Socorro, de 1998, quando o atento olhar do
artista percebe a ausência dos sentidos humanos em nossas vidas, e brinca com o vazio
produzido por eles, implorando por um sentido que, não vindo, o consumirá até à morte. Esses
modelos e projetos propostos, travestidos pela modernização, operam como o conto popular
do homem que depois de matar todos da sala, se mata, para não ficar sozinho.
D. Marival chegou à região há décadas e desde então, vem construindo o seu cantinho, como
ela mesma gosta de falar. Na busca de proteção e melhores condições de vida, instalou seu
ponto ao lado da balança dos Pescadores da Garça Torta, onde, além, de ser recebida com
empatia, teria o peixe para ganhar, comprar, ou trocar, nas dinâmicas relações comerciais do
lugar que a influenciaria nos caminhos que a levaria ao bar, grito de independência há muito
sonhado..
O reconhecido Bar da Marival, frequentado durante a semana pelos pescadores, e aos fins de
semana, por cidadãos vindos de outras regiões menos favorecidas na cidade, tem na
simplicidade de suas instalações, o abrigo de práticas das inúmeras tradições comunitárias e
comerciais locais, embaladas e distribuídas nos peixes e na simpatia dos que oferecem o serviço.
No transcorrer de sua vida, a casa-bar da Marival, sempre seguiu as normas da convivência
pública local. Em toda a sua existência, viveu às margens e à frente de terrenos de terceiros que,
através de acordos verbais, compartilharam e autorizaram a sua permanência. Esses acordos e
autorizações verbais fazem parte de um conjunto de práticas tradicionais que devem ser ouvidas
e respeitadas, pois refletem antigas e reconhecidas regras de conduta local.
As alegações do Governo Municipal que não ouve as vozes da Tradição, por surdez,
desconhecimento, ou dissimulação, se fragilizam nas aplicações de regras posteriores aos
tempos dos acordos e no negacionismo das falas envolvidas que, não ouvidas e respeitadas,
transformam uma intimação em denúncia vazia, descabida e sem sentido aparente, mostrando,
apenas, sua força autoritária e discriminatória.
A mesma situação, até mais aguda, é a da Balança, também notificada, intimada e ameaçada de
demolição. A Balança deve ter mais de 100 anos. Perguntado ao velho pescador acerca do tempo
de sua existência, ele responde: a Balança está ai desde sempre.
E de fato, estas edificações não são construídas aleatoriamente, pois demandam tecnologias
extremamente sutis e eficientes que interferem na sua localização. Equilibram conforto e bem

761
estar, se posicionando em terra a partir de vários movimentos como os das marés, além de se
atentar para os melhores pontas para as entradas e saídas das embarcações, no caso, ainda
construídas de forma bastante artesanal, apenas se beneficiando do uso de pequenos motores.
Portanto, ela não se localiza por acaso, ela tem o seus sentidos e qualquer projeto que não
respeite tais propósitos e necessidades, compromete a sua existência e as existências que a
rodeiam. A Balança nasce de uma ação coletiva na comunidade e segue as necessidades da vida
e local, com tradições específicas, honrosas e, por certos pontos de vista, brilhante. O
depoimento de um dos responsáveis pela Balança, diz que seu avô criou os filhos com ela, seu
pai a ele e a seus irmãos. E ele mesmo criou suas duas filhas com a Balança.
Essa narrativa é recorrente a quase todos os usuários do lugar principalmente quando começam
a falar de suas vidas, conectando suas relações econômicas, comerciais. E portanto, com a
própria condição de sobrevivência. Fica nítido e claro os sentidos da Balança e o quanto ela é
importante para eles e para a cidade, inclusive exercendo um papel social e afetivo.
As acusações do Governo Municipal de Invasão do Espaço Público, não considera o valor das
construções históricas e tradicionais. A pergunta que deveríamos fazer é como acusar os
construtores desse espaço público de invasão, se eles próprios são o espaço público.
Quando criança, lembro dos adultos falando de Autoritarismo, Sectarismo, Esquadrão da Morte,
coisas que pensei habitar, apenas, o meu mundo infantil. Mas percebo que não.

762
5 – “O ambiente efervescente de uma cidade a cintilar“
(Refavela, Gilberto Gil 1977)

Figura 05: O velho pescador na Balança

Fonte: Autor

Em sua história original, Garça Torta é construída por processos vivenciais, de base solidária,
interativa e espontânea, contendo, em si, fundamentos de um “Desenvolvimento Saudável” que
não deveria ser, mas vem sendo desconstruído de forma excludente e hierarquizado, pelos
ambiciosos e espetaculares projetos da especulação espacial.
Não havendo a interação ou harmonia das forças envolvidas nesse processo, há perdas para um
dos lados e, neste caso, os habitantes de Garça Torta, dotados de culturas seculares, que
embasam todo um processo de construção das paisagens do lugar.
A Garça, na atualidade, abriga além da população local, que se dedica à pesca, artistas, artesãos,
políticos, ambulantes, intelectuais, mas também praia, sol, mar, peixes, tartarugas, polvo, corais,
riachos, espaços que, em sua totalidade, formam um conjunto dinâmico que precisa ser visto,
preservado e aproveitado de maneira harmoniosa e produtiva, em qualquer projeto de
transformação local.
Assim como o complexo da Balança, onde se encontra D. Marival, Garça Torta merece ser quase
toda protegida, com destaque à Rua São Pedro localizada junto à sua Praça principal. Nela está
situada a Igreja de São Pedro, o padroeiro dos pescadores, a Casa da Arte, o abrigo material de
sua Cultura e o Beco, adensamento popular e tradicional dos moradores que traduzem todas as
representações do lugar.

763
Se os integrantes de uma sociedade não compreendem as suas próprias existências, sua
organização está comprometida promovendo, de forma devastadora, estragos sócios
ambientais terríveis e, por muitas vezes, irreparáveis. Cabe destacar que esta ação aqui descrita,
de fato se mostra como uma repercussão de um quadro maior de requalificação do litoral norte
de Maceió, onde Garça Torta se localiza. Este processo é sinalizado principalmente pela recente
imposição de prédios de cerca de vinte andares entre as casas dos habitantes locais, seguida da
abertura de uma série de novas vias de trânsito que trarão um crescimento do fluxo de veículos
e uma ocupação de enormes áreas ainda reportadas como zonas rurais, e que agora sofrem um
intenso processo de requalificação, com a implantação de novos empreendimentos
imobiliários.
As Tradições, ainda, habitantes de Garça Torta, nos sinalizam e gritam por suas existências. É só
silenciarmos os grandes ecos do dito progresso, que as ouvimos.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2001.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar. São Paulo: Ed. Schwarcz, 1986.

DEBORD, Guy-Ernest. Sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Ed. Contraponto, 1997.

DIEGUES, Antônio Carlos. O mito da natureza intocada. São Paulo: Hucitec, 1996.

GIDDENS, Anthony. As Consequências da Modernidade. São Paulo: UNESP, 1991.

MARX, Karl. Manifesto Comunista. São Paulo: Ed. Expressão Popular, 2008.

Filmografia:

Jaques Tatti, Meu Tio, 1958

Musicografia:

Meus tempos de criança. Ataulfo Alves, 1957

O Real, Resiste. Arnaldo Antunes, 2020

Sampa. Caetano Veloso, 1978

Refavela. Gilberto Gil, 1977

764
LITERATURA, TURISMO E CULTURA: um nó primordial para garantia de acesso ao
direito à literatura
Nó 2 – O silêncio entre vozes em diálogo.

Rosária Cristina Costa Ribeiro


Doutora em Estudos Literários; Ufal; rosaria.ribeiro@fale.ufal.br.

José Felipe da Silva


Tecnólogo em Gestão de turismo (Ifal) e Licenciando em Letras-Francês; Ufal;
jafellipe20127@gmail.com.

Propomo-nos discutir o direito ao acesso à literatura e como a relação desta com o turismo pode
contribuir para a garantia desse direito. Assim, buscamos especificamente pensar o livro como
patrimônio, partindo da ideia de patrimônio como um conjunto de bens criados por uma
sociedade (IPHAN, 2012). Em nossas discussões, trazemos também as ideias de Candido (2004),
Victor Hugo (1832; 2002) e Lajolo e Zilberman (2019) para trabalhar questões como o acesso à
literatura. Os resultados obtidos nessas discussões iniciais nos mostram como o acesso ao livro
interfere na difusão deste como patrimônio. Concluímos que para o estabelecimento do direito
à literatura é necessário que se discuta sua intersecção com outras esferas da realidade que o
promovam.
Palavras–chave: Literatura; Turismo; Direito à literatura; Patrimônio; Cultura; Acesso.

In this article we discuss the right to access to Literature and how its relationship with tourism
can contribute to the guarantee of this right. Thus, we specifically seek to think of the book as
patrimony, based on the idea that Patrimony is a set of assets created by a community (IPHAN,
2012). In our discussions we also bring some ideas from Candido (2004), Victor Hugo (1832; 2002)
and Lajolo; Zilberman (2019) to work on issues such as access to Literature. The results of these
initial discussions show us how access to the book interferes in the diffusion of it as a patrimony.
We conclude that for the establishment of the right to Literature it is necessary to discuss its
intersection with others spheres of reality that promote it.
Keywords: Literature ; Tourism ; Right to Literature ; Patrimony ; Culture ; Access.

765
1 – Reflexões iniciais
Na modernidade tardia (HALL, 2006), o sentimento de identidade e de pertencimento a uma
cultura identitária local se choca com a homogeneização dessas culturas e identidades no
processo de globalização, assim como também com o surgimento de novas identidades e
culturas. Buscando fugir dessa homogeneização, vemos a criação de várias iniciativas, como a
do turismo cultural e sustentável, no qual a cultura identitária local é preservada e estimulada.
Entretanto, uma questão se impõe: como reforçar esse sentimento de pertencimento
identitário entre os indivíduos de uma comunidade para fomentar esse tipo turismo? É aqui que
encontramos o "nó" entre literatura e turismo. Nesse nó, a busca pela compreensão da
realidade sobre a totalidade da natureza e da sociedade faz com que os indivíduos somem
conhecimentos, dando, assim, espaço à integração entre as diferentes "esferas da realidade"
(BERGER; LUCKMANN, 2004, p. 37).
Assim, esses trânsitos entre literatura e turismo proporcionaram as discussões expostas neste
artigo, o qual encontra em "O direito à literatura", de Antonio Candido (2004), base para nossas
reflexões. Tais reflexões giram em torno da ideia de como o turismo cultural e sustentável pode
contribuir para que o direito de acesso à literatura alcance maior importância e notoriedade
entre as camadas sociais e se torne verdadeiramente sustentável, pois, como diz Candido (2004,
p. 173), "o valor de uma coisa depende em grande parte da necessidade relativa que temos
dela".
Dessa forma, extraídas do texto de Candido (2004), procuramos discutir ao longo deste trabalho
noções sobre patrimônio, função da literatura, cultura e seu acesso, em um diálogo constante
com a ideia de turismo cultural e sustentável. Nessa tessitura, nosso objetivo é compreender as
diferentes realidades por meio das relações entre essas duas áreas e como essa relação se
estabelece a partir do ponto de vista do acesso à literatura. Ou seja, neste texto procuramos
reforçar o nó que existe entre literatura e turismo e apresentar nossos primeiros resultados
tentando desatar o nó do acesso à literatura.

2 – O Nó: composição dos fios


Inicialmente, para discutir o acesso à literatura por meio do turismo, empreendemos uma
pesquisa que se apresenta em seus momentos iniciais e analisa os primeiros enlaces ao trabalhar
os conceitos implicados, por meio de levantamento bibliográfico e análises qualitativas. Dessa
forma, neste tópico, trazemos os conceitos fundamentais para nossa discussão, partindo do
texto que nos despertou para este nó: "O direito à literatura".

766
Publicado em 1988 por Antonio Candido, o ensaio "O direito à literatura", está contido no livro
Vários escritos (2004). Esse foi o primeiro fio que entrou em nosso nó, pois nos chamou a
atenção a forma como o crítico literário e sociólogo fragmenta a função da literatura:
Analisando-a [a literatura], podemos distinguir pelo menos três faces: 1) ela
é uma construção de objetos autônomos como estrutura e significado; (2) ela
é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão do mundo dos
indivíduos e dos grupos; (3) ela é uma forma de conhecimento, inclusive como
incorporação difusa e inconsciente (CANDIDO, 2004, p. 176).

Essas três faces da literatura serviram de base para nossas reflexões iniciais: enquanto
construção e objeto autônomo, a literatura pode, como ficção, representar aquilo que
consideramos nossa realidade e dialogar com ela. Como forma de expressão, ela pode fazer (e
faz) parte da construção daquilo que chamamos de identidade, individual, regional ou nacional.
Como forma de conhecimento, a literatura pode nos trazer um saber resgatável e que pode
ajudar a construir a identidade da qual ela é parte. Antonio Candido (2004) levanta essas
distinções para chegar em questões mais abrangentes, como uma definição de literatura que
não se restrinja somente àquilo que é publicado, mas também inclua o folclore e as demais
tradições orais, fundindo erudito e popular.
Seguindo por esse caminho, o crítico chega ao título de seu texto e traz somente na última
página a palavra "acesso". Antonio Candido (2004) chama a atenção exatamente para a
diferença entre o que se intitula cultura e quem de fato tem acesso a ela, ressaltando a
desigualdade que essa falta de acesso reitera:
Portanto, a luta pelos direitos humanos abrange a luta por um estado de
coisas em que todos possam ter acesso aos diferentes níveis da cultura. A
distinção entre cultura popular e cultura erudita não deve servir para justificar
e manter uma separação iníqua, como se do ponto de vista cultural a
sociedade fosse dividida em esferas incomunicáveis, dando lugar a dois tipos
incomunicáveis de fruidores. Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos
direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades
e em todos os níveis é um direito inalienável (CANDIDO, 2004, p. 191).

Dessa forma, ao atar as pontas, ligando o acesso à literatura e as suas faces definitórias,
formamos outro nó: como buscar possibilidades que nos levem a mudar essa realidade e
proporcionem um diálogo maior entre as manifestações culturais e os atores sociais,
reafirmando o acesso à literatura? Foi, então, que o nó se avolumou. Seria o turismo cultural e
sustentável uma forma de trabalhar a questão do acesso à literatura?
Ao buscar responder a essas questões, mais um fio passa a compor nosso nó: a tríade turismo,
cultura e sustentabilidade. Assim, nos próximos parágrafos, tentaremos nos posicionar dentro

767
desses conceitos para amarrarmos a forma como os três se juntam. Iniciamos pela cultura. Esse
termo é de difícil definição, sobretudo nas ciências sociológicas. Aqui, vamos partir da ideia dos
iluministas francês, para os quais, segundo Canedo (2009, n.p.), a cultura era a "soma dos
saberes acumulados e transmitidos pela humanidade [...] associada às ideias de progresso, de
evolução, de educação e de razão". Mais tarde, no século XIX, segundo Velho e Castro (1978), o
termo cultura passa a se associar a civilização, trazendo toda complexidade que este último
termo pode ter nas sociedades ocidentais. Desse modo, o turismo cultural partiria do princípio
de que o turista busca conhecer e visitar sítios que estejam intrinsecamente ligados aos saberes
(artístico, técnico, etc.) acumulados por uma sociedade. Em outras palavras, o turismo cultural
parte de um interesse explícito por tudo aquilo que é humano.
O termo turismo também se mostra amplo e complexo em sua definição diacrônica. Porém, para
este trabalho, concentramo-nos na definição de Grünewald (2003), o qual aponta que, de
maneira sintética, "turismo indica movimento de pessoas que não estão a trabalho em
contextos diferentes do de origem, seja este o lar, a cidade ou o país" (p. 141). O pesquisador
também salienta que no último século o turismo aumentou exponencialmente de importância
enquanto fenômeno social. Esse fato nos chama a atenção para o fato de que
consequentemente há mais oportunidades ligadas ao turismo e mais tipos de turismo surgem;
enquanto, por outro lado, aumenta também o risco de um turismo predatório e massificante. É
nesse ponto que se entrelaça aqui outro conceito: o de sustentabilidade.
Hanai (2012), ao resgatar as ideias do político espanhol Jiménez Herrero, lembra que:
A sustentabilidade, entendida como um conjunto de princípios funcionais dos
sistemas, permite definir um estilo de desenvolvimento sustentável como
uma opção social que inclui objetivos múltiplos, segundo determinadas
escalas de valores e contextos variáveis que vão transformando no tempo e
se retroalimentam permanentemente (HANAI, 2012, p. 204).

Partindo desses princípios, podemos concluir que essa prática é capaz de, no seu
desenvolvimento, suprir as necessidades atuais sem comprometer seus recursos para o futuro,
pois:
O desenvolvimento turístico sustentável é um processo de mudança
qualitativa, produto da vontade política que, com a participação
imprescindível da população local, adapta o marco institucional e legal, assim
como os instrumentos de planejamento e gestão, a um desenvolvimento
turístico baseado em um equilíbrio entre a preservação do patrimônio natural
e cultural, a viabilidade econômica do turismo e a equidade social do
desenvolvimento (REBOLLO; BAIDAL apud HANAI, 2012, p. 212).

768
Portanto, ao tentar juntar as pontas desse fio, temos o turismo cultural sustentável como uma
prática turística que busca uma participação da própria comunidade local em suas ações, ações
estas que se alimentam exatamente dos saberes, das tradições e da arte ligadas a essa
comunidade.

3 – Patrimônio, bens e literatura


Quando pensamos em turismo cultural, diversos outros pequenos ‘nós’ começam a surgir. Entre
eles estão os conceitos de Patrimônio e Bens Culturais.
Desde mesmo antes do surgimento da historiografia como ciência documental, o ser humano
sabe e registra como a evolução e a mudança do ser é inevitável, sejam elas biológicas, sejam
elas ideológicas. Essas mudanças tiveram contribuições significativas para chegarmos ao que
somos e temos hoje, mesmo que sua ocorrência tenha se dado de forma violenta. É o caso, por
exemplo, dos eventos ocorridos durante a Revolução Francesa (1789) e a Restauração da
Monarquia (1814). Além dos avanços surgidos durante esse momento histórico, como o
conceito moderno de república, a Declaração dos Direitos Universais do Homem, dentre outros,
outras mudanças e evoluções também foram provocadas pela queda de Luís XVI, Napoleão
Bonaparte e a Revolução de Julho de 1830.
Como consequência desses importantes acontecimentos históricos de caráter violento citados
acima, a cidade de Paris encontrava-se, também, enquanto conjunto urbanístico e
arquitetônico, violentada, pois as ações revolucionárias queriam destruir obras e monumentos
arquitetônicos que remetessem ao poder do Clero e da Monarquia Absolutista. Assim, nas
décadas de 1830 e 1840, a administração parisiense iniciou um processo de discussão sobre a
valorização e conservação de sua arquitetura, uma vez que tinham consciência de que esses
bens carregavam consigo um valor que ia além dos valores econômicos, um valor considerado
imensurável.
Nessa compreensão, a respeito da valorização e conservação dos bens arquitetônicos, nota-se
que o que estava em jogo era a história, cultura e identidade do povo francês que esses bens
contavam. História, essa, que unia seus cidadãos através de uma cultura coletivamente
partilhada por meio de um passado comum, com costumes, crenças, saberes e fazeres. E é nesse
momento de caos que surge a noção de Patrimônio, assim como sua conservação, vinculada à
noção de cidadania, impulsionada por diversas produções literárias, como o romance Notre-
Dame de Paris (HUGO, 2002), bem como produções de textos não-literários, mas que utilizam
da linguagem literária, que é o caso do manifesto Guerre aux Démolisseurs (HUGO, 1832).

769
Tais produções contribuíram para que as ideias de valorização, conservação e preservação dos
bens de "pedra e cal" (ANDRADE, 2015, p. 13), que constituíam o conjunto de patrimônio
histórico cultural construído, principalmente na Idade Média, começassem a ser disseminadas
e reconhecidas pelos próprios franceses. Assim, o receio de perder irreversivelmente algo muito
importante para a história daquele povo fez com que houvesse a possibilidade de modificar o
pensamento, o discurso e até mesmo o comportamento daqueles sujeitos, pois, como diz
Candido (2004, p. 171), “o temor é um dos caminhos para compreensão".
Na proporção em que se expandiam essas ideias e conceitos, a conquista de cada vez mais
espaço, importância, notoriedade e visibilidade entre as sociedades foi um marco muito
significativo para a humanidade, pois proporcionou a realização de ações, governamentais e
não-governamentais (como a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura
– Unesco – e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan), preocupadas com
a valorização, preservação e conservação dos bens criados e produzidos por um povo. Surge, aí,
um nó fundamental em nossas discussões atuais: será que todos os povos e comunidades são
objetos dessas mesmas preocupações? Infelizmente, nossa discussão restringe-se, neste
momento, às questões relativas ao acesso à literatura entre esferas de uma mesma sociedade.
Porém, a discussão do que é valorizado ou não como Patrimônio se mostra excepcionalmente
ampla e faz parte de um escopo muito maior, em que ainda há muito o que se discutir.
Logo, pode-se entender e definir que Patrimônio é um conjunto de bens criados por um povo.
Essa afirmação é reconhecida por meio do que diz o Iphan (2012, p. 69-78) quando explica que
"Patrimônio é tudo o que criamos, valorizamos e queremos preservar: são os monumentos e
obras de arte, e também as festas, músicas e danças, os folguedos e as comidas, os saberes,
fazeres e falares. Tudo enfim que produzimos com as mãos, as ideias e a fantasia". Assim, pode-
se considerar que Patrimônio compreende todas as produções e criações de natureza material
e imaterial – também reconhecidos por tangível e intangível –, desenvolvidas em uma sociedade
e que sofre modificações de acordo com a dinâmica e as necessidades de cada tempo, de cada
época, de cada cultura.
Dessa forma, legalmente, declara-se, segundo o artigo 216 da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988, que bens culturais essenciais materiais e imateriais são
constituídos por: "(a) as formas de expressão; (b) os modos de criar, fazer e viver; (c) as criações
científicas, artísticas e tecnológicas; (d) as obras, objetos, documentos, edificações e demais
espaços destinados às manifestações artístico-cultural; (e) conjunto urbano e sítios de valor
histórico, paisagístico, artísticos, arqueológicos, paleontológico, ecológico e científico" (BRASIL,

770
1988, n.p.). Para melhor entendimento e fácil reconhecimento, pode-se dizer que os bens de
natureza material são as paisagens naturais, monumentos arquitetônicos (edifícios), objetos,
documentos etc. Já os bens de natureza imaterial são aqueles relacionados aos saberes, às
habilidades, às crenças, às danças, às músicas, aos modos de falar, aos rituais e às festas, às
práticas, aos modos de ser das pessoas, etc. (IPHAN, 2012).
Partindo dessas noções sobre bens culturais, chegamos a algo mais específico: a literatura, cujo
seus produtos também fazem parte do conjunto de bens que compõem o patrimônio de uma
sociedade. E para fixarmos um conceito de literatura, retomamos Antonio Candido (2004, p.
174), que nos apresenta esse conceito de maneira direta, do qual compartilhamos:
Chamarei de literatura [...] todas as criações de toque poético, ficcional ou
dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura,
desde o que chamamos de folclore, lenda, chiste, até as formas mais
complexas e difíceis de produção escrita das grandes civilizações.

Ao analisarmos essa declaração, pode-se então considerar, conforme visto anteriormente, que
a literatura nada mais é que a exteriorização global das ideias e fantasias dos seres humanos. E
que, portanto, segundo Candido (2004, p. 175), se constitui como "uma necessidade universal,
que precisa ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito".

4 - Um nó difícil de desatar
Contudo, é de suma importância lembrar e ressaltar que um país como o Brasil, onde as
desigualdades sociais entre os indivíduos crescem, esse direito, como tantos outros, em muitos
dos casos, é negado.
Ao refletirmos sobre essa afirmação e observarmos a realidade que muitos dos brasileiros vivem
hoje, em meio a um cenário cheio de contradições, há uma parcela significativa desses que,
segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), não têm acesso, são
excluídos, privados ou até mesmo negados dos seus direitos, contribuindo assim para que as
desigualdades sociais só aumentem.
Analisando as taxas recentes do analfabetismo ainda existentes no Brasil, pode-se dizer que tais
níveis afetam de maneira direta a literatura, a qual está ligada ao acesso à leitura, ao letramento
e ao conhecimento da própria cultura.
Nesse sentido, algumas discussões, reflexões e críticas surgem em torno de como a desigualdade
social dificulta ou até mesmo nega o direito de acesso aos produtos literários, impossibilitando

771
o próprio indivíduo de conhecer/ler a própria literatura, os próprios escritores ou até mesmo de
(re) conhecer o próprio ser, a própria história, a própria realidade.
O Acesso à literatura: o livro
Ao adentrarmos nas discussões relativas ao acesso à literatura, temos como ponto de partida o
acesso à leitura ou mesmo ao livro. Já muito se discutiu sobre o início precário da imprensa
brasileira e, consequentemente, da produção de livros. Lajolo e Zilberman (2019) servem de
base para nossas reflexões e trazem apresentação detalhada de como a inexistência da
imprensa no Brasil e seu parco surgimento com a fuga da Família Real Portuguesa para o Rio de
Janeiro contribuíram com a precarização do acesso à literatura em nosso país.
Assim, alguns aspectos desse mirrado percurso nos chamam a atenção pelo fato de que as
causas da má formação dos nossos leitores não necessariamente se dão pelos acontecimentos
ocorridos no século XIX, durante o Primeiro Reinado, mas, sim, pela manutenção e repetição
dos mesmos processos e situações.
Assim, retomando Lajolo e Zilberman (2019) em sua A formação da leitura no Brasil, impossível
não pensar em algumas recorrências. A primeira delas é o predomínio da difusão de livros
didáticos em detrimento de obras literárias. Desde as primeiras prensas, por volta de 1811-13,
o livro didático tem sido privilegiado por incentivos governamentais, seja em sua produção, seja
em sua importação. É inegável que exista uma carência de livros didáticos e uma dificuldade de
distribuição em nossas escolas, porém, essa carência e dificuldade de distribuição é ainda maior
quando se analisa a situação do livro como artefato literário. Quando se acessa o site do BNDES,
em que esse banco apresenta os dados relativos à publicação de livros no Brasil no ano de 2015,
temos a comprovação de que as práticas estabelecidas no século XIX ainda predominam. Em
artigo de 27 de fevereiro de 2018, intitulado Dez curiosidades sobre o mercado de didáticos
brasileiro, podemos perceber que: 1) quase 50% de todos os livros (exemplares) vendidos em
2016 foram didáticos1; 2) dos mais de 200 milhões de livros didáticos produzidos naquele ano,
147 milhões foram vendidos por meio do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD); 3) dados
da Pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro (Fipe/USP) (PDF – 0,7 MB) mostram
ainda que do total de exemplares de livros didáticos vendidos em 2016, menos de 25% foram
destinados ao mercado (BNDES, 2018, n.p.).
Para Lajolo e Zilberman (2019, p. 161),

1
Observação: os livros técnicos não são considerados livros didáticos, o que potencializa a venda de
livros não-literários.

772
O livro didático, esse primo pobre, mas de ascendência nobre, é poderosa
fonte de conhecimento da história de uma nação, que, por intermédio de sua
trajetória de publicações e leituras, dá a entender que rumas seus
governantes escolheram para a educação, desenvolvimento e capacitação
intelectual e profissional dos habitantes de um país.

Explorando e controlando esse mercado, o governo mantém um amplo domínio sobre o que é
publicado nesses materiais. Além disso, o que vemos na imprensa jornalística é a ênfase sobre
qualquer aspecto desses livros que saia daquilo que se tem como convenção. Podemos nos
lembrar de algumas questões que fizeram a alegria de muitos jornais quando da publicação de
livros com questões que trabalhavam o preconceito linguístico, por exemplo.
Outro ponto interessante sobre o livro no Brasil, é que enquanto livro didático, ele está
estreitamente ligado aos sistemas de ensino estabelecidos. Assim, podemos perceber que ao
longo da história da educação em nosso país, pouco se valorizou a escola primária, ou ensino
fundamental, uma vez que as próprias instituições formais de ensino em nosso país só se
iniciaram com a chegada da Família Real em 1808 e pelo ensino superior. Segundo alguns críticos
contemporâneos de D. João VI, o incentivo à universidade veio da necessidade de proporcionar
aos "patrícios" uma instituição de ensino, uma vez que as universidades portuguesas, sobretudo
a de Coimbra, estavam fechadas devido à invasão napoleônica:
Incitativa bem-sucedida ou não, o fato é que essas escolas superiores
motivaram a introdução, de maneira sistemática, do livro didático no Brasil.
Configura-se, assim, o entrelaçamento do livro didático com a imprensa
(responsável pela produção), a escola (local de formação) e a leitura (ato de
consumo). No centro dessa triangulação está o leitor e, com ele, a história das
leituras, de que é simultaneamente sujeito e objeto (LAJOLO, ZILBERMAN,
2019, p. 175).

Por fim, as obras literárias acabam entrando em um ostracismo ou sendo vistas como leituras
proibidas, clandestinas. É só pensarmos em como o ensino Médio e o próprio Enem (Exame
Nacional do Ensino Médio) enxergam a literatura, assim como as demais artes, e como as escolas
e colégios investem em livros didáticos que formarão o futuro universitário: um cidadão apto a
responder um exame, mas sem o hábito da leitura ou sem espírito crítico.
Literatura e turismo: o exemplo Amadiano
Para que não haja esse apagamento da história, viu-se no turismo cultural e sustentável a
possibilidade de fazer com que esse esquecimento não aconteça, pois, assim como a literatura,
o turismo através de suas políticas de preservação dos bens materiais e imateriais consolida

773
ambientes onde o passado e o presente coexistem simultaneamente. Segundo Viñal, Otero,
Jesus e Lopes. (2019, p. 52), “Este tipo de turismo é explorado com êxito em várias partes do
mundo, no entanto, no Brasil sua prática ainda não é muito conhecida”. Os pesquisadores
reforçam que essa prática ganha cada vez mais espaço e citam exatamente o caso do turismo
literário em torno da obra do escritor Jorge Amado (1912-2001), na cidade de Salvador, como
um exemplo. Esse caso trata especificamente da organização turística que surgiu entorno da
Casa do Rio Vermelho, antiga moradia do escritor na capital baiana.
Porém, o empenho em torno do turismo literário de Jorge Amado se expande até a região natal:
a zona cacaueira do sul da Bahia. Juliana Menezes (2008), em seu trabalho intitulado Quarteirão
Jorge Amado – literatura, cultura e turismo sustentável na cidade de Ilhéus, BA, nos mostra a
articulação entre turismo cultural e literatura, pois ambas influenciam e são influenciadas pela
produção literária de Amado. A pesquisadora salienta que o turista que busca reconhecer nas
ruas de Ilhéus espaços e personagens amadianos contribui para a preservação do patrimônio
histórico-cultural da cidade e complementa que esse interesse é potencializado pelo poder
público, com ações para acolhimento e preservação.
Um ponto negativo abordado por Monteiro (2008, p. 2) é que “[...] tem-se observado que parte
da comunidade local mal sabe localizar o Quarteirão e quase não conhece as histórias contadas
por Jorge Amado, muito menos o seu valor cultural, social e histórico”. É nesse ponto que
acreditamos que a literatura e o turismo cultural sustentável se enlaçam e entrelaçam: as ações
de preservação do patrimônio devem se voltar também para a preservação do patrimônio
imaterial. Com essas ações, preserva-se o patrimônio, garante-se o acesso à literatura e,
consequentemente, sua identificação com uma comunidade. Essa identificação fortalece não só
a relação da comunidade com a literatura escrita, mas também pode proporcionar o
fortalecimento de outras tradições.

5 - Conclusões
Assim, seguindo esses fios que constituem os nós entre literatura e turismo, podemos concluir
que uma das principais dificuldades, além do próprio conceito circunscrito que literatura pode
ter (CANDIDO, 2004), é a forma como acessamos nossa literatura e como a enxergamos. Talvez
por conta dessa definição restritiva, amiúde os sujeitos são levados a um não reconhecimento
dessa identidade comunitária ou nacional, que provoca seu apagamento. Assim, para contornar
esse estado de coisas, a função do turismo, cultural e sustentável, é trazer para as comunidades,
tendo a valorização econômica e social como estímulos, uma valorização cultural e identitária.

774
O caso da obra de Jorge Amado e como ela serve de impulsão, ao mesmo tempo, para o turismo
e para a valorização da cultura de uma comunidade é um exemplo de como esse tipo de nó pode
trazer melhorias do ponto de vista social. Assim, acreditamos que em nosso estado de Alagoas
projetos como o Turismo do Saber (Secretaria Municipal Turismo, Esporte e Lazer de Maceió-
AL) e a Escola do Circo (Secretaria de Educação de Arapiraca-AL) têm um potencial de valorização
da cultura local e da identidade ligada a essa cultura a ponto de combater diretamente a
precariedade do acesso à literatura.

Referências

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https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/conhecimento/noticias/noticia/livro-
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GRÜNEWALD, Rodrigo de Azeredo. “Turismo e etnicidade”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v.


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775
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para saber mais. Texto e revisão de Natália Guerra Brayner. 3ª. ed. Brasília: Iphan, 2012. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/cartilha_1__parasabermais_web.pdf. Acesso em: 18mar.
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“Proposta de roteiro de turismo literário em Salvador-Bahia (Brasil) com base na obra de Jorge Amado
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51-70. Disponível em: https://doi.org/10.17979/rotur.2019.13.1.4001. Acesso em: 18 mar. 20

776
MACEIÓ DA COCÓ DA PESTE: a capital alagoana traduzida no movimento hip hop
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Suzany Marihá Ferreira Feitoza


Designer pela FAUD/UFAL; Mestranda DEHA/PPGAU/UFAL;
suh.mariha@gmail.com.

Maria Victória Silvestre de Souza Bezerra


Arquiteta e Urbanista pela FAUD/UFAL; Mestranda DEHA/PPGAU/UFAL;
mavisilvestre@gmail.com.

Igor Sousa Peixoto


Músico, Arquiteto e Urbanista pela FAUD/UFAL; Mestrando DEHA/PPGAU/UFAL;
igorsou@hotmail.com.

Maceió – Alagoas, tem sua imagem midiatizada principalmente por sua orla marítima e seus
bairros nobres, geralmente produzida por campanhas publicitárias que reduzem a cidade a uma
narrativa elitizada e homogênea, ao mesmo tempo em que grupos sociais menos privilegiados
acabam sendo silenciados. Nesse cenário, movimentos culturais como o hip hop se organizam
em forma de resistência, trazendo representatividade a esses sujeitos. A partir disso, a produção
audiovisual “Cocó da Peste” – do grupo Reles no Rules – foi analisada através de sua letra,
musicalidade e imagem, relacionando-as com o espaço urbano vivenciado por esses indivíduos.
Nessa perspectiva, o rap pode contribuir para uma melhor compreensão da urbe
contemporânea, entrevendo novas possibilidades de abordagem e interpretações de Maceió.
Palavras-chave: Hip-hop; Cidade e contemporaneidade; Imagem; Cultura marginal; Narrativa
visual e sonora.

Maceió - Alagoas, has its image mediatized mainly by the its seashore and noble neighborhoods.
This image is usually produced by advertising campaigns that reduce the city to an elite and
homogeneous narrative, at the same time that less privileged social groups end up being
excluded. In that context, cultural movements such as hip hop are organized in the form of
resistance, bringing representativeness to these subjects. Based on that, the audiovisual
production “Cocó da Peste” - by the group Reles no Rules - was analyzed through its lyrics,
musicality and image, relating them to the urban space experienced by these individuals.
Therefore, rap can contribute to a better understanding of the contemporary city, revealing new
possibilities for Maceió interpretations.
Keywords: Hip-hop; City and contemporaneity; Image; Marginal culture; Sound and visual
narrative.

777
1 - Introdução
O hip hop, movimento cultural originado dos guetos de Nova Iorque na década de 1970, surge como
resposta cultural dos jovens de periferia perante a desigualdade do modelo econômico-político
estadunidense em vigência, trazendo denúncias às injustiças e às difíceis condições de vida do povo
marginalizado (EBLE, 2015). Como movimento, se caracteriza por seus múltiplos aspectos culturais,
fundamentados, essencialmente, em quatro pilares: 1) DJ (disc jockey) – música; 2) Rap – poesia; 3)
Breakdance – dança; e 4) Graffiti – escritas/desenhos. Apesar de suas transversalidades, dentro da
história do hip hop, esses elementos possuem características específicas, dotadas de complexidades e
significados que acionam espaços e cenografias, numa ação que agrega potenciais estéticos passíveis
de evocar as multidimensões do espaço urbano.
Essas manifestações podem ser compreendidas como uma busca de escapar da subjetividade que nos
é imposta, utilizando a linguagem artística como forma de afirmação da sua individualidade e para a
concepção de uma noção de pertencimento desses grupos à sociedade. Como explica Bauman (2005),
a identidade está ligada ao pertencimento provisório, de maneira que o sujeito se entende como
inseguro, dividido e perdido dentro da pós-modernidade. Desse cenário resulta o nascimento dos
“movimentos comunitários culturais identitários”, que os acolhem e se tornam refúgio diante de
mudanças sociais incertas (GOIZ, 2016).
Por volta dos anos 1980, o hip hop se alastra por todo o mundo, através dos meios de comunicação e
fluxos migratórios. Nesse processo, seu repertório simbólico foi incorporado e adaptado à realidade
social de cada região em que se infiltrava, inclusive nas periferias brasileiras – com suas
particularidades sociais, culturais, políticas e econômicas (BARROSO, 2019).
Maceió, capital do estado de Alagoas, é marcada por um histórico de dominação política das elites
econômicas rurais e uma forte atuação de uma aristocracia escravagista que culminou em
precariedades responsáveis por altos índices de criminalidade, violência e desigualdade social
(BARROSO, 2019). Ao mesmo tempo, esta cidade vem passando por um processo de reconhecimento
turístico nacional, sendo vendida midiaticamente através de uma imagem idealizada com o intuito de
agradar as necessidades de uma clientela virtual e genérica. Em breve pesquisa na internet, é possível
observar que a paisagem divulgada de Maceió se restringe, quase exclusivamente, à sua orla marítima,
funcionando, de certa forma, como um cartão postal oficial por onde a capital se divulga ao mesmo
tempo em que se restringe, pois prioriza um curto pedaço de sua malha urbana (PEIXOTO, 2016).
Dessa forma, são produzidos lugares desiguais que adquirem um caráter hostil às suas camadas
marginalizadas e periféricas, que muitas vezes fazem uso de manifestações artísticas e culturais como
ferramenta de combate a essa cidade antidemocrática. Dessa forma, essas parcelas sociais buscam

778
expressar sua vivencia dentro da cidade idealizada e, consequentemente, afirmar sua posição dentro
desses espaços urbanos que segregam e os afastam (MARICATO, 2017).
Nesse sentido, considerando as representatividades do hip hop e o contexto no qual Maceió está
inserida, pretende-se analisar a produção audiovisual da música “Cocó da Peste”1 do grupo Reles no
Rules, observando como a música e a imagem apresentada no videoclipe se relacionam com o espaço
urbano da capital alagoana.

2 - A música como narrativa


Compreendendo a música como expressão cultural de diferentes grupamentos sociais, podemos
acessar distintas narrativas permeadas por múltiplas subjetividades, capazes de apreender diferentes
interpretações das dinâmicas espaciais. Desta forma, ao ouvir uma canção também pode se "ouvir”
territórios, na medida em que determinadas características musicais – como voz, melodia, harmonia,
escalas e ritmos – revelam referências sonoras que podem expressar determinado contexto social e/ou
político, dando indícios da influência do espaço urbano no processo de produção artística e nos
mostrando como a música pode reproduzir marcas sonoras de uma determinada paisagem geográfica
e social.
Para Frith (1998), a música pode ser interpretada como um processo comunicativo que nos envolve,
descreve e/ou encena um cenário:
Podemos nos recusar a se envolver, ler a letra como uma conversa escutada entre
outras pessoas, considerar o discurso relatado, colocar uma citação ou marcas em
torno dele. Ou podemos ler como se falássemos, nos tornássemos o "eu" (FRITH,
1998, p.183-184).

Nesse sentido, entende-se a música como uma ação comunicativa, na qual a subjetividade do “eu” do
narrador se encontra com a subjetividade do “ouvinte”, que interpreta à sua maneira a construção
sonora que lhe está sendo transmitida – podendo vir a contrastar ou harmonizar com a mensagem
inicialmente formulada. A relação que a arte incita, entre a sua propagação e percepção, é sempre de
múltiplo, volátil e infindo entendimento.
Inicialmente, assumindo o rap como um canal aberto de comunicação, tentaremos identificar a
narrativa textual relatada na letra impressa, como também pensaremos a música enquanto narrativa
sonora através da sua composição “instrumental” – interpretando a ambiência rítmica e harmônica
construída.

1
Videoclipe e letra da música disponível em <https://youtu.be/6U2BF9MEVn4>

779
Entendemos que o discurso apresentado na música “Cocó da Peste” se refere à cidade vivenciada pelos
integrantes do grupo Reles no Rules, o que enfatiza o contexto social no qual o rap está inserido:
Acendo uma ponta e lembro das mil contas pra pagar
Lembro, também, que a correria da vida é quase pagar pra respirar
Quem pode bancar, paga mesmo, paga sem pestanejar
Muitas vezes só pra dizer que tem, e que pode pagar de pah
Até quem não pode pagar, quer poder chegar e pah!.
(RELES NO RULES, 2020)

No trecho acima, constatamos a percepção do tempo como mercadoria. O tempo passa a subjugar a
força de trabalho ao capital em decorrência dos eficientes dispositivos de controle da sociedade
capitalista atual – dentre eles, os processos midiáticos das tecnologias da informação e da
comunicação –, atribuindo uma dimensão genérica aos corpos e às cidades.
Também é possível fazer uma aproximação interpretativa entre a necessidade de consumir, que o
interlocutor relata no trecho, com os pensamentos que Bauman (2007) aborda sobre o papel do
consumo na elaboração do sentimento de pertencimento no indivíduo, dentro das sociedades atuais.
Segundo o autor, fazemos parte de uma sociedade de consumidores, onde novas necessidades são
formuladas continuamente, incentivando o sujeito a adquirir novas mercadorias para se enquadrar
dentro do padrão estabelecido pelo mercado, e assim, sentir-se parte do corpo social em que vive.
Transforma-se, desse modo, o próprio indivíduo em um ser “produtizado”, cujo ato de consumir a
qualquer custo pode ser lido como uma busca por se tornar "adequado" à comunidade e assim ser
inserido na mesma.
Dessa forma, tal estrutura produz páreas. Grupos que são afastados do todo por não terem poder
aquisitivo para praticar o consumo, e não consumindo são impedidos da condição de existência
idealizada nesse contexto, tornando-se marginais (BAUMAN, 2007).
Considerando a letra impressa como discurso relatado, percebemos que a “voz” da música
compreende a implicação da relação tempo/trabalho em consequência da aceitação e submissão dos
corpos dentro da sociedade do consumo:
O motor movido à dúvida trabalha condenado,
Na mente um manual de violência, problemático e tendências a várias e sérias
consequências.
Correndo pois o tempo come até o que a maresia dispensa.
(RELES NO RULES, 2020)

Tais dispositivos de controle pressupõem a distribuição da espécie humana em grupos, a subdivisão


da população em subgrupos e o estabelecimento de uma cesura biológica entre uns e outros. Nesse
contexto, a “raça” (ou, na verdade, o racismo) é instrumento crucial para o exercício do biopoder –

780
afinal de contas, mais do que o pensamento de classe, a raça foi a sombra sempre presente sobre o
pensamento e a prática das políticas do Ocidente. Na economia do biopoder a função do racismo é
regular a distribuição de morte e tornar possível as funções assassinas do Estado (MBEMBE, 2016).
Nesse cenário, as tensões e conflitos decorrentes da crescente desigualdade e exclusão social
acarretam na percepção da existência do outro como um atentado à minha vida, na qual a segregação
socioespacial é justificada a partir do discurso do crescimento da violência urbana. Portanto, a política
do biopoder é responsável por definir quem importa e quem não, classificando as classes mais pobres
como “perigosas”:
Ter liberdade de ir e vir, entrar em qualquer lugar
Sem que o segurança, um bolsominion de quebrada, capacho do algoz
Criminalize minha cor, minha roupa e o estilo de fazer valer minha voz.
(RELES NO RULES, 2020)

Em Maceió, é possível dizer que a segregação espacial se intensifica a partir do loteamento e


investimentos em turismo iniciado nos anos 1960, nos arredores da orla marítima – que contribuiu
para a valorização dos bairros da Ponta Verde e Pajuçara – e através dos planos de moradias que
contemplaram a parte alta da capital, mais distante do centro, com os conjuntos habitacionais
populares e os condomínios de luxo como Aldebaran e Jardim Petrópolis. Isso ocorreu, paralelamente,
com medidas de desalojamento e realocação de ocupações irregulares em várias áreas da cidade
(BARROSO, 2019).
Como consequência desse processo, os conjuntos habitacionais fisicamente afastados do centro e as
ocupações irregulares pulverizadas por todo o território – principalmente nas encostas das grotas2 e
nas margens da Lagoa Mundaú, devido às características geomorfológicas de Maceió – passam a ser
estigmatizadas como áreas com altos índices de pobreza urbana, geralmente associada à criminalidade
e ao tráfico de drogas. Nesse cenário de complexas definições e indefinições identitárias, os jovens de
periferia passam a ser estereotipados em razão da sua cor, poder aquisitivo e aparência – sendo
julgados como "vagabundos" e sofrendo grande repressão policial. Desta forma, esse sujeito encontra
no rap uma forma de se expressar livremente:
Paciência de quem junta alumínio
Respeito já não tenho o mínimo
A frustração depois de um tempo é caso clínico
Tomando ódio e derramando amor
(RELES NO RULES, 2020)

2
Em um sentido geográfico e social, entende-se como grotas os vales estreitos que se formam nos tabuleiros, a
partir das ocupações de comunidades fragilizadas que se estabelecem nesses locais.

781
Por último, a construção sonora remete a uma sequência rítmica contínua, formada por uma batida
sólida e frequente que perpassa todo o trajeto que a música percorre – aludindo a um cotidiano
repetitivo, cíclico, massante. Instrumentos de sopro aparecem de forma permanente por toda a
sessão, fazendo referência aos sons de buzina que ilustram o meio urbano conturbado e caótico onde
a cidade se insere. Além disso, as buzinas soam uma única nota, expressa em uníssono, que traz uma
experiência de constante tensão, sentimento frequente no dia a dia da população marginalizada
retratada. Há momentos nos quais sons se sobressaem inesperadamente ao que está sendo ouvido,
funcionando como "ataques" dentro da atmosfera sonora que vem sendo construída, anunciando
instantes de clímax na inquietação que ali está sendo representada.
O mundo é uma cocó da peste
Não se engane, desde o começo o fim ta perto
É que algumas coisas nunca mudam, fique esperto
Se não acompanhar, o mesmo erro se repete
(RELES NO RULES, 2020)

3 - A imagem como narrativa


Há de se considerar o caráter explicitamente representativo da imagem, visto que ela – fotografia ou
filme – sempre formula sua narrativa a partir de escolhas: do que se mostra e, também, do que se
omite da cena. São recortes que transmitem sua mensagem através do diálogo interpretativo que se
desenvolve entre três pontos: a imagem, o objeto (de onde se constrói uma visão) e seu sujeito (que
constrói sua visão) – sendo esta relação produzida sempre a partir da necessidade estrutural da
posição, do sentido e contexto que cada personagem traz ao confronto. Entende-se a importância de
ter essa consciência ao realizar uma análise imagética (DIDI-HUBERMAN, 2018).
Deve-se, portanto, reconhecer a essência inquietante que uma imagem concentra. Visto que se forma
através da visão do autor sobre determinada realidade, mas necessita da interpretação do observador
para "concluir" sua função narrativa – a imagem é sempre "viva", livre, indomada.
Assumindo tal caráter representativo, o videoclipe – técnica midiática de recortar imagens e fazer
colagens em forma de narrativa em vídeo – surge como ferramenta mercadológica para a venda da
música e conceito do artista, ajudando a compor a identidade visual que ele deseja ser relacionado em
determinado momento da sua carreira. O videoclipe serve como uma extensão da obra sonora
(CORRÊA, 2007).
De início, podemos analisar a escolha pelo preto e branco, que promove um contraste com a imagem
geralmente divulgada da cidade – cujo apelo visual é enfatizado pelo colorido de sua orla marítima e
pelos tons azuis e verdes de suas praias. Entende-se que a fotografia utilizada no videoclipe, nesse
formato monocromático, é capaz de traduzir significados além das cores reais do objeto, fazendo com

782
que o observador tenha diferentes enfoques e sentimentos durante a experiência – que se torna mais
objetiva sem a distração ocasionada por sua paisagem de aquarela3.
[...] Com o preto e branco e todas as gamas de cinza [...] posso me concentrar na
densidade das pessoas, suas atitudes, seus olhares, sem que estes sejam parasitados
pela cor. Sei muito bem que a realidade não é assim. Mas quando contemplamos
uma imagem em preto e branco, ela penetra em nós, nós a digerimos
inconscientemente, a colorimos (SALGADO, 2014, p. 128).

Além do preto e branco, com exceção da capa do videoclipe, todos os frames são separados ao meio,
mostrando sempre dois pontos de vista da imagem captada – funcionando como uma alusão à
experiência desse indivíduo na cidade, onde o sujeito percebe o espaço ao mesmo tempo em que é
“vigiado” dentro dele.
O clipe apresenta, ainda, outro ponto comum em sua sequência de enquadramentos, o movimento.
Gravado quase inteiramente dentro do VLT, sistema de transporte que liga Maceió à Satuba e Rio
Largo, e que tem média de 11 mil passageiros por dia, segundo a Companhia Brasileira de Trens
Urbanos (CBTU). É através da visão da janela de um local de passagem, um não-lugar (AUGÉ, 1992),
por onde mais de 10.000 pessoas – sem contabilizar os usuários das linhas de ônibus – enxergam a
cidade diariamente, sempre em movimentação.
O próprio percurso do VLT é bem representativo dentro de Maceió. São mais de 32 km de vias que
passam pelos bairros de Rio Novo, Fernão Velho, Bebedouro, Mutange, Bom Parto, Levada, Centro e
Jaraguá, quase todos eles situados às margens geográficas – que são também sociais – da Lagoa
Mundaú. Esses locais apresentam a maior concentração de enchentes e inundações da capital e
recebe pouca atenção do poder público, bem diferente da paisagem midiática da orla marítima da
cidade (MELO, 2010). É importante destacar que três desses bairros (Bebedouro, Mutange e Bom
Parto) encontram-se atualmente em processo de desocupação – em decorrência do afundamento
ocasionado pela ação mineradora da Braskem – junto ao Pinheiro, bairro de classe média que acaba
recebendo maior destaque nos meios de comunicação.
A Maceió aqui enquadrada é a dos riachos poluídos, dos vidros quebrados e da pichação – outro
elemento do hip hop de grande representação na periferia da cidade.

3
Em referência ao termo utilizado por Lúcio Costa em sua carta escrita ao visitar Maceió, em 1926, e
posteriormente compilada em seu livro “Registros de uma vivência” (COSTA, 1995).

783
Figura 01: Fotomontagem 1.

Fonte: RELES NO RULES, 2020.

Além do pixo4, o break também aparece nas imagens. A dança teve como plateia os passageiros do
trem, e a fotografia do clipe a contrapõe com imagens dessa cidade desprezada. Há uma placa de
proibição de armas que está apontada para o dançarino através do recurso da divisão de telas, uma
cena cheia de simbolismo e impacto, pois sabemos que, na prática, é a população negra e periférica
que mais sofre e morre precocemente por violência armada. A cena faz uma representação da
realidade onde esse indivíduo, que tenta expressar sua voz por meio da dança, é visto com
preconceito por sua cor e condição social, sofrendo uma desconfiança que o julga como “bandido”
dentro do espaço público.

4
A escrita fora das normas gramaticais é utilizada pelos participantes do movimento como forma de
transgressão.

784
Figura 02: Frame do videoclipe.

Fonte: RELES NO RULES, 2020.

Os personagens também são diferentes dos exibidos nos anúncios da cidade, onde todos aparentam
estar despreocupados e tranquilos aproveitando os potenciais turísticos da cidade litorânea. No dia
a dia os moradores trabalham, estudam, passam horas no transporte público e ainda precisam lidar
com as deficiências dos serviços, moradias precárias e um sistema excludente e desigual que dificulta
suas vidas enquanto facilita às da elite.
Figura 03: Fotomontagem 2.

Fonte: RELES NO RULES, 2020.

4 - A cidade registrada
Após contextualizar o videoclipe dentro das particularidades urbanas de Maceió, percebeu-se que a
cidade apresentada dentro da música e da imagem se difere das exibidas constantemente pelos
comerciais turísticos, onde o apelo imagético é marcado principalmente pela orla marítima e pela
homogeneidade dos seus espaços.

785
A apreensão urbana através desta produção audiovisual permitiu enxergarmos uma cidade silenciada,
fruto de um processo de segregação espacial na qual seus trabalhadores têm seu tempo consumido
em razão dos interesses neoliberais. O que se vê nesta cidade – emoldurada pela janela do transporte
público – são os tons de cinza do asfalto e do concreto que constroem o ambiente de labuta em que
sua população sobrevive, com semblantes marcados pelo sol do dia a dia, que persegue uma vida
repleta de suor, e condenada pelas imposições, exclusões e restrições que a cidade os oferece. O que
se vê é o espaço urbano esquecido, que o holofote publicitário ignora e cuja foto não se retrata.
Dialogando com questões sociais, políticas, econômicas e culturais, “Cocó da Peste” se insere nas
problemáticas urbanas por meio de um debate territorial, utilizando a linguagem artística como
expressão de sua realidade e fazendo uso da sua voz como forma de reapropriação de um lugar
formalmente controlado pelos poucos que detém os meios de produção. Dessa forma, a música e o
clipe funcionam como afirmação da identidade desse grupo social, devolvendo a esse sujeito um
sentimento de pertencimento ao espaço que, diariamente, é retirado.
Nessa perspectiva, o rap contribui para uma melhor compreensão das multidimensões da cidade
contemporânea, entrevendo novas possibilidades de abordagem do espaço urbano que não seriam
perceptíveis se vistas, apenas, a partir da imagem midiatizada de Maceió. Acreditamos, então, que a
prática de interpretar diferentes manifestações culturais, estimula o olhar crítico sobre as diversas
percepções que a cidade evoca, exercício necessário ao ofício dos que estudam as dinâmicas do espaço
habitado.

Referências
AUGÉ, M. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Tradução de Maria Lúcia Pereira.
Campinas: Papirus, 1994.

BARROSO, I. S. Entre as ruas e as mídias: das redes de hip hop aos circuitos de batalhas de rimas alagoanos /
Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal de Alagoas. Instituto de Ciências Sociais.
Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Maceió, 2019.

BAUMAN, Z. Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

BAUMAN, Z. Vida para consumo. 1ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

CBTU. Companhia Brasileira de Trens Urbanos. Disponível em:


<https://www.cbtu.gov.br/index.php/pt/sistemas-cbtu/maceio>. Acesso em 03 de outubro de 2020.

CORRÊA, L. J. A. Breve história do videoclipe. In: VIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da
Região Centro-Oeste. Cuiabá, 2007, s/p. Disponível em:
<http://www.intercom.org.br/papers/regionais/centrooeste2007/resumos/R0058-1.pdf> Acesso em: 17 de
setembro de 2020.

COSTA, L. Registro de uma Vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995.

786
DIDI-HUBERMAN, G. Olhos livres da história. In: Revista Ícone. Recife, 2018, p. 161-172.

EBLE, T. A.; LAMAR, A. R. A literatura marginal/periférica: cultura híbrida, contra-hegemônica e a identidade


cultural periférica. In: Especiaria - Cadernos de Ciências Humanas. Ilhéus, 2015, p. 193-212.

FRITH, S. Performing Rites: on the value of popular music. Cambridge: Harvard University Press, 1998.

GOIZ, J. de A. Identidade Marginal: Processos culturais na periferia. In: Revista Convergência Crítica. Niterói,
2016, p. 41-54. Disponível em: <https://periodicos.uff.br/convergenciacritica/article/view/36510/21112>.
Acesso em: 29 de setembro de 2020.

MARICATO, E. Melancolia na desigualdade urbana. Café Filosófico, 2017. Disponível em


<www.youtube.com/watch?v=85DwL_ZIEew>. Acesso em: 18 de setembro de 2020

MBEMBE, A. Necropolítica. In: Arte & Ensaios. Rio de Janeiro, 2016, p. 122-151.

MELO, T. S. A localização dos pobres nas cidades brasileiras: um estudo sobre a situação dos assentamentos
humanos às margens da Lagoa Mundaú / Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade
Federal de Alagoas. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo. Maceió, 2010. Disponível em: <http://www.repositorio.ufal.br/handle/riufal/710>. Acesso em 03
de outubro de 2020.

PEIXOTO, I. Memórias sobre um cartão postal: um estudo sobre a formação da imagem do bairro da Ponta
Verde / Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Federal de
Alagoas. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Maceió, 2016.

RELES NO RULES. Cocó da Peste. Maceió: 2020. Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=6U2BF9MEVn4>. Acesso em: 05 de setembro de 2020.

SALGADO, S. Da minha terra à Terra. Tradução Julia da Rosa Simões. 1ª ed. São Paulo: Paralela, 2014.

787
NO PORTAL DA ETERNIDADE: um olhar sob o horizonte de Van Gogh
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Gabryelle Gois Lopes


Graduanda em Letras; Universidade Federal de Sergipe;
gabygois35@hotmail.com

Fernando de Mendonça
Doutor em Letras (UFPE); Professor da Universidade Federal de Sergipe
(DELI / PPGL / PPGCINE); nandodijesus@gmail.com

O presente trabalho propõe uma leitura da relação entre as telas de Vincent Van Gogh e as paisagens
contidas na cinebiografia No Portal da Eternidade (Julian Schnabel, 2018), buscando uma reflexão
direta sobre o ato criativo do pintor e a sua concepção contemplativa de mundo. Com base em teorias
da paisagem, na pintura (CAUQUELIN, 2007) e no cinema (AUMONT, 2004), assim como em aspectos
biográfico do pintor (NAIFEH; SMITH, 2012), constata-se a recorrência do artista no audiovisual
contemporâneo, pela sua força dramática e os inesgotáveis efeitos de sua obra pictórica, aqui
observada na relação entre a vida e a morte, a exemplo das séries de Girassóis.
Palavras-chave: Cinema e pintura. Paisagem pictórica. Vincent Van Gogh. Processo criativo.

The present article proposes a reading of the relation between Vincent Van Gogh's canvases and the
landscapes contained in the film biography At Eternity’s Gate (Julian Schnabel, 2018), seeking a direct
reflection on the painter's creative act and his contemplative conception of the world. Based on theories
of landscape, of the painting (CAUQUELIN, 2007) and the cinema (AUMONT, 2004), as well as
biographical aspects of the painter (NAIFEH; SMITH, 2012), the artist's recurrence in contemporary
audiovisual is verified, by his dramatic strength and the inexhaustible effects of his pictorial work,
observed here in the relation between life and death, like the series of Sunflowers.
Keywords: Cinema and painting. Pictorial landscape. Vincent Van Gogh. Creative process.

788
1 - Introdução
Pintura e paisagem são elementos que se encontram diretamente ligados, não apenas por uma
questão de origem ou ontologia estética, mas por uma necessidade humana de olhar e
perspectiva. Nós vemos em perspectiva, vemos em quadros, a pintura depende disso, ela
projeta diante de nós um plano, uma forma, a qual se cola à percepção (CAUQUELIN, 2007).
Buscamos aqui refletir algumas considerações sobre a composição da paisagem na cinebiografia
No Portal da Eternidade (Julian Schnabel, 2018), observando o processo criativo e a relação de
Vincent Van Gogh (1853-1890) com a natureza. A consciência contemplativa do pintor é
responsável pela transformação da paisagem natural em tela pictórica, enquadrando-a e
modificando-a de acordo com os princípios das artes plásticas, posteriormente ampliados pela
linguagem cinematográfica, como teoriza Jacques Aumont, em O Olho Interminável (2004).
Diante disso, como podemos entender o processo de criação de Van Gogh perante uma visão
natural de cores e luz?
Em uma das célebres Cartas a Théo (1914), como vemos retratado em um diálogo do filme, o
pintor holandês afirma: “Quando me deparo com uma imagem plana não vejo mais nada além
da eternidade. Sou o único a ver?”. Nesse sentido, verificamos como o filme em questão
representa o pintor e sua obra, explorando a relação de Van Gogh com a natureza, abordada em
muitos de seus quadros. Vincent acreditava no horizonte e na luz do sol como inspirações para
o seu processo artístico, o que fica muito claro em obras como O Semeador e A Colheita (ambas
de 1888), e Campo de Trigos com Corvos (1890), uma de suas mais famosas telas; retratadas no
filme de Schnabel durante seu processo de elaboração. Sendo assim, buscamos interpretar
como as diversas paisagens apresentadas no filme se relacionam com a obra artística, assim
como a vida sentimental e pessoal de Van Gogh. Como a relação do artista com a natureza se
modificava a ponto de transmitir, em suas paisagens, a beleza e inconstância presentes em seu
coração?

2 – O Estado Contemplativo do Artista


O surgimento da perspectiva nas artes visuais é um dos maiores sintomas da transformação que
o homem sofreu a partir do momento em que se reconheceu como um ser solitário,
consequentemente, assumindo uma condição moderna de existir no mundo. A ambiguidade da
técnica largamente aplicada pelos renascentistas evidenciou a condição natural do homem de
determinar o seu lugar no espaço a partir de um ponto de vista particular, individual. A
percepção visual de um ambiente, numa tela baseada por esse princípio de composição

789
pictórica, deu ao homem a possibilidade de ver com seus próprios olhos, estabelecendo a
subjetividade do seu ponto de referência como a melhor medida de apreensão do mundo
objetivo, capaz de restituir neste, uma impressão de totalidade, pelo reconhecimento de que na
limitação do olhar também reside a consciência de um sujeito.
Com ela o mundo foi descoberto em sua aparência. Novas dimensões ressaltaram a
transformação do mundo e revelaram que o estatuto de ‘verdade’ da Antiguidade também
significava uma ilusão, no tempo e no espaço das artes. Como argumentaria Panofsky em seu
definitivo ensaio de 1925, A Perspectiva Como Forma Simbólica, a visão perspectiva condicionou
uma espécie de abertura no território da visão, tornando a experiência imediata do espectador
um verdadeiro milagre realizado pelo efeito estético. O desconhecimento do ‘ponto de fuga’
pelos antigos e medievais, restringia o ‘milagre’ à obra e sua ideologia impregnada, posição
completamente deslocada diante do novo homem que se entrega à criação ou apreensão da
obra com um olhar próprio, subjetivo, restituidor de seu lugar no mundo.
Tal revolução do olhar também acompanhou as transformações na expressão paisagística das
artes plásticas. A harmonia entre os elementos que compõem a natureza faz dela uma paisagem
a ser reescrita no espaço pictórico. De acordo com Anne Cauquelin (2007), a definição de
paisagem se resume na combinação de elementos. Não se pode, por exemplo, pegar um tronco,
pintá-lo, e afirmar que a partir daquele momento ele é uma paisagem; é necessário observar a
disposição dos elementos que compõem aquela imagem, não apenas a sua totalidade, mas a
harmonia entre eles. O que nos permite uma aproximação ao estado contemplativo de Van
Gogh, considerando suas noções de perspectiva, de paisagem e de arte como milagre. Ao
observar a harmonia dos elementos, o pintor não apenas via um espaço, mas sim a maneira
como aquela harmonia era divina e celestial; como aquilo representava não só um recorte do
tempo, mas de si mesmo, e de como ele observava a natureza, a luz e o movimento.
Essas relações mentais que ele fazia não eram meramente advindas de suposições pessoais, mas
de uma mensagem de Deus para ele. A Bíblia e a religião eram muito presentes em sua vida,
como afirmam Naifeh e Smith, em Van Gogh: a vida (2012). Sua obra não era apenas um estudo
técnico sobre elementos, mas também uma reflexão geográfica e espacial. Van Gogh não
observava a natureza como um elemento separado, distante, ele se via como a própria natureza,
Deus em forma de terra, de galhos retorcidos e cores. Para ele, a natureza era o ato de Deus. A
natureza era o próprio Deus, e a febrilidade de suas obras, a miséria vivida por ele, era nada
mais do que a sua aproximação ao divino.

790
Em uma obra como A colheita (1888) podemos observar a harmonia das cores, a luz e a
simplicidade. Esse quadro é um recorte feliz das paisagens produzidas por ele, o momento de
colheita sendo representado como bonança para os camponeses, e o sol, luz predominante nas
obras paisagísticas do pintor, manifestando-se como o elemento chave que harmoniza as
informações contidas na tela. Essa interpolação e relação de elementos é o que pode ser
considerado como uma consciência de paisagem. A dimensão dos motivos que levam um artista
a recortar o enquadramento de uma paisagem é compreendia por Anne Cauquelin (2007) como
uma ‘construção retórica’, um artifício jamais gratuito e com a capacidade de fundamentar a
potência de um discurso não mais subliminar, mas evidenciado, especialmente, pelo domínio
visual.
Olhar o horizonte nunca foi uma questão simples para Van Gogh, pois sempre carregou
simbologias capazes de ressignificar a sua obra. Não se trata de encontrar algo original na
natureza. Pelo contrário, mais importa compreender que não existe nada ‘original’ em arte,
utilizando-se do olhar subjetivo para transcrever o que se recebe e apreende do mundo em
forma de contemplação. Trata-se de um ponto relevante, ao considerarmos que, na época do
pós-impressionismo, ter uma perspectiva de produção ‘original’ era a expectativa do momento.
Gauguin, por exemplo, pintava as formas e cenas que surgiam na sua mente, porém, Van Gogh
unia essa forma pessoal ao olhar contemplativo da natureza, o que muitas vezes foi considerado,
entre os artistas locais, como algo antigo e apegado a movimentos passados, o que se via
representado no impressionismo de Monet e Renoir.
Podemos afirmar que os autorretratos e as pinturas feitas de modelos e outras pessoas refletiam
também um olhar natural do pintor, pois a luz presente nesses tipos de quadro era uma luz
filtrada pela natureza. Observamos que o amarelo, o laranja, o azul e o vermelho estão presentes
de maneira marcante, dentro de uma composição que admitia o sol, o vento e o movimento
como elementos que eram constantemente utilizados para a representação de suas paisagens,
fossem elas quais fossem.
Na célebre compilação das Cartas a Theo, podemos ter uma noção da produção artística de Van
Gogh e de como ele se sentia durante o processo de criação de cada obra. Ao finalizar uma tela
ou até mesmo no momento de sua produção, ele se entregava ao irmão e contava como o seu
coração se sentia no momento, como vemos no seguinte exemplo:
Estou possuído pelos novos prazeres que sinto nas coisas que vejo, porque
tenho uma nova esperança de fazer algo que tenha alma. Estou a tal ponto
lambuzado de cores que há cores até nesta carta; estou ocupado com a
grande aquarela do banco. Gostaria muito que ela desse certo, mas o grande

791
problema é manter o desenho por uma profundidade de tom, e a
luminosidade é extremamente difícil. (VAN GOGH, 2012, p. 87)

Não era apenas a natureza que inspirava Vincent, o olhar humano e a realidade eram situações
que encantavam o artista. Pintar o belo, para ele, era muito fácil e sem necessidade, mas, pintar
o excêntrico, a podridão, a miséria, era um ato de amor, paixão e divindade. O que seria Deus
senão homens descalços? Prostitutas também não eram belas? Mineradores cheios de fuligem
também não eram criações divinas? Vincent tinha um amor pelas pessoas e isso se transpassava
para as suas telas. É possível notar que quase nunca veremos retratadas, em suas obras, coisas
tidas como grandiosas pela sociedade; ele não pintava ninfas do rio ou a aristocracia, sendo esse
um ponto fundamental a ser considerado no seu trabalho como pintor e apreciador de
paisagens e pessoas. Poderiam ser as pessoas, paisagens? Talvez. Mas, e os camponeses, as
prostitutas e os bêbados, presentes na obra dele, seriam paisagens?
Ao observarmos o resultado permitido pela contemplação do olhar dele a essas pessoas,
intuímos que elas não estão nas telas apenas por sua singularidade ou ocupação social; há uma
composição entre técnica, beleza, luz e olhar que complexifica as relações humanas da época.
A paisagem se funde ao olhar contemplativo do pintor, pois, como ele próprio ressalta, o seu
interesse está na possibilidade de materializar o que não se vislumbra do humano a olhos nus,
na dimensão de um efeito pictórico: “... a alma de um homem, mesmo que seja um pobre
mendigo ou uma prostituta, é mais interessante a meus olhos.” (VAN GOGH, 2012, p. 172.)

3- No portal da Eternidade: girassóis em silêncio


O filme No Portal da Eternidade (2018), dando prosseguimento a uma longa tradição de
personificações a Van Gogh como um dos pintores mais representados no domínio audiovisual1,
destaca-se por intentar uma representação mais subjetiva que ultrapassa os interesses
biográficos do artista para ilustrar como ele teria enxergado o mundo. Trata-se de um
prolongamento da interpretação que os quadros nos permitem ter, com o intuito de dramatizar
o possível ponto de vista do pintor. Segundo o crítico português Cláudio Alves, o trabalho de
Schnabel junto ao ator Willem Dafoe alcança uma “tonalidade de beatífica agonia sombreada
pela chama da inspiração” (ALVES, 2018), num declarado esforço de imergir os espectadores
junto ao olhar do artista, na compreensão de seus esforços e angústias. Ele aponta os ‘diálogos

1
O portal Internet Movie Database cataloga 29 apropriações narrativas do pintor, para obras de cinema
e TV, como vemos em: < https://www.imdb.com/search/keyword/?keywords=vincent-van-gogh-
character&ref_=fn_al_kw_2>

792
inorgânicos’ do roteirista Jean-Claude Carrière como uma suspensão da visceralidade emocional
para sublinhar o gênio de Van Gogh em parâmetros mais diretamente visuais.
Chama-nos primeiramente a atenção, os recursos de encenação utilizados no filme para integrar
a corporalidade de seu ator protagonista como uma espécie de derivação imediata das
paisagens, como vemos claramente nos seguintes enquadramentos:

Figuras 01 e 02: Cenas de No Portal da Eternidade.

Fonte: frames capturados no Blu-ray do filme.

São imagens que nos recordam da relação que Gilles Deleuze, em suas filosofias da imagem
cinematográfica, traçou entre o detalhe de um close-up e a abrangência de um quadro mais
aberto, ou mesmo a panorâmica de uma paisagem, resultando em uma fusão de efeitos visuais
que potencializa os recursos sensoriais da imagem:
A tela, enquanto quadro dos quadros, confere uma medida comum aquilo
que não a tem, plano distante de paisagem e primeiro plano de rosto, sistema
astronômico e gota de água, partes que não apresentam um mesmo

793
denominador de distância, de relevo, de luz. Em todos esses sentidos, o
quadro assegura uma desterritorialização da imagem. (DELEUZE, 1985, p. 25)

O princípio de esvaziamento formal acima enunciado, também nos remete a uma cena
encontrada a 11 minutos e 52 segundos do filme, onde podemos observar um campo com
girassóis secos, retorcidos e sem vida. Observemos a composição dessa paisagem árida, a
morbidez de um campo que deveria ser belo e cheio de cores, e que implicitamente traz uma
análise pessoal do pintor, uma busca pelo seu ato de criar, pela luz e pela forma que daria às
suas telas.
Figura 03: Cena de No Portal da Eternidade

Fonte: frame capturado no Blu-ray do filme.

O que podemos dizer de um campo de girassóis mortos? A vida não seria a marca nos quadros
de Van Gogh? A cor não deveria estar presente para se narrar a história do pintor? O amarelo
não deveria dizer algo? A morte desse símbolo tão marcante na obra do pintor significa uma
busca, um recomeço. Em Arles, no sul da França, Van Gogh pintou a maioria de seus quadros
que se tornariam mais famosos, inclusive as séries de Girassóis, que posteriormente seriam
doadas ao seu amigo, também pintor, Paul Gaugin. Porém, é nesse mesmo lugar que ele tem os
seus ataques psíquicos mais profundos, dentre eles o que se perpetuou como mais lendário,
quando ele corta a própria orelha. Essa série de acontecimentos se relaciona com as pretensões
do autor para com a arte, naquele momento de vida. Ele estava em busca de algo, de luz, de
uma nova luz para o seu trabalho e isso o distanciava cada vez mais dos acontecimentos no
mundo da arte, onde os pós-impressionistas estavam ganhando fama nas feiras de artistas
independentes.
No momento em que se observa uma imagem plana como esta acima ilustrada, e se percebe
que ela é composta por simbologias, não se pode observar apenas o fato de que o ícone girassóis

794
está morto, além disso, é preciso que se observe o conjunto da paisagem e como ela pode ser
relacionada com o momento na história do pintor e, consequentemente, na narração do longa-
metragem. A paisagem é apresentada no início do filme buscando interligar essa passagem, a
transição da arte de Van Gogh e de sua própria vida.
O que seria esse ato de pintar? Para Van Gogh, respondemos poeticamente que era a sua
respiração, o que lhe dava a vida, roubada pela confusão mental ou dada por ela. A secura do
campo mostra que o pintor estava sem nada, em busca de algo que lhe restituísse os sentidos.
Qual a relação de um campo de girassóis secos e a série de girassóis vivos? O ato. O filme mostra
a busca por esse ato e como Van Gogh, dolorosamente, encontra-o. Dentro dos hospícios pelo
qual passou, nas igrejas, nas pessoas, dentro de sua própria cabeça, esse silêncio mórbido de
um campo seco nos mostra a passagem para a vida, que não exclui a miséria, pois para ele a vida
também era miserável, mas indubitavelmente bela.
O silêncio de um campo seco de girassóis que deveriam simbolizar a vida, diz mais sobre o
turbilhão de pessoas ecoando dentro da cabeça do artista em busca de liberdade, seja esta
liberdade em relação às outras pessoas como a ele mesmo. A vida simbolizada em amarelo está
morta, mas recomeça no instante em que o ato de pintar, que sempre é agonizante e rápido,
faz-se presente. A secura do campo ganha cor, as pessoas se calam e o quadro termina. O que
nos remete a uma de suas telas mais desviantes dentro da série de Girassóis, onde quatro deles
também aparecem à beira da morte, após a colheita no campo, ecoando uma notória inspiração
ao que destacamos na cena evocada do filme No Portal da Eternidade:

Figura 04: Four Cut Sunflowers (Vincent Van Gogh, 1887, óleo sobre tela, 60 x 100 cm)

Fonte: [Kröller-Müller Museum] Disponível em: <http://art-vangogh.com/paris_195.html>

795
4 – Considerações Finais
Gritar, bufar, fazer sons estranhos durante o trabalho, era assim que Van Gogh demonstrava
concentração ao pintar seus quadros. O seu estado de fúria não era exemplificado apenas nos
ataques histéricos, noticiados e expostos nos imaginários da história da arte, mas também na
forma como ele trabalhava seus meios de composição. Será então que a sua condição física era
o que diferenciava a sua arte, ou que o seu estado contemplativo para a natureza/paisagem
determinava o seu trabalho final? Concluímos que sua postura contemplativa, em relação às
coisas naturais, refletia-se diretamente em sua pintura. O contato com a vida e com a morte,
por meio da natureza, desdobra-se em paisagens que, concordamos, são confessionais em
relação aos sofrimentos subjetivos do pintor. A permanente recorrência desse artista no cinema
contemporâneo, a exemplo do filme de Schnabel aqui ilustrado, também perpetua o que o
historiador da arte Peter Gay reconhece como uma ‘auto-absorção’ da introspecção expressiva
presente em Van Gogh.
Com efeito, os autorretratos e as outras pinturas – interiores, naturezas-
mortas, paisagens, cenas urbanas ou retratos – formam uma rede contínua
de auto-revelação indiscreta. Ele pintava tudo tal como pintava a si mesmo,
com o mesmo senso de energia quase descontrolada, a mesma premência, o
mesmo empaste pesado, as mesmas pinceladas nítidas. Fossem flores de íris
ou interiores, trigais sob um céu carregado ou seu rosto enfaixado depois de
ferir a orelha, todos eram, cada qual à sua maneira, confissões
complementares. (GAY, 2009, p. 120)

Referências

ALVES, Cláudio. At eternity’s gate, em análise. (2018) Disponível em: <https://www.magazine-


hd.com/apps/wp/at-eternity-gate-critica-analise-leffest/> Acesso em 21 Mar. 2021.

AT ETERNITY’s gate. Direção de Julian Schnabel. Santa Monica: Lionsgate Films, 2017. 1 Blu-ray (110 min.)

AUMONT, J. O olho interminável: cinema e pintura. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fonte, 2007.

DELEUZE, Gilles. Cinema 1: a imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.

GAY, Peter. Modernismo: o fascínio da heresia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

NAIFEH, Steven; SMITH, Gregory White. Van Gogh: a vida. São Paulo: Companhia das letras, 2012.

PANOFSKY, Erwin. A perspectiva como forma simbólica. Lisboa: Edições 70, 1999.

VAN GOGH, Vincent. Cartas a Théo. Porto Alegre: L&PM, 2012.

796
O PATRIMÔNIO ACHADO: a experiência dos inventários participativos em Ceilândia
(DF)
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Ana Carolina Lessa Dantas


Mestranda em Direito (UnB); Analista em Patrimônio Cultural no Iphan/DF;
anacarolinaldantas@gmail.com.

Vinicius Prado Januzzi


Doutorando em Antropologia (UnB); Antropólogo no Iphan/DF;
vpjanuzzi@gmail.com

“Ceilândia, minha quebrada é maior que o mundo” é um livro produzido pela Superintendência
do Iphan no DF a partir da aplicação de métodos participativos de identificação do patrimônio
cultural, com destaque para os inventários participativos. Ao longo do processo de sua
produção, vários depoimentos de moradores de Ceilândia destacaram elementos e referências
da cidade como coisas familiares que, a partir do contato com a perspectiva patrimonial, “se
tornaram” patrimônios culturais. Partindo desta experiência de achar o patrimônio cultural na
cidade, propomos pensar o papel de políticas públicas patrimoniais enquanto intermediadoras
dos espaços da vida. Defendemos que, por serem instrumentos ativos na promoção da
cidadania, não podem se limitar aos bens oficialmente evidenciados, já consagrados pelos
processos de patrimonialização.
Palavras-chave: Patrimônio cultural; Inventário Participativo; Ceilândia; Achamento.

"Ceilândia, minha quebrada é maior que o mundo" is a book produced by Iphan's


Superintendence in DF from the application of participatory methods of identifying cultural
heritage, with emphasis on participatory inventories. Throughout the production process, several
testimonials from Ceilândia residents highlighted elements and references of the city as familiar
things that, from the contact with the heritage perspective, "became" cultural heritage. Starting
from this experience of finding the cultural heritage in the city, we propose to think about the
role of public heritage policies as intermediaries of the spaces of life. We defend that, for being
active instruments in the promotion of citizenship, they cannot be limited to the officially
evidenced goods, already consecrated by the processes of patrimonialization.
Keywords: Cultural heritage; Participatory inventory; Ceilândia; Finding.

797
1 – Introdução
Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só
descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas
há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como
acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre
maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade.
Manoel de Barros

Em novembro de 2020, a Superintendência do Iphan no Distrito Federal lançou o livro Ceilândia,


minha quebrada é maior que o mundo. A obra é o segundo volume da Coleção Patrimônio para
Jovens, voltada para a difusão do patrimônio cultural das diferentes regiões do DF para o público
infantil e infantojuvenil.
O primeiro volume da Coleção, Athos, colorindo Brasília, lançado em 2018, havia sido escrito e
ilustrado inteiramente por técnicos e estagiários da Superintendência, no ambiente da própria
repartição. As ambições para o segundo, porém, eram expandir esse campo de ação e de
produção de conteúdo, priorizando a escuta – e a escrita – de sujeitos de Ceilândia
Com este intuito, iniciamos, em maio de 2019, o contato com os primeiros parceiros da obra: o
Núcleo de Educação Patrimonial do Departamento de Cooperação e Fomento (DECOF) do Iphan;
a Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEEDF) e o Jovem de Expressão,
organização não governamental de promoção de arte e cultura jovem em Ceilândia. Juntos,
realizamos as primeiras reuniões do projeto, reunindo um grupo de coordenadores e
professores de escolas locais interessados em desenvolver, durante um semestre, projetos de
educação patrimonial.
Foi com este grupo, formado por professores de cinco escolas e duas instituições não
governamentais1, que organizamos, nos dias 8, 9 e 12 de agosto, uma Oficina de Formação em
Inventários Participativos, na Coordenação Regional de Ensino de Ceilândia. Nesta Oficina,
trabalhamos conceitos associados ao patrimônio cultural e a noções participativas de sua
produção e preservação. Com os docentes, a maioria deles moradores de Ceilândia2,

1
Além dos técnicos do Iphan e da SEEDF, participaram da Oficina os profissionais: Sandra Rodrigues, do
Centro Educacional Incra 09; Renato Pereira, da Escola Classe 66; Ingreth Adri e Aline Aires, do Centro de
Ensino Fundamental 27; José Nunes, do Centro de Ensino Médio 03; Eunice Vitório, do Centro de Ensino
Fundamental 16; Margarida Minervina, da Associação Despertar Sabedoria no Sol Nascente; e Manoel
Jevan, do Museu da Memória Viva de Ceilândia. Aproveitamos este espaço para agradecer a cada um, que
fizeram do Ceilândia, minha quebrada é maior que o mundo, uma obra tão rica.
2
Ceilândia é uma das regiões administrativas do Distrito Federal. Foi fundada em 1971, como parte da
Campanha de Erradicação de Invasões (CEI), daí seu nome. À época, eram muitos os ajuntamentos
populacionais considerados irregulares pela administração local, mormente habitados por operários das
construções da nova capital. Esses trabalhadores e suas famílias começaram a ser retirados das

798
procuramos resgatar memórias da cidade3. Ao final, como última atividade, produzimos um
mapa afetivo da cidade, com pontos comuns de referência, considerados os mais significativos
da história da cidade e das suas principais manifestações culturais vigentes hoje.
A Oficina foi o ponto de partida para as atividades desenvolvidas pelos docentes com estudantes
de escolas públicas de Ceilândia nos meses seguintes. Nesse período, a equipe de organização
do livro se reuniu periodicamente com as professoras e os professores, avaliando o
desenvolvimento da iniciativa em sala de aula, propondo redirecionamentos e refletindo, em
conjunto, sobre alternativas de trabalho. Este trabalho não é, no entanto, sobre o
desenvolvimento organizacional do projeto. Melhor dizendo, este não é nosso foco. Aqui,
queremos destacar o processo pelo qual o patrimônio cultural de Ceilândia foi, no decorrer dos
Inventários Participativos, achado, isto é, trazido à tona por seus participantes. Como
procuramos ressaltar, fundamentados em depoimentos de moradores da cidade, as referências
culturais postas em evidência, em maior ou menor medida, estavam ali desde antes do processo.
Não obstante, não eram enxergadas ou escutadas. Estavam em silêncio.

2 - Inventários participativos, um processo no plural


Desde 1988, pelo menos, trabalhamos sob a previsão constitucional de que o patrimônio
cultural são todos os bens que portam referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira (art. 216, caput, CF/88). Essa perspectiva, marco do
que hoje chamamos concepção ampliada de patrimônio cultural, não se concretizaria, contudo,
sem esforço ativo da administração pública e da sociedade civil.
Nos últimos trinta anos, importantes normas e políticas foram elaboradas pelo Iphan neste
sentido, a exemplo do Decreto nº 3.551/2000, que institui o Programa Nacional de Patrimônio

adjacências da região hoje conhecida como Plano Piloto já nos primeiros anos da capital. Ceilândia, por
sua vez, já surge com cerca de 70 mil moradores, expulsos quase que da noite para o dia de seus antigos
locais de moradia. É hoje a região com maior número de habitantes do DF, com cerca de 600 mil
habitantes.
3
O Distrito Federal carrega uma situação administrativa particular no regime federativo brasileiro. É, por
força de lei, indivisível, pelo que não pode ser composto por municípios. DF e Brasília são compreendidas
como homônimas — o território distrital, nesse sentido, contém a capital do Brasil, Brasília. Demais
espaços do DF são entendidos como regiões administrativas, status legal que estipula a dependência em
relação ao órgão máximo de gestão executiva local, o Governo do Distrito Federal (GDF). No dia a dia,
esse esquema é pouco usual. Por Brasília, no geral, entende-se o espaço do Plano Piloto, decorrente do
projeto vencedor do Concurso que escolheu a nova capital brasileira, vencido por Lucio Costa. Outros
espaços, como Ceilândia, Taguatinga, Sobradinho, Planaltina, São Sebastião acabam, na prática,
entendendo-se como cidades. Este debate, entretanto, está longe de estar em vias de conclusão. No caso
dos inventários, Ceilândia foi muito frequentemente entendida como uma cidade do DF, postura que
repetimos em nosso texto.

799
Imaterial (PNPI), e da Portaria nº 137/2016, que estabelece diretrizes e marcos referenciais para
a Educação Patrimonial enquanto prática transversal aos processos de preservação e valorização
do patrimônio cultural.
Além de consolidar o entendimento de que a educação patrimonial é composta de processos
educativos formais e informais cujo objeto é o patrimônio cultural socialmente apropriado, a
Portaria nº 137 valoriza a compreensão sócio-histórica das referências culturais, partindo do
universo familiar e conhecido para promover o reconhecimento, a valorização e a preservação
do patrimônio cultural (IPHAN, 2012; 2016).
De acordo com Florêncio (2019), o que a Portaria almeja é a construção coletiva de ações
educativas, identificando a comunidade como produtora de saberes e como principal fonte de
conhecimento sobre suas referências culturais. Sem esta compreensão da dimensão coletiva
inerente ao patrimônio, a eficácia e a efetividades das ações de educação patrimonial estariam
necessariamente comprometidas.
Os Inventários Participativos foram desenvolvidos com base nessas premissas: participação,
pluralidade e pertencimento. Os Inventários são um conjunto de ferramentas patrimoniais,
antes de serem uma técnica, um método, uma referência. Como pontuamos em outra
oportunidade:
A atividade de inventariar a que se faz referência aqui consiste em um amplo
processo de pesquisa, em fontes variadas (entrevistas com pessoas mais
velhas da comunidade, busca em documentos, visitas ao campo etc.), que
resulta na produção de diferentes listagens. Essas listas, embora não sejam
exaustivas, procuram abarcar o maior número possível e a mais extensa
diversidade de referências culturais para determinada localidade. Nos termos
institucionais do Iphan, são os lugares, os modos de fazer, os saberes e as
celebrações; não obstante, é perfeitamente possível que os grupos que
produzem um inventário não se sintam referenciados exatamente por essas
categorias. A premissa de um inventário participativo é, pois, a produção
colaborativa de um agrupamento comum de referências culturais, histórica e
socialmente situadas, a ponto mesmo de ser possível flexibilizar sua
categorização e seu detalhamento (DANTAS; JANUZZI, 2020, p.115).

Todo processo de construção de um Inventário Participativo é um caminho cujo fim é aberto,


cujo resultado depende do modo como seus participantes o fizeram, com quem se encontraram,
a quem ouviram, onde puderam estar. É, nesse ponto, não universalizável para toda uma
comunidade. Não é essa sua pretensão. Sabemos que a conclusão deste processo em Ceilândia
traz uma cidade, uma história, uma narrativa entre muitas. Essa procura pela multiplicidade,
pela variedade, pela pluralidade, contudo, é uma de suas maiores virtudes: escutar e descrever,
cada um a seu modo, com seu universo particular de referências, em direção a um caleidoscópio

800
plural de símbolos e valores, antes postos de lado ou ignorados – pelas próprias pessoas, por
órgãos públicos, por meios de comunicação, etc.
Uma das atividades promovidas em 2019, na aplicação dos Inventários com estudantes de
Ceilândia, foi a Oficina de fotografia. A Oficina ocorreu na Praça do Cidadão, onde está localizado
o Jovem de Expressão, responsável por ministrar o conteúdo a crianças e adolescentes. Nesse
dia, a pedido dos próprios participantes, pudemos aprender algumas formas de operar câmeras
fotográficas de smartphones e de pôr essas técnicas em prática. Passada a primeira meia hora
de apresentação das possibilidades de uso, os estudantes correram em direção à Praça. Estavam
livres para escolher o que quisessem e como quisessem fotografar
Terminada a sessão fotográfica, nos reunimos em rodas de conversa entre grupos para debater
as fotografias e trabalhar a relevância do olhar. Naquele ponto, queríamos destacar que o ato
de fotografar é, por natureza, um ato de observação e, por isso, mediado pelo que olhamos e
por como olhamos. É, também, um ato de seleção: optamos, a cada fotografia, selecionar os
momentos e os objetos que ficarão registrados no futuro.
Entre as fotografias tiradas, muitas delas foram de um letreiro de concreto (Figura 01) situado
em um dos lados da Praça. O letreiro é similar àqueles encontrados em entradas de cidades
Brasil afora, com a marcação territorial de um município ou uma localidade em particular. No
caso aqui, lê-se “I love CEI”, com letras em branco e o “love” representado por um coração
figurativo pintado em vermelho. Questionamos, então, o porquê de o letreiro ter chamado tanto
a atenção, ter admitido tantos olhares.

801
Figura 01: Estudantes na Praça do Cidadão, em Ceilândia, durante Oficina de fotografia promovida pelo
Jovem de Expressão e pelo Iphan/DF, por ocasião das pesquisas para o livro Ceilândia, minha quebrada é
maior que o mundo.

Fonte: Jovem de Expressão, 2019.

“Ah, tio, porque é legal, né?”


“Dá até para subir em cima. A foto fica mó legal”
“Eu sei lá, mas eu gostei na hora”
“É porque é a verdade, né? É a nossa Ceilândia”
“Vi que tava todo mundo tirando e achei que ia ficar louco”
“A gente ama aqui, professor, então é isso aí”

3 - “Em Ceilândia, não tem nada”


Vi uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Manoel de Barros

A experiência que acabamos de narrar, ao nosso ver, apresenta uma perspectiva que pode ser
contrastada com outras do processo dos Inventários. A Oficina foi realizada na metade do
período de atividades promovidas durante o segundo semestre de 2019, isto é, após algumas
das atividades já realizadas pelos estudantes em suas escolas.

802
Em muitos desses momentos anteriores, eram frequentes os depoimentos que questionavam a
centralidade do patrimônio de Brasília (de seu Plano Piloto, em específico), a relevância cultural
e política de Ceilândia, em comparação a outros espaços, as construções e os valores locais,
postos como “feios”, “sem importância”, “sujos”. Um desses chamou nossa atenção4:
– Professora, você disse tudo isso sobre patrimônio, então quer dizer que Brasília é patrimônio?
– Sim.
– E que a Catedral lá do Plano também é?
– Também.
– E que aquela Praça, onde fica o governo, é patrimônio?
– Claro que sim.
– Então, professora, patrimônio é tudo aquilo que a gente não pode tocar.
Dos muitos sentidos que podem ser desvelados deste diálogo, atentamos para dois. O primeiro
está relacionado a uma constatação relativamente conhecida sobre Brasília e o Distrito Federal,
de formação urbana heterogênea, desigual e segregada. O Distrito Federal é muito mais do que
o “avião e suas asas”, por assim dizer, ou que o que tende a ser veiculado por jornais nacionais
e internacionais: as muitas realidades que compõem o DF não necessariamente estão vinculadas
ao poder institucional, senão na medida em que todas as outras cidades brasileiras estão. Essa
configuração desigual, no entanto, é diretamente apontada pelo estudante. Ora, se aquelas
construções são patrimônio e moro aqui, em Ceilândia, bom, não posso nunca vê-las, senti-las,
ocupá-las.
Esse patrimônio intocável admite outro sentido, mais sutil na fala do estudante, apreensível a
partir das observações de todo o processo dos Inventários. Se o patrimônio valorizado é o da
Brasília modernista, isso significa que o de Ceilândia não tem vez e desmerece consideração.
Como disseram alguns dos estudantes, conforme pontuaram os docentes:
“Em Ceilândia, não tem nada”
Essa visão foi, senão no todo, parcialmente desconstruída ao longo das atividades promovidas.
Ao final, foram muitos os bens materiais, imateriais e naturais indicados pelos participantes, seja
em maquetes, desenhos, poemas, seja em vídeos, músicas ou em simples conversas. Muitos
puderam achar uma Ceilândia escondida, nunca conversada, pouco vista – puderam fotografar
o sobre. As conversas que tiveram com mães e pais, avós e tios trouxe à superfície uma história

4
Esse depoimento foi trabalhado em outra ocasião por nós (DANTAS; JANUZZI, 2020). As palavras
utilizadas não foram necessariamente estas, uma vez que nos baseamos em um relato recuperado de
memória pela educadora Margarida Minervina, da Associação Despertar Sabedoria no Sol Nascente.

803
de lutas e sacrifícios, de resistência e de alegria. As pesquisas online e nas ruas evidenciaram um
colorido que imaginavam apenas presente em cidades distantes, coisas de filmes, dos vídeos do
youtube, não dalí.
Decerto, essa experiência, se é múltipla, não fez com que todos passassem a amar Ceilândia ou
mesmo a “curti-la”. Mas a possibilidade de observar a cidade com outras lentes oferece prismas
que vão além daquele do noticiário, que associa Ceilândia à violência, à pobreza, à falta, àquilo
que precisa ser preenchido. Ceilândia pode ser um espaço de afeto, de encontro e reencontro,
de memória, de vida. Esse processo, por óbvio, é contínuo, indefinido e potencialmente infinito.

4 - O patrimônio achado
Como mencionamos, a Constituição de 1988 é, hoje, o principal marco legal de diretriz das
políticas patrimoniais. No artigo 216, o princípio é de que o patrimônio cultural é diretamente
atrelado aos “diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”, cabendo ao Estado, “com
a colaboração da comunidade”, promovê-lo e protegê-lo (§1°). Trata-se de novo entendimento
para o campo patrimonial, que priva o Estado do monopólio decisório sobre o que é (e o que
não é) patrimônio cultural.
No Decreto-lei nº 25, de 1937, lia-se: “Os bens [...] só serão considerados parte integrante do
patrimônio histórico e artístico nacional, depois de inscritos separada ou agrupadamente num
dos quatro Livros do Tombo [...]”. Aqui, algo é patrimônio se o Estado assim declara. O decreto,
frise-se, ainda é vigente, mas podemos afirmar que, quanto a esse aspecto, foi atualizado pelo
texto constitucional.
Do ponto de vista participativo, a concepção trazida em 1988 é uma virada paradigmática na
postura estatal de preservação do patrimônio. Desde então, outros tipos de bens culturais foram
incorporados ao rol nacional – oficial – de bens patrimonializados, incluídas as manifestações de
natureza imaterial, até aquele momento ausentes de amparo legal. Se é uma mudança em
termos de direcionamento legal, isso não necessariamente implica em mudança na prática das
políticas públicas. O processo de alargamento das fronteiras do patrimônio é contínuo desde
então, embora ainda parcial, como aponta Garcez Marins (2016).
A abertura conceitual, que é também epistêmica, da Constituição, é certamente positiva e de
viés democrático. Um dos seus paradoxos possíveis, no entanto, é que, ao ampliar o leque de
referências culturais e ao inserir outros agentes no processo de definição do patrimônio, o
Estado brasileiro possa se eximir da responsabilidade de criar políticas de gestão, de preservação
e de fomento do patrimônio cultural brasileiro. Se, afinal, o patrimônio é aquilo que é

804
considerado pela própria sociedade como digno de assim ser chamado, há uma margem de
argumentação pela qual pode a União, podem os estados e municípios, seguir fazendo o que
mais ou menos sempre fizeram, privilegiando determinadas formas de ação em detrimento de
outras, um conjunto de bens e referências sobre outros. Em nosso exemplo, seria possível não
admitir referências ceilandenses entre as patrimonializadas pelo Iphan porque, do ponto de
vista legal, elas já estão incluídas no conjunto maior do patrimônio cultural brasileiro. Sem
nenhuma dúvida, algo admissível apenas se entendida a Constituição de modo muito limitado e
minimalista. Não seriam aí discerníveis os muitos patrimônios de Ceilândia, patrimônios
achados.
As referências culturais levantadas por estudantes e docentes da cidade não surgiram de um dia
para o outro. Estavam, a maioria delas, presentes há muito tempo na cidade, entre seus
moradores e suas moradoras – algumas desde, pelo menos, a década de 70, nos primeiros anos
de ocupação da região, como a Caixa d’Água, outras das décadas seguintes, com exceção de
umas poucas, não menos importantes, bem recentes, como é o caso da Praça da Bíblia. Se
vividas no dia a dia, não eram encaradas, pelos participantes, como referências de valor.
“Em Ceilândia, não tem nada”
“Patrimônio é aquilo que não posso tocar”
Durante o processo, todavia, “tornaram-se” espaços e práticas que se deveria olhar
positivamente, exemplos da história local, manifestações de um processo particular de
ocupação urbana. Algo que estava ali desde o início começou a ser visto, ouvido, sentido de
outras formas. O que poderia ser esquecido ou meramente ignorado passou a ser um
patrimônio cultural.
Nesse ponto, podemos, claro, perguntar-nos dos porquês deste esquecimento, deste silêncio.
Por que algo, em primeira instância, é silenciado? O silêncio pode ser imposto ou fruto de
alguma manifestação de passividade. Pode ser um efeito de uma ação de quem não pode não
se expressar, de forma momentânea ou contínua, por desconhecimento, por constrangimento,
pela violência. Ou ainda o silêncio enquanto um fenômeno que vem de quem não escuta, não
quer escutar, ou simplesmente nunca parou para ouvir com atenção – alguém fala, se expressa,
mas não é ouvido. Ou claro, ambas as coisas. De um lado e de outro, processos sociais de
produção da desigualdade, de segregação, de violência urbana, de invisibilização de saberes e
fazeres não hegemônicos.
Fato é que a procura por referências, pelo passado, por memórias de antepassados, gerou um
fenômeno de achamento. Achou-se, em suma, aquilo que foi procurado, não em um processo

805
de revelação pelo outro, mas articulado no encontro com uma referência que sempre esteve ali,
tão perto, mas tão longe.
Agora, se com isso o objetivo era enfrentar o obstáculo decorrente do silêncio e da inexpressão,
era necessário, então, que o Iphan se dispusesse a escutar. De nada adiantaria que os
participantes discorressem sobre seus patrimônios, sem que pudéssemos escutá-los, sem que,
pelo menos, fosse dada uma oportunidade de diálogo. Escuta e diálogo densos5, por assim dizer,
porque determinados sentidos são apreendidos quando para eles se dedica atenção, quando os
vivemos atentamente e no compasso de quem os produz. Somente se acha o patrimônio, nesse
ponto, em processo e coletivamente.

5 - Iphan em mediação
Eis que podemos nos perguntar. Quais os aprendizados decorrentes dessa postura para o Iphan?
O Iphan não foi o responsável por “mostrar” aos participantes do projeto a “verdadeira face” de
Ceilândia – se é que isso é possível. Não foi igualmente a instituição que protagonizou o
inventário participativo, nem foram seus servidores os principais agentes de sua construção. Ao
final de seis meses de desenvolvimento do processo, estudantes e docentes, pertencentes a
instituições de ensino ou a projetos sociais, expressaram o que – e quem – consideravam
patrimônio cultural. Mas o Iphan, claro, exerceu um papel relevante, ativo e posicionado.
Em primeiro lugar, porque fomos nós a primeira instituição a perguntar: o que é patrimônio
cultural de Ceilândia?. Esse era nosso objetivo primordial e era à procura de cumpri-lo que
estávamos direcionados em boa parte do tempo. O ato de perguntar em si carrega um efeito
grande em como um processo é desenvolvido. Aí reside um aspecto que merece ser explorado.
Entendemos que é uma atribuição do Iphan criar oportunidades de escuta densa, seja com
relação aos bens que já passaram pelo crivo de sua avaliação e foram integrados ao conjunto de
bens patrimonializados, seja com relação àqueles sobre os quais não temos a menor noção do
que constituem. Furtar-se dessa proatividade pode estreitar em muito o campo de visão e de
atuação do órgão, atribuindo aos bens culturais que são considerados oficialmente patrimônio
cultural uma representatividade que não necessariamente possuem, para ficarmos com apenas
um entre os possíveis problemas.

5
Dizemos denso com base no que Geertz (1989) apontou como necessário para uma antropologia
ancorada em teorias e práticas “nativas”, mais do que nas categorias do próprio pesquisador. O autor
argumentava com reação à descrição, mas julgamos poder dizer o mesmo sobre a escuta e o diálogo. É
inviável se pensar um sem o outro.

806
Se não podemos, com certeza, patrimonializar tudo o que encontramos à frente – em última
instância, se tudo é patrimônio, nada o é –, podemos partir em iniciativas de busca e escuta.
Como mostra Ceilândia, falar sobre patrimônio cultural é falar sobre valores, memória,
identidade, autoestima, pertencimento. Nenhum bem enumerado foi, por ora, objeto de análise
técnica de tombamento ou de registro, nem houve demanda nesse sentido. São outros os
rastros, os efeitos do processo, no entanto, que se tornam factíveis uma vez permitido o
encontro.
Em segundo, porque falamos de um universo conceitual e discursivo em particular, o campo do
patrimônio cultural. Ainda que a ideia de patrimônio seja ventilada aos quatro cantos e faça, em
menor ou maior medida, parte de conversas na padaria ou no bar, trabalhá-la
institucionalmente é um exercício de outra natureza. Querendo ou não, por maiores que sejam
as desavenças e as disputas políticas sobre o patrimônio, há um conjunto mais ou menos
homogêneo de ideias, práticas, propostas e direcionamentos que o fundamentam. Em Ceilândia,
estávamos falando com essa linguagem, mesmo que procurando incorporá-la a diferentes faixas
etárias e, claro, às referências culturais êmicas.
Não é nenhum absurdo, portanto, afirmar que o patrimônio cultural se confunde com a sua
linguagem – administrativa, burocrática e política. Por maiores que sejam os desejos
institucionais de que falar sobre suas referências culturais seja um processo corriqueiro, sabe-
se do peso discursivo que as políticas, as normas e as práticas do Iphan têm. Em um processo de
envolvimento direto do Iphan, então, que dizer senão que se trata, em algum nível, de um
processo a partir da sistemática de trabalho da instituição?
Quando determinados bens se tornam visíveis, audíveis, sensíveis, segundo essa lógica, é porque
corresponderam, em certo grau, ao discurso institucional do Iphan. Daí outro dos aprendizados
proporcionados por Ceilândia: aos poucos, o potencial de alargamento e flexibilização deste
discurso é maior quando confrontado ao imprevisto. Que isso tenha um efeito de longo prazo
na própria estrutura do Iphan, é uma aposta a se considerar.
A democratização dessa linguagem do patrimônio não só auxilia a comunicação institucional
entre Iphan e sociedade civil, mas opera como um instrumento de cidadania. Só é possível achar
e reivindicar o patrimônio cultural através de um idioma comum. Daí porque acreditamos ser
atribuição do Iphan levar esta linguagem – que traz em si o gérmen do diálogo – aos espaços
que ainda não fazem parte do roteiro patrimonial canônico.
A política patrimonial pode exercer um papel crucial no todo das políticas culturais. Não
obstante, é inegável apontar que não é a única resposta, nem mesmo é capaz de abranger o

807
imenso conjunto de referências culturais brasileiras. Mesmo que supuséssemos um órgão de
capacidade monumental, com capilaridade em cada rincão brasileiro, poderíamos nos perguntar
se isso seria o suficiente e, sobretudo, o desejável.
O significado mais relevante para o Iphan, mostrado por Ceilândia, é que seu papel em processos
de patrimonialização deste tipo deve ser o de mediação, sem a pretensão de ser o único ou o
maior dos mediadores. Isto é, aberto a seguir pelos caminhos apontados pelos sujeitos com que
se conversa, a mudar contornos de suas políticas ao longo do tempo, a escutar mais do que falar,
a ser um dos elos de um emaranhado de pessoas, instituições e posicionamentos. Torna-se mais
possível aí que o patrimônio cultural seja achado e mostre sua própria voz, sua própria cara,
todas as suas miudezas.
Disse certa vez um dos ex-presidentes do Iphan, Aloísio Magalhães, que “só se preserva o que
se ama, e só se ama o que se conhece”. A frase com certeza é belíssima e, no todo, sintetiza o
que procuramos argumentar. A política pública precisa constantemente se perguntar, contudo:
como é, afinal, que se conhece algo? Isto é, que tipos de conhecimentos são validados e
admitidos na esteira dos processos administrativos de patrimonialização? Se alguns não o são,
pode significar que não escutamos devidamente, na densidade que é necessária.
Escutar este trabalho de mediação tem a ver com as pedrinhas de quintal apontadas por Manoel
de Barros, essas que são maiores que o mundo. Maiores não no sentido da grandeza, mas no da
intimidade, do vínculo com o que vivo todos os dias. É nelas que piso para sair de casa, com que
meus filhos brincam, em que meu cachorro cava para esconder algo. São as pedrinhas que vejo
todo o dia, ainda que não repare tanto. E se puder reparar? E se passar a ver algo mais do que
simples pedras? O que elas podem nos dizer? Sobre o que é importante para mim, para nós,
para uma cidade.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Artigo 215. Brasília: Senado Federal, 2019.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Artigo 216. Brasília: Senado Federal, 2019.

BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Iphan. Educação patrimonial: histórico,
conceitos e processos. Texto de Sônia Rampim Florência et al. Brasília: Iphan, 2012. Disponível em:
<http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Educacao_Patrimonial.pdf> . Acesso em: 22 dez.
2020.

BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Iphan. Educação patrimonial: Inventários
Participativos - Manual de Aplicação. Texto de Sônia Rampim Florência et al. Brasília: Iphan, 2016.
Disponível em:

808
<http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/inventariodopatrimonio_15x21web.pdf>. Acesso em:
22 dez. 2020.

BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Iphan. Ceilândia, minha quebrada é
maior que o mundo. Organização de Ana Carolina Lessa Dantas et al. Brasília: Iphan, 2020. Disponível
em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/ceilandia_minha_quebrada_mundo.pdf>. Acesso
em: 22 dez. 2020.

BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Iphan. Portaria nº 137, de 28 de abril de
2016. Estabelece diretrizes de Educação Patrimonial no âmbito do Iphan e das Casas do Patrimônio.
Diário Oficial da União, Brasília, seção 1, n. 81, p. 6, 2016

BRASIL. Presidência da RepúblicA. Decreto nº 3551, de 4 de agosto de 2000. Institui o Registro de Bens
Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional
do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, seção 1, 2000.

BRASIL. Presidência da República. Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção


do patrimônio histórico e artístico nacional. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 1937.

DANTAS, Ana Carolina Lessa; JANUZZI, Vinicius Prado. Quem faz o patrimônio? Considerações sobre os
Inventários Participativos em Ceilândia - Distrito Federal. Com Censo: Revista Com Censo: Estudos
Educacionais do Distrito Federal, v. 7, n. 1, p. 113-120, mar. 2020. Disponível em:
<http://periodicos.se.df.gov.br/index.php/comcenso/article/view/752>. Acesso em: 22 dez. 2020.

FLORÊNCIO, Sônia. Política de educação patrimonial no Iphan: diretrizes conceituais e ações


estratégicas. Revista CPC, São Paulo, n. 27, especial, p. 55-89, jan./jul. 2019. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/cpc/article/view/159666/155800>. Acesso em: 22 dez. 2020.

GARCEZ MARINS, Paulo César. Novos Patrimônios, um Novo Brasil? Um Balanço das Políticas Patrimonial
Federais após a década de 1980. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 59, n. 47, p. 9-28, jan./abril 2016.
Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/eh/v29n57/0103-2186-eh-29-57-0009.pdf>. Acesso em: 23
dez. 2020.

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

809
O SILÊNCIO POR ENTRE AS FISSURAS: reimaginando o Centro Histórico de Salvador
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Vitória Maria Matos Rodrigues


Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Universidade Federal da Bahia FAUFBA;
vitoriamatosarqurb@gmail.com

Reimaginar o Centro Histórico de Salvador é mexer na memória da arquitetura. As fissuras,


portanto, dão lugares para o esgarçar de vozes substantivas necessárias para o gesto de
reescrever a história em torno desse centro, trazendo a poesia como um instrumento
potencializador das memórias emergentes. Reimaginar o Centro Histórico de Salvador a partir
das ruínas é sempre poder contar uma nova história sobre arquitetura, sobre a cidade, sobre o
futuro. É, também, adiar o fim e fazer coexistir no território as diversas paisagens e linguagens
que compõem o centro.
Palavras-chave: Fissuras; Subjetividades; Ruína; Salvador; Poesia.

To reimagine the Historic Center of Salvador is to touch the memory of architecture. The fissures,
therefore, give rise to the fraying of substantive voices necessary for the gesture of rewriting
history around this center, bringing poetry as an instrument to enhance emerging memories.
Reimagining the Historic Center of Salvador from the ruins is always being able to tell a new story
about architecture, about the city, about the future. It is also to postpone the end and make the
various landscapes and languages that make up the center coexist in the territory.
Keywords: Fissures, Subjectivities; Doom; Salvador; Poetry.

810
1 – O silêncio por entre as fissuras: vozes em diálogo1
As fissuras, as subjetividades, as memórias, os deslocamentos, as permanências, os corpos, as
rupturas: esses são os princípios que me fazem pensar o patrimônio e as suas teias de
reinvenção. Quando meu corpo se depara com o patrimônio edificado, seja ele qual for, em
qualquer lugar onde eu esteja, eu posso ouvir o silêncio, este que emerge como segredo do
colonialismo (KILOMBA, 2019), mas também, como vetor para reescrever a história do Centro
Histórico de Salvador. O silêncio é a voz potencial e as fissuras o seu caminho de passagem. Ou
seja, há voz no silêncio.
ao silenciar diante da história
desse correr do tempo
tido inerte
rasga dentro de mim
a voz
memória-voz
que me inunda
e me reinventa
a cidade é tudo
que dela
imagino e sinto.

Reimaginar esse centro, sobretudo do lugar da experiência no próprio território em questão é


propor “uma intervenção na história da arquitetura, quanto no arquivo do que defende a
memória do Estado-Nação” (TAVARES, 2018), é ousar a busca por um caminho onde a
arquitetura em si, seja o seu próprio sucesso, como a sua própria ruína, onde os arquivos oficiais
por si só não bastem, e onde a intervenção seja principiada na linguagem. A poesia é capaz de
entregar à memória o seu potencial de atuar, ela mesma, como um instrumento de uma história
possível, entendendo a memória como “um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno
presente e a história como uma representação [única e pura] do passado” (NORA, 1993, p. 9). O
patrimônio é forjado por cima do silêncio, por cima de vozes sistematicamente desqualificadas
(KILOMBA,2019), pelas ausências induzidas nos territórios da história, pelas subjetividades
desconsideradas e aqui a linguagem poética se apresenta como a principiante para se constituir
a imagética da cidade.

1
Este artigo foi escrito sob orientação da professora adjunta da Faculdade de Arquitetura da Universidade
Federal da Bahia, Gabriela Leandro Pereira (Gaia) entre outubro de 2020 e março de 2021.

811
Através da projeção estridente de uma voz uníssona, cartesiana, se inscreveu no imaginário
social a paisagem do que viria a ser o Centro Histórico de Salvador, o seu valor patrimonial e as
relações com esse território e como elas deveriam se estruturar: sob silêncios. As palavras dão
imagens a cidade, assim como o silêncio, e me certifico disto. A valorização da memória que
ecoa, em largo som, de triunfo dos colonizadores impregnadas na materialidade da arquitetura,
como únicas constitutivas do patrimônio, em contraponto a anulação da presença negra como
fundamental no levante e preservação dessas arquiteturas, traz a questão de que o princípio do
patrimônio histórico, abordada nos arquivos oficiais, não se ancora somente na urgência em
manter de pé a materialidade ou a leitura do tempo através da arquitetura, mas esta valorização
está intrinsecamente ligada ao poder que o patrimônio exerce em dar continuidade a uma
história colonizadora que demarca na cidade valores, símbolos, limitações e afirmativas sobre a
quem ele soa pertencer e de quais perspectivas as narrativas sobre eles poderão se atualizar.
As rupturas nessa paisagem colonial, configuradas sejam pelas ruínas, sejam pelos lotes frutos
de demolições, assim como os corpos e seus deslocamentos, abafam o triunfo dos
colonizadores, e por trás da grandiosidade teatralizada dessas arquiteturas é que o próprio
patrimônio se faz instrumento de denúncia, sendo as imagens dessa paisagem uma evidência,
também, de um crime de Estado (TAVARES, 2018).
Ao tomar-se o corpo como templo de memória, a inteligência, as fabulações, a intelectualidade
baseada em modos de viver transatlânticos como caminhos possíveis para a produção de um
conhecimento que seja emancipatório, teremos a possibilidade “de transformar as
configurações do conhecimento e do poder em prol da abertura de novos espaços para a
teorização e para a prática” (KILOMBA, 2019, p.59).
colonial silêncio
colossal patrimônio
significante
equilíbrio tênue
segredado
rasga
mas ameniza
com beleza
tapeia
e faz sobressair
da arquitetura
racismo
silêncio
inércia.

812
As ruínas se apresentam no Centro Histórico de Salvador como uma imagem presente, que em
um tempo outro já havia sido imaginada e se modela com o correr do tempo transformando
cotidianamente a paisagem da cidade, sendo sua estrutura arquitetônica por si só denunciante
das ausências e, ao mesmo tempo, um instrumento que induz a busca em compreender os
atravessamentos intangíveis que cortam essas marcas arquitetônicas, e que no presente se
formulam como objeto possível de costura para se alinhavar o futuro do patrimônio histórico.
As ruínas não devem ser vistas como o fim de uma linguagem arquitetônica na cidade, como a
marca derradeira do sucesso que sucedeu o patrimônio e as suas arquiteturas bem talhadas e
ornadas por significados representativos, em sua maioria, de uma classe dominante, além de
suas teias urbanas configuradas a partir das estruturas de poder vinculadas a essas arquiteturas,
ou mesmo como uma fratura na paisagem. As ruínas guardam o silêncio de vozes em diálogo e,
portanto
ainda podem ser animadas, apesar do anúncio de sua morte, campos
abandonados geram novas vidas, multiespécie. Em um estado global de
precariedade, não temos outras opções além de procurar vida nessa ruína.
(TSING,2019, p.7)

Ana Tsing traz em seu livro Viver nas Ruínas a ideia das florestas arruinadas, dos grandes campos
de colheita do cogumelo matsutake, mas que facilmente pode ser aplicada ao contexto das
ruínas arquitetônicas, estas que se inserem em um contexto de grandes tensões no campo da
cidade, convivendo com um iminente estado de arruinamento social. Sendo assim, me restam
as fabulações que tem como espaço de nascedouro o ambiente silencioso, taxado de hostil, que
abriga as fissuras do patrimônio, neste caso, as ruínas.
Por serem detentoras de vozes plurais, as ruínas do Centro Histórico de Salvador são capazes de
entregar a cidade a sua imagem completa pulverizada que habita a imaginação e memória de
quem as tinham como plano de fundo para as vivências cotidianas, mesmo que a sua matéria se
apresente colapsada.
ali bem ali
morei
naquela fachada ornada
que hoje
jardim suspenso
pendura do telhado as sementes
daquela canção
que mainha cantava
“o que fica, minha filha
de tudo
é o resto da

813
memória”.
O acelerado processo de arruinamento da materialidade dessas arquiteturas do Centro Histórico
de Salvador, se sugere como uma marca temporal, palpável, do arruinamento das narrativas
que embasaram a significância do patrimônio histórico e que tira do mesmo o seu potencial de
atualização constante das memórias e dos saberes reflexos que emergem de suas imagens. A
arquitetura, em seu bom estado, cumprindo seus requisitos estéticos inertes diz sobre o sucesso
logrado acerca de uma cidade teatralizada. As ruínas, em seu estado perene de ressignificação,
nos contam outras histórias que poderão preencher as lacunas: as ruínas são, em essência, a
própria ruptura da matéria e não serão vistas como pertencentes a um passado longínquo, mas
como um ontem no hoje e que por ser tratada com essa proximidade temporal, se formula parte
fundamental potencializadora das perspectivas de futuro em torno desse centro.
Vale ressaltar que, apesar das investidas do Estado em anular as “outras” narrativas, algo se
antecede e permanece nesses territórios negros por nascença, o que nos serve como guia para
redigir a atualização da história ou para que possamos formular outras. As narrativas sobre o
centro histórico não têm seu início com o processo violento da colonização, mas sim, o seu
processo de arruinamento como uma resposta à colonização, visto que passamos a construir
nossas cidades através da destruição e da simplificação (TSING,2019, p.45) tão inerentes ao
modo hegemônico de pensar e narrar a cidade. O silêncio por entre as fissuras rasga o som que
ecoa da história e faz jorrar de dentro do Centro Histórico de Salvador memórias capazes de dar
ao território novas possibilidades de futuro.
sonho reinventar
meu futuro
desgarrada
da dor
de ter territórios roubados.

2 – As ruínas: devemos reimaginar tudo desde o início


[há] emergência de novos modos de existir face à destruição dos
emaranhados que dão forma à paisagem. Paisagens têm histórias particulares
e possibilitam emergir modos de vida que não condizem com os padrões
expressos pelos conceitos de espécie ou sociedade. Paisagens são o
sedimento concreto de fluxos vitais, condições atmosféricas, sonhos,
memórias e representações (TSING,2019, p.9)

A paisagem que conto, do Centro Histórico de Salvador, se cristalizou com base em um


imaginário de ausências. O peso artístico e histórico que este conjunto carrega teve que, desde
seu princípio, atender a demandas que extrapolaram as bases que legitimaram a sua

814
consagração como cidade-monumento2 , consagração esta que fomentou “a ênfase nos valores
históricos e artísticos” (SANT’ANNA, 2014, p.129) desse patrimônio, limitando-o. Uma dessas
demandas, que mais se torna latente, é a de que a paisagem validada, por si só, não seria capaz
de se sustentar. Essa paisagem exigia outros atravessamentos que a arquitetura e até mesmo o
discurso preservacionista não dariam conta. Essa paisagem exigia vida, movimento e
continuidade histórica dos laços de afetos estabelecidos com o território. Exigia outras
representações e “é por isso que a descolonização da imaginação é o mais perigoso e subversivo
de todos os processos de descolonização” (IMARISHA, p.2) e que também chegam como corte
no pensamento acerca do patrimônio. A paisagem é também a ruptura. A ruína é também a
paisagem com a qual devemos conviver. E a imaginação é o fragmento para costurar os tempos.
No Centro Histórico de Salvador eu ouço os sons dos quais sinto falta
Quando se chega ao lugar, a memória emerge, fazendo com que todos os
detalhes desse tempo anterior de repente fiquem claros. Esse tipo de
memória requer movimento e inspira um conhecimento histórico íntimo”.
(TSING, 2019, p.35)

E vejo levantar as paredes daquele solar, assim como posso facilmente vislumbrar as grandes
festas familiares regadas a fartura de comida e de música.
Vejo na calçada
Do patrimônio arruinado
Além dos restos
Do reboco
Uma roda de samba
E uma senhora debruçada na janela
E por restante
Uma arquitetura tracejada.

Reimaginar é costurar uma nova ideia do que compõem essas arquiteturas que dão tom ao
Centro Histórico de Salvador. Alinhavar a linguagem é também alinhavar a imagem e este ato é
também abrigar as fissuras e reimaginar o amanhã.
Quando me ponho a caminhar pelo centro histórico, vislumbro facilmente corpos semelhantes
ao meu tracejando memórias pelas ruas, as pedras onde se pisam os pés registram as digitais de
um tempo movimentado, tempo este presente, de prazeres e vida nesse centro, presenças
habitantes e protetoras, inclusive, de uma memória coletiva que ausencia as suas importâncias.

2
As cidades-monumentos são definidas como aquelas que tiveram “papel primacial em fato histórico de
grande importância e significação nacional” ou que possuem “feição arquitetônica ou urbanística
característica de um período relevante da vida e da arte brasileira”. Ver mais em (SANT’ANNA, 2014)

815
Na calçada dessas arquiteturas, famílias negras socializam e partilham, através da oralidade, a
continuidade dessas histórias que eu mesma sou capaz de lhes contar agora.
continuo as histórias
das arquiteturas silenciadas
é só matéria?
o que seria dela sem o significado?
sem a fissura
que abre as portas
do novo patrimônio?
eu imagino
e transformo a cidade
num grande retalho
de imaginação.

São das ruínas o papel de ecoar as vozes das presenças que foram pulverizadas pelas tantas
violências. Vejo as memórias de ontem se inscreverem no hoje e a história que decido contar é
forjada no gesto de afetos cotidianos com esse território. Existem muitas histórias que podem
ser contadas, imaginadas a respeito do Centro Histórico de Salvador que não estão dentro das
grandes redes dos arquivos oficiais, mas que circulam pelo cotidiano das ruas e das convivências.
Existem tantas histórias guardadas no silêncio protetor desse futuro. Em tudo que há vida, há
voz. As vegetações que brotam das arquiteturas, tidas como patologias de edificações em
avançado processo de arruinamento são também vozes emergentes de um lugar roubado em
tempo outro e que presencia, junto às fissuras, a possibilidade de dizer que a história oficial não
basta e da urgência de traçar estratégias outras para que possamos vislumbrar na Cidade de São
Salvador do amanhã os tempos em camadas, que poderão ser visto além de inscritos na
paisagem como também nas memórias sonoras que acompanham as gerações herdeiras desse
patrimônio.
Reimaginar o Centro Histórico de Salvador é mexer na memória da arquitetura, isso significa
também, uma forma de adiar o fim do mundo, como Ailton Krenak nos presenteia, e adiar o
arruinamento dessa paisagem, tracejar visualmente, sonoramente, mesmo que seja no campo
da imaginação outras possibilidades, “é exatamente sempre poder contar mais uma história e
se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim” (KRENAK, 2019, p. 27). Reimaginar desde o
início é subverter a lógica e colocar a subjetividade como chave para perceber os territórios. A
arquitetura, por si só, não basta.
na contradição
onde esse centro se funda
inunda estórias.

816
o silêncio
segredo violento
amarra o movimento
do centro
no centro patrimônio
na margem patrimônio
dentro o tempo
a camada de tinta
que tinge a cidade
paisagem arruinada
na iminência de
se tornar outras3.

Referências

IMARISHA, Walidah. Reescrevendo o Futuro: usando ficção científica para rever a justiça. Disponível

em: <https://narraracidade.files.wordpress.com/2019/03/a02-a-imarisha-walidah.-reescrevendo-o
futuro-usando-ficc3a7c3a3o-cientc3adfica-para-rever-a-justic3a7a-trad.-jota-mombac3a7a.pdf>. Acesso
em: Janeiro de 2021.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Editora de

Livros Cobogó, 2019.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

NORA, Pierre. Entre Memória e História: A problemática dos lugares. Disponível em:
<https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12101/8763>. Acesso em: Janeiro de 2021.

SANT’ANNA, Márcia. Da cidade-monumento à cidade-documento: a norma de preservação de áreas


urbanas no Brasil 1937-1990. Salvador:Oiti Editora, 2014.

TAVARES, Paulo. Memória da Terra. Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=T2EmFLqCSDU>. Acesso em: Dezembro de 2020.

TSING, Anna Lowenhaupt. Viver as Ruínas: paisagens multiespécies no antropoceno. Brasília: IEB Mil
Folhas, 2019.

3
Todas as poesias presentes neste artigo foram escritas pela autora Vitória Maria Matos, 2021.

817
O BURACO DA VÉIA: práticas cotidianas e ambiências na praia da Brasília Teimosa
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Ana Carolina Silva Cordeiro


Mestra em Antropologia; UFPE; anacarolcordeiroacsc@gmail.com.

Clara Torres Peres


Arquiteta e Urbanista; UFPE; clara.ctp@gmail.com.

Este artigo trata da comunidade de Brasília Teimosa, localizada na zona centro-sul do Recife. A
teimosia do seu nome se deu pelas lutas da comunidade pelo direito à permanência nesse
território, nas décadas de 1970 e 1980, tornando-se referencial na luta do direito à moradia, no
cenário brasileiro. Se por um lado, atualmente, há uma desmobilização dos moradores, também
há uma ocupação intensa de espaços da orla e da praia do Buraco da Véia, sendo lugares que
concentram e cruzam diversas vivências e práticas que reforçam o senso de apropriação e
identidade dos moradores com a comunidade. Através da arquitetura e da antropologia urbana,
este trabalho traz luz aos sentidos desse lugar instaurado pelas práticas cotidianas e pelas
ambiências.
Palavras-chave: Brasília Teimosa; Praia do Buraco da Véia; Antropologia Urbana; Etnografia;
Práticas cotidianas; Ambiências.

This article deals with the community of Brasília Teimosa, located in the south-central zone of
Recife. The stubbornness of its name was due to the community's struggles for the right to stay
in this territory, in the 1970s and 1980s, becoming a reference in the struggle for the right to
housing in the Brazilian scenario. If, on the one hand, there is currently a demobilization of the
residents, there is also an intense occupation of spaces along the waterfront and the beach of
Buraco da Véia, being places that concentrate and cross several experiences and practices that
reinforce the sense of appropriation and identity of the residents with the community. Through
urban anthropology and architecture and urbanism, this work brings light to the meanings of
this place established by daily practices and ambiences.
Keywords: Brasília Teimosa; Buraco da Véia beach; Urban anthropology, Ethnography; Everyday
practices; Ambiences.

818
1 – Alteridade como princípio: por uma etnografia do lugar
Nas abordagens sobre a cidade, no campo institucional, governamental, e até nas produções
acadêmicas, é muito comum a ênfase em fatores de ordem macro, voltados para forças
econômicas e políticas, variáveis demográficas, interesse imobiliário, deixando em outro plano
as redes de sociabilidade e as ações e atividades cotidianas realizadas pelas pessoas, que “em
suas múltiplas redes, formas de sociabilidade, estilos de vida, deslocamentos, conflitos etc.,
constituem o elemento que em definitivo dá vida à metrópole” (MAGNANI, 2002, p.15).
Segundo Lefebvre (1991), é fundamental a redefinição das abordagens teóricas sobre a cidade,
assim como uma redefinição das necessidades da sociedade urbana, marcada pelos lugares
tomados pelo valor de troca, pelo comércio e pelo lucro; e outras necessidades e manifestações,
orientadas para a atividade criadora, para o conhecimento, o simbolismo, o imaginário, as
atividades lúdicas, devem ser levadas em consideração.
Cada vez mais é necessário voltar-se ao lugar para compreender seus novos significados,
levando em consideração o cotidiano. O lugar pode atuar como uma ponte entre o indivíduo e
o mundo, denotando as suas particularidades e o contexto global ao qual está inserido: “Cada
lugar é, à sua maneira, o mundo” (SANTOS, 2017, p.314). Desse modo, o mundo se torna um
objeto comum, acessado pelas “relações de reciprocidade que, ao mesmo tempo produzem a
alteridade e a comunicação” (p.316).
Nessa perspectiva, o princípio da alteridade, para pensar o espaço urbano, é uma chave-
estímulo fundamental que abre diálogo com o outro, como sujeito singular e social e possibilita
que a cidade seja considerada como lugar de gente, de convivência, de significados e de
histórias. Como caminho para a compreensão dos fenômenos urbanos sob essa ótica, a
antropologia se mostra como uma importante ancoragem, tendo em vista sua capacidade de
abranger a diversidade das relações sociais inscritas no lugar, sendo:
“um investimento em ambos os polos da relação: de um lado, sobre os atores
sociais, o grupo e a prática que estão sendo estudados e, de outro, a paisagem
em que essa prática se desenvolve, entendida não como mero cenário, mas
parte constitutiva do recorte de análise. É o que caracteriza o enfoque da
antropologia urbana.” (MAGNANI, 2002, p.18)

A incorporação desses atores, de suas práticas e de sua relação com os lugares, possibilita
explorar outras perspectivas sobre as questões da cidade, e a etnografia, como método
característico da antropologia, promove essa aproximação das formas de sociabilidade no
contexto urbano (MAGNANI, 2002).

819
Na atuação no campo da arquitetura e do urbanismo, o olhar sobre o lugar construído é o ponto
de partida desse caminho metodológico, mas, ao descrever a experiência do habitar a cidade,
outras camadas de subjetividade e sensibilidade vão se somando ao processo. “A descrição
resultante da observação participante, neste caso, conterá inúmeras menções à arquitetura e
ao entorno, mas haverá também menções à observação do comportamento, às ações e
dinâmicas que acontecem no local estudado” (DUARTE, 2013, p.32).
Nesse sentido, a noção de ambiência dá suporte para essa observação, pois ela abarca os
elementos materiais e simbólicos das relações estabelecidas no lugar, ampliando as práticas de
percepção e sensibilidade com o ambiente, e “permitindo, dessa forma, que se preste maior
atenção às tonalidades afetivas da vida urbana” (THIBAUD, 2012, p.9).
A partir dessa reflexão, essa pesquisa, que se encontra em andamento, traz uma inquietação
sobre caminhos metodológicos para a compreensão do espaço vivido, tendo como princípio a
aproximação ao lugar e às relações estabelecidas pelas pessoas e suas afetações, significações,
narrativas. Tem como locus de pesquisa a comunidade de Brasília Teimosa, localizada na zona
centro-sul da Cidade do Recife, especialmente a praia do Buraco da Véia e a Avenida Brasília
Formosa, lugares, estes, marcados por uma história de luta, e que concentram e cruzam diversas
vivências e práticas que reforçam o senso de apropriação e identidade dos moradores com a
comunidade, um espaço simbólico da paisagem da Brasília Teimosa.

2 - O Buraco da Véia: práticas cotidianas e ambiências na praia da Brasília Teimosa

Inicialmente a região onde hoje é o bairro do Pina e Brasília Teimosa era uma área de alagado
que foi aos poucos sendo ocupada por uma população de baixa renda, em moradias de
mocambos e palafitas. A partir do século XX, com as ações higienistas e as medidas voltadas à
urbanização, essa área, assim como outras partes da cidade do Recife, passou por constantes
aterros. Nesse processo a comunidade foi se estabelecendo, em torno de uma colônia de
pescadores, através de grandes movimentos populares para poder se manter e se legitimar
naquela região. Mesmo com a urbanização da comunidade, as moradias localizadas na frente
marítima permaneceram em palafitas por muitas décadas. Desde a década de 1980, houve
tentativas de urbanização da Orla de Brasília Teimosa, sendo implementada apenas em 2003,
através de uma requalificação urbanístico-ambiental da praia para uso público (PEREIRA, 2008),
no qual foram removidas as ocupações em palafitas e construída a Avenida Brasília Formosa,
com equipamentos públicos de lazer e atividades esportivas. A praia do Buraco da Véia e a
Avenida Brasília Formosa são lugares importantes para a cidade do Recife e especialmente para

820
a comunidade de Brasília Teimosa, sendo um símbolo da sua paisagem e de sua resistência. É
utilizado intensamente para a pescaria e também como um lugar de lazer, banho de mar e outras
atividades.

Figura 01: Vista aérea da Brasília Teimosa antes da Requalificação da orla, na qual se observa as
moradias de palafitas localizadas na frente marítima e a praia do Buraco da Véia.

Fonte: https://pt.org.br/com-lula-e-joao-paulo-brasilia-teimosa-virou-brasilia-formosa/.
Acessado: 10/03/2021

Figura 02: Moradias de palafitas na Brasília Teimosa, antes da Requalificação.

Fonte:https://missaosulamericana.wordpress.com/2012/03/08/onde-tem-campo-de-missoes/favela-
brasilia-teimosa-em-recife/. Acessado: 12/03/2021.

Muito já se sabe sobre a história de resistência da Brasília Teimosa, e essa luta não pode ser
esquecida. Por compreender que a história é um contínuo de processos sociais que permanecem
em construção no presente, essa pesquisa busca captar as práticas cotidianas, as apropriações
e as significações atribuídas a esse lugar pelas pessoas hoje. Como já exposto, tendo a etnografia
como norte, a pesquisa está se desenvolvendo nas seguintes etapas: Percursos de aproximação;
Registros de campo: croquis, relatos de campo e fotografia; Entrevistas semiestruturadas.
Os percursos de aproximação foram realizados através de caminhadas pela comunidade por
diferentes trajetos até a área de pesquisa, sendo um importante instrumento para a leitura do

821
lugar, que possibilitou “a leitura e escrita do espaço [...] interagir na variabilidade desses
espaços, a intervir no seu contínuo devir com uma ação sobre o campo, no aqui e agora das
transformações” (CARERI, 2013, p.32). Estas caminhadas iniciais foram realizadas com o objetivo
de reconhecer o campo sem direcionamentos prévios, observar o trajeto e as dinâmicas do lugar
em diferentes horários e dias distintos.
Escutar e interagir com o espaço sem uma intenção fixa, mas deixando emergir fenômenos,
imagens, surpresas, permitiu percepções espontâneas sobre o clima, a maré, as fachadas das
casas, a arborização escassa, o sol escaldante ou a chuva a vir, a música no bar, os pescadores,
o silêncio. Inicialmente esse processo foi feito de forma mais livre, em três visitas ao local, depois
esse percurso passou a ser mais objetivo, enquanto as paradas no local de estudo se tornaram
mais demoradas. Era o momento de observar e registrar. Os croquis iniciais foram mais sobre
mapas, com a marcação dos trajetos, lugares de parada e atividades observadas. Essa forma de
registro foi interessante por permitir uma interpretação mais dinâmica e voltada para a
representação mais comum do urbano, através dos mapas, o que possibilita uma adaptação
para um segundo momento no qual outras formas de representação e interpretação foram
utilizadas.

Figura 03: Registros de campo em mapa esquemático de parte da Brasília Teimosa.

Fonte: Elaboração da autora, 2020.

Para os registros de campo inicialmente foram priorizados os croquis e os relatos de campo.


Segundo Duarte (2013), o croqui de campo é muito mais do que uma ilustração, pois é a própria
descrição do que se percebe. Além de descrever aquilo que foi observado, essa ferramenta
também é importante por revelar sobre o olhar do pesquisador, pois “ao mesmo tempo que o

822
pesquisador desenha o que se vê, ele se conscientiza do que lhe chama atenção e descreve, em
seus desenhos, as suas observações” (DUARTE, 2013, p.35). Esse momento de parada e
observação, é quando a vida do lugar acontece. Se na aproximação do caminhar a observação
se voltava mais para os objetos arquitetônicos e espaço urbano, na pausa e na observação
atenta, as dinâmicas sociais se evidenciam. Nessa etapa, a história, conhecida previamente
sobre a comunidade, fez mais sentido, pois ao ver e interagir com as pessoas que vivenciam
aquele lugar, os seus signos tomaram forma e densidade. Olhar para as práticas cotidianas do
espaço vivido remete a uma outra espacialidade que revela operações “multiformes,
resistentes, astuciosas e teimosas” e possibilita “uma experiência antropológica, poética e
mítica do espaço” (DE CERTEAU, 1990), suscitando outro olhar e interpretação do urbano.
As práticas cotidianas observadas têm completa relação com a natureza do lugar. Brasília
Teimosa nasceu entre as águas da Bacia do Pina e do oceano Atlântico, sendo um lugar de
intensa relação com as águas e com a pesca. Esse caráter permanece forte, além das ruas com
nome de peixe (Rua Arabaiana, Rua Carapeba, Rua Albacora, etc.), e casas de pescaria e bares
(Bar do peixe, O marisqueiro, etc.) a atividade da pesca é muito presente na área adjacente ao
Buraco da Véia, tanto por subsistência, quanto por esporte.
A atividade do banho de mar e da utilização da praia talvez seja a mais intensa, devido à
quantidade de pessoas que se reúne em uma pequena faixa de areia. As piscinas naturais
formadas são um grande atrativo, lugar de brincadeira, de relaxamento, de contemplação, de
convivência. O banho de choque é uma prática própria do Buraco da Véia, em que as pessoas se
encostam na parede de arrecifes, esperando a onda quebrar para formar um banho de espuma
e água de mar sobre elas.

Figura 04: Croquis de campo da praia do Buraco da Véia e seu entorno.

Fonte: Elaboração da autora, 2020.

823
As atividades na praia reunem pessoas de diferentes lugares da cidade, contudo, isso muda de
acordo com os horários do dia. Enquanto que no horário da manhã e começo da tarde, as
pessoas, muitas de fora da comunidade, vão principalmente para as barracas de praia e para o
banho de mar; no fim da tarde, moradores utilizam a praia e seu entorno como ponto de
encontro e contemplação. Nesse mesmo horário, as atividades na orla e nos campos de futebol
também são intensas. Essa diferença de usuários ao longo do dia é percebida nas atividades
realizadas, na forma de apropriação do espaço e na interação entre as pessoas, que se
cumprimentam ao andar na rua, e muitas vezes, se sentam para conversar.
Além dessa ambiência vinculada ao aspecto marítimo, as dinâmicas praieiras, a Avenida Brasília
Formosa, adjacente à praia do Buraco da Véia, têm um caráter habitacional muito marcante. As
fachadas das casas lindeiras às calçadas aproximam a rua do espaço privado, e a calçada se torna
continuidade da casa; vários moradores sentam em frente à porta para observar a rua ou
conversar com a vizinhança e utilizam a calçada para prender roupas no varal.

Figura 05: Montagem fotográfica com ambiências percebidas na observação: praia contemplação; praia
brincadeira; porto silêncio; pedras mar; casa-rua.

Fonte: Elaboração da autora, 2020.

A noção de ambiência nos fornece uma maneira de olhar o espaço público e as diversas maneiras
de vivenciá-lo. Além dos aspectos físicos, naturais e dinâmicas urbanas, tão marcantes no Buraco
da Véia, a relação das pessoas com o lugar e seus vínculos afetivos, ancestrais e identitários, são
parte da paisagem.

824
3 - Navegar e descer a âncora: entrevistas, percepções e significações
“É importante navegar junto à costa e observar as paisagens, mas também
entender onde descer a âncora, encontrar quem mora naquelas terras,
descobrir estratégias para ir ao encontro dele, aprender a cumprimentar. A
arte de ir ao encontro de alguém produz conhecimento recíproco entre as
pessoas que se movem em nosso novo mundo e nos ajuda a imaginar, com
elas, uma outra maneira de habitá-lo”. (CARERI, 2017. p. 29)

Depois de observar a partir da caminhada, das pausas e dos registros, vem o momento de descer
a âncora. O desafio desse percurso metodológico é o mergulho que se dá no lugar, é a adaptação
à posição de observador, é o tempo de percepção, de descoberta, de interação. Mas esse é um
processo de construção e não é apenas a partir do olhar do pesquisador, é uma relação entre
mundos subjetivos que se manifestam nas ações cotidianas, no lugar vivenciado, e para que
esses mundos possam construir algo substantivo, se deve ir até eles. As vozes que sussurram no
cotidiano das cidades, aqui tomam forma e ecoam suas percepções e histórias.
Nesse sentido, além das observações etnográficas, a etapa da aplicação das entrevistas
semiestruturadas é fundamental para acessar percepções e ideias das pessoas sobre o lugar
estudado. A intenção aqui é captar como as pessoas usuárias do Buraco da Véia utilizam o lugar,
como elas se relacionam com a história e como elas significam esse lugar. O propósito não é
caracterizar e apontar, nas perguntas, situações específicas ou questões históricas, mas buscar
que essas informações surjam através das inquietações lançadas.
Para atingir esse objetivo, as perguntas foram articuladas à categorias, que foram definidas a
partir dos objetivos específicos da entrevista. Foram seis objetivos específicos que
desencadearam em seis blocos de categoria, com várias palavras-chaves, a saber: 1. relação,
uso, frequência, apropriação 2. percepção, significado, afetividade 3. identificação,
pertencimento 4. memória, história, ancestralidade, imaginário 5. comparação, diferenciação,
qualificação, desejos 6. eventos, marcos.
Dessa forma, foram desenvolvidas perguntas que podem se articular às categorias apontadas.
Algumas destas, realizadas nas aplicações das entrevistas, já motivaram respostas que se
articulam com as categorias sugeridas, como por exemplo:
[P]: O que é esse lugar?
[E1]: É tudo pra mim, tudo meu é aqui, meu trabalho, tudo...
[P]: De quem é esse lugar?
[E2]: É do povo da Brasília, né...dos moradores.
[P]: Como era esse lugar?

825
[E3]: Aqui era tudo palafita, mas eu venho aqui desde pequeno, brincava com os meninos[...]
sempre vim aqui. Hoje tá maravilhoso, é o melhor lugar [...] meu filho aprendeu a nadar aqui.
[E4]:Eu tô aqui desde 7 anos, antes não tinha isso aqui não, eu tinha que passar por debaixo das
casas, cortava por ali e chegava no Buraco da Véia pra pescar, depois voltava tudinho andando
pra vender os mariscos na Colônia, qualquer hora, de dia, de madrugada, sozinha.1
Esta pequena amostra de entrevistas possibilita identificar elementos vinculados a várias
categorias, ressaltadas pela relação com o lugar, pelo significado atribuído, pela afetividade,
pertencimento e memória. Mesmo entendendo que esses conceitos precisam ser aprofundados,
na etapa de análise, é possível ver o potencial da entrevista para estabelecer o diálogo com os
diversos sujeitos que fazem a vida do lugar. As perguntas não pretendem ser sugestivas, mas
um dispositivo de percepções e, por vezes, de atribuição de sentido e de significado.

4- Considerações finais: vozes em diálogo


Vale reiterar que no momento da produção deste artigo a pesquisa se encontra em andamento,
portanto os resultados apresentados são parciais. O objetivo, aqui, foi expor o processo
metodológico que une as práticas da arquitetura e do urbanismo com a ancoragem da
etnografia, entendendo que essa interdisciplinaridade pode colaborar muito para uma
compreensão mais sensível do espaço urbano.
A comunidade de Brasília Teimosa tem uma história emblemática nas questões de luta pelo
direito à cidade. Hoje o sentido de pertencimento, tão caro à sua história e às suas conquistas,
pode ser percebido no processo de compreensão do lugar, como a praia do Buraco da Véia, a
partir das práticas cotidianas, das formas de apropriação e das narrativas expressas pelas
pessoas. Nesse sentido, captar as ambiências e escutar as vozes dos habitantes, pôde fazer
emergir sentidos identitários, de afetividade e de significação.
As narrativas da história hegemônica, assim como as abordagens sobre a cidade, de maneira
geral, silenciam os sujeitos que participam da vida da cidade, que constroem redes de
sociabilidade, que interagem e habitam o espaço urbano. Esses, por sua vez, são tratados como
parte passiva e, muitas vezes, como os excluídos do processo urbano (MAGNANI, 2002). Indo de
encontro a esse pensamento, compreendemos que é necessário, cada vez mais, estabelecer

1
Entrevistas realizadas em 09 de março de 2021. [P] se refere à pergunta realizada pela pesquisadora e
[EX] se refere aos entrevistados, diferenciados pela numeração.

826
diálogo com as vozes dos atores que vivenciam a cidade, escutando suas percepções e
narrativas, que constroem cotidianamente a história dos lugares.

Referências

CARERI, Francesco. Caminhar e parar. São Paulo: Gustavo Gili, 2017.

DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Rio de Janeiro: Petropólis, 1990.

DUARTE, Cristiane Rose. Moldagem do lugar; remoldagem do olhar. In: DUARTE, Cristiane; VILLANOVA,
de Roselyne (org). Novos olhares sobre o lugar: ferramentas e metodologias, da arquitetura à
antropologia. Rio de Janeiro: Contra Capa; FAPERJ, 2013.

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, v. 17, n. 49, 2002.

PEREIRA, Oswaldo. Histórias do Pina. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2008.

SANTOS, Milton. O lugar e o Cotidiano. In: A Natureza do Espaço: Técnica e tempo, razão e emoção. São
Paulo: Edusp, 2017.

THIBAUD, Jean-Paul. A cidade através dos sentidos. Cadernos Proarq, Edição 18, Rio de

Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, p. 1 - 16. 2012.

827
O CORPO NEGRO EM DIÁSPORA COMO DEBATE DOS PATRIMÔNIOS PELOTENSES
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Naiane Ribeiro Rosa


Programa de Pós Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural; Universidade Federal
de Pelotas; naiahrb@gmail.com

O presente trabalho, configura-se como um fragmento do processo de concepção da pesquisa


desenvolvida no Programa de Pós-Graduação de Memória Social e Patrimônio Cultural da
Universidade Federal de Pelotas. A pesquisa embasa-se a partir da investigação dos espetáculos
de Danças Negras que são produzidos nos Patrimônios Históricos do município de Pelotas, Rio
Grande do Sul, com um cunho de reivindicação da Memória da diáspora Africana. Logo,
pensando no processo de concepção, desenvolvimento e resultados da obra, a pesquisa
desdobra-se em novos movimentos, problematizando o patrimônio material a partir de das
ressignificações instadas pela herança cultural negra, protagonizada pela Arte Negra.
Palavras-chave: Patrimônio Cultural; Danças Negras; Ressignificação.

This work is a fragment of the design process of research developed in the Post-Graduate
Program of Social Memory and Cultural Heritage of the Federal University of Pelotas. The
research is based on the investigation of the shows of Black Dances that are produced in the
Historical Heritage of the municipality of Pelotas, Rio Grande do Sul, with a claim to the Memory
of the African diaspora. Therefore, thinking of the process of conception, development and
results of the work, the research unfolds in new movements, problematizing the material
heritage from new looks urged by the black cultural heritage, played by the Black Art.
Keywords: Cultura Heritage; Blacks Dances; Reframing

828
1 – Notas para entender a travessia Atlântica
O texto aqui apresentado, trata-se de um fragmento do projeto de dissertação, desenvolvido no
Programa de Pós Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal
de Pelotas, estabelecendo um vínculo com a temática aqui proposta, sendo o silenciamento
histórico das memórias negras apontado como um resultado político do racismo estrutural.
A partir disso, a pesquisadora justifica a idealização da pesquisa pautada pelo lugar de fala de
uma mulher negra, licenciada em dança, nascida e criada no sul do Rio Grande do Sul,
vivenciando a realidade de ser um corpo-afro-gaúcho na cidade de Pelotas. Sendo assim
inquietada pelas mais diversas histórias sobre o lugar que serve como ambiente de
desenvolvimento do objeto central desta pesquisa: os Patrimônios negros apresentados à uma
sociedade por um discurso euro-centrado, e como heranças não frequentadas por corpos afros-
diaspóricos a partir de uma perspectiva do reconhecimento de Lugares de Memória (NORA,
1997).
Pelotas, é uma cidade situada ao sul do estado do Rio Grande do Sul, que carrega em sua
memória narrativa características marcantes em relação ao olhar sob o corpo negro, sendo este
muitas vezes analisado de modo ínfero por uma grande parcela da sociedade.
Tal percepção relaciona-se ao período da diáspora africana, no qual após a chegada dos negros
na região Sul o sistema fixou um estereótipo de mercadoria para tal etnia, o que
consequentemente acabou por resultar no racismo estrutural de hoje, afinal “é assim que se
cria uma única história: mostre um povo como uma coisa, como somente uma coisa,
repetidamente, e será o que ele se tornará” (ADDICHIE, 2009, s/p).
Deste modo, aqui é importante salientar a importância e contribuição histórica do negro no
desenvolvimento da cidade de Pelotas, sendo esta a principal mão de obra do crescimento
econômica e edificação do município.
A cidade de Pelotas se ergueu e se edificou através das mãos de trabalhadores
escravizados. O “motor” da economia local (as charqueadas) era “regido”
pelos negros escravizados, que participavam de todo processo produtivo da
indústria charqueadora. Os escravos estavam presentes nas mais diversas
esferas da sociedade: dentro das casas de seus senhores, nas pequenas
plantações da Serra dos Tapes (região contígua a zona urbana de Pelotas), no
porto, nas quitandas do centro, na construção civil, na produção das olarias.
(MONTEIRO, 2017, p.21)

Sendo assim, através da metódo da auto-etnografia como estratégia (e por isso, aqui se faz
necessário o desenvolvimento em primeira pessoa) serão trazidos os percursos autobiográficos

829
com relação a minha formação em dança, no que se refere às questões ligadas a memória e
identidade (CANDAU, 2012), corpo negro, estética afro-diaspórica, danças negras, entre outros.
Foram as danças de origem negra que trouxeram-me entendimentos muito importantes acerca
da temática Identidade e também o reconhecimento do pertencimento à negritude. Conceitos
estes que acabaram indo ao encontro de desdobramentos diversos a partir do meu ingresso no
campo acadêmico. Destaco este momento como forma singular pois foi pautada nas reflexões
diárias a mim acometidas que uma nova atmosfera de posicionamento e empoderamento se
fazia, apoiada pelas experiências e vivências a mim oportunizadas.
A minha aproximação e participação em obras artísticas e atividades pautadas pelo discurso
decolonial, como o espetáculo A Dança dos Orixás, é significativamente influente neste
processo, uma vez que desde as primeiras vezes que visitei os lugares assim como as
Charqueadas, não compreendi o sentido literal e moral de os mesmos espaços estarem abertos
à visitação do público se não com o intuito de problematização histórica, visto que carregam em
sua visualidade arquitetônica e memorial um peso do silenciamento de culturas elementares
para a edificação espacial e cultural, apesar de hoje o local ser reconhecido como lócus turístico
e a história contada para os visitantes ser até muito recentemente narrada através de uma
descrição na qual o negro ocupa um lugar secundário ou é citado de maneira romântica e
subalternizada.
Atualmente a Charqueada São João tornou-se casa de moradia de seus proprietários, tendo em
seu interior móveis e atividades cotidianas, mesmo no ambiente antigamente ocupado pela a
senzala dos escravizados. O terreno, por ser de grande dimensão e também por ser vislumbrado
como comércio, é alugado para diversos eventos como formaturas, casamentos, festas públicas
e privadas, festivais, raves, entre outras atividades. Em 2003 foi locada para gravação da
minissérie da rede Globo de Televisão “A casa das Sete Mulheres” dando ainda maior visibilidade
turística ao local (ROSA, 2012, p.56), porém ainda sob uma prisma eurocêntrica, difundindo
ainda mais um discurso superficial e falacioso.
A partir disso, embasando-me nos meus saberes e fazeres, atrevo-me a justificar o espetáculo A
Dança dos Orixás como inaugural de um novo modo de olhar a Charqueada São João, ao
trabalhar em parceria com o Projeto de Extensão O Pampa Negro: Arqueologia da Escravidão na
Região Meridional do Rio Grande do Sul (1780-1888), evidenciando através da dança e da
arqueologia a diáspora africana no local, retratando traços de um patrimônio cultural, muitas
vezes esquecido na cidade, ou ao menos explanado de maneiras divergentes à sua verídica
história. Ou seja, vislumbro um modo de ressignificar o lugar, modificar a leitura do espaço e

830
mais do que isso, trazer elementos que sempre estiveram ali, seja pelo plano material ou
espiritual.1
Já a obra Preto é o Lugar onde Moro, é uma obra de minha autoria e pautada como o segundo
objeto de estudo dessa pesquisa, que por sua vez apresenta as reflexões proporcionadas nesta
participação e também durante minha trajetória de vida enquanto artista, bem como na
educação. Estes processos do entendimento do novo corpo que entendo-me hoje, a partir de
uma perspectiva de reconhecer a mim mesma sob um olhar de aceitação e de tornar-me a cada
dia mais negra.
Nesta prisma, Neusa Santos (1983, p.77) dialoga com esta perspectiva sobre tornar-se negro,
apontando que: “ser negro é tomar posse desta consciência e criar uma nova consciência que
reassegure o respeito às diferenças e que reafirme uma dignidade alheia a qualquer nível de
exploração. Assim, ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a ser. Ser negro é
tornar-se negro.” Logo, este entendimento esteve presente tanto no espetáculo A Dança dos
Orixás (onde fui bailarina), quando em Preto é o Lugar onde Moro, o qual é de minha autoria e
que também atuei como diretora.
A obra foi idealizada durante um ano, resultantes de duas disciplinas da graduação em Dança-
Licenciatura. O processo enquanto pesquisadora-professora-artista, trouxeram-me uma
visualidade da carência de exploração de novos espaços na cidade, que através da arte
problematizassem locais reconhecidos como patrimônios culturais e históricos do município.
Outrora também destaco o período na academia como um espaço/tempo que ampliou meus
entendimentos sobre identidade, principalmente sobre minha identidade negra. Por
consequência, deponho no espetáculo o interesse em questionar o espectador sobre as
possibilidades de utilização dos patrimônios históricos da cidade como retratação de uma
memória negra, escondida em lugares pouco frequentados, principalmente no campo da arte -
dança, como os porões.2
Neste mesmo entendimento sobre uma ótica de associação de Memória e Identidade, Joel
Candau (2010, p.19) diz que “de fato, memória e identidade se entrecruzam indissociáveis, se

1
Espiritual, pois por conta do espetáculo A Dança dos Orixás, também abordar questões religiosas do Sul
do país em sua dramaturgia, é importante ressaltar os entendimentos acerca daquilo que temos presente
em matéria e também espiritualmente dentro deste contexto.
2
Destaca-se que o espetáculo Preto é o Lugar Onde Moro, ocorre no Porão do Museu do Doce como
representação de diversos outros porões utilizados como locais de moradia desumana para os negros no
período da Diáspora Africana. No entanto, sabe-se que o Casarão, atual utilizado para abrigo do Museu,
foi construído posterior ao período aqui em questão, não sendo assim, habitado para os fins conhecidos
da época.

831
reforçam mutuamente desde o momento de sua emergência até sua inevitável dissolução.” Ou
seja, em uma busca identitária, ainda que a partir de um percurso de diferentes experiências, só
acontece a partir daquilo que vivemos, somos, estamos e do modo como reconhecemos e nos
relacionamos com nossas histórias, nós somos as nossas memórias (SCHWADE, 2020, p. 10).
Deste modo, a discussão proposta nesta pesquisa é problematizar o quanto a Arte e, em
específico, as danças de origem negra são cruciais e potentes para a releitura de novos espaços
para o campo da Arte Negra na cidade, como uma retratação das memórias negras esquecidas
na história local. O que também dialoga com explanação de Leda Martins (1997), que diz que “a
memória não está só nos lugares estereotipados pois resguarda de conhecimento histórico. Ela
se recria constantemente, transmitindo pelos ambientes, repertórios orais, corporais e gestuais,
entre outros.” Isto é, nesta proposta, a memória transmitida apresenta-se através do patrimônio
imaterial entre novas maneiras, espaços e corpos.

2 – A performance Central da Pesquisa


O objetivo geral da investigação consiste em analisar e registrar dois espetáculos de dança que
ocorrem na Charqueada São João e no Porão do Museu do Doce, respectivamente, como uma
condição de reivindicação para com a Memória escravagista vivificada na história Pelotense,
sendo esta muitas vezes relegada e vista como mão de obra secundária, isto é, visto como
segundo plano tanto na edificação da cidade como condição de cidadão e como manutenção de
direitos básicos.
O primeiro espetáculo, intitulado “A Dança dos Orixás” de concepção e desenvolvimento da Cia.
de Danças de Matriz Africana Daniel Amaro, da cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul, é realizado
frente à ruína de uma senzala da Charqueada São João, visando uma ressignificação dos espaços
edificados por mãos escravizadas. Isso porque muitos dos sítios históricos da cidade de Pelotas
foram apropriados pela branquitude de forma a apagar o histórico de resistência antiescravista,
logo a problemática embasa-se pelo reconhecimento da a recuperação destas memórias como
um modo de reconstituir novas identidades em novos espaços (HAYES, 2012, p. 45).

832
Figura 01: Elenco A Dança dos Orixás na penúltima cena do espetáculo.

Fonte: Folamí Mídias – Acervo Pessoal

O segundo espetáculo ao qual esta pesquisa detém-se por analisar, é intitulado “Preto é o Lugar
onde Moro”, desenvolvido no âmbito do Curso de Dança-Licenciatura da Universidade Federal
de Pelotas, sendo então, apresentado no interior do Porão do Museu do Doce, proporcionando
ao espectador uma leitura sob as óticas de interpretações dadas sobre um olhar estereotipado
ao corpo negro na sociedade, em especial na cidade de Pelotas.

Figura 2: Cena Solo do Espetáculo Preto é o Lugar Onde Moro.

Fonte: Acervo Pessoal

Deste modo, é pertinente destacar que a proposta apontada por esta pesquisa, desenvolve-se
através do olhar e vivência de uma professora e bailarina negra natural da cidade de Pelotas,

833
cidade que tem seu desenvolvimento histórico atrelado ao ciclo econômico do charque, e ao
trabalho escravizado. Histórico esse que deixa marcas/reflexos na constituição social
contemporânea da cidade, sobretudo na forma do racismo estrutural.
Neste sentido, o trabalho encontra na dança e em específico nas obras aqui elegidas para
análise, uma forma de ressaltar a voz que tanto tentou-se silenciar, coibindo suas práticas
culturais nativas, durante o período diaspórico e ao longo da contemporaneidade a partir de
uma readaptação e apropriação cultural. Logo, pretende-se retomar por meio da expressividade
impregnada em ambas dramaturgias dos espetáculos, o corpo como movimento de resistência
para a Cena Negra.
Além disso, o discurso político presente em cada partitura coreográfica dialoga com o mundo
contemporâneo, despertando inquietações sobre nosso lugar no mundo e implicando na
movimentação afro uma poética narrativa de memórias.
Este conceito e entendimento de memórias é oriundo e apontado através dos espaços cênicos
que interferem diretamente na concepção das obras, despertando melindres sobre
pertencimento, identidade, memória, espaços e a realidade da história negra neste território,
principalmente na Charqueada São João, e nos casarões do centro de Pelotas.

3 – A dramaturgia da Dança Negra no contexto acadêmico


A investigação é caracterizada por uma abordagem do critério metodológico qualitativo,
mediante um olhar auto-etnográfico com enfoque na história oral. Ao colocar-me em relação
direta com os objetos de estudo, passo a entender lugares de subjetividade sobre o próprio eu
ali impregnado, interpretando as diferentes experiências pessoais e o contexto cultural imerso,
indo em busca da resolução dos questionamentos acerca das estruturas políticas do eu. Motta
e Barros (2015. p.89) dizem ser a visibilidade para si, o eu do pesquisador tornando-se visível no
processo sem que haja uma separação do ambiente em pesquisa, sendo deste modo, o eu
conectado com todo seu entorno.
Acredita-se assim que a auto-etnografia, é o olhar sobre o corpo que somos, expressamos e
lemos em nós mesmos, ainda que haja a interferência de outrem, a partir dos próprios
instrumentos de coleta de dados, onde escutamos a versão e interpretação que outros corpos
têm sobre nós. Nesta perspectiva, Pelias (2013, p.388) assume uma posição dizendo que:
É escrevendo sobre mim que eu falo a partir do corpo, é uma escola
sintonizada no visceral e somático, meu corpo e minha mente trabalham
como numa orquestra, como o lugar onde a história é gerada internamente,

834
somaticamente, para se manifestar externamente, semanticamente; eu sou
meu corpo falando. (p.388)

A partir de tal compreensão, torna-se possível apreender a ideia que a auto-etnografia é em


suma, o diálogo presente entre o lugar de fala apontado na pesquisa de Djamila Ribeiro (2017)
e do pesquisador/objeto com as relações sociais e culturais impregnadas na temática. O que
concomitantemente é possível associar à compreensão acerca dos conceitos de memória a
partir da perspectiva coletiva enquanto detentora de informações que se
relacionam/completam-se porém não se igualam.
Toda descrição é, de fato, uma interpretação no sentido de que é a seleção de
informações e atribuição de significações a partir de uma memória e de um
imaginário individual e coletivo. (...) a crise de representação impõe
firmemente a presença e a subjetividade do pesquisador até fazer deste o
objeto central nos estudos auto-etnográficos. (FORTIN, 2009, p. 83)

Ainda segundo a autora Sylvie Fortin, ela acredita que se o investigador é parte imanente do
produto pesquisado, porque não encontrar um modo de “observar o observador?”, isto é, por
que não olhar a si mesmo e escrever a partir de sua própria experiência? (FORTIN, 2013, p 83).
Deste modo, conclui-se que a metodologia aqui implicada, é pensada a partir da etnografia e da
auto-etnografia sob a ótica das Pesquisa em Processos Artísticos, que dialoga com uma
importante compilação de informações sobre a trajetória e processo de concepção do produto
artístico pensados para exibição em espaços não convencionais, ou seja, também os Lugares de
Memória. Por outro lado ainda, Sklar (1991) destaca o caráter particular da pesquisa etnográfica
e auto-etnográfica em dança, ela é única entre outros tipos de etnografia porque é
necessariamente ancorada no corpo e na experiência do corpo, ao invés de basear-se em textos,
artefatos ou abstrações.

4 – Os desdobramentos das (an)danças do silencimento Preto

Esse trabalho procura ressignificar as narrativas o modos de olhar para os patrimônios culturais,
uma vez que a proposta dialoga diretamente com as Danças Negras, performances artísticas que
potencializam o debate sobre patrimônio cultural. Oliveira (2008) diz que a dança é a
comunicação da cultura, e no caso da dança Afro Brasileira, é o representar da história do negro
no Brasil”. Ou seja, as obras aqui estudadas se valem da linguagem da dança como elo de
aproximação da história, a partir de um novo olhar, do contato do espectador com a cena, com
o ambiente, com os elementos arqueológicos dispostos na trilha de encenação, tendo estes
como figuras de objetos ligados às práticas espirituais dos ancestrais. Deste modo, o olhar acerca

835
dos espetáculos abrange um campo conceitual que ultrapassa o espaço/tempo da cena e
chegam ao íntimo do bailarino/intérprete fazendo-o um autoquestionamento acerca dessa
identidade negra que constitui-se a partir deste movimento do corpo afro-diaspórico.
Por outro lado, é importante destacar que a do método de pesquisa também está para a
possibilidade de perfazer a minha escrevivência, o que, segundo Evaristo (2009), é a “a escrita
de um corpo, de uma condição, de uma experiência negra no Brasil”, ou seja, a luta contra uma
existência e (re)existência, que seleciona partes estratégicas para esta evocação e reconstrução
do passado a partir de becos de memórias.

Referências

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evento Tecnology, Entertainment and Design (TED Global 2009)

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SKLAR, Deidre. On Dance Ethnography. Dance Research Journal, n. 23, p. 6-9, 1991.

836
“O POVO NA RUA, Ô PADRE A CULPA É SUA!”: conflitos em torno da festa de Nosso
Senhor dos Passos (Lençóis, Bahia)
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Liziane Peres Mangili*


Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP; Professora do Departamento de
Arquitetura, Urbanismo e Artes Aplicadas da UFSJ; liziane.mangili@ufsj.edu.br.

Este trabalho analisa os conflitos surgidos em torno da festa em louvor a Nosso Senhor dos
Passos, na cidade de Lençóis (Bahia), uma cidade que se formou no século XIX em virtude do
garimpo de diamantes, e que foi transformada, entre nas décadas de 1970 a 1990, em cidade
turística, chegando a ser cunhada como a capital do ecoturismo. A substituição da economia
diamantífera pela turística e a transformação da cidade em patrimônio histórico e ambiental
causaram conflitos entre grupos sociais, sendo os em torno da Festa um exemplo. Analisa-se
também formas de silenciamento de um desses grupos, como a ausência dos órgãos de
preservação no reconhecimento da festa enquanto patrimônio cultural.
Palavras-chave: Ressignificações culturais; turismo; Lençóis (BA), Festas Tradicionais.

This work analyzes the conflicts that arose around the party of Nosso Senhor dos Passos, in
Lençóis (Bahia), a city that was formed in the 19th century due to the diamond mining, and that
was transformed, between the decades of 1970 to 1990, in a tourist city, being coined as the
capital of ecotourism. The replacement of the diamond economy by tourism and the
transformation of the city into historical and environmental heritage have caused conflicts
between social groups, with those around the Party being an example. It also analyzes ways of
silencing one of these groups, such as the absence of preservation bodies in recognizing the party
as a cultural heritage.
Keywords: Cultural meanings; tourism; Lençóis (BA), Traditional Parties.

*Integrante do Observatório Urbano de São João del-Rei, projeto de ações indissociáveis de ensino,
pesquisa e extensão da Universidade Federal de São João del-Rei.

837
1 - Lençóis: de cidade do diamante a capital ecoturística

Lençóis é uma cidade da Chapada Diamantina (Bahia) que se formou na metade do século XIX,
em virtude do garimpo de diamantes. A cidade viveu um intenso apogeu seguido de um rápido
declínio, que culminou em sua decadência física e econômica cem anos mais tarde.
Na década de 1970, um grupo de moradores propôs seu tombamento como patrimônio
nacional, conseguindo sua inscrição no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 1973. A ideia era
transformar a cidade em patrimônio nacional para atrair o turismo e assim, reerguer a
economia, já que a da extração de diamantes já não a movimentava e estava cada vez mais
inviável ambientalmente, após a instalação do garimpo de draga na região. Ao tombamento pelo
IPHAN, seguiram-se uma série de movimentos ambientalistas que tiveram Lençóis como centro
de articulação; entre eles, o que levou à criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina,
em 1985, e outras unidades de preservação municipal e estadual (MANGILI, 2015).
A atividade turística, cada vez mais intensa, decorrente dessas ações, traria alguns conflitos. Por
um lado, o governo da Bahia, ao transformar a Chapada Diamantina em destino ecoturístico,
lança uma forte campanha de divulgação na mídia cujo foco é a natureza, desvinculando, assim,
o garimpeiro de serra como o protagonista na produção daquela paisagem. Por outro lado, a
população se vê cada vez menos atendida por recursos, que são destinados todos ao turismo, e
tem que dividir o seu espaço com o turista e com novos moradores, além de competir com eles
pela representatividade cultural (MANGILI, 2015).
Essas tensões repercutem em todos os níveis da vida cotidiana e coletivamente também nas
manifestações da religiosidade e da cultura, como na festa de São João e na de Nosso Senhor
Bom Jesus dos Passos. A festa de São João, mais afeita ao slogan “São João na Bahia”, ganhou
proporções cada vez maiores visando atrair turistas, distanciando-se de suas origens de uma
festa pequena, feita e voltada para a população1. Já a Festa de Nosso Senhor dos Passos,
tipicamente da população garimpeira, visto ser este o patrono dos garimpeiros de Lençóis,
mesmo tendo incorporado novos elementos ao longo dos anos, manteve-se dentro dos moldes

1
Um relatório elaborado pela Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia dimensiona a
problemática dessas mudanças nas festas de São João: “Do ponto de vista cultural, o principal
questionamento da passagem de festa tradicional para uma dimensão de evento decorre da ruptura com
expressões diversas e lúdicas que, antes, marcavam as celebrações do São João, proporcionavam
integração social e fortaleciam a identidade das comunidades. A padronização da festa pela indústria
cultural redesenhou as formas de manifestação, dando-lhe formato de evento lucrativo para os
empresários e de elevado custo para as prefeituras municipais”. (BAHIA, 2013, p. 7).

838
de há mais de cem anos. Porém, em 2014, iniciou-se um conflito entre o pároco local e a
Sociedade União dos Mineiros (SUM), entidade tradicionalmente responsável pela organização
da Festa e composta por ex-garimpeiros de serra e seus descendentes. Conflito que, na leitura
da SUM, teve relação com o restauro da Igreja de Nosso Senhor dos Passos pelo Programa
Monumenta2. Numa tentativa de preservar a festa e seu domínio para si, a SUM travou uma luta
pela patrimonialização da festa: o seu reconhecimento como patrimônio cultural.

2 - “Há fulgores em todas as partes e alegrias em todos os corações”: a festa dos garimpeiros
de Lençóis
A Festa de Senhor dos Passos, tradicionalmente organizada pela SUM, tem início no dia 24 de
janeiro e estende-se por nove dias, finalizando no dia 2 de fevereiro, quando é comemorado o
dia de Senhor dos Passos3. A rica descrição da festa por Maria Salete Gonçalves vale a longa
transcrição:
Durante todos os dias se repete o mesmo ritual: o dia começa às cinco horas
da manhã, com a alvorada; tocam os sinos da Igreja de Senhor dos Passos;
soltam-se rojões; a Lira, no adro da Igreja, toca o hino do Senhor dos Passos.
Em seguida faz-se a passeata, a Lira na frente, o povo seguindo atrás; a
passeata percorre algumas das ruas principais da cidade e termina na sede da
Lira. A missa é às sete horas da manhã. Ao meio-dia e às seis da tarde tocam-
se os sinos e soltam-se rojões. Aliás, a qualquer hora, do dia ou da noite,
soltam-se foguetes e rojões, ou porque chegou alguém que era esperado, ou
simplesmente porque é festa! Às oito da noite há reza, com nova passeata,
como a da manhã; a única diferença é a presença da marujada, que se
apresenta sem uniforme, fechando o cortejo.
(...)
Próximo do início da festa, a Igreja do Senhor dos Passos é pintada, a cada
ano de uma cor (verde, azul, amarelo). No primeiro dia, o adro já está
enfeitado com as bandeirolas de papel. Então a igreja é lavada: o seu interior,
o adro, as escadarias. Incumbem-se desta tarefa as mulheres, muitas delas
em pagamento de promessa.
As ruas por onde irá passar a procissão, só serão enfeitadas na noite do 1º.
dia de fevereiro. As fachadas das casas são ornamentadas com palmas de
dendê; os leitos carroçáveis são cruzados por bandeirinhas, a uma altura
calculada, para que, durante a procissão, o braço da cruz do Senhor dos

2
O Programa Monumenta foi um programa desenvolvido pelo Ministério da Cultura (MinC) e pelo BID,
com parceria da UNESCO e do IPHAN, inspirado em ações anteriores de preservação deste último na
cidade de Quito. De âmbito nacional, o programa atuou em 26 cidades brasileiras, tombadas pelo IPHAN
ou detentoras de Conjuntos Urbanos tombados, entre 1999 e 2009.
3
Em Lençóis comemora-se no dia da chegada do santo na cidade, em 1852. Contam os moradores que a
imagem veio de Portugal, em navio, entrou pelo rio Paraguassu de barco e foi levada até Andaraí. De lá,
foi carregada até Lençóis pelos garimpeiros. Duas imagens vieram no mesmo “carregamento”, uma no
tamanho natural de um homem médio, e outra menor. A menor iria para Lençóis e a maior ficaria em
Feira de Santana. Por descuido (ou milagres, como preferem atribuir os moradores), a imagem maior foi
para Lençóis.

839
Passos vá desprendendo os cordões coloridos pelas bandeirinhas de papel de
várias cores e tons. Elas são preparadas pelo povo, com bastante
antecedência: folhas de papel de seda são cortadas; as bandeiras são coladas
em fios de barbante e depois são enroladas como carretéis, em torno de
cabos de vassoura, para que possam ser guardadas com cuidado, sem o risco
de se rasgarem. (GONÇALVES, 1984, p. 193-194)

Cada noite é dedicada a um grupo da sociedade: noite das crianças, das moças, das casadas, dos
funcionários, do movimento comunitário, dos negociantes, dos fazendeiros, dos artistas
(alfaiates, barbeiros, ferreiros, artesãos), e a última noite, dos garimpeiros. Essa é uma das
dimensões variáveis da festa e que incorpora as mudanças na sociedade. A sequência de noites
anteriormente apresentadas é do início da década de 1980. Nota-se que o “movimento
comunitário” (MCC)4, que ainda existia, tinha uma noite dedicada a ele. Em 1942, a penúltima
noite foi dos “músicos e soldados” (FESTA..., 1942a, p. 1), tendo havido também neste ano a
novena “dos negociantes” (FESTA..., 1942b, p. 1). No ano de 1944, a sequência de novenas seria:
das crianças, das moças, das casadas, dos empregados do comércio, dos negociantes, dos
artistas, dos compradores de diamantes, da Filarmônica Lyra Popular e dos garimpeiros
(FESTEJOS..., 1943, p. 2). Em 1949, uma das noites foi “dos bancários” (NOVENAS..., 1949, p. 6),
e provavelmente, coincida com a época da abertura da agência do Banco do Brasil na cidade.
Em 1999, a sequência foi: crianças, jovens, casais, funcionários, filarmônica, aposentados,
comerciantes, artistas e garimpeiros. Nota-se que as noites das “moças” e das “casadas”
transformou-se em dos “jovens” e dos “casais” (BAHIA, 1999).
As alvoradas constituem-se na abertura de cada dia da festa, quando é feita uma passeata pela
cidade “aos sons estridentes do repicar dos sinos, aos estalidos dos foguetes do ar, e dos
maviosos acordes da Lyra Popular” (FESTA..., 1947, p. 4), que termina nas portas da Igreja Senhor
dos Passos. A presença da Filarmônica Lyra Popular é constante durante toda a festa,
principalmente nas alvoradas e nas missas. Tanto na noite quanto na alvorada dos Garimpeiros,
no último dia, ocorre o auge da festa:
As novenas que começaram no dia 24 de Janeiro foram todas bem
solenizadas pelos seus dignos mordomos, com especialidade a última, a Noite
dos Garimpeiros, que então foi esplêndida, pois a passeata da madrugada,
traz às ruas da Cidade, toda a sua população, a ostentar alegremente as
simbólicas bandeirinhas. (FESTA..., 1947, p. 4).

4
O Movimento Criatividade Comunidade (MCC) foi um movimento de moradores de Lençóis responsáveis
pela transformação da cidade em patrimônio histórico. Além desta ação, o MCC desenvolvia outras de
natureza assistencial. Ver Mangili, 2015, especialmente Cap. 1.

840
Até 2014, a abertura da festa ocorria com uma lavagem das escadarias pelas baianas, com flores
e água de cheiro. A lavagem pelas baianas acontecia como preparativo para a festa: era feita
dentro e fora da igreja. Há alguns anos, o pároco proibiu a lavagem do interior; mesmo assim
ela é feita, na parte da fora, com as portas da igreja fechadas. O evento é acompanhado pela
apresentação da Filarmônica Lyra Popular. Após a lavagem, o grupo de capoeira da cidade,
Grupo Estiva, faz uma roda no adro da igreja.

Figura 01 (à esquerda): lavagem das escadarias da Igreja de Senhor dos Passos. Figura 02 (à direita):
procissão da Festa em Louvor a Nosso Senhor dos Passos, em Lençóis.

Fonte: Figura 01: Autor Tom Alves; Figura 02: Autor Calil Neto. Acervo da autora, 2014.

A festa é de grande importância para os moradores de Lençóis, e não deixava de acontecer


mesmo nos anos mais difíceis. Quando o garimpo ainda estava em atividade, eram dias de
reunião de todos e de compartilhamento na cidade:
Nestes dias, garimpeiro nenhum fica na serra. Todos eles descem, vem à
cidade enfeitá-la e enchê-la de ruído e contentamento. E então, ruas e Igreja
como por um encanto se transformam. As ruas engalanadas parecem sorrir
com os Garimpeiros. A Igreja de Senhor dos Passos, toma logo um aspecto
festivo. Os altares são ornamentados com esmero. Há fulgores em todas as
partes e alegrias em todos os corações. (NOTÍCIAS DE MAMAPE, 1943, p. 2).

3 - Eis que os garimpeiros são proibidos de participar… da sua festa! A luta da SUM em defesa
da tradição
No início do ano de 2014, um grupo de moradores de Lençóis saiu às ruas portando cartazes e
adesivos colados nas roupas com os dizeres “Amo Lençóis e defendo as suas tradições!”. Traziam
a imagem de um garimpeiro sobre fundo amarelo, vestindo calça curta e chapéu, com uma
bateia nas mãos, dentro de um curso d’água, e uma foto de Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos
carregando sua cruz, com a legenda “Senhor dos Passos Padroeiro dos Garimpeiros”. Havia

841
ainda na imagem o logotipo da Sociedade União dos Mineiros (SUM), duas mãos entrelaçadas
em um gesto de cooperação e acordo.
O grupo se reuniu em frente à sede da SUM, desceu a Av. Sete de Setembro, passou pela Praça
Horácio de Matos e pela Praça das Nagôs, e dirigiu-se, pela Rua do Rosário, para defronte da
igreja de mesmo nome, ao lado da qual está situada a casa paroquial. Entoaram durante todo o
trajeto o grito “o povo na rua, ô, padre, a culpa é sua”5.
Nos dias anteriores, havia sido distribuído um folheto pela cidade trazendo o mesmo título dos
cartazes e do adesivo, uma espécie de convocação da comunidade para a luta da SUM:
Querida Comunidade:
nós conhecemos bem a história da nossa Terra e sabemos que por mais de
160 anos os garimpeiros que trouxeram a imagem de Nosso Senhor Bom
Jesus dos Passos, no dia 02 de fevereiro de 1852, construíram a “capela” e
desde então criou-se o costume de festejar com um novenário, em louvor ao
Santo, que se tornou “Padroeiro dos Garimpeiros”. Lembramos que a
“Mineira”6 assume por mais de 80 anos as responsabilidades de cuidar da
capela, ser guardiã do seu Padroeiro e da organização da Festa em parceria
com a Prefeitura e a Paróquia local, sendo a sua Presidente oficial. Nos dias
atuais, a Paróquia vem fazendo modificações no Novenário que contrariam
as tradições desse e este ano, chegou ao ponto de excluir a SUM da
Presidência e organização da Festa.
A Sociedade União dos Mineiros representa e simboliza esta história e é
responsável pela manutenção das tradições garimpeiras desta cidade. Senhor
dos Passos sempre foi, é e será o “Padroeiro dos Garimpeiros”.
É importante ressaltar que foi aberto um diálogo com o Pároco, sem sucesso.
O mesmo continua irredutível.
A SUM MOBILIZA A COMUNIDADE A PARTICIPAR DA DEFESA PELA
PERMANÊNCIA DAS TRADIÇÕES DA FESTA DO NOSSO SENHOR BOM JESUS
DOS PASSOS, PARA QUE NÃO SE PERCA A MEMÓRIA DO NOSSO POVO.
VALORIZAMOS E RESPEITAMOS A RELIGIOSIDADE E CULTUAMOS AS NOSSAS
TRADIÇÕES. (SOCIEDADE UNIÃO DOS MINEIROS, 2014).

A Festa em louvor a Nosso Senhor dos Passos é uma festa tradicionalmente organizada pela
SUM. A Igreja de Senhor dos Passos é até hoje mantida pelos sócios da SUM, que se
responsabilizam pela contratação de um funcionário para limpar a igreja, cuidar das vestes e dos
cabelos do santo. Assim como o padre, a SUM possuía, até 2014, uma chave da igreja.
Os conflitos com o pároco local já haviam se iniciado há alguns anos, quando ele proibiu a
lavagem do interior da igreja, por exemplo. Mas o estopim para o descontentamento da SUM

5
Diversas páginas publicaram um vídeo da manifestação, entre elas, a G1 (de O Globo): Grupo pede
saída de padre durante manifestação na Bahia. Disponível em:
<http://g1.globo.com/bahia/noticia/2014/01/grupo-pede-saida-de-padre-durante-manifestacao-na-
bahia-veja-video.html>. Acesso em: 5 jan. 2014.
6
A “Mineira” é outra forma como a SUM é chamada.

842
deu-se em 2014, quando ele a excluiu da organização da festa e fez algumas mudanças: atribuiu
o último dia do novenário aos “garimpeiros e turistas”; proibiu os garimpeiros de abrirem a
procissão, como tradicionalmente faziam, situando-se em frente do andor, ordenando que
ficassem no final da procissão; não dobrou os sinos na alvorada dos garimpeiros (informação
verbal)7, também uma tradição da festa, e proibiu que os garimpeiros carregassem a “onça” na
passeata da alvorada (informação verbal)8. Também criou conflitos com a Filarmônica Lyra
Popular, sociedade “irmã” da SUM, ao exigir que ela tocasse gratuitamente nas festas.
Tradicionalmente, cada “noite” tinha uma comissão de organização, recebia recursos da SUM e
organizava a sua “noite” à sua maneira, contratando a Lyra Popular para tocar. Havia também
uma comissão geral da festa, com presidente e juízes, que elegiam a “melhor noite”.
A presença da “onça” está fortemente relacionada ao cotidiano do trabalho e ao imaginário do
garimpeiro. É uma onça de pano, morta, carregada em uma vara de madeira, amarrada pelos
pés. Os garimpeiros exibem a onça que “mataram, porque ela comeu a noite” (informação
verbal).9 “Quando a festa não era boa, que não tinha muito movimento, diz-se que a onça comeu
a noite dos garimpeiros” (informação verbal)10, que pode ser qualquer uma das noites (das
crianças, dos negociantes, etc.). Associa-se também a onça a qualquer coisa ruim, “se a onça
não tivesse comendo, estava tudo ok”, referindo-se ao fim do garimpo (informação verbal).11
Outra restrição aconteceu em 2014, quando o padre não deixou que os membros da SUM
trocassem a roupa da imagem de Senhor dos Passos, outro gesto tradicional na comemoração:
“Quando os membros [da SUM] entraram na igreja, ela já estava lavada e a roupa já estava
trocada”, declarou a presidente da SUM ao jornal Bahia Notícias (MARQUES, 2015).
Ao que parece, em outras ocasiões a Igreja já havia tentado tomar exclusivamente para si os
festejos: em 1989, “a Igreja pretendia fazer alterações no horário, mas a SUM não concordou”
(FESTA..., 1989, p. 2) . Membros da SUM relatam que já houve conflitos também com outro

7
“Mas batemos a sineta lá na Mineira. Nós batia na marra. Tinha uns garimpeiros daquele tempo, era
revoltado viu. Hoje só tinha uns velho por aí meio caduco que nem eu”. Informação fornecida por Anísio
Alves de Macedo em entrevista realizada em Lençóis/BA, em 6 de janeiro de 2014, por Alexandre Aguiar.
8
Edson falou sobre a proibição de carregar a onça, mas o garimpeiro Anísio não confirmou essa
informação. Informação fornecida por Anísio Alves de Macedo em entrevista realizada em Lençóis/BA,
em 6 de janeiro de 2014, por Alexandre Aguiar.
9
Informação fornecida por Anísio Alves de Macedo em entrevista realizada em Lençóis/BA, em 6 de
janeiro de 2014, por Alexandre Aguiar.
10
Informação fornecida por Anísio Alves de Macedo em entrevista realizada em Lençóis/BA, em 6 de
janeiro de 2014, por Alexandre Aguiar.
11
Informação fornecida por Anísio Alves de Macedo em entrevista realizada em Lençóis/BA, em 6 de
janeiro de 2014, por Alexandre Aguiar.

843
pároco, “já teve [divergências] com outros padres, mas esse foi o pior que já teve. Porque nós
viemos aí pra fazer o conserto da Igreja, ele não deixou, diz que ia fazer depois” (informação
verbal).12
Para alguns moradores, a falta de consulta à SUM pelo Programa Monumenta13 contribuiu para
que o padre “se sentisse dono da Igreja”: o programa “chegou e desconsiderou a entidade que
a vida inteira cuidou da capela, não procurou saber da SUM. Na cerimônia de inauguração da
Igreja, com o governador e todas as autoridades, a chave foi entregue ao padre” (informação
verbal).14

4 - Os pedidos de salvaguarda da Festa e o silêncio dos órgãos de preservação


Em dezembro de 2014, a SUM, antevendo mais conflitos com o pároco, convocou seus membros
para reunião em sua sede, para discutir que medidas poderiam tomar como meio de resgatar o
direito de participar na organização da festa. Uma possibilidade levantada foi a de entrar com
pedido na justiça pela sua não alteração. Outra, a de solicitar o seu tombamento como
patrimônio imaterial ao IPHAN, no sentido de preservar a tradição da festa (informação
verbal)15.
Quando se dirigiram ao IPHAN, a resposta dada pelo funcionário do órgão foi a de que nada se
podia fazer: “O IPHAN só pode intervir se tiver descaracterização do patrimônio” (informação
verbal).16 Essa afirmação reflete uma prática, consolidada pelo IPHAN, que criou um modus
operandi de se fazer patrimônio que considera prioritariamente os atributos ligados à
materialidade (MOTTA, 2000). Mesmo que tenham havido diversos avanços no campo do
patrimônio imaterial no Brasil, que culminaram na criação do Decreto nº 3.551 de 04 de agosto
de 2000 - que institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial - a ideia do que é
patrimônio permanece associada aos bens materiais, tanto no senso comum quanto até entre
alguns técnicos do patrimônio.

12
Informação fornecida por Anísio Alves de Macedo em entrevista realizada em Lençóis/BA, em 6 de
janeiro de 2014, por Alexandre Aguiar.
13
Nos anos de 2007 e 2008, o Programa Monumenta realizou a restauração da Igreja Nosso Senhor dos
Passos.
14
Informação fornecida por Rilza Ribeiro Rola em entrevista realizada em Lençóis/BA, em 12 de dezembro
de 2014.
15
Informação fornecida por Edson em entrevista realizada em Lençóis/BA, em 10 de janeiro de 2014.
16
Informação fornecida por Manoel Messias Alcântara em entrevista realizada em Lençóis/BA, em 10 de
janeiro de 2014.

844
Diante dessa negativa, a SUM entrou com uma Ação Civil Pública “contra as modificações
introduzidas pelo Pároco Gercival Vieira na Festa e pelo direito de conduzir sua organização nos
vindouros anos”17. O Ministério Público, então, abriu um inquérito civil (099/2015, de 18 de
dezembro de 2015) e, por meio da Recomendação Nº01/2016, fez “uma série de
recomendações à Diocese de Irecê com o intuito de mitigar as questões em conflito com a
Sociedade União dos Mineiros (SUM) e recomendações ao IPHAN e IPAC para o monitoramento
e acompanhamento da festa”18.
Apenas após a atuação do Ministério Público é que foi aberto o processo de registro da Festa no
Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia - IPAC (processo nº 0607150008540 de
05.05.2015), em 2015, e no ano seguinte junto ao IPHAN (processo nº 01450.0011822/2016-
56), embora o pedido tivesse sido feito em 08 de janeiro de 2015.
Até o momento, seis anos após a solicitação, ainda não foi feito o registro da Festa como
patrimônio imaterial em nenhum dos dois órgãos de preservação.

5 - Considerações finais

As mudanças ocorridas ao longo do tempo na festa de Senhor dos Passos, em Lençóis, bem como
os conflitos delas oriundos, nos conduzem a algumas considerações.
Em primeiro lugar, nota-se as alterações na festa, como a dedicação das noites, acompanharam
as mudanças na composição da própria sociedade lençoense: ao introduzir noites dedicadas a
novos segmentos, é como se os garimpeiros - organizadores e promotores da festa - estivessem
incorporando esses novos grupos sociais na sociedade. Quando, em 2014, o padre exclui a SUM
da organização da festa e define a última noite como a “dos garimpeiros e dos turistas”, é como
se ele estivesse colocando lado a lado os representantes da economia do passado (o garimpo) e
da presente (o turismo). Numa análise mais aprofundada, mostramos que a substituição da
economia diamantífera pela turística, e a transformação da cidade em patrimônio histórico
gerou, de fato, diversos conflitos, sendo o principal deles a “descaracterização cultural”,
considerando a cultura garimpeira como a “autêntica” (MANGILI, 2015). Nesse episódio da festa
de Senhor dos Passos de 2014, essa “descaracterização” afetou a percepção dos garimpeiros

17
Informação Técnica 076/2015, de 30/03/2015.
18
IPHAN. Processo 01502.000306/2020-20. Contratação de pessoa jurídica para execução de serviços
técnicos especializados de pesquisa em patrimônio cultural (pesquisa histórica e antropológica) e de
produção audiovisual de filmes etnográficos, para a elaboração do Dossier de Registro da Festa do
Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos na cidade de Lençóis/BA.

845
sobre sua própria cultura, levando-os a buscar meios de protegê-la, convocando manifestação
de “defesa da tradição” de Lençóis junto ao povo, solicitando seu registro como patrimônio
cultural e recorrendo ao Ministério Público para intervir na não descaracterização da festa.
Importante notar que, dentre esses recursos empreendidos pela SUM, o pedido de registro da
festa como patrimônio cultural não vingou, de início, e só foi considerado pelo IPHAN após a
intervenção do Ministério Público. Tal fato nos leva a levantar questionamentos sobre a
legitimidade dos pedidos de tombamento sob a ótica dos órgãos de preservação, bem como a
representatividade dos bens patrimoniais tombados. Ao mesmo tempo, o fato é um reflexo da
prática consolidada de preservação no país, que privilegia os bens materiais representativos de
apenas alguns segmentos da sociedade associados ao poder econômico, cultural ou político
(RUBINO, 1991; FONSECA, 1997; MOTTA, 2000; CHUVA, 2009; PORTA, 2012).

Referências

BAHIA. Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia. Efeitos da festa de São João em
municípios selecionados. Salvador: Publicações SEI, 2013, p. 6. Relatório. Disponível em:
http://www.sei.ba.gov.br/images/publicacoes/download/relatorios/relatorio_sao_joao.pdf>. Acesso
em: 30 jan. 2014.

CHUVA, Márcia. Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio


cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

FESTA de Senhor dos Passos. O Sertão, Lençóis, p. 1, 8 fev. 1942a.

FESTA de Senhor dos Passos. Novena dos negociantes. O Sertão, Lençóis, p. 1, 15 fev. 1942b.

FESTA do Senhor dos Passos em Lençóis. O Sertão, Lençóis, p. 4, 9 fev. 1947.

FESTA do Sr. dos Passos mantém as tradições. Lampião – Jornal da Chapada Turístico e Ecológico.
Lençóis, ano 1, n. 2, p. 2, fev. 1989.

FESTEJOS do Glorioso Senhor dos Passos. O Sertão, Lençóis, p. 2, 24 dez. 1943.

FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em Processo: Trajetória da Política Federal de


Preservação no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/IPHAN, 1997.

GONÇALVES, Maria Salete Petroni de Castro. Garimpo, devoção e festa em Lençóis, BA. São Paulo:
Escola de Folclore, 1984.

MANGILI, Liziane Peres. Anseios, dissonâncias, enfrentamentos: o lugar e a trajetória da preservação


em Lençóis (Bahia). Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo), FAUUSP. São Paulo, 2015.

MOTTA, Lia. Patrimônio urbano e memória social: práticas discursivas e seletivas de preservação cultural
1975 a 1990. Dissertação [mestrado em Memória Social], UNIRIO. Rio de Janeiro, 2000.

846
NOTÍCIAS DE MAMAPE. Reportagem sobre os festejos em honra do Glorioso Senhor Bom Jesus dos
Passos – excelso patrono da Sociedade “União dos Mineiros” nessa cidade. O Sertão, Lençóis, p. 2, 7 fev.
1943.

NOVENAS da Festa do Senhor dos Passos no ano de 1949. O Sertão, Lençóis, p. 6, 9 jan. 1949.

PORTA, Paula. Política de preservação do patrimônio cultural no Brasil: diretrizes, linhas de ação e
resultados: 2000/2010. Brasília/DF: Iphan/Monumenta, 2012.

RUBINO, Silvana. “O Mapa do Brasil Passado”. In. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
número 24, Brasília, 1996.

SOCIEDADE UNIÃO DOS MINEIROS – SUM (Bahia). Folheto de divulgação. 2014.

847
O QUE NOS DIZEM OS SONS? Uma análise da paisagem sonora no metrô do Rio de
Janeiro.
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Flora Kuri Milito


Bacharel em percussão e mestra em música (UFRJ)
floramilito@gmail.com

Este artigo apresenta parte da pesquisa etnográfica “Tem boi na linha: as práticas musicais no
metrô do Rio de Janeiro” (2019), com ênfase nas reflexões sobre a utilização do conceito de
paisagem sonora (SCHAFER, 2001), considerando as críticas feitas a ele, para a estruturação
deste campo conflitante e, contraditoriamente, tão tedioso na vida dos trabalhadores na cidade,
que é o transporte metroviário. Seu uso foi feito em algumas etapas do estudo, de maneira
materialista, histórica e dialética, com o objetivo de compreender o contexto sonoro e político
em que se conformam as práticas musicais nos vagões e os processos da disputa sobre seu
controle, que envolve trabalhadores, empresa gestora e Estado.
Palavras-chave: Paisagem sonora; Música e trabalho; Arte de rua.

This article presents part of the ethnographic research “Tem boi na linha: as práticas musicais no
metrô do Rio de Janeiro” (2019) with an emphasis on reflections on the concept of soundscape
(SCHAFER, 2001), and the criticisms towards it, for the structuring of this conflicting and,
contradictorily, tedious part in the life of workers in the city, wich is the subway transport system.
This concept was used in some stages of the study, in a materialistic, historical and dialectical
way, with the objective of understanding the sound and political context in which musical
practices conform within the subway cars and the dispute processes over their control, evolving
workers, management company and State.
Keywords: Soundscape; Music and Work; Street Art.

848
1 – Introdução
Quando entramos em uma estação de metrô na cidade do Rio de Janeiro, a depender do dia e
do horário, tomamos parte de uma dinâmica extremamente contraditória: entre atrasos,
correrias e disputas, em uma latente agressividade generalizada, coexiste uma monotonia
arrastada, que nos coloca em “modo automático”, no mau humor do tempo que não passa. A
rapidez e a destreza necessárias para adentrar e sobreviver ao caos, de súbito se transforma em
inanição, privação de movimentos na ausência de espaço do vagão abarrotado, uma caixa de
metal fechada viajando em alta velocidade. No campo visual, o cinza interminável de concreto
armado, nos subsolos ou em locais fechados entre pistas e viadutos, contrasta radicalmente com
as explosões de cores e formas das propagandas e da marca da empresa MetrôRio, nas paredes
e placas, nas plataformas e vagões, nos painéis eletrônicos e televisores.
O mesmo acontece com o campo sonoro: há os ruídos fortes e ininterruptos das escadas
rolantes e ventiladores, os sons agudos e marcantes dos trilhos, as freadas e chacoalhadas dos
trens, com um aumento de intensidade diretamente proporcional à falta de manutenção das
máquinas; há, por outro lado – na verdade, geralmente por cima de nossas cabeças – as caixas
de som que tocam a música da MetrôRio, os avisos sonoros, os sons de passarinhos, as playlists
aleatórias e também algumas propagandas de eventos importantes para a economia da cidade,
como o carnaval e o Rock in Rio. Esta tentativa de acalmar os ânimos com sons supostamente
agradáveis se mostra ainda menos exitosa quando as caixas de som estão rachadas1 ou em
volume inadequado, aumentando o desconforto geral. Há ainda os sons emitidos pelos próprios
passageiros, em conversas, risadas, espirros, choros, gritos, orações, e aqueles vindos dos
aparelhos celulares, em chamadas, músicas, programas de televisão, filmes, seriados, jogos,
despertadores, etc.
E é aqui, nesse universo corrido, parado, apertado, cinzento, colorido e cacofônico que entra o
artista, para fazer seu trabalho performático nos vagões. Portanto, pensar sobre o silêncio, tema
proposto por este congresso, pode parecer uma tarefa muito difícil, se não impossível, dado que
tratamos exatamente de uma gritante disputa pelo controle (não só) dos sons, em meio ao caos
auditivo. Mas quando nos propomos ao exercício e abrimos nossos ouvidos, conseguimos
escutar o silêncio barulhento a que milhões de trabalhadores desta capital brasileira são
submetidos em sua rotina de todos os dias, ida e volta, amontoados, amorfos, anestesiados;

1 Uma caixa de som está “rachada” quando apresenta ruídos, perde sua qualidade, devido à recepção de
sinais elétricos com intensidade superior à que é capaz de reproduzir.

849
também podemos atentar para o silêncio sendo quebrado pelos artistas em suas práticas nos
vagões, ressignificando o espaço de um transporte tratado como mercadoria, um serviço público
gerido por uma empresa privada; podemos, ainda, claramente perceber o silêncio que se impõe,
por empresa e Estado, a estes artistas que trabalham nos vagões, e que conforma sua
marginalização através da violência, da proibição, e mesmo da institucionalização das práticas
desta categoria de trabalhadores, que acontece “de cima para baixo”, de modo a descaracterizá-
las em relação à forma como elas originalmente se apresentam.
A partir destes pressupostos, a escrita a seguir apresenta parte da pesquisa etnográfica titulada
“Tem boi na linha: as práticas musicais no metrô do Rio de Janeiro” (MILITO, 2019), que teve
como objetivo entender como se dá o trabalho dos músicos que tocam nos vagões do metrô,
como eles se organizam e como acontece a influência do ambiente sobre as estruturas da
performance – principalmente o parâmetro sonoro – e vice versa. A apresentação dos
resultados dará ênfase no modo como o conceito de paisagem sonora (SCHAFER, 2001) foi
utilizado, principalmente nas fases exploratórias do trabalho de campo, mas também nas
reflexões que conformaram a análise final do trabalho.

2 – Paisagem sonora
Schafer (1933) é compositor, pesquisador e professor canadense. Ele define a paisagem sonora
como “o ambiente sonoro. (…) O termo pode referir-se a ambientes reais ou a construções
abstratas, como composições musicais e montagens de fitas” (Ibid., p. 366). O autor faz
analogias ao campo visual, porém, nos lembra que uma paisagem sonora trata-se de eventos
ouvidos, não vistos. Seguindo por este caminho, utiliza os termos “figura”, “fundo” e “campo”,
de acordo com entendimentos advindos da psicologia fenomenológica da Gestalt. Assim, a
figura seria o foco de interesse; o fundo, os sons do ambiente; e o campo, o local onde estes
eventos sonoros acontecem. Portanto, para estruturar uma paisagem sonora, Schafer buscou
compreender quais sons têm importância por sua individualidade, quantidade ou
preponderância e, com base no exposto, os dividiu em: a) “fundamentais”, ouvidos
inconscientemente, o fundo. “A figura é vista, enquanto o fundo só existe para dar à figura seu
contorno e sua massa. Mas a figura não pode existir sem o fundo; subtraia-se o fundo e a figura
se tornará sem forma”. (Ibid., p. 26) Estes seriam os sons provindos da natureza (geografia,
clima, animais, etc); b) ‘sinais”, sons destacados, ouvidos conscientemente, a figura. Muitas
vezes, estes sinais carregam códigos complexos, comunicam conteúdos (sinos, apitos, sirenes,

850
etc); c) “marcas”, sons de uma comunidade, com qualidades que os tornam únicos, notados pelo
povo de um lugar.
O título de seu livro, “A afinação do mundo” (SCHAFER, 2001) foi inspirado em uma ilustração
homônima, encontrada no livro “Utriusque Cosmi Historia” (História do Cosmos), de Robert
Fludd, em que o planeta terra possui, junto a si, uma corda esticada sobre uma caixa acústica
(instrumento chamado monocórdio) e a mão de Deus o está a afinar, girando sua tarraxa. Assim,
Schafer deixa clara a filosofia de seu Projeto Acústico: aperfeiçoar a orquestração da paisagem
sonora mundial, em um reencontro da afinação “original” do mundo, com a abordagem
interdisciplinar dos estudos de acústica, sociedade e artes. O World Soundscape Project,
formado entre as décadas de 1960 e 1970, se dedica a pensar a poluição sonora e a estudar os
sons que seriam positivos para a sociedade que, desde as revoluções industrial e elétrica,
experimenta importantes mudanças em sua paisagem. Portanto, esta escola valoriza os sons da
vida rural (chamados de hi-fi – alta fidelidade), que seriam mais inteligíveis, em detrimento dos
sons da vida urbana (chamados de lo-fi – baixa fidelidade).
A partir da virada do século XXI se tornaram mais articuladas e sólidas as críticas à teoria de
Schafer e da escola dos paisagistas, fato que foi considerado – e reiterado – quando da escolha
da utilização do termo na pesquisa sobre as práticas musicais no metrô. A crítica de Miguel
Alonso Cambrón (2005) tem como centro a noção de que todo evento é indissociável das
condições em que ocorre e que, portanto, não existe uma paisagem sonora “pura”. O autor
propõe, ao invés da biofonia (sons da vida, a sinfonia mundial) do movimento paisagista, uma
sociofonia, que parta de um ponto de vista social, relacional. Assim, o que na teoria de Schafer
seria chamado de ambientes insalubres (lo-fi), o autor chama de sistemas em constante
alteração.
Thaís Aragão, em seu artigo “Paisagem sonora como conceito: tudo ou nada?” (2019),
apresentou um panorama muito bem estruturado de críticas a Schafer em diferentes níveis,
umas mais extremas que outras. Um exemplo é a posição de Ari Y. Kelman (2010), que “admite
que a paisagem sonora é um termo fundamental para os estudos do som, mas também o
considera problemático” (ARAGÃO, 2019, p. 4). O autor aponta para o viés ideológico de “A
afinação do mundo”, que prescreve quais sons importam, como os ambientes devem soar e
quais sons considerados negativos devem ser silenciados. A preferência de Schafer, em uma
paisagem sonora ideal, teria mais quietude, mais silêncio. Aragão nos traz a pergunta, segundo
Kelman: “Tal paisagem, de fato, já existiu?”.

851
Kelman aponta, ainda, algumas contradições nas ideias de Schafer. Uma delas é a divisão que o
paisagista faz entre sons “naturais” e sons “não naturais” (registros gravados e reproduzidos), já
que ele próprio utilizou e incentivou o uso de gravações para o estudo das paisagens sonoras;
realizou programas de rádio utilizando gravações ambientais; compôs música eletroacústica
com estes registros. Outra, é a intenção de Schafer, em seu projeto de paisagem sonora mundial,
de silenciar os ruídos de fundo, principais causadores da insalubridade dos ambientes urbanos,
lo-fi. Ora, se em seu próprio legado “o ruído de fundo não impede a produção de sentido, mas
é intrínseco a ela” (KELMAN, 2010 apud ARAGÃO, 2019, p. 6), a contradição é evidente e
demonstra o que
Arkette chama de preconceito com o urbano (ARKETTE, 2004, p. 161). Para
ela, Schafer tapou os ouvidos para as potencialidades do som na
compreensão das relações que se dão nas cidades. Não se trata de ser
condescendente com abusos, afirma a pesquisadora – seria possível tratar
deles sem rejeitar as características próprias desses lugares. (ARAGÃO, 2019,
p. 5)

3- Os sons do metrô no Rio de Janeiro


No início das idas a campo foi necessário treinar um certo distanciamento em relação aos
ambientes do metrô, já que sou usuária deste modal de transporte diariamente e meus sentidos
entravam automaticamente naquele modo mau humorado, introspectivo e tedioso. Senti a
necessidade, então, de estar ali como uma observadora: antes de acompanhar os músicos do
metrô (muitos deles conhecidos/colegas/amigos) seria preciso um olhar de fora para aquele
mundo, estranhar tudo a minha volta. O exercício da audição demonstrou-se incrivelmente
prolífico dentro deste estranhamento, e aí se encaixou a paisagem sonora. O conceito é bastante
usado na educação musical, principalmente para iniciação aos parâmetros sonoros, ativação da
concentração auditiva, “limpeza” dos ouvidos, e tem ampla divulgação no Brasil através do livro
“O ouvido pensante” (SCHAFER, 1991). Na área da educação, geralmente não se trabalha com
uma fixação nas prescrições ideológicas do autor, mas se usa a abertura do conceito enquanto
método de percepção, percepção essa que pode ou não ser trabalhada de maneira crítica pelo
professor de música.
Tendo eu mesma sido educada musicalmente através deste método, na infância, e usado a
técnica para dar aulas, com maior ou menor frequência, vislumbrei a possibilidade de pensar
sobre a paisagem sonora do metrô, abrir os ouvidos a perceber, classificar e então incluir os sons
– não só aqueles das práticas musicais no vagão, objeto central do estudo – nas análises de todo
o trabalho. Portanto, a utilização da paisagem sonora enquanto método para a percepção mais

852
atenta do mundo que eu estava pesquisando se deu de maneira flexível, considerando sua
utilidade com vários limites (já apresentados) e adaptando-a às necessidades da própria
pesquisa. Portanto, ela foi utilizada de maneira histórica, materialista e dialética, para entender
o enquadramento de um meio de transporte público, gerido por uma empresa privada, que tem
uma das tarifas mais caras do mundo, é superlotado, em uma metrópole globalizada de um país
capitalista e periférico.
Os primeiros parâmetros sonoros foram distinguidos entre os dois tipos de estação existentes
no metrô do Rio: as fechadas, subterrâneas, da linha 1; e as abertas, na superfície, no trecho da
linha 2 a partir da estação Central na direção norte.
As chegadas, permanências e partidas das composições, os sons dos enormes
ventiladores e das caixas de som (...) dominam a paisagem sonora das
plataformas que são fechadas e subterrâneas. Por outro lado, apesar da
existência destes mesmos elementos, as plataformas abertas na superfície
permitem que os ruídos se dissipem e também que se ouça o som de fora (...)
Essa diferença foi percebida em campo pela primeira vez curiosamente
quando estava dentro de um vagão. O barulho que vem de fora dele quando
as portas se abrem para entrada e saída de passageiros é quase atordoante
em alguns momentos na linha 1, o que não acontece tão intensamente no
trecho já especificado da linha 2. Estando nas plataformas nos mantemos, de
certa maneira, acostumados ao elevado volume dos ruídos, tendendo a não
notá-los quando não há outra referência marcada. (MILITO, 2019, p. 61-62)

A dicotomia zona norte/zona sul é gritante no projeto do metrô do Rio de Janeiro, com vagões
provenientes de bairros com realidades sociais diferentes que passam pelas mesmas
plataformas, ou seja, duas linhas que passam pelo mesmo local sem “misturar” as pessoas. Além
disso, a linha 2, que vem da Pavuna2, tem horários de funcionamento mais restritos aos finais
de semana, com a necessidade de fazer baldeação no sentido zona sul. Os sons encontrados nos
vagões foram: encaixe dos trilhos, chacoalhar do vagão, freios, ar condicionado, caixas de som,
abertura e fechamento de portas. Foram notadas diferenças entre os trens, que possuem níveis
sonoros mais altos quanto mais antigos forem e sem manutenção estiverem. A questão da falta
de manutenção atinge toda a estrutura do metrô, e ela é determinada pelo fato de ser uma
empresa quem decide para onde vão os investimentos. Se nota que a escolha por melhorar a
diversidade em formas de pagamento, espaços de publicidade, policiamento e serviços de
controle sobre trabalhadores e usuários, acontece em detrimento de aumentar a capacidade do
transporte (quanto mais superlotação, mais lucro), fazer a manutenção de maquinário, seja do
próprio transporte, ou os que garantem acessibilidade, como escadas rolantes e elevadores que

2 Bairro da zona norte da cidade do Rio de Janeiro.

853
muitas vezes não funcionam, aumentar o número de trabalhadores nos caixas e nos serviços de
informação, etc. Além destes sons comentados, obviamente, há aqueles feitos pelas pessoas e
aparelhos celulares, que não serão expostos neste breve texto.

4- Sound Branding (Marca Sonora)


Outro elemento que se destaca na análise política da paisagem sonora são as caixas de som.
Elas geralmente estão em lugares estratégicos nas estações e plataformas,
camufladas nos tetos, pilastras e redes de iluminação, de modo a exercer um
papel de onipresença, de sons ‘naturais’, de uma trilha sonora... Esse tipo de
ambientação é utilizado pela empresa com o objetivo de negar todos os
problemas, tensões e desconfortos que foram brevemente relatados. Além
dos sons de passarinhos, que ironicamente tocam em todas as estações,
existe uma “música do metrô”, que é instrumental e feita de levadas com
misturas do pop, do funk e da música brasileira, com timbres de instrumentos
de percussão bem marcados – tamborim, cuíca e pandeiro – e um clima
‘otimista’, em acordes maiores denotando repouso, sem tensões. (Ibid., p. 62)

Não só a “música do metrô” mas toda a ambientação sonora dos espaços é feita pela empresa
de sound branding Zanna Sounds, que diz que “a música cria intimidade entre marcas e
pessoas”3 (grifo original). A MetrôRio investiu em uma agência para criar a sua cara, ou melhor,
o seu som, na tentativa de articular a experiência do transporte com afetos. Além desta
ambientação, todos os avisos sonoros são feitos com a estética construída pela Zanna Sounds,
que também faz a identidade sonora de outras empresas, como as gestoras do metrô em São
Paulo (ViaQuatro) e em Salvador (CCR Metrô Bahia), VIVO, O Boticário e o Banco do Brasil.
Os avisos sonoros têm óbvia importância para o funcionamento do metrô, indicando aos
passageiros as próximas estações, o fechamento das portas, falhas na operação, horários
excepcionais, funcionamento das saídas, mudanças de preço das tarifas, etc. Antes e depois
destes avisos, são reproduzidos sinais sonoros que se destacam do fundo na paisagem sonora,
têm um significado compartilhado, chamam a atenção do usuário. Há também um outro tipo de
avisos sonoros, que assumem funções de controle social dentro do metrô, sempre baseados na
moral do “faça sua parte”: “não sente no chão”, “não ultrapasse a faixa amarela”, “ofereça ajuda
ceda o lugar” (sobre os assentos preferenciais).
Além destes, há um que versa sobre a proibição do trabalho de vendedores ambulantes. No
princípio das idas a campo, a palavra “proibido” nunca estava presente nele, que apenas dizia
que o usuário do metrô não deve comprar mercadorias vendidas no vagão, já que elas podem

3 Disponível em: <www.zanna.net>.

854
ser falsas ou estar fora da validade. Este conteúdo também aparecia em cartazes espalhados
pelas estações, em uma clara campanha de criminalização da categoria de trabalhadores, que
teve grande aumento numérico a partir da crise de 2016. Nos meses finais da pesquisa, porém,
era possível ouvir: “Conforme resolução da Secretaria de Transportes, o MetrôRio está
autorizado a reter qualquer tipo de mercadoria comercializada ilegalmente dentro dos trens e
estações. Não colabore com esta prática. Obrigada”. O caráter legalista e punitivo passou a ser
bastante claro, demonstrando a mudança nos padrões de atuação da empresa. Os avisos de
controle social
soam exatamente como os avisos sonoros da operação funcional do
transporte, surgindo daquela mesma autoridade onipresente e, portanto,
entendidos supostamente como essenciais para que o serviço funcione neste
modal de transporte. (MILITO, 2019, p. 65)

Não existe um aviso que proíba ou coíba as práticas artísticas no metrô, mas há um que diz: “Ao
ouvir música em aparelhos eletrônicos utilize fones de ouvido, evite incomodar os demais.
Colabore”, seguido por sua tradução em inglês (como todos os outros). Nas experiências em
campo foram muitas as ocasiões em que este aviso tocou repetidas vezes, enquanto músicos se
apresentavam no vagão. Coincidência, ou não, o fato sempre trazia certa tensão ao ambiente.
Todos os avisos sonoros são feitos sob os padrões do sound branding.

5- As práticas musicais nos vagões


O trabalho de músicos nos vagões do metrô do Rio de Janeiro teve início mais relevante por
volta de 2010, com elevado aumento a partir de 2013, quando a prática se solidificou, e no
contexto dos mega eventos (2014 e 2016), quando seu número cresceu elevadamente,
despertando um debate público sobre sua legitimidade. “Com um número incontável de
artistas, as paisagens sonoras dos vagões, portanto, se alteram drasticamente e, em cada
ambiente se produz uma sonoridade diferente. Ao andar pelos vagões, ‘caminhamos entre
músicas, estamos na música’ (MURAT e POTENZA, 2019, p. 67).” (Ibid., p. 69).
Apesar de nunca ter havido uma lei que proibisse as apresentações nos vagões, a empresa
reprimia violentamente os músicos, seguindo uma ordem interna que dava aos seguranças
autoridade para retirarem-nos das estações, argumentando que eles estavam a quebrar as
normas de segurança. Com a escalada desta violência, a opinião pública e a grande mídia começa
a se colocar do lado dos artistas, já que os usuários do metrô, em geral, avaliam as práticas
enquanto positivas. Assim, a empresa percebe que a tática da agressão para o controle do

855
espaço não iria mais funcionar, e lança o projeto “Palco Carioca”em 2015, segundo a MetrôRio
para manter “a tradição de apoio a projetos culturais”, de “forma segura, plural e democrática,
alinhado com o modelo de apresentações culturais realizadas nos principais metrôs do mundo,
como Londres, Nova Iorque e Santiago” (INVEPAR, 2015, p. 79).
Diferente da dinâmica dos vagões, para tocar no Palco Carioca é necessário se inscrever, o que
dá direito a uma hora de utilização do espaço em dias previamente marcados. O músico que se
apresenta ali não recebe cachê, água, ou qualquer tipo de equipamento: ele mesmo é
responsável por toda a estrutura que for usar. Seu regulamento contém cláusulas como: não
colocar os pés nas paredes; não cuspir ou atirar detritos; não praticar mendicância; não usar
linguagem licenciosa, desrespeitosa ou ofensiva a qualquer pessoa; não expor mercadorias (CDs,
DVDs, camisetas, etc); não convidar o público ao palco; entre outras. Os palcos ficam em locais
de passagem nas estações, o que confere ao trabalho rendimento muitíssimo menor que o
trabalho nos vagões. Além disso, os músicos preferem o vagão não apenas pelos mais elevados
ganhos no chapéu, mas porque o público participa, se emociona, divulga, e muitas vezes
contrata o grupo ou o artista para trabalhos fora do metrô.
Há também que se falar sobre a Lei 8120/2018, assinada pelo então governador Luiz Fernando
Pezão, que regulamenta a manifestação cultural no interior dos transportes estaduais (barca,
trem e metrô). Com um texto extremamente vago, prevê uma regulamentação, mas não
encaminha os procedimentos para tanto. O parágrafo 2 do artigo 3 determina que os músicos
estão proibidos de “cobrar cachê dos usuários, salvo se, de forma espontânea, estes fizerem
doação”, o que descaracteriza suas práticas enquanto trabalho. Algumas outras questões são
dúbias, como o exemplo do artigo 2, que prevê um cadastro de artistas, porém este não seria
autorizativo. Mas o texto mais importante da lei, fruto de vitória da organização dos artistas, é
o do parágrafo 3, artigo 4, que torna permitidas as apresentações dentro dos vagões. E foi
exatamente sobre este parágrafo que foi movida uma ação de inconstitucionalidade, pelo
senador Flávio Bolsonaro, e acatada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em 25 de junho
de 2019.

6- Apontamentos finais
Através desta breve apresentação é possível perceber que as práticas musicais levaram aos
vagões a construção de um caráter de espaço público, que muda completamente suas dinâmicas
e, em especial, sua paisagem sonora. Estas mudanças geraram uma disputa – ainda em
andamento – sobre o controle destas manifestações: empresa e Estado se valem das tentativas

856
de institucionalização sobre elas, através do Palco Carioca e da Lei 8120/2018, enquanto os
artistas trabalhadores lutam para manter suas práticas livres. Assim, se chegou a uma análise
esquemática que opõe os sons permitidos (do sound branding) aos sons proibidos (música ao
vivo).
Em vista disso, a pergunta lançada por Schafer nos é oportuna:
“A paisagem sonora mundial é uma composição indeterminada, sobre a qual
não temos controle, ou seremos nós, os seus compositores e executantes,
encarregados de dar-lhe forma e beleza?” (SCHAFER, 2001, p. 19)

Nela, o autor parece ter se esquecido que vivemos em uma sociedade de classes, e que os
capitalistas lançam mão de aparatos poderosos de controle sobre a vida dos trabalhadores,
como mostrado nesta pesquisa. Seja pela escolha por investir em marcas sonoras ao invés da
manutenção das máquinas para melhoria da salubridade no ambiente sonoro, ou pelo constante
controle sobre os ambientes, cada vez mais privados, através das leis e da violência, demonstra-
se que a composição das paisagens sonoras – e de nossas vidas, como um todo – nunca é feita
por meio de relações sociais neutras.

Referências

ARAGÃO, Thais Amorim. “Paisagem sonora como conceito: tudo ou nada?”. Revista Música Hodie, 2019,
v.19: e53417. Disponível em: <www.revistas.ufg.br/musica/article/view/53417>. Acesso em 10/03/2021.

CAMBRÓN, Miguel Alonso. “Sonido y sociabilidad: consistencia bioacústica en espacios públicos”.


Quaderns-E de l’Institut Català d’Antropologia. n. 5/a. 2005. Disponível em:
<www.raco.cat/index.php/QuadernseICA/article/view/51442>. Acesso em 02/05/2019.

INVEPAR. Relatório Anual. 2015.

MILITO, Flora Kuri. Tem boi na linha: as práticas musicais no metrô do Rio de Janeiro. Dissertação
(Mestrado em Música) - Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2019.

SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1991.

____________________. A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo
atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora. São Paulo: Editora
UNESP, 2001.

857
OS DONOS DO POSTE, OS DONOS DO PODER: usos e disputas na paisagem urbana
em São João del-Rei - MG
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Alfredo Nava Sánchez*


Doutor em História pelo El Colegio del México (COLMEX); professor do Departamento de
Ciências Sociais da UFSJ; alfredonavasanchez@gmail.com

Liziane Peres Mangili*


Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP; professora do Departamento de
Arquitetura, Urbanismo e Artes Aplicadas da UFSJ; liziane.mangili@ufsj.edu.br

Maria Clara Oliveira Santos*


Doutora em Direito pela UFMG; professora do Departamento de Ciências Sociais da UFSJ;
mariaclara@ufsj.edu.br

Mariana Chaves Monti Souza*


Graduanda em Arquitetura e Urbanismo e em Geografia na UFSJ; marianacms13@gmail.com

Silenciamentos do patrimônio são costumeiramente oriundos de conflitos entre grupos. O


debate acerca da presença do Jornal do Poste e congêneres na fachada de alguns prédios
históricos é investigado neste trabalho pelas atas do Conselho Municipal de Preservação do
Patrimônio Cultural (CMPPC) e da Câmara Municipal de São João del-Rei. Os atores reivindicam
a competência para dizer o que é o patrimônio e, por meio da análise deste fato e sua
repercussão na mídia, este texto identifica questões que apontam para a reprodução de
preceitos patrimoniais tradicionais, que desconsideram a dinamicidade própria do cotidiano dos
moradores que vivenciam e transformam a paisagem urbana, e expõe as tentativas de controle
das práticas de certos grupos sociais.
Palavras-chave: Jornal mural; discursos do patrimônio, conflitos do patrimônio, paisagem
urbana, Jornal do Poste.

Silencing the heritage is usually a result of groups in conflict. This paper analyzes the minutes of
the Municipal Council for the Preservation of Cultural Heritage (CMPPC) and the Legislative
Chamber of São João del-Rei in a debate about the presence of Jornal do Poste and the like on
the facade of historic buildings. The actors claim competence to say what the patrimony is and,
through the analysis of this fact and its repercussion in the media, this text identifies the
reproduction of traditional patrimonial precepts, which disregard the dynamism related to
residents daily life and their experience that transform the urban landscape, and also exposes
attempts to control the practices of certain social groups.
Keywords: Mural Journal; heritage speeches, heritage conflicts, urban landscape, Jornal do
Poste.

*Integrantes do Observatório Urbano de São João del-Rei, projeto de ações indissociáveis de ensino,
pesquisa e extensão da Universidade Federal de São João del-Rei.

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1 - Jornal do Poste: identidade sanjoanense na contemporaneidade da vida urbana
Em 6 de junho de 2017, O Estado de Minas, um dos jornais mais importantes de Minas Gerais,
publicou uma matéria que expressaria um assunto comum e cotidiano quando pensamos que
proteger monumentos, espaços e objetos é uma das tarefas principais dos órgãos dedicados a
preservar e promover o patrimônio cultural. O título daquela matéria pareceria aludir a um
capítulo a mais dessas tarefas que visam manter a salvo a memória cultural de uma cidade:
“Patrimônio quer tirar jornais do poste do centro histórico de São João del-Rei.” No entanto, ao
avançar na leitura, o que identificamos é que o jornal, na verdade, reporta uma “guerra” entre
a Prefeitura, o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural (CMPPC) e o Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) travada sobre a retirada dos jornais murais,
um conjunto de jornais de parede instalados na fachada do prédio da prefeitura e em outros
espaços da cidade, notadamente do centro histórico. Dentre eles, destaca-se o Jornal do Poste,
que seus promotores dizem refletir uma tradição de um século em São João del-Rei (OLIVEIRA,
2017).
O pedido realizado pelo CMPPC para que a Prefeitura Municipal procedesse à retirada dos
jornais murais do centro histórico de São João del-Rei levou grupos interessados a recorrerem
ao Poder Legislativo, buscando uma resolução para a questão através da Câmara Municipal.
Dentre estes grupos, aquele formado pelos responsáveis dos jornais mostrou-se o mais atuante
ao pressionar pela aprovação da lei proposta. Isto porque, diante da ameaça de supressão dos
jornais murais do centro histórico, a vereadora Lívia Guimarães (PT) apresentou um projeto de
lei em 20 de março de 2018, visando o reconhecimento deste tipo de comunicação como um
meio alternativo que apresenta uma identidade exclusiva (GUIMARÃES, 2021), destacando-os
como elementos culturais que teriam sido absorvidos pela própria cidade e deveriam, então, ser
preservados.
O diálogo travado na querela de registro do Jornal do Poste em São João del-Rei é bem
representativo das práticas patrimoniais consagradas no Brasil. Ele permite que identifiquemos
as diversas vozes sobre o patrimônio: as que estão falando em alto e bom som e são ouvidas, e
as que precisam gritar para que não sejam silenciadas. Permite, ademais, visualizar o campo de
disputa sobre o que é patrimônio (e para quem é o patrimônio), e quem tem a autoridade para
determinar o que é e o que não é patrimônio. Deixa transparecer, por fim, os entendimentos
relativos aos diversos tipos de patrimônio por cada uma dessas vozes.

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2 - “A escrita nossa está nas ruelas, nos casarios, no teatro, na ópera, na universidade”:
práticas elitistas perpetuadas
A constituição do campo patrimonial no Brasil e os processos de patrimonialização, sobretudo
nas décadas de 1930 a 1950, culminaram na definição de um conjunto representativo
majoritariamente do legado material da colonização portuguesa e do período imperial (RUBINO,
1991; FONSECA, 1997; MOTTA, 2000; CHUVA, 2009; PORTA, 2012). Tais processos, que se deram
no âmbito do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, e a respectiva circunscrição
do conjunto do “patrimônio nacional”, acabaram por criar um modus operandi de se fazer
patrimônio, mantendo o "predomínio de critérios artísticos de seleção do patrimônio
urbano" que desconsidera "outros atributos culturais dos imóveis e das áreas construídas"
(MOTTA, 2000, p. 15).
Esse modus operandi refletiu-se também a reprodução do patrimônio nas esferas estaduais e
municipais de preservação. Assim como a cidade do Rio de Janeiro (MOTTA, 2000), São João del-
Rei, por meio do seu Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural determinou
como patrimônio os mesmos bens já antes reconhecidos pelo IPHAN na cidade, acrescidos de
exemplares da arquitetura eclética, predominantemente na área central, e de igrejas barrocas
situadas nos distritos e não tombadas pelo IPHAN. Ambos os exemplos atestam que as práticas
do IPHAN acabaram por formar um quadro social da memória (Halbwachs, 2006) relativa à
identidade nacional que
alimenta a memória social dos brasileiros, para que se sintam membros
pertencentes à nação. Como consequência, ao fixar na lembrança a imagem
do que foi preservado como patrimônio nacional, esse quadro consolidou
também a noção de patrimônio cultural lato sensu. Ou seja, o que foi
valorizado como referência da “memória nacional”, com seus padrões
estético-estilísticos eruditos e de excepcionalidade, se incorporou à memória
social como referência de patrimônio cultural no seu sentido mais amplo,
sendo referência das práticas de preservação mesmo diante de novos
conceitos para seu entendimento. (MOTTA, 2000, p. 18)

Esses novos conceitos referem-se a uma visão antropológica de cultura na qual a diversidade de
patrimônios é ressaltada e que ganha força no final da década de 1970 e nos anos 80,
reverberando nos discursos sobre critérios e métodos de seleção do patrimônio, refletindo-se
também na Constituição Federal de 1988, nos artigos 215 e 216. Neles, o patrimônio cultural
brasileiro seria constituído de bens de natureza material e imaterial, “portadores de referência
à identidade, à nação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”

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(BRASIL, 1988). O artigo 216 acentua também a necessidade de participação da comunidade
tanto na promoção quanto na proteção do patrimônio.
Porém, tal projeto de “construção de outro patrimônio (...) não foi capaz de transformar as
práticas tradicionais de seleção e proteção dos bens culturais” (MOTTA, 2000, p. 17), que
permanecem reconhecendo como patrimônio os bens de natureza material e ligados a um
determinado período histórico.
A força desta prática é tamanha que, mesmo com diversos avanços no campo do patrimônio
imaterial, ela ainda reverbera fortemente e se perpetua como vetor homogeneizante dos
processos de patrimonialização. Ainda que o Brasil tenha se apresentado como vanguarda neste
campo, ao criar o Decreto nº 3.551 de 04 de agosto de 2000 - que institui o Registro de Bens
Culturais de Natureza Imaterial - antes mesmo da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio
Cultural Imaterial da UNESCO, ocorrida em Paris em 17 de outubro de 2003, a força de uma
certa mentalidade associada ao tradicionalismo material permanece.
A confusão em torno do que é patrimônio material e do que é imaterial - devido à consagração
e hegemonia que a prática instaurou em relação ao primeiro - transparece tanto na fala de
conselheiros quanto no próprio projeto de lei para reconhecimento dos jornais murais como
patrimônio Sanjoanense. Na ata 421, o conselheiro José Antônio demonstra preocupação pelo
registro dos jornais murais como patrimônio, pois no seu entendimento, “sendo eles um bem
material, seria caso de tombamento” (CONSELHO..., 2018b). O projeto de lei, por sua vez, ao
alicerçar sua justificativa apenas sob a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural
Imaterial da UNESCO, demonstra desconhecimento do Decreto Federal nº 3.551 de 04 de agosto
de 2000, e até mesmo do Decreto Municipal n. 7005, que “cria o Programa Municipal de
Patrimônio Imaterial e tem papel orientador para procedimentos para registro de patrimônio
imaterial”, e foi publicado, com o aval do CMPPC, em 02 de junho de 2017.
Na fala da presidente do CMPPC, “os jornais de parede não são tradição”. Para ela, “a escrita
nossa está nas ruelas, nos casarios, no teatro, na ópera, na universidade”, ou seja, está toda ela
representada pelos bens de natureza material e relativos a um único espaço, o do centro
histórico tombado. Mas, afinal, por que os jornais murais seriam patrimônio cultural de São João
del-Rei? O que eles representam?

3 - Uma paisagem em disputa: quem são os guardiões do patrimônio


Dentre os jornais murais de São João del-Rei, o Jornal do Poste foi o pioneiro. Ao concebê-lo em
1952, João Lobosque Neto tinha em vista a produção como uma prática jornalística focada nas

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notícias locais (OLIVEIRA, 2007). Ao que parece, o Jornal do Poste teve uma grande aceitação
em virtude de seu idealizador ser um bom articulador das mídias no geral e pela proximidade
com "as rádios e jornais da capital, tornando este um líder de opinião" (OLIVEIRA, 2007, p. 123).
A cronologia deste jornal configura-se pela atuação do seu fundador até o ano de sua morte em
1985. Posteriormente, ao comprar os direitos da família Lobosque, o colaborador José Firmino
Monteiro assume a direção, atuando até o ano de 1991, quando faleceu. Daí então, seu filho
Cláudio José Monteiro assume a direção do periódico adotando uma postura mais cautelosa que
os diretores anteriores (OLIVEIRA, 2007). Ancorados no pioneirismo do Jornal do Poste, outros
jornais murais surgiram para compartilhar o mesmo espaço em diversos pontos da cidade, e hoje
não se restringem ao centro histórico de São João del-Rei, tendo um total de dez murais
distribuídos nessa cidade e em Tiradentes. O Jornal do Poste alavancou o surgimento de
outros jornais murais, como O Repórter São-Joanense, Notícias do Vale do Lenheiro, Na
Imprensa, Explosão, Vale do Lenheiro e Jornal Progresso (OLIVEIRA, 2007, p. 125)
Todos estes noticiários integram a paisagem da cidade e geram uma prática vivenciada da
mesma. Com relação ao centro histórico, modificam a paisagem estática, o velho cenário
comandado pelos monumentos. Integrados à dinâmica urbana, a imaterialidade inerente ao uso
dos jornais murais facilita “que a memória interaja com a mudança” (CANCLINI, 2008, p. 301),
permitindo que os usos sociais do cotidiano sanjoanense constituam-se como uma produção
simbólica para além da mera materialidade. Oportunizam, assim, a “apropriação simbólica do
mundo [que] produz estilos de vida (genres de vida) distintos e paisagens distintas, que são
histórica e geograficamente específicos” (COSGROVE, 2007, p. 103) e que, ao traduzirem a
tipicidade sanjoanense, configuram uma identidade comum a diversos grupos que deles fazem
uso, direta ou indiretamente na vivência da paisagem urbana.

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Figura 01: Locais de afixação e usos do Jornal do Poste e congêneres em São João Del-Rei

À esquerda, jornais murais afixados na fachada da Prefeitura; à direita, afixados na rodoviária


antiga (terminal turístico). Fonte: Observatório Urbano de São João Del-Rei (Acervo Jornal do
Poste/MCS), 2021.

Somado ao fator identidade, a potência comunicacional dos jornais em questão também se


evidencia na história da mídia impressa da cidade, ainda que os 59 anos de existência do Jornal
do Poste possam ser compreendidos como um período relativamente curto (OLIVEIRA, 2007).
Com o Jornal do Poste, "tipicamente são-joanense, a imprensa se desenvolve e se firma como
uma forma explícita e apaixonada pelo progresso, pela defesa, pela projeção de São João del-
Rei tanto em Minas Gerais quanto no cenário nacional." (LIMA, s/d, p.2)
É em torno das questões de identidade e tradição que se darão os embates entre o Conselho do
Patrimônio e os defensores da permanência do Jornal do Poste no centro histórico, tão bem
expressos pela mídia.
Conta O Estado de Minas que o conflito começou como um problema de poluição visual
identificado pelo CMCCP e pelo IPHAN após a prefeitura instalar placas de estacionamento
rotativo em diversas zonas do centro histórico. Ambas as entidades expressaram queixas e
propuseram ações judiciais contra a prefeitura objetivando a remoção das placas. É no meio
deste pleito que se origina a saga do Jornal do Poste. Segundo se constata na matéria de O
Estado, isso aconteceu quando: “Com base no Artigo 18 do Decreto-Lei 25, de 1937, o Conselho,
que tem a tutela do Centro Histórico, notificou a prefeitura a retirar também os jornais murais,
levando à risca legislação federal” (OLIVEIRA, 2017).
Neste momento, a disputa travava-se entre apenas dois atores, a saber, o CMPPC e a Prefeitura.
A reportagem menciona que o IPHAN não havia sido consultado sobre os jornais e que
aguardava uma comunicação do Conselho. Na sequência, a reportagem exibe a comunicação e
os argumentos da Presidente do CMPPC para empreender o embate contra os jornais murais:
“Ruth Viegas afirma que está aproveitando o processo que corre na Justiça [contra as placas de

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estacionamento rotativo no centro histórico] para ‘organizar a casa’. ‘Os jornais de parede não
são tradição. A escrita nossa está nas ruelas, nos casarios, no teatro, na ópera, na universidade.
Não quero acabar com os jornais, mas eles devem ser afixados numa área fora do Centro
Histórico’”. (OLIVEIRA, 2017)
Outros veículos de mídia, com menor alcance que O Estado de Minas, já tinham anunciado as
disputas em torno da exibição pública do Jornal do Poste. Em 4 de junho de 2017, o Jornal das
Lajes igualmente narrava o motivo e os protagonistas da disputa, porém aprofundava em
detalhes o histórico do Jornal do Poste, seus fundadores e donos atuais, e tratava de
contextualizar a existência de periódicos semelhantes. Além disso, contribuía com o debate ao
desenhar com mais precisão o mapa dos grupos e seus argumentos levantados para defesa de
suas posições, como, por exemplo, aquele do “jornalista Aloisio Morais, do Sindicato dos
Jornalistas de Minas Gerais” ao afirmar que tirar o Jornal do Poste “é um ‘atentado ao direito
de informação’”.
Sítios pela internet e até uma reportagem da TV Record noticiaram o conflito e igualmente
contribuíram para estabelecer os episódios dos embates. Em um dos casos, Pr@dos online deu
conta das ações dos defensores do Jornal do Poste:
Agora, a jornalista e Vereadora Lívia Guimarães idealizou e colocou em
tramitação na Câmara, o projeto que prevê que tornam os jornais murais
Patrimônio Público Imaterial de São João Del Rei. Nesta terça (20), o projeto
foi aprovado na Câmara Municipal em 1º turno, o 2º turno da votação do
projeto acontecerá hoje, 27 de março, as 16:00 na Câmara Municipal.
(PRADOS ONLINE, 2018)

A reportagem ainda faz questão de marcar em qual lado das trincheiras posiciona-se: “Nós do
Prados Online gostaríamos de parabenizar a Vereadora pela bela iniciativa. Tomara que seja
realmente aprovado, tem que ser valorizado.” (PRADOS ONLINE, 2018).
O programa Domingo Espetacular exibiu em junho de 2017 uma reportagem acerca do Jornal
do Poste. Sem mencionar o conflito que rondava aquele momento, o vídeo limita-se a explorar
a singularidade desse tipo de mídia numa cidade como São João del-Rei, e o faz de modo a
conferir uma roupagem mais pitoresca que patrimonial ao periódico. Mesmo assim, sublimando
o conflito e sem expressar portanto uma postura sobre ele, é evidente que o vídeo apoia
fortemente a manutenção do Jornal do Poste no lugar no qual tem permanecido há várias
décadas. Seu argumento embasa-se na “tradição” da vida cotidiana dos são joanenses, que não
estaria necessariamente nos prédios antigos e monumentos históricos, ainda que sem eles essas

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práticas diárias singulares – como ler o jornal na parede da Prefeitura – não teriam o destaque
e o simbolismo que possuem (RECORDTV, 2017).
Se na mídia o debate deu-se em torno das questões de tradição, na Câmara Municipal ele se
funda na imaterialidade dos jornais murais - como que em contraponto à visão mais estrita do
CMPPC em preservar majoritariamente bens de natureza material. Isto porque, alicerçado no
parágrafo 2º do artigo 2° da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da
UNESCO, é pela referência à imaterialidade deste patrimônio cultural de São João del-Rei que
se apresentou justificativa para a aprovação da Lei Municipal nº 5.425, de 11 de abril de 2018.
Votada em dois turnos, o projeto de lei não sofreu objeções pelos vereadores. Dentre os
presentes, o único que, ao fundamentar sua abstenção, marcou posição específica com relação
aos agentes do debate foi o vereador Leonardo Henrique (PSDB), afirmando que não havia
chegado à conclusão efetiva sobre a questão, “com base nas informações prestadas pelo
Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural” (CÂMARA..., 2018b). A referência
muito provavelmente remete à arguição de incompetência que foi suscitada pela presidente do
CMPPC em ofício enviado à Presidência da Câmara Municipal, e que foi lido no expediente da
sessão legislativa de 10 de abril de 2018, no qual a presidência do CMPPC solicitava a não
apreciação do projeto de lei apresentado, instando à retirada monocrática do projeto da pauta
de discussões e deliberações (CÂMARA..., 2018b). A tradição dos jornais murais não foi
questionada, sua imaterialidade foi acolhida e o debate desviou-se sutilmente para questões
relativas ao possível conflito de competência.
A tramitação extremamente tranquila e célere, com menos de um mês de interstício entre sua
apresentação como projeto, a votação em dois turnos (CÂMARA..., 2018a; 2018b) e sua sanção
pelo Prefeito pode significar que o debate já havia ganhado maiores contornos públicos. A
repercussão na mídia e nas ruas levantava também a atenção do CMPPC, como podemos
identificar na fala do conselheiro José Antônio em reunião, quando aduz que “esta ação está
gerando revolta popular contra o Conselho, comprometendo sua imagem” (CONSELHO…,
2018a). Vale salientar que a aprovação dá-se a despeito da composição majoritária da Câmara
de Vereadores naquela legislatura posicionar-se como base de apoio do Executivo municipal,
inicialmente apoiador da demanda do CMPPC.
Muito embora o debate ecoasse pela cidade, na sessão legislativa em que foi apresentado o
projeto de lei, a única fala em defesa da manutenção dos jornais murais foi aquela do diretor do
Jornal do Poste. Nem mesmo os historiadores, apontados como grupo de pressão pela
vereadora Lívia Guimarães (2021), criaram algum tipo de registro naquela sessão. A isto se soma

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o resgate histórico um tanto quanto impreciso das origens do Jornal do Poste, uma vez que, na
justificativa do projeto de lei apresentado consta que a tradição perdurava há “setenta ou
noventa anos”. A própria extensão do projeto de lei, com justificativa em apenas 1 página e
contando com apenas 4 artigos, demonstra que a questão já se encontrava um tanto quanto
pacificada ao bater às portas do Legislativo, não havendo necessidade de maior convencimento
dos vereadores.
Ainda assim, o debate com o CMPPC fez-se ouvir nas sessões legislativas. Embora o ofício
enviado por sua presidente à Câmara de Vereadores não tenha surtido maiores repercussões
jurídicas, com resposta oficial do presidente da Câmara no sentido de reafirmar a competência
da Casa também para o processo legislativo de aprovação do projeto que viria a consagrar os
jornais murais como patrimônio, a pessoalização da questão ressoou no próprio CMPPC. Em
reunião do dia 28 de março de 2018, os conselheiros parecem ter apoiado pela primeira vez o
posicionamento da presidente, que comunicou ao plenário atitudes para combater o que alegou
ser “desconhecimento das normas” por parte dos vereadores no que diz respeito à lei que deu
ao Conselho a prerrogativa de declarar o patrimônio da cidade, através de tombamentos e
registros (CONSELHO, 2018a). O pano de fundo deste debate desvela a disputa de competências
para registro e tombamento que, na visão dos conselheiros, deveria caber exclusivamente ao
CMPPC restando à Casa Legislativa apenas o referendo legal destas escolhas. Este debate suscita
uma já conhecida questão dos que atuam e analisam o campo patrimonial: afinal, quem define
o que é patrimônio?

4 - O que dizem as vozes sobre o patrimônio: Jornal do Poste e o domínio da imaterialidade


da cidade
Essas matérias e reportagens que dão conta da disputa sobre o Jornal do Poste fazem
transparecer, em diferentes graus, os pressupostos que articulam a disputa de fundo. Não se
trata apenas de uma luta entre a conservação do patrimônio e a tradição. Atrás disso reside, por
um lado, um conflito também pela pureza estética, as formas de exibição arquitetônicas, o
cânone que estabelece o que é o patrimônio. Do outro lado, reverberam a identidade são-
joanense, os costumes de uma cidade.
Encontram-se reproduzidas, em âmbito local, as formas como o patrimônio nacional foi
construído e narrado. Gonçalves (2002) mostra como Rodrigo Mello Franco de Andrade, à frente
do IPHAN de 1937 (ano de sua criação) até 1969, e Aloísio Magalhães (entre 1979 e 1982, ano
de sua morte) objetificaram o Brasil através de diferentes discursos e, "por meio de narrativas

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diversas, inventam o patrimônio cultural, a nação brasileira e a eles próprios, como guardiões
desse patrimônio" (GONÇALVES, 2002, p. 33).
Nesse sentido, os que narram a história da nação acabam sendo também os “representantes”
da nação, dotando-se de autoridade tanto para dizer o que é ou não é considerado patrimônio,
quanto para preservá-lo (GONÇALVES, 2002, p. 33). No âmbito do município de São João del-
Rei, o CMPPC, por meio de alguns de seus membros e sobretudo por meio de sua presidente,
parece sentir-se dono dessa representação. É por isso que, quando os vereadores de São João
del-Rei assumem para si a autoridade para patrimonializar os jornais murais, os membros do
CMPPC contestam essa autoridade e a reivindicam exclusivamente para si, alegando que há
desconhecimento por parte da Câmara Municipal em relação ao papel do Conselho: “que fosse
esclarecido à edilidade qual o papel real do Conselho e sua atuação de fato” (CONSELHO...,
2017a); que o Conselho é o verdadeiro e único “guardião do patrimônio” (CONSELHO..., 2017b);
que “não cabe à Câmara se envolver com os tombamentos e registros, posto que existe
Conselho para esta função” (CONSELHO..., 2018b); e até mesmo sugerindo violações e afrontas
legais por parte dos representantes dos munícipes: “considerações sobre movimentação de
alguns vereadores no sentido de promoverem na Câmara Municipal tombamentos e registros,
a exemplo dos jornais-murais e do Ofício de Trevas, manifestando a presidente com veemência
contra esta atitude que fere a lei que deu ao Conselho tal prerrogativa” (CONSELHO..., 2018a).
Nossa análise acerca da proibição dos jornais murais no centro histórico pelo Conselho
Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural, através das atas do CMPPC e da Câmara
Municipal, e da repercussão do fato na mídia, revela uma série de questões que sublinhamos:
as disputas pela autoridade social na definição do que é considerado patrimônio; a (falsa)
dicotomia entre patrimônio material e imaterial e sua implicação e interdependência no
entendimento da paisagem; e a permanência, ainda no século XXI, de um entendimento elitista
sobre patrimônio, originado de uma prática do órgão federal de preservação que foi assimilada
tanto por técnicos quanto por leigos, em larga escala, e que é reproduzida pelos órgãos
municipais de preservação.
Nesta acepção, explícita nas ações do CMPPC, o uso do espaço público do centro histórico
tombado é postergado em função de uma assepsia da paisagem, que se pretende constituída
exclusivamente como cenário. Embora as resistências sociais e políticas tenham implicado no
insucesso do posicionamento do CMPPC, tais determinações podem conduzir a silenciamentos
e apagamentos daquilo que, independente de estar oficializado ou não como patrimônio, está

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atrelado a práticas cotidianas e sociabilidades de grupos e, por consequência, às suas memórias
e à reprodução das mesmas.
A resistência pela permanência do Jornal do Poste e congêneres desvela o enfrentamento à
propagação de preceitos patrimoniais tradicionais, calcados em uma visão homogeneizante e
centrada na visibilidade monumental dos edifícios históricos, que desconsidera a dinamicidade
própria do cotidiano dos moradores que vivenciam e transformam a paisagem urbana, ao tempo
em que denuncia as tentativas de controle das práticas de certos grupos sociais.

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RECORDTV. Domingo Espetacular. Achamos no Brasil mostra a história do Jornal do Poste em Minas
Gerais. 11 de junho de 2017. Disponivel em: <https://www.youtube.com/watch?v=qLcycHrGQNE>.
Acesso em:

RUBINO, Silvana. “O Mapa do Brasil Passado”. In. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
número 24, Brasília, 1996.

869
PAISAGEM SONORA DO PARQUE ECOLÓGICO MUNICIPAL “CLAUDINO FRÂNCIO” –
MT (REGIÃO DA AMAZÔNIA LEGAL): uma proposta de estudo
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Cilene Leite de Mello


Mestranda do Programa de Pós-Graduação nos Estudos de Cultura contemporânea –
UFMT
mellocile@gmail.com

Taís Helena Palhares


Doutora em Música – UFBA
taishelenap@gmail.com

Este estudo tem como objetivo caracterizar a paisagem sonora do Parque Ecológico Municipal
“Claudino Frâncio” da cidade de Sorriso - MT questionando-se qual a condição sonora desses
espaços, quais categorias de sons existentes e qual a representatividade de cada um. A
importância desta investigação está em apresentar os primeiros registros sonoros
sistematizados sobre a Paisagem Sonora do parque, sendo que a hipótese levantada é que a
sonoridade de um lugar também constitui sua identidade e significação. Assim, nesse artigo
apresentamos os primeiros passos dados na pesquisa, conceituando a paisagem sonora.
Discutindo um pouco sobre o som como questão subjetiva do homem moderno baseada na
afirmação de Schafer, e a gravação como ferramenta de análise da paisagem sonora e por fim
defendendo a importância das narrativas dos frequentadores do parque, como instrumento de
coleta como objetivo de auxiliar na interpretação e análise dos dados da pesquisa.
Palavras-chave: Paisagem sonora; conceito; som; gravação; narrativas.

This study aims to characterize the sound landscape of the Municipal Ecological Park “Claudino
Frâncio” in the city of Sorriso - MT, questioning what the sound condition of these spaces is, what
categories of sound exist and what is the representativeness of each one. The importance of this
investigation is to present the first systematic sound records about the sound landscape of the
park, and the hypothesis raised is that the sound of a place also constitutes its identity and
meaning. Thus, in this article we present the first steps taken in the research, conceptualizing the
soundscape. Discussing a little about sound as a subjective question of modern man based on
Schafer's statement, and recording as a tool for analyzing the soundscape and, finally, defending
the importance of the narratives of parkgoers, as a collection instrument with the objective of
assisting in the interpretation and analysis of research data.
Keywords: Sound landscape; concept; sound; recording; narratives.

870
1 - Introdução:
Este artigo consiste em uma discussão sobre pontos importantes a serem considerados em uma
pesquisa em andamento, relacionada a paisagem sonora no Programa de Pós-graduação em
Estudos de Cultura contemporânea (ECCO – UFMT0). O texto foi dividido em quatro partes ou
sessões. Na primeira parte apresentamos um pouco sobre o conceito de paisagem abordando
desde o termo como um fato geográfico até chegarmos ao conceito de paisagem sonora.
A segunda parte desenvolvemos sobre o conceito de som, baseado na afirmativa de Schafer
(1991) que discute a questão subjetiva do mesmo na realidade do homem moderno. Nesta parte
discutimos os autores Ingold (2011) e Kelman (2015) que se posicionam de modo crítico ao
ponto de vista de Schafer no que diz respeito a paisagem sonora.
Na terceira parte tratamos sobre a gravação como ferramenta de análise da paisagem sonora.
O termo documentar, refere-se aos registros feitos por gravações de áudio e de vídeo que são
fontes inerentes ao processo de estudo da paisagem sonora.
Na parte quatro defendemos a importância das narrativas dos frequentadores do Parque
Ecológico Municipal “Claudino Frâncio” em Sorriso – MT, como instrumento de coleta, com o
objetivo de auxiliar a interpretação e análise dos dados pesquisados.

2 - O conceito de paisagem:
De acordo com Alves, “O termo paisagem, quase dois séculos, não foi utilizado para designar
um facto geográfico, mas o produto da arte de representar numa tela um dado acontecimento
enquadrado por uma dada realidade geográfica." (ALVES, 2001, p.67)
Inicialmente esse termo significava então a representação de um “local geográfico” visto a olho
nu e depois representado através de uma pintura em uma tela. Assim, ele foi tendo variações e
mudanças em seu sentido literal ao longo do tempo.
Maximiano (2004) afirma, apoiado em estudos de outros autores, que as pinturas rupestres da
França (Lascaux) e norte da Espanha, são as primeiras concepções conscientes do ser humano,
a respeito de paisagem. As pinturas datam entre 30 a 10 mil a.C. e são os registros mais antigos
que se conhece da observação humana sobre o termo.
Assim artistas diversos começaram a pintar quadros, começando a surgir noções sobre o termo,
sob o senso comum, onde o que se via de natural, de belo, harmônico ou esteticamente bonito,
atribuía-se o termo paisagem, diferentemente da ciência que não atribui elementos ou graus
qualitativos (KIYOTANI, 2014). O termo ficou automaticamente ligado a natureza, a locais

871
“bonitos” permanecendo um grande tempo apenas como consciência de arte, ou seja,
relacionando-a a um quadro ou alguma pintura.
Assim a partir do termo “paisagem” foram surgindo diversas concepções além das geográficas,
tais como paisagens geológicas, culturais, filosóficas, etc., dentro das modalidades que o ser
humano pode perceber a partir dos seus sentidos como ver, tocar, cheirar ou ouvir, em locais
naturais ou modificados pelo homem.
No que diz respeito ao ouvir, temos inicialmente Raymund Murray Schafer com o Word
Soundscape Project, que foi um Projeto de Paisagem Sonora Mundial, desenvolvido durante o
final dos anos de 1960/1970, sediado no estúdio de pesquisas sonoras do Departamento de
Comunicação da Universidade Simon Fraser, Colúmbia Britânica, Canadá, dedicado ao estudo
comparativo da Paisagem Sonora Mundial. Para Schafer “paisagem sonora é um ambiente
sonoro, sejam ambientes reais ou construções abstratas, visto como um campo de estudo”.
(SCHAFER, 1971, p. 366)
Observamos que o surgimento do termo ou conceito de paisagem sonora não nasceu só a partir
da preocupação com os diversos sons que estão presentes em um ambiente sonoro, com a
concepção de belo, agradável ou harmônico, mas sim a partir da concepção de “ruído”.
Russolo (1913) por exemplo, inicia o capítulo I do seu livro L’ Arte dei Rumori (A arte do Ruído)
com um manifesto expressando o “triunfo” do ruído sobre os demais sons. Ele nos chama a
atenção para a variedade de ruídos surgidos a partir da evolução da indústria e tecnologia. Na
verdade, o autor quer nos chamar a atenção sobre o fato de que a ciência sempre se ocupou de
estudar os chamados “sons puros” e que há uma urgência em se estudar os ruídos e não há
necessidade de separá-los para tal estudo.
A ciência acústica, que é sem dúvida a menos avançada das ciências físicas, se
aplicou especialmente ao estudo de sons puros e até agora negligenciou
completamente o estudo de ruídos. Talvez porque acreditasse que devia
separar os sons dos ruídos com muita clareza: divisão absurda, que, como
veremos mais adiante, não tem razão de ser. (RUSSOLO, 1913, p. 37, tradução
nossa)1

O ruído tem sido inserido passo a passo no meio ambiente pelo homem, devido ao crescimento
da industrialização no mundo moderno e, conforme Russolo (1913) não conseguiremos fazer
estudo sobre ele separado dos demais, mas há uma necessidade urgente de estudá-lo e, uma

1
No original: La scienza acustica, che fra le scienze fisiche indubbiamente la meno progredita, si è
applicata specialmente allo studio dei rumori. Questo, forse, perchè ha creduto di dover dividere troppo
nettamente i suoni dai rumori: divisione assurda, che come vedremo in seguito non ha nessuna ragione
di esistere.

872
vez que ele está inserido na chamada “paisagem sonora” do mundo, ele deve ser considerado.
Russolo classifica os ruídos em seis famílias com o desejo de implementá-los de forma mecânica
na orquestra futurista (RUSSOLO, 1913, p. 22-23).
1 2 3 4 5 6
Pastilhas Assobios Sussurros Guinchar Barulhos Vozes de animais e de
Trovões Chiado Murmúrios Abdominais obtido em homens:
Explosão Puffs perturbador Farfalhar percussão Chorar, gritar, Gemidos,
Chuveiros borbulhante zumbido em metais, Gritos, uivos, Rir,
Pancadas Chocalhos madeiras Estertores (respiração
Estrondos Embaralhamento peles, ruidosa), soluços.
pedras,
cerâmica,
etc.

Como podemos verificar, o ruído não é visto por esse autor como algo totalmente nocivo as
pessoas. Sua ideia é coletar o que há de bom nele e usá-lo para benefício da música e do homem.
Em sua concepção há algo de “harmônico” nesses sons, mesmo que o parecer inicial possa ser
desarmônico e perturbador.
Nas considerações finais do seu manifesto aconselha os músicos de orquestra a substituírem os
sons dos instrumentos musicais pelos ruídos: “Os músicos futuristas devem substituir a
variedade limitada de timbres de instrumentos que a orquestra possui agora pela infinita
variedade de timbres de ruídos, reproduzidos por mecanismos especiais.”2 (RUSSOLO, 1913, p.
23, tradução nossa)
Após Russolo, surge Pierre Schaeffer (1966) com o Traité des objets Musicaux (Tratado dos
Objetos Musicais) onde, possivelmente, é o primeiro a tratar sobre a escuta musical como um
fato social no século XX. Esse autor, de acordo com Meneguello (2017) descreve um percurso
para a percepção musical identificando quatro modos de escuta (escutar, ouvir, entender e
compreender), apontando para o fato de que o ouvinte escuta o que lhe interessa e ouve os
sons baseados em sua experiência.
Embora validamos os estudos de Schafer relacionado a escuta e a paisagem sonora como uma
das primeiras pesquisas relacionadas a área podemos observar através do artigo de Radicchi
(2018) The Notion of soundscape in the realm of sensuous urbanismo. A historical perspective
cita que:

2
No original: I musicisti futuristi devono sostituire alla limitata varietà dei timbri degl'istrumenti
chel'orchestra possiede oggi, l´infinita varietà dei timbri dei rumori, riprodotti com appositi meccanismi.

873
Michael Southworth pode ser creditado por ter conduzido o primeiro estudo
de paisagem sonora urbana enquanto fazia o mestrado em Planejamento
Urbano no Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Southworth fez os
cursos de Kevin Lynch e um curso de psicologia ambiental com Steven Carr.
No contexto deste último, passa a estudar o conceito de ambiente sonoro e
desenvolve seu primeiro estudo de caso, que se torna objeto de sua tese de
1967, The Sonic Environment of Cities. (RADICCHI, 2018, p.14, tradução
nossa)3

Através de Radicchi (2018) podemos entender o motivo pelo qual Schafer (2001) afirmou que o
termo soundscape foi um neologismo, onde outros países latinos conceberam consensualmente
sua tradução como paisagem sonora. (SCHAFER, 2001) Neologismo, porque atribuiu novos
sentidos a uma palavra já existente, sendo assim, ele não foi o primeiro a estudar o assunto,
nem tampouco o criador do termo, como muitas pesquisas tem apontado.
Em 1970, Raymond Murray Schafer trata do assunto em seu livro The book of Noise (O Livro do
Ruído) tendo um olhar mais crítico quanto a escuta relacionada ao ruído. O autor expressa sua
preocupação com os efeitos significativos que a poluição sonora pode causar ao homem e que
as cidades modernas estão sendo um verdadeiro campo de batalha sônico em que o homem
está perdendo.
Para Meneguello (2017) diferentemente de Schafer que conceituou o ruído como como um som
“indesejado” distinto dos sons que são desejados pelo homem, Schaeffer os experimentou,
utilizando-os em composições musicais.
Embora muitas vezes a literatura tenha descrito Pierre Schaeffer e Murray
Schafer como em “continuidade”, é imperioso fazer a distinção entre as
experimentações em relação a sons urbanos, mecânicos e industriais de
Schaeffer e a condenação destes por parte de Schafer, que os considera
desagradáveis, insuportáveis e embrutecedores. Onde Schaeffer escutou
sons, Schafer ouviu ruídos (MENEGUELLO, 2017, p. 24).

Schafer (1970) considera o ruído como sendo um som errado em um lugar errado e tenta
explicar como esses sons se espalharam no ambiente da humanidade atingindo proporções de
poluição. ”Em engenharia de comunicação, quando uma mensagem de sinais é transmitida,

3
Michael Southworth can be credited with having conducted the first study of urban soundscape while
pursuing a Master’s degree in City Planning at the Massachusetts Institute of Technology. Southworth
followed Kevin Lynch's courses and a course on environmental psychology with Steven Carr. In the context
of the latter, he began to study the concept of a sound environment and developed his first case study,
which became the object of his 1967 thesis The Sonic Environment of Cities.

874
quaisquer sons ou interferências que prejudiquem sua transmissão e recepção precisas, são
chamados de ruídos”4 (SCHAFER, 1970, p. 4, tradução nossa).
Traux (2008) em seu artigo Soundscape Composition as Global Music: Electroacousticmusic as
soundscape (Composição da Paisagem Sonora como música global, música eletroacústica como
paisagem sonora) confirma que a preocupação de Schafer (1970) inicialmente era com o ruído:
Este conceito ousado [conceito da paisagem sonora], pretendido como uma
alternativa não à música, mas aos problemas do ruído, levou à formação do
World Soundscape Project (WSP) na Universidade de Simon Fraser no início
dos anos 1970. (TRAUX, 2008, p. 103, tradução nossa)5

A constante insistência de Schafer em seu projeto em relação ao ruído determinou uma tomada
de decisão, que a única solução para tornar as pessoas sensíveis às modificações que estavam
ocorrendo no meio ambiente era fazer uma limpeza de ouvidos, levando seus alunos a
perceberem o som que nunca tinham ouvido antes em seu ambiente e a fazerem a diferença
com os sons que eles próprios criavam. (SCHAFER, 1991, p. 67) Assim Schafer (1977) definiu o
termo como sendo:
... qualquer campo de estudo acústico. Podemos referir-nos a uma
composição musical, a um programa de rádio ou mesmo a um ambiente
acústico como paisagens sonoras. Podemos isolar um ambiente acústico
como um campo de estudo, do mesmo modo que podemos estudar as
características de uma determinada paisagem. (SCHAFER, 1997, p. 23)

Este estudioso partiu para a pesquisa de vários locais no Canadá e em toda a Europa com o
objetivo de aperfeiçoar seus estudos sobre a paisagem sonora.

3 - Conceito de som: uma questão subjetiva do homem moderno


A primeira ênfase que Schafer (1970) dá relativo ao som em seu livro The Book of Noise (1970)
é sobre o ‘ouvir os sons’, convidando-nos a ouvir com atenção e com delicadeza sismográfica. O
autor motiva as pessoas a cultivar o hábito de ouvir os sons ao redor.
Considerando que o significado do verbo “ouvir” conforme o dicionário on-line de português6 é:
entender ou perceber os sons pelo sentido do ouvido, da audição; ouvir músicas; oferecer
atenção; atender, escutar. E o significado da palavra sismográfica neste mesmo dicionário,

4
No original: In communicat ingengineering when a message consisting of signals istransmitted any
sounds or interferences which impair its accurate transmission and reception are referred to as noise.
5
This bold concept, intended as an alternative not to music but to the problems of noise, led to the
formation of the World Soundscape Project (WSP) at Simon Fraser University in theearly 1970s.
6
https://www.dicio.com.br/ouvir/

875
referente a sismografia é: descrição científica dos terremotos; artes de registrar os abalos e
movimentos ondulatórios dos terremotos; abalo, tremor de terra.”7
Observa-se que Schafer (1970) não usou o termo sismográfico no sentido restrito referente a
terremotos, mas sim, aos sons provocados mediante os movimentos da terra e pertencentes a
ela. E dentro desse campo “terra” ele dá duas classificações aos sons: desejáveis ou indesejáveis
(SCHAFER, 1970). A própria concepção de sons desejados e indesejados já se muda com o atual
estado da humanidade.
Este mesmo estudioso ressalta que o ser humano, no período anterior à Revolução Industrial
acontecida em toda a Europa entre os séculos XIX e XX, deveria ter um mundo totalmente
diferente do mundo atual, não somente em relação as mudanças tecnológicas e comerciais, mas
também, em relação ao mundo sonoro, aos sons circundantes. Sons atualmente existentes
poderiam não estar presentes no passado.
Neste contexto, Schafer (1970) apontou que “o ruído é qualquer som indesejado. O ruído é um
som errado no lugar errado.”8 (SCHAFER, 1970, p. 4). Esta afirmação nos faz acreditar que
pessoas com idade mais avançada não encontram prazer em sons altos, agudos, eletrônicos,
tecnológicos, da realidade industrial e tecnológica, devido sua formação cultural e concepções
sociais até então definidas em suas realidades. Já para os mais jovens, os ruídos passam a ser
sons desejáveis, pois sentem prazer em meio ao “barulho”, as músicas intensas como eletrônica,
rock, em uma paisagem que acaba não sendo perturbadora, devido a ser algo “comum” a eles,
pois não conheceram outra realidade.
Assim a concepção de Schafer (1970) dada como “sons desejáveis e sons indesejáveis” passa a
ser transformada pela realidade social, assim o ambiente social, período histórico e localização
geográfica refletem nas mudanças de conceitos, concepções e preferências sonoras.
A partir do estudo da acústica notamos quão complexo é o estudo do som e quantas vertentes
possuem para serem abordadas, em se tratando especificamente da pesquisa relacionada a
paisagem sonora do Parque Municipal “Claudino Frâncio” – Sorriso - MT´, local onde se
desenvolve esta pesquisa.
Ingold (2011) em seu livro Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição (Essay son
Movement, Knowledge and Description), no capítulo XI faz quatro objeções ao conceito de
paisagem sonora emitido por Schafer (1970) em seu projeto (Soundscape Project World). A

7
https://www.dicio.com.br/sismografia/
8
No original: Noise is any unwanted sound. Noise is the wrong sound in the wrong place.

876
terceira objeção feita por Ingold (2011) é, inclusive, sugerindo o abandono do conceito de
paisagem sonora:
... ao colocar o fenômeno do som no centro de nossas investigações,
poderíamos ser capazes de apontar caminhos paralelos nos quais a luz
poderia ser restaurada ao lugar central que merece na compreensão da
percepção visual. Para fazer isso, no entanto, temos primeiro de abordar a
pergunta incômoda: o que é som? Esta pergunta é uma versão do velho
enigma filosófico: a árvore caindo em uma tempestade faz algum som se não
houver nenhuma criatura presente com ouvidos para ouvi-lo? O som consiste
em vibrações mecânicas no meio? Ou é algo que registramos apenas dentro
de nossas cabeças? É um fenômeno do mundo material ou da mente? É 'lá
fora' ou "aqui"? Podemos sonhar? Parece-me que tais questões estão mal
colocadas, na medida em que estabelecem uma divisão rígida entre dois
mundos, de mente e matéria - uma divisão que se reproduz cada vez que se
apela à materialidade do som. O som, a meu ver, não é nem mental nem
material, mas um fenômeno da experiência - isto é, de nossa imersão e
mistura com o mundo em que nos encontramos. (INGOLD, 2011, p. 137)

Fazendo uma análise da paisagem visual em relação a paisagem sonora, Ingold (2011) critica
Schafer (1970) sobre a limitação, em termos de especificidade, em sua definição do som. Mas
esse mesmo autor, explica o quão complexo é o conceito de som, fazendo perguntas como a
existência do mesmo em vibrações mecânicas no meio (material) ou algo que aparece somente
em nossas cabeças (mental).
Ingold (2011) faz alusão ao som dizendo que ele não é material e nem mental, mas um fenômeno
da experiência, de nossa imersão e mistura com o mundo em que nos encontramos. É possível
ao ser humano passar por uma experiência em qualquer área de sua vida, sem atingir os
mecanismos materiais e mentais? Ou é necessário ao ser humano ter contato com o material,
mais propriamente o seu ambiente, para depois concebê-lo e analisa-lo mentalmente para se
ter uma experiência?
Schafer, ao colocar que “os sons é uma questão subjetiva do homem moderno”, Schafer (1970,
p. 22) já explica a dimensão desse conceito em suas pesquisas realizadas em um ambiente
aberto, ou seja, com uma variedade enorme de sons, frente a uma diversidade de interpretações
humanas. A palavra subjetivo significa que pertence ao sujeito pensante e a seu íntimo, sendo
característico de um indivíduo de forma pessoal e particular. Então cada ser humano poderá
interpretar os sons a partir do seu próprio “eu”.
O espaço auditivo não tem um ponto de foco privilegiado. É uma esfera sem
limites fixos, espaço feito pela própria coisa, não espaço que contém a coisa.
Não é um espaço pictórico encaixotado, mas dinâmico, sempre em fluxo,
criando suas próprias dimensões a cada momento. Não tem limites fixos; é
indiferente ao fundo. O olho focaliza, aponta, abstrai, localizando cada objeto
no espaço físico, contra um fundo; o ouvido, no entanto, favorece o som de

877
qualquer direção. Ouvimos igualmente bem da direita ou da esquerda, da
frente ou de trás, de cima ou de baixo. Se deitarmos, não faz diferença, ao
passo que no espaço visual todo o espetáculo se altera. (CARPENTER,
McLUHAN, 1960, p. 67)9

Carpenter e Mcluhan (1960) faz um paralelo entre a diferença do espaço visual e o espaço
acústico (sonoro), considerando as questões referentes a observação do meio, demonstrando
quão difícil é fazermos tanto o estudo quanto a análise de um ambiente que envolve uma esfera
de sons diversos.
Ingold (2011) aponta também a preocupação com a questão dos estudos sobre a paisagem
sonora seguir os mesmos padrões do estudo da paisagem visual, apesar de sua crítica se dirigir
especificamente a Schafer (1970). O que queremos ressaltar é que, desde o princípio dos seus
estudos no World Soundscape Project (WSP, 1970), Schafer se preocupou justamente em
analisar um ambiente que envolve sons diversos, deixando claro que ele pensava da mesma
forma que Carpenteer e McLuhan (1960), em que a paisagem sonora não era um “ambiente
encaixotado”, mas um local que depende da subjetividade do ser humano além de ser uma
esfera sem limites fixos.
A questão colocada por Carpenter e Mcluhan (1960) quanto a comparação entre o espaço
acústico e o espaço sonoro e a preocupação relatada acima de Ingold (1970) em relação ao
tratamento da paisagem sonora ser nos mesmos moldes da visual, nos lembra os termos
abordados por Schafer (2001) sobre figura e fundo. Estes termos foram emprestados da
percepção visual, onde os psicólogos da Gestalt denominaram a figura como o foco de interesse,
o fundo é o cenário ou contexto, sendo mais tarde acrescentado um terceiro termo que é o
campo, que é o lugar onde ocorreu a observação. (SCHAFER, 2001, p. 214)
Schafer (2001) emprestando os termos figura-fundo da paisagem visual, transporta para a
paisagem sonora como sinal-cenário-campo. Para os compositores do século XX a figura passou
a ser o ruído, tornando-o como material musical.
Isso relativiza os conceitos tradicionais de ruído: na sociedade
contemporânea, o que é ruído e o que é música? Tais limites não podem ser
mais traçados, a não ser pela própria experiência subjetiva do som: uma
música são sons organizados com a intenção de ser música; já o ruído é tudo

9
No original: Auditory space has no point of favored focus. It´s a sphere without fixed boundaries, space
made by the thing it self, not space containing the thing. It is not pictorial space, boxed in, but dynamic,
always in flux, creating its own dimensions moment by moment. It has no fixed boundaries; it is indifferent
to background. The eye focuses, pinpoints, abstracts, locating each object in physical space, against a
background; theear, however, favors sound from any direction. Wehear equally well from right or left,
front or back, above or below. If we lie down, it makes no difference, whereas in visual space the entire
spectacleis altered.

878
que interfere nela ou em qualquer atividade onde focalizamos nossos
ouvidos. (ABREU, 2014, p. 105)

Com a mesma ideia relatada por Abreu (2014) que o ruído é tudo o que interfere nos sons do
ambiente, na própria música, é que Schafer determina no contexto de suas pesquisas em
paisagem sonora os sons desejáveis e os sons indesejáveis, ponto criticado por Ingold (2011),
apontando o impacto dos novos sons que a Revolução Industrial trouxe para os ambientes. É
compreensível a colocação de Schafer pelo fato de imaginarmos que a paisagem sonora anterior
a Revolução Industrial era mais tranquila e calma, sem a presença de sons industrializados.
Schafer (1993) em seu livro Vozes da Tirania retoma o assunto e esclarece:
A fixidez do nome “espaço”, precisa de algo mais do que a aplicação de um
modificador que passe a ideia de algo agitado e vagamente compreendido,
como “acústico”, para sugerir a transição da cultura visual para a cultura
auditiva, da forma como a percebia MacLuhan. Tampouco é fácil submeter a
cultura auditiva à mesma análise sistemática que tem caracterizado o
pensamento visual. (SCHAFER, 1993, p. 39)

Observa-se então que Schafer (1970) não tinha a intenção de fazer uma análise dos sons do
ambiente da mesma forma em que faz em relação as paisagens visuais., nem tampouco criou o
termo ‘paisagem sonora’ afim de dizer que o mesmo se igualava as paisagens visuais, apenas
emprestou termos da área, como uma forma de facilitar a explicação de suas pesquisas dentro
do campo sonoro.
Kelman (2015) citado por Aragão (2019) concorda que o termo “paisagem sonora” é
fundamental para os estudos do som, no entanto aponta-o como muito problemático. Ele
considera que as afirmações feitas por Schafer possui sérias contradições internas, analisando
incongruências na concepção original e também nas pesquisas posteriores, avaliando que estas
últimas ora tem uma relação, ora não com a paisagem sonora colocada por Schafer. (ARAGÃO,
2019, p. 4)
Kelman (2015) na verdade critica Schafer (2001) dizendo que o autor coloca muito as suas
preferências de sons tornando-o como uma espécie de prescrição para outros pesquisadores:
Apesar da popularidade geral do termo, a definição original de Schafer
captura algo muito mais específico. Sua noção de “paisagem sonora” está
longe de ser o termo amplo e descritivo em que se tornou. Em vez disso, sua
paisagem sonora está repleta de mensagens ideológicas e ecológicas sobre as
quais os sons "importam" e os que não; está repleto de instruções sobre como
as pessoas devem ouvir; e, ele traça uma longa história distópica que desce
dos sons harmoniosos da natureza às cacofonias da vida moderna. A
paisagem sonora de Schafer não é um campo neutro de investigação auditiva;
em vez disso, é profundamente informado pelas próprias preferências de

879
Schafer por certos sons em relação a outros. O Sounsdscape é um texto
prescritivo, muitas vezes referido como descritivo.10 (KELMAN, 2015, p. 214 )

Os questionamentos de Kelman (2015) são coerentes no sentido de que o autor vê a obra de


Schafer (2001) A Afinação do Mundo mais como um livro de receitas do que uma pesquisa
propriamente dita. Na visão de Kelman (2015), Schafer separa os sons que o agradam dos que
não o agradam e refere-se a algumas formas em que pesquisadores devem seguir esse caminho.
Na visão de Kelman (2015) Schafer não só combate o ruído e a poluição sonora, mas adentra-se
mais ao gosto pessoal.

4 - A gravação como ferramenta de análise da paisagem sonora


Michael Southworth (1969) pesquisando sobre as paisagens sonoras, devido a sua formação
como arquiteto, não eliminou o aspecto visual do seu objeto de estudo, pelo contrário, tentou
relacioná-la à percepção sonora, demonstrando como o visual é tão importante quanto o
sonoro, utilizando-se da percepção do pedestre para contribuir com suas pesquisas.
(SOUTHWORTH, 1969, apud NISENBAUM, 2016, p. 9)
Southworth (1969) valorizou o visual em função do sonoro reforçando a ideia de Labelle (2010)
citado por Neumann (2014) que diz que muitas vezes é o som quem dirige nosso foco visual,
pois quando o ouvimos, somos propensos a olhar de forma intuitiva para o lado do qual o som
nos chamou a atenção. Ou seja, pode-se valorizar as informações visuais, mas é a audição que
define para onde o homem deve dirigir o seu olhar. (NEUMANN, 2014, p. 80)
Devido a importância que a paisagem sonora possui e sua dificuldade de análise, partiremos de
que o registro da paisagem sonora é bem mais complexo do que o registro visual, até mesmo
pelo fato de estarmos acostumados a nos orientar pelo visual.
Schafer (2001) salienta esse fator.
Todavia formular uma impressão exata de uma paisagem sonora é mais difícil
do que a de uma paisagem visual... com uma câmera, é possível detectar os
fatos relevantes de um panorama visual e criar uma impressão
imediatamente evidente. O microfone não opera dessa maneira. Ele faz uma
amostragem de pormenores e nos fornece uma impressão semelhante à de

10
No original: Despite the term’s general popularity, Schafer’s original definition captures something far
more specific. His notion of “the soundscape” is far from the broad, descriptive term that it has since
become. Instead, his soundscape is lined with ideological and ecological messages about which sounds
“matter” and which do not; it is suffused with instructions about how people ought to listen; and, it traces
a long dystopian history that descends from harmonious sounds of nature to the cacophonies of modern
life. Schafer’s soundscape is not a neutral field of aural investigation at all; rather, it is deeply informed by
Schafer’s own preferences for certain sounds over others. The Sounsdscape is a prescriptive text that is
often referred to as a descriptive one.

880
um close, mas nada que corresponda a uma fotografia aérea. (SCHAFER,
2001, p. 23)

Este estudioso observou que o microfone, ou o gravador de áudios, não possuíam a mesma
“potência” de uma câmera, ou seja, os sons gravados não reproduziam os sons de forma
idêntica. Devido a isso, para o autor a paisagem sonora é algo de difícil registro em relação aos
seus sons. A paisagem visual ao ser transposta para uma tela, ou uma foto, se torna imóvel, sem
movimento, já a paisagem sonora, por meio de uma gravação, nos passa a sensação de
movimento do local, por isso mais difícil ainda de interpretar seu registro.
Se os estudiosos da WSP inventassem uma notação em relação aos sons coletados da natureza,
por exemplo, o som de uma cachoeira, com certeza não o utilizaríamos, devido a sabermos que
é uma fonte sonora irregular.
Embora disponhamos de muitas fotos tiradas em épocas diferentes e, antes
delas, de desenhos e mapas que os mostram como um determinado cenário
se modificou com o passar dos anos, precisamos fazer inferências no tocante
as mudanças sobrevindas na paisagem sonora. Podemos saber quantos
edifícios foram construídos em uma determinada área ao longo de uma
década.. mas não sabemos dizer em quantos decibéis o nível de ruído
ambiental pode ter aumentado em um período de tempo comparável.
(SCHAFER, 2001, p. 24)

Na visão de Schafer (2001) mesmo que venhamos a fazer registros através de gravações e
análises de estudos das paisagens contemporâneas, ainda assim teremos que contar com o
relato de testemunhas auditivas que venham a contribuir com as análises dos sons registrados.
Pois apenas registrar por registrar não é a função da pesquisa.
As paisagens sonoras são ricas e afetam todos os sentidos, e a preocupação é de que muitas
delas estão se extinguindo e não estão sendo registradas. Essa afetação é no sentido de que elas
revelam o estado de uma sociedade como diz Schafer: “eu também acredito que o ambiente
acústico, geral de uma sociedade, pode ser lido como um indicador das condições sociais que o
produzem e nos conta muita coisa a respeito das tendências e da evolução dessa sociedade
(SCHAFER, 2001, p.23)
Os registros realizados no parque ecológico serão fonte de experiências locais de um
determinado povo, particularmente através da sensibilidade auditiva individual.
Então, isso significa que a paisagem sonora é uma experiência global
compartilhada? Embora seja claramente a preocupação de um grupo

881
dedicado de indivíduos que estão em rede em todo o mundo, as paisagens
sonoras são inerentemente locais e particularizadas.11(TRAUX, 2008, p. 104).

A paisagem sonora deveria ser uma experiência global compartilhada com o objetivo de se
levantar pesquisas em diversas áreas do planeta referente aos ambientes sonoros e de
despertar interesse em mais pessoas para haver pesquisa em diversos lugares do planeta dentro
dessa área.
A preocupação do grupo de pesquisa da World Soundscape Project (WSP, 1970) sempre foi
relacionada ao excessivo crescimento do ruído no meio ambiente a nível internacional, mas que
nos desperta sobre a necessidade de análises e observações das paisagens próprias de cada
local. Os registros, através das gravações realizadas por este grupo de pesquisa, foram usados
como ferramentas de registro e documentação das paisagens sonoras.
Nas cidades, o conselho é que cada ambiente deveria ser analisado acusticamente, gravado e
mapeado.
“Para que possa ser verdadeiramente eficaz, a reprogramação da paisagem
sonora deve começar de dentro, como uma exigência dos cidadãos sensíveis.
É um processo educacional que parte de um indivíduo ou de pequenos
grupos, e rapidamente se propaga, como círculos em um lago, até atingir toda
a cidadania e finalmente os governantes. Só então, podemos esperar que a
paisagem sonora mundial se regenere em elegância, beleza e identidade
local”. (Secretaria Municipal do Meio ambiente, 1998, p. 7)

As gravações é uma forma de documentar todo o processo de registro das fontes sonoras
existentes no Parque Ecológico Municipal “Claudino Frâncio”
Quando a percebemos, agimos como um centro indiviso de movimento e consciência. Assim
Ingold (2011) lastima a moda de se multiplicar paisagens de todos os tipos possíveis. Ele
argumenta que a força do conceito inicial da paisagem sonora não está atrelada a nenhum
registro sensorial ou uma gravação específica, seja relacionado a visão, audição, tato, paladar
ou olfato. Esses registros cooperam tão intimamente, que suas contribuições são impossíveis de
separar. A paisagem é visível, mas só se torna realmente visual quando é reproduzida por
técnicas como fotografias ou pinturas, que permite ser vista pelo observador de uma forma
purificada artificialmente, sem nenhuma dimensão sensorial. Assim uma paisagem sonora pode
ser audível, mas para ser auditiva, teria que ser reproduzida por gravações ou outras técnicas

11
No original: So does this mean that the soundscape is a shared global experience? Although it is clearly
the concern of a dedicated group of individuals who are networked worldwide, soundscapes are
inherently local and particularised.

882
de arte sonora, sendo reproduzida em um ambiente, mais propriamente em uma sala escura
que estamos também privados de estímulo sensorial. (INGOLD, 2011, P. 136-137)
Na visão de Ingold (2011) a paisagem sonora tem seu significado por ela própria,
independentemente de estar representada por uma figura ou som registrados em pesquisas, ou
por obras de artes.
Maximiano (2004), que é doutor em Ciência e mestre em Geografia, reforça a fala de Ingold
(2011) dizendo que uma paisagem, seja ela visual ou sonora, não está atrelada a uma tela ou a
uma técnica de arte sonora ou gravação:
A noção de paisagem está presente na memória do ser humano antes mesmo
da elaboração do conceito. A ideia embrionária já existia, baseada na
observação do meio. As expressões desta memória e da observação podem
ser encontradas nas artes e nas ciências das diversas culturas, que retratavam
inicialmente elementos particulares como animais selvagens, um conjunto de
montanhas ou um rio. (MAXIMIANO, 2004, p. 84)

Maximiano (2004), nos chama atenção entre o olhar individual de uma pessoa referente a
paisagem e o registro dessa paisagem. Ele relata que a noção de paisagem já se encontra na
memória do ser humano, antes mesmo da elaboração desse conceito. Então uma paisagem não
precisa ser registrada ‘por alguma técnica” para se tornar visual, ou sonora. Uma paisagem, se
basta em si mesma, não depende de registros como pinturas, fotografias ou gravações para ser
considerada uma paisagem, e essas gravações e fixação de imagens em uma tela limita o
estimulo sensorial.
No livro As Vozes da Tirania (2019) Schafer, elabora respostas as muitas críticas relacionadas ao
seu livro Afinação do Mundo (2001). Numa delas ele diz que:
Nenhum som pode ser repetido de forma exata. Nem mesmo o próprio nome.
A cada vez que for pronunciado, será diferente. E o som ouvido uma vez não
é igual ao ouvido duas vezes. Nem o som ouvido antes será igual ao ouvido
depois. Todo som comete suicídio e nunca retorna. Os músicos sabem disso.
Nenhuma frase musical pode ser repetida exatamente do mesmo jeito.
(SCHAFER, 2019, p. 197-198)

Assim vemos que Schafer (2019) esclarece que a gravação do som não se encerra nela mesmo.
Ao gravar um som, ele torna-se um registro, mas não se eterniza como único e a análise de uma
paisagem sonora não se fecha a partir de um registro de sons.
Diante do fato de uma gravação não eternizar os sons da paisagem sonora e, por ela se
transformar a cada momento, lembramos do termo esquizofonia, criado por Schafer (2001), que
“refere-se ao rompimento entre o som original e sua transmissão e reprodução eletroacústica”,

883
e é a separação do som original do produtor do som. Nessa execução os sons saem de suas
fontes naturais e ganham sua existência amplificada e independente. Assim o som pode ser
gravado e estocado, podendo ser reproduzido posteriormente. Ou seja, um som pode conter
informações de culturas e períodos históricos diversos.
Não podemos estudar e pesquisar um ambiente com a ausência da gravação. A gravação dos
sons fará com que seja um instrumento de comparação com outras pesquisas vindouras, como
uma forma de avaliar a existência dos mesmos com o passar do tempo e se houveram mudanças,
ou outros fatores ocorreram com esses sons.
Zaganelli (2014, p. 52) diz que “a experiência de coletar os sons, com gravação e fones de ouvido,
traz uma amplificação da percepção do espaço sonoro, da atenção e da experiência do espaço.”
Então na visão de Zaganelli (2014) há a necessidade da Esquizofonia de Schafer para se obter a
experiência com os sons em uma pesquisa, ou seja, a intenção de se gravar o ambiente sonoro
e tirar os sons de suas fontes naturais para avalia-los e estuda-los.
Para reafirmar essa ideia da gravação da paisagem sonora como um todo, reflito sobre como foi
a paisagem sonora das Guerras mundiais (I Guerra Mundial entre 1914 à 1918 e II Guerra entre
1939 à 1945). Em um contexto de guerra, voltando as argumentações de Russolo (1913), não é
possível separar os sons ocorrentes dessa realidade. Vemos que os sons de armas, explosivos,
entre outros recursos usados na época, denomina-se um ‘fato social’ que estava influenciando
a paisagem sonora, naquele momento, em um determinado lugar.
Denominar planos é como denominar padrões de importância aos sons. As colocações de
Schafer para o estudo da paisagem sonora seria: determinar que os “sons naturais” estejam em
primeiro plano e, o ruído, que é uma paisagem de fundo, em segundo plano, para que os ruídos
não atrapalhem os denominados “sons mais importantes”. Assim, qualquer som que
atrapalhasse a interpretação de um evento, seria considerado por Schafer como ruído.
Podemos dizer que haverá momento em que terá um som em posição autoritária e outros em
submissão, nem sempre será o ruído. As vezes o som que prevalece, pode ser o ruído, algo que
parece incomodar, mas Russolo (1913) tenta nos convencer de que ele nem sempre é
desagradável e irritante e, para aqueles que sabem entende-lo, ele é uma fonte inesgotável de
sensações requintadas e profundas.
. . O trovão. Estrondo misterioso que vem de longe, como uma ameaça, ou
um estrondo com ritmos estranhos e poderosos que eclodem no zênite. Seu
estrondo se espalha, enfraquecendo, quando uma nova explosão os apanha
e os renova com ecos infinitos, que às vezes são respondidos pelo barulho
estridente das janelas ... Muitas vezes, o uivo baixo, humano, ameaçador ou

884
suplicante, triste ou zombando de sibilos agudos e persistentes do vento,
acompanha o trovão... (RUSSOLO, 1913, p. 44-45) 12

Assim, em um ambiente natural, os sons denominados como ruído poderão prevalecer, mas,
cabe ao pesquisador buscar uma postura para ouvir os sons em equilíbrio, sem ter preferências
entre os sons artificiais e/ou naturais, de forma que todos sejam analisados em um único plano.
Neste estudo, ao utilizar a gravação como ferramenta, não se encerra a relação histórica entre
o lugar e o som. O ato de gravar um som, não pode interferir na análise do mesmo de forma
isolada, mas deve-se ter em mente o processo contínuo por ele percorrido. Compartilhamos
com Russolo (1913) que o som não pode se desvincular de seu locus social e que ao gravá-los o
pesquisador deve ter noção da paisagem sonora com uma visão global, não com o objetivo de
querer mudá-los, ao modo e gosto de um indivíduo, ou grupo de indivíduos.
Através da gravação podemos observar quais sons desapareceram de um ambiente, quais novos
sons surgiram, quais sons estão permanecendo e sendo preservados. A produção de um som
sempre está ligada a uma fonte e, essa fonte sempre apresentará um vínculo histórico e social
dos quais nos beneficiarão enquanto fatores agregadores de múltiplas significações nas análises
de uma paisagem sonora. A gravação dos sons nos proporcionará meios de classificar os mesmos
de forma e estuda-los.

5 - O estudo Do Parque Ecológico: a participação dos frequentadores


No local de coleta dos sons também será realizado as entrevistas com os frequentadores do
parque. A partir da coleta dos sons e das narrativas dos frequentadores, faremos uma análise
de como essa paisagem sonora repercute na vida deles e como é o relacionamento entre os
mesmos. Também serão considerados o que os frequentadores têm feito por essa paisagem e
como seus modos de vida afetam essa paisagem.
Conforme Schafer (2001) em seu livro Afinação do Mundo podemos dizer que o projeto
realizado no Parque Ecológico Municipal seria como uma iniciativa a um “projeto acústico”:
Ecologia é o estudo das relações entre os organismos vivos e seu ambiente. A
ecologia acústica é, assim, o estudo dos sons em relação à vida e à sociedade.
Isso não pode ser realizado em laboratório. Só poderá ser desenvolvido se
forem considerados, no próprio local, os efeitos do ambiente acústico sobre
as criaturas que ali vivem. (SCHAFER, 2001, p.287)

12
No original: Il tuono. Misterioso brontolio che arriva da lontano, come una minaccia, o fragore dai ritmi
strani e potenti che scoppia allo zenit. I suoi rimbombi si sono sparpagliati, appena indebolendosi, quando
un nuovo scoppio li riprende e li rinnova con echi infiniti, a cui talvolta risponde il tintinnio acuto dei vetri
delle finestre... Spesso l'ululato basso, umano, minaccioso o implorante, triste oppure beffardo in sibili
acuti e persistenti del vento, fa da accompagnamento al tuono...

885
Para se estudar o ambiente sonoro deste local, vemos que é impraticável fazê-lo sem o parecer
dos frequentadores, pois a paisagem sonora é influenciada pelos mesmos e ao mesmo tempo,
eles são influenciados pela paisagem. Há uma relação social entre eles, “... somos
simultaneamente seu público, seus executantes, seus compositores. Que sons queremos
preservar, incentivar e multiplicar? ” (SCHAFER, 2001, p. 287-288)
Zaganelli (2014) propõe:
Como sugestão para pesquisas futuras, recomenda-se a organização de
práticas de soundwalks coletivos complementados com entrevistas aos
participantes, ampliando as percepções das diversas Paisagens Sonoras da
cidade, assim como dos ambientes naturais, trazendo também a abordagem
subjetiva ao estudo. (ZAGANELLI, 2014, p. 240)

A autora lamenta em sua dissertação de mestrado que não se utilizou da entrevista como
instrumento de coleta para sua pesquisa ocasionando em perda de contribuições que viesse a
enriquece-la.
O objetivo de levar os frequentadores do parque a participação das entrevistas é duo, ou seja,
além de colher informações que possam contribuir para a construção da pesquisa no sentido da
avaliação da paisagem sonora, da relação entre som e o significado de sua produção social, é
também despertá-los para ela, pois muitos de nós, estamos tão acostumados ao local que
moramos, que muitas vezes não paramos para observar e ouvir os sons que nos circundam,
invalidando o sentido dos mesmos em nossas vidas.
Cada morador do local da pesquisa traz consigo experiências, ou seja, experiências atuais ou em
memória para contribuir com a análise dos sons locais.
Santos (2006) expõe a fala de Norman (1996) dizendo que:
Ao escutar, nossa reação imediata é buscar a fonte causadora do som. Se o
objeto causador do som escutado não estiver presente in loco, nossa reação
é buscar na memória, ou até mesmo criar ou imaginar uma possível fonte
concreta, pois, como observa Norman (1996, p. 2), “nossa reação imediata é
complementar ou substituir o som com um dado visual”. Ao buscar uma
visualização do som, a escuta age no sentido de tentar trazer a experiência
sonora para a realidade temporal e espacial de quem escuta (NORMAN, 1996
apud SANTOS, 2006, p. 67)

A participação dos frequentadores do parque na pesquisa será importante pelo fato de que irão
responder com base em suas experiências tanto auditivas locais, quanto na busca pela memória
dos sons, pois sabendo que o ser humano é composto de memórias visuais e também auditivas,
fortalecerá o histórico da pesquisa.

886
Espera-se que os frequentadores do parque, com seus depoimentos e narrativas, contribuam
com a realização da pesquisa, ao mesmo tempo em que se tornem mais sensíveis à paisagem
sonora que os rodeia.

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ZAGANELLI, Deborah Martins. O Som da Paisagem: Pelas Praças do Centro da Cidade de Vitória, ES.
Dissertação de Mestrado, Vitória, 2014.

888
PARADOXOS DA SEPARAÇÃO: emaranhamentos como alternativa
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Christian Bertrand Oliveira Conce Rocha


Psicólogo, Bolsista CAPES/PROEX no Mestrado em Filosofia PUCRS;
christianconcer@gmail.com

Resumo: Com um breve prelúdio, seguido de uma condensada apresentação do movimento da


virada especulativa e do realismo especulativo, passando pela Ontologia Orientada ao Objeto,
enfocando a teoria dos autores Graham Harman e Timothy Morton, buscamos transpor algumas
barreiras, inclusive disciplinares, para atingir um ponto de onde possamos partir em direção a
um descentramento do humano. Mobilizamos, para tanto, a filosofia, a estética (desde insights
de Mark Foster Gage), a política e comentários acerca da arquitetura, parcialmente apoiados
em Jacques Rancière e alguns de seus conceitos que enodam essas e ainda outras organizações
de pensamento.
Palavras-chave: Ontologia-Orientada-Objeto; Estética; Filosofia Especulativa.

Abstract: With a brief prelude, followed by a condensed presentation of the movement called the
speculative turn and of speculative realism, passing by Object-Oriented-Ontology, focusing on
Graham Harman's and Timothy Morton's theory, we seek to overcome a few barriers, including
disciplinary ones, to reach a point from which we can depart towards decentering the human.
We mobilize, to do so, philosophy, aesthetics (through insights from Mark Foster Gage), politics,
and comments around architecture, partially supported by Jacques Rancière and his concepts,
that tie those and yet others organizations of thought.
Key-words: Object-Oriented-Ontology; Aesthetics; Speculative Philosophy

889
1 – Prelúdio
Começar do começo seria usual, um caminho tradicional de onde nasce a escrita do texto. O
entrelaçamento disciplinar tende a requerer, caso o rigor seja o objetivo almejável, um longo
período de estudo em cada uma das áreas abordadas, fazendo jus não só ao entendimento de
certa teoria como demonstrando-o na medida em que comparações, sugestões ou metáforas
fossem expostas.
Mais importante seria não só a clareza, mas a conexão ou o nexo produzido, conjuntamente
com a própria capacidade argumentativa. Assim, seria possível atingir um público-leitor
especializado em alguma das áreas, ou mesmo cativar o interesse de uma pessoa com uma
inclinação, ou ao transdisciplinar, ou ao objeto ou mesmo desavisada, entretanto, tal esforço
pode, de todo modo, parecer insuficiente ou disperso.
Esse texto busca compartilhar um interesse de estudo e parte de seus desdobramentos, com
um enfoque que situa sua relevância a partir das posições que ocupam diante do cenário da
discussão filosófica ou anti-filosófica. O nascimento do interesse se dava por um objeto, ou ainda
pela vontade de entender o que é o objeto.
Nesse âmbito, podemos ainda notar que o enquadramento textual a certas regras parece
conferir uma unidade de sentido pela forma de apresentação. O conteúdo foi coproduzido pela
forma proposta, em si um fruto de uma dada organização. Nesses nós que propomos, o que
propomos?
Podemos pensar contra a tendência específica do recorte do objeto de pesquisa, e a
exclusividade de sua minúcia, que está inscrita em determinado campo, sujeita a
problematização para com um certo número de pares? Inscreve-se desde-já uma questão que
é, também, metodológica. Um questionamento anterior nesta seara seria: o que é um objeto?

2 - Realismo Especulativo
Com uma afirmativa ousada desde o início de trabalho, um marcante volume chamado "The
Speculative Turn: Continental Materialism and Realism" introduz-se: "enquanto a fase do
comentário subserviente sobre a história da filosofia parece ter acabado." (BRYANT, SRNICEK,
HARMAN, 2011, p. I). Apesar da imprecisão desta afirmativa, podemos perceber o tom da
proposição. Elaboremos um pouco mais sobre o realismo especulativo na direção proposta pelo
capítulo supracitado. De modo bastante condensado tentaremos passar uma compreensão
parcial de alguns dos tópicos.

890
Fala-se de uma primeira onda de filosofia continental anglofônica, tendo a fenomenologia como
carro-chefe, notável pela influência de Husserl e Heiddegger, como de outros. Essa onda
desdobraria-se, por sua vez, na fama escalonada e ainda em ascensão de Derrida e Foucault e,
posteriormente, Deleuze.
O que chamam de "lugar comum" dentro da filosofia continental é uma ênfase no discurso, no
texto, na cultura, na consciência, no poder ou nas ideias como: o que constitui a realidade (ibid.
p.2). Isso não resultaria no questionamento do lugar da humanidade no mundo, mas no sujeito
cartesiano auto encapsulado, mantendo o foco no humano, e dando a realidade tal como ela é
correlata ao humano. Face a catástrofe ecológica e a infiltração tecnológica crescente no
cotidiano, vêm um perigo na ideia de que a corrente anti-realista da filosofia continental
(fenomenologia, estruturalismo e pós-estruturalismo, desconstrução e pós-modernismo) não
avance, como também limite a capacidade da filosofia nos nossos tempos.
Apontam que, em contraste, podemos virar para a realidade em si mesma. Essa virada parece
rejeitar o foco tradicional na crítica textual, mesmo cientes de que a especulação pode gerar
preocupações, uma vez que poderia sugerir um retorno a uma filosofia pré-crítica, com crença
dogmática no poder puro da razão, ao que se defendem dizendo que não deixam de levar em
conta todo o avanço feito pelas diversas correntes filosóficas continentais, apenas atribuem a
elas limitações, estas a serem transpostas por eles e pelos que estão por vir. As filosofias
anteriores não seriam capazes de confrontar a crise ecológica, a marcha da neurociência, a
quebra na divisão humano-máquina ou, até mesmo, a física básica.
Voltando a Deleuze e Guatarri, dizem que foram pioneiros no recente aparecimento de interesse
em questões propriamente ontológicas, pois
colocaram em marcha uma visão ontológica de um domínio asubjetivo de
devir, com o sujeito e o pensamento sendo apenas um produto final e residual
dos movimentos ontológicos primários. Deram seguimento a construção de
uma visão ontológica das ruínas das ontologias tradicionais (ibid, p. 5-6)

Também com grande influência nesse tópico apontam Zizëk, que bebe tanto na neurofilosofia
de Schelling, da vastidão ontológica de Hegel e de insights do Real em Lacan, culminando
também em outro pensador, Badiou, bastante conhecido pelo entendimento da Ontologia como
matemática, além de ressuscitar também a questão da verdade. Demais desdobramentos de
algumas das ideias, assim como perspectivas de futuros para essas discussões também podem
ser encontradas em mais detalhes no original.

891
Finalizando esta breve apresentação, feita de uma breve e densa apresentação do volume que
propomos a partida, seria impossível não citar a questão do correlacionismo, cuja origem vem
de Kant ao postular a abjuração de se conhecer o mundo do númeno, além do acesso humano.

3 - Ontologia Orientada ao Objeto (OOO)


Muitos são os caminhos possíveis de tentar começar a responder a questão "o que é um
objeto?" A Ontologia Orientada ao Objeto (OOO) fornece uma sugestão significativamente
interessante, que se inscreve dentro da corrente de pensamento filosófico continental, em
especial em países de língua inglesa, chamado Realismo Especulativo (RE), um dos frutos da
Virada Especulativa. Nas palavras do editorial no Brasil, sobre o RE, ao descrever um ponto de
partida compartilhado para os autores que impulsionaram as reflexões:
a ideia de que o primado da epistemologia sobre a ontologia que dominou a
filosofia desde Kant a aprisionou no exame perpétuo das condições do
pensamento. Ao se oporem ao que chamam de “correlacionismo” (termo
criado por Meillassoux para descrever o tipo de filosofia que fundamenta
todo o pensamento sobre a interação mútua entre o ser humano e o mundo),
os filósofos do realismo especulativo afirmam a existência de uma realidade
independente de qualquer acesso humano, e rejeitam a tese kantiana de que
o sentido do mundo depende do modo como nossas mentes (ou nossas
línguas, ou nossas culturas) trabalham para estruturá-lo." (BEZERRA;
GONÇALO, 2018, p. 1-2)

É importante trazer também que, para esses autores, os apontamentos de que a OOO se
inscreve em um movimento mais geral, podendo ser relacionada com o século XXI e as relações
que ultrapassam o âmbito estrito das relações humanas. Exemplos destes seriam o aquecimento
global, a biotecnologia e a internet. Questões similares as levantadas no tópico 2 deste trabalho.
A Ontologia Orientada ao Objeto elegeu a busca paradoxal por uma filosofia radical que não
permite o entendimento de objetos nem como exclusivamente ou principalmente correlatos
aos humanos e tenta não replicar os mesmos mecanismos de pensamento anteriores.
Também em forma de sintetização de tópicos, desta vez de uma conferência de Graham Harman
(2017), podemos obter um pouco mais de apoio na concepção de objeto. Ele participa de
questões tanto ontológicas como epistemológicas. Para este professor também tudo está
emaranhado e mudando. Um objeto pode remontar a questão Aristotélica da potencialidade,
onde as coisas são mais do que é ou do que faz, num dado momento. Na visão dele, boa parte
da filosofia foi um esforço para se livrar de objetos, que seriam tanto o oposto do humano como
coisas sólidas duráveis através do tempo. O objeto seria, em sua perspectiva, conhecido como

892
metafísica dos objetos, irredutível a duas estratégias usuais de sua definição subminar
(undermine) e sobreminar (overmine).
A primeira tende a reduzir os objetos em suas menores partes, em comum, os filósofos que
assim os concebem, acreditam que objetos de tamanho médio ou grande não estão realmente
lá, apenas será possível saber o que é o objeto de fato ao reduzi-lo até seu último componente.
Razões que Harman nos fornece para poder pensar de outro modo, é que isso não explica a
emergência (entidades maiores derivadas das menores) e o fato de não sabermos nem se as
menores partes das coisas são acessíveis. A segunda tende a reduzir os objetos em seus efeitos
ou as coisas que causam ou os atores que mobilizam. Nesta conferência o filósofo americano
nos diz também que as coisas não são exauridas em cada instância por suas ações nessas
instâncias, pois têm poder excedente que podem exercer em outro tempo.
Aqui entra um tópico relevante para nós, a interobjetividade. Ela subentende a interação dos
objetos uns com os outros através de seus respectivos núcleos estéticos. A possibilidade disso
se dá se aceitamos a independência dos objetos das qualidades ou efeitos, que possuem ou
demonstram, e que, retêm um excesso. A filosofia da retirada (esse termo refere-se a ideia de
que os objetos são sempre inacessíveis em sua totalidade, em inglês Withdrawal) do objeto nos
encaminha a uma forma indireta de representação, o mesmo acontece para a interação objeto-
objeto esses não podem tocar-se diretamente, apenas através de interação indireta, o que nos
permite o pulo conclusivo de que a causação em si tem de ser estética, nunca uma ligação direta
entre duas coisas.
Desdobramentos profícuos e críticas severas já são possíveis de serem encontradas, destaco o
volume "Object-Oriented-Feminism", editado por Katherine Behar, artista e professora da
Baruch College, City University of New York e "after the speculative turn: realism, philosophy,
and feminism", editado por Katerina Kolozova, diretora e professora de estudos e filosofia de
gênero no Instituto de Ciências Sociais e Humanas de Skopje, e Eileen A. Joy, professora de
literatura e língua inglesa na Southern Illinois University Edwardsville.

4 - Mesh
Além dos autores que foram precursores e conseguiram construir uma rota e, cada qual a seu
modo, seguir seu caminho nas divergências argumentativas sucessivas e nas distinções de estilo
observáveis nas publicações, encontramos, dentre outros, Timothy Morton. Após a publicação
do livro "The Ecological Thought: rethinking environmental aesthetics'' (2010, ainda sem
tradução) foi convencido de que ele também fazia parte desse movimento de pensamento.

893
Neste escrito ele nos fala sobre a interconexão e o enredamento de todas as formas de vida e
não-vida em um amplo emaranhado, que por sua vez, perpassa todas as dimensões da vida, o
que ele nomeia "the mesh", que optamos por traduzir, nesse momento, por 'a malha'.
Baseando-se na desconstrução da linguagem, a partir de Derrida e seu pensamento sobre a
estruturalidade da estrutura, Morton (2011, p. 23) nos lembra sobre o que acontece quando
sujeitamos o sistema da linguagem à desconstrução. Ao submetermos a linguagem à
desconstrução podemos encontrar um tipo de estrutura aberta, que não possui centro nem
borda, justamente por ser um sistema de diferença negativa (uma palavra não pode ser
explicada por ela mesma). Isso se dá uma vez que não há um sinal flutuante (um significante
mestre) fora do sistema para garantir o significado e a estabilidade de demais sinais. Ou seja, a
linguagem é infinita pela impossibilidade de contabilização de todos seus sentidos e efeitos. O
significado de uma palavra é outra palavra, e cadeias de sinais só ganham sentido
retroativamente.
Morton ainda acrescenta que se aplicarmos essa visão para os sistemas de formas-de-vida,
vemos que são compostas por outras formas-de-vida, o que estaria de acordo com a teoria da
simbiose, assim como com a teoria da evolução. Quais seriam, então, as implicações da visão
desconstrutivista?
1. formas de vida constituem um(a) mesh (malha) que é infinita e além de
conceito - impensável enquanto tal; 2. traçar as origens da vida a um
momento anterior a vida resultará em paradoxos; 3. desenhar distinções
entre vida e não vida é estritamente impossível, mesmo que inevitável; 4.
diferenciar entre uma espécie e outra nunca é absoluto; 5. não existe "fora"
do sistema de formas-de-vida; 6. o teorema da interdependência é parte do
sistema de interdependência e então sujeito a desconstrução; 7. como não
podemos saber antecipadamente quais serão os efeitos do sistema, todas as
formas de vida são teorizáveis como estranhos estranhos (strange strangers)
(MORTON, 2011, p. 24)

5 - Emaranhamento
Quem nos auxilia na construção da ponte textual entre a Ontologia Orientada ao Objeto e
Ranciére, filósofo, é certamente, Mark Foster Gage, a época, reitor assistente da Escola de
Arquitetura na Universidade de Yale, que editou o volume "aesthtetics equals politics: new
discourses across art, archictecture and philosophy".
No editorial, Mark Foster Gage destaca que a estética foi introduzida por Gottlieb Baumgarten,
como campo específico da filosofia, no século XVIII, campo que foi expandido por Kant, por sua
vez espalhando-se por diversas disciplinas, não sem deixar de possuir uma variabilidade
significativa de significado em acordo ao contexto discursivo de sua invocação. A título de

894
exemplos, comumente podem trazer à tona desde história e crítica de arte, mas também a
filosofia, a arquitetura, a beleza visual associada a fashion, flores, maquiagens.
Oxford Don, Walter Pater e Oscar Wilde ao tratar da estética, a relacionava a busca autônoma
do belo, da beleza ou do prazer, e buscavam desassociar esta categoria de um envolvimento
ético, econômico e moral. Nesse cenário, Gage (2019) situa que a arte era vista como primeira
forma de veiculação de um conteúdo estético, esta que, inicialmente, intencionava resistir à
poluição do capitalismo e do consumo vulgar mercantil ao ser tanto sem valor, como sem preço.
O arquiteto lembra ainda uma crítica contemporânea que versa sobre as qualidades estéticas,
dizendo que seriam apenas uma forma superficial de aparência, separada ou ilusória, distinta
de um campo epistemológico profundo. Essa crítica é fundada em uma espécie de contra-
estética, derivada do movimento neomarxista da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, ecoando
em impacto em Lyotard, Lacan e Derrida. Na posição desses, seguindo ainda o entendimento de
Gage (ibid, p. 4-5), às preocupações estéticas, nas quais a representação está muitas vezes
incluída, foram entendidas como obscurecendo a real verdade da realidade, mais
especificamente a verdadeira realidade de poderes estruturais e sociais, culturais e econômicos
que governavam a sociedade, mas eram invisíveis para todos, menos os mais eruditos
intelectuais e artistas.
A estética estaria começando a cunhar um território cada vez mais amplo de relações entre os
aspectos sensíveis do individual e da comunidade, tomando responsabilidade para com os
registros políticos e sociais
Daí a outro entendimento estético mais abrangente é necessária uma ponte que pode se dar
desde o nosso ponto de vista, em consonância com Gage (2019), a partir do conceito de estética
como distribuição, ou mais precisamente, partilha do sensível. O arquiteto ainda nos fala que
problemas ontológicos e políticos podem ser melhor endereçados como aspectos da experiência
estética. Para tanto precisaríamos produzir novos entendimentos sobre objetos, espaços,
ambientes, ecologias, e outras estruturas políticas nas quais estamos todos emaranhados. Sem
domínio monolítico, o volume explora essas ideias, e busca responder questões sobre o futuro
de nossa coexistência.

6 - Política, Emancipação e Arquitetura


O compilador do volume citado no tópico anterior, Gage, realizou uma entrevista com Rancière,
onde aborda alguns tópicos da articulação do sistema teórico produzido pelo filósofo. Nela

895
percebemos algumas posições com relação a arquitetura e a Estética. A seguir, tecemos alguns
comentários sobre a entrevista, pertinentes a esse emaranhamento sendo produzido.
Estética não é a apreciação de arte. Não seria arte, mas aquilo que constitui a experiência
sensível, ou seja, a experiência de um mundo comum. O caminho tomado para construir a
discussão é através do retorno ao período clássico da Grécia Antiga de Aristóteles e Platão,
inegáveis pilares da organização social de diversos momentos da história humana desde então.
Como os patrícios não acreditavam que os plebeus tinham capacidade de articulação, de uso do
logos através da fala, mas apenas da produção de ruídos, recai sobre os plebeus a necessidade
da produção de evidências de que falam, dotados de logos inclusive. A política, tal como posta
por Rancière, é baseada na posse do logos. Esse seria o chão estético do político, anterior
inclusive à constituição ou emergência da arte enquanto tal, por sua vez concomitante a estética
que se refere a arte, que antes referia-se a certa habilidade ou know-how. Rancière diz que a
estética não pode ser substancializada como a teoria ou ciência do belo, pois antes era o
significado de uma forma de equidade sensória.
Na distribuição hierárquica do sensível, quando se é um trabalhador, têm-se os sentidos de um
trabalhador, a mente de um trabalhador. Um exemplo de experiência estética como
reatribuição do sensível seria um trabalhador que olha ao seu ambiente em tom de devaneio
enquanto deveria estar focado em sua função repetitiva de um movimento mecânico. Entrando
na questão da emancipação pode-se dizer que ela se dá tanto de modo material como simbólico
- nesse exercício de desassociação com o jogo normal de gestos, atitudes, sentimentos e
pensamentos. O núcleo estético da emancipação significa que os trabalhadores parem de usar
seus sentidos como devem fazer.
Em uma pergunta, Gage traz a ideia de porosidade, como descendência da Escola de Frankfurt,
que influencia a profissão (arquitetura), supondo que o trabalho arquitetônico deve focar-se em
revelar as desigualdades ou problemas sociais, criando aberturas onde as pessoas veem os
problemas. Essa noção arraigada insiste na ação política contingente a consciência, e a
arquitetura poderia conscientizar. Sugere em seguida que existem outras táticas, perguntando
se o estranhamento pode desempenhar um papel na reconfiguração da partilha do sensível.
Na resposta, Rancière critica a ideia de que aumentar a consciência é uma forma de ação
engajada. Estrangement (estranhamento) é a ideia da subtração do sentido, o dar de volta a
inocência da capacidade de ver, oposto da consciência como alienação. Não é revelando um
problema que se vê, é produzindo um questionamento de sentido, que permite reescrever uma
nova equação para a realidade ou uma nova distribuição do sensível. Distribuição essa que

896
implica que a arte sempre faz algo a mais que seus próprios negócios. Emancipar-se significa
justamente parar de fazer seu próprio negócio.
A arquitetura nos tempos modernos pegou a ideia não apenas de ser um conhecimento
destinado à construção, mas um instrumento para reforma da percepção. Rancière nos ilustra
isso contrapondo duas tradições. A tradição brechtiana do estranhamento demanda
interpretação, que é equalizada com a consciência da situação que é suposta a trazer energia
para lutar (aponta para contradições e lutas sociais). Já na tradição de Frankfurt, o estrangement
é desconectado da ideia de dar energia para a ação. Torna-se uma posição de distância. Define
uma posição de distância com a ideia de que a coisa estranha revela a inumanidade do sistema,
assim como a violência que subjaz sua aparente harmonia.
Finalizando a entrevista, Rancière diz que a arquitetura não apenas serve à vida, não é feita para
o prazer dos estetas. Ela constrói novos sensos de visão, trabalho, ações e sentimentos, formas
de habitação, formas de vida. O problema central seria que o uso segue o design. Não daria para
negar o abismo entre a forma artística produzida pela vontade do artista e a forma estética
relacionada com o sentido da vida de quem experiencia ou experimenta. Por um lado, há um
sonho arquitetônico de promover igualdade através do design e da construção, mas a igualdade
não pode ser um produto, tem de ser um ponto de partida. Por outro lado, a ideia de promover
igualdade através do design foi baseada em uma certa sociologia. Werkbund e Bauhaus como
projetos ativistas seguiram a ideia que a modernidade significa que a homogeneização das
condições de vida seria igual a igualdade. Não foi o caso.

7 - Conclusão
A virada especulativa, o realismo especulativo, o que vêm depois destes, a ontologia orientada
ao objeto, a ontologia orientada ao feminismo, a malha, o emaranhamento e a partilha do
sensível, a estética, a arquitetura e a emancipação são alguns dos pontos citados ou
desdobrados aqui.
Pequenas incursões em mares pouco explorados em língua portuguesa, buscando construir
pontes e identificar nós que permitam um direcionamento de futuro que leva em conta diversos
aspectos, problemas e questões, epistemológicas, ontológicas, ecológicas, filosóficas, estéticas
que o desenvolvimento usual da filosofia e da ciência nos possibilitou não é tarefa fácil. De todo
modo, algo foi possível.
Vemos as contribuições tanto pelas traduções como pelo incentivo ao acesso a essas formas
outras de entender e pensar o relacionamento entre humanos e não-humanos ou antes, entre

897
objetos, desde seus núcleos estéticos, no campo político, diante de um cenário mundial que
tende a escalonar em desafios cada vez mais complexos e constantes.

Referências

BEHAR, Katherine (ed.). Object-Oriented Feminism. Minneapolis: University Of Minnesota Press, 2016.

BEZERRA, Julio; GONÇALO, Pablo (ed.). Realismo especulativo. Revista Eco-Pós, Rio de Janeiro, v. 21, n.
2, p. 1-11, 20 set. 2018. Quadrimestral. Revista ECO-Pos. http://dx.doi.org/10.29146/eco-
pos.v21i2.20510. Disponível em <https://revistaecopos.eco.ufrj.br/eco_pos/article/view/20510>.
Acesso em: 18 fev. 2021.

BRYANT, Levi; SRNICEK, Nick; HARMAN, Graham. Towards a Speculative Philosophy. In: BRYANT, Levi;
SRNICEK, Nick; HARMAN, Graham (ed.). The Speculative Turn: continental materialism and realism.
Melbourne: Re.Press, 2011. Cap. 1. p. 1-18. (Anamneses).

GAGE, Mark Foster (ed.). Aesthetics equals politics: new discourses across art, architecture and
philosophy. Cambridge: The Mit Press, 2019.

GRAHAM Harman: Morton’s Hyperobjects and the Anthropocene. Kirkenes: Sonic Acts, 2017. (75 min.),
Digital, color. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=Id4FF7JO2wU>. Acesso em: 05 Jan.
2021.

MORTON, Timothy. The Mesh. In: LEMENAGER, Stephanie; SHEWRY, Teresa; HILTNER, Ken (ed.).
Environmental Criticism for the Twenty-First Century. New York: Routledge, 2011. Cap. 1. p. 19-30.

KOLOZOVA, Katerine; JOY, Eileen A. (ed.). After the speculative turn: realism, philosophy and feminism.
Earth: Punctum Books, 2016.

898
PATRIMÔNIOS SILENCIADOS E MAPEAMENTO PARTICIPATIVO EM PEQUENAS
CIDADES: Uma experiência em Redenção e Acarape.
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Regina Balbino da Silva


Doutoranda em Geografia pela UFC; reginabalbino2011@gmail.com

Eduardo Gomes Machado


Doutor em sociologia pela UFC; Professor Associado da UNILAB;
eduardomachado@unilab.edu.br

Rafael Carvalho Fernandes Pereira


Mestrando em Geografia pela UFC; rcarvalho.fp@gmail.com

O proposto trabalho analisa metodologias participativas como forma de visibilidade e de


legitimação do patrimônio das minorias sociais. Devido a diferente lógica de materialidade e
significação do patrimônio destes grupos sociais há uma certa invisibilização provocada pelas
classes dominantes. Para isso, é utilizado o mapeamento participativo, como meio de
reconhecimento de diversos saberes de grupos variados, e o mapeamento afetivo para análise
das relações dos sujeitos com seus espaços, tendo a união dessas informações pretende-se
reconhecer a relação dos grupos com o seu patrimônio coletivo. Como exemplo, é utilizada a
aplicação de 2 etapas de metodologias participativas ocorridas em oficinas com alunos da
UNILAB, com o intuito de traçar o perfil da relação aluno-cidade, espaços simbólicos e os
obstáculos existentes.
Palavras-chave: Mapeamento; Patrimônio; Metodologias Participativas; Paisagem.

The project proposed analysis of collaborative methods on the enhancement of the


perceptiveness and legitimise racial minorities heritage. As a result of the different
comprehension of heritage meaning from these groups, there exists a lack of recognition from
majority classes. Therefore it is used the participatory mapping as a technique to comprehend
varied knowledge from distinct groups, thus mapping accurately for analyses of the relation
between the subjects and their space, gathering then substantial data to correlate groups and
its collective heritage. As an example, it is applied 2 steps into the participatory mapping method
in workshops with UNILAB students, intending to create a standardized profile of student/city,
significant space and existent obstacles.
Keywords: Mapping; Heritage; Collaborative Methods; Landscape.

899
1 - Introdução
O patrimônio cultural é a base de identificação histórica de um povo, e seu processo de
construção e perpetuação acontece paulatinamente durante a vida de uma comunidade,
entrelaçando conjuntos de práticas, conhecimentos e valores. Construídos e significados, em
cada contexto histórico, por um determinado grupo, sendo continuamente reconstituídos e,
inclusive, parcial ou completamente alterados.
Para Cosgrove (1998), as paisagens são importantes condutores destes valores, uma vez que é
através destas que são propostas as transmissões de códigos de comunicação social, ou seja,
meio de interação entre classes. Segundo o autor, os elementos dispostos na paisagem
influenciam comportamentos, pois “Como o poder simbólico na sociedade de classes, a
ideologia se apropria e reproduz o espaço para legitimar e sustentar a dominação de classes
[...]” (COSGROVE, 1998, p. 26). Para Besse (2014), a paisagem vai além de sua dimensão material,
sendo o lugar onde as representações dos elementos dispostos estão intrinsecamente
relacionadas com o campo material, ou seja, a paisagem é o ambiente onde o pensar, o agir e o
sentir humanos acabam por nos impactar de forma direta ou indireta. Sendo assim, paisagem
não seria natureza, segundo o autor, “[...] mas o mundo humano tal como ficou inscrito na
natureza ao transformá-la. [...]” (ibidem, p. 34). Logo, a paisagem é a relação do mundo material
seja ele antrópico ou natural com os significados que colocamos nestes.
Considerando essas questões, os grupos e classes hegemônicos, ao buscarem, continuamente,
afirmarem suas posições de poder, reiteradamente criam símbolos e códigos que reafirmam e
perpetuam seu lugar, por meio da construção de paisagens que expressam seus valores sociais,
baseados em conceitos próprios de patrimônio.
Para Cosgrove (1998), em sociedades de classes, a cultura advém da experiência desta
estratificação, em que os sensos comuns de cada grupo sobre sua vivência material são
resultado de “luta com outras classes, cada uma tentando impor o que vê como a validade
universal dessa experiência.” (p. 18). É imposta, assim, uma hegemonia cultural direcionada pela
classe dominante,
[...] Mas a relação orgânica entre a consciência humana e a produção material
é tal que é na primeira, como ideologia de classe, que a mudança histórica se
revela. A produção material é, em si, tanto um instrumento de atividade
ideológica quanto vice-versa. (COSGROVE, 1998, p. 18)

Nos processos de instrumentalização da comunicação, Cosgrove (1998) afirma que a cultura


hegemônica é uma forma de organizar o “conhecimento e comunicação, senso comum e a base

900
da ordem moral” (p. 19). O autor nos relata a importância deste meio como reafirmação e
legitimação das classes dominantes ao cumprir sua função política, em que no caso a cultura da
burguesia (após se tornar hegemônica) é assumida como senso comum, onde no capitalismo a
consciência coletiva da sociedade é reduzida apenas a produção de bens materiais e ao
fetichismo da mercadoria.
Porém, é importante lembrar que diversas outras culturas, que são consideradas ‘minorias’
como negros, indígenas, LGBTQIA+, ciganos dentre outros, não são contemplados nesse sistema
de valorização e produção de bens que possibilite a perpetuação de suas características
originais. Isso, contudo, não faz com que estas atividades deixem de existir, apenas não
conseguem a mesma visibilidade hegemônica. Desse modo, as práticas, os conhecimentos e os
valores de agentes hegemônicos e subalternizados, e as paisagens que os expressam, muitas
vezes continuam coexistindo e convivendo, revelando conflitos, paradoxos e ambiguidades
relevantes.
Pereira e Almeida (2019), citam o caso da não inclusão das favelas nos morros como parte da
Paisagem Cultural do Rio de Janeiro da UNESCO, evidenciando, nos marcos das estruturas e
dinâmicas urbanas hegemônicas, a invisibilidade de formas de manifestação cultural, e,
particularmente, paisagens, subalternizadas. Há, portanto, tendências para invisibilizar e até
mesmo descartar processos culturais e dinâmicas urbanas que caracterizam de modo tão
profundo a paisagem carioca. Esta é apenas uma das diversas situações em que uma cultura
estigmatizada, e, portanto, os patrimônios culturais associados, são desconsiderados em
detrimento de outros.
Também cabe compreender que os processos de produção, significação e identificação dos
patrimônios (materiais ou imateriais) de agentes hegemônicos ‘minoritários’ são diferentes, em
suas formas e conteúdos, requerendo dinâmicas diferentes para sua identificação, valorização,
compreensão, catalogação, caracterização e, potencialmente, salvaguarda.
As metodologias participativas buscam então trazer os próprios sujeitos da ação, que
constituem, vivenciam e reproduzem esse patrimônio, articulando/evocando paisagens urbanas
singulares, para o centro das discussões. Valorizando e tentando compreender a partir de suas
próprias percepções e olhares as formas de construção, as características, as implicações e as
relações que estabelecem com os próprios patrimônios.
Considerando essas questões, valorizando as próprias experiências e conhecimentos dos
agentes urbanos que vivenciam o cotidiano urbano em pequenas cidades, buscando instigar a
participação direta da comunidade, são construídas atividades dinâmicas e coletivas em espaços

901
e situações que permitam aos integrantes verbalizar ou gesticular de seu próprio modo. Isso faz
com que estes se sintam mais confortáveis para explicar à sua maneira seus saberes, práticas e
memórias.
A espacialização das informações obtidas por meio destas reuniões é fundamental para a
organização de um raciocínio estruturador para políticas públicas de diversas áreas, dentre elas
a cultural e a urbana, potencializando o acesso, usufruto e garantia de direitos fundamentais.
Também dotando de visibilidade urbana, cultural e política esses grupos, hegemonicamente
desconsiderados, desvalorizados, invisibilizados, silenciados, oprimidos e subalternizados.
Compreendemos então que as paisagens de nossas cidades vão refletir diretamente um poder
instaurado para se reafirmar a partir das disposições destes elementos existentes, e a sua
reafirmação é um estágio destes processos. De outro lado, necessitamos reconhecer de modo
sensível através de metodologias participativas estes ‘outros’ patrimônios existentes, para que
consigamos ter base de reivindicação identitária no espaço, evocando e até mesmo contribuindo
para evidenciar esses outros patrimônios/paisagens. Com isso, este artigo busca abordar de
forma breve, porém assertivas metodologias participativas de reconhecimento patrimonial de
grupos considerados minoritários, subalternizados, na busca de trazer uma discussão mais
profunda sobre formas de abordagem e espacialização destas atividades identitárias no espaço.

2 – O especializar participativo no reconhecimento e ressignificação patrimonial


Nas abordagens territoriais participativas, os mapas sempre aparecem como principal recurso
motivador, avaliativo e inclusivo. Tendo isso em vista, usufruímos do que aborda a cartografia
social, que busca o reconhecimento de saberes populares, tradicionais, culturais e simbólicos, a
partir do mapeamento de territórios étnicos, tradicionais e coletivos, e do mapeamento afetivo,
que busca analisar sentimentos e relações dos sujeitos com o espaço no qual estão inseridos. A
confluência e união destas metodologias visa a formatação de um mapeamento participativo,
construído enquanto técnica que permite evidenciar/destacar formas de sentir, viver e se
reconhecer na cidade, em relação com patrimônios coletivos.
O ato de espacializar o território de forma participativa possibilita agir em várias áreas quando
pensamos na materialização do espaço, pois procede da atuação coletiva e da análise sobre o
espaço, e dos atores que nele estão inseridos.
Nesse viés, Joliveau (2008) entende que os mapas representam a realidade, não somente num
sentido gráfico. Assim, essa realidade é levada para dentro do processo de planejamento e de
construção de políticas públicas. Ao intervirem diretamente na construção dos mapas, os atores

902
sociais envolvidos se identificam como parte do processo decisório. Logo conseguem expressar
melhor suas vivências e interpretações da realidade, produzindo uma visão mais ampla do que
é patrimônio.
As espacializações comunitárias resultam da união da visão dos atores, que a partir das suas
vivências expressam as características do seu espaço de moradia. Essas características
apresentam uma maior aproximação da realidade geográfica, pois são carregadas de
conhecimento popular, simbólico e cultural (GORAYEB; MEIRELES; SILVA, 2015). Segundo
Acselrad et al (2010), essas espacializações apresentam dados da história, cultura e tecnologia,
com isso eles podem exprimir e modificar ideias sobre o território e as relações ali estabelecidas.
Estes valiosos dados contribuem significativamente para uma construção de um perfil
identitário amplo e expressivamente forte da comunidade.
Essas representações espaciais do território não devem ser entendidas como algo estático ou
atemporal, sem objetivo lógico ou neutralidade. As construções participativas estão atreladas a
fatores e especificidades, que vão desde as experiências de vida e trabalho comunitário do
pesquisador atuante, até as características as comunidades e atores envolvidos, assim como a
relação entre as pessoas e o nível de integração e organização coletiva (GORAYEB; MEIRELES;
SILVA, 2015).
O mapear coletivo pode ser compreendido como a expressão das territorialidades, “imagem ou
símbolo de um território, pode inserir-se eficazmente numa estratégia político-cultural”
(ARAÚJO; HAESBERT, 2007, p.41). Ao idealizar essas novas visões do território, esses agentes
usufruem de uma ação política cultural (ALVARES, DAGNINO, ESCOBAR, 2000). Portanto, os
produtos desses mapeamentos refletem a apropriação do espaço e como nele são dispostos os
conflitos territoriais e as formas de dominação (LEFEBVRE, 1974). Ou seja, compreende como as
relações sociais são construídas e como estas interagem dentro do espaço, e consequentemente
como reverberam e irão/poderão reverberar na paisagem local.
A construção participativa de espacializações busca pensar para além da organização e do futuro
do território, na garantia de produção deste de forma contínua. Nessa perspectiva Carpi Jr et al
(2015) destacam a existência de ferramentas, como o mapeamento participativo, que podem
auxiliar uma participação social de forma mais efetiva e benéfica. O mapeamento participativo,
como cita Acselrad e Coli (2008), identifica e legitima o conhecimento espacial e ambiental da
população local sendo somado aos modelos convencionais de conhecimento. Portanto, há um
reconhecimento geral de que existem diversos métodos de mapeamento participativo e de

903
elaboração de cartografias sociais/populares e diferentes enfoques temáticos e recortes
espaciais ou sociais” (LEAL, 2015, p. 136-137).
A união do conhecimento da população local com o conhecimento científico é uma ferramenta
extremamente eficiente para auxiliar na tomada de decisão no planejamento e políticas públicas
e no reconhecimento patrimonial, de forma concisa e direta. O desenvolvimento de abordagens
participativas colabora para fazer com que a informação saia de seus espaços tradicionais, por
meio de técnica, manejo e comunicação.
Ao avaliarmos esse contexto, percebemos que abordagens participativas de mapeamentos
podem ser uma forte ferramenta para serem utilizadas em ordenamentos territoriais,
reconhecimento e ressignificação, além de atuar na minimização e/ou mediação de conflitos.
Cabe considerar que o senso comum do conceito de patrimônio (principalmente o
institucionalizado), ainda está muito enraizado na ideia de transmissão de poder e soberania das
classes dominantes (seja econômica, social ou intelectual). Por este motivo, são invisibilizados
ou interditados outros sentidos e reconhecimentos patrimoniais à grupos sociais minoritários
(Indígenas, Quilombolas, LGBTQIA+, Religiões de Matriz Africana, Mulheres, Moradores de
Favelas etc.), por suas dinâmicas urbanas de produção material e imaterial dos espaços, inclusa
suas dinâmicas paisagísticas e simbólicas, deterem epistemologias, cosmologias, ontologias e
lógicas diferentes dos grupos hegemônicos.

3 – O reconhecimento e visão patrimonial: O estudo de caso dos estudantes da UNILAB,


Campus Ceará
Por meio de um projeto intitulado, “Estudantes, Direitos e Territórios Urbanos no Maciço de
Baturité: uma experiência de territorialização e democratização na assistência estudantil da
UNILAB”, vislumbramos a necessidade de se avaliar qualitativamente os estudantes desta
instituição, suas demandas e formas de perceber os territórios das cidades de Redenção-CE e
Acarape-CE (MACHADO et al, 2019; MACHADO; SILVA; FREITAS, 2020; ).
As cidades de Redenção e de Acarape fazem parte da Região do Maciço de Baturité, que fica a
cerca de 60 quilômetros de Fortaleza, capital do Ceará. A cidade de Redenção, conforme dados
do Censo IBGE 2010 a cidade possui 26.415 habitantes, importante ressaltar que 57,29% deste
total é de população urbana. Acarape, conforme dados do Censo demográfico de 2010, possui
15.338 habitantes, sendo que 52,04% deste total é de população urbana.
A cidade de Redenção era conhecida oficialmente como Acarape e pertencia à província de
Baturité em 1823. A cidade foi organizada às margens do Rio Pacoti, tendo como primeiros

904
habitantes índios Tapuias. Que viviam da pesca e da agricultura. Tempos depois passaram a
habitar negros africanos e senhores de terras fazendo com que o povoado passasse a ser
chamado de Vila do Acarape, em 28 de dezembro de 1868, pela Lei nº 1255, com nome de
Acarape, desmembrando-se de Baturité. No ano de 1889 a cidade deixaria de ser chamada de
Vila do Acarape e passaria a ser chamada oficialmente de Redenção. Sendo que o antigo distrito
de Cala-Bola passaria a se chamar de Acarape, apenas em 1987 ocorreu o desmembramento
entre Redenção e Acarape, sendo que a divisão territorial só foi oficializada em 1995.
Nas duas cidades, acima citadas, foi implantada no ano de 2011 a Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), uma universidade pública federal. A UNILAB
tem como objetivo a contribuição com a integração entre o Brasil e membros da Comunidade
dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) a partir do intercâmbio cultural, científico e educacional.
Logo, essas cidades passam a receber jovens de origens distintas, que passam a construir nesses
espaços suas relações. A apropriação das cidades pelos estudantes passa ser moldada, a partir
das percepções que cada aluno constrói no seu cotidiano de viver na cidade. Tendo em vista os
desafios enfrentados pelos alunos (aceitação, adaptação etc), buscamos analisar o viver e
perceber das cidades de Redenção-CE e Acarape-CE, por meio dos alunos brasileiros e
estrangeiros da UNILAB e sua relação com a população local, assim como a forma com que
reconhecem os espaços da cidade e seus desafios cotidianos.
Como suporte para análise utilizamos da base metodológica proposta pela Cartografia Social,
que consiste na elaboração de mapas a partir da construção coletiva e participativa dos vários
saberes para o reconhecimento do território. (TETAMANTI 2012, p. 14-15).
A partir das premissas da Cartografia Social aliamos a essa construção metodológica o
Instrumento Gerador de Mapas Afetivos proposto por Bomfim (2010). O instrumento tem como
finalidade investigar os afetos e relações dos indivíduos com o ambiente no qual estão inseridos.
A junção dessas metodologias visou a construção de Mapas Participativos, no qual podemos
captar de forma individual e coletiva como os alunos veem, vivem e sentem a cidade.
Os Mapas Afetivos propostos por Bonfim buscam por meios imagens e palavras “formulação de
sínteses ligadas aos sentimentos, ligadas de forma menos elaborada e de forma mais sensível”
(BOMFIM, 2010 p. 137). Assim como, na cartografia social esse instrumento visa uma análise
qualitativa do território.
Além da compreensão da relação Aluno-Cidade a construção dos mapas participativos buscou
colocar em discussão os conflitos vivenciados pelos diferentes grupos sociais que fazem parte
da rede de alunos. Além disso, o trabalho possuiu um caráter informativo a partir do

905
compartilhamento de experiências pelos participantes, pois juntos descobriram como os
espaços urbanos são organizados, vistos e vividos por cada grupo, os desafios comuns
enfrentados por todos.

3.1 – A estrutura da análise


As oficinas de mapeamento foram realizadas com grupos minoritários, que fazem parte do corpo
discente da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). A
construção dos mapas foi pautada em 2 etapas.
A etapa inicial, com a explanação dos conceitos e objetivos dos trabalhos para os estudantes
participantes. A segunda foi o preenchimento individual de uma ficha de categorização, nesse
espaço cada estudante teve que preencher os seguintes campos: Identificação, Pontos Positivos,
Sentimentos e Situações Problemáticas.
A estrutura das fichas foi pautada em três categorias de análise: pontos positivos, sentimentos
e as situações problemáticas. As categorias tiveram como objetivo traçar um perfil da relação
aluno-cidade, além de identificar os espaços simbólicos, as identidades e os obstáculos. As
atividades foram realizadas pelo Grupo de Pesquisa e Extensão interdisciplinares Diálogos
(UNILAB).

3.2 – As impressões
A partir das atividades se obteve como impressão a participação de alunos que possuem
sentimentos múltiplos em relação aos territórios intraurbanos de Redenção e Acarape. Dentre
os problemas relatados pelos estudantes tiveram: Preconceito (ligado tanto aos segmentos de
indígenas, quilombolas, quanto com o segmento de ser estudante universitário da UNILAB),
violência, repressão, racismo, machismo, conflitos com a população local, especulação
imobiliária entre outros.
Outros aspectos estão ligados à questões sociais como os diversos preconceitos e
discriminações, vivenciadas pelos diversos estudantes, um aspecto em específico que pode ser
citado é o preconceito em relação aos alunos da UNILAB, já que a sociedade das cidades de
Redenção e Acarape se mostraram não entender a importância da UNILAB e as mudanças que
resultaram da inserção de uma universidade de caráter internacional em uma região como o
Maciço de Baturité.
Com relação aos sentimentos dos entrevistados sobre sua vivência nas cidades temos:
segurança, amizade, afeto, vivência, pertencimento, irmandade, liberdade. E em contraste

906
temos os sentimentos negativos relacionados à angústia, desconforto, vergonha, intolerância,
medo e apreensão. O que nos indica a formação de grupos de convivência para superar os
problemas sociais aos quais os estudantes passam por morar nestas cidades.
Dentre estas características, obteve-se ainda pontos positivos relacionados à cidade como:
comércio, segurança, amizades e acesso à educação. Assim como também pontos ambíguos que
caracterizam a cidade ao mesmo tempo como calma e barulhenta, com o acesso à saúde tanto
positivo quanto negativo e uma ambiguidade na qualidade dos locais de lazer. É possível ainda
através desta metodologia, obter a impressão sobre as características estruturais das cidades a
partir da fala dos entrevistados, como acesso a saúde, educação, saneamento básico e outros.
Foi percebido a falta de adesão dos participantes inscritos, assim como as redes sociais da
própria universidade não se mostraram efetivas quanto ao engajamento da participação dos
vários segmentos. Também se pensou na aplicação desta metodologia em outros locais, como
em relação ao eixo das Religiões de Matriz Africana, assim como em comunidades
Indígena/Quilombola que possuam estudantes matriculados na UNILAB.
Como pontos negativos em relação à metodologia utilizada podemos ressaltar o baixo número
de participantes, ausência de representantes de alguns segmentos, baixa sinergia comunicativa
com os representantes/pessoas chave para uma mobilização mais efetiva, apesar dos esforços
de divulgação e organização da equipe. Como pontos positivos podemos ressaltar a nova
percepção em relação à apropriação da cidade e do fazer cidade, por parte da equipe, a partir
do ponto de vista dos segmentos participantes; obtenção de dados, para o diálogo com os
estudantes e suas vivências, já que a partir desses dados podemos observar questões de
relevância para o fazer a cidade no que tange à questões de cunho sociológico; organização e
empenho da equipe; elaboração de material; e reconhecimento da importância das oficinas de
mapas participativos por parte do público-alvo. Portanto, apesar dos pontos negativos, esta
metodologia se mostrou bastante importante para análise sociológica em relação às vivências,
à universidade e as cidades.

4 - Considerações finais
A experiência de construção e a aplicação da metodologia, fazendo confluir e integrando
cartografia social e mapeamento afetivo, geraram aprendizagens significativas para
participantes envolvidos, inclusa a equipe de pesquisa, assim como conhecimentos relevantes
para uma compreensão mais qualificada das pequenas cidades, considerando sua estrutura e

907
dinâmica e suas paisagens urbanas e os patrimônios culturais existentes, particularmente os
historicamente subalternizados.
Desta forma, as metodologias participativas possuem formas diversas de entendendimento e
abordagem. Assim, as atividades realizadas com diferentes grupos, poderão relacionar as
questões patrimoniais da paisagem.

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909
PATRIMONIALIZAÇÃO DE PAISAGENS PRODUTIVAS NA UNESCO E NO IPHAN:
uma trajetória e seus efeitos nas políticas patrimoniais*
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Luciana de Castro Neves Costa


Doutora em Memória Social e Patrimônio Cultural; Universidade Federal de Pelotas/RS;
lux.castroneves@gmail.com

Juliane Conceição Primon Serres


Doutora em História; Universidade Federal de Pelotas/RS; julianeserres@gmail.com

Partindo do entendimento de patrimônio como uma construção, muitas foram as formas de


caracterizá-lo. Neste processo de ampliação conceitual e tipológica, as paisagens agrícolas
produtivas passaram a figurar nas políticas patrimoniais, estimulando reflexões sobre novos
sujeitos representados e novos significados às práticas patrimoniais. Tal processo sofre
influência de um movimento de valorização de produtos locais e do nexo entre cultura alimentar
e território. Por outra parte, a preocupação com o meio ambiente viria a abrir espaço para a
valorização da agricultura como uma forma de preservação da natureza. Neste sentido, o artigo
visa construir, analiticamente, uma trajetória da ativação patrimonial de paisagens agrícolas,
tanto pela UNESCO quanto pelo IPHAN, buscando compreender seus efeitos na compreensão e
gestão do patrimônio cultural.
Palavras-chave: ativação patrimonial; paisagens agrícolas; paisagem cultural; patrimônio
imaterial; sistemas agrícolas tradicionais.

There have been many ways to characterize heritage once it has been understood as a
construction. Within this process of conceptual and typological expansion, agricultural,
productive-like landscapes were included in heritage policies, encouraging some reflections on
new represented subjects and new meanings to patrimonial practices. This process is influenced
by a movement to value local products and by the connection between food culture and territory.
On the other hand, the concern with the environment made room for the valorization of
agriculture as a way of preserving nature. In this regard, this paper seeks to analytically establish
the course of how agricultural landscapes were activated as heritage both by UNESCO and IPHAN
in an attempt to comprehend its effects on the understanding and management of cultural
heritage.
Keywords: Heritage activation; agricultural landscapes; cultural landscape; intangible heritage;
traditional agricultural systems.

*Esta pesquisa contou com o apoio da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior) para sua realização. Está inserida no Projeto Alimento, Cultura e Identidade - Capes Print
e Projeto PATERLIM - financiado pela Région Bourgogne-Franche-Comté.

910
1 - Introdução
Entendendo o patrimônio cultural como uma construção social mutável no tempo, várias foram
as formas de compreendê-lo e geri-lo. Permeando as diferentes tipologias que compõem o
corpus patrimonial, que atualmente envolvem desde edificações monumentais a manifestações
culturais vinculadas a saberes, práticas e celebrações, o que está no cerne da compreensão do
patrimônio como construção é seu caráter de seleção e de atribuição de valor. Determinados
referentes culturais são selecionados dentro de um universo de elementos potencialmente
patrimonializáveis, baseados na atribuição de determinados valores (identitários, históricos,
artísticos, entre outros). Tal processo corresponde ao que Prats (1998) classifica como processos
de ativação patrimonial, que dependem fundamentalmente dos poderes políticos, mas que são
negociados com a sociedade buscando gerar adesão ao projeto de representação.
Neste processo de ampliação da noção de patrimônio cultural, bens e sítios vinculados à
alimentação e à produção agrícola passam a figurar em diferentes enquadramentos tipológicos,
vistos não apenas a partir de seus valores nutricionais, mas principalmente por seus valores
históricos, identitários e afetivos atribuídos. Isto se dá porque a comida, seja em seu processo
de produção, preparação ou consumo, deve ser compreendida como um elemento da cultura,
apresentando-se como um componente decisivo da identidade e, ao mesmo tempo, um
importante instrumento para comunicá-la (MONTANARI, 2008).
Esta trajetória de patrimonialização de paisagens agrícolas sofre influência de dois movimentos
separados, porém dialógicos. Por um lado, vivemos um processo de uniformização de hábitos
alimentares, e a crescente dissociação entre local de produção e de consumo, que gera, como
reação, a valorização do nexo entre cultura alimentar e território, da produção local, vinculada
a um caráter nostálgico da alimentação (CONTRERAS, 2005). Por outro, aumenta a preocupação
com o meio ambiente e com formas de interação sustentável entre seres humanos e natureza,
que se institucionaliza na arena pública a partir da década de 1970. São promovidos eventos e
programas, como o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA); a Comissão
Mundial para Meio Ambiente e Desenvolvimento (WCED), ou Comissão Brundtland, que por
meio do seu relatório "Nosso Futuro Comum", institucionaliza o conceito de desenvolvimento
sustentável; bem como a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e
Desenvolvimento, no Rio de Janeiro (RJ), em 1992, na qual é lançada a Convenção para a
Diversidade Biológica, que estabelece as bases para a discussão relativa ao patrimônio genético
e a valorização das populações tradicionais e conhecimentos associados à natureza.

911
Dentro deste contexto, são gestadas tipologias de bem patrimonial que buscam dar conta da
complexidade da apreensão de sítios produtivos em sua dimensão cultural (sendo a atividade
agrícola o eixo narrativo e articulador dos artefatos e das manifestações culturais associadas).
Neste sentido, o artigo visa construir, analiticamente, uma trajetória da ativação patrimonial de
paisagens agrícolas, tanto pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação,
Ciência e Cultura) quanto pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional),
buscando compreender seus efeitos na compreensão e gestão do patrimônio cultural.

2 - A Patrimonialização de Paisagens Agrícolas pela UNESCO


A patrimonialização de paisagens agrícolas pela UNESCO estava prevista na Convenção para o
Patrimônio Cultural e Natural Mundial, de 1972, que, como o próprio nome indica, concebia os
bens sob duas categorias: culturais e naturais. Tal classificação refletia uma preocupação
bipartida com o patrimônio mundial: uma focada na restauração de monumentos e sítios
arqueológicos, e outra na conservação de parques e reservas naturais (CAMERON, 2015).
Seria nos critérios de seleção para enquadramento como patrimônio natural que a noção de
paisagens agrícolas tornar-se-ia passível de ativação patrimonial, uma vez que o critério II
compreendia bens que constituíssem "exemplos excepcionais representativos de processos
geológicos em andamento, de evolução biológica e de interação humana com o meio natural"
(...), e entre tais bens figuravam "paisagens agrícolas em terraços" (UNESCO, 1978, p. 04,
tradução nossa).
Cabe destacar, neste processo, o interesse francês na patrimonialização de paisagens rurais,
buscando aumentar a quantidade de bens naturais na Lista do Patrimônio Mundial, diante do
alto grau de antropização de áreas naturais no país (GFELLER, 2013). A década de 1980 será
marcada também por modificações nos modos de produção agrícola, com a mecanização e a
industrialização a transformar técnicas e saberes-fazeres tradicionais, estimulando um
considerável aumento no número de museus de terroir na França, na tentativa de salvaguardar
práticas agrícolas tradicionais tomadas, nesta perspectiva de risco de perda, como patrimônio
(DISSON, 2019).
Assim, em 1984, na 8ª sessão da Convenção do Patrimônio Mundial, o relator francês Lucien
Chababson defende a patrimonialização de paisagens rurais, "paisagens criadas pelo homem,
excepcionalmente harmoniosas, bonitas, como as epitomizadas pelos terraços de arroz do
sudeste da Ásia, os campos em terraços da costa mediterrânea, ou certas áreas vinícolas na
Europa" (UNESCO, 1984, p. 07, tradução nossa). Tal colocação levou a discussões sobre o tema

912
já no ano seguinte, em relatório elaborado pelo ICOMOS (Internacional Council of Monuments
and Sites), IUCN (International Union for the Conservation of Nature) e IFLA (International
Federation of Landscape Architects).
No documento, considerava-se que paisagens rurais poderiam "demonstrar padrões de uso da
terra e práticas de longa duração, que estão em harmonia com as formas do relevo e a cobertura
natural de plantas de uma área", e podem envolver "pequenos assentamentos e construções
individuais" que estivessem associados com o "uso tradicional da terra e de acordo com
tradições culturais" (UNESCO, 1985, p. 07, tradução nossa).
O entendimento de paisagens rurais viria a ser enquadrado dentro da tipologia Paisagem
Cultural1, criada em 1992. Paisagem Cultural é definida como o trabalho combinado da natureza
e dos indivíduos, reconhecendo sítios capazes de ilustrar a trajetória da sociedade sob a
influência de contingências físicas e oportunidades apresentadas pelo ambiente natural, bem
como pelas forças social, econômica e cultural que nelas interferem (UNESCO, 2009).
Sob esta definição ampla, esta tipologia servirá para abrigar tanto bens vinculados ao
paisagismo, quanto propriamente as paisagens rurais produtivas, envolvendo também sítios em
que se verifica uma atribuição de valor simbólico a elementos naturais (levando ao
reconhecimento de valores culturais de alguns parques nacionais e, assim, aos sujeitos que
nestes vivem e atribuem sentido, como os Maori, na Nova Zelândia, e os Anangu, na Austrália).
De acordo com a UNESCO (2009), Paisagens Culturais geralmente refletem técnicas específicas
de uso sustentável da terra, considerando as características e limites do ambiente natural na
qual estão estabelecidas. Cabe destacar que foi a partir desta categoria que o termo
"sustentabilidade" foi inserido nas Diretrizes Operacionais para a Implementação da Convenção
do Patrimônio Mundial Cultural e Natural.
Dentro deste contexto, os modos de uso da terra, aliados à noção de sustentabilidade
relacionado com formas históricas de práticas da agricultura, passam a ser considerados como
dotados de valor patrimonial. Figuram na Lista do Patrimônio Mundial2, entre outras paisagens:
a) os terraços de arroz de Ifugao (Filipinas), Hongue Hani (China), e Bali (Indonésia); b) as

1
Apesar da vinculação original aos critérios naturais para inclusão na Lista do Patrimônio Mundial, tendo
em vista a alegada impossibilidade de alteração das definições de patrimônio cultural e natural, esta
acabou sendo enquadrada como uma tipologia de bem cultural, e os critérios para inscrição de bens
naturais foram alterados. Para uma compreensão mais aprofundada do processo, ver Costa (2018).
2
A relação de Paisagens Culturais da Lista do Patrimônio Mundial pode ser encontrada na página
eletrônica do Centro do Patrimônio Mundial, disponível em:
<https://whc.unesco.org/en/list/?search=&themes=4&order=country> Acesso em: 11 jan. 2021.

913
paisagens cafeeiras da Colômbia; c) as paisagens relacionadas a produção de tabaco (Cuba); d)
a paisagem relacionada à produção da tequila de agave azul (México); e) as paisagens vinícolas
- que constituem a maioria das paisagens agrícolas - como Saint Emilion, Champagne, e
Borgonha (França); Alto Douro e Ilha do Pico (Portugal); Tokaj (Hungria); Piedmont, e Conegliano
e Valdobbiadene (Itália); Battir, em Jerusalém (Palestina), que também envolve o cultivo de
oliveiras; f) ou ainda sítios como Kujataa (Groenlândia), que constituiria o testemunho da
introdução da agricultura no Ártico e do primeiro assentamento nórdico fora da Europa.
Para Ruiz e Yáñez (2014), o predomínio de sítios relacionados com a cultura vinícola, o café e o
agave, indicam que os produtos manufaturados extraídos destas paisagens exercem um
importante papel nos processos de patrimonialização, que, por sua vez, retroagem em sua
comercialização, o que pode levar a um foco exagerado nos produtos e a uma subvalorização da
paisagem agrícola, ou uma valorização do componente estético e não propriamente do sistema
produtivo em seu aspecto cultural como um todo.
Outra iniciativa de valorização do patrimônio agrícola refere-se à figura do GIAHS (Globally
Important Agricultural Heritage System), ou Sistema Importante do Patrimônio Agrícola Mundial
(SIPAM), concedido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura
(FAO). Duas paisagens culturais incluídas na Lista do Patrimônio Mundial concentram, também,
este título: os terraços de arroz nas cordilheiras filipinas (Filipinas), e em Hongue Hani (China).
Os SIPAM combinam biodiversidade agrícola, ecossistemas resilientes e patrimônio cultural,
sendo responsáveis pela garantia da soberania alimentar de milhares de comunidades ao redor
do mundo. Tais sistemas estariam correndo risco diante de ameaças como mudanças climáticas
e o aumento da competição por recursos naturais, além de migração devido à baixa viabilidade
econômica, que resultam no abandono de práticas agrícolas tradicionais e perda de espécies
endêmicas (FAO, 2020). Desde 2002, a FAO inscreveu 62 sistemas em 22 países, sendo a maioria
na região da Ásia e Pacífico (40 sítios). Diferente da UNESCO, que ainda concentra grande parte
das Paisagens Culturais em países europeus, o SIPAM parece possibilitar a valorização de sítios
ainda subvalorizados em uma ótica patrimonial, como o Sistema Agrícola dos Campos de Bambu
Damyang, na Coréia, as Práticas Agrícolas de Jardins Flutuantes, em Bangladesh, e o Sítio
Patrimonial Agroflorestal Shimbwe Juu Kihamba, na Tanzânia. No Brasil, em 2020, ocorreu o

914
reconhecimento como SIPAM do Sistema Agrícola Tradicional da Serra do Espinhaço Meridional
dos Apanhadores de Sempre Vivas3 (MG).

3 - A Patrimonialização de Paisagens Agrícolas no Brasil


No Brasil, inicialmente, o foco da política de preservação conduzida pelo IPHAN deteve-se em
bens edificados, de modo que a aproximação com o tema do rural dar-se-ia apenas no
enquadramento de determinados bens como "conjunto rural", porém voltados a preservação
de elementos arquitetônicos e seu entorno, e não às produções agrícolas, aos sujeitos
envolvidos e seus saberes associados.
O tema passou a figurar no cenário patrimonial, mais especificamente, com a tipologia de
Patrimônio Imaterial, em 2000, que abriu espaço para a valorização de referentes culturais
alimentares de um modo geral, em um processo influenciado pela noção de referência cultural
e pela abertura dada à compreensão de patrimônio pela Constituição Federal de 1988, ao
envolver bens materiais e imateriais, representativos dos modos de criar, fazer e viver.
O patrimônio imaterial envolve práticas, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com
instrumentos, objetos e lugares que lhe são associados - que as comunidades e grupos
reconhecem como sendo seu patrimônio cultural (IPHAN, 2000). Por tal compreensão ampla e
sistêmica, referentes culturais ligados a sítios agrícolas passariam a ser valorizados como
patrimônio cultural brasileiro, principalmente a partir da figura dos sistemas agrícolas
tradicionais.
O Sistema Agrícola Tradicional pode ser compreendido como "um conjunto estruturado, que é
formado por elementos interdependentes: plantas cultivadas e criação de animais, redes sociais,
artefatos, sistemas alimentares, saberes, normas, direitos e outras manifestações associadas"
(EMBRAPA, 2019, p. 23). Os SATs envolvem ”espaços e agrossistemas manejados, formas de
transformação dos produtos agrícolas e cultura material e imaterial associada, bem como
sistemas alimentares locais que interagem e resultam na agricultura, na pecuária e no
extrativismo" (EMBRAPA, 2019, p. 23).
Dois SATs foram registrados no Livro de Registro dos Saberes e demonstram como práticas
agrícolas extrapolam seu caráter econômico e de subsistência e articulam importantes domínios

3
Maiores informações sobre o Sistema Agrícola Tradicional da Serra do Espinhaço podem ser obtidas em
<http://www.fao.org/brasil/noticias/detail-events/pt/c/1265788/> Acesso em: 12 dez. 2020.

915
da vida de coletividades: o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro (AM), em 2010, e o Sistema
Agrícola Tradicional das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira (SP), em 2018.
O SAT do Rio Negro constitui-se em referência para mais de 22 povos indígenas, representantes
das famílias linguísticas Tukano Oriental, Aruak e Maku, localizados ao longo do Rio Negro,
abrangendo os municípios de Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira
(AM). Tem como elemento estruturante a mandioca, porém são cultivadas ainda na região uma
grande diversidade de pimentas, abacaxis, inhames e bananas, contribuindo para a manutenção
da biodiversidade (IPHAN, 2019).
O SAT do Vale do Ribeira envolve 19 comunidades quilombolas em 6 municípios4 que, por meio
da roça, extrativismo, caça e pesca, permaneceram no território vivendo de maneira
relativamente independente dos centros urbanos. Os principais cultivos são mandioca, milho,
feijão e arroz. Destaca-se ainda o banco de sementes, com variedades extintas em muitos
lugares e outras desenvolvidas localmente (ANDRADE; KISHIMOTO, 2017). A descrição deste SAT
demonstra a complexidade de sua compreensão (e, consequentemente, de sua gestão),
abrangendo
[...] um conjunto de saberes e técnicas aplicados no cultivo de uma variedade
de plantas utilizadas na alimentação, medicina e cultura material. Abrange
também os espaços onde se desenvolvem as atividades, os arranjos locais de
organização do trabalho, os modos de processar os alimentos, os artefatos
confeccionados para este fim e os contextos sociais de consumo. A existência
de cada um dos componentes do SAT promove - e ao mesmo tempo resulta
de - um modo de transmissão intergeracional dos conhecimentos baseados
na oralidade, no aprendizado presencial e prático. Esses conhecimentos se
expressam também por meio da linguagem, pela existência de um "idioma"
criado para designar processos, objetos, classificar e caracterizar elementos
ligados ao fazer agrícola. As trocas comerciais envolvendo produtos agrícolas
também configuram um aspecto do SAT. (ANDRADE; KISHIMOTO, 2017, p. 22)

A noção de "sistema" permite conceber como tais sítios são compostos de partes interligadas.
Conforme apontado no dossiê de registro, o SAT quilombola é considerado a expressão mais
íntegra do modo de vida criado pelas comunidades negras do Vale do Ribeira, não apenas por
permanecer viva, mas por colocar em relação aspectos fundamentais do tecido social, como

4
São elas: Morro Seco (Iguape), Mandira (Cananéia), Abobral Margem-Esquerda (Eldorado); Poça
(Eldorado e Jacupiranga), Pedro Cubas (Eldorado), Pedro Cubas de Cima (Eldorado), Sapátu (Eldorado),
André Lopes (Eldorado), Ivaporunduva (Eldorado), Galvão (Eldorado), São Pedro (Eldorado), Nhunguara
(Eldorado e Iporanga), Piririca (Iporanga), Maria Rosa (Iporanga), Pilões (Iporanga), Bombas (Iporanga),
Praia Grande (Iporanga), Porto Velho (Iporanga), e Cangume (Itaóca).

916
parentesco, linguagem, economia, relações com o meio, religiosidade, lazer e, ainda, a política
(ANDRADE; KISHIMOTO, 2017).
As roças, em ambos SAT, articulam diversos domínios da vida destas comunidades, que
abrangem desde conhecimentos específicos sobre os cultivos agrícolas; a redes de sociabilidade
(entre agricultoras e espécies cultivadas, como no caso do Rio Negro, ou entre diferentes
famílias, como no caso dos mutirões de trabalho do Vale do Ribeira); abordando ainda a cultura
material, que se encontra diretamente relacionada com a produção agrícola, confeccionada
para fins de transporte e processamento dos cultivos.
No SAT do Rio Negro, por exemplo, entre tais artefatos consta o waturá (cesto cargueiro
cilíndrico, carregado por meio de embira na testa), e a casa de forno (yapunaruka), onde se
transforma a mandioca em alimento, a articulação entre a roça e casa. Cabe destaque que a
mandioca brava é venenosa, sendo necessário um complexo tecnológico que envolve
conhecimentos e instrumentos para torná-la comestível (IPHAN, 2019). Conforme apontam Katz
e Van Velthem (2019), os artefatos confeccionados e utilizados pelos ameríndios, em cestaria,
madeira ou cerâmica, com finalidade de transporte ou processamento de alimentos, foram
historicamente coletados por exploradores ou missionários e expostos em gabinetes de
curiosidades e museus. Nesta abordagem do sistema agrícola tradicional, passa-se a
compreender e atribuir valor a tais objetos em suas funções, usos e significados atribuídos, como
elemento identitário e referencial.

4 - Considerações Finais
As ações de valorização do patrimônio agrícola evidenciam os valores culturais que permeiam
as atividades produtivas, garantindo visibilidade a determinadas práticas agrícolas e agregando
valor às mesmas e, principalmente, aos seus sujeitos. Tal compreensão nos leva a refletir sobre
o potencial que tais paisagens apresentam para uma vocalização do patrimônio a partir de
grupos ainda sub-representados nas narrativas patrimoniais, como a abertura a referenciais
culturais asiáticos e africanos, no caso da UNESCO e da FAO, e, no Brasil, o reconhecimento de
indígenas e quilombolas - processo já iniciado pelo registro dos patrimônios imateriais de um
modo geral, e que fornece ainda espaço para um reconhecimento político via arena patrimonial.
A noção sistêmica que envolve a leitura de tais sítios nos leva a refletir ainda sobre como o
patrimônio, em sua dimensão vivencial, extrapola enquadramentos tipológicos, uma vez que
estabelece-se a ponte entre a geralmente dicotômica relação entre preservação da natureza e

917
cultura, uma vez que são responsáveis pela manutenção da agrobiodiversidade e dos recursos
naturais pelo tipo de manejo a que tais ambientes estão sujeitos historicamente.
Tal fato, por outro lado, leva a embates entre a legislação ambiental e a cultural, como no caso
do SAT do Vale do Ribeira, que, pela sobreposição entre os territórios quilombolas e unidades
de conservação (cabe destacar que este importante remanescente da Mata Atlântica concentra
ainda os títulos de Reserva da Biosfera e Patrimônio Natural pela UNESCO), acaba por considerar
algumas práticas tradicionais como crimes ambientais (ANDRADE; KISHIMOTO, 2017),
ignorando formas históricas de gestão do espaço que permitiram a manutenção da
agrobiodiversidade. O mesmo pode ser verificado no caso do SAT da Serra do Espinhaço.
Um aspecto importante a considerar é a abordagem territorial proposta pela patrimonialização
de paisagens agrícolas. Conforme Ruiz e Yáñez (2014), não se pode reconhecer e manter a
atividade agrária apenas em um bem ou um conjunto deles, pois a atividade se desenvolve no
âmbito territorial. Isso demonstra a necessidade de colocar em diálogo diferentes instâncias
governamentais e civis que possam interferir na manutenção da atividade produtiva, criado um
sistema de gestão de caráter territorial que passa a depender de uma esfera articulada para
além do órgão patrimonial, conectando políticas de regularização fundiária, econômicas, sociais,
educacionais, ambientais, que garantam a viabilidade de tais práticas.
Tal aspecto conduz a outro elemento importante: a transmissão destes saberes e valores, do
domínio do cotidiano. Na UNESCO, muitas paisagens estão vinculadas a produtos agrícolas de
peso econômico, mas no Brasil, os SAT não figuram nos circuitos centrais de comercialização
(apesar de medidas governamentais como o PNAE - Programa Nacional de Alimentação Escolar),
de modo que o retorno econômico pela atividade não se mostra satisfatório, principalmente aos
jovens, que não se identificam mais com esta atividade e acabam apresentando baixa adesão
aos valores envoltos nas práticas agrícolas (IPHAN, 2019; ANDRADE; KISHIMOTO, 2017).
Tais reflexões se propõem em uma incursão ao tema que, longe de esgotar-se, como uma
pesquisa em andamento, pretende suscitar questionamentos e debates a outros pesquisadores
envolvidos com o tema do patrimônio agrícola, em suas potencialidades e desafios de gestão.

Referências

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Vale do Ribeira - SP. v. 01. Eldorado (SP): Instituto Socioambiental, 2017. Disponível em:
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quilombola-do-vale-do-ribeira-sp-vol-1> Acesso em: 15 abr. 2020.

918
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919
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em: 05 out. 2013.

920
PATRIMÔNIO NATURAL E OS CONFLITOS DA GESTÃO: divergências e convergências
entre os atores sobre a mata do Engenho Uchôa, Recife-PE.
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Célio Henrique Rocha Moura


Mestrando do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano (MDU/UFPE);
Universidade Federal de Pernambuco; celiohrocha@gmail.com.

Dra. Onilda Gomes Bezerra


Arquiteta e Urbanista; UFPE, professora adjunta do Departamento de Arquitetura e Urbanismo
(DAU/UFPE); onibezerra@yahoo.com.br.

Dr. Tomás de Albuquerque Lapa


Arquiteto e Urbanista; UFPE, professor titular do programa de pós-graduação em
Desenvolvimento Urbano (MDU/UFPE); thlapa@outlook.com.

Elisa Soares de Melo


Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; UFPE, Universidade Federal de Pernambuco;
elisasdemelo@gmail.com.

Inserido dentro da questão da conservação dos remanescentes de Mata Atlântica, este artigo
objetivou compreender as representações sociais que determinados grupos de atores fazem
sobre a Unidade de Conservação Mata do Engenho Uchôa, na cidade do Recife. A partir dessa
compreensão, discutiu-se como distintos atores envolvidos no processo de conservação
divergem e convergem nas suas perspectivas sobre o ecossistema. Dessa maneira, por meio das
diferenças, busca-se problematizar o reflexo no ordenamento do território que, geralmente, se
sobrepõe aos anseios dos grupos com menos poder político. Além disso, buscou-se discutir os
possíveis caminhos a serem absorvidos pela gestão das unidades de conservação visando
conservar a natureza não apenas pelos valores naturais, como também pelo seu valor simbólico
expresso nas representações sociais.
Palavras-chave: Natureza; Patrimônio Natural, Representação social; Unidades de Conservação.

Inserted within the question of the conservation of the remnants of the Atlantic Forest, this article
aimed to understand the social representations that certain groups of actors make about the
Conservation Unit Mata do Engenho Uchôa, in the city of Recife. From this understanding, it was
discussed how different actors involved in the conservation process diverge and converge in their
perspectives on the ecosystem. In this way, through the differences, we seek to problematize the
reflex in the spatial planning that, generally, overlaps the desires of the groups with less political
power. In addition, we sought to discuss the possible paths to be absorbed by the management
of conservation units in order to conserve nature not only by its natural values, but also by its
symbolic value expressed in social representations.
Keywords: Nature; Natural Heritage; Social Representation; Conservation Unit.

921
1 – INTRODUÇÃO
O Bioma de Mata Atlântica é considerado pela UNESCO como um dos Hotspots globais, áreas de
elevada taxa de biodiversidade, mas que apresentam um elevado risco de degradação, em
consequência da supressão da sua cobertura vegetal. Só nos anos de 2018 e 2019, o bioma de
Mata Atlântica apresentou uma taxa de desmatamento da ordem de 27,2%, sendo a maior taxa
desde o ano de 2016, de acordo com o Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica de
2018-2019 (INPE e Fundação SOS Mata Atlântica).
Essa condição revela a situação alarmante do Bioma, na medida em que, atualmente, restam
apenas 12,4% da cobertura original, dos quais apenas 8,5% encontram-se em bom estado de
conservação e dimensão propícia para garantir a conservação da biodiversidade a longo prazo
(SILVA e MOURA, 2021). O intenso processo de ocupação do litoral brasileiro, iniciado no século
XVI com a colonização portuguesa, imprime no território, antes ocupado pela floresta atlântica,
os traços antrópicos relativos ao extrativismo, agricultura extensiva, industrialização e
urbanização.
Parte considerável dos remanescentes de Mata Atlântica está localizada nos territórios urbanos
ou envolvida por monoculturas (MORELLATO e HADDAD, 2000). No caso dos centros urbanos, a
situação da Mata Atlântica se mostra ainda mais alarmante, pois os remanescentes que
resistiram aos processos de urbanização sofrem pressões de ordem antrópica, na medida em
que a mancha urbana avança sobre esses territórios (MOURA et al., 2018). A despeito dessas
pressões, nem sempre as relações entre as populações e os remanescentes são em essência
conflitantes. Em se tratando de assentamentos populares relacionados com áreas naturais,
Diegues (1996) pontua que, muitas vezes, as dimensões naturais e antrópicas se imbricam num
processo que pode inclusive converter-se em força-motriz para a salvaguarda de tais territórios.
Essa perspectiva se alia ainda com o entendimento de que, ao desenvolver relações com os
ecossistemas, emergem os valores simbólicos atribuídos pelas comunidades ao meio natural e,
nesse sentido, a natureza passa a atuar como elemento identitário de tais populações.
A presente investigação objetiva ir além da compreensão da natureza, segundo a visão
dicotômica que separa as dimensões humanas e naturais de um determinado território,
buscando aprofundar a compreensão sobre como os diferentes grupos se relacionam com o
bem através das representações sociais que fazem sobre ele. Dessa maneira, busca-se discutir
como os processos de gestão vigentes de ecossistemas podem incluir a dimensão humana, por
meio das representações sociais, dentro de um planejamento territorial estratégico.

922
A mata do Engenho Uchôa emerge na discussão como um estudo de caso de um remanescente
de Mata Atlântica, imerso num campo de conflitos, no qual diferentes atores projetam sobre a
Unidade de Conservação seus anseios e demandas. Localizada na Zona Sudoeste da cidade do
Recife (RPA 6)1, cujos 200ha de área fazem fronteira com onze bairros densamente ocupados
por populações de baixa renda, traz à tona a emergência de se implementar uma política de
conservação, amparada nas representações que os diferentes atores fazem sobre a unidade.
Neste sentido, a própria Unidade de Conservação sintetiza a problemática da gestão da Mata
Atlântica, exemplificando, em âmbito local, como as pressões de ordem antrópica influem na
preservação dos demais remanescentes.

2 – O UNIVERSO SIMBÓLICO DA NATUREZA E AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS


Diante do estabelecimento de comunidades no entorno de fragmentos florestais, torna-se
inegável reconhecer que eles são dotados de um forte teor sociocultural, principalmente os que
estão inseridos no contexto urbano, fruto de uma relação histórica de interdependência entre
a urbe e os seus sítios naturais. Isso significa que os assentamentos urbanos, principalmente as
comunidades carentes que margeiam tais ecossistemas, em suas relações sociais e de
subsistência, desenvolvem um forte apego ao território que remete à sua identidade (MOURA
et al., 2018).
Além disso, tais fragmentos de ecossistema se apresentam como resquícios do passado
fisiográfico do território, cuja conformação atual reflete as dinâmicas da relação entre a
natureza original e o processo histórico da ocupação humana (BEZERRA, 2017). Sobre esta
questão, destaca Scifoni (2006):
A área natural protegida é, assim, tanto testemunho da evolução de
processos ecológicos e do meio físico como resultado do processo histórico
da apropriação social da natureza; apropriação que se dá de forma
diferenciada, em maior ou menor intensidade e fornece um conteúdo social
às áreas naturais. O patrimônio natural inscreve-se, assim, na memória dos
diversos grupos que compõem a sociedade e leva em conta o vínculo destes
com uma natureza transformada em objeto de ação cultural, em objeto de
apropriação social. (p. 72)

Para além dos tradicionais valores conferidos ao meio natural, que remetem aos atributos de
biodiversidade e geodiversidade, em se tratando das unidades municipais de conservação,

1
Região Político-administrativa 6, composta pelos bairros da Zona Sul da cidade do Recife: Brasília
Teimosa, Pina, Boa Viagem, Imbiribeira, IPSEP e Ibura, sendo neste último onde se localiza a Mata do
Engenho Uchôa.

923
inserem-se valores culturais, sociais e simbólicos, representativos da dinâmica que certos grupos
desenvolvem com o entorno. Nesse sentido, ao processo de significação do território natural,
devem ser acrescidas as práticas cotidianas que refletem as relações sociais desenvolvidas entre
os entes da comunidade e entre estes e o meio natural.
O processo de significação tem origem nas representações sociais a partir das quais,
coletivamente, os indivíduos do grupo constroem sua percepção sobre o espaço. Por outro lado,
essas representações sociais se inserem no âmbito das teorias do senso comum. De acordo com
Moscovici (1978), as realidades sociais são construídas coletivamente (sem excluir as
subjetividades individuais). Nesse sentido, a capacidade interpretativa do ser humano, de um
fenômeno físico ou metafísico, emerge da construção subjetiva e social sobre como se percebe
um objeto. Em outras palavras, o objeto em si é apresentado ao indivíduo e a partir do
entendimento construído sobre ele, reapresenta-se à consciência, sendo dotado de um
significado que ultrapassa a percepção inicial.
De acordo com Melo e Furtado (2006), o processo de apreensão do objeto se dá a partir do
momento em que nos deparamos com ele, quando se fixa uma “estampagem” no nível cerebral,
que rapidamente se dilui na memória e se ressignifica. Em seguida, nossas percepções sobre o
objeto são norteadas por meio das significações coletivas e socialmente construídas. As autoras
ainda complementam:
São criadas as representações com o propósito de transformar algo não
familiar, em familiar, pois o que não é classificado nem denominado, é
estranho, não existe e assim, torna-se ameaçador. (MELO e FURTADO, 2006)

Conforme pontua Godelier (1984 apud DIEGUES, 1996), a relação entre o homem e a natureza
se norteia através das representações que se faz sobre o meio, sendo suas ações intencionais
um reflexo de tais interpretações. Diegues (1996) corrobora afirmando que é necessário analisar
o sistema de representações que indivíduos ou grupos fazem sobre seu ambiente, pois são a
base das suas ações no território. Melo e Furtado (2006) ainda afirmam que, a representação
que indivíduos ou grupos fazem sobre uma área de mata tem uma importância fundamental
sobre suas decisões na conservação do ecossistema. Em outras palavras, essas questões
corroboram as necessidades de se compreender as representações sociais formuladas pelos
indivíduos, pois, a partir delas, pode-se entender os fundamentos das ações que realizam e
incidem sobre o ecossistema a que estão associados.

924
3- MATA DO ENGENHO UCHÔA E AS DIFERENTES REPRESENTAÇÕES SOBRE A NATUREZA
No campo das representações sociais, os indivíduos diretamente relacionados com o
ecossistema (moradores, pesquisadores e gestores) despontam como atores principais do
processo de apreensão do território da Mata do Engenho Uchôa. Para consecução do objetivo
da pesquisa, que é a compreensão das representações sociais que incidem sobre a unidade e
seus conflitos, foram entrevistados 17 atores nas 3 categorias acima citadas, cujos moradores
se distribuem nas seguintes localidades (Figura 1):

Figura 1: Mata do Engenho Uchôa. Entrevistas realizadas na: (1) vila Chico Mendes, (2) na vila
de Jardim Uchôa e (3) na comunidade residente da Avenida Dom. Hélder Câmara.

Fonte: Google Maps 2017. Edição: Autores.

Por meio das entrevistas semiestruturadas, gravadas e transcritas, identificou-se que as


representações sociais sobre a Mata do Engenho Uchôa variam de acordo com cada categoria
específica, conforme discutido a seguir:
Moradores – A Mata enquanto recurso vital para subsistência da comunidade
Os atributos ecológicos da Mata do Engenho Uchôa, no que tange às características da sua fauna
e flora, passam a ser incorporados pelos moradores da comunidade enquanto valores principais
do ecossistema. Contudo, tais atributos são valorizados mais em função da importância que as
espécies frutíferas da região representam para a subsistência da população da comunidade do
que em função da sua importância ecológica.
A representação da Mata enquanto mantenedora da vida, ao se alastrar por toda comunidade,
faz emergir a percepção de que os moradores são diretamente beneficiados não apenas pelos
serviços ambientais propostos pela unidade (amenidade climática, ar puro, drenagem e
manutenção dos cursos d’água, contemplação estética e sensorial, etc), como também pela

925
variedade de insumos alimentícios para a população, mesmo que a coleta de frutos para
subsistência ou comercialização não seja uma atividade primordial dessa comunidade:
Essa mata serve pra tudo, dá jaca, dá manga, dá jambo…geralmente a turma
vai buscar lá né? Apesar que eu nunca peguei não. Já passei, já fui por lá, mas
eu nunca peguei não. 2

…a pessoa entra na mata e chupa uma manga, pega uma jaca, abre ela, come.
Ali já passou o momento da fome, pq as vezes a pessoa não tem condições de
comprar, né? Então ali, no momento, na fome mesmo tem banana. Pega
banana, entendeu?3

Em relação às espécies da flora, os moradores destacaram o pé-de-jaca (Artocarpus


heterophyllus), a mangueira (Mangifera indica) e bananeiras (Musa paradisiaca) como espécies
úteis à alimentação da população, todas exóticas ao lugar, revelando as marcas das intervenções
antrópicas realizadas no ecossistema. No que diz respeito à fauna, os moradores citam
diferentes espécies de caranguejo que habitam as áreas de manguezal, no interior da unidade.
Nesse sentido, definem a mata como uma dádiva divina, a “natureza que deus nos dá” 4,
atribuindo um valor sagrado à Unidade de Conservação, por conta de sua biodiversidade, o que
em parte explica a representação da mata como mantenedora da vida local.
Essa mesma percepção é evocada pelo movimento de resistência, existente entre os moradores
locais, que se contrapõe às pressões públicas ou privadas que põe em risco a existência do
remanescente florestal. Esse movimento foi criado em 1979 e, nos seus 42 anos de existência,
conseguiu ganhos fundamentais para a proteção do ecossistema, incluindo a publicação de seu
plano de manejo pela Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Governo do Estado
de Pernambuco (SEMAS). Dentre outras questões relevantes, o plano de manejo reivindica a
implementação de um parque público e de uma reserva ecológica no interior da Unidade de
Conservação.
O movimento organizado pelos moradores locais considera a mata como fundamental para a
permanência das populações na região, destacando as possibilidades de subsistência que lhes
são proporcionadas.
Gestores e Pesquisadores – A Mata enquanto equalizador ambiental.
De acordo com os atores entrevistados, as Unidades de Conservação do Recife, de maneira
geral, desempenham importante função ecológica para a urbe. De fato, atuam como

2
Mulher, 58 anos, moradora da vila Chico Mendes.
3
Mulher, 60 anos, moradora da vila Chico Mendes.
4
Mulher, 27 anos, moradora da vila Jardim Uchôa.

926
equalizadoras ambientais, reduzindo os efeitos das adversidades climáticas de uma densa
cidade tropical, contribuindo para o escoamento das águas da chuva nos períodos mais críticos.
Nesse aspecto particular, a Mata do Engenho Uchôa não é citada de maneira específica pelos
entrevistados que, de maneira geral, destacam a importância de fragmentos vegetados no
território urbano.
As representações que se apresentam da Mata do Engenho Uchôa muitas vezes coincidem com
as representações elaboradas para as demais Unidades de Conservação municipais, nas quais
são destacadas as relevantes características fisiográficas e ressaltadas a biodiversidade e
geodiversidade, vistas como elementos-chave para os processos de proteção, frente às ações
de pressões de ordem antrópica:
Engenho Uchôa tem algumas peculiaridades. Se tem mangue, uma
situação de Mata Atlântica, de certa forma um núcleo preservado com
algumas espécies pioneiras. Se tem uma característica específica de
uma parte mais degradada com uma vegetação mais baixa e um
núcleo ali com estado avançado e médio de regeneração natural. Isso
para estudo para uma questão ecológica é extremamente importante.
Além disso, existem os serviços ambientais prestados para a
comunidade, onde se tem um ambiente que dá suporte para a questão
hídrica da cidade.5

A presença do rio Tejipió no interior da mata é um fator recorrentemente ressaltado como de


fundamental importância para a manutenção do equilíbrio hídrico da cidade. Este curso d’água,
que nasce no Município de São Lourenço da Mata (região metropolitana), drena as áreas
densamente urbanizadas do oeste metropolitano, o que implica no alto índice de poluição de
suas águas (PERNAMBUCO, 2013). Ao conferir importância ao rio Tejipió, os gestores públicos o
ressaltam como um elemento estruturante da rede de drenagem e saneamento da região.

Figura 2: rio Tejipió e Mata do Engenho Uchôa.

Fonte: Acervo fotográfico dos autores; 2020.

5
Gestor da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Governo do Estado de Pernambuco.

927
Conflitos, Divergências e Convergências entre as representações sociais

As representações sociais discutidas anteriormente, formuladas pelos diferentes grupos de


atores, destacam a condição conflituosa entre as percepções do território que orbitam em torno
da Mata do Engenho Uchôa.
A representação da Mata enquanto recurso vital para subsistência da comunidade justifica que
esses atores almejem para a unidade a elaboração de políticas e implementação de ações de
gestão de impacto local, que venham suprir as demandas imediatas da população carente que
margeia o remanescente florestal. Nesse sentido, as reivindicações dos moradores, alicerçadas
num movimento coletivo e no forte apego à Unidade de Conservação em questão, são
canalizadas para as pressões sobre o poder público para efetivar ações de preservação do meio
ambiente, assim como para implantação de parque para usufruto da própria comunidade.
Por outro lado, a representação social da Mata do Engenho Uchôa enquanto equalizador
ambiental, por parte dos gestores públicos, contribui para a generalização dessas ações que
incidem sobre a unidade. Ou seja, consideram-se os atributos ecológicos e serviços ambientais
prestados à cidade como um todo, porém, sem considerar as necessidades e anseios das
comunidades locais enquanto fatores principais que visam nortear as ações de conservação do
ecossistema.
No que tange ao futuro da Unidade de Conservação, os embates entre os moradores,
representados pelo Movimento em Defesa da Mata do Engenho Uchôa, e a gestão pública
esbarram ainda na visão especifica que cada ente tem sobre a unidade. Quando não há
mediação entre as distintas perspectivas, a tendência é que as questões políticas se
sobreponham aos interesses dos grupos populacionais que habitam nas proximidades dos sítios
naturais que, segundo Diegues (1996) tradicionalmente detêm menos poder político.
Mesmo com representações distintas, estes atores convergem quanto à imprescindibilidade de
se conservar o ecossistema, ainda que admitam que os ganhos da sua salvaguarda se dêem em
escalas diferentes (local versus municipal). Nesse sentido, a gestão pública reconhece o
Movimento em Defesa da Mata do Engenho Uchôa e seu poder, conforme destacado no
fragmento da entrevista a seguir:
Uchôa foi um marco no movimento ambientalista de Pernambuco, inclusive,
a partir da luta daquele pessoal é que hoje nós temos o plano de manejo.
Uchôa é fascinante, no plano de manejo nós temos um pouco do histórico
deles que a gente tentou resgatar e até perpetuar para a luta deles que é

928
muito bonita. Foi precursora do movimento ambientalista de Pernambuco,
com toda certeza.6

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A questão formulada pelo presente artigo põe em destaque a necessidade de conservação da


natureza, nesse caso representada por fragmentos de Mata Atlântica, inserida no contexto
urbano. Ao mesmo tempo, revela a complexidade que envolve as políticas de proteção
ambiental quando fatores de ordem diversa se sobrepõem às unidades de conservação. Esses
fatores, majoritariamente de ordem antrópica, mostram o quão sensíveis são os territórios
naturais nas cidades, na medida em que abrigam contingentes de populações. Tais comunidades
passam a perceber o ecossistema tanto do ponto de vista utilitário, para sua subsistência,
quanto como elemento fundamental de sua cultura. Na maioria dos casos, as duas dimensões,
naturais e culturais, se apresentam imbricadas dentro de um mesmo território na cidade.
É necessário que as políticas de proteção ambiental levem em conta a dimensão humana no
planejamento estratégico e na gestão do território natural e que os habitantes sejam
considerados não apenas na condição de beneficiários externos à dinâmica, mas que sejam
vistos como agentes imersos dentro da vivência cotidiana, construtores que são e, muitas vezes,
protetores da paisagem e do sítio natural.
Segundo Moscovici (1978), as representações sociais condensam as perspectivas socialmente
construídas sobre um objeto em questão, revestindo-o de significado coletiva e individualmente
reconhecido. Portanto, as representações sociais permitem que se compreendam as
perspectivas de distintos grupos sobre o meio natural, confrontando-as com as dos demais
grupos envolvidos com o ecossistema, como os gestores ou pesquisadores.
No que diz respeito à Mata do Engenho Uchôa, a presente investigação mostrou que a
representação social da Unidade de Conservação, como mantenedora da vida e da subsistência
das populações, foi de fundamental importância para a emergência do movimento popular que
se converteu no principal impulsionador para a conservação do ecossistema. Não obstante, na
medida em que a gestão pública e institucional prioriza os valores de ordem natural, com base
nos serviços ambientais prestados pela Unidade de Conservação à cidade como um todo,
emergem os conflitos entre as populações e o poder público sobre o futuro da Unidade de
Conservação.

6
Gestora da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Governo do Estado de Pernambuco.

929
No atual momento em que a Prefeitura da Cidade do Recife através da Secretaria de Meio
Ambiente e Sustentabilidade trabalha na elaboração do Plano de Manejo da Unidade de
Conservação da Mata do Engenho Uchôa, faz-se necessário aprofundar a discussão sobre as
representações dos distintos grupos com relação ao remanescente florestal, de modo a inserir
nas ações de conservação e manejo dos recursos naturais as perspectivas e demandas das
populações locais. Assim, o aprimoramento da gestão da Unidade de Conservação, visando à
salvaguarda de seus atributos naturais, deve considerar a dimensão antrópica, tanto nos
processos de elaboração dos planos estratégicos’ quanto na gestão posterior da unidade em si,
introduzindo as representações sociais como uma chave para compreensão das particularidades
das relações entre os diversos entes e o ecossistema a que estão associados.

Referências

BEZERRA, Onilda Gomes. Segunda Porta: Paisagem como totalidade homem-natureza. In: VERAS, Lúcia
Maria de Siqueira Cavalcanti. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo: cidade-paisagem. João pessoa:
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DIEGUES, Antônio Carlos. O Mito Moderno da Natureza Intocada. São Paulo: Hucitec, 1996. 3ª Ed.

FUNDAÇÃO SOS MATA ATLÂNTICA; INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS ESPACIAIS. Atlas dos
remanescentes florestais de mata atlântica período 2018-2019. São Paulo: [s.n.], 2020.

MELO, Maria das Dores de Vasconcelos Cavalcanti; FURTADO, Maria de Fátima Gusmão. Florestas
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PE. Cadernos da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica: Série Ciência e Pesquisa. São Paulo: Conselho
Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, 2006. pp. 1-45.

MORELLATO, Leonor Patrícia Cerdeira; HADDAD, Célio Fernando Batista. Introduction:


theBrazilianAtlanticforest. Biotropica. Vol. 32, pp. 786-792, 2000.

MOSCOVICI, Serge. A Representação Social da Psicanálise. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1978.

MOURA, Célio Henrique Rocha; BEZERRA, Onilda Gomes; SILVA, Joelmir Marques. Os Valores Naturais
das Unidades de Conservação do Recife: Mata de Dois Irmãos e Mata do Engenho Uchôa. Revista
Percurso. Vol. 10, N. 1, pp. 131-155, 2018.

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Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade, 2013.

SCIFONI, Simone. Os diferentes significados do Patrimônio Natural. Diálogos. Vol. 10, pp. 55-78, 2006.

SILVA, Joelmir Marques; MOURA, Célio Henrique Rocha. Análise da vegetação de um remanescente de
Floresta Atlântica: subsídios para o projeto paisagístico. Revista Brasileira de Meio Ambiente. Vol. 6, N.
1, pp. 2-24, 2021.

930
RE-DEFININDO PERCURSOS PATRIMONAIS NA LINGUAGEM INFOGRÁFICA
Nó2 - O silêncio entre vozes em diálogo.

Roseline Vanessa Santos Oliveira


Arquiteta e Urbanista; Professora Associada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, UFAL;
roseline@fau.ufal.br

Fernanda Barbosa da Silva Farias


Graduanda e Bolsista Pibic; Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, UFAL;
fernanda.farias@arapiraca.ufal.br

Este artigo é resultado de uma investigação (CNPq 2017-2020) acerca da rota percorrida por D.
Pedro II situada no território do atual Estado de Alagoas. A revisão documental e observação da
dinâmica da paisagem contemporânea relativa a esse Caminho Imperial indica sua notória
importância enquanto patrimônio cultural. Assim, buscou-se ressaltar essa memória e
valorização das localidades que integram esse itinerário através da elaboração de uma narrativa
visual, atualizando essa expressiva referência na perspectiva de favorecer a ampliação de sua
disponibilização e, por consequência, de seu reconhecimento.
Palavras-chave: História da Paisagem; Infografia; Sociabilização do Conhecimento.

This article is a result of an investigation (CNPq 2017-2020) about the route taken by D. Pedro II
located in the territory of the current State of Alagoas. The documentary review and observation
of the dynamic of the contemporary landscape related to the Imperial Way indicates its notorious
importance as a cultural heritage. We sought, therefore, to highlight this memory and
appreciation of the locations that integrate this itinerary through the elaboration of a visual
narrative, updating this expressive reference in order to favor the expansion of its availability
and, consequently, of its recognition.
Keywords: Landscape History; Infographics; Socialization of Knowledge.

931
1 – Paisagens, percursos e narrativas visuais
Há décadas o reconhecimento de trilhas com teor histórico-patrimonial vem sendo abordado
em ações vinculadas ao Turismo. Os Caminhos de Santiago de Compostela, por exemplo,
constituem trajetos percorridos pelos peregrinos que afluem na catedral espanhola de mesmo
nome desde o século IX. Esses Caminhos tornaram-se um expoente em termos de rota espiritual
e cultural, percorridos anualmente por milhares de pessoas. Foi declarado Primeiro Itinerário
Cultural Europeu em 1987 e Patrimônio da Humanidade (na Espanha em 1993 e na França em
1998).
No Brasil, não há referência de tamanhas proporções de reconhecimento desse tipo de
experiência patrimonial, mesmo que possuindo vários percursos que já foram traçados na
perspectiva de serem divulgados e acessados de maneira ampliada, como a Rota das Missões,
no Rio Grande do Sul, que envolve as ruínas jesuítas de São Miguel das Missões, reconhecido
como Patrimônio da Humanidade desde 1983. A Trilha dos Holandeses, em Pernambuco, está
inserida no circuito turístico da Ilha de Itamaracá, envolvendo elementos paisagísticos
associados ao contexto do chamado Brasil Holandês. Entre o Forte Orange e a antiga Vila da
Conceição, a trilha abrange um caminho às margens do Canal de Santa Cruz, registrado em
textos e imagens seiscentistas, e até hoje é percorrido por moradores e visitantes. Contudo, não
é oficialmente reconhecido como patrimônio enquanto percurso, sendo o Forte e a Vila
tombados em nível estadual individualmente.
Em Alagoas, há menções desse tipo de iniciativa motivadas pelo impulso do turismo. A Rota do
Imperador foi assim demarcada em 2009 favorecendo o turismo na região do Baixo Rio São
Francisco, enquanto marco das comemorações dos 150 anos da passagem de Dom Pedro II pela
então Província das Alagoas, envolvendo 08 municípios. Dentre eles, Penedo e Piranhas, cujos
núcleos urbanos mais antigos são reconhecidos patrimonialmente, tendo o de Penedo sido
tombado em nível federal em 1996 e o de Piranhas, em 2004. Por ter se configurado localidade
de muitos dos movimentos dos cangaceiros durante o início do século XX, Piranhas está ainda
articulada à chamada Rota do Cangaço, enquanto ancoradouro, a qual envolve a última trilha
por eles percorrida antes de sofrerem a emboscada em 1938, na Grota de Angico. Situa-se na
cidade de Poço Redondo, próxima à Piranhas, mas do lado sergipano do Rio São Francisco.
Observa-se, contudo, que tais iniciativas ainda se apresentam incipientes considerando o
potencial patrimonial que os percursos carregam e podem gerar, tanto em termos de conteúdo
histórico, quanto em termos de visibilidade cultural. Portanto, a principal intenção do estudo

932
apresentado nesse artigo foi o de avançar na questão da disponibilização de resultados de
investigações, através da reformatação dos dados em linguagens digital, de maneira que
permitam outras experiências de conhecimento do recorte paisagístico abordado e favoreçam
a ampliação de seu acesso, enquanto medidas de sustentabilidade cultural, na medida em que,
As infografias são um formato de visualização de informação muito presente
no nosso dia a dia. Seja em forma de gráficos e diagramas, seja em forma de
pictogramas como as figuras que identificam as casas-de-banho públicas ou
os ícones presentes nos sinais de trânsito. Encontram-se com tal frequência
na nossa vida que já as recolhemos de forma direta e intuitiva (SEABRA, 2016,
p.03).

As formas de transmitir a informação através do desenho vêm sendo incrementadas,


configurando-se como estática, móvel ou interativa, todas resultantes do esforço de sintetizá-la
para torná-la mais inteligível, sendo largamente utilizada para comunicar diversas abordagens,
inclusive através do popular sistema televisivo, devido à sua adequação às demandas sociais
contemporâneas relativas à cultura da imagem.
Contudo, resumir visualmente uma informação com pertinência não é tarefa fácil. Para garantir
a possibilidade de uma leitura não linear e um potencial de engajamento, o que se propõe com
a infografia, o processo de sua elaboração demanda sutileza de interpretação, pois “não se
aplicam exclusivamente a referências diretas e simplificadas de determinada realidade. Estas
também contam estórias desenhando a informação e representando-a visualmente de uma
forma metafórica” (SEABRA, 2016, p.03). Nesse sentido, abrange um percurso de execução que
envolve definição do foco de informação, reforçando compromisso com as fontes que
fundamentará a seleção dos teores considerados essenciais, e da linguagem adequada à
estrutura da narrativa diante das inúmeras opções de ferramentas de edição gráfica, até chegar
no produto de divulgação, através do qual toda a informação sintetizada em forma de imagem
irá comunicar o conteúdo de maneira a ser mais amplamente acessado. Esse recurso vale-se,
especialmente, do texto visual, o qual, aliado ao texto verbal reduzido, promove agilidade de
compreensão do conteúdo e garante autonomia no processo de leitura, dispensando
contextualização e mediadores (HORN, 1998).
A ideia de que as informações podem ser disponibilizadas de formas significativas e, com isso,
promover o seu interesse por parte da sociedade em geral, vem enlaçando diferentes campos
disciplinares no que concerne ao tema da preservação do patrimônio. No caso da intersecção
entre as áreas de Design, Patrimônio e Turismo, são abordados estudos da história urbanística

933
envolvendo também a perspectiva de disponibilização de seus resultados, tendo em vista o
poder da narrativa infográfica de possibilitar experiências que potencializem o conhecimento
mais abrangente da paisagem e da cultura.

2 – De um percurso histórico a uma experiência gráfica

Para avançar na experiência propositiva de interpretação infográfica, tomou-se como referência


base a obra elaborada em fins do século XX intitulada Dom Pedro II e Dona Teresa Cristina nas
Alagoas, de Abelardo Duarte (2010), a qual relata os caminhos percorridos pelo Imperador.
Outras fontes primárias também foram revisadas, tais como o Relatório da Expedição do
Expedição Engenheiro Halfeld Baixo São Francisco e a cartografia oitocentista disponível no
acervo da Biblioteca Nacional do Exército, situada no Rio de Janeiro. Foram analisados também
os relatórios do Inventário Nacional de Referências Culturais (2016), abrangendo 48 dos 102
municípios alagoanos, dentre os quais situa-se os que abrangem a Rota do Imperador, que
auxiliaram a leitura do trajeto realizado em 1859 e 1860 (primeiro trecho da viagem). Em síntese,
como anteriormente indicado, o estudo se valeu da abordagem de temas como patrimônio,
referência cultural e representação, os quais foram constantemente ao percurso associados, e
de dados acerca de sua apropriação contemporânea.
Nesse sentido, foi de grande importância e pertinência a revisão de depoimentos de viajantes
contemporâneos que registraram suas experiências em diários virtualmente disponibilizados e
acessíveis através da Internet. Eles percorrem o trajeto imperial entre diferentes caminhos e
variados modos, imprimindo, assim, sua própria identidade à viagem. Esses registros dão
visibilidade às localidades que fazem parte indiretamente do itinerário. Consistem em regiões
por vezes “inexistentes” na época da visita de Sua Majestade Imperial, nem mesmo tendo feito
parte do trajeto da frota do Imperador em decorrência de sua caracterização geográfica visto
que a passagem da Foz do São Francisco (Piaçabuçu) até Piranhas deu-se em embarcação à
vapor.
Para avançar no exercício de formação no sentido do ato de representar, foi eleito um trecho
da Rota do Imperador para estudo aprofundado, qual seja, aquele situado entre as cidades de
Paulo Afonso e Piranhas. A seleção desse trecho específico foi motivada por apresentar
conformação geográfica e climática distintas das demais localidades que dispõem de clima mais
ameno. Envolve também forte caráter histórico e patrimonial, participando de inúmeras

934
manifestações culturais com alto amalgamento popular, com rendeiras e músicos tradicionais,
além da dinâmica do cangaço. Assim, atentou-se para questões que envolvem a memória social
por atribuir marcos de caráter afetivo e perceptivo responsáveis por compreender a identidade
e continuidade de valores da sociedade que inevitavelmente muda, podendo subsidiar ações
futuras como, no caso, aquelas voltadas para a valorização de conteúdos significativos da
passagem de Dom Pedro II na extensão do Rio São Francisco.

Figura 01: Recorte do Google Maps em satélite, do percurso do Rio São Francisco considerado Baixo São
Francisco (localização da antiga Cachoeira de Paulo Afonso até a foz em Piaçabuçu).

Fonte: Captura Adaptada do Google Earth pela autora, 2019.

Reconstruir infograficamente o percurso dessa história paisagística e experiencial teve dentre


seus desafios compreender a dinâmica de um percorrer e, então, promover artifícios para outras
vivências. A releitura dos caminhos, após 160 anos da presença do Imperador em Alagoas,
sugeriu que as localidades situadas na região servem de referências para o “trilhar”, uma vez
que o modelo de transporte utilizado pela esquadrilha imperial não permitiu permear
localidades do Norte da província. A mudança das formas de locomoção, portanto, são fatores
preponderantes para caracterizar essa história. Refazê-la significa remontar diversas
experiências experienciadas sob diferentes modos.

As rotas antes definidas pelo percurso do Rio São Francisco, foram moldadas para além dos seus
domínios. Seus peregrinos o acompanham por terra, com o auxílio de aplicativos de
geolocalização que os guiam para chegar até o destino final, mesmo que isso não o direcione as
mesmas estradas. O olhar de quem refaz os trajetos é moldado pela vivência pessoal balizadas
por meios de transportes que produzem um dinamicidade em flexibilizar o espaço percorrido.

935
Enquanto no século XIX, a esquadrilha imperial “sofria em sua derrota” indo contra as
correntezas do Rio São Francisco, os veículos de locomoção do século XXI dispõe de paisagens
que permitem vivenciar além das fronteiras do rio.

Adentrar a província consistia em transpor barreiras e flexibilizar percursos, ou seja, trilhar


caminhos por entre “interiores”. Esse termo aqui empregado, refere-se à paisagem macro que
é constituída por um conjunto de micro espaços e experiências as quais conjugam a
materialidade e a imaterialidade de um patrimônio. As pessoas constituem o elemento
preponderante dessa construção, pois, caminhar sob esses cenários e, com isso, traçar um
caminho, traz um conjunto de referências gestuais que refletem a dinâmica das localidades
ribeirinhas, que são uma expansão dos limites espaciais do próprio caminho.

Na perspectiva de trajeto, uma forma de buscar os caminhos imperiais hoje é feita


expansivamente pelos ciclistas. Por meio deles, surgem os relatos. Vivenciam caminhos muito
antes percorridos, mas que cada indivíduo descobre como remontar experiências vividas
anteriormente, criando outras. Registrar esses espaços, físicos e sensíveis, proporcionam
detalhes importantes para entender a visão de duas épocas quanto às impressões que esses
lugares causam e o por que transmitem tais sensações.

A cronologia da viagem é um ponto também interessante para se pensar um percurso. O


entendimento de seguir em dada direção é determinante para o registro das impressões. Os
marcos são fontes de referências para situar e indicar onde devemos seguir e quais
características facilitam a percepção dos recortes espaciais. Fato que coincide com a tomada de
organização do percurso, tanto na passagem do Imperador, quanto atualmente, onde o destino
aparece como principal motivador do trajeto, sendo a Cachoeira de Paulo Afonso, em 1859 e
atualmente, em Piranhas, tendo o percurso moldado conforme a disposição dos caminhos e o
meio de locomoção.

936
Figura 02: Captura do diário digital Até onde deu pra ir de bicicleta, onde mostra os pontos percorridos
do caminho do Imperador para chegar até o destino traçado, Piranhas. Usando o aplicativo Wikiloc.

Fonte: Blog Até onde deu pra ir de bicicleta, 2020.

Contudo, além da dinâmica do turismo de Alagoas apresentar visibilidade mais evidente voltada
para as praias marítimas, a Rota do Imperador ainda não é expressa de maneira a integrar o
enquadramento turístico demandado pela contemporaneidade, deixando à margem muitas
informações que, se conhecidas, poderiam potencializar a experiência dos percursos. O
argumento pode ser reconhecido observando os acervos digitais disponíveis referentes ao
estado de Alagoas, os quais dispõem de conteúdo escasso relativamente a ações de
interiorização da cultura do Estado.

Nos registros atuais, pouco se tem de indicação da Rota percorrida que possa ser destacada de
maneira a permitir a identificação, mesmo que por meio de conjecturas, de aspectos do lugar,
deixando muitas lacunas em relação à sua visualidade e acesso. Dentre o material revisado,
acredita-se que o registro mais expressivo em termos de detalhes seja organizado por Abelardo
Duarte, sendo composto de conteúdos jornalísticos, relatos e do próprio diário do Imperador.
Destaca-se enquanto fonte primária também o relatório de campo da Expedição Engenheiro
Halfeld, visto que muitos dessses pontos culturais e patrimoniais nasceram a partir da passagem
de Dom Pedro II, em 1859.

937
Figura 03: Material de divulgação em infografia da Rota do Imperador em Alagoas.

Fonte: Blog Claudia Jak e Filipe, 2020.

Ao que se refere à proposição, a primeira etapa do estudo acerca do trecho foi estruturada no
levantamento de dados também sobre a expansão do espaço urbano voltado para as mudanças
e conformações sobre o território para, então, redesenhar os caminhos imperiais. Toda a análise
consistiu considerando localidades, dias e horários em que o Imperador realizou nas duas visitas,
destacando informações que movimentam os percursos, a exemplo da dinâmica das
locomoções. Os dados foram comparados com fontes cartográficas do século XIX e recortes
atuais do Google Earth, com o intuito de visualizar, aproximando-se com precisão, as divisões
territoriais da época e as atuais.

938
Figura 04: Recortes do Google Maps entre o trecho Paulo Afonso e Piranhas, referente a primeira etapa
da viagem imperial em 1859.

Fonte: Captura de tela no Google Maps em smartphone pela autora, 2020.

Análise de fontes primárias, levantamento de dados, estudos comparativos e produção de


infográficos consistiram em atividades que estruturaram o processo investigativo e propositivo,
balizado pelo tratamento perceptivo da paisagem em constante movimento, da qual é possível
extrair conteúdos singulares a cada observação. Trata-se, portanto, de um processo criativo
único de abordar costumes, pessoas, arquitetura, trajetos e paisagens, e outros elementos e
aspectos identificados durante a condução metodológica.
Para dar visualidade à experiência da Rota do Imperador a hábitos vivenciados, amplificando o
reconhecimento de costumes e significados responsáveis por validar a representação
paisagística das localidades em que se encontram impressas, optou-se pela plataforma de
produção gráfica Canva, que apresentou uma curva de manuseio intuitiva, além de fornecer
inúmeros modelos para aplicar uma composição que pudesse potencializar o interesse pelo
conteúdo.
Durante a elaboração inicial da infografia, as referências utilizadas foram as distâncias entre as
localidades da foz do São Francisco até Paulo Afonso, por ser o último ponto da primeira

939
passagem de Dom Pedro II em 1859. Foram associadas a cada cidade e povoado do percurso,
referências culturais classificadas como patrimônio material e imaterial, combinando com as
identificadas e selecionadas a partir da revisão das fontes, atentanto para a composição
atraente e eficiente da informação. Para tanto, foi preciso entender a espacialidade da
paisagem, tratando o patrimônio edificado enquanto paisagem e cultura, que em suas
constantes transformações, permitem que as mudanças surjam, favorendo a não linearidade
dos caminhos.
O fluxo sendo apresentado como não fixo surge, então, da flexibilidade de remontar as
experiências com individualidade, visto a importância e singularidade que cada um poderá
vivenciar, observar, sentir e experimentar. O produto infográfico partiu primeiramente da
paisagem da Caatinga. As cores regentes e traços presentes em toda a composição mostram o
que o clima inóspito a primeira vista causa: aridez, calor, mas que esconde muitos significados
capazes de resignificar o que é observado ligeiramente, a adaptação da plantas para resistirem
ao clima do sertão, a cor da roupa de couro do vaqueiro, o chão batido e as formações rochosas,
presentes em toda a extensão entre Piranhas e Paulo Afonso.
A distribuição dos pontos de passagem de Dom Pedro II e sua comitiva, relatam algumas
curiosidades quanto ao clima, as distâncias e as paisagens, os quais também integraram o
conjunto de elementos gráficos da narrativa visual, fazendo referência a informações do século
XIX ao século XXI, trabalhando sutilmente a descrição de camadas constituintes da formação
desse percurso histórico paisagístico ao longo do tempo.

940
Figura 05: Peça gráfica final e detalhes do caminho do Imperador criado na plataforma do Canva.

Fonte: Fernanda Farias, 2020.

3 – Infografia enquanto valoração da malha cultural

Permear essas sobreposições de fontes e dados acerca do alto Sertão Alagoano potencializou a
ideia de malha cultural enquanto favorável à apreciação e valoração histórica da paisagem, na
medida em que agrega diferentes formas de apropriação tanto para os que ali vivem quanto
para os que ali visitam. A história infografada é capaz de incrementar o olhar sobre o patrimônio
paisagístico e, com isso, fortalecer propriedades patrimoniais e identitárias de um fragmento da

941
paisagem pouco explorado no sentido de sua compreensão e divulgação. Assim, o uso do
tratamento acessível da imagem contribui para a construção de bases para discussões voltadas
ao tema do patrimônio, do planejamento da cidade e da sustentabilidade cultural, podendo ser
inserido nas atuações da interface entre a gestão do turismo, os estudos históricos e a educação
patrimonial.
O desenvolvimento de trabalhos nessa linha e seus resultados apresenta-se adequado ao
enquadramento de experiências de sociabilização da informação e nas possibilidades de
operacionalização rumo à produção de conteúdos digitais e materiais voltados para divulgação
científica do conhecimento. Em termos de tecnologia, ao executar possibilidades de transformar
dados históricos em produtos na linguagem de design cultural, esse tipo de proposição favorece
estudos que se voltam para a memória da paisagem quando muitas delas se apresentam sob
forte impacto de crescimento, no geral, pouco planejado e raramente contemplando as
questões vinculadas ao patrimônio, como é o caso das cidades que abrangem o estudo
aprofundado do trecho da Rota do Imperador.
Portanto, acredita-se que, quando acionadas, as propriedades infográficas de promover
interação, facilidade de entendimento e sedução do público, configuram-se como um
mecanismo eficiente de criação de relações com a história, a cultura e o patrimônio, podendo
fazer com que suas narrativas sejam continuamente reapropriadas e resignificadas
contemporaneamente pelos usuários sem, entretanto, comprometer os códigos que lhe dão
sustentação histórica e cultural.
A narrativa visual se qualifica, pois, pela atualização de um conhecimento abordado por
movimentos contemporâneos internacionais que avançam na questão da popularização da
cultura, contribuindo para a consolidação da interpretação de estudos de cunho histórico,
imagético e patrimonial acerca da memória paisagística e provocando uma união de saberes
que abrange linguagem artística, tecnológica, gráfica e pedagógica, no intuito de criar projetos
que decodifiquem o espaço habitado e recodifiquem-no para dar voz à história da cidade e aos
aspectos que a envolvem, e, assim, potencializar a experiência de reconhecê-la.

942
Referências

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Tecnologia. Madrid: Alamut, 2008, 125 p. <Disponível em:
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CARVALHO, Juliana; ARAGÃO, Isabella. “Infografia: Conceito e Prática”. Revista Brasiliera de Design da
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https://www.infodesign.org.br/infodesign/article/view/136>. Acesso em: 02 dez 2020.

DUARTE, Abelardo. Dom Pedro II e Dona Teresa Cristina nas Alagoas: a viagem realizada ao Penedo e
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Província (1859/1860). Maceió: Imprensa Oficial Graciliano ramos; Cepal, 2010.

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SANTOS, M. “Expedição Engenheiro Halfeld: Relatório de pesquisa de campo. Campanha Rio São Francisco
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http://www.terrazul.org.br/Caminho1/RELATORIO2.pdf>. Acesso em: 12 nov 2019.

943
O silêncio como
esquecimento
e mordaça...
Diz respeito a legados e manifestações marcadas por
cicatrizes que se relacionam com traumas e opressão,
e seus complexos processos de lembrança e
esquecimento. Busca promover discussões que
tangenciem, dentre outros, o tema da dissipação da
memória do passado para fazer cessar uma dor, mas,
também, em outra mão, para fazer calar a dor do outro
e não reconhecer ou reparar o erro. Além disso,
aborda temas que, do presente - vozes e
manifestações vivas que persistem em vir das
margens, das periferias, das minorias e dos oprimidos
- são negligenciados no fazer-se ouvir ou que sofrem
tentativas diretas de se verem silenciadas. Como
exemplo citam-se os contextos relacionados a
desastres naturais, crimes ambientais, acidentes e
marcas oriundas de guerras e de exploração humana,
episódios de repressão religiosa e cultural, entre
outros. E o nosso próprio barulho, incomodando o
calar da terra, o ritmo da natureza, a calma da
atmosfera, como se tem visto abordar nos últimos
meses.
A LUTA E A IDENTIDADE DE UMA FAVELA CARIOCA: o Vidigal e suas manifestações
culturais
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Thayna Furtunato
Arquiteta e Urbanista; Mestranda do Mestrado Profissional em Conservação e Restauração de
Monumentos e Núcleos Históricos (MP-CECRE) da UFBA; thayfortunato55@gmail.com

A favela do Vidigal, localizada na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, teve sua trajetória
marcada por luta, dor e opressão. Sempre teve seu local de moradia ameaçado, e a luta por
esse espaço permanece até os dias atuais. No passado era o direito de construir ali, de ter sua
terra vista e reconhecida, atualmente a luta e pela permanência, pelo direito da identidade
local. Apesar de sempre terem passado a margem da sociedade, em busca de direito e
espaços, eles se mostram fortes através de suas manifestações culturais, a arte e luta nelas
presente.
Palavras-chave: Vidigal, Favela, Identidade.

The slum of Vidigal is located in the South Zone of the city of Rio de Janeiro, its history marked
by struggles, pain and oppression. Residents have always had their place of residence
threatened, a struggle that continues to this day. In the past it was right to build there, to have
your land seen and recognized. Currently the struggle is for permanence and for the right of
local identity. Despite livingon the margins of society, they struggle in search of rights and
spaces, showingthemselves strong through their cultural manifestations and Social Projects.
Key words: Vidigal, Slum, Identity.

945
Considerações Iniciais
Os moradores da Comunidade do Vidigal, desde as primeiras moradias construídas, tiveram
que lutar pelo seu espaço, sujeitos a diversas tentativas de desapropriações, despejos, tanto
por parte instituições privadas quanto pelo governo, além de, ameaças de novos
empreendimentos e moradores. Tais acontecimentos serviram para unir os moradores em
busca de novas perspectivas e informações.
A Favela do Vidigal tem forte participação popular com diversos programas sociais, ONGS e
atividades ministradas pelos próprios moradores, sendo uma forma de luta, resistência e de
manter as origens.
Mediante a história de resistência e persistência dessa população forte, fica o questionamento
de como a luta, as práticas e manifestações sociais podem mudar realidade e a visão dessa
comunidade?
Partindo dos pressupostos apresentados podemos entender que o foco deste artigo evidencia:
como a luta contra as adversidades e manifestações culturais contribuem pra melhor
qualidade de vida, valorização da história e identidade local.

2 - A Luta na Favela do Vidigal.


2.1 Tentativas de Remoção, despejo e desapropriação.
A ocupação da Favela do Vidigal se iniciou em 1941, anos depois do início das primeiras favelas
na cidade do Rio de Janeiro. Possuindo localização privilegiada, entre dois bairros de alto
poder aquisitivo, Leblon e São Conrado, os moradores muitas vezes trabalhavam nesses
bairros vizinhos, mas não possuíam condições para morar nos mesmos, então o Vidigal era o
local ideal para eles (TEPEDINO, 2007).
As primeiras ocupações foram construídas abaixo da Avenida Niemeyer, que faz a ligação
entre os bairros da Zona Sul. Em 1942, começaram as ocupações acima da Avenida Niemeyer,
localizadas na Avenida Presidente João Goulart (Figura 1), de grande importância para a
comunidade, pois a mesma faz a ligação entre a Avenida principal que dá acesso aos bairros
próximos, as ruas e vielas da Favela. Ela corta todo o morro, indo até a área mais alta. Nove
anos após a construção das primeiras moradias, elas tiveram que ser realocadas acima da
Avenida Niemeyer, iniciando assim a consolidação da favela (LACERDA, 2016).

946
Figura 1: Avenidas Pres. João Goulart e Niemeyer.

Fonte: Google Maps editada pela Autora, 2021.

Em 1958, os moradores enfrentaram sua primeira ameaça de despejo, o que os motivou a


criação da comissão de moradores, formando assim o primeiro movimento na Favela do
Vidigal em luta contra as injustiças. A associação de moradores foi criada efetivamente no ano
de 1967, após um pedido de reintegração de posse por parte de proprietários, a justiça
determinou a proibição de melhorias nas residências já existentes e construção de novas. A
primeira conquista de luta da Associação de Moradores foi reestabelecer o direito as
melhorias das moradias da Favela, mas ficou restrito apenas as moradias já construídas, não
havendo possibilidade de novas moradias e crescimento do Morro (LACERDA, 2016).
No ano de 1968 teve início a construção do Hotel de Luxo Sheraton, localizado abaixo da
Avenida Niemeyer, local das primeiras moradias que foram realocadas. A empresa responsável
pelo Hotel tentou privatizar a praia do Vidigal. Após protestos e ações, os filhos do Vidigal
conseguiram na justiça o direito de frequentar a praia. A praia é pertencente a Favela, local
onde a favela começou sendo direito dos moradores utilizá-la. Mesmo com a ordem para usar
o local, diferente dos usuários do Hotel, os moradores têm que enfrentar um acesso sem
mobilidade, uma escadaria de 141 degraus (LACERDA, 2016).
No fim de 1977, o Vidigal enfrentou mais uma ameaça, equipes da prefeitura foram a
comunidade com intuito de realocar os moradores residentes das primeiras moradias, para o
conjunto habitacional Antares, localizado na Zona Oeste da cidade, local de difícil acesso, longe
de seus locais de trabalho. Outra vez a Associação de Moradores da Favela do Vidigal, se
mobilizou para combater essa injustiça e com o apoio judicial, conseguiu adiar as remoções.
Em meio a esse processo, a justificativa utilizada pela prefeitura para remoção, era o
desabamento da área, mas posteriormente foi descoberto que na realidade era uma questão
lucrativa para a construção de outro hotel de luxo. Houve grande manifestação e protesto por

947
parte dos moradores recebendo apoio político e popular contra as remoções (TEPEDINO,
2007).
A grande vitória chegou para os moradores em 1978, quando o Governador Chagas de Freitas,
assinou um decreto de desapropriação da área para fins sociais, não havendo mais ameaça de
remoção e desapropriação na comunidade (LACERDA, 2016).
Após vencerem a luta pelo seu lugar, os anos 80 trouxeram um novo desafio para a Favela do
Vidigal, a invasão do tráfico de drogas. A comunidade foi tomada pela Facção criminosa do
Comando vermelho, deixando a população vivendo em meio a confrontos e a mercê do medo
e da violência (TEPEDINO, 2007).

2.2 Políticas Públicas e Turismo.


A Secretaria de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, em 2008, iniciou o programa de
Pacificação das Favelas cariocas, que visava a recuperação dos territórios ocupados pelo
tráfico de drogas e milícias através da implantação de Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs)
nas comunidades com o intuito de tentar a reaproximação entre polícia e população.
Segundo o Governo do Rio de Janeiro, a Favela do Vidigal só obteve a implantação da UPP em
janeiro de 2012, sendo a 19ª unidade de polícia pacificadora instalada nas comunidades do Rio
de Janeiro. Com a pacificação, o governo concluiu que seriam 30 mil pessoas a serem
beneficiadas, moradores do Vidigal, e bairros próximos, como Leblon e São Conrado.
A partir da pacificação, o Vidigal tornou-se uma opção de turismo na favela, por possuir uma
localização privilegiada, de fácil acesso e com uma das vistas mais bonitas do Rio de Janeiro
(Figura 2).

Figura 2: Vista do Vidigal.

Fonte: Autora, 2018.

948
Além da vista e a localização, uma grande contribuição para o início do turismo, foi a
visibilidade midiática que a Favela conquistou, pois é local de moradia de artistas de diferentes
seguimentos, ficando conhecida como “favela chique” o que ocasionou uma migração de um
público diferente, formado em grande parte de classe média e alta. O turismo procurado por
esse público é pontual, direcionado a bares, hostels e festas na parte mais alta do morro a vista
privilegiada. Esses locais não são frequentados pelos nativos do Vidigal, pois as entradas e
custos dentro dos mesmos não condizem com a realidade financeira dos moradores. Dessa
forma, o turismo não é voltado para os moradores, sua forma de vida e vivência, suas
manifestações culturais e festejos (MIRANDA; FORTUNATO, 2016).
As festas feitas nesses bares, hostels são inacessíveis aos moradores, causam transtornos,
barulhos e som alto até o amanhecer, além disso, as festas desses estabelecimentos podem
acontecer sem a implicação da UPP, o mesmo não ocorre com os bailes funks, uma
manifestação bem típica das favelas cariocas, onde a comunidade reafirma seu espaço. Dessa
forma, para os moradores muitas vezes a UPP, prioriza mais os que vem do “asfalto”, sendo
assim, o valor adquirido, o lucro acima da cultura local (MIRANDA; FORTUNATO, 2016).
Com o novo turismo também houve a mudança de novos moradores, o interesse imobiliário
aumentou, subindo valor entre 70% a 100% dos preços das moradias, com isso também houve
o aumento do custo de vida. O que ocasionou a presença de novos moradores, e muitos do
que já residiam ali, não conseguirem mais se manter. O que isso causa é o fenômeno da
gentrificação, que segundo Smith (2006):
A gentrificação é um fenômeno que implica a substituição de uma classe
social por outra em decorrência elitização e valorização de localidades que
sofreram ao longo do tempo desinvestimento e tornaram áreas decadente
da cidade. O investimento nestas áreas pouco a pouco levou a valorização e
consequentemente a descaracterização, seja pela mudança do espaço físico
(prédios novos e renovados, lojas e serviços especializados etc), seja
mudança do perfil dos moradores.

A gentrificação gera a descaracterização da favela trazendo novos moradores e perdendo sua


essência. Uma comunidade onde houve grande luta para permanência neste local, agora
enfrenta a especulação imobiliária e gentrificação.
O turismo também é visto pelos moradores como algo positivo como mudar a imagem que a
Favela possui, o seu estereótipo que é um local violento, marginalizado e de pobreza. Com o
turismo surgiram novos empregos, sendo eles, nos novos estabelecimentos ou no transporte,
que é muito utilizado pela comunidade, como as kombis e mototáxis. Entretanto, como o
turismo é voltado para o que turista/consumidor deseja, não são necessariamente as

949
necessidades dos moradores, como ainda a falta de infraestrutura básica muitas vezes, como a
coleta seletiva precária, falta de energia e água que contam ou melhoram.
Mesmo com o passar do tempo, os moradores da Favela do Vidigal, sempre lutarão pelo seu
lugar, seja pelo direito de morar ali, ou com o medo de sobreviver em meio a violência, ou até
mesmo não conseguirem viver na nova realidade financeira de seu lugar. Eles estarão em
constantes luta pelo lugar e seu espaço.

3- Manifestações Culturais e Sociais.


3.1 Associação dos Moradores e Coletivação Vidigal.
A presença popular na Favela do Vidigal sempre foi constante, em buscas dos seus direitos. A
Associação de Moradores da Vila do Vidigal (AMVV) foi criada em 1967 para lutar pela
permanência das moradias no Morro do Vidigal, e permanece forte até os dias atuais. A partir
da associação de moradores foi criada uma ação comunitária chamado Coletivação Vidigal,
que tem como intuito unir os moradores em prol da comunidade, buscando resgatar as
memorias, criar atividades socioculturais e melhoria para todo o Morro.
Um exemplo de atividades é a ação realizada pela “Coletivação Vidigal” é o projeto
“Emplacando as Memórias do Vidigal’ (Figura 3), que tem como objetivo a colocação de placas
em locais muito conhecidos e importantes para os moradores. Em lugares como favelas muitos
locais não são conhecidos pelos nomes oficiais, e sim, pelos nomes que os moradores os
chamam, sejam uma característica, uma pessoa importante que viveu ali, denominações que
permanecem desde muito tempo, sendo uma forma dos moradores reconhecerem sua origem
e individualidade. O projeto também valoriza os artistas locais, os quais desenvolveram a arte
das placas. (Documento cedido pelo AMVV)1.

Figura 3: Placa em homenagem a antigo morador pertencente ao Projeto


“Emplacando as memórias do Vidigal”.

Fonte: Rioonwatch, 2017.

1
Documento cedido pela Associação de Moradores da Vila do Vidigal para autora apenas para pesquisa
e não autorizado ao público externo.

950
Outra contribuição importante desse coletivo é a realização de um Sarau Político Cultural
denominado “Politilaje” onde há conscientização e esclarecimento sobre política para os
moradores, visando o melhor para comunidade. Uma das pautas dessa ação é a relação da
gentrificação que ocorre na própria comunidade (Documento cedido pela AMVV)¹.

3.2 Nós do Morro e Escola do Vidigal.


O Morro do Vidigal, também é rico em manifestações culturais e artísticas, como forma de
manifestar suas lutas, é sede de duas escolas importante, o projeto Nós do Morro e da Escola
Vidigal.
O Nós do Morro foi fundado pelo ator e diretor Guti Fraga em 1986 no Morro do Vidigal, que
tem como objetivo proporcionar o acesso a arte e cultura para crianças, jovens e adultos dessa
comunidade. O primeiro espetáculo do grupo foi o improviso dos atores a partir do cotidiano
dessa favela, mostrando que desde sua criação valoriza e aumenta a autoestima dos
moradores.
Atualmente o projeto oferece cursos de formação na área do teatro e cinema, para alunos
dentro e fora da Favela do Vidigal. Seu espaço físico está localizado na parte central da
comunidade, sendo estratégico, fácil acesso para os moradores e para os que vêm de fora, no
casarão, nome dado para a sede do projeto. Ao todo participam 525 pessoas, grande parte
crianças e jovens, moradores da própria comunidade (COUTINHO, 2006).
O projeto deu início a carreira de grandes atores nacionais, sendo assim, visto por crianças e
jovens como uma forma de mudar de realidade, ou seja, uma oportunidade de crescimento
pessoal e profissional. Segundo diretor do projeto Luciano Vidigal:
“Mais do que a formação profissional, o nós do morro nos fizemos crescer
como seres humanos. Aprender a respeitar o outro. Entender as diferenças.
Ninguém faz nada sozinho. Para quem vem do teatro. Você não pode ter
atitude que prejudique o trabalho de todos. No Vidigal, a gente aprende a
fazer tudo: Figurino, cenário... Ator era assistente. O coletivo sempre foi
mais importante do que o individual."

Outro projeto muito importante que envolve a formação dos moradores, é a Escola Vidigal,
idealizada pelo artista plástico Vik Muniz e implantada na Favela do Vidigal em 2015. É uma
inciativa que busca a união entre educação e arte. O eixo condutor do laboratório cultural de
educação múltipla Escola Vidigal são a Arte e a tecnologia, através de oficinas de alfabetização
múltipla, que realiza a alfabetização musical, socioemocional, digital, visual e corporal,
comtemplando cerca de 60 crianças da comunidade entre 04 a 11 anos.

951
A sede da Escola Vidigal, está localizada na parte mais alta da comunidade, possui vista
privilegiada, na área conhecida como Arvrão. Sua arquitetura (Figura 4). acompanha a
arquitetura local, mesclando com as moradias existentes, sendo desta forma totalmente
respeitosa ao local onde está inserido, valorizando a paisagem existente, não se destoando
(MARADEI, 2017).

Figura 4: Escola Vidigal.

Fonte: CasaVogue, 2017.

3.3 BatucaVidi e Capoeira Vidigal.


O BatucaVidi, criado em 2006 após a vinda de um grupo de percussão francês que deixou o
legado na Favela do Vidigal, que através do ensino da percussão e outros elementos artísticos
desenvolve e empodera as crianças e jovens do Morro.
O projeto traz a aprendizagem da percussão, incluindo ritmos variados da cultura popular
brasileira como, samba, reggae, samba reggae, maracatu, também há o ensino do canto,
preparação cênica que busca elevar o potencial artístico dos alunos e a expansão da
consciência, onde as crianças e jovens aprendem sobre a harmonia do grupo, respeito e
coletividade, que reflete tanto na realidade do projeto quanto dentro das casas.
Atualmente o grupo possui 60 alunos, com 65 apresentações já realizadas, e um filme onde a
troca de experiencias e cultura entre os participantes do grupo e crianças francesas, através de
um intercâmbio cultural.
Outro projeto muito importante da comunidade, ligado a ancestralidade dos moradores é o
Vidigal Capoeira. Sua criação foi em torno da necessidade de um local para ensinar a cultura
Afro. O projeto possui oito atividades relacionadas a cultura afro, sendo elas a capoeira,

952
maculelê, Jongo ou caxambu, coco, samba de roda, cacuriá, ciranda e tambor de crioula.
Possui cerca de 100 alunos, sendo eles desde crianças a idosos. A sede do projeto é a
associação de moradores da comunidade do Vidigal.

4- Considerações Finais
As manifestações culturais e coletivos de pessoas da Favela do Vidigal, possui uma grande
influência nessa comunidade, observando-se que não importa qual o projeto, todos têm como
intuito o empoderamento e valorização dos moradores, dos filhos do Vidigal, fortalecendo
assim a identidade local.
Os projetos, muitas vezes, são formas de mudar a realidade de jovens e adolescentes,
mudando a perspectiva dos mesmos.
Visto isso, observa-se que a comunidade do Vidigal sempre esteve em luta e sempre as terá,
mesmo em meio ao caos, eles sempre encontram formas de se empoderar e mostrar sua força
e união.

Referências

BatucaVidi. Nossa História. 2021. Disponível em:<http://batucavidi.com/> Acesso em: 02 de fevereiro


de 2021.

CARVALHO, Diana. Nós do Morro nos permitiu sonhar: conheça o grupo teatral que formou Babu. ECOa
– por um mundo melhor. São Paulo, 2020. Disponível em: <https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-
noticias/2020/04/26/nos-do-morro-nos-permitiu-sonhar-conheca-o-grupo-teatral-que-formou-
babu.htm> Acesso em: 21 de Janeiro de 2021.

COUTINHO, Marina Henrique. “O uso da abordagem dialógica do teatro em comunidades na Experiencia


do Grupo Nós do Morro, da Favela do Vidigal no Rio de Janeiro”. InterAÇÕES – Cultura e Comunidade.
Vol.1, N.1, 2006, pp 108-123. Disponível em:
<http://periodicos.pucminas.br/index.php/interacoes/article/view/6755/6178> Acesso em: 20 de
Janeiro de 2021.

Escola Vidigal. Conceito. 2020. Disponivel em : <https://escola-vidigal.org/sobre/> Acesso em: 24 de


Janeiro de 2021.

FORTUNATO, Thayná. Tanque Espaço de Cultura: Requalificação da Antiga Lavanderia Comunitária da


Favela do Vidigal / RJ. Graduação em Arquitetura e Urbanismo – Centro Universitário FAESA. Vitória,
2019.

Governo do Estado do Rio de Janeiro. UPP Vidigal. Governo do Rio de Janeiro. 2016. Disponível em:
<http://memoriadasolimpiadas.rb.gov.br/jspui/bitstream/123456789/2324/1/2012_00_00_GoverndoRJ
_UPP_Vidigal.pdf> Acesso em: 06 de fevereiro de 2021.

953
JONES, Claire; FANTOZZI, Evan. Frente á Gentrificação, Moradores se Mobilizam para Emplacar e
Preservar a Memória do Vidigal. RioOnWatch – Relatos das Favelas Cariocas. 2017. Disponível em:
<https://rioonwatch.org.br/?p=25223> Acesso em : 22 de Janeiro de 2021.

LACERDA, Larissa Gdynia. Conflitos e Disputas pela Mercantilização de Territórios Populares: o caso da
Favela do Vidigal, Rio de Janeiro. Pós Graduação em Planejamento Urbano e Regional – Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2016. Disponivel em:
<http://objdig.ufrj.br/42/teses/858650.pdf> Acesso em: 03 de fevereiro de 2021.

MARADEI, Giovanna. Conheça a Escola Vidigal idealizada por Vik Muniz. Casa Vogue. 2017. Disponível
em: <https://casavogue.globo.com/Casa-Vogue-Experience/noticia/2017/10/conheca-escola-vidigal-
idealizada-por-vik-muniz.html> Acesso em: 24 de Janeiro de 2021.

MIRANDA, Irma Teixeira; FORTUNATO, Rafael Ângelo. “O turismo sobe o Morro do Vidigal (Rio de
Janeiro, Brasil): Uma analise exploratória.” Turismo e Sociedade, Revista UFPR. Vol. 9, N. 2, 2016,
pp. Disponível em: <https://revistas.ufpr.br/turismo/article/view/47540/30215> Acesso em: 15 de
Janeiro de 2021.

Nós do Morro. In: Enciclopédia Itáu Cultural de Arte e Cultura Brasileira. Itáu Cultural. São Paulo, 2017.
Disponível em : <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/grupo371708/nos-do-morro> Acesso em: 15 de
Janeiro de 2021.

NOVAES, Patrícia Ramos; LACERDA, Larissa; SALLES, Lívia. “Urbanização Neoliberal no Rio de Janeiro e
seus Impactos na Favela do Vidigal”. II UrbFavelas – Seminário Nacional Urbanização de Favelas. Rio de
Janeiro, 2016.

SANTOS, Larissa Martins Neiva. Pobreza como privação de liberdade: Um estudo de caso na Favela
do Vidigal no Rio de Janeiro. Pós Graduação em Economia – Universidade Federal Fluminense. Niterói,
2007. Disponivel em <http://www.noticias.uff.br/noticias/2007/07/pesquisa-favela-
vidigal.pdf> Acesso em: 24 de Janeiro de 2021. SMITH, Neil. A gentrificação generalizada: de uma
anomalia local à “regeneração” urbana como estratégia urbana global. In: Bidou-Zachariasen,
Catherine. De Volta à 17 Cidade: dos processos de gentrificação às políticas de “revitalização” dois
centros urbanos. 2006. São Paulo: Annablume, pp.59-87.

TEPEDINO, Cristina de Azeredo Lopes. Cotidiano Escolar e Mudança Sociocultural: a experiencia do


Colégio Stella Maris. Pós Graduação em Educação Brasileira – Pontifica Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: <https://www.maxwell.vrac.puc-
rio.br/colecao.php?strSecao=resultado&nrSeq=10741@1> Acesso em : 03 de Fevereiro de 2021.

Vidigal Capoeira. Vidigal Capoeira – Sobre. 2019. Disponível em: <http://vidigalcapoeira.com.br/>


Acesso em: 04 de fevereiro de 2021.

954
COVID-19 E MATERNIDADE:
Relatos sobre gravidez, parto e puerpério durante a pandemia no Distrito Federal
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Leila Saads
Doutoranda; PPG-FAU/UnB; leila.saads@hotmail.com.

Lorrany Arcanjo
Graduanda; FAU/UnB; lorranysarcanjo@gmail.com.

Júlia Bianchi
Graduanda; FAU/UnB; jbfbianchi@gmail.com.

O presente artigo tem o objetivo de analisar os depoimentos de três mulheres que


engravidaram da/o segunda/o filha/o pouco antes do início da pandemia de covid-19 e que
passaram pelo fim de suas gestações, partos e respectivos puerpérios em meio às incertezas
de uma nova doença e a imposição de um isolamento social. A partir do diálogo entre teorias
feministas e pesquisas que abordam a gravidez e puerpério em tempos de coronavírus, serão
analisadas qualitativamente as três entrevistas. Foram selecionados episódios que permitem
observar pontos de contato e divergências entre as experiências narradas sobre as primeiras e
as segundas gestações das narradoras.
Palavras-chave: memória, gênero, experiência, covid-19, gravidez

This paper aims to analyze the narratives of three women who became pregnant with their
second child shortly before the beginning of the Covid - 19 pandemic, who went through their
pregnancies, deliveries and puerperiums in the midst of the uncertainties evoked by the disease
and the imposition of social isolation. Based on the dialogue between feminist theories and
research that addresses pregnancy and the puerperium in times of coronavirus, the analysis
focus on the three interviews qualitatively. There were selected episodes that allow the
observation of contact points and divergences between the described experiences of the first
and second pregnancies of the narrators.
Keywords: memory, gender, experience, covid-19, pregancy

955
1- Introdução
O presente artigo traz narrativas sobre gravidez, parto e puerpério de três mulheres
moradoras do Distrito Federal1. Para garantir a privacidade das participantes, os nomes
apresentados serão fictícios: Renata, Elisa e Isadora. Optamos por entrevistar mulheres que
engravidaram da/o segunda/o filha/o antes da pandemia do novo coronavírus invadir nossos
cotidianos, mas que vivenciaram o final da gestação, o parto e puerpério durante seu percurso.
Esta não foi uma opção aleatória, pois nosso intuito era gerar uma possibilidade de
comparação entre as primeiras gestações de cada uma com as segundas, a fim de perceber se,
em seus relatos, a pandemia surge como uma variável importante de diferenciação entre as
duas experiências gestacionais.

2 - Gravidez
Nenhuma das narradoras teve a primeira gravidez planejada, mas todas relataram tê-las
vivenciado com saúde e sem grandes complicações, o que possibilitou tivessem uma vida
social bastante ativa e que continuassem trabalhando/estudando durante todo o período. Para
Renata, a primeira gravidez foi um período de muito cansaço e, por trabalhar oito horas
diariamente, ela não pôde respeitar o novo ritmo de seu corpo.
A gravidez não se dá de maneira igual para todas as mulheres, não é sentida da mesma forma
por todos os corpos. O período garantido por lei para a licença maternidade2, insuficiente em
muitos casos para garantir o aleitamento materno exclusivo e o fortalecimento dos vínculos
parentais3, pode ser ainda diminuído se a mulher precisar se afastar do trabalho no fim da
gestação por razões médicas (a chamada antecipação da licença maternidade). Isso faz com

1
Utilizamos nesta pesquisa a metodologia da história oral, respeitando as etapas propostas por Verena
Alberti (2005): pesquisa bibliográfica prévia, formulação de um roteiro semiestruturado para entrevista
temática, gravação em suporte de áudio, transcrição, conferência de fidelidade, copidesque e,
finalmente, a análise. Todas as etapas foram realizadas pelas autoras deste artigo. As entrevistas foram
realizadas à distância, em janeiro de 2021, utilizando o aplicativo Zoom e tiveram duração média de
1h30 cada uma. As narradoras têm entre 32 e 33 anos e são identificadas neste artigo por nomes
fictícios. Isadora se autodeclara branca, enquanto Renata e Elisa se autodeclaram negras. As três estão
em relacionamentos estáveis com os pais de suas/seus filhas/os.
2
No Brasil, as trabalhadoras regidas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), têm direito a 120 dias
de licença maternidade, enquanto servidoras públicas civis, tanto federais (regidas pela Lei nº 8.118/90)
quanto do Distrito Federal (regidas pela Lei Complementar nº 840/2011), têm 180 dias de licença
maternidade.
3 Cf.: RÖPKE, Helena; et.al. “O término da licença-maternidade e os desafios da Puérpera: Entrevistando

trabalhadoras do comércio varejista no Sul do Brasil”. In: [OLIVEIRA, Elizângela] Tópicos em


administração. Vol. 30. Belo Horizonte: Poisson, 2020. pp. 30-38.

956
que muitas mulheres precisem trabalhar até o limite para que consigam usufruir de mais
tempo da licença maternidade no pós-parto. Assim, o ritmo laboral exigido pelo mercado de
trabalho não parece, no caso de Renata, se adequar às exigências de seu próprio corpo
durante o período gestacional. Durante diversos pontos de sua narrativa, ela enfatiza as
dificuldades em lidar com a falta de tempo por causa do trabalho: “Engordei muito na gravidez
porque [...], no trabalho, eu me alimentava mal. [...] não tava podendo respeitar o meu corpo,
eu tinha que trabalhar oito horas por dia. E mesmo que não fosse um trabalho pesado, você
fica sentada ali né, sem se mover.”
Já a segunda gravidez aparece na narrativa de Renata como uma experiência oposta à
primeira. Mesmo que não tenha sido uma gravidez planejada, nem tão esperada quanto a
anterior,4 a pandemia e o trabalho remoto possibilitaram que ela tivesse espaço e tempo para
aproveitar a gestação, a família, sua casa, fortalecendo os vínculos com o marido e a filha mais
velha. Para Renata, a pandemia surge como uma ruptura positiva que, apesar dos medos
despertados, trouxe mais benefícios do que dificuldade, como revela o trecho a seguir:
[Renata:] e aí veio a pandemia... Ai, cara, que maravilha! E assim, é até
paradoxal falar, né? Mas nossa, aí foi outra gravidez... aí eu tava em casa
todo dia. [...] eu pude explorar aqui essa casa, de ter um espaço pra sair [...]
me arrisquei a fazer uma horta, que eu nunca tinha feito. [...] eu tava em
casa, tava menos acelerado, tava mais devagar. Claro, teve todos os desafios
da pandemia: medo de pegar covid, ter que ir pro hospital, de ficar sem ar e
grávida, de encontrar as pessoas, né? [...] foi desafiador nesse sentido, mas
pra gravidez foi muito bom.

Já na narrativa de Isadora, o trabalho não surge como fator negativo em sua primeira
experiência gestacional. Segundo ela, sua primeira gravidez, apesar de não planejada, foi
muito tranquila e saudável, com vida social ativa durante todo o período. Isadora trabalhou
até o final da gravidez: “[..] eu me sentia muito bem. Eu lembro que eu vim morar na Asa Sul
nesse período e eu resolvi não dirigir no final da gravidez, eu ia pro trabalho de ônibus e eu
achava o máximo que todo mundo vinha conversar comigo. [...] não deixei de fazer nada por
causa da gravidez...”. Essa tranquilidade, no entanto, não se repete no relato de segunda
gestação, pois a pandemia e o isolamento, ainda que tenham permitido maior convívio
familiar, lhe geraram incertezas angustiantes. Isadora relata que seus últimos meses da
gravidez transcorreram em meio ao recrudescimento da primeira onda da pandemia no Brasil.
Por um problema de saúde do sogro, (ocasionado pela Síndrome de Guillain-Barré), ele, a

4
Renata relata que ela e o marido não estavam em um bom momento da relação quando descobriram a
segunda gravidez, inclusive estavam cogitando se separar.

957
esposa e a filha do casal foram morar na casa de Isadora por alguns meses. Isso possibilitou
que ela tivesse uma rede de apoio durante o início do isolamento decretado pelo Governo do
Distrito Federal (GDF), em março de 20205, contribuindo para que ela pudesse se dedicar ao
trabalho remoto, à gravidez e à filha mais velha, sem precisar se preocupar com as tarefas
domésticas.
Isso mudou quanto, um mês antes do parto, a família do seu marido voltou para casa: o
isolamento em relação a outras pessoas, o aumento das demandas dentro de casa e a
proximidade do parto são relatadas como elementos geradores de grande ansiedade por
Isadora. As incertezas do momento, o medo da contaminação e as consequências disso para a
gravidez e o pós-parto reforçaram a angústia. Na época, pouco se sabia sobre a covid-19 e, por
se tratar de uma doença nova, as informações que a própria comunidade médica e científica
tinha e divulgava eram ainda nebulosas, desencontradas. Com a proximidade do parto e a
ansiedade gerada pela pandemia e seu agravamento, Isadora optou, então, por agendar sua
cesárea, pois assim conseguiria se planejar melhor em relação à filha mais velha: “eu não
queria ter essa instabilidade de ficar esperando algum sintoma de trabalho de parto e sem
saber o que fazer com a minha filha.”.
Já Elisa narra que, apesar de ter tido uma primeira gravidez fisicamente bastante tranquila, no
aspecto social e psicológico ela enfrentou alguns desafios. Como primeira da família a
ingressar no ensino superior em uma instituição Federal, a notícia da gestação preocupou seus
pais com relação ao seu futuro acadêmico e profissional. Ela não tinha um relacionamento
estável com o pai do bebê que, na época, trabalhava como professor em uma aldeia indígena
em outro estado. Embora tenha tido a opção de interromper a gravidez, Elisa decidiu
continuar a gestação e com tempo as coisas foram se ajeitando: os pais ofereceram apoio, o
relacionamento com o pai da criança se solidificou. Mesmo com todos os desafios que a
gravidez não planejada trouxeram, Elisa relata que depois desse primeiro momento
conturbado, ela teve uma gravidez tranquila, saindo com as amigas, frequentando as aulas da
graduação, estreitando vínculos com o companheiro e contando com o apoio financeiro e
emocional da família.
A segunda gravidez é narrada por Elisa como uma experiência bem diferente da primeira, em
muitos sentidos. Para começar, foi uma gravidez planejada em detalhes e que, segundo ela, só
foi cogitada por conta da certeza que ela e o companheiro tinham de que contariam com uma

5
O Decreto nº 40.539, de 19 de março de 2020, estabeleceu diretrizes para o enfrentamento da
pandemia do novo coronavírus no Distrito Federal, com fechamento de serviços considerados não
essenciais, dentre eles as escolas.

958
ampla e sólida rede de apoio. Elas, inclusive, se mudaram para o mesmo bairro onde residem
os pais e irmãs de Elisa, buscando facilitar a logística dessa rede. Porém, em março, o
planejamento da rotina familiar e a certeza de contar com uma rede de apoio ruíram diante da
pandemia e do início da quarentena no DF. O receio de pegar a doença, a escassez de
informações e as notícias preocupantes sobre gravidez e covid-19 que circulavam na mídia
deixaram Elisa extremamente preocupada. Ela relata ter tido crises de ansiedade, dificuldade
de dormir, medo de morrer, de ter algum problema no parto, dela e do recém-nascido se
contaminarem. Também sentiu muito medo de algo acontecer com seu companheiro, que faz
parte do grupo de risco.
Elisa teve um primeiro parto muito difícil, como veremos mais adiante, por isso optou pelo
parto domiciliar antes mesmo do início da pandemia, sendo acompanhada por duas
enfermeiras obstetras durante toda a gestação e puerpério. As incertezas diante da pandemia
reforçavam sua escolha pelo parto domiciliar, adicionando uma camada de terror à
possibilidade de precisar ser encaminhada para o ambiente hospitalar durante e/ou após o
parto: “E pensar em ir a um hospital no meio de uma pandemia, não é uma opção... não era a
minha opção. Eu fiquei com muito medo. E eu ficava conversando com as minhas enfermeiras:
“E se precisar? Como é que vai ser? Como é que eu vou ter um bebê dentro de um
hospital?”.”. O final da gestação foi, então, emocionalmente muito tenso e desgastante para
Elisa. Com dificuldades físicas para dormir por causa do tamanho da barriga, Elisa conta que a
ansiedade e a insônia agravaram ainda mais o seu cansaço físico. Em isolamento completo, a
única forma de contato com amigas e parentes era por meio de plataformas digitais, que foi a
tentativa de Elisa de manter algum contato com alguém fora de seu núcleo familiar.

2 – Parto
O momento do parto é representado muitas vezes como capaz de confiar ao corpo feminino a
materialização da figura materna, como se tornar-se mãe fosse algo que naturalmente
acontecesse com todas as mulheres após o parto. No entanto, essa idealização do parto,
grande parte das vezes, destoa daquilo que cada mulher experencia de fato, o que pode gerar
sofrimento e acrescentar um elemento potencialmente complicador ao período puerperal,
especialmente complexo em um contexto de pandemia quando as redes de apoio e cuidado
estão tão frágeis. É impossível mensurar os sentimentos das parturientes frente à pandemia,
especialmente no início dela, quando pouco se sabia sobre o vírus e seus efeitos no corpo
grávido e no bebê.

959
As narrativas das entrevistadas refletem essas manifestações, dentro de variâncias e
aprofundamentos próprios, nas duas experiências de parto – antes e depois da pandemia. No
primeiro parto, todas as três mulheres compartilharam a vivência de ter planejado um parto
normal, mas devido a intercorrências precisaram realizar uma cesariana. Para Renata, seu
primeiro parto não revelou nenhum desconforto quanto ao ambiente hospitalar ou a equipe
médica, como foi o caso de Isadora e Elisa, mas o fato de não poder ter sua filha naturalmente
desencadeou um sentimento de frustação em relação ao seu próprio corpo: “fiquei me
sentindo fraca, como se eu não tivesse conseguido, porque várias mulheres conseguem... eu
fiquei com o peso disso.”.
Esse sentimento retornou com intensidade no planejamento do parto de sua segunda filha.
Mesmo vivendo as incertezas da pandemia e o medo da contaminação, o desejo de ter sua
filha em domicílio era fundamental para ela, que queria viver a experiência de ter um parto
natural.6 O relato de Isadora, por sua, revela outra perspectiva, outra maneira de lidar com as
incertezas do momento. Ela passou por uma cesariana inesperada no primeiro parto e achou a
recuperação tranquila. Além disso, ela relata ter se sentido muito ansiosa durante a espera dos
primeiros sinais de trabalho de parto, ansiosa por não saber quando a filha iria nascer. Por
isso, quando percebeu que iria ter um filho no meio de uma pandemia, Isadora sentiu que não
gostaria de acrescentar mais elementos instáveis a um contexto já caótico e imprevisível. Para
conseguir planejar uma estadia segura para a filha mais velha enquanto estivesse na
maternidade, Isadora decidiu-se por agendar uma cesariana. Dessa forma, ela garantiu que seu
pai – que foi quem cuidou de sua filha mais velha no período em que esteve internada –
fizesse um isolamento antes dela ir para a maternidade. Isso lhe deixou tranquila, pois
representou uma redução na possibilidade da filha mais velha se contaminar fora de casa. Para
Isadora, estar amparada por uma estrutura médica significava conforto diante de suas dúvidas
e incertezas em relação ao parto. Já para Elisa, a possibilidade de precisar de atendimento
hospitalar durante o parto lhe gerava grande ansiedade:
[Elisa:] eu fiquei com muito medo de morrer. Fiquei com muito medo de
pegar Covid. Fiquei com muito medo de ter o bebezinho no hospital e ele
pegar Covid. Foi bem difícil pra mim esse período, de pensar em estar no
hospital. [...] E pensar em ir a um hospital no meio de uma pandemia, não é
uma opção... não era a minha opção. Eu fiquei com muito medo. E eu ficava
conversando com as minhas enfermeiras: “E se precisar? Como é que vai
ser? Como é que eu vou ter um bebê dentro de um hospital?”.

6
Segundo Renata: “Se eu precisasse ir pro hospital, eu teria ido também e era... estava resignada: se é
isso que eu vou viver e paciência, com essa história é que eu vou ter que lidar. Mas não pela pandemia,
era mais por mim mesma que queria o parto normal. Eu pensava: cara só não posso me contaminar,
porque aí não posso ter meu parto talvez em casa e aí gere mais pressão na minha cabeça e talvez eu
não consiga. Mas mais por isso.”

960
Em seu relato, Elisa reafirma em diversas ocasiões o perigo que o ambiente hospitalar
simbolizava para ela, primeiramente, pelo medo da contaminação dela e de seu filho, mas
também por temer reviver as violências obstétricas pelas quais passou em seu primeiro parto,
e que a conduziram a uma cesariana desnecessária.7 No Brasil, onde a média anual de
cesarianas já chegou aos 56%, sendo que no DF essa média pode chegar a 63% (DATASUS,
2019), atualmente, se encontram em vigor barreiras institucionais para se reconhecer
legalmente o conceito de violência obstétrica8. As parturientes são, então, expostas a uma
matriz reducionista da medicina que, segundo Shiva, nega à parturiente o estatuto de
especialista e impondo ao “corpo desconhecedor” saberes localizados, carregados de práticas
e intervenções obstétricas invasivas e desnecessárias.
Em vários momentos de sua fala, Elisa repete o quanto era importante para ela estar no
conforto de sua casa, junto de sua família, durante o parto de seu segundo filho. Apesar de ter
passado grande parte desse processo em casa, o bebê de Elisa não encaixou, mesmo após
quase dois dias de trabalho de parto e de muitas manobras e exercícios pélvicos propostos
pelas duas enfermeiras obstétricas que a acompanhavam. No terceiro dia de contrações, Elisa
começou a duvidar de que o bebê nasceria em casa. Sentindo que havia algo errado, ela pediu
para ser encaminhada para o hospital. Apesar das restrições a acompanhantes nas
maternidades por causa da pandemia, seu companheiro e parteira estiveram presentes por
todo processo, assegurando que suas vontades fossem respeitadas e que as informações
repassadas fossem concisas e acessíveis. Ela conta que: “Um dos meus medos era eu chegar lá,
vir um desses médicos e mostrar um monte de exames, coisas, como foi na primeira gestação,
e eu não saber o que está acontecendo, porque eu não tenho nenhuma formação técnica.”.
Durante o trabalho de parto no hospital, depois que sua bolsa foi estourada pela médica
obstetra que estava de plantão, Elisa teve uma febre inesperada e, por isso, foi encaminhada
para uma cesariana de emergência. Nesse caso, ela não relata ter sentido que sofreu uma

7
Como narra no seguinte trecho: “Quando eu cheguei lá [no hospital] eu não tinha nenhuma dilatação.
Mas os profissionais que me atenderam não... não esperaram até que eu pudesse entrar em trabalho de
parto ativo. Foram várias situações... Eles falavam: Ah, talvez seu filho comece entrar em sofrimento
fetal... Eles mostraram um monte daqueles exames... do coraçãozinho... Aí você vê um monte daquelas
estimativas... eu não sei o que é o que não é. E quando eu cheguei no hospital meu companheiro não
pôde entrar comigo, a gente ficou separado durante um tempo, só depois que ele conseguiu entrar,
dentro da sala de parto já. E... aí eles me levaram – nessa situação, falando que talvez tivesse um
sofrimento fetal e tudo mais porque eu não tive dilatação – pra uma cesariana desnecessária.
8
Em 2019, no governo de Jair Bolsonaro, ocorre a publicação do Ofício nº 017/19 – JUR/SEC referente à
solicitação de posicionamento deste Ministério quanto ao uso do termo “violência obstétrica”. Este
ofício define que: “o termo “violência obstétrica” tem conotação inadequada, não agrega valor e
prejudica a busca do cuidado humanizado no continuum gestação-parto-puerpério.”.

961
violência obstétrica, pois a necessidade da cesariana estava nítida. Seu filho nasceu com
dificuldades para respirar e, por isso, foi encaminhado para a UTI neonatal, de onde saiu
saudável após três dias de internação. As médias não conseguiram determinar as causas da
febre de Elisa, por isso, ela e o bebê, foram colocados logo após o parto, no protocolo de
pacientes com Covid-19, até que saíssem os resultados de seus exames. Ela relata ter vivido
momentos de verdadeiro pânico nesse imediato pós-parto, pelas incertezas do que significava
ser inserida nesse protocolo: sem saber quando poderia ver seu bebê e sair do isolamento. Ela
narra de maneira enfática o medo que teve de morrer e/ou de seu filho ter se contaminado e
morrer. Mas depois de algumas horas, os exames de Elisa apontaram para uma infecção
urinária e ela pôde ir para o quarto.

3 – Puerpério
O puerpério é o período do ciclo gravídico-puerperal que se inicia imediatamente após o parto.
Este é um momento de reorganização não apenas do corpo, mas também do sujeito, que se
reorienta a partir da chegada de um bebê em sua rotina. De acordo com Marcela Silva et.al.
(2017, p. 9), entre 50% e 80% das puérperas vivenciam a chamada tristeza puerperal – ou o
baby blues, como também é conhecido –, caracterizada por mudanças rápidas de humor,
choro, irritabilidade entre outras manifestações.
Os puerpérios das primeiras gestações relatados por Renata, Elisa e Isadora possuem alguns
pontos de contato com essas características mais gerais apresentadas acima, mas também
divergências. Apesar de ter vivido uma primeira gravidez emocionalmente tranquila e
desejada, Renata, por exemplo, vivenciou um puerpério difícil. Em vários trechos de sua fala
ela traz a metáfora da chegada de sua primeira filha como uma morte: “meu pós-parto, da
primeira filha, foi bem desafiador. Eu me conectava com ela, mas hoje, com a segunda filha, eu
percebo que bem menos. Eu estava vivendo esse processo de luto, ninguém falava muito
disso.”. O nascimento surge, então, como uma ruptura entre a Renata de antes e a Renata
mãe, com toda a demanda, como ela mesmo diz, emocional, energética e espiritual de ter uma
criança sob seus cuidados. E como toda a ruptura, é necessário um período de luto, reflexão e
de rearticulação subjetiva para dar conta da nova conjuntura. As três narradoras apresentaram
– cada qual fazendo uso de imagens e metáforas próprias – o primeiro puerpério como um
momento de cisão, de mudança brusca do cotidiano e repleto de medo em relação à falta de
liberdade que um/a recém-nascido/a parecia representar.
Apesar das dificuldades, as três tiveram a presença de uma grande rede de apoio no primeiro
puerpério. Estas redes surgem em suas narrativas como elementos fundamentais para seus

962
processos de reorientação como sujeitos, para que pudessem ser capazes de se construírem e
se reconhecerem também como mães. É interessante como nos depoimentos aparece com
nitidez a consciência de que é preciso ser cuidada para conseguir cuidar, de que receber colo,
mesmo as três sendo adultas, foi um elemento imprescindível para tornar o dar um colo algo
menos pesado. Essa importância fica especialmente marcada quando Elisa e Isadora
comparam seus primeiros puerpérios com os segundos, vividos durante a pandemia:
[Elisa:] eu tenho uma ótima rede de apoio: da minha mãe, das minhas
irmãs, principalmente da minha família. E saber que você não vai poder ter
essa ajuda... nossa foi meio que... meio que bateu desespero. [risos] Cuidar,
tudo bem que, né, a gente vai cuidar do bebê e tudo mais, mas é
importantíssimo que a gente tenha uma rede de apoio. Ter a sua mamãe
por perto, poder contar com ela.

[Isadora:] por causa da dificuldade de amamentação, eu chamei uma


consultora de amamentação [...] que veio toda paramentada e tal, com
todos os cuidados... e eu percebi isso, né, a falta de ser cuidada[...] ela foi
muito mais uma psicóloga do que uma consultora de amamentação pra
mim. Eu desabafei, eu coloquei tu... eu chorei... ela cuidou de mim.

Elisa conta que, ao perceber que não teria uma rede de apoio depois do nascimento do
segundo filho, se sentiu sem chão, pois todo o planejamento inicial da gravidez, suas
expectativas e projeções se desmaterializaram diante da pandemia. Tanto ela quanto Isadora
fizeram um isolamento restrito durante o puerpério, suas convivências se restringiam ao
núcleo familiar mais próximo: companheiro, primeira/o filha/o e bebê. Os companheiros das
três narradoras estiveram presentes em casa durante o puerpério, com o trabalho suspenso
ou sendo realizado à distância. Mas nos casos de Isadora e Elisa, por não contarem com outra
rede de apoio que não fosse seus companheiros, o isolamento aparece como um fator
determinante para o aumento da tristeza puerperal. Divididos entre os cuidados com a casa, a
criança mais velha e o bebê, os companheiros não tiveram condições de suprir todas as
demandas por cuidado das puérperas, que se sentiram desamparadas em muitos sentidos. Já
Renata, teve o apoio de uma rede mais ampla: a mãe aparecia com frequência para cuidar da
casa, fazer comida e oferecer assistência em relação às crianças e, além disso, ela tinha
contato constante com uma vizinha e sua filha, que vivem no mesmo terreno. Esse parece ter
sido um ponto importante para explicar a discrepância entre os relatos do segundo puerpério
de Elisa e Isadora em ralação ao de Renata. Esta última relatou ter tido muito mais dificuldades
físicas – em relação à recuperação do parto – do que emocionais no período puerperal.

4 - Considerações finais

963
Entendemos que memória é ação, um trabalho sobre o tempo (Bosi, 2003: 53), um processo
criativo através do qual uma narrativa sobre o passado é construída e articulada a partir do
presente. Narrar é ato político; é um abrir de caminhos dialógicos, de fissuras nos muros do
isolamento; é um forjar de pontes entre experiências e maneiras de estar-no-mundo. Em um
contexto social que, antes mesmo da pandemia, já isolava mulheres grávidas e puérperas –
silenciando experiências e subjetividades sob as representações hegemônicas de maternidade
–, o narrar se apresenta não apenas como resistência, mas como ato de criação de
possibilidades múltiplas de se fazer e se entender mãe.
As três mulheres que nos cederam seus relatos, tiveram experiencias singulares em cada um
de seus ciclos gravídico-puerperais. A pandemia, certamente, ainda que em diferentes
intensidades, aparece como um elemento impactante na maneira como cada uma viveu e
significou sua segunda gravidez. No que tange as experiências de isolamento de Isadora e Elisa,
nos parece relevante apontar como ser-grávida e ser-puérpera nas paisagens enclausuradas de
seus apartamentos, por mais confortáveis que fossem, afetou suas experiências nessa segunda
gestação. Enquanto para Renata, estar imersa em uma paisagem bucólica, onde as paredes
edificadas de sua casa se estendiam por um vasto mundo-quintal de plantas, terra, sol e
possibilidades, contribuiu para uma experiência de isolamento que influenciou positivamente
sua gravidez e puerpério.

Referências

BOSI, Eclea. O tempo vivo da memória: Ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê editorial, 2003.

Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS). Informações de Nascidos Vivos


do Brasil: banco de dados [Internet]. 2019. Disponível em:
<http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sinasc/cnv/nvuf.de> Acesso em: 13 de março de 2021.

RÖPKE, Helena; et.al. “O término da licença-maternidade e os desafios da Puérpera: Entrevistando


trabalhadoras do comércio varejista no Sul do Brasil”. In: [OLIVEIRA, Elizângela] Tópicos em
administração. Belo Horizonte: Poisson, Vol. 30, pp. 30-38. Disponível em
<https://poisson.com.br/2018/produto/topicos-em-administracao-volume-30/> Acesso em: 24 de
março de 2021.

SILVA, Marcela; et.al. Tristeza materna em puérperas e fatores associados. Revista Portuguesa de
Enfermagem de Saúde Mental. Porto: N. 18., pp. 8-13. Disponível em
<http://www.scielo.mec.pt/pdf/rpesm/n18/n18a02.pdf> Acesso em: 11 de março de 2020.

SHIVA, Vandana. Reducionismo e regeneração: uma crise na ciência. In: SHIVA, Vandana, MIES, Maria,
Ecofeminismo. Lisboa: Instituto Piaget, ps. 37-52, 1993.

ZANARDO, Gabriela Lemos de Pinho et al . Violência obstétrica no Brasil: uma revisão narrativa. Psicol.
Soc., Belo Horizonte , v. 29, e155043, 2017 . Disponível em:

964
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
71822017000100218&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 24 de Março de 2021.

965
DINÂMICA URBANA E PAISAGEM ESQUECIDA:
Estudo de caso do Parque Rodoviário de Teresina/PI
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Cassandra de Sousa Cunha


Mestre em Geografia (UVA); Arquiteta e Urbanista do Instituto Federal do Piauí (IFPI);
cassandra@ifpi.edu.br

Raimundo Lenilde de Araújo


Doutor em Educação brasileira e Mestre em Desenvolvimento e meio ambiente (UFC); Prof. da
Pós Graduação em Geografia; raimundolenilde@ufpi.edu.br

O fato ocorrido com o Parque Rodoviário de Teresina, em razão da chuva do dia 4 de abril de
2019 permeia a problemática central do presente artigo, que, em seu objetivo geral, estudou a
dinâmica urbana do Parque Rodoviário de Teresina, articulado com discussões de paisagem
esquecida. Os fundamentos teóricos foram embasados em autores que discutem a produção
do espaço, agentes sociais e a dinâmica socioambiental. Foram utilizadas imagens de satélites
e a pesquisa hemerográfica digital, relativa à ocorrência do fenômeno atmosférico de abril de
2019 até a situação percebida em outubro de 2020. Dezoito meses depois da data do ocorrido,
algumas residências foram reconstruídas e ou reformadas, e muitas ainda aguardam a
construção de novas casas.
Palavras-chave: Urbanização; Paisagem urbana; Riscos socioambientais; Teresina.

The fact that occurred with the Teresina Highway Park, due to the rain on April 4, 2019
permeates the central problematic of the article, which had as its general objective to study the
urban dynamics of the Teresina Highway Park articulated with discussions of forgotten
landscape. The theoretical foundations were based on authors who discuss the production of
space, social agents and socio-environmental dynamics. It was used, satellite images and
digital hemerographic research, related to the occurrence of the atmospheric phenomenon
that occurred in April 2019 until the situation perceived in October 2020. Eighteen months after
the date of the event, some homes were rebuilt and /or renovated and many are still waiting
for the construction of new houses.
Keywords: Urbanization; Urban landscape; Socio-environmental risks; Teresina.

966
1 – Introdução
A paisagem condiciona a nossa sensibilidade e o modo como somos influenciados socialmente,
fundamenta o partido visual e sua percepção representacional, que pode estar em
consonância ou discordância com forma ou aparência, e o que ela nos sugere. Pode ser um
cenário da vida de seus habitantes, relações sociais, lutas e realizações, na dialética entre
natureza e sociedade, reflexo das representações de cada momento histórico, contexto
geográfico, arquitetônico e marco de cada imaginário específico (SOUZA, 2020).
A paisagem é a forma de manifestação da vida, do urbano, revela uma dimensão da produção
espacial e o modo pelo qual foi produzida, produto das relações de contradições, ritmo e
desenvolvimento das relações sociais (CARLOS, 2019). A dinâmica do processo da existência da
paisagem, produto da relação com a sociedade que se transforma de acordo com as
necessidades humanas, se materializa concreta e percebida no espaço em novos elementos,
nas diversas intensidades de conexões e implicações.
As formas de ocupação, diversidade das atividades produzidas em um determinado lugar, a
concentração populacional, a busca de oportunidades e boas condições de vida são exemplos
significativos das expressões encontradas no conteúdo dos quadros urbanos das cidades e
repercutem diretamente na qualidade de vida da população (ARAÚJO, 2003).
Não muito diferente de outras regiões no Brasil, o processo de expansão de Teresina/Piauí
desencadeou o crescimento desordenado, gerou ocupações irregulares, com acesso precário,
construção de casas em locais instáveis e próximos de taludes, ocasionou a impermeabilização
e supressão de camada do solo e vegetação, interferência no percurso natural da água e no
sistema de drenagem. Teresina a capital do Estado do Piauí tem como uma de suas
características principais o fato de estar assentada em um interflúvio que se alonga entre os
rios Parnaíba e Poti, o que engendrou a ocupação de suas margens (CHAVES, et al., 2017).
Entre todas as capitais nordestinas, Teresina, coordenadas de 05° 05' 20'' de Latitude Sul e
42°48' 07'' de Longitude de Oeste, é a única que não está localizada no litoral. Possui uma
população, segundo o último censo de 2010, de 814.230 habitantes, sendo que 767.557 vivem
em área urbana, o que corresponde a 94,3%. A população estimada em Teresina, em 2020, é
de 868.075 pessoas. (IBGE, 2020). Em aglomerados subnormais (vilas, favelas, invasões),
possui cerca de 35.127 domicílios particulares ocupados, onde residiam 131.451 pessoas
(16,14%) da população (IBGE, 2010). Os significativos problemas inerentes ao processo
desordenado de sua expansão, intensificou nos anos de 1980, uma vez que a ocupação de

967
áreas inapropriadas surgiu como alternativa de moradias que se concretizaram sobre terrenos
desprovidos de infraestrutura. Tal fato ganhou expressão na cidade por causa do processo de
favelização, e fez com que os grupos sociais excluídos contribuíssem para maior intervenção
no tecido urbano (FAÇANHA, 2003).
O Parque Rodoviário, constituído de uma população vulnerável, tem como característica a
localização em uma área de risco e periférica, fruto da dinâmica de ocupações existentes na
cidade, iniciadas na década de 1980. É considerado um aglomerado subnormal, situado no
perímetro do Bairro Catarina, zona Sul da capital (Figura 1).

Figura 1 - Vista aérea do Bairro Catarina, local da tragédia e percurso da água até atingir as casas

Fonte: Adaptado. Teresina (2018).

Convém esclarecer que, embora se verifiquem números maiores, até 2010, o quantitativo de
domicílios era de 340, somando 1.382 pessoas com uma média de 4,1 morador por residência
(IBGE, 2010). Assinale-se, também, que foi nesse lugar onde ocorreu o transbordamento de
uma lagoa represada, dentro de um clube inativo, e o rompimento de uma rua que servia
como barramento, que levou a água percorrer um quilômetro, até atingir residências, pessoas,
casas e veículos, o que provocou o desastre do dia 4 de abril de 2019.
Essa ocorrência permeia a problemática central: O que ocorreu com o Parque Rodoviário a
partir do episódio pluviométrico da noite de 4 de abril de 2019? Para a compreensão do
transcorrido, a pesquisa teve como objetivo geral estudar a dinâmica urbana do Parque
Rodoviário de Teresina, articulado com as investigações das consequências e

968
acompanhamento da situação das famílias, ações do poder público para com as vítimas e a
reconstrução da área devastada, até a situação percebida de outubro de 2020.
Os fundamentos teóricos estudados e referenciados foram baseados em autores que discutem
a dinâmica e ação dos agentes no processo de produção do espaço, são estes: Corrêa (2014) e
Carlos (2019) e a manifestação das relações sociais e ambientais refletidas na paisagem urbana
com Emídio (2017). Para tanto, foram utilizados como procedimentos, o estudo de imagens de
satélites, do antes e depois do local atingido, e o recurso da pesquisa hemerográfica digital,
relativa a matérias jornalísticas que abordaram e sistematizaram a ocorrência do fenômeno e
os desdobramentos do fato ocorrido, com o levantamento dos atores sociais e institucionais
envolvidos no fato.
Para melhor sistematização, o texto está estruturado da seguinte forma: a primeira parte
apresenta uma síntese sobre a produção do espaço urbano e a dinâmica da paisagem. A
segunda permite uma análise acerca da paisagem com a manifestação ocorrida no espaço do
Parque Rodoviário, relacionada com seus processos, traumas e manifestações pós-evento; e,
finalizando, apresentam-se algumas considerações sobre o ocorrido.

2 - Dinâmica Urbana e Produção do Espaço


O desdobramento da industrialização ocasionou transformações na estrutura física, econômica
e social no espaço urbano, na forma de produção e reprodução e está ligado ao próprio
desenvolvimento da sociedade, fundamentado nas relações sociais, divisão do trabalho e
formação econômico-social (CARLOS, 2019). “A produção do espaço é a consequência de
agentes sociais inseridos na temporalidade e espacialidade de cada formação socioespacial
capitalista” (CORRÊA, 2014, p. 43). As mudanças que ocorrem em uma determinada cidade
amparam-se nos processos de transformações com características próprias, e o espaço urbano
é a materialização desses processos, na forma de um ambiente construído, da articulação de
interesses do Estado, ação do capital e a resistência contra a segregação no espaço (CARLOS,
2019).
As cidades cresceram tanto em aspectos demográficos quanto territoriais, o que expressou em
seu tecido urbano diferentes transformações. O crescimento desordenado e o mau
planejamento acarretaram sérios problemas setoriais, os quais refletem diretamente na
qualidade de vida, como: habitação, transporte, emprego, ocupação em áreas propícias a
enchentes, entre outros; e a cidade acabou não conseguindo atender às demandas (COSTA,
2010). Isso gerou deficiências nos serviços básicos fornecidos à população, como precariedade
das moradias, falta de saneamento básico, disposição inadequada de resíduos, destruição de

969
margens dos rios, encostas, vegetação etc. Nessa perspectiva, aprofundaram-se o retrato da
formação de espaços insalubres, e o uso e ocupação inadequado do solo, retrato de uma crise
ambiental repleta de impactos negativos em diversas escalas (EMÍDIO, 2017).
Por sua vez, os problemas existentes nas cidades revelam uma população vulnerável aos riscos
socioambientais, com exposição ampliada a eventos de desastres naturais e uma dificuldade e
dependência de recuperação e reestabelecimento dos fatos enfrentados, o que ocasionou
uma nova organização e estruturação socioespacial, que, em seu modelo capitalista,
estabelece no tecido social a localização da população mais pobre em áreas periféricas e
desprovidas de infraestrutura básica (CARDOSO et al., 2020). Há na cidade o processo de
identificação e união de classes, e a consciência do coletivo como base de movimento social
(CARLOS, 2019).
Por outro lado, a forma de moradia e as condições de ocupações em um determinado lugar
são consequências das condições socioeconômicas, e a parcela da população carente leva a
padrões de apropriação de terrenos inadequados, localizações menos favorecidas de
infraestrutura, não conseguindo atingir todo o espaço urbano, mas sim os espaços físicos de
ocupação de classes sociais menos favorecidas, excluídas e espacialmente segregadas (COSTA,
2010).
Convém assinalar que o intenso fluxo migratório de pessoas em busca de melhores condições
configura-se um dos principais fatores para o aumento da população nas cidades. Muitas
famílias não têm acesso a condições de moradia digna. Esse processo da dinâmica da
urbanização constituída de fragmentações sociais, ambientais, econômicas, suporte físico do
sistema de organização social conferem a paisagem urbana, como produto, a representação da
qualificação e participação da população em seu habitat (EMÍDIO, 2017).

3 - Tragédia no Parque Rodoviário: ameaça invisível e traumas do passado


Os eventos que ocorriam no Parque Rodoviário já possuíam o monitoramento por meio da
Prefeitura de Teresina, da Defesa Civil, em razão de registros anteriores de deslizamentos de
terras e desabamentos de casas na região, após fortes chuvas (DIÁRIO DE PERNAMBUCO,
2019). Contudo, a área do ponto exato da tragédia, atingida pelo temporal não estava
cadastrada no mapa de risco, segundo declaração do até então prefeito, à época do ocorrido,
ao percorrer o local, um dia após o fato.
Para o mencionado prefeito, não existiu nenhuma reclamação quanto à área, haja vista que o
problema não estava visível à população. O local estava cercado de mato e, por essa condição,
não havia registro de problemas no ponto de rompimento (TERESINA, 2010). Em contraponto,

970
alguns moradores afirmaram ter procurado a Prefeitura para informar sobre a situação do
clube desativado (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 2019).
Somente nos primeiros quatro dias do referido mês Teresina recebeu 52% da média normal de
chuvas, para o mês de abril. Assim, em poucas horas da noite de quinta-feira, dia 4 de abril de
2019, uma equivalência de acúmulo pluviométrico de 63 mm, ou seja, 24,9% do esperado
para todo o mês de abril do ano de 2019 (G1PI, 2019). Como consequência desse cenário
anormal, os moradores do Parque Rodoviário foram surpreendidos, na fatídica e inesquecível
noite mencionada, pela inundação de uma “lagoa” formada dentro de um clube desativado.
Esse fato provocou uma enxurrada, com o rompimento de um muro e uma rua que represava
a água em um clube, situado em um terreno acima do nível das casas. Como percurso natural,
a água, que chegou à altura de oito metros, arrastou tudo pela frente em um efeito cascata.
Casas que ficavam em níveis acima atingiram as casas em níveis inferiores, além de uma onda
de lama, que, pela forte correnteza, levou carros, motos, e deixou o cenário com significativa e
expressiva destruição (Figura 2).

Figura 2 - Resultado da enxurrada que levou carros, motos e destruiu casas, Bairro Parque Rodoviário,
abril de 2019

Fonte: Oliveira (2019).

Enfatiza-se que as fortes chuvas registradas no início do mês de abril/2019 deixaram em alerta
várias cidades do Estado do Piauí, em especial a cidade de Teresina, o que fez o prefeito
declarar uma situação anormal provocada pelo desastre, caracterizada como situação de
emergência, por meio do Decreto nº 18.498 de 4 de abril de 2019. A ordem era agilizar às

971
ações de assistência do município para com as famílias atingidas, devido aos problemas
causados pelo excesso e volume de chuva e aumento do nível da água dos rios Poti e Parnaíba
que percorrem a cidade.
Dias depois do ocorrido, alguns desabrigados tentaram, de alguma forma, encontrar meios de
salvar o que restou da lama que atingira suas casas, ou seja, recuperar o que sobrou da
enxurrada, com a ajuda de voluntários. Dentre os objetos, estavam móveis, roupas e
documentos (OLIVEIRA, 2019).
Ao contrário de outras, a enxurrada de lama interrompeu a vida de duas pessoas moradoras
da região, deixou trinta pessoas feridas, sendo que onze, na noite do ocorrido, deram entrada
no hospital de urgência com casos mais graves. A enchente atingiu cento e trinta e duas
famílias, e afetou aproximadamente um número de quatrocentos e trinta e duas pessoas.
Em entrevista ao Portal Oito e meia, o geólogo da Companhia de Pesquisa de Recursos
Minerais (CPRM) afirmou que a situação do Parque Rodoviário pode ter passado despercebida,
por essas situações só aparecerem em época de chuvas intensas. No local, existe galeria,
porém, não suficiente para vazão de uma grande quantidade de chuva (SAMPAIO, 2019).
Destaque-se que cerca de cinco famílias, equivalente a vinte pessoas, foram abrigadas em uma
sala disponibilizada e improvisada, apertada, pouco ventilada e iluminada, da Igreja Nossa
Senhora Maria Auxiliadora, que se localiza a uma quadra do local do ocorrido (SANTOS, 2019).
A exemplo, uma das sobreviventes da fatalidade, ocorrida na noite do dia 4 de abril, a senhora
Valdirene Pereira e toda sua família, que estava desabrigada e desempregada, ocuparam a sala
da Igreja, literalmente, sua casa foi arrastada pela enxurrada.
Convém lembrar que a senhora Valdirene dormia, quando foi surpreendida pela força da água,
indo parar no “grotão”. Ainda conta, abalada, que a tragédia destruiu seu sonho da casa
própria. Fazia alguns anos que havia construído sua casa, com sacrifício e custo de cinco mil
reais, para vê-la ir embora rápida e drasticamente. Este é o perfil semelhante ao de outras
famílias que moram no Parque Rodoviário.
A senhora Maria Raquel da Silva, desempregada, com uma renda que provém de seu trabalho
de diarista mais o Bolsa Família, que somam R$ 400,00, também ocupou a sala improvisada da
Igreja. Seus filhos foram salvos pelos vizinhos, que os viram submersos e arrancaram o telhado
para ajudá-los, sofrendo apenas danos materiais (SANTOS, 2019). Elas e tantas outras famílias,
após o ocorrido, foram assistidas pela Prefeitura, por meio de cadastramento e identificação
das demandas das vítimas e a realização de encaminhamento para os programas
socioassistenciais, como o Programa Cidade Solidária, que engloba duas linhas de atuação:
família solidária e residência solidária.

972
No primeiro caso, a pessoa a ser acolhida indica outra família que vai recebê-la e a Prefeitura
repassa uma ajuda de custo. O decreto emergencial para ajudar as vítimas autorizou,
temporariamente, o aumento do auxílio de R$ 250,00 para R$ 300,00, por prazo de noventa
dias. No segundo, a família deve indicar um imóvel para alugar, no valor de até R$ 250,00 e a
Prefeitura arca com o pagamento por prazo de um ano.
As vítimas, após serem abrigadas, receberam o acompanhamento do Centro de Referência de
Assistência Social (CRAS) com o fornecimento de cesta básica, kit acolhimento e kit limpeza e
demais programas assistenciais, a depender da realidade de cada um. Um mês depois do
ocorrido, foi realizado o atendimento às 132 famílias vítimas da enxurrada, sendo que setenta
e três famílias foram inclusas no Programa Cidade Solidária, onde não mais há famílias no
abrigo coletivo montado na Igreja Católica do bairro (TERESINA, 2019). Além do cadastro
social, as famílias receberam, na realização de diagnóstico situacional e a oferta de apoio
emocional, assistência médica e emocional, por meio das equipes de Estratégia de Saúde da
Família e do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS).
Na minimização aos danos à saúde pública, controle da qualidade da água e o local dos
desabrigados, o atendimento foi realizado pela Vigilância Sanitária e pela Gerência de
Zoonoses (SAMPAIO, 2019). Além dos órgãos da Prefeitura, a Defensoria Pública do Estado do
Piauí e o Ministério Público do Piauí marcaram presença no atendimento às vítimas, por meio
de uma Comissão voltada para garantir a providência dos direitos das pessoas vitimadas e com
a união das promotorias das áreas dos Direitos Humanos, meio ambiente, criminal e
patrimônio público para acompanhamento do caso, recomendações para a Prefeitura, além de
informações a respeito do local do ocorrido.

4 - Considerações Finais
O laudo elaborado pela perícia do MPPI confirmou que houve um crime ambiental, em razão
da destruição da vegetação, além da erosão do solo em decorrência da enxurrada. Essas
considerações, por serem pertinentes, indiciaram, ainda no ano de 2019, a empresa
responsável por crime ambiental doloso. A empresa de telefonia, responsável pelo clube onde
ficava a lagoa, alegou que fazia vistorias no local, e que a última foi realizada dois meses antes
do ocorrido.
Por parte da administração pública, não havia qualquer relatório ou documento que indicasse
uma ameaça de rompimento. Em audiência no MPPI, o representante da Prefeitura discorreu
acerca da causa do rompimento. Segundo a explicação, uma via foi construída no local pelo
proprietário da área para ligar dois morros, o que teria formado uma espécie de dique. Por

973
causa da escavação da região, possivelmente para retirar areia e pedra para compor a própria
obra, chuvas posteriores iniciaram a formação do lago.
Até outubro de 2020, das oitenta e duas casas atingidas pelas águas, no dia da tragédia, doze
foram totalmente reconstruídas, e quarenta e oito estão sendo reformadas. Doze casas foram
reestruturadas, e vinte e duas famílias ainda vivem em casas de parentes e/ou em casas
alugadas, aguardam por novas moradias, ou na área do clube ou em terrenos próximos,
aguardando o processo de licitação.
Além da construção de casas, haverá um projeto de urbanização para revitalizar toda a área,
construção da infraestrutura, que contará com um anfiteatro, trilha para caminhada, academia
popular, ciclofaixa, praças, além do plantio de cerca de 200 árvores nativas da região. No
último levantamento, feito em janeiro de 2021, as famílias ainda aguardavam a construção de
suas casas. No local existe muito entulho, mato; muitos reclamam da demora das obras e da
falta de priorização das famílias atingidas. Apesar de a empresa ter ido ao local, as obras ainda
não começaram, existe o atraso no pagamento do aluguel solidário e denunciam ameaça de
despejo dos imóveis aos que moram de aluguel.

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emergência” as áreas do Município de Teresina atingidas pelas elevadas enxurradas, conforme IN/MI

975
02/2016, 1.2.2.0.0, e dá outras providências. Diário oficial do Município: Teresina, PI, Ano 2019, n
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em: <https://semplan.pmt.pi.gov.br/teresina-em-bairros/>. Acesso em: 10 out.2020.

976
DO XANGÔ REZADO BAIXO AO XANGÔ REZADO ALTO: entre silêncios,
silenciamentos, resistências
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Carlos Eduardo de Santa Rita Fonseca


Arquiteto e Urbanista, Mestre em Arquitetura Urbanismo (PPGAU/UFAL); Grupo de Pesquisa
Nordestanças (FAU/UFAL); kadudeha@gmail.com

Historicamente, em Alagoas, modalidades de culto de matriz africana foram sintetizadas


através do termo Xangô, ora utilizado por autores clássicos dos estudos afro-brasileiros, ora de
forma pejorativa pela cultura dominante. Em 1912, na Maceió da primeira república e em
meio a disputas políticas locais ocorre a destruição de terreiros, advento que ficou conhecido
como “Quebra de Xangô”. Como consequência ocorre a dispersão de sacerdotes para outros
Estados e o silêncio tático das manifestações religiosas sobreviventes. As ameaças de
silenciamento perduram, assim como a resistência de formas coletivas de enfrentamento
como as celebrações urbanas ligadas a estes cultos. Este artigo propõe a observação de tais
festividades através de relações dialógicas silenciamento-resistência.
Palavras-chave: Celebrações Urbanas; Religiões de Matriz Africana; Quebra de Xangô;
Intolerância Religiosa; Resistências Culturais.

Historically, in Alagoas, forms of worship of African origin were synthesized through the term
“Xangô”, sometimes used by classic authors of afro-brazilian studies, sometimes in a
derogatory wat by the dominant culture. In 1912, in Maceió of the first republic and in the
midst of local politic conflicts, the destruction of “terreiros” took place, an advent that became
known as “Quebra de Xangô”. As consequence, there is the dispersion of priests to other states
and the tatical silence of the surviving religious manifestations. The threats of silencing persist,
as well as the resistance of collective forms of confrontation such as the urban celebrations
linked to these cults. This article proposes the observation of such festivities through dialogical
silencing-resistance relations.
Keywords: Urban Celebrations; Afro-brazilian Religions; “Quebra de Xangô”; Religious
Intolerance; Cultural Resistances

977
1 – Xangô Rezado Baixo
Maceió, 1912. A agitação política no contexto histórico da Primeira República em Alagoas é
marcada pelas disputas oligárquicas locais. O que nos interessa para este artigo inscreve-se
inicialmente nos embates intensificados entre as facções do Governador Euclides Malta e de
Clodoaldo da Fonseca, seu inimigo político apoiado por um agrupamento denominado Liga dos
Republicanos Combatentes composto principalmente por homens pobres e negros. As ações
conformadas por Fonseca e pela Liga supracitada desencadeariam, entre outros adventos
persecutórios, o que Ulisses Rafael (2012) chamou de Operação Xangô, operação esta que
traria terríveis consequências para o patrimônio religioso afro-brasileiro em Alagoas.
O termo “Xangôs” é recorrentemente utilizado por intelectuais clássicos dos estudos afro-
brasileiros como René Ribeiro (RIBEIRO, 2014), Gonçalves Fernandes (1937) e Edison Carneiro
(2008) para designar modalidades de cultos de matriz africana no Nordeste, principalmente
em Alagoas e Pernambuco. Também era utilizado, na maioria das vezes de forma pejorativa,
pela sociedade alagoana da primeira década dos 1900 para designar toda e qualquer prática
religiosa negro-brasileira. Resquícios de tal pejoração ainda sobrevivem na utilização do termo
na contemporaneidade, à revelia das atuais autodenominações por parte dos indivíduos
adeptos de tais religiões, que preferem estar inseridos em categorias como Candomblé,
Umbanda e Jurema, por exemplo.
Retomando a “Operação Xangô”, verifica-se que seu desencadeamento surge através da
aproximação do Governador Euclides Malta com as manifestações afro-alagoanas. De acordo
com as pesquisas de Ulisses Rafael (2012) é possível afirmar que tais religiões gozavam de
certa tranquilidade em sua gestão e que Malta tinha relações amistosas com alguns de seus
sacerdotes, principalmente com Tia Marcelina. Nesse contexto, seus opositores políticos como
Clodoaldo da Fonseca e a Liga dos Republicanos Combatentes acusavam Malta de praticar
“feitiçaria” para manter-se no poder, artifício de acusação recorrente nas disputas políticas no
Brasil em torno de seus conflitos e a inserção da magia.
É sabido que os boatos não precisam ser comprovados em verdade para que suas
consequências ganhem corpo e passem a ações práticas mais efetivas. E assim ocorreu em
Maceió. A Liga dos Republicanos Combatentes promoveu destruição e saqueamento dos
principais terreiros da cidade no ano de 1912, iniciando, entre o primeiro e o segundo dia do
mês de fevereiro, na ocasião das festividades da Orixá Oxum, pelo terreiro de Chico Foguinho,
passando posteriormente pelas casas de João Funfun, Pai Aurélio, Tia Marcelina, entre outros:

978
“Quando ecoou o grito de guerra, ‘Quebra!’, os cabras da Liga que a essa
altura não deviam obediência a nenhuma autoridade, nem terrestre nem
mágica, caíram com toda sua fúria sobre os terreiros. O primeiro a ser
atingido, pela proximidade em que se encontrava, foi o terreiro de Chico
Foguinho, cujos seguidores foram surpreendidos no auge da cerimônia
religiosa, alguns deles ainda com o santo na cabeça. A multidão enfurecida
entrou porta adentro quebrando tudo que encontrava pela frente, fazendo
jus à determinação do líder, e batendo nos filhos-de-santo que se
demoraram na fuga. Diversos objetos sagrados, utensílios e adornos, vestes
litúrgicas, instrumentos utilizados nos cultos, foram retirados dos locais em
que se encontravam e lançados no meio da rua, onde se preparava uma
grande fogueira. Naquela via pública entre rosários e colares de ofás, foi
colocada, ainda a imagem de um santo em forma de menino, que muitos
afirmaram se tratar de ‘Ali Babá’, a qual ficou exposta à zombaria dos que
passavam. Alguns objetos foram conservados para serem exibidos depois na
sede da Liga, outros, em tom de zombaria no cortejo que se armou em
direção a outras casas de Xangô nas proximidades (RAFAEL, 2012, p.32)”.

E assim destruíram também os terreiros de Manuel Coutinho, João Catirina, Manoel Inglês,
Manoel Guleijú, Pai Adolfo, Maria da Cruz, Manoel da Loló. O Mapa a seguir situa, na Maceió
de hoje, o percurso da destruição dos terreiros:

Figura 01: percurso do Quebra de Xangô

Fonte: FONSECA, 2020.

A ação persecutória ficou conhecida como “Quebra de Xangô”, mas também são utilizados
termos como “Quebra-Quebra”, “Quebra de 1912”, “Quebra dos Terreiros” ou apenas

979
“Quebra”. Tia Marcelina, uma das sacerdotisas dos ditos “Xangôs”, se perpetuou como mártir
no imaginário dos indivíduos ligados às religiões de matriz africana em Alagoas pois, além de
ser reconhecida como portadora de um título honorífico significativo para esta cultura
religiosa, a “Coroa de Dadá”, resistiu às investidas milicianas e foi assassinada:
“Na confusão, alguns dos filhos-de-santo conseguiram escapar. Os que
insistiram em ficar, acompanhando tia Marcelina, a qual resistiu ao ataque
permanecendo no lugar, sofreram toda sorte de violência física, sendo a
mais prejudicada a própria mãe de santo, a qual veio a falecer dias depois
em função de um golpe de sabre na cabeça aplicado por um daqueles praças
da guarnição que dias antes haviam desertado do Batalhão Policial. Contam
que a cada chute de um dos invasores, tia Marcelina gemia para Xangô (eiô
cabecinha) a sua vingança e, no outro dia, a perna do agressor foi secando,
até que ele mesmo secou todo (RAFAEL, 2012, p.36)”.

Diante das investidas citadas anteriormente, conformam-se numa só configuração aspectos


históricos respaldados nos fatos e outros, não menos importantes, que se configuram em
termos mitológicos como a própria ascensão de Tia Marcelina enquanto ente coletivo,
estruturante, que aglutina em sua imagem as manifestações de luta por sobrevivência que
resistem às diversas investidas de silenciamento:
“Existem histórias que se revelam, que se entendem por meios que não
conheço e tem seu caminho próprio. É a história da Tia Marcelina. Não
importa se ela era magra, gorda, baixa, alta, se disse isto ou aquilo. Importa
que ela reine soberana na construção da memória e que seu nome é uma
evocação do passado, uma confirmação do presente: existiu, existe e
existirá o povo da macumba falado por Dona Maria do Acais 1. E Tia
Marcelina a diversa na unidade tem sentido e explica: ela passou a ser um
ente estruturante (ALMEIDA, 2012)”.

As consequências do Quebra de Xangô foram e ainda são terríveis para a cultura negro-
alagoana. Inicialmente, ocorre a diáspora de Pais e Mães de Santo para outros estados
brasileiros onde as perseguições eram mais brandas, os traumas menos evidentes e as
sequelas menos sentidas. Gonçalves Fernandes (1937) reconheceu nessa Maceió pós-Quebra
uma nova modalidade de culto: o Xangô Rezado Baixo, fazendo alusão ao calar tático das
sonoridades do culto, pois sem gritos de êxtase, sem música, sem atabaques poderiam zelar
pela manutenção de seus cultos e amenizar as ameaças que, no transcorrer da temporalidade
mudam de forma, mas continuam.
No âmbito destas ameaças de silenciamento, esquecimento e mordaça, mas também diante
da presença resistente de Tia Marcelina, proponho um salto para a Maceió contemporânea,
onde articula-se enquanto existência e tática, formas coletivas de enfrentamento das novas

1
Entidade chefe da Jurema de Pai Manoel Xoroquê, localizado no Bairro do Benedito Bentes em
Maceió.

980
formas de “Quebra” dos terreiros. Dentre estas, abordo três celebrações urbanas das religiões
de matriz africana – Lavagem do Bonfim, no Bairro do Poço; Festa das Águas na orla marítima
entre os bairros Ponta Verde e Pajuçara; Xangô Rezado Alto, no bairro do Centro - por mim
sintetizadas em três relações dialógicas: porta fechada – perfume; trincheira – mar; silêncio –
grito.

2 - Porta Fechada – Perfume


A Lavagem do Bonfim de Maceió encaminha-se para sua vigésima edição, e atualmente ocorre
no segundo domingo do mês de janeiro. Acompanhei boa parte delas. Lembro de minha
sensação de estranhamento quando descobri que a capital alagoana tinha sua própria versão
desta celebração urbana tão famosa no contexto citadino de Salvador, Bahia. Devido minha
aproximação com a religiosidade afro-brasileira, eu sabia que se tratava de uma manifestação
no espaço público de parte das louvações ao Orixá Oxalá, um deslocamento em direção a
cidade dos ritos lustrais denominados Águas de Oxalá que ocorrem dentro das casas de culto
de matriz africana.
O que eu desconhecia era que sua manifestação alagoana foi idealizada e é organizada por Pai
Célio de Iemanjá (Babá Omintoloji), Babalaorixá muito conhecido em Alagoas e que se
tornaria, em momentos posteriores, um dos interlocutores de minha pesquisa de mestrado
(FONSECA, 2020). Por sua vez, Pai Célio trouxe tal celebração para Maceió – na Praça do
Bonfim, no bairro do Poço, de fronte a Igreja do Bonfim - sob influência de seu Babalaorixá
pernambucano, Raminho de Oxóssi, que a realiza na cidade de Olinda.
Para além da beleza de tal celebração urbana e dos estímulos sensoriais que a mesma
proporciona, uma inquietação sobressaia: por qual motivo a Igreja não está aberta? A grande
porta de acesso central, em madeira, tinha seu peso reforçado e sugeria uma indiferença, um
silêncio assoberbado perante aqueles que lavavam seu pátio e poucos degraus com águas,
flores e perfumes.
Os ritos e rituais ali realizados eram marcadamente sincréticos: a associação de Oxalá com
Nosso Senhor do Bonfim; a escolha da edificação-igreja; o andor que, nas primeiras edições do
evento, carregava a imagem solitária deste Nosso Senhor e, posteriormente, nas últimas
edições, tinha seu espaço dividido com o Orixá Oxalá; a condução destas representações
escultóricas ao interior do terreiro de Pai Célio, ou de Mãe Mirian. Entretanto, mostrava-se um
sincretismo “unilateral”, adotado pelas religiões de matriz africana ali representadas, mas
ignoradas pela igreja católica, que fechava suas portas.

981
Os estudos de Bachelard (1988), de Juhani Pallasmaa (2017; 2018) e Guattari (2012) –
ressalvando aqui seus enfoques específicos – abordam o edificado na perspectiva de suas
narrativas, ou ainda, das interlocuções entre indivíduo-arquitetura. Neste aspecto, a porta
apresenta um interessante simbolismo, presente também no senso comum, estreitamente
ligado a ideia da receptividade: uma porta aberta é um convite, uma porta fechada é um aviso.
“Entre” sugere um diálogo. “Não entre”, para além de uma proibição, é um bloqueio de fluxo.
Diante do exposto, em minha pesquisa do mestrado aproveitei a oportunidade para investigar
melhor esta porta fechada como um eloquente símbolo da ausência da igreja na Lavagem do
Bonfim, a materialização de um silêncio condensada “da porta para dentro” da edificação em
contraposição à adesão festiva que ocorre “da porta para fora”. Verifica-se, ao menos uma
tentativa de intransponibilidade, fronteiras bem demarcadas, embora os duplo-borramentos
sejam inevitáveis. Pai Célio (FERRARE, 2016) em entrevista que fiz para o Projeto de
Salvaguarda do Patrimônio Imaterial de Alagoas afirmou que, a depender de quem é o
sacerdote católico, estas relações ficam mais ou menos permeáveis:
“[...] mandei ofício pro clero, mandei ofício para o bispo, consegui através
das lavagens, eu consegui mudar a data da festa do santo da igreja lá,
porque todo Senhor do Bonfim a festa é em janeiro, nós éramos a única
capital que fazia a festa do Senhor do Bonfim em novembro, a única capital
do Brasil! Então o padre que tava lá percebeu isso com a Lavagem do
Bonfim e transformou pra janeiro, só que esse outro padre que está aí
voltou pra novembro, porque coincide com o Bom Jesus dos Navegantes de
Penedo e ele não quer a festa concorrendo com o povo de lá. Houve uma
conciliação lá entre eles e que voltou agora pra novembro. Já se vão 16
anos”.

Observa-se, entretanto, diante do depoimento de Pai Célio, que a porta em alguns momentos
pode ficar entreaberta. Mas nunca está aberta totalmente e as delimitações das fronteiras
encontram-se sempre demarcadas. Em contrapartida, o silêncio representado pela porta
diante das sonoridades dos atabaques e dos cânticos a Oxalá, Oxalufã e Oxaguiã não cessa de
atuar. Para mim – diante de meus acompanhamentos empíricos do evento – eles atuam como
manifestação remanescente das inúmeras tentativas de silenciamento por parte das culturas
hegemônicas. Ainda que as mordaças mudem de roupagem, são, da mesma forma, mordaça.

982
Figura 02: Lavagem do Bonfim em Maceió-AL

Fonte: FONSECA, 2020.

Compartilhando ou não de minha concepção sobre a porta enquanto materialização simbólica


do silêncio e estratégia hegemônica de silenciamento, os adeptos das religiões de matriz
africana ou comunidade de santo, resistem ativamente. Desse modo, suas celebrações
urbanas sempre estão inseridas num contexto de luta. No caso da Lavagem do Bonfim, as
conformações sincréticas não são ingênuas e, às louvações a Oxalá, somam-se também
cortejos contra a intolerância religiosa.
Nesse sentido – e aqui aproveito para inserir na configuração simbólica da porta um elemento
do corpus doutrinário-litúrgico do Candomblé – as portas das religiões de matriz africana estão
sempre abertas. Orixá não conhece porta. Porém, há sempre uma palha desfiada, com pontas
desiguais e consagrada em rito próprio, encimando as esquadrias, o mariwô, para afastar
energias negativas e espíritos perturbadores.

3- Trincheira – Mar
Se o bairro do Poço com sua Praça e Igreja do Bonfim é o espaço público do rito lustral em
homenagem a Oxalá, o Mar e sua orla abrigam, no dia 8 de dezembro, as celebrações em
torno das Orixás Iemanjá e Oxum, a depender do calendário litúrgico de cada casa de culto.
Tais celebrações, as mais antigas do Estado de Alagoas, ocorrem, desde suas primeiras
manifestações, de modo espontâneo. Em determinado momento – e aqui fica clara a minha
incapacidade de delimitar de modo mais preciso “desde quando” – demarcou-se centralidade
em evento denominado Festa das Águas, organizado por representantes das religiões de
matriz africana em Maceió.
Tal centralidade, em marco edificado, ocorre na Praça Multieventos, situada mais ou menos no
meio da orla marítima dos bairros Ponta Verde e Pajuçara. Trata-se de porção citadina de forte

983
valorização imobiliária e grande apelo turístico, com bares, hotéis e restaurantes. No momento
da festividade em questão, as celebrações aos Orixás reconfiguram a paisagem do local,
inscrevendo os códigos simbólicos das religiões de matriz africana. Tais religiões, intimamente
ligadas às camadas periféricas não só da capital alagoana, mas de vários municípios, se
apropriam dessa faixa elitizada onde, pelo menos na última década, encontram várias formas
de resistência por vezes do poder público, outras por representações religiosas hegemônicas.
Ou por ambas.
Em minha dissertação de mestrado escolhi algumas das formas mais representativas destas
tentativas de silenciamento que atentam contra a manutenção das celebrações a Iemanjá e
Oxum na ocasião do 8 de dezembro em Maceió. Em 2012, havia rumores de que o poder
público iria proibir a festa e, de fato, este poder tentou efetuar uma série de proibições –
noticiadas pelos jornais televisivos locais - que limitavam sua livre manifestação (delimitação
de local específico, delimitação de horário, entre outros), o que resultou numa manifestação
de religiosos e simpatizantes no Fórum da cidade, o que garantiu mobilização tática com apoio
jurídico para a manutenção da festa, utilizando o Estatuto da Igualdade Racial como
referência. Mais tarde, em 2016, segmentos neopentecostais investiram contra a Festa das
Águas, desejando realizar no mesmo dia, local e horário, o “dia da bíblia” e a disputa foi,
novamente, judicializada com ganho de causa para os “macumbeiros”.
Os dois exemplos supracitados revelam apenas as tentativas mais explícitas de silenciar as
manifestações religiosas afro-alagoanas, principalmente quando estas se apropriam de áreas
valorizadas e, portanto, de maior presença das culturas hegemônicas em Maceió. Não são
raras as vezes em que, juntamente com a festa, monta-se barraca com assessoria jurídica para
que tais agrupamentos religiosos tenham suporte legal para realizar seus ritos em espaço
público. Conforma-se, assim, no contexto da Festa das Águas, permanentes disputas
territoriais onde nem sempre são ressalvadas as devidas proporcionalidades, posto que as
hegemonias costumam estar melhor inseridas nos poderes locais.

984
Figura 03: Festa das Águas

Fonte: FONSECA, 2020

Estas dinâmicas entre territórios espacializam as instâncias de poder e hierarquizam o espaço


citadino, revelando as contradições no termo “espaço público” e a mútua contaminação
público-privado com o objetivo de oprimir culturas contrahegemônicas, negras,
historicamente perseguidas pela dominação. Mais uma vez as mordaças se manifestam e as
diversas camadas de silêncio e silenciamento atuam enquanto ameaça constante e
recorrente.

4 - Silêncio – Grito: Xangô Rezado Alto


Até aqui segue-se o fio de Tia Marcelina enquanto o desatar do emaranhado que costura as
ameaças de silenciamento e suas respectivas resistências. Sua imagem torna possível
identificar com mais clareza as dicotomias consequentes da presença negra em Maceió. Nesse
sentido, Tia Marcelina foi vítima, mas tornou-se mártir. Foi agredida, mas lutou. Teve seu
terreiro destruído, mas seu exemplo tem inspirado a manutenção de muitos outros. Mas o
principal é que Tia Marcelina, enquanto ente coletivo e estruturante, denuncia, sem cessar, o
insistente ideal persecutório e, em contrapartida, a necessidade de resistência.
Diante de tais questões que o Xangô Rezado Alto foi criado enquanto celebração urbana no
Centro da cidade de Maceió e, algumas vezes em seu entorno, apresentando contexto peculiar
de ações de resistência e autoafirmação cultural pautadas na memória histórica do trágico
evento da destruição dos terreiros de Maceió e seu entorno, advento conhecido como Quebra
de Xangô, tratado no início deste artigo. O evento foi idealizado e realizado em 2006 pelos
professores Clébio Araújo2 e Edson Bezerra como resposta a provocações em torno dos 96
anos do Quebra. Tornaria a ocorrer anualmente a partir de 2012 com a reorganização do

2
Clébio, da mesma forma que Pai Célio anteriormente, foi meu interlocutor no contexto do Projeto de
Salvaguarda do Patrimônio Imaterial de Alagoas, entrevista na qual retiro estas informações.

985
evento através da Universidade Estadual de Alagoas (UNEAL) (FONSECA, 2020), ano
significativo que marca o centenário do Quebra de Xangô e que o Governo do Estado de
Alagoas elabora um pedido formal de desculpas pelo evento.
Concordo com Clébio quando este afirma que o Xangô Rezado Alto, para além de uma
festividade, é um ato essencialmente político. Em primeira análise parece contraditório que
estejamos celebrando algo de memória tão trágica e que trouxe consequências significativas
para a cultura afro-alagoana. Entretanto, conforma-se uma resposta contemporânea que opõe
a um passado onde o Xangô era rezado baixo. Apesar das adversidades, agora é possível ir às
ruas e, através do grito, louvar Xangô, o Orixá da Justiça que continua sendo amplamente
cultuado.
É significativo política, histórica e culturalmente que as mesmas ruas que expuseram os
objetos saqueados dos terreiros em 1912, que abrigaram fogueiras para queima-los, passem
agora a abrigar cortejos contra a intolerância religiosa, manifestações da cultura negra e
louvores aos Orixás. Ainda que os ideais hegemônicos persecutórios perdurem, estes
momentos servem para articulação das táticas de resistência, são momentos em que todos os
indivíduos envolvidos tem oportunidade de se enxergar enquanto grupo e possam atualizar
seus mitos, renovar suas forças.

Figura 04: Xangô Rezado Alto

Fonte: FONSECA, 2020.

Assim, observa-se do Xangô Rezado Baixo ao Xangô Rezado Alto que, diante das diversas
camadas de atuação do silêncio e das diferentes estratégias de silenciamento, sempre existiu e
sempre haverá resistência. Entretanto, é preciso enfatizar o óbvio: tais culturas não deveriam
ter motivos para resistir e o constante ameaçar das mordaças é que deve ser silenciado.

986
Referências

ALMEIDA, Luiz Sávio de. “Meu Velho Diário e a Macumba nas Alagoas (III)”. Tribuna Independente.
Maceió, 18 mar. 2012. Disponível em <http://contextotribuna.blogspot.com.br/2012/05/religiao-afro-
macumba-nas-alagoas-luiz.html>. Acesso em: 12 fev. 2021.

FERNANDES, Gonçalves. Xangôs do Nordeste: investigações sobre os cultos negro-fetichistas do Recife.


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937.

RIBEIRO, Celina (Org.). René Ribeiro e a Antropologia dos Cultos Afro-Brasileiros. Recife: Editora da
UFPE, 2014.

FONSECA, Carlos Eduardo de Santa Rita. Arquitetura, Cidade e Rito: espacializações do sagrado afro-
brasileiro em Maceió-AL. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal de Alagoas. Maceió, 2020.

PALLASMAA, Juhani. Essências. São Paulo: Gustavo Gili, 2018.

PALLASMAA, Juhani. Habitar. São Paulo: Gustavo Gili, 2017.

GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Editora 34, 2012.

BACHELARD, Gaston. O Novo Espírito Científico; A Poética do Espaço. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

FERRARE, Josemary Omena Passos. Relatório Técnico do Inventário Nacional de Referências Culturais –
ALAGOAS, sítio 3. Maceió, Ufal/IPHAN, 2016.

BRASIL. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Estatuto da Igualdade Racial. 4. ed. Brasília: Secretaria de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial, 2012.

CARNEIRO, Edison. Candomblés da Bahia. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

RAFAEL, Ulisses. Xangô Rezado Baixo: religião e política na primeira república. Maceió: EDUFAL, 2012;
São Cristovão: Editora UFS, 2012.

987
EFEITOS DA COVID-19 EM ÁREAS DE HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL NO INTERIOR
DO BRASIL
Nó 3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Clivson Ruan Macedo de Souza


Graduando em arquitetura e urbanismo; Universidade Federal de Alagoas;
clivsonmacedo@hotmail.com.

Paula Gabrielle Luz Oliveira


Graduanda em arquitetura e urbanismo; Universidade Federal de Alagoas;
paula.oliveira@fau.ufal.br.

Débora de Barros Cavalcanti Fonseca


PhD em Planejamento Urbano, Professora da Universidade Federal de Alagoas;
debora.cavalcanti@fau.ufal.br.

Devido à pandemia de Covid-19, permanecer em casa virou uma obrigação cívica, levando a
população a construir estratégias que desnudaram ainda mais as desigualdades sociais. A
pesquisa apresentada neste artigo tem o objetivo de compreender como a pandemia afeta a
vida de moradores de conjuntos habitacionais em pequenas cidades no interior do Brasil,
tendo como lugar de estudo Jacobina e Seabra na Bahia. Buscou-se identificar como as
condições materiais e sociais dessas populações afetam o combate ao vírus. Para este fim
foram aplicados questionários em conjuntos habitacionais do Programa Minha Casa, Minha
Vida, um em cada cidade, procurando identificar as mudanças ocorridas em quatro aspectos
da vida dos moradores: casa, trabalho, lazer e futuro.
Palavras-chave: pandemia; habitação social; pequenas cidades; Bahia.

Due to the Covid-19 pandemic, staying at home became a civic obligation, leading the
population to build strategies that further exposed social inequalities. The research presented
in this article aims to understand how the pandemic affects the lives of residents of housing
estates in small towns in the interior of Brazil, with Jacobina and Seabra in Bahia as the study
place. We sought to identify how the material and social conditions of these populations affect
the fight against the virus. To this end, questionnaires were applied to housing units of the
Minha Casa, Minha Vida Program, one in each city, seeking to identify the changes that
occurred in four aspects of the lives of residents: home, work, leisure and the future.
Keywords: pandemic; social housing; small cities; Bahia.

988
Introdução
Em 2020 o mundo foi surpreendido pela pandemia de Covid-19, com isso permanecer em casa
passou a ser a principal medida preventiva contra o vírus. Essa nova rotina trouxe novos
desafios diretamente ligados às questões da habitação, das relações comunitárias e da
mobilidade urbana; temas que serão abordados neste artigo.
As dificuldades do isolamento agravam-se em locais onde as casas não possuem os requisitos
necessários para o isolamento físico, e estão localizadas em áreas de difícil acesso a
equipamentos públicos para o atendimento de necessidades básicas.
Nesse sentido, este artigo busca refletir como a pandemia de Covid 19 tem influenciado o
cotidiano de quem vive em habitações de interesse social, levando em consideração
problemas históricos de segregação espacial e os problemas frequentes que vem se
apresentando em conjuntos habitacionais projetados dentro do Programa Minha Casa Minha
Vida (PMCMV).
Para isso tomamos como lócus de pesquisa os Conjuntos Habitacionais Lagoa Dourada e Villa
Nova, em Jacobina (BA) e Seabra (BA), respectivamente. Ambos estão localizados no interior
do Estado, onde podemos observar as particularidades da atual crise da saúde em pequenas
cidades do interior brasileiro.

1 – Negação do direito à cidade e a moradia digna


Embora a pandemia de Covid 19-seja um problema recente, a desigualdade sócio-espacial nas
cidades brasileiras é um problema histórico que afeta a população desde a problemática e mal
resolvida abolição da escravatura, que deixou a população negra às margens da sociedade,
passando a ocupar áreas periféricas. Esse abandono trouxe modificações para as cidades que
até hoje podem ser notadas. Como afirma Carril (2006):
“A favela, seguida do cortiço, tornou-se um dos primeiros núcleos de
habitação da população recém-egressa da escravidão. Trata-se de núcleo
habitacional surgido desordenadamente, em terreno público, de domínio
não definido ou mesmo alheio, localizado em área sem urbanização ou
melhoramentos.” (CARRIL, 2006, p. 230)

Com a industrialização brasileira se desenvolvendo a partir da década de 1950, a população


deixa de ser rural e passa a ser urbana. Segundo o IBGE, a parcela de população urbana passou
de 31,2% em 1940 para 67,6% em 1980. Por não haver moradias adequadas e
economicamente acessíveis para todos, essa migração gerou uma expansão urbana
desenfreada que marcou o avanço do processo de periferização no país. É necessário entender

989
a expansão das cidades para observar como esse processo pode demarcar as desigualdades.
Para isso analisamos os conceitos de expansão urbana de
Japiassú e Lins (2004):
Expansão urbana é um processo pelo qual as cidades passam
constantemente desde o momento de sua existência, podendo ser em
maior ou menor intensidade. De toda forma implica em crescimento. Esse
crescimento pode ser analisado por diversas perspectivas, como, por
exemplo, pelo aspecto demográfico. Um dado que muitos autores utilizam
para analisar a expansão urbana das cidades brasileiras (GROSTEIN, 2001;
BARCELLOS, 2004; BRITO, SOUZA, 2005; COSTA, 2005; COPQUE, et al, 2011).
Ou ainda, pelo aspecto territorial, crescimento físico do território da cidade.
Ambos os aspectos estão relacionados (SANTORO, 2012, p.75), quando a
cidade cresce territorialmente, há uma redistribuição populacional pelo
território urbano. (JAPIASSÚ; LINS, 2004, p. 17).

De ambas as formas, esse processo está atrelado a aspectos econômicos, a fim de atender aos
interesses do capitalismo. Dessa forma, o processo de urbanização se desenvolve para servir à
economia e não à sociedade, fazendo com que a “redistribuição de pessoas” induza a
população socialmente vulnerável a habitar áreas mais precárias e distantes do centro.
Ao se pensar nas pequenas cidades, pode-se imaginar que essas disparidades não estão
presentes devido a sua dimensão territorial que levaria a população a habitar e vivenciar os
mesmos espaços igualmente. Contudo essas problemáticas também abrangem as cidades de
pequeno porte, logo, o fenômeno da segregação urbana atinge a sociedade como um todo
(CAVALCANTI, 2010). Para tentar solucionar os problemas habitacionais algumas medidas
foram tomadas pelo Governo Federal, principalmente no fim da primeira década dos anos
2000. A pesquisa aqui apresentada tem seu foco no Programa Minha Casa Minha Vida
(PMCMV), lançado em março de 2009 pelo Governo Lula.
O programa foi financiado pela CAIXA em parceria com municípios, empresas e entidades da
sociedade civil organizada. Os beneficiários foram selecionados pelas prefeituras e as famílias
interessadas deveriam ter renda de até R$ 5 mil mensais e não possuir casa própria ou
financiamento, nem ter recebido nenhum benefício habitacional do governo anteriormente.
Ao longo dos anos, foram entregues mais de 4 milhões de unidades habitacionais, o que é
considerado um recorde no caso brasileiro.
Contudo a maioria dessas unidades foram alvo de críticas, principalmente por estarem
situadas em áreas nas margens da cidade, em alguns casos até mesmo fora do perímetro
urbano, e por não oferecer infraestrutura, equipamentos e serviços essenciais de fácil acesso,
tais quais escolas, serviços de saúde, equipamentos culturais e empregos como pontua
Maricato (2009):

990
É por esse motivo, pelo fato de que os pobres não cabem nas cidades, que
os conjuntos habitacionais tem sido construídos em terras baratas a longas
distâncias. Levar a cidade até eles resulta socialmente muito caro, mas essa
lógica de extensão da cidade alimenta aquilo que ocupa o lugar central da
desigualdade urbana: a valorização imobiliária e fundiária. Grandes fortunas
no Brasil se fazem sobre a renda imobiliária que decorre do crescimento
urbano mas especialmente do investimento público sobre certas áreas da
cidade. (MARICATO, 2009, p. 01).

Dessa forma a tentativa de reparar esses problemas continua excludente, pois, continua
beneficiando os grandes investidores imobiliários. Além disso, esses espaços sofrem por serem
estigmatizados, vistos como conjunto habitacional dos favelados (FERREIRA, 2006).
Esses problemas refletem diretamente no cotidiano dos moradores de conjuntos habitacionais
de interesse social, e são ainda mais agravados neste cenário de pandemia, pois a população
encontra-se desprovida das condições básicas (habitacionais, urbanas e sanitárias) para
enfrentar a situação. Em pequenas cidades onde o sistema de saúde, tanto público quanto
privado, não é desenvolvido como em capitais e metrópoles, a problemática apresenta outras
particularidades.

2 – Estudos de caso
2.1 Conjunto Habitacional Vila Nova
Localizada na Chapada Diamantina, Seabra é uma cidade do Estado da Bahia, possui uma área
de 2.402,170 km² e segundo o Censo de 2010 uma população de 41.798 pessoas e uma
densidade demográfica de 16,60 hab/km². Chamada pelos seus habitantes de "Cidade das
Rosas", está situada no centro geográfico da Bahia. Seu surgimento se dá a partir da
necessidade da metrópole durante o século XVIII de uma estrada que ligasse os dois núcleos
de exploração aurífera das minas de Jacobina e Rio de Contas. O local tornou-se ponto de
pouso para viajantes em trânsito para as minas, formando-se o povoado denominado
“Passagem de Jacobina”. Este povoado, já com o nome de Campestre, futuramente viria a se
chamar Seabra (1931).
A sua ótima localização geográfica, fez com o que a cidade tenha se tornado o polo comercial
da região da Chapada Diamantina, comportando órgãos públicos e privados, como hospitais,
universidades, bancos, organismos federais, etc. que atende populações vizinhas,
desempenhando assim um importante papel na economia regional. A economia local baseia-se
em atividades ligadas aos setores primário e terciário da economia. As transações financeiras
que ocorrem em períodos de festas tradicionais, como São João e Argolinha (Consiste em uma
corrida de cavalos com jogo de argolas. A corrida funciona com homens montados em seus

991
cavalos em alta velocidade, e possui como objetivo retirar com a ponta de sua lança pequenas
argolinhas do tamanho de um anel, presas por barbantes em um poste.), estimulam
positivamente o desenvolvimento econômico da cidade. O número expressivo de visitantes
que passam pela cidade, faz com o que a rede de hotelaria também tenha destaque na
economia. O grande número de lojas varejistas da cidade resulta em uma participação
significativa do comércio no PIB municipal. Além disso, a cidade tem uma agricultura forte,
dando-se destaque para a agricultura familiar que é responsável pela renda de famílias que
comercializam seus produtos na feira livre que acontece todo sábado. O município conta com
um PIB per capita de R$12.018,57 (IBGE 2018), e um Índice de Desenvolvimento Humano
(IDHM) de 0,635 (IBGE 2010).
Com o crescimento e desenvolvimento da cidade, problemas como segregação sócio espacial e
mobilidade se tornam questões presentes em Seabra. No decorrer das décadas, o tecido
urbano foi se modificando em paralelo com as pressões naturais e políticas por expansão da
cidade e com as reconfigurações das classes sociais. Com o aumento populacional, cresceu
junto a necessidade de novos empregos, investimentos na saúde, educação, lazer e moradia
digna para seus habitantes.
Diversos instrumentos internacionais (Declaração Universal dos Direitos do Humanos de 1948;
Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas
(PIDESC) de 1966 e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas
de 1966) reconhecem o direito à moradia como necessário para a existência humana com
dignidade. O art. XXV da Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que todos têm
direito a um padrão de vida que seja capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar,
incluindo a alimentação, o vestuário e a moradia (ONU, 1948).
A Declaração americana de direitos e deveres do homem (OEA, 1948, p. 3) garante em seu
artigo 11 que “toda pessoa tem direito a que sua saúde seja resguardada por medidas
sanitárias e sociais relativas à alimentação, roupas, habitação e cuidados médicos
correspondentes ao nível permitido pelos recursos públicos e os da coletividade”. Entende-se
que o direito à vida não pode ser compreendido como mera sobrevivência. É necessária a
existência com dignidade, sendo que os tratados internacionais têm colocado a alimentação, o
vestuário e também a moradia como imprescindíveis para a existência humana dentro desses
parâmetros. O tema habitação tornou-se, portanto, um tema de direitos humanos uma vez
que um local adequado para viver possibilita a própria dignidade, além de possibilitar o gozo
de outros benefícios de natureza jurídica. (ONU-Habitat, 2010).

992
Diante destas informações, a Prefeitura de Seabra no ano 2008 propôs-se a fornecer
habitações para a população que ainda não possuía uma moradia própria. Durante a gestão do
Prefeito Dalvio Pina Leite foi dado início à construção de 360 casas. 80% das casas foram
entregues ainda durante o seu mandato, e os 20% restantes foram entregues no ano seguinte,
na gestão do Prefeito José Luis Maciel Rocha.
Essas habitações foram financiadas pelo Programa de Subsídio à Habitação de Interesse Social
(PSH), que é uma linha de crédito direcionada à produção de empreendimentos habitacionais.
Possui como objetivo principal subsidiar a produção de empreendimentos habitacionais para
populações de baixa renda, nas formas de conjunto ou de unidades isoladas. Em parceria com
o setor público, sob a forma de recursos financeiros, bens ou serviços, o PSH viabiliza a
aquisição e/ou produção de casas populares para a população de baixa renda.
O investimento realizado beneficiou 360 famílias seabrenses, aproximadamente 879
moradores segundo dados obtidos com as Secretarias Municipais de Saúde e de Assistência
social. O conjunto habitacional foi construído nas proximidades do bairro da Boa Vista, criando
assim a comunidade Vila Nova. Seguindo a mesma lógica de grande parte das cidades
brasileiras, o Conjunto Habitacional Vila Nova foi construído às margens urbanas de Seabra,
em uma localização periférica e com baixos investimentos em infraestrutura urbana. A
localização não permite expectativas de crescimento e desenvolvimento porque o comércio
local, órgãos públicos e os grandes investimentos crescem para o outro lado da cidade. Para
Serpa (2007), no processo de metropolização os espaços são consolidados em dois tipos,
ocupados pelas classes média e alta, sendo dotado de infraestrutura, e os ocupados por
pessoas com renda baixa, que sofrem com as precariedades da estrutura urbana básica.
O bairro está a dois quilômetros de distância do centro da cidade, uma distância significativa
se comparada aos outros bairros, levando em conta o baixo poder aquisitivo da população
residente, o que afeta de forma direta a mobilidade no acesso ao centro urbano. No cenário
atual de pandemia Covid-19, através das entrevistas aplicadas é possível observar quanto a
segregação urbana e a consequente falta de mobilidade afetam significativamente o dia a dia
da população.
Um dos tópicos mais destacados pelos entrevistados, é a distância do bairro aos principais
postos de saúde, escolas, igrejas, mercado e farmácias da cidade. Por sua localização
relativamente afastada, a comunidade aponta dificuldades no acesso a estes
estabelecimentos, principalmente a postos de saúde e supermercados. A insatisfação pode ser
observada nos relatos:

993
“Longe viu? Principalmente o posto de saúde. Esse mesmo que está
construindo aqui no bairro está fechado, se eu quiser levar esse menino aqui
para vacinar preciso levar lá no bairro Vasco Filho, é longe!” (Moradora 06);

“É bem distante, agora que estou fazendo o pré-natal é bem complicado


para eu ir ao posto, o posto que vou é lá para a Rua da Palha, e eu vou
andando. Já em relação ao mercado a gente acha um ou outro aqui perto,
porém são pequenos e não possuem variedade, os melhores mesmo são lá
no centro. (Moradora 09);

“Longe, só lá no centro, tem que sair daqui do bairro para conseguir ter
acesso” (Morador 18)

“É longe, ainda mais para subir com as compras.” (Moradora 16)

O questionamento da distância de suas casas para estes estabelecimentos se torna um fator


importante na compreensão de vida dessa população e da forma como eles vivem a cidade.
Em outro momento do questionário, pergunta-se sobre os meios de transporte utilizados por
eles para se deslocarem ao centro da cidade ou ao trabalho. Após a tabulação e análise das
informações recolhidas é possível observar que a principal forma de locomoção da população
é a pé. 48% dos entrevistados afirmam ir para o trabalho ou ao centro da cidade andando,
enquanto 10% utiliza a bicicleta, 35% motocicleta (ressaltando que alguns moradores não
possuem motocicleta própria e usam moto táxi) e apenas 7% utilizam carro para se locomover.
O modo de locomoção dos moradores afeta diretamente a frequência das viagens. Se não há
facilidade no acesso, suas vidas passam a girar em torno do próprio bairro, indo ao centro só
quando é extremamente necessário. Desta forma esta população não está presente nos
centros urbanos. Nas entrevistas os moradores relatam que durante o período pandêmico
passaram a ir com menos frequência ao centro da cidade, não por causa da pandemia, mas sim
pela dificuldade em se locomover.
“Muito difícil, mas sempre a gente está indo quando tem precisão.”
(Morador 01);

“Não, já tem nove meses, eu vou de mês em mês só para ir ao mercado fazer
minhas compras.” (Moradora 16);

“Vou só quando é bem necessário, fazer compras só” (Moradora 24)

“Uma vez no mês” (Moradora 03)

“Tem quase um mês que fui lá, não sou muito de sair não.” (Moradora 25)

994
Ao não se mover nos territórios da cidade, o acesso ao lazer fica restrito apenas à casa e ao
bairro onde vive. No projeto do Conjunto Habitacional Vila Nova, foi prevista a construção de
uma praça e de uma quadra de esportes. Porém, durante as visitas realizadas ao bairro, não se
identificou a existência de qualquer praça e a quadra de esporte existente não devia ser
classificada como tal, desprovida de condições mínimas para seu uso. Ao serem questionados
sobre as opções de lazer na quarentena ou fora dela, 2/3 dos moradores afirmaram não
realizar qualquer atividade de lazer e o restante descreveu como lazer o uso de internet, TV, as
idas à roça, o ficar em casa, assar carne e ir ao centro.
“O que é lazer? ahh, internet, celular e tv.” (Moradora 20);

“Não tenho, o máximo de lazer que possuímos é ir ao centro da cidade.”


(Moradora 22);

“Só a casa, a gente praticamente não sai, até mesmo porque não tem para
onde sair e aqui na comunidade não tem nada de lazer, não tem, não tem
uma praça para a gente levar as crianças.” (Moradora 09);

“É bem difícil, é mais campo e quadra, mas a quadra que tem aqui no bairro
não possui uma infraestrutura boa.” (Morador 18)

“Os meus filhos ficam só na internet” (Moradora 23).

2.2 Conjunto Habitacional Lagoa Dourada


O município de Jacobina está localizado no centro-norte do Estado da Bahia na Mesorregião
Centro-Norte Baiano, a 330 km de Salvador, capital baiana. Tem uma área de 2.359,965 km²,
79.247 habitantes (IBGE, 2013) e densidade demográfica de 33,60 hab/Km² (IBGE, 2010). Seu
PIB per capita equivale a 15.180,12 R$ (IBGE,2017) e seu IDH é 0,649 (PNUD, 2010).
Jacobina possui 22 povoados e 5 distritos que compõem a sua área urbana; são eles: Jacobina,
Catinga do Moura, Itaitu, Itapeipu e Junco sendo que, em 2010, 60% da população morava no
Distrito Sede. A população urbana do município de Jacobina só passou a superar a população
rural ao longo da década de 1980, e é superior à rural somente nos Distritos Sede e Junco.
A origem do município de Jacobina tem seu início por volta do século XVI e reflete a história de
nosso país marcado pela expansão da criação de gado e pela exploração de ouro. No interior
da Bahia, esse fato se repetiu, onde os boiadeiros foram adentrando ao território do interior
baiano e segundo Lemos (1995) “quando as boiadas faziam as suas paradas à beira dos rios,
fincavam-se os ‘currais’, iniciando-se as fazendas que deram origem a muitas das atuais
cidades (LEMOS, 1995, p.19)”. Não apenas Jacobina, mas várias cidades em todo o país

995
surgiram dessa forma, como ponto de parada das criações de gado. Décadas mais tarde,
quando algumas fazendas já haviam sido estabelecidas, Fonseca (1996, p. 107) aponta que
“são descobertas 4 palhetas de ouro em terras de Jacobina”, assim a região norte da Bahia
ganhou destaque no cenário baiano e nacional.
A chegada da linha férrea em 1920 se tornou um marco de crescimento urbano e econômico
para cidade, que passou a receber mais investimentos e ter maior oferta de emprego perante
as cidades circunvizinhas. Assim, começaram a surgir desordenadamente os primeiros bairros
distribuídos pela cidade, muitos distantes da área central, pois a valorização dos terrenos pelos
grandes proprietários de terra interferiu nesse delineamento do espaço urbano.
Ao final dos anos 1970 começam a surgir obras do governo estadual que beneficiariam a
reabertura da mineração, o que reacendeu a expansão da cidade. Nesse momento foram
construídos pelo Estado alguns conjuntos habitacionais para amenizar o crescimento
desordenado da população que saía da zona rural em busca de uma vida com mais
oportunidades na cidade. Contudo, a maioria desses conjuntos sofriam e ainda sofrem de
sérios problemas de infraestrutura.
A partir de 2011 foram iniciadas as construções de condomínios fechados, o que promoveu a
valorização das áreas urbanas inflacionando o preço dos imóveis, aluguel, terrenos e o próprio
custo de vida. Com a criação do Programa Minha Casa Minha Vida do Governo Federal em
2009, recomeçam os planos em torno da criação de conjuntos habitacionais populares na
cidade, sendo entregue em 2012 o Conjunto Habitacional Vivendas da Lagoa com 608
apartamentos; em 2014 o Conjunto Habitacional Lagoa Dourada (Módulo I) com 428
apartamentos; em 2015 o Módulo II com 296 apartamentos e em 2016 o Residencial Cidade
do Ouro com 432 casas.
Para desenvolvimento dessa pesquisa na cidade de Jacobina, foi escolhido o Conjunto
Habitacional Lagoa Dourada. Segundo dados da Secretaria de Habitação do município, o
conjunto abriga 1.137 moradores no Módulo I e 1.184 no Módulo II. O Conjunto Habitacional
encontra-se a 3,3Km do centro da cidade e está situado no bairro Jacobina III.
Foram realizadas 25 entrevistas de 50 perguntas subdivididas entre casa, trabalho, lazer e
futuro. Notou-se a insatisfação dos entrevistados na possibilidade de manter o isolamento em
suas casas seguindo todas as recomendações. Dos 25 entrevistados, 14 acreditam que não é
possível manter um integrante da família isolado caso seja contaminado pelo vírus pelo fato da
casa ser pequena e não haver quantidade de quartos suficiente para isso. Além disso, os
moradores demonstraram dificuldade em seguir os protocolos de higienização pela falta de
água e o tamanho da caixa d’água existente não atender a demanda da casa.

996
“De sábado à noite até quinta de manhã. A caixa é 500 L e acaba não dando,
no dia que não cai água eu nem lavo roupa e nem faço faxina.” (Moradora
18)

Quando questionada sobre a higienização dos alimentos a mesma moradora respondeu:


“Eu tento. Mas no sábado que é dia de feira é complicado porque não cai
água.” (Moradora 18)

Quando perguntados sobre as alternativas de lazer durante a quarentena, dos 25


entrevistados, 13 responderam que não possuem lazer, já que o isolamento social impossibilita
de ir a bares e restaurantes e até mesmo à casa dos parentes e amigos.
Quanto à utilização dos espaços públicos pelas crianças, 19 entre 25 entrevistados têm filhos
ainda na infância, destes 10 entre 19 não permitiam seus filhos saírem pra brincar na quadra
disponível no conjunto ou na rua. Uma moradora com dois filhos autistas revelou que o filho
mais velho acaba saindo para brincar na rua por ficar muito estressado ao permanecer apenas
dentro de casa (Moradora 17).
À respeito da distância de equipamentos e serviços muitos utilizados pela comunidade, tais
como mercado, farmácia, escola, posto de saúde e igreja, 15 entre os 25 entrevistados
acreditam que todos esses serviços são distantes, 5 entre 25 consideram que parte desses
serviços são distantes e outros 5 entre 25 entrevistados consideram que todos esses serviços
podem ser encontrados perto do conjunto. Um dos entrevistados explicou que é possível
encontrar mercados próximos e até mesmo dentro do conjunto habitacional, mas os preços
não são acessíveis (Moradora 4).
Ao se questionar a forma de deslocamento até o trabalho, 20 entre 25 entrevistados
afirmaram pelo menos ter um integrante da família empregado. Dentre os 20 empregados, 7
se deslocam a pé, 6 utilizam moto-táxi, 2 utilizam motocicleta própria, 2 utilizam carro próprio,
1 utiliza bicicleta, 1 utilizam transporte público e 1 não utiliza meio de transporte pois trabalha
em casa. Quanto à necessidade de ir ao centro da cidade, 21 entre os 25 entrevistados ainda
necessitam fazer esse deslocamento para trabalhar ou para acessar serviços como bancos e
lojas.

2 – Considerações finais
A moradia digna e o direito à cidade têm sido historicamente negados à população
socialmente vulnerável, pois o processo de urbanização beneficia os interesses capitalistas ao

997
invés de garantir que toda a população aceda a esses direitos. As estratégias de
desenvolvimento urbano que deveriam agir no sentido de reparar as desigualdades sócio
territoriais e a negação de direitos impostas a determinados grupos da sociedade, na verdade
funcionam como mais uma forma de segregar as pessoas mais vulneráveis.
O silenciamento da população que vive sem acesso à infraestrutura mínima ocorre quando não
se dá acesso à cidade na sua plenitude, se encontram esquecidos em verdadeiras armadilhas
(CAVALCANTI, 2010), onde até se deslocar para outras áreas se torna difícil. Paradoxalmente,
nos conjuntos de habitação de interesse social onde se deveria criar as condições de superação
das desigualdades, suas necessidades são negligenciadas, encontram-se encurralados na
impossibilidade de morar em áreas melhor equipadas, onde o ciclo geracional da pobreza
pudesse ser rompido.
Durante a pandemia essa população viveu a própria sorte tentando adaptar a nova rotina da
pandemia às dificuldades que já encontram no seu cotidiano. O espaço que deveria servir de
acolhimento, proteção e reparação de dores, continua produzindo e reproduzindo
amordaçamentos e traumas.

Referências

CARRIL, Lourdes. Quilombo, favela e Periferia: A longa busca da cidadania. São Paulo: Annablume,
2006.

CAVALCANTI, D. Fighting for a Place in the City: Social Practices and State Action in Maceió,Brazil. 2010.
298 f. Tese (PhD em Planejamento Urbano) – Departamento de Goegrafia, London School of Economics,
Londres, 2010.

FERREIRA, E. A segregação socioespacial no município de Paraguaçu Paulista – SP: da favela ao


conjunto habitacional. Monografia (Bacharelado em Geografia) – FCT/UNESP, Presidente Prudente.
2006.

IBGE CIDADES E ESTADOS. Seabra (BA). Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/cidades-e-


estados/ba/seabra.html>. Acesso em: 20 mar. 2021.

IBGE CIDADES. Seabra-BA. Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ba/seabra/panorama>.


Acesso em: 20 mar. 2021.

JAPIASSÚ, Luana A. Teixeira; LINS, Regina D. Barbosa. As diferentes formas de expansão urbana. Revista
Nacional de Gerenciamento de Cidades, v. 02, n.13, 2004, pp.15-25. Disponível em:
<http://www.amigosdanatureza.org.br/publicacoes/index.php/gerenciamento_de_cidad
es/article/view/764/788>. Acessado em 30 set. 2020.

MARICATO, Ermínia. O “Minha Casa” é um avanço, mas segregação urbana fica intocada. Carta Maior,
maio de 2009. Disponível em <http://cartamaior.com.br>. Acesso em: 13 out. 2020.

998
PACHECO, R.; PACHECO, C. S. G. R. Crescimento desordenado, segregação social nas cidades médias
brasileiras: o caso da cidade de Juazeiro/Bahia/Brasil. In: XIV ENCONTRO DE GEÓGRAFOS LATINO
AMERICANO, 2013, Lima - Peru. Reencuentro de Saberes Territoriales Latinoamericano. Lima - Peru:
Egal, 2013. v. 14. p. 1242-1258.

PREFEITURA DE SEABRA. História. Seabra. Disponível em:


<https://www.seabra.ba.gov.br/pagina/historia>. Acesso em: 21 mar. 2021.

PSH - PROGRAMA DE SUBSÍDIO A HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL. Sobre. Disponível em:


http://www1.caixa.gov.br/gov/gov_social/municipal/programa_des_urbano/programas_habitacao/psh/
. Acesso em: 19 mar. 2021.

SANTANA, L. S. G. D. et al. Uma análise sobre o crescimento da cidade de Salvador (BA) e os reflexos na
segregação socioespacial. Conj. & Planej., Salvador, n. 198, p. 61-73, jan./jun. 2020.

999
ENTRE A LONA E A LIDA: o circo é patrimônio do Brasil
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Camila Gonzaga de Oliveira


Arquiteta e Urbanista pela UFAL – Campus Arapiraca; mestranda DEHA/PPGAU/UFAL;
arq1camilaoliveira@gmail.com

Helga Soares da Silveira Guedes


Pedagoga pela Universidade do Norte do Paraná; graduanda em Letras/Espanhol UAB;
guedeshelga2@gmail.com

De base familiar, as competências circenses atravessam gerações. O caráter itinerante do circo


propicia contato e trocas constantes. Mas, além disso, esse mesmo caráter faz com que as
condições de vida e rotina dos artistas circenses sejam marcadas por discriminação e negação
de direitos. Uma das singularidades do circo está vinculada às necessidades básicas de
sobrevivência, e muitos dos problemas enfrentados pelos circenses se dão pela falta de
documentos. Diante da pandemia do novo coronavírus, as dificuldades são escancaradas. Este
artigo tratará da trajetória do circo no mundo e no Brasil e fará uma explanação acerca dos
desafios que seu caráter itinerante propicia.
Palavras-chave: circo; itinerância; dificuldades.

Family-based, circus skills span generations. The itinerant character of the circus provides
constant contact and exchange. But, in addition, this same character makes the living and
routine conditions of circus artists marked by discrimination and denial of rights. One of the
singularities of the circus is linked to the basic needs of survival, and many of the problems
faced by circus people are due to the lack of documents. In the face of the new coronavirus
pandemic, the difficulties are wide open. This article will deal with the circus trajectory in the
world and in Brazil and will explain about the challenges that its itinerant character provides.
Keywords: circus; roaming; difficulties.

1000
1 - Introdução
O circo é a arte do múltiplo, a arte do vário. O circo sempre abrangeu e dialogou com as mais
diversas formas de expressão. A arte circense continua seu processo de arte plural com
diferentes ramificações estéticas de sua linguagem espetacular, que coexistem com sua
estrutura tradicional, itinerante e de conhecimento oral, essencial para a difusão de suas
técnicas ao redor do mundo.
A produção intelectual acerca do circo no Brasil tem crescido significativamente nos últimos
anos. Mas, infelizmente, esses estudos ainda são pouco diante de estudos dos demais
segmentos e linguagens artísticas, e, principalmente, diante dos longos anos de história do
circo no país.
A magia e o encantamento do circo transcendem faixas etárias, grau de instrução e momento
histórico. Sua linguagem é acessível e o espetáculo circense encanta as mais diversas platéias.
Por ser uma arte itinerante, o circo alcança públicos que, muitas vezes, não dispõem de
condições para acesso a outros tipos de apresentações artísticas e culturais. A itinerância,
porém, acarreta uma série de questões para as pessoas circenses: eles não votam, não
possuem comprovante de residência e não são cidadãos das cidades por onde passam. Ser
cidadãos do mundo os conecta com diversos tipos de arte, pessoas e expressões, mas os afasta
de direitos - ainda que reconhecidos por leis.
O circo é uma linguagem artística diversa. O pluralismo acontece desde seu surgimento como
linguagem artística, que sempre dialogou com diversas formas de expressão humana. Os
elementos presentes num espetáculo de circo podem falar muito de um grupo social para
outro: dos circenses para os espectadores, considerando que sua leitura depende do meio em
que se socializaram, da acumulação de conhecimento e de experiência adquiridos ao longo de
suas vidas. Este artigo tratará da trajetória do circo no mundo e no Brasil, e fará uma
explanação acerca das dificuldades que seu caráter itinerante propicia.

2 - Ô raia o sol, suspende a lua: breve histórico do Circo


Segundo CASTRO (2010), os primórdios da arte circense têm ligação com a caça aos touros,
informação embasada nos achados arqueológicos de uma antiga cidade da Turquia, há mais de
8.000 anos; época essa em que era admirável a arte de dominar os touros e realizar acrobacias
e saltos sobre eles. Ainda segundo a autora, aproximadamente aos 3.000, as pirâmides do
Egito eram decoradas com figuras de malabaristas, equilibristas e contorcionistas, como
mostra a Figura 1. Outros registros situam a origem do circo na China, onde foram descobertas

1001
pinturas de quase 5.000 anos que retratam acrobatas, contorcionistas e equilibristas. Supõe-se
que a acrobacia era uma forma de treinamento para os guerreiros de quem se exigia agilidade,
flexibilidade e força. Outra hipótese levantada é a de que esta linguagem artística seja
proveniente dos espetáculos populares gregos e romanos e dos exercícios atléticos da Grécia.

Figura 1: Vista do paredão do Boqueirão da Pedra Furada.

Fonte: Instituto de Ecocidadania de Juriti, 2011.

No entanto, a história do circo está, na maioria das vezes, ligada à sabedoria popular e ao
conhecimento oral dos próprios circenses. Ainda é reduzida a bibliografia específica,
principalmente no Brasil, que se preocupa em estudar a origem da linguagem circense.
Entretanto, o que se pode perceber é que, em cada local em que aparecem registros de
atividades ligadas ao circo ou ao que seria o seu primórdio, o que chama atenção sempre é a
diversidade com que se eram praticadas.
Por volta do século XVIII, na Europa, mais precisamente na Inglaterra, surgem registros mais
precisos de uma organização da estrutura do circo e de seu espetáculo, que começam a tomar
forma nos moldes conhecidos atualmente. De caráter espetacular, o circo que se consolidava
estava relacionado à união de cavaleiros militares e artistas ambulantes, que se apresentavam
em feiras, praças e ruas desde o século XII, momento no qual as feiras passaram a ter grande
importância para a sociedade europeia.

1002
Ainda de acordo com CASTRO (2005), as feiras tornaram-se, de fato, palco para artistas de
diversos tipos de arte: músicos, dançarinos, malabaristas, acrobatas, bonequeiros, entre
outros que, “para chamar a atenção no meio da balbúrdia, armava um pequeno tablado – tipo
um banco – e, em cima dele, eram realizados espetáculos. Vem daí o termo saltimbanco,
saltare in banco.” Essa grande diversidade de artistas era conhecedora de diversos processos
tais como: costurar sua roupa de trabalho, construir os espaços onde atuavam, fazer os
instrumentos usados em suas apresentações, entre tantas outras habilidades.
A partir do século XIX, registros oficiais dão conta da presença de circos no Brasil, que se
apresentavam em diversas cidades. Muitos foram os motivos que trouxeram os circos
estrangeiros rumo ao Brasil: entre eles, o maior, a itinerância, modo de vida dos circenses, é a
causa principal dessa movimentação que percorre o mundo e também o Brasil.
Aqui, famílias e grupos de artistas chegaram e chegam em busca de oportunidades de
trabalho, colocaram seus conhecimentos e habilidades à prova, fabricando praticamente tudo
que usavam em seus espetáculos, porque os lugares por onde passavam ainda estavam em
processo de desenvolvimento (Figura 2). Também por conta das dificuldades, os circenses se
aproximavam das comunidades onde se apresentavam e assim, o circo foi se abrasileirando e
se tornando o circo que conhecemos hoje.

Imagem 02: Circo Trapézio - Conserto da lona após temporal em 1989.

Fonte: Acervo da Família Cerícola.

Desde então e até hoje, o circo vem batalhando para conquistar o seu espaço em meio às
artes. Ermínia Silva conta que no início da década de 1920, o circo era moda em São Paulo.
Naquela época, Abelardo Pinto, mundialmente conhecido por seu nome artístico – o palhaço
Piolin (Ribeirão Preto, 27/03/1897 - São Paulo, 4/09/1973), era considerado um grande

1003
representante do meio circense, destacando-se pela grande criatividade cômica, além da
habilidade como ginasta e equilibrista. Segundo Roberto Ruiz, ele trabalhava no Circo
Alcebíades, no Largo do Paissandu, em São Paulo, e foi muito disputado para apresentar-se
nos mais variados eventos. Ele foi eleito pelos intelectuais da Semana de Arte Moderna como
modelo dos novos padrões de arte que estavam propondo, desmistificando elaboradas e
sofisticadas formas de espetáculo e contando apenas com a arte inata dos palhaços e as
habilidades técnicas dos acrobatas. No primeiro número da Revista de Antropofagia – O
Manifesto Antropófago, Oswald de Andrade apresenta o projeto da nova estética que
propunham. Ermínia Silva esclarece que “a proposta central do Manifesto consistia em propor
a deglutição da sabedoria acadêmica e erudita, a partir de um intercâmbio das ideias
europeias com a brasilidade.” Assim, Piolin conquistou o reconhecimento dos intelectuais da
Semana da Arte Moderna. Mário de Andrade e Oswald de Andrade iniciaram o movimento de
identificar o circo a uma tradição popular que deveria ser valorizada pela nova estética que
estavam propondo criar. Ainda segundo a autora, um ano depois, os intelectuais da época
organizaram um almoço em homenagem ao circense, intitulado “Vamos comer Piolin” (figura
3). Infelizmente, mesmo com todo o valor que lhe foi atribuído como artista, seu circo foi
despejado. Piolin faleceu sem estabilidade financeira e sem conseguir ver concretizado seu
projeto de montar uma escola de circo.

Figura 3: Festim Antropofágico, 27 de março de 1929.

Fonte: Portal Panis e Circus.

1004
Atualmente no Brasil, coexistem diversos modos de fazer circo; a linguagem circense assume
diversas particularidades. Há o circo tradicional e o circo novo ou contemporâneo, ambos com
ramificações. Embora o circo contemporâneo esteja ganhando um espaço cada vez maior, a
estrutura do circo tradicional foi essencial para a continuidade e difusão dessa arte e das suas
técnicas ao redor do mundo. A discussão que gira em torno dos modos de se fazer circo ainda
é bem definida, até porque as pesquisas e estudos sobre o circo no Brasil são relativamente
novas.

3 - Itinerância e incertezas
A itinerância e o nomadismo fazem com que os grupos de artistas circenses se espalhem pelo
mundo e é uma das características mais marcantes dos artistas circenses, que dá a eles a
possibilidade de ganhar o mundo, mas também traz algumas situações de preconceito e
invisibilidade. Por seu caráter itinerante, os circenses são vistos pelas comunidades em que
chegam para montar suas lonas, como forasteiros, pessoas em quem não se pode confiar, e
isso dificulta diversas situações para o grupo de artistas. Além disso, há a ausência de políticas
públicas do governo brasileiro, que sequer tem um mapeamento dos circos itinerantes em
atividade no Brasil. O circense não tem como votar, pois não há uma lei que aceite o voto em
trânsito, e talvez por isso, as autoridades políticas não tenham interesse por eles, já que não
contribuem para o processo eleitoral.
Apesar de existir uma lei que obriga a matrícula de alunos itinerantes nas escolas públicas,
ainda há muita resistência por parte das instituições em aceitar as crianças do circo, pelo fato
delas só permanecerem por pouco tempo nas cidades. Como consequência, gerações de
artistas com pouca ou nenhuma escolaridade seguem resistindo, dia após dia. A falta de
escolaridade cria situações nas quais o descaso e a invisibilidade se agravam, pois, sem o
conhecimento básico da leitura, os sujeitos não conhecem seus direitos e seguem aceitando
migalhas das instituições públicas em todas as esferas. Mas, convém ressaltar que há também
uma boa relação com algumas comunidades, especialmente aquelas nas quais o circo se
apresenta com alguma regularidade, e dessa forma se cria um vínculo dos circenses com as
pessoas do lugar.
[...] a chegada do circo à cidade cria uma intervenção concreta na área que
antes era um espaço vazio, onde antes nada existia. Durante algum tempo,
sobre aquele terreno serão mostrados simulacros das emoções humanas
que despertaram no público que se acomoda debaixo da lona emoções
verdadeiras. Ao final da temporada, a caravana segue seu rumo e o espaço
volta à sua condição de nada, conjugando tanto o simulacro quanto a
realidade em uma única expressão do vazio. (ANDRADE, 2006, p.92).

1005
Para o circo, cada cidade é um novo início, com o armar e desarmar das lonas, o
distanciamento da família, a passagem das crianças pelas escolas, o conhecer e o se despedir
do público. As condições de vida e a rotina dos artistas e funcionários do circo são marcadas
pela itinerância dos circos tradicionais.
Em entrevista para Camila Ribeiro, Wladimir Augusto, o palhaço Dica, do Circo Koslov, lembra
também como a discriminação e o preconceito sofrido pelos circenses pode ser visualizada no
próprio Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, que, segundo ele, não
contabiliza o número de circenses por não possuírem residência fixa. Sobre essa situação ele
novamente mostra-se bastante descontente e comenta: [...] se o Brasil tem 100 mil habitantes,
20 mil são excluídos, porque é a classe de circo, eles não sabem quantos tem a classe de circo,
porque nós somos nômades não temos lugar certo? Não, nós vivemos aqui! Comemos,
criamos nossos filhos aqui! Então eu acho que deveria, o censo deveria cadastrar também o
povo de circo e não fazem! Não fazem! Tinha que ter uma lei específica (AUGUSTO, Entrevista,
2010).
Ainda em relação aos desafios enfrentados pelo circo itinerante, Martins, Lopes e
Emmendoerfer (2011) chamam a atenção para outras dificuldades que acompanham aqueles
que aderem a um estilo de vida nômade.
[...] essa mobilidade também gera outros problemas relacionados à falta de
endereço fixo, como: a impossibilidade de conseguir financiamentos e
possuir conta bancária; os circenses não possuem acesso a programas
sociais; o direito de voto só pode ser exercido caso o circense compareça na
cidade onde obteve o seu título de eleitor, o que é inviável, já que esse pode
estar trabalhando junto com o seu circo em outro local, sendo impedido de
participar na política, privando-os, novamente, de representantes políticos.
(MARTINS; LOPES; EMMENDOERFER, 2011, p.13).

Ficam nítidas as inúmeras dificuldades que o circo enfrenta para dar continuidade à sua
tradição. Burocracia para instalar-se em diferentes cidades, infraestrutura precária ou
inexistente, difícil acesso a água, luz e saneamento. Tais condições costumam não ser
consideradas pelo público que vai ao circo. Para a grande maioria desse público, esse
momento de lazer representa “uma passagem para um espaço irreal que se abre
temporariamente dentro do esmagador cotidiano” (ANDRADE, 2006, p.17). Assim,
independentemente da idade do espectador, o circo para ele tende a se resumir à magia do
espetáculo.
Com a chegada da pandemia, não apenas os circenses, mas os artistas de todo país sofreram
com a falta de trabalho. No caso dos circos do nordeste, a situação foi muito grave pois eles
dependem muito da bilheteria para sobreviver, então, em alguns locais houve a mobilização

1006
da comunidade doando alimentos e itens de primeira necessidade, e os circenses se
desdobraram para trazer renda às suas casas, vendendo maçãs do amor, pipocas e biscoitos
(figura 4).

Figura 4: Família circense vende biscoitos para sobreviver diante da pandemia.

Fonte: Portal Razões Para Acreditar, 2020.

Houve ajuda e houve também preconceito, como encontrado em um grupo da rede social
Facebook, no dia 17 de março de 2021. Nela, um morador da cidade de Sombrio, em Santa
Catarina, se revolta com a presença do circo na cidade. Ele questiona a presença de pessoas ali
e cobra posicionamento da prefeitura diante da montagem do circo e da pandemia. A figura 5
mostra a publicação.

Figura 5: Publicação em grupo do Facebook.

Fonte: Grupo Sociedade Sombrio, Facebook. 2021.

1007
A pandemia foi oficialmente reconhecida no Brasil em março de 2020. Apenas oito meses
depois, em novembro de 2020, os recursos da Lei Emergencial Aldir Blanc chegam aos
municípios. Ainda é necessário que haja um processo interno de organização desses recursos
para seguir para a etapa de distribuição entre os artistas. Acontece que, por mais que a
proposta da lei priorize a desburocratização, no intuito de que o dinheiro chegasse mais rápido
e com mais facilidade a quem realmente precisava, muitos circenses ficaram de fora, por
motivos como: falta de compreensão dos editais, acentuada pela falta de auxílio técnico, falta
de documentação suficiente, visto que alguns municípios não incluíram os circos - tampouco
suas especificidades nos editais - entre outras situações.
É importante entender que a pandemia escancarou o agravamento de uma situação que já
existia: o descaso com a comunidade circense é real, antigo e lamentavelmente demonstra um
preconceito histórico com cidadãos que por serem artistas e nômades, têm muitas vezes seus
direitos negados e negligenciados.

Referências

ANDRADE, J.C.S., O espaço cênico circense. Dissertação de Mestrado da Universidade de São Paulo
(Artes). [Orientador: Prof. Dr. Clóvis Garcia.] 2006. Disponível em:
<http://www.iar.unicamp.br/lab/luz/ld/Arquitetura%20teatral/o_espaco_cenico_circence.pdf>. Acesso
em: 18 fev. 2021.

CASTRO, Alice Viveiros de. O Elogio da Bobagem: palhaços no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro:
Editora Família Bastos, 2005.

CASTRO, Alice Viveiros de. A arte do insólito, 2010. Disponível em <http://www.circonteudo.com.br


/v1/index.php?option=com_content&view=article&id=2708:a-arte-do-insolito>. Acesso em: 16 fev.
2021

DA SILVA RIBEIRO, Camila; RIGO, Luiz Carlos. Vivendo o circo tradicional: nomadismo, fascínio e
incertezas. Revista Didática Sistêmica, v. 17, n. 1, p. 228-242, 2016.

MARTINS, B.C.L., LOPES, M.C., EMMENDOERFER M.L, Organizações circenses no contexto da economia
criativa: um estudo exploratório em Minas Gerais - Brasil. Redige. 2: p. 445-461. 2011.

ORTIZ, Renato. Mundialização e Cultura. São Paulo: Brasiliense, 2007.

SILVA, Ermínia. Piolin e suas histórias. Disponível em <http://www.circonteudo.com.br>. Acesso em: 20


Jan. 2021. p. 2.

SILVA, Erminia; DE ABREU, Luís Alberto. Respeitável público--: o circo em cena. Funarte, Ministério da
Cultura, 2009.

1008
ESCREVER NO SILÊNCIO: os bairros de Jaraguá e Centro
como cenário da pixação em Maceió.
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Maria Victória Silvestre de Souza Bezerra


Arquiteta e Urbanista pela FAUD/UFAL; Mestranda DEHA/PPGAU/UFAL;
mavisilvestre@gmail.com.

A pixação sempre esteve atrelada às lutas sociais e, em todo o mundo, é comumente


encontrada em áreas mais desiguais e espaços que urbanisticamente afastam os habitantes.
Em Maceió, o movimento cresceu muito com a criação das torcidas organizadas de times de
futebol do estado e a partir daí ganhou espaço em todos os bairros da cidade, alguns mais que
outros. É o caso do Centro e Jaraguá, que apresentam similaridades como uso e ocupação
basicamente comercial e de serviço e poucas residências. Além disso, ambos nasceram junto
com a cidade e hoje reúnem muitos edifícios históricos vazios, se tornando o local ideal para o
pixo, pois é no silêncio da noite e do abandono que ele ganha voz.
Palavras-chave: Pixação; Jaraguá; Centro; Vazio Urbano; Silêncio.

Pixação has always been connected to social conflicts and, throughout the world, it is
commonly found in the most unequal areas and spaces that urbanistically drive away the
inhabitants. In Maceió, the movement expanded with the creation of fan groups of soccer
teams in the state and since then it has gained space in all neighborhoods of the city, some
more than others. This is the case of Centro e Jaraguá, which presents similarities as use and
occupation basically for commercial and service purposes and rare residences. In addition, both
were born together with the city and today they collect many empty historic buildings,
becoming the ideal place for the pixo, because it is in the silence of the night and the
abandonment that it gains a voice.
Keywords: Pixação; Jaraguá; Centro; Vacant Urban Space; Silence.

1009
1 – O pixo com x
Ligado ao hip-hop, o pixo enquanto movimento teve seus primeiros registros nas cidades de
Nova York e Philadélphia nos Estados Unidos nos anos de 1960. De início, os primeiros na
modalidade se chamavam de writers, mas a polícia passou a utilizar o termo grafitti que
ganhou mais força com o passar dos anos.
Naquele período, os escritos começaram a partir de disputas territoriais de gangues por
diferenças étnicas e em seguida as crews – como se chamam os grupos de grafitti em que seus
membros assinam seu símbolo junto das suas inscrições – intensificaram a divulgação das suas
assinaturas com uma maior preocupação de estilo. E é exatamente esse o ponto diferencial da
pixação com x, um tipo de escrita que busca o reconhecimento do pixador pelo uso de tags –
codinomes criados por eles e que são inscritos nas superfícies com letras em formatos de difícil
leitura para quem não faz parte do movimento. (BEZERRA, 2019)
No Brasil, as primeiras imagens documentadas também datam da década de 1960, com frases
contra a ditadura militar. A partir daí, as intervenções passaram por vários processos até
chegar no que se conhece hoje como referência mundial da pixação. Nos anos de 1980, no Rio
de Janeiro, nascia o Xarpi, que se caracteriza por tags que lembram uma assinatura ou rubrica
e são encontradas em toda a cidade.
Já entre o final dá década de 1980 e começo da década de 1990, São Paulo desponta com um
novo estilo de escrita, o pixo reto. Inspiradas nas capas dos discos de bandas de punk e rock, as
letras passaram a ser maiúsculas e ter traços retos, o que também acontece pelo uso de
rolinhos e tinha látex nas pinturas, já que o custo dos sprays é alto. Outro grande destaque do
movimento em São Paulo é o que eles chamam de escalada, as várias técnicas de subida em
prédios altos para escrever. Isso também contribuiu para difundir a técnica no resto do país e
para reconhecimento internacional da pixação brasileira. (PIXO, 2009)
Apesar das diferenças entre as localidades, o pixo normalmente se encontra em locais que
apresentam os mesmos problemas urbanos. Normalmente, os pixadores são moradores da
periferia que não têm acesso à serviços e direitos básicos, não podem participar da formação
da paisagem urbana e são também excluídos e silenciados dentro do espaço. A pixação se
transforma numa retomada de território numa cidade onde eles são invisíveis.
Junto da desigualdade social, outros pontos em comum também são identificados como
impulsionadores do pixo, como o processo de urbanização ocorrido nas grandes cidades no
final do século 20. FILARDO (2015) utiliza conceitos de Jane Jacobs em Morte e Vida das
Grandes Cidades para explicar que ao priorizar os automóveis, as grandes obras viárias criadas
que servem só de passagem são responsáveis por um espraiamento territorial que separa

1010
zonas, resultando em espaços inutilizados, muros extensos, além da perda de urbanidade e
sensação de pertencimento. Tudo isso contribui para a formação de um espaço urbano
suscetível à violência, hostilidade, degradação e transgressão. (BEZERRA, 2019, p. 44)
Dentro desse cenário, o universo da pixação se torna uma comunidade onde os pixadores
podem compartilhar suas vivências, experiências e histórias. Eles se reúnem tanto para fazer o
rolê – como eles chamam as saídas para pixar – como também nas festas de hip hop e
encontros onde eles trocam as folhinhas, papéis com assinaturas das tags pessoais dos
participantes. É nesse contexto que eles se sentem acolhidos dentro de um espaço que
geralmente não permite sua permanência.
E é justamente por não ter voz dentro da cidade, que os pixadores se arriscam e burlam as
leis. Eles buscam imortalizar seus nomes no suporte extremamente efêmero que é a paisagem
urbana, pois ao mesmo tempo em eles deixam suas marcas, a cidade está tentando arrancá-las
(PEREIRA, 2010). Enquanto isso, o contrário acontece com as grandes marcas que estampam
seus nomes em todos os cantos sem nenhuma reprovação. Cripta Djan, famoso pixador de São
Paulo, em entrevista ao El País em 2016 afirma “Quando que um jovem da periferia teria a
possibilidade de escrever o nome dele no topo de um prédio no centro? Só se ele fosse uma
empresa, um banco.”
Por esse motivo também a grafia dentro do movimento é feita com x e não com ch, como rege
a gramática portuguesa. O “erro” é intencional, como mais uma forma de quebrar as regras de
um país que não permite nenhuma autonomia a essa parcela da população. Djan (2016) ainda
diz que o papel do pixo é transgredir e ele está sempre atrelado ao enfrentamento, não só com
a polícia, mas com a sociedade.
Para alguns integrantes, existe uma diferença entre a pichação com ch e a pixação com x, em
que a primeira seria uma escrita legível para todos e a segunda apenas para a comunidade do
pixo. E é essa a que mais incomoda, pois aqueles que estão, socialmente, excluídos dentro da
cidade, são capazes de desenvolver uma escrita incompreensível aos olhos de quem os
considera leigos. (BEZERRA, 2019, p. 73)
A diferença de tratamento entre o grafitti e a pixação é outro indício do preconceito de classe.
Enquanto para boa parte dos participantes não há distinção entre os dois, no geral, dentro do
contexto social, o grafitti hoje é muito mais aceito pois se moldou a uma ordem elitista, é
formalmente compreendido dentro das universidades e pode ser feito por quem tem uma
condição financeira maior, que veem o grafitti como uma forma de trabalho e renda, estando
presente nas galerias e exposições de arte.

1011
2 – O pixo em Maceió
Há poucos estudos e publicações sobre a pixação em Maceió, mas uma das primeiras imagens
encontradas data de 1984, onde as frases “Diretas Já” e “Nossa Senhora da Rebelião” foram
fotografadas na Igreja de São Gonçalo no Bairro do Farol.

Figura 1: Igreja de São Gonçalo, no bairro do Farol, com pixações a favor do movimento das
"Diretas Já". Maceió, 1984.

Fonte: Facebook/Grupo Maceió Antigo

Já na década de 1990, com a criação das torcidas organizadas de futebol do estado, a Macha
Azul de 1992 e a Comando Vermelho de 1993, os pixos de disputa de território entre eles se
espalharam pela cidade e são uma grande marca do movimento. Nesse caso, também se
encontram as relações entre a desigualdade social, periferia e o pixo.
"Por crescer imerso na cultura da violência, parte dos jovens integrantes das
torcidas organizadas de Maceió naturaliza os conflitos violentos e
experimenta prazer através deles, utilizando o futebol e a participação em
torcidas organizadas como possibilidade de pertencimento e de afirmação
de identidade[...] Elas são sua válvula de escape e serão indispensáveis para
que ele manifeste, em grupo, toda a sua insatisfação internalizada do
Estado, ou melhor, de sua ausência: simbolicamente – ao entoar cânticos
ofensivos à torcida rival e ao vestir os trajes de sua torcida; e fisicamente –
ao entrar em confronto com a torcida rival, com a polícia ou ao cometer
qualquer outro ato de vandalismo". (ALEXANDRINO, PADILHA, MAGALHÃES,
ÁVILA, 2016, p. 4)

1012
Em seguida, vieram as grifes – uma das formas de se chamar as crews ou gangues de pixação –
que hoje têm muita influência em todo o estado de Alagoas. Algumas mais conhecidas são a
PIXAL (Pixação Alagoas), M$M (Mulher, Skate e Maconha), Ataque de Tinta, SCP (Seguidores
da Cultura Proibida), 20_01, Zona Única, Anarkopunks, UARAL, Crew das Minas, entre outras.

Figura 2: Símbolos de algumas grifes mais encontradas na cidade de Maceió. Em ordem,


Anarkopunks, SCP, M$M, UARAL, PIXAL, Crew das Minas, Zona Única

Fonte: Autora, 2019.

Importante destacar que essa última, a Crew das Minas, é formada apenas por pixadoras
mulheres e tem nos seus escritos algumas mensagens feministas. Pelo seu gênero, elas sofrem
mais um tipo de silenciamento, muitas vezes até dentro do próprio movimento. Daí também a
criação do grupo, já que mesmo pixando junto dos homens, não costumavam ser aceitas como
participantes das grifes existentes. (BEZERRA, 2019)
Quando se trata da pixação com tags, se observam algumas características na cena de Maceió.
Primeiro, há uma forte conexão entre os participantes e uma significativa atividade deles nas
redes sociais. Normalmente os perfis são privados, mas dentro deles há uma extensa
divulgação de fotos e vídeos dos seus escritos, funcionando também como uma forma de
socialização entre eles. Segundo, não é tão comum a escalada. Considerando que o gabarito
dos prédios da capital não apresenta grandes alturas, dessa forma, o pixo se apresenta muito
mais horizontalmente, exatamente do ponto de vista do observador. Terceiro, há um padrão
nas áreas de escolha para pixação. Em geral, se buscam locais com muito fluxo de pessoas e de
muita visibilidade, como as avenidas – principalmente as Menino Marcelo e a Fernandes Lima
– e também os vazios urbanos, como as construções abandonadas e muros de terrenos
baldios.

1013
Por isso, os bairros de Jaraguá e Centro são pontos fundamentais para o pixo maceioense. São
nesses bairros onde as condições são ideais, já que pelo atual uso e ocupação deles, são
encontrados muitos prédios comerciais/serviço e poucos moradores. Dessa maneira, durante
o dia existem inúmeros possíveis observadores dos escritos, enquanto à noite há o silêncio do
vazio das edificações. E como muitas delas estão desabrigadas, não há cuidado dos
proprietários, então, a probabilidade da pixação permanecer no local por mais tempo sem ser
apagada é maior.

3 – Centro e Jaraguá: Silêncio para uns, voz para outros


O Centro e Jaraguá são bairros que têm suas origens atravessadas pelo próprio nascimento da
cidade. Suas ocupações cresceram, principalmente, pela grande atividade mercantil
intensificada pelo Engenho Maça-y-ok (ALBUQUERQUE apud CORREIA, 2019) e pela localização
do porto que era de fácil acesso e facilitava a saída de açúcar.
Com o passar dos anos, foram construídos trapiches, sobrados e o comércio continuou sendo o
mais importante vetor nesses bairros, no entanto, nas últimas décadas, enquanto os
escritórios e pontos comerciais cresciam, os moradores que lá existiam deixaram a região,
transformando a área numa zona quase que unicamente de trabalho/passagem. Processo esse
que ocorreu em várias outras cidades pelo mundo em virtude da valorização do automóvel e
espraiamento urbano. Tudo isso contribuiu para o alto número de imóveis abandonados ou
subutilizados na área, que podem ser chamados vazios urbanos.

Figura 3: Vazio urbano no bairro de Jaraguá.

Fonte: Autora, 2019.

1014
Porém, mesmo diante desse esvaziamento, ambos os bairros ainda são pontos de considerável
fluxo de pessoas, sobretudo o Centro. Apesar dos seus vazios, ainda são espaços muito
frequentados e importantes para a capital. É importante destacar também que os limites entre
as duas áreas se confundem, sendo assim impossível de separá-las na vida urbana.
Como zonas de referência para o pixo, existem vários tipos de silêncios nessa interação entre
tal intervenção urbana e o Centro e Jaraguá. Além do já citado silenciamento dos atores sociais
que fazem a pixação, o funcionamento dos bairros tem uma relação direta com a quantidade
de pixos, pois o silêncio do vazio toma conta de seus edifícios após o horário comercial. E é na
calada da noite que os pixadores se comunicam, para no dia seguinte seu escrito ser visto e
ouvido em alto e bom som.

Figura 4: Edifício abandonado no bairro do Centro.

Fonte: Autora, 2019.

Os que não estão em uso comercial ou institucional, estão desabrigados há anos, alguns com
pixos datados de 2013 que até o corrente ano, 2021, não sofreram nenhuma alteração.
Imóveis que estão na ilegalidade por não cumprirem sua função social mas que nesse caso,
também recebem o silêncio dos órgãos responsáveis. O contrário da reação no caso dos
pixadores, que sempre são criticados pelos governantes, pela mídia e pela população.
Há também um silêncio seletivo quando o graffiti é aceito e o pixo não. Mesmo nos seus
formatos mais similares visualmente ao grafitti, o pixo é renegado, enquanto o outro se
tornou comercial e atualmente pouco se recusa sobre sua posição na cidade. No caso da

1015
publicidade, também muito encontrada em áreas de grande movimento, não existe rejeição
por parte do público, ainda que na maioria das vezes não tenha autorização prévia para serem
aplicadas nos muros, assim como o pixo.
E essa é a dinâmica entre o pixo e o Centro e Jaraguá. Dois bairros que se confundem em seus
limites físicos e guardam importantes histórias, passaram por processos similares até
chegarem nos espaços atuais de períodos silenciosos. Mas os baixos decibéis não representam
toda a força que esses lugares continuam tendo para a cidade, mesmo diante do vazio e
abandono. Eles seguem sendo referência para os maceioenses na sua arquitetura, memória,
diversidade, função, movimento e nos últimos anos, também da pixação alagoana.

4 – Considerações Finais
A pixação tem na sua identidade a conexão com os indivíduos historicamente silenciados
dentro de locais também pouco ouvidos. A sua intenção sempre esteve atrelada às lutas
urbanas pela atenção negada em todo o mundo e não é diferente em Maceió, uma cidade que
é comumente ligada ao turismo e às belezas naturais, mas que na realidade apresenta grandes
problemas e desigualdades sociais.
O Jaraguá e o Centro têm um reconhecimento patrimonial já definido e, legalmente,
concentram grandes áreas de preservação. Mas na prática, o abandono também é marca
registrada dos bairros, que têm tanto prédios públicos quanto privados em desuso há décadas
e, novamente falando em leis, não cumprem sua função social e os responsáveis não são tão
criticados como os pixadores.
Aí cabe a pergunta do por quê o pixo incomoda tanto. Por qual motivo a paredes caindo, a
tinta desbotando e, principalmente, a falta de gente ocupando esses edifícios, dói menos do
que uma tag escrita numa fachada? E a resposta está justamente nas nossas injustiças, num
estado onde as políticas favorecem poucos enquanto a maioria não tem acesso a serviços
básicos e não são aceitos em todos os ambientes urbanos.
Se alguns não querem mais ocupar o Centro e Jaraguá, outros se sentem à vontade nos
bairros. Se acreditam que essas áreas que já foram cenário de muitos enredos perderam sua
força, a pixação mostra o contrário, definindo que o que traz vida são as pessoas utilizando os
espaços, mesmo que não seja o uso esperado por quem, normalmente, define os rumos da
cidade.

1016
Referências

ALESSI, Gil. "O muro do condomínio é muito mais autoritário que o picho". EL PAÍS. São Paulo,
dezembro de 2016. Editorial Cultura. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2016/11/21/cultura/1479735571_425031.html>. Acesso em 06 de
junho
de 2019.

ALEXANDRINO, B; PADILHA, E; MAGALHÃES, M; ÁVILA, J. Futebol e Violência em Maceió: a influência


midiática na rivalidade entre CRB e CSA. Fortaleza, 2017. Disponível em:
<http://www.portalintercom.org.br/anais/nordeste2016/resumos/R52-1215-1.pdf>. Acesso em: 01 de
junho de 2019.

BEZERRA, Maria Victória Silvestre de Souza. Pixo Central: A pixação na paisagem urbana do Centro de
Maceió-AL. 2019. Trabalho Final de Graduação - Universidade Federal de Alagoas. Curso de Arquitetura
e Urbanismo, Maceió, 2019.

BEZERRA, Maria Victória Silvestre de Souza. Pixação em Maceió – AL: A cena do pixo atual e as
impressões de uma pichadora mulher dentro do movimento. PIXO – Revista de Arquitetura, Cidade e
Contemporaneidade, Pelotas, v. 3, n. 10, p. 200-209, 2019. Disponível em: <
https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/pixo/article/view/16841>. Acesso em 19 de março de
2021.

FILARDO, P. Pichação (pixo): Histórico (tags), práticas e paisagem urbana. Disponível em


<http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.187/5881>. Acesso em 29 de maio de 2019.

LAMBERTI, R. Pixo, logo existo: Vozes de pixadores da cidade de São Paulo. 2018. 138 f. Dissertação
(Mestrado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem) - Programa de Estudos Pós-Graduados em
Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,
2018.
Disponível em: <https://tede2.pucsp.br/handle/handle/21582>. Acesso em 01 de junho de 2019.

PIXO. Direção: João Wainer; Roberto T. Oliveira. São Paulo: Sindicato Paralelo Filmes, 2009. Cor. 61 min.
Documentário. Disponível em: <https://vimeo.com/29691112>. Acesso em 01 de junho de 2019.

QUEIROZ, C. Entre transgressão e arte. Revista Pesquisa. Disponível em:


<https://revistapesquisa.fapesp.br/2018/07/04/entre-transgressao-e-arte/>. Acesso em 30 de maio de
2019.

RIBEIRO, Eduardo. Cripta Djan assina coleção da Öus x à e estreia individual na Europa. VICE, 2018.
Disponível em: <https://www.vice.com/pt_br/article/8xbz94/cripta-djan-assina-colecao-da-ous-x-a-e-
estreia-individual-na-europa>. Acesso em: 10 de junho de 2019.

1017
FORDLANDIA: ruína do futuro
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Igor Gonçalves Queiroz


Doutorando; UFBA; igor.gq@gmail.com

Ana Luiza Silva Freire


Doutoranda; UFBA; analuizafreire@gmail.com

Fundada em 1928 às margens do rio Tapajós, Fordlândia-PA foi criada para suprir a demanda
de borracha necessária à Ford Motor Company, a partir da exploração extensiva de
seringueiras. A cidade - cujo processo de tombamento se iniciou em 1990 e que nunca chegou
a ser concluído - tem sua história marcada pelo sonho do progresso moderno, narrada a partir
de ideais de conquista, exploração e civilização. Imaginada para ser "um jardim em meio à
selva brava", tornou-se, em pouco tempo, "um cemitério de seringueiros". Neste artigo,
buscamos encontrar fissuras existentes em narrativas oficiais da modernização da Amazônia,
de modo a experimentar outras possibilidades de escrita da história das cidades brasileiras.
Palavras-chave: Fordlândia; Amazônia; modernidade; ruínas; historiografia.

In 1928, on the banks of the Tapajós River, Fordlândia (PA) was founded, in order to provide the
necessary rubber supply to the Ford Motor Company in USA. The city, whose legal process to
become a heritage site started in 1990 but has never came to an end, has a paradigmatic
history about the dream of modern progress, based on ideals of conquest, exploration and
civilization. Conceived to be "a garden in the middle of the wild jungle", Fordlandia soon
became "a graveyard for rubber tappers". In this article, we seek to find existing cracks in
orthodox narratives of the modernization of the Amazon, in order to explore other possibilities
of writing of the history of Brazilian cities.
Keywords: Fordlândia; Amazon; modernity; ruins; historiography.

1018
Introdução
Fundada no Pará em 1928, às margens do rio Tapajós, a cidade de Fordlândia-PA foi criada
para abrigar uma extensiva plantação da espécie de seringueira Hevea brasiliensis, além da
infra-estrutura necessária para o seu processo de beneficiamento, para garantir a produção de
borracha demandada pelas fábricas de automóveis Ford Motor Company. A cidade foi, de
acordo com as idealizações sociais de Henry Ford, um projeto civilizatório, "[...] criada e
gerenciada com base em técnica e ciência, segredo para a manutenção, tanto de uma
dinâmica produtiva bem sucedida, como para a existência de uma comunidade de homens
saudáveis" (THE AMAZON... 1944, tradução nossa). O projeto da company-town correspondia
à visão de Ford acerca do que deveria ser uma sociedade, seus hábitos e condutas, orientados
a partir de uma visão específica do modo de vida ligado à indústria, arraigada fortemente em
um componente moral. A cidade, portanto, não foi apenas um empreendimento econômico
ou urbanístico. Como o próprio presidente Getúlio Vargas proferiu ao visitar Belterra: Ford
também plantava "saúde, conforto e felicidade" (GRANDIN, G. 2010, p. 337).1
Aqui, buscamos identificar fissuras existentes entre histórias homogeneizadas e alinhadas à
narrativa oficial da conquista, exploração e modernização da Amazônia brasileira, a partir da
cidade de Fordlândia, de modo a experimentar outras possibilidades de se pensar a própria
escrita da história urbana. A partir da montagem2 de imagens (documentos oficiais, discursos,
filmes, fotografias e ilustrações), pretendemos fazer emergir histórias de levantes, revoltas e
insubmissões dos operários; além da própria Amazônia selvagem, diante da imposição de um
modo específico de trabalho na cidade e, sobretudo, de um modo de vida baseada em
exigências morais e culturais norte-americanas.

MONTAGEM 1. Ruína do Futuro


"O que os habitantes do interior do Brasil precisam é de uma vida
econômica estabilizada por salários adequados, em dinheiro efetivo [...] ao
mesmo tempo que um regime de vida de acordo com as modernas normas

1
Em 1940, Vargas visitou Belterra, cidade construída também por Ford para substituir Fordlândia como
local de produção de borracha. Foi nessa visita que proferiu o discurso emblemático de inauguração da
"Marcha para Oeste", campanha para povoar e industrializar a Amazônia.
2
"Pensar por montagens no campo da história do pensamento urbanístico seria pensar [...] tensionando
as diferentes narrativas urbanas de seus mais diversos narradores, construtores e praticantes das
cidades, de tempos distintos. Seria ainda utilizar os farrapos e resíduos, fragmentos tanto narrativos
quanto urbanos, como tensionadores de homogeneidades, totalidades e partilhas hegemônicas,
aprendendo com as heterocronias urbanas, já e ainda presentes – sobreviventes, materialmente ou não,
mesmo que por vezes apagadas, silenciadas ou esquecidas – em qualquer cidade" (JACQUES, 2018 In:
JACQUES; PEREIRA, 2018, p. 223)

1019
de higiene [...]. Temos muitas esperanças sobre o futuro desenvolvimento
de milhões de hectares de terreno no Brasil e outras nações sul americanas,
que jamais foram tocadas pelos modernos métodos de aproveitamento
sistemático dos recursos naturais." (Henry Ford In: Jornal do Commercio,
1929)

"O desenvolvimento das forças produtivas fez cair em ruínas os símbolos do


desejo do século anterior, antes mesmo que desmoronassem os monumentos
que os representavam [...]. Com o abalo da economia de mercado,
começamos a reconhecer os monumentos da burguesia como ruínas antes
mesmo de seu desmoronamento" (Walter Benjamin [1935], 2018, p. 69)

Figura 1: Relógio de ponto de Fordlândia, 1930.

Fonte: The Henry Ford Digital Collections.

Um relógio de ponto em destroços, sua estrutura mecânica completamente arruinada e suas


peças espalhadas e misturadas a outros objetos, sobre o chão de um galpão desabitado. Essa
imagem, pertencente ao arquivo digital da fundação do engenheiro estadunidense Henry Ford,
é contrastante em relação às fotografias encontradas nos registros oficiais relativos à época da
construção e ocupação norte-americana na região norte do Brasil. A fotografia é uma pista de
que a história oficial de Fordlândia - pautada na conquista da selva e reforma moral dos
habitantes trabalhadores - coexiste a diferentes atores e histórias.
Como a anedota narrada por Walter Benjamin, nas Teses sobre o conceito de História (Tese
XV, 1940), sobre os relógios alvejados por franco-atiradores, sem arranjo prévio, no mesmo
horário e em diferentes bairros na Revolução de Julho de Paris - gestos que fazem "parar o
tempo" e "estilhaçam a cronologia tranquila da História oficial" -, a imagem do relógio em
destroços de Fordlândia provoca o lampejo do movimento que levou a sua interrupção: um
levante que, na época, gerou uma suspensão na continuidade do planejamento ordenado da
cidade, instaurando uma outra temporalidade.
A imagem do relógio provoca, sobretudo, um aspecto fundamental que acompanhou
Fordlândia desde a fundação ao seu abandono pelos norte-americanos: aquilo que está além
da racionalidade, do planejamento, do tecnicismo científico e da modernização entendida

1020
como sinônimo de progresso histórico e social - progresso que o fordismo ajudou a
desenvolver. O relógio reaparece, no tempo do agora, como uma imagem de pensamento3 que
provoca a experimentação de uma operação historiográfica onde torna-se necessário fazer
"parar o tempo para permitir o passado esquecido ou recalcado surgir de novo [...] e assim ser
retomado e resgatado no atual" (GAGNEBIN, 2013, p. 9).
Para Georges Didi-Huberman (2015) a partir de Benjamin, “a imagem seria, portanto, a malícia
na história: a malícia visual do tempo na história" (p. 131). O exercício de montagem e
desmontagem surge como uma operação historiográfica que possibilita mobilizar distintas
imagens ou fragmentos (documentos oficiais, discursos, fotografias, recortes de jornal, etc.)
enquanto potências que tornam visíveis reminiscências do passado. "Poder-se-ia-se dizer que
a imagem desmonta a história" (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 131, grifos do autor).

Figura 2: MONTAGEM - Seringueiros defumando látex / afresco de Diego Rivera inspirado no Complexo
Ford River Rouge (1932-1933).

Fontes: GRANDIN, 2010 / The Detroit Institute of Arts.

A instauração de uma outra temporalidade, com um novo modo de vida e novas relações de
produção - ou de uma nova ideologia e cultura - instaura também forças revolucionárias que
vão de encontro a tais ações impositivas. O relógio destruído foi consequência da "Revolta de
quebra-panelas" e teve como estopim uma mudança de funcionamento do refeitório da
company town, onde os operários passariam a servir os próprios pratos, após esperarem
longamente em uma extensa fila. Segundo Grandin (2013, p. 232), na primeira hora, 800
homens entraram e saíram sem problemas do refeitório, mas o reabastecimento de comida
não aconteceu adequadamente, até que o operário Manuel Caetano de Jesus enfrentou um
dos dirigentes da cidade, o que deu inicio ao levante.
Reclamações, denúncias e tentativas de fugas da cidade já existiam antes desta revolta - aliás,
a única possível de se encontrar disponível publicamente nos registros do próprio arquivo da

3
"[Com as imagens de pensamento,] Walter Benjamin escreve em fragmentos e renuncia ao curso ininterrompido
da argumentação que persegue uma única questão, que segue uma única lógica ou visa um único objetivo, não mais
seguindo um estilo argumentativo dedutivo e linear.". (GAGNEBIN, 2017 In: BRITO; JACQUES, 2017, p. 33)

1021
companhia Ford. Uma notícia do Diário Carioca (RJ), de 1929, acusava: "continua a retirada de
trabalhadores de Fordlândia, onde impera francamente o regime da escravatura". Os
trabalhadores que conseguiram fugir de Fordlândia e chegar em Belém, denunciam o
descumprimento de seus contratos: os salários eram menores do que o valor acordado, não
havia apoio médico na cidade e a alimentação era precária. Segundo O Ceará (CE), de 1928,
operários que tentavam escapar da cidade foram acossados pelo governo paraense, sob a mira
de fuzis e obrigados a voltar à Fordlândia, do contrário, seriam presos. O Rebate (AC), de 1929,
traz uma coluna que tece uma crítica aos jornais do Pará, que noticiam "coisas desagradáveis
passadas nos domínios do senhor Ford", mas finaliza em tom de elogio: "o senhor Ford não é
um homem que se deixa impressionar pelo o que dizem. É um super homem, um super
milionário [...] um homem bem intencionado". A coluna, entretanto, finaliza com a
constatação de que a vida em Fordlândia não era tão "deliciosa" como nas "fábricas
americanas do deus do dinheiro", afinal, os que para lá foram, voltaram "tristes, desiludidos,
sem saber falar inglês… e com fome".
Entre o final da década de 1930 e a primeira metade de 1940, Fordlândia e Belterra (PA)
passaram por mais uma tentativa de se tornarem grandes produtoras de borracha, pelo
aumento da necessidade da matéria-prima, devido à Segunda Guerra e ao fato das colônias
britânicas na Ásia estarem sob controle dos japoneses. A Amazônia brasileira vivenciou, então,
um grande influxo de investimento internacional, oriundo do acordo entre Brasil e EUA. A
chegada de cerca de 60.000 "soldados da borracha", vindos principalmente do nordeste - os
"flagelados da seca" - marca o início do trabalho de extração de látex neste outro momento. A
propaganda do governo entoava: "A Amazônia como a terra da fartura, onde a floresta era
sempre verde, e a seca, inexistente" (MEMORIAL... 2020). Entre a plantação extensiva e a
extração em seringueiras nativas, cerca de 35.000 homens e mulheres morreram durante este
"esforço de guerra" (PEREIRA, 2013, p. 12)4. A cidade Amazônica que havia sido imaginada
para ser "um jardim em meio à selva brava" (JORNAL... 1967), tornou-se, em pouco tempo,
"um cemitério de seringueiros" (JORNAL... 1947).

4
Como comparação, durante a Segunda Guerra, morreram 500 soldados brasileiros, entre os que
atuaram na Itália.

1022
Figura 3: MONTAGEM - Flagelados pela seca, trabalhadores nordestinos a caminho dos seringais (s.d) +
cemitério de Fordlândia (1931).

Fonte: Fonte: Memorial da Democracia & The Henry Ford Digital Collections.

MONTAGEM 2 - Amazônia civilizada, fordismo selvagem


“Descrição da fábrica de Ford em Highland Park, Detroit: ‘Toda a sala, com
seus intermináveis corredores, está movimentando eixos e rodas, com sua
floresta de colunas escorando o teto, correias de couro, intermináveis
fileiras de máquinas, guinchos, batidas e ruídos, o cheiro de óleo, a névoa de
fumaça, a população estrangeira de aparência selvagem [...]. Imagine uma
selva de rodas e correias e formas estranhas de ferro - de homens,
máquinas e movimento -, acrescente a isto todos os tipos de som que pode
imaginar: o som de [...] um milhão de macacos brigando, um milhão de
leões rugindo, um milhão de porcos morrendo, um milhão de elefantes
correndo por uma floresta de chapas de ferro, [...] um milhão de pecadores
gemendo enquanto são arrastados para o inferno - imagine tudo isso
acontecendo à beira das Cataratas do Niágara [...] e você poderá ter uma
vaga noção daquele lugar.’" (STREET, 1914 In: GRANDIN, 2010, p. 49)

"A modernidade é, entre outras coisas, o triunfo da destreza técnica sobre a


natureza. Este triunfo requer que a natureza seja limpa de relações sociais
transformadoras". (TSING, 2019, p. 187)

Figura 4: MONTAGEM - Fordlândia, ilustração de Mark Stutzman / Folha de seringueira doente (1936).

Fonte: GRANDIN, 2010 / The Henry Ford Digital Collections.

1023
Uma vila operária em plena selva amazônica, mas com ares de América do Norte passadista. A
ilustração de Mark Stutzman para a capa do livro de Greg Grandin, "Fordlandia: The Rise and
Fall of Henry Ford’s Forgotten Jungle City", publicado em 2008 nos Estados Unidos, traduz bem
o sonho da cidade ideal de Henry Ford no Brasil. Em Fordlândia, além das praças, hospital,
casas, gramados verdes, escolas, creches, rádio, salão de baile, campo de golfe, cinemas,
também foram inseridos - em meio à selva - os costumes e proibições americanas (bebida,
cigarro e futebol, são só algumas ddestas). Na imagem, não se vê homens, apenas mulheres
passeando e crianças brincando na rua em linha reta. "A selva, no entanto, assoma ao fundo,
pronta para engolir a cidade e o céu é composto de uma 'névoa laranja sanguínea' como
aquela que Grandin descreve como sendo causada pelas técnicas errôneas de corte e queima
da colônia." (TIMES, 2010)
A cidade idealizada para, no âmbito nacional, devolver à região norte brasileira o crescimento
econômico que ali existiu durante o primeiro ciclo da borracha e, no âmbito internacional,
suprir a demanda de látex das fábricas de Ford - de modo que ele pudesse não se submeter ao
cartel inglês que dominava à extração da matéria-prima na Ásia5 - precisou lidar com diversos
percalços que escaparam à lógica do planejamento que havia sido imaginado para o seu
futuro. Para além dos levantes e insubmissões dos trabalhadores habitantes - vistos aqui como
uma recusa ao modo de vida imposto e não simplesmente como uma inadaptação às regras na
cidade - a construção de Fordlândia e seus edifícios, a tábula rasa promovida pela limpeza da
mata, além do próprio regime de monocultura imposto aos seringais, antecipavam o
arruinamento que em poucos anos ali se daria efetivamente.
Para a contrução da cidade, fez-se necessário um incêndio de grandes proporções para a
limpeza das terras concedidas a Ford, que estendiam-se por cerca de 1 milhão de hectares6.
Ademais, os idealizadores de Fordlândia entendiam que o "cuidado científico" (THE AMAZON...
1944, tradução nossa) fazia-se necessário não apenas à plantação de seringueiras enquanto
foco da produção, mas aos trabalhadores de Ford na Amazônia: casas limpas e arejadas,
equipadas com conveniências modernas, escolas que ensinavam "cultura física e higiene",

5
A partir da segunda década do século XX, países como Malásia e Sumatra substituíram a região
Amazônica como maiores produtores de borracha.
6
Enquanto escrevíamos a primeira versão deste texto, eram relatados incêndios criminosos no Pantanal
brasileiro, onde quase 25 mil hectares (dos cerca de 815 mil que o bioma possui) foram devastados
somente em 2020. Enquanto isso, segundo a BBC News Brasil (2020), o Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente (Ibama) diminuiu o ritmo de fiscalização no Mato Grosso do Sul, com queda das multas a
desmatamentos e queimadas ilegais (uma queda de 22%, compado a 2019). É impossível não associar
esses acontecimentos enquanto sobrevivências históricas do incêndio de grandes dimensões de 1928,
com o objetivo de abrir terreno para a plantação de seringueiras no Pará. Fordlândia surge, portanto,
como símbolo de um ideal de exploração brutal e criminosa da região Norte brasileira.

1024
berçário, refeitório com alimentação "cientificamente equilibrada", hospital e recreação em
campo golfe, e jantares ao ar livre. Havia a ambição não apenas da produção intensiva de
borracha, mas de desenvolver um projeto civilizatório assentado no capitalismo americano.
O maior desafio de controle da técnica sobre a natureza "[...] tratava-se antes de tudo, de
disciplinar a árvore da borracha [...], orientadas segundo todos os ensinamentos da técnica
moderna". (DIÁRIO... 1930) O processo de manutenção de uma monocultura da espécie Hevea
brasiliensis e a parca quantidade de látex extraído das seringueiras da company town foram
dificuldades presentes desde o início da plantação.
A ação da natureza no fracasso de Fordlândia revelou exatamente o oposto do que acreditava-
se (crença que ainda sobrevive em vertentes econômicas atuais no Brasil) acerca das
imbricações entre desenvolvimento social e economia: "Ford representava o vigor, o
dinamismo e a energia que definiam o capitalismo no início do século XX; a Amazônia
incorporava a imobilidade primitiva, um mundo antigo que até então havia se mostrado
inconquistável" (GRANDIN, 2013, p.18). O que ocorreu em Fordlândia mostra que lá se deu o
exato oposto do postulado, acerca do poder e papel do capitalismo: foi um fungo -
microorganismo causador da doença botânica do "mal das folhas" - o agente invisível
responsável por derrotar a técnica e o conhecimento científico importados pelos norte-
americanos à Amazônia brasileira.
O trabalho insistente, com diferentes tentativas de técnicas empregadas para tornar a
plantação das seringueiras bem sucedida, nunca chegou a ser efetivado. A terra, devastada
para receber a plantação extensiva de Hevea, tornou-se completamente diferente do
ambiente ideal para seu desenvolvimento, já que essa espécie depende de diferentes espécies
coexistentes a ela para sobreviver e melhor se desenvolver. Exatamente por isso, a floresta
amazônica garante o necessário para o crescimento da seringueira, pois possui a configuração
e complexidade necessárias para dificultar o espalhamento do fungo causador do “mal das
folhas”.
A antropóloga Anna Tsing (2015, p. 152, tradução nossa), ao investigar "florestas industriais",
produzidas para abrigar plantações extensivas de pinheiros na Europa e na Ásia, e a relação
dessas florestas - quando inativas e abandonadas - com a produção de cogumelos matsutake7,
observa que "paisagens não são panos de fundo ou cenários para a ação histórica: elas são
ativas por elas mesmas". O fungo do “mal das folhas”, Microcyclus ulei, é uma espécie

7
Anna L. Tsing estuda a relação entre a destruição capitalista e sobrevivências multiespécies nas
paisagens arruinadas por esse sistema econômico: " Os humanos são parte da história, mas os humanos
não fazem a história”. (TSING, 2019, p. 148).

1025
codependente da Hevea brasiliensis. No ambiente complexo da floresta, entretanto, o fungo
não chega a fazer grandes danos à árvore.
O cultivo da seringueira na forma de monocultura e agricultura extensiva, de modo
domesticado, visando a maximização da produção da borracha, é que resultou na maximização
da presença do fungo nas árvores. O antagonismo forçado entre ciência aplicada e natureza -
também entre as especificidades da cultura brasileira e a norte-americana - deu-se, em
Fordlândia, como uma fantasia da qual a atitude imperialista dos norte-americanos não
conseguiu controlar. "Organismos não precisam mostrar sua equivalência humana (como
agentes conscientes, comunicadores intencionais ou sujeitos éticos) para contar." (TSING,
2019, p. 158, tradução nossa)

Conclusão
Fordlândia tem uma história paradigmática acerca do sonho de progresso moderno, onde o
ideal de futuro capitalista, imaginado em perfeita harmonia com a natureza, efetivaria-se
numa sociedade finalizada, dividida em classes diferentes e pacificada, aliadas em torno do
trabalho. Não somente as insurreições dos trabalhadores habitantes de Fordlândia
apresentam-nos como rebeldia à imposição de um modo de vida particular de um povo.
Também as moléstias desconhecidas que acometiam os habitantes e o espraiamento do
Microcyclus ulei - insurreições do próprio meio - indicam-nos que a ação histórica acontece
além das práticas e planejamento humanos.
Arriscamos: o futuro de Fordlândia é anunciado, desde o seu planejamento, como uma ruína.
O almejado desenvolvimento social, pensado a partir da transformação dos seringueiros em
verdadeiros operários da floresta, que aconteceria graças ao desenvolvimento econômico e
tecnológico da região, de fato nunca se efetivou plenamente. Do contrário, a imposição de
outro modelo de produção - e de vida - perpetuou e acentuou as desigualdades e violências
neste processo. A arquitetura e urbanismo como expressão do desenvolvimento econômico,
associados ao progresso, podem ser vistos, à contrapelo, como a sua própria ruína, quando se
entende que a ideia de progresso é em si uma marcha para a catástrofe. Assim, como nos
aponta Benjamin (2018), a respeito da Paris moderna dos anos 1868, poderíamos interpretar a
moderna Fordlândia também como uma cidade "[...] arrivista que começa a contagem de
tempo a partir do seu próprio surgimento."

1026
Referências

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É assim mesmo... O Rebate. Cruzeiro do Sul, p. 1. 03 fev. 1929. Disponível em:


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<http://memorialdademocracia.com.br/card/soldados-da-borracha-sao-recrutados-no-nordeste>.
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1027
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TSING, Anna Lowenhaupt. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no antropoceno. Brasília: IEB Mil
folhas, 2019.

1028
INVESTIGANDO AUSÊNCIAS: (des) caminhos dos espaços da memória negra na
cidade de Maceió-AL
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Fabio Henrique Sales Nogueira


Arquiteto e Urbanista; Doutorando no PPGAU-UFAL, Bolsista Capes/Fapeal, Professor do Curso
de Arquitetura e Urbanismo da UNIT-AL; fabiohenriqui@gmail.com

Thalita Carla de Lima Melo


Psicóloga; Doutoranda no PPGAU-UFAL, Bolsista Capes/Fapeal, Professora do Curso de
Psicologia da UNIT-AL; thalitalima@gmail.com

Este estudo analisa espaços de memória negra de Maceió-AL, buscando compreender como se
projetam na memória coletiva e interferem na identidade e cultura negra da cidade, e partindo
da empiria e do levantamento afetivo de lugares que se relacionem à história negra no Brasil e
em Alagoas. Ao tentar compreender a conformação destes monumentos à diferentes
temporalidades e às reflexões que suscitam no âmbito da memória coletiva, o que se destacou
foi o silenciamento e apagamento dos ícones da memória negra na cidade, a partir de ações
deliberadas da gestão pública. Portanto, a estruturação destes espaços, com o devido
planejamento, infraestrutura e com camadas de informação, poderiam oferecer a
oportunidade da sociedade como um todo se conectar com estas memórias.
Palavras-chave: espaço urbano; memória negra; silenciamentos; Maceió- AL

This study analyzes spaces of black memory in the city of Maceió-AL, seeking to understand
how they are projected in the collective memory and interfere in the black identity and culture
of the city, and starting from the empiric and affective survey of places related to black history
in Brazil and in Alagoas. In trying to understand the conformation of these monuments to
different temporalities and to the reflections they raise in the context of collective memory,
what stood out was the silencing and erasure of the icons of black memory in the city, based on
deliberate actions by public management. Therefore, the structuring of these spaces, with the
proper planning, infrastructure and layers of information, could offer the opportunity for
society as a whole to connect with these memories.
Keywords: urban space; black memory; silences; Maceió-AL

1029
1 – Introdução
A memória como um processo mental é estruturante do sujeito e é através dela que a
experiência do indivíduo se integra à sua existência, garantindo a retenção das aprendizagens
e produzindo sentido para o self. Quando alguém sofre algum dano na memória, e perde
informações, seu sentimento de existência fica incoerente, o vazio de passado dificulta a
construção do presente e futuro. Desta feita, esse processo de “perda de memória” se torna
ainda mais complexo quando nos referimos à memória social e coletiva.
Não é novidade que os diversos povos vindos da África que chegaram ao Brasil, dentre os
séculos XVI e XIX, foram tendo suas vivências, suas línguas, seus modos de expressão, ou seja,
toda a sua razão de ser, sendo paulatinamente extirpados. Esse silenciamento deliberado
reverbera em seus descendentes que no Brasil de hoje habitam.
Na tentativa de ativar memórias ou relembrar fatos importantes para a sociedade, criamos
espaços, nomeamos ruas, erguemos estátuas, contamos histórias, compomos músicas. Todos
estes, recursos utilizados para que determinado fato seja lembrado ou enaltecido. Porém,
quando se trata das memórias ligadas à história e aos modos de expressão dos povos negros
aqui no Brasil, essa tarefa se torna quase impossível. Seja pelos “buracos” provocados por anos
e anos de violência, seja pela falta de incentivos para que essa história seja contada,
respeitada e celebrada.
Na cidade de Maceió, capital do estado de Alagoas, podemos identificar diversos monumentos
urbanos que tentam, de certo modo, tornar público momentos importantes para a história dos
povos negros. Espaços como as praças 13 de maio, praça Gangazumba e praça Zumbi dos
Palmares, carregam no nome o peso de uma história, mas que relações guardam para além
desta designação? Diante desse cenário, e assumindo a ideia de Halbwachs (2003) de uma
memória coletiva compreendida pelo amálgama dos tempos, a presente proposta de resumo
tem como objetivo propor uma reflexão acerca dos espaços de memória negra na cidade de
Maceió-AL. Para além das datas comemorativas, quais mecanismos espaciais e informacionais
elas carregam? Como é possível que a sociedade tenha contato com essas narrativas?
Para essa empreitada partimos da empiria, através da visita aos espaços em Maceió que se
relacionem à personagens e/ou monumentos da história negra no Brasil e em Alagoas em
busca de compreender a conformação destes em diferentes temporalidades e atentos às
reflexões que eles suscitam no âmbito da memória coletiva.

1030
2 – (Re)conhecendo os espaços da memória negra em Maceió-AL
Na história brasileira e no imaginário social o Quilombo dos Palmares simboliza a principal
coalizão da resistência negra ao sistema escravista. Zumbi, Dandara, Akotirene, Aqualtune,
Ganga Zumba e tantos outros articuladores da República de Palmares se tornaram figuras
históricas internacionais. A responsabilidade que carregaram na criação de um território livre
para o povo negro escravizado, ressoou pelos quatro cantos do planeta, semeando esperança
para os herdeiros do continente africano. Contudo, a máxima que diz que "a história é contada
pelos vencedores”, ou melhor pelos invasores, se tornou um dispositivo de governabilidade
para ratificar, séculos a fio, o racismo institucional e os privilégios da elite branca, a partir da
manutenção de um sistema de relações sociais e trabalhistas aos moldes do regime escravista.
Esse mecanismo de governo anti-negro se torna visível em qualquer dimensão da vida pública
no Brasil, da dureza das desigualdades sociais à sutileza dos processos de subjetivação e
modos de existir. No caso da reflexão aqui engendrada, focaremos nos impactos do dispositivo
anti-negro na negação do direito à memória. Esta negação se perpetua de modos diversos.
Desde a cruel violência da catequização imposta aos africanos no Brasil, na qual seus nomes e
cultura foram duramente apagados e silenciados (um olhar atento pode imaginar o impacto
subjetivo, afetivo, cultural e identitário de uma prática dessas para os africanos e seus
descendentes nascidos aqui); até a ausência de narrativas da cultura e experiência dos
descendentes nos livros didáticos até os anos 2000, quando foi promulgada a Lei 10.639/03,
que versa sobre o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana, ressaltando a
importância da cultura negra na formação da sociedade brasileira; bem como, da ausência
deliberada de ações que preze pela preservação dos símbolos e espaços/monumentos
urbanos/rurais ligados à herança africana e afro-brasileira. Os exemplos parecem inesgotáveis.
Desta feita, o dispositivo anti-negro é tão sofisticado que produziu estratégias eugenistas e
discursos “científicos” (mito da democracia racial) que propagavam ações voltadas para o
branqueamento da população e narrativas de integração racial1, que fizeram o anti-serviço de
manter a população afrodescendente na miséria e em conflito identitário-existencial. Além de
“congelar” as consequências do período escravista à cronologia, se ausentando de reparar
todos os danos que até hoje se propagam entre a população negra no Brasil. Portanto,
argumentos não faltam para corroborar a urgência de debater a “negação do direito à
memória" em todos os campos de saberes, em especial, neste trabalho, nos estudos urbanos.

1
Para este assunto consultar o livro “O negro no Brasil hoje”, de Kabengele Munanga e Nilma Lino
Gomes.

1031
Aqui, o foco do estudo da “negação do direito à memória'' se concentra na análise das praças e
monumentos ligados à herança afro-brasileira na cidade de Maceió. Tão grande quanto a
importância de Palmares é o silenciamento e apagamento do legado negro em Maceió. Na
terra dos coronéis, as ações nesse sentido costumam ser explícitas, como o lamentável
acontecimento do “Quebra de Xangô”2, em 1912. Seguindo a prática política brasileira, Maceió
não se importou em reparar os danos produzidos nesse ato de crueldade racista, atualizando
até hoje violências veladas (às vezes nem tanto) contra os negros e seus ancestrais.
Um exemplo atual e que envolve um dos espaços abordados neste trabalho são as tentativas
de mudança de nome da Praça Dandara dos Palmares3 para Praça Nossa Senhora da Rosa
Mística, localizada num bairro de classe média da cidade. Abaixo buscamos remontar uma
narrativa das movimentações em torno do caso por meio da repercussão nos canais
midiáticos:
Cronologia de um apagamento histórico:

1. “Vereadores participam de inauguração da Praça Nossa Senhora da Rosa Mística na


Jatiúca” (https://www.maceio.al.leg.br/, 03/12/2019);

2. “Cruz das Almas: praça pode voltar a se chamar Dandara dos Palmares” (novoextra,
06/10/2020).

3. “Patrimônio histórico-cultural: MPAL quer que praça volte a se chamar Dandara Palmares
(alagoas24horas, 06/10/2020);

4. “Acionado Pelo INEG/AL, MP Questiona Prefeitura e Câmara Sobre Mudança de Nome da


Praça Dandara de Palmares” (INEG, 13/10/2020).

5. “Praça na Jatiúca com nome de guerreira quilombola passa a se chamar Nossa Senhora
Rosa Mística” ( tnh1, 21/01/2021)

6. “Prefeitura muda nome de praça e volta atrás no mesmo dia” (tribunahoje, 22/01/2021)

7. “Câmara tenta mudar mais uma vez o nome da Praça Dandara dos Palmares, em Maceió”
(portalacta, 26/02/2021)

8. “Movimento Negro Alagoano Repudia Mudança de Nome da Praça Dandara.”


(inegalagoas, 27/02/2021)

9. “Nota de Repúdio do Movimento Negro Alagoano” (anajoalagoas, 01/03/2021);

2
“O episódio que ficou historicamente registrado como 'quebra-quebra dos terreiros' ou simplesmente
'quebra de xangô', revela uma importante face da cultura alagoana que merece registro. Refiro-me aqui
à intolerância e ao preconceito históricos que animavam nossa provinciana Maceió em relação a
referências religiosas que não fossem as católicas, as oficiais” (SUASSUNA apud LUNA, 2012).
3
O espaço foi denominado como praça Dandara dos Palmares pela lei N. 4.423 de 12 de maio de 1995,
pelo então prefeito Ronaldo Lessa (MACEIÓ, 1995).

1032
10. “Ativistas de Alagoas lutam contra mudança de nome da Praça Dandara dos Palmares”
(almapreta jornalismo, 01/03/21).

O que essa sequência de fatos tem a nos dizer sobre os espaços de memória negra na cidade
de Maceió?
A Constituição Federal, em seus artigos 215 e 216, afirma que é de responsabilidade do Estado
garantir os direitos culturais e o acesso a fontes de cultura nacional, devendo proteger as
manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, dentre outras que fizeram
parte do nosso processo civilizatório. Bem como, reitera que o patrimônio cultural brasileiro é
composto de bens de natureza material e imaterial4, que individualmente ou em conjunto são
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira (BRASIL, 1988). Portanto, cabe ao poder público promover e proteger o
patrimônio cultural. Contudo, quando esse direito é violado, quais efeitos provoca num povo
que precisa lutar incessantemente para garantir seus lugares de memória e o protagonismo de
suas narrativas?
Na reportagem do veículo Alma preta jornalismo, os representantes do INEG5- Alagoas foram
enfáticos ao denunciar o racismo simbólico, cultural, e institucional e a violência patrimonial
perpetrada pelo Poder Público de Maceió na condução do caso da Praça Dandara dos
Palmares: “em Alagoas já não existe uma quantidade significativa de espaços dedicados à
memória histórica negra, e os que têm, precisam de resistência para não serem aniquilados”
(LACERDA, 2021). Destacando a ausência de atenção aos símbolos da população negra do
estado e de comprometimento com a preservação de narrativas históricas importantes.
Situação reforçada pela fala do promotor Jorge Dória do MPAL6 que está conduzindo o caso,
quando diz que o ato do Poder Público de Maceió se trata de uma agressão ao patrimônio
histórico e cultural, se enquadrando numa flagrante ofensa aos artigos 215 e 216 da
Constituição.
Apesar da grandiosa história negra que Alagoas carrega, os silenciamentos e apagamentos dos
seus ícones é uma constante. Além da Praça Dandara, Maceió possui outros elementos da

4
Fazem parte desse patrimônio: formas de expressão, modos de criar, fazer e viver; criações científicas,
artísticas e tecnológicas; obras, objetos, documentos, edificações, conjuntos urbanos e sítios que
tenham valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
(BRASIL, 1988)
5
Instituto do Negro de Alagoas
6
Matéria disponível em: https://www.mpal.mp.br/respeito-ao-patrimonio-historico-cultural-mpal-
quer-que-praca-volte-a-se-chamar-dandara-palmares.

1033
memória negra no espaço urbano. Contudo, essas informações não estão organizadas e nem
acessíveis. Os lugares cartografados neste estudo derivaram das experiências dos autores,
negres, na cidade de Maceió. Tanto por seus envolvimentos pessoais e locais de moradia,
quanto pelo acesso a outros amigos negros. Inclusive a pesquisa nos sites dos movimentos
sociais da cidade não tinha registros significativos sobre esses lugares de memória. Então, a
partir da listagem afetiva de lugares, chegamos à cinco praças inicialmente: Praça Dandara dos
Palmares (bairro da Jatiúca); Praça Ganga Zumba (bairro de Cruz das Almas); Praça 13 de Maio
ou da Mãe Preta ( bairro do Poço); Praça dos Palmares (bairro centro) e Praça Moleque
Namorador (bairro da Ponta Grossa). Além destas, outras duas praças foram cartografadas a
partir de vestígios em noticiários da web que abordavam a temática: a praça do Skate (bairro
de Ponta Verde) e o corredor Vera Arruda (bairro de Jatiúca) por possuírem exemplares da
árvore de origem africana - Baobá. Informação esta, ainda mais inacessível e silenciada, pois
poucas pessoas do ciclo de amizade negra tinham conhecimento desse fato. O que é no
mínimo curioso, para não dizer racista, visto que o estado vizinho - Pernambuco, teve seus
exemplares de Baobá tombados há mais de três décadas7 e Maceió, apesar de ter a árvore da
Praça do Skate listada no mapa dos baobás do Brasil8 não deu andamento ao processo de
tombamento solicitado pela então vereadora, pela cidade de Maceió, Heloisa Helena(2015)9.
Quanto às outras praças, a situação não é diferente. A partir daqui, buscaremos descrever o
encontro com estes espaços possibilitados pela empiria.

7
Lista de árvores tombadas na cidade do Recife, disponível em: http://www2.recife.pe.gov.br/wp-
content/uploads/RELA%C3%87%C3%83O-DAS-%C3%81RVORES-TOMBADAS-DO-RECIFE.pdf
8
Publicação de Vasconcelos (2011), disponível em:
https://issuu.com/biomaurbano/docs/baobasdobrasil
9
Matéria disponível em: https://www.cadaminuto.com.br/noticia/2015/09/21/que-maceio-preserve-
seu-unico-exemplar-de-baoba-alerta-heloisa-helena-a-vereadora

1034
Figura 1: Localização dos espaços/monumentos da memória negra em Maceió-AL abordados pelo
trabalho

Fonte: AUTORES, 2021

A “Praça Ganga Zumba” é um lugar com uma força simbólica inexplorada, visto que a escultura
do líder palmarino foi colocada num ponto da orla de Maceió, em frente ao mar no bairro de
Cruz das Almas, de um modo que traça em linha reta uma rota imaginária até o continente
africano, especificamente até cidade de Luanda, capital de Angola (BARBOZA, 2015). Essa
informação é desconhecida da população em geral, parecendo ser, inclusive, uma “lenda
urbana”. Porém ao utilizar os recursos de visualização por satélite do google, foi possível
confirmar a informação. O poder simbólico e cultural desse fato deveria tornar o local um
ponto de memória essencial na cidade, pois a poética e a informação aproveitada para a
implantação da praça ficam silenciadas, discretas no espaço. Além desse silenciamento, a
escultura - inaugurada em 1984, nas gestões do Governador Divaldo Suruagy e do prefeito por
Maceió, José Bandeira - foi retirada pela prefeitura durante um processo de revitalização da
orla de Cruz das Almas em 2010 e ficou desaparecida por 4 anos, até que em 2015, depois da
pressão social do movimento negro, foi recolocada (BARROS, 2016).

1035
Figura 2: Infográfico demonstrando a ligação entre a praça Gangazumba e Luanda. Abaixo imagens da
praça atualmente.

Fonte: AUTORES, 2021.

A “Praça Moleque Namorador”, situada no bairro da Ponta Grossa no cruzamento de cinco


ruas e local de agitação carnavalesca na cidade, foi inaugurada em 1961, pelo então prefeito
Sandoval Caju, em homenagem ao passista maceioense Armando Veríssimo Ribeiro (conhecido
por ‘moleque namorador’), que no início do século vinte ficou famoso nacionalmente como o
‘rei do frevo’. O jovem negro periférico ganhou a atenção da elite branca de Maceió por
ganhar concursos de passo, sendo convidado a frequentar os bailes carnavalescos da classe
alta. Mesmo com a fama nacional, o jovem, que faleceu aos 30 anos com tuberculose, não se
perdeu de sua origem e orgulhava-se em ser uma figura marginal e periférica. Contudo, a
homenagem prestada pelo prefeito Sandoval Caju foi duramente criticada pelo então vereador
Rosalvo Siqueira, por considerar uma ofensa a Maceió homenagear um ‘maloqueiro’. Ainda
hoje a praça é ponto de concentração carnavalesca, mas a escultura de ferro pintada com as
cores do frevo está solitária desvinculada de sua história e de certa forma pouco valorizada no
todo (TICIANELI, 2016).
A praça “13 de maio”, localizada no bairro do Poço e inaugurada em 1968 pelo governador
Divaldo Suruagy, tem uma escultura marcante denominada ‘Mãe Preta’ - uma mulher negra
amamentando uma criança branca-, que de acordo com a inscrição é uma homenagem dos
“maceioenses à Mãe Preta pelo muito que devemos a ela”. Todavia, e desconsiderando a
ironia que a inscrição remete, essa praça é um território de disputa de narrativas, pois povos
de terreiro e movimento negro reivindicam esse espaço como sendo o lugar que ocorreu o

1036
assassinado da Yalorixá ‘Tia Marcelina’, em 1912 durante a ação violenta de destruição dos
terreiros de Maceió, denominado como o evento “do quebra de Xangô”. Sendo assim, um
lugar que remete ao maior ato de racismo religioso perpetrado por um governo estadual no
Brasil, exige minimamente uma ação de reparação histórica, a começar pelo direito à essa
memória (SILVA FILHO, 1994). Porém, além da estátua e do “agradecimento” nos dizeres, os
acontecimentos históricos ocorridos no lugar seguem omitidos.
Para concluir o circuito dos locais cartografados, temos a Praça dos Palmares, localizada no
centro de Maceió. Numa região historicamente importante para o nascimento da cidade - a
antiga Boca de Maceió, local de recebimento de mercadorias (TICIANELI, 2015). Para o povo
negro alagoano a importância da memória e demanda de revitalização desse espaço é ainda
maior, como aponta o historiador e Babalorixá Célio Rodrigues que afirmara ser “naquela
localidade que os negros eram comercializados na época da escravatura. Foi ali também onde
despontou o comércio de quitutes típicos por negras, o que faz do local patrimônio histórico
da cultura afrobrasileira”. Desta feita, desde 2013 quando houve a solicitação do movimento
negro de revitalização da praça (o retorno do nome oficial do logradouro para Praça dos
Palmares; a adequação do local para manifestações artísticas e sagradas da cultura
afrobrasileira; e a instalação de uma estátua em homenagem a Zumbi dos Palmares), não foi
encontrado nenhum registro de ação realizada nesse sentido pelos órgãos públicos. E a Praça
Palmares, apesar de ser a mais movimentada do circuito, é também a mais sucateada.

Figura 3: Demais espaços abordados no artigo. De cima para baixo, da esquerda para direita: Praça dos
Palmares, Detalhe da escultura que homenageia o “Moleque namorador”, Praça Dandara dos Palmares
e Praça 13 de maio.

1037
Fonte: AUTORES, 2021

3 – Os espaços como ativadores da memória


Como brevemente narrado nas reflexões, os ditos espaços de memória negra na cidade de
Maceió têm passado por processos de silenciamento, esvaziamento, sucateamento, dentre
outros, dificultando as chances de colaboração para uma sociedade que preza pelos ideais de
igualdade e valorização da cultura.
Apesar dos mecanismos ligados à memória serem engendrados e efetivados a partir das
subjetividades individuais, é no coletivo e fazendo referência a ele, que as reminiscências se
estruturam. Na obra A memória coletiva do sociólogo Maurice Halbwachs (2006), ao pôr em
xeque a concepção da memória como um único produto da individualidade, o autor amplia o
horizonte ao apontar como todo o contexto, como as pessoas, lugares, histórias, informações,
conformam as lembranças. “Nossas lembranças permanecem coletivas e nos são lembradas
por outros, ainda que se trate de eventos em que somente nós estivemos envolvidos e objetos
que somente nós vimos. Isso acontece porque jamais estamos sós” (HALBWACHS, 2006, p.30).
Assumindo essa premissa, indagamos, como conhecer e se conectar a uma memória dos
nossos antepassados, quando temos tão poucas oportunidades de imersão?
A estruturação destes espaços, com o devido planejamento, infraestrutura e com camadas de
informação, poderiam oferecer a oportunidade da sociedade como um todo, mesmo não
tendo participado da vida das figuras históricas rememoradas nestas praças e espaços aqui
mencionados, se conectar com estas memórias.
Não basta reconstituir pedaço a pedaço a imagem de um acontecimento
passado para obter uma lembrança. É preciso que esta reconstrução
funcione a partir de dados ou noções comuns que estejam em nosso espírito
e também no dos outros, porque elas estão sempre passando destes para
aquele e vice-versa, o que será possível somente se tiverem feito parte e
continuarem fazendo parte de uma mesma sociedade, de um mesmo grupo
(HALBWACHS, 2006, p.39).

1038
Uma outra reflexão suscitada pelos espaços aqui abordados, é a do potencial dos lugares e
monumentos na edificação da memória. Sobre este tema, ainda Halbwachs (2006) aborda dois
pontos que se adequam as descrições por nós trazidas. A primeira se estrutura no sentido de
que, diante da estabilidade física das casas, ruas, praças, em suma, do espaço construído,
determinado grupo social não perceba, ou não se sinta impelido, a mudar:
Por isso o grupo urbano não tem a impressão de mudar enquanto a
aparência das ruas e das construções permanece idêntica [...] será que o
contraste entre a impassibilidade das pedras e o tumulto a que eles se
entregam, os persuade de que afinal de contas nada se perdeu, pois os
muros e as casas permanecem de pé? (HALBWACHS, 2006, p. 160-161).

Ou seja, se as praças como a dos Palmares, Gangazumba e 13 de maio continuam imóveis, sem
inserção na dinâmica das pessoas que moram ali, e, principalmente, ausentes de informação
sobre as figuras históricas que ali habitam, como esperar que elas possam colaborar na
memória coletiva sobre a herança negra em nossa cidade?
No sentido oposto, os movimentos de silenciamento e mudanças no espaço construído podem
se efetivar, pois “[...] as pedras se deixam transportar, não é muito fácil modificar as relações
que se estabeleceram entre as pedras e os homens” (HALBWACHS, 20006, p.163). Sendo
assim, o impasse ainda sem resolução descrito com a praça Dandara dos Palmares (mudança
de nome) têm encontrado antagonismo e, seja lá qual for o futuro do lugar, estão registradas
as articulações da sociedade organizada para que a localidade possa contribuir com o
imaginário do povo negro na cidade.

Referências

BARBOZA, Jorge. Ganga Zumba de Cruz das Almas. Gazeta de Alagoas, 29 de novembro de 2015.
Disponível em: <http://gazetaweb.globo.com/gazetadealagoas/noticia.php?c=277742>. Acesso em: 20
de março de 2021.
BARROS, Arisia. E Ganga Zumba agora tem sua história contada na Praça,em Maceió, AL. Portal Cada
Minuto, 16 de março de 2016. Disponível em: <https://www.cadaminuto.com.br/noticia/2016/03/16/e-
ganga-zumba-agora-tem-sua-historia-contada-na-praca-em-maceio>. Acesso em: 20 de março de 2021.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF:
Presidência da República, [2016]. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm>. Acesso em: 20 de março de
2021.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003.

LACERDA, Vitor. Ativistas de Alagoas lutam contra mudança de nome da Praça Dandara dos Palmares.
Alma preta Jornalismo. Disponível em: <https://almapreta.com/sessao/cotidiano/movimento-negro-

1039
de-maceio-resiste-a-projeto-de-lei-que-preve-retirada-do-nome-de-dandara-dos-palmares-como-
homenageada-de-praca-publica-da-cidade>. Acesso em: 20 de março de 2021.

LUNA, Lenilda. Quebra do Xangô: pesquisadores avaliam a intolerância religiosa. Site da Universidade
Federal de Alagoas. Disponível em: <https://ufal.br/ufal/noticias/2012/01/quebra-do-xango-
pesquisadores-avaliam-a-intolerancia-religiosa> . Acesso em: 23 de março de 2021

RECIFE, 2012. Relação das árvores tombadas do Recife. Disponível em:


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RIBEIRO, Janaína. Respeito ao patrimônio histórico-cultural: MPAL quer que praça volte a se chamar
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SILVA FILHO, José Bilu da. Praça Treze de maio. Bairros de Maceió. Disponível em:
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TICIANELI, Edberto. Moleque namorador, o rei do passo. História de Alagoas, 20 de janeiro de 2016.
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VASCONCELOS, Gilberto J. S. Mapa dos Baobás do Brasil. Disponível em:


<https://issuu.com/biomaurbano/docs/baobasdobrasil>. Acesso em 22 de março de 2021.

1040
“ISSO JÁ ERA PRA TER ACONTECIDO HÁ MUITO TEMPO...”: silêncios e infâmias de
uma morte urbana anunciada
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Lázaro Batista
Doutor em Psicologia; Docente da Graduação em Psicologia e do Programa de Pós-
graduação em Comunicação da Universidade Federal de Roraima; lazaro.batista@ufrr.br

Leonardo Evangelista de Nardin


Graduado em História; Mestrando em História pela UFRN, ldenardin96@gmail.com

Resumo: amparado na conceituação posta por Foucault, busca-se conhecer como se deu a
produção de infâmia no contexto de destruição do “Beiral”, área localizada no bairro Caetano
Filho, em Boa Vista-Roraima. Trata-se de estudo quanti-quali, com o levantamento
documental das edições impressas do principal jornal do estado, publicadas entre janeiro e
dezembro de 2017. Como resultados, percebe-se que a área é caracterizada como local de
perigo, precarização da vida e culpabilização dos pobres, o que acaba fornecendo condição
para destruição das casas, remoção dos moradores e tornando direitos humanos básicos
suscetíveis à violação. Por fim, pontua-se que são justamente o estudo e a denúncia das ações
interventivas sobre Beiral que permitem a restituição, transmissão e sobrevivência de sua
história.
Palavras-chave: infâmia; precariedade; silêncio.

Abstract: based on the concept put forward by Foucault, we seek to understand how infamy
was produced in the context of the destruction of “Beiral”, an area located in the Caetano
Filho neighborhood, in Boa Vista-Roraima. This is a quanti-quali study, with informations based
on basic editions of the state newspaper, published between January and December 2017. As
a result of the study, it is noticed that the area is characterized as a place of danger,
precariousness of life and blame of the poor, which ends up resulting in the condition for
destruction of houses, removal of residents and turning basic human rights susceptible to
violation and displacement. Finally, it is pointed out that it is precisely the study and
denunciation, of interventional actions on the Beiral, that allows the restoration, transmission
and activities of its history.
Keywords: infamy; precariousness; silence

1041
1 – A DESTRUIÇÃO
No dia 11 de julho de 2017, o poder público municipal de Boa Vista, capital do estado de
Roraima, anunciou publicamente que a área conhecida como Beiral teria suas casas demolidas
e seus moradores e demais ocupantes deslocados do local para dar lugar à construção de um
novo parque público. Poucos dias depois, todas as 314 casas haviam sido postas abaixo e o que
um dia havia sido o Beiral tinha se tornado num gigantesco canteiro de obras, monitorado por
drones e cercado com imensas folhas de zinco. Em tom festivo, a propaganda oficial
comparava a obra por vir com monumentos de grandes centros urbanos: Paris, Estados
Unidos, Roma. A ação televisiva apontava para a inserção da capital roraimense num ciclo de
modernização globalmente observável que se dava por meio do aniquilamento do atraso e do
primitivismo de que o Beiral era símbolo.
Uma via interpretativa para o ocorrido seria a de favorecermos a ideia de revitalização da
região, tal como noutros cantos, sustentada pelo chavão desenvolvimentista e as promessas
de aumento de emprego e renda, associados à criação de um novo cartão postal para a cidade.
E, como tal, uma revitalização indissociavelmente conectada ao incremento do consumo de
bens culturais, alguns deles relacionados à construção de espaços artificiais de cultura, lazer e
entretenimento (SILVA, FERETI, SETE, 2008). Em sentido oposto, pode-se pôr em relevo a
outra face dessa intervenção, enunciando-a a partir do seu caráter destrutivo – vide a
gentrificação de centenas de famílias para as margens da cidade, o literal soterramento de
décadas de memórias dos moradores ou o esfacelamento e total descaraterização da área.
Aqui, é a história dessa destruição, dos silêncios e silenciamentos construídos em torno dela e
das possibilidades de sobrevivência e restituição de algumas dessas histórias que nos interessa
contar.

2 – A INFAME MORTE ANUNCIADA


A área do Caetano Filho, popularmente conhecida como Beiral, situava-se na região central de
Boa Vista. Como indica uma vasta literatura sobre o local, o Beiral foi um dos primeiros e mais
tradicionais núcleos habitacionais da cidade, inicialmente constituída de pescadores devido à
proximidade com o Rio Branco. A área também é retratada como o local de garimpeiros que,
através das décadas, saindo das corrutelas, buscavam o Beiral atrás de acolhida e de diversão,
o que o caracterizou historicamente por uma vida noturna bastante agitada com bares e
demais trabalhadores e trabalhadoras da noite (ANDRADE, 2011; PRETO, 1987). Em parte,
graças a tudo isso, o Beiral também foi historicamente retratado e identificado como local de

1042
violência e criminalidade, consumo e tráfico de drogas. Ademais, graças sua proximidade com
o principal rio de Roraima, era também conhecido pelo histórico risco de alagamento durante
o período chuvoso do ano.
Por todas essas razões, não raro o Beiral era reconhecido e mencionado na mídia pelas
constantes demandas por intervenção, tanto por parte de seus moradores, quanto por parte
da população de modo geral. Tanto é verdade que, naquele dia 11 de julho de 2017, o anúncio
da destruição do Beiral não pareceu ter desagradado e tampouco surpreendido muita gente.
Partindo dessa constatação, o trabalho de escrita desse texto direciona seus esforços no
sentido de entender como o Beiral, antes de ser efetivamente destruído, se constituiu nesse
local suscetível à destruição?
Como resposta preliminar, podemos dizer que a destruição do Beiral se articula à produção de
formas de vida ou subjetividades a ele relacionadas para as quais e sob as quais a intervenção
do poder público se torna justificável ou mesmo necessária. Tais formas de existência podem
ser aqui compreendidas sob a alcunha da infâmia (FOUCAULT, 2015).
No texto clássico A vida dos Homens Infames, Michel Foucault agrupa sob essa denominação
aquelas existências que estariam destinadas a passar ao largo da história, ou seja, vidas que
passariam despercebidas ou que desapareceriam, se não fosse por um encontro com um
poder que se ocupa delas e que as resume nas poucas palavras sobre elas proferidas. Palavras
de horror, assombro e silenciamento que as resumem como sórdidas, monstruosas,
abomináveis. É nesse sentido que ele denomina essas breves histórias como “existências-
relâmpagos” ou “poemas-vidas”. Vidas que, em contato com o poder, recebem a marca da
infâmia nas poucas frases que lhe são proferidas. São palavras rápidas que penetram na
existência e “desempenham” a violência e a morte.
Um exemplo de como isso opera podemos encontrar na forma como os meios de
comunicação, enquanto importante equipamento social, produzem tipos humanos que
devem ser evitados ou mesmo eliminados (COIMBRA, 2001). Aqui, falamos do modo como a
mídia veicula informações, forja esquemas de interpretação e representação de indivíduos e
grupos como indesejáveis. De forma breve, nos é comunicado o nome dos indivíduos, seu
crime ou suposto crime, e seu destino, que dificilmente é um destino diferente do hospital, da
prisão ou a morte. Essa breve contextualização marca aquela existência com vil, baixa,
abominável. Diz Foucault (2015) que o termo "notícia" abrigaria, assim, a dupla referência que
resume toda infâmia: “a rapidez do relato e a realidade dos acontecimentos relatados” (p.
207).

1043
O infame é, então, uma existência que se tornar alvo de uma ação do poder que,
paradoxalmente, na tentativa de devolvê-las à clandestinidade e ao silencioso esquecimento
de onde elas se sobressaem, acaba iluminando-as ou fazendo-as ressoar. Foucault fala com
diversão de “revanche” para apontar como o empenho de silenciar e desdizer pela infâmia e,
em última instância, de pronunciar a morte acaba por, através de um sem-número de acasos,
perpetuar o vivo – ainda que esse discurso precário seja a condição de possibilidade de sua
restituição às gerações ulteriores.
Nesse seu apontamento sobre como aquilo que produz o silenciamento é também o que faz
reverberar tais existências, o que mais nos chama a atenção é o fato de algumas vidas só
contarem com sua infâmia para que possam ser enquadradas como vivas ou vividas. Isto é, a
infâmia como última possibilidade de sobrevivência. Elas devem sua luminescência justamente
a um esforço do poder de torná-las indignas à memória dos homens:
Para que alguma coisa chegue até nós, foi preciso, no entanto, que um feixe
de luz, ao menos por um instante, viesse iluminá-las. Luz que vem de outro
lugar. O que as arranca da noite em que elas teriam podido, e talvez sempre
devido permanecer, é o encontro com o poder; sem esse choque, nenhuma
palavra, sem dúvida, estaria mais ali para lembrar seu fugidio trajeto
(FOUCAULT, 2015, p. 203).

Portanto, na infâmia, o contato que a vida tem com o poder, não é deste jogando luz sobre
aquele. Seu funcionamento é de caráter incendiário: a intensidade inflamada do poder sobre
algumas vidas revela um desejo que é de queimá-las por definitivo da existência. De fato,
deste incêndio, sobram apenas cinzas: “vidas ínfimas que se tornaram cinzas nas poucas frases
que as abateram (FOUCAULT, op. cit., 206). Reduzidas a pequenos trechos sobre elas
proferidas, essas vidas lampejam aqui e ali, nos boletins policiais, noticiários jornalísticos, em
arquivos de internamentos, nos periódicos relatórios institucionais etc. Nesses arquivos de
infâmia, figuram pequenas chamas, cuja burburinho insistentemente atravessa os séculos,
resiste ao esquecimento, sobrevive à morte e, apesar de tudo, chega até nós. No caso em tela,
que murmúrios e silêncios se desprendem dos documentos midiáticos da infame destruição do
Beiral?

3 – O QUE CONTAM AS NOTÍCIAS?


Para respondê-lo, lançamos mão de instrumentos de pesquisa Quali-quanti, com inspiração
em aspectos e elementos oriundos dos estudos dos modos de produção de subjetividade de
modalidade cartográfica (PASSOS e BARROS, 2015; KASTRUP, 2015; GUATTARI e ROLNIK, 1996;

1044
DELEUZE, 2013; DELEUZE e GUATTARI, 2011)m considerando os meios de comunicação como
importantes dispositivos sociais de produção de subjetividades (COIMBRA, 2001).
Precisamente, no que concerne a produção dos dados de pesquisa, foram lidas as edições
impressas do jornal Folha de Boa Vista, maior do estado de Roraima, publicadas entre 2 de
janeiro de 2017 à 29 de dezembro de 2017, contabilizando ao todo, 298 edições. Nestes,
foram encontrados 53 (cinquenta e três) textos com menções, os quais foram transcritos e
agrupados por seção de origem no jornal: 26 textos oriundos da seção “Cidade”, 19 textos da
página “Policial”, 6 textos da página “Opinião” e 2 textos da seção “Política”. Já reunidos, o
conteúdo dos textos foi categorizado qualitativamente e tomado como corpus textual, objeto
da análise do software Iramuteq de análise textual. A partir desses procedimentos, é possível
fazer algumas inferências, que não devem ser entendidas isoladamente, mas de modo
convergente, inter-relacionado e complementar.
Primeiramente, percebe-se que, embora o Beiral tenha sido frequentemente noticiado pelo
meio de comunicação local no ano 2017, nenhuma das notícias foi veiculada nos dois
primeiros e três últimos meses de 2017. É curioso perceber, portanto, uma concentração da
abordagem midiática em dado período do ano – notadamente, entre os meses de abril e
setembro. Foi na seção “Página Policial” do Jornal que o Beiral apareceu com mais
regularidade, com, em média, 2,7 notícias sobre violência e criminalidade por mês. Apenas a
partir do dia 11 de maio a área passa a ser associada ao caderno “Página Cidade” do Jornal. A
princípio, as notícias giravam em torno do período chuvoso que se iniciava: capitalizando os
perigos de enchentes, informando o alagamento e proliferação de doenças, mostrando
preocupação por parte do poder público e destacando o estatuto de área de risco da
localidade. Foi em meio a esse relativo crescimento de interesse que, no dia 10 de julho, a
gestão municipal anunciou publicamente que 14 casas seriam demolidas:
A Prefeita Teresa Surita (PMDB) anunciou, na manhã de ontem, 10, durante
entrevista a uma emissora de TV, que 14 residências na área de interesse
social Caetano Filho, popularmente conhecido como Beiral, que se estende
pelo Centro e o bairro Calungá, Zona Sul da Capital, serão demolidas até a
próxima semana. (PREFEITURA..., 2017, np)

O anúncio foi replicado na edição do dia seguinte da Folha, informando também que aquilo
representava apenas o início das demolições e remoções. É importante, portanto, que se
perceba que até o evento de sua destruição, o Beiral figura esporadicamente nos jornais como
signo de criminalidade e da violência na “página Policial”, e signo do risco de alagamento e
doenças na “página Cidade”. Ou seja, já se apontavam problemas relacionados à área, sendo
ele objeto de pauta, mas com protagonismo e tratamento distintos.

1045
A partir disso, a área ganha, literalmente da noite para o dia, status de noticiável, sendo
amplamente divulgada, tornando-se alvo, inclusive, de análise política, chargista, aparecendo
no espaço destinado às falas dos leitores e comentadores afins. Em especial, chama a atenção
a frequência com que o Beiral comparece na mídia no mês de julho. Não podemos apontar
essa reincidência como simples efeito da realidade vivida, mas inferir que a abordagem do
Jornal não simplesmente reflete a realidade vivida, mas a produz (COIMBRA, 2001) e a
espetaculariza (SIBÍLIA, 2015).
O repentino aumento do interesse midiático pelo Beiral remete a um modo de atuação
midiática e de exercício das ações de governamento que podemos, na esteira do apontado por
Foucault (2008) e Debord (1997), definir como espetacular. Interpretando esse acontecimento
com Foucault (2008), dizemos que as ações governamentais na contemporaneidade precisam
ser, não só aceitas, como requeridas, solicitadas. Dessa maneira, quando os poderes
municipais decidem pela destruição do Beiral, é preciso investir uma imagem sobre ele, que
corresponda a um risco que justifique e legitime a ação de sua destruição.
Nesse sentido, a mídia é fundamental para encenar o espetáculo aterrorizador que domina o
imaginário das pessoas (CHOMSKY, 2014). Enfim, é no quando de sua destruição que essa
imagem do Beiral como extremo risco, vem à tona com força sem precedente. Dentro disso é
que entra o espetáculo da segurança, orquestrando enormes exibições de força, com a
demolição das casas o mais rápido possível e ação de monitoramento da área, inclusive, com
drones:
Com o avanço das negociações e demolições de casas do Beiral, a Prefeitura
de Boa Vista, por meio do Programa Braços Abertos, passa a fazer o
monitoramento diário com drone em toda a área que corresponde à
revitalização. (PARA RECEBER..., 2017, np).

Como segundo elemento chave para nossa análise, apontamos como os usuários comuns do
espaço urbano do antigo Beiral tiveram a vida manchada pela infâmia, através das formas
como foram qualificados ou retratados como perigosos, criminosos, precários ou agressores
de alguma natureza. Um primeiro indício dessa produção, torna-se evidente quando se
observa que o Jornal não fala do Beiral como segundo em relação a um primeiro; de modo
geral, ele funciona como um terceiro em face de um segundo. São as forças policiais, a Defesa
Civil e demais nomes da gestão municipal de Boa Vista que, de forma persistente e
generalizada, figuram nas notícias afirmando versões oficiais sobre as vidas, desejos e ações
dos moradores ou das pessoas que circulavam pelo Beiral. Esse modo de funcionamento
coincide com as descrições do infame foucaultiano: uma vida resumida por um poder que dela

1046
se ocupa (FOUCAULT, 2015). A título de exemplo, consideremos o modo como a morte de um
morador é apresentada pelo Jornal:
A vítima, identificada como Marcos Alexandre Pereira da Silva, 30 anos, foi
socorrida e levada ao Hospital Geral de Roraima (HGR) para receber
atendimento médico, mas não resistiu aos ferimentos e morreu horas
depois. O caso foi registrado na Delegacia Geral de Homicídios (DGH) e,
conforme as informações da Polícia, Marcos era dependente químico.
(HOMEM É ESFAQUEADO..., 2017, np)

Um aspecto correlacionado a essa produção de infâmia refere-se ao modo como as


falas sobre o Beiral se relacionam com a ideia de risco. De modo geral, pode-se perceber um
deslocamento ou ambiguidade quanto à própria noção de risco. Por um lado, o risco do Beiral
se projeta contra a cidade sob a forma de criminalidade, marginalidade, tráfico de drogas, o
que demanda ação por parte das forças policiais para conter os riscos contra civilidade, o pacto
social etc. (FOUCAULT, 2010; DELEUZE, 2013). Por outro, a percepção do risco é direcionada
contra os próprios moradores, o que o converte em vulnerabilidade e põe a demanda por
intervenção sob tutela da Defesa Civil, na justificativa de salvar aquelas vidas (CAPONI, 2009).
Um exemplo desse duplo entendimento de risco pode ser verificado no seguinte fragmento:
Por e-mail, o leitor, Rhudson Luiz de Oliveira Souza comentou a matéria
“Prefeitura vai desapropriar famílias no Beiral e anuncia a demolição de 14
casas”. ‘Isso já era pra ter acontecido há muito tempo: aproveitar que o
Beiral ta debaixo d'água pra dar uma organizada não só nas casas, mas no
tráfico de droga, e montar uma força-tarefa para fechar o cerco na área e
combater a criminalidade no Centro da cidade’. (BEIRAL, 2017, np).

Associado à noção de risco, a produção de infâmia faz com que os moradores e pessoas que
circulavam pelo Beiral, passem a ser muito facilmente confundidas como pessoas perigosas.
Disso resultam, por exemplo, que se naturalizem as situações de constrangimentos das forças
policiais a qualquer comportamento estranho. Consideremos o fragmento de notícia a seguir
como exemplo:
A ação aconteceu após a PRF ir até a área verificar a ocorrência de outro
crime ocorrido próximo ao perímetro urbano da BR 174. Durante a
diligência, foi avistada a motocicleta estacionada em local suspeito,
momento este, em que os policiais consultaram a placa e outros elementos
de identificação do veículo que continha a restrição de roubo e furto. (PRF
PRENDE..., 2017, np).

Na área do Beiral, uma moto estacionada era naturalmente indicativa de um possível


roubo. Se nesse episódio havia, de fato, correspondência entre a suspeita e a prática delituosa,
ressalta-se também as vezes em que os moradores eram abordados pelas forças policiais e
nenhuma irregularidade percebida. Pode-se supor, que se esses acontecimentos não

1047
renderam nenhuma nota nos jornais, são comunicados somente os casos que reforçam a
representação dos moradores como criminosos.
Aliás, mesmo nas notícias que não tinham ligação direta com uso de drogas, notamos
o Jornal se referir àquela localidade sob esse estigma. Por exemplo, matéria de maio de 2017
que relata uma a consumo de bebida alcoólica por uma aluna de escola localizada no centro de
Boa Vista (mesma região do antigo Beiral). De início, não haveria como vincular o fato ao
Beiral, já que a ingestão de álcool pela adolescente teria ocorrido não exatamente nas ruas
que caracterizavam o Beiral, mas no seu entorno. O Jornal faz questão de ressaltar que o caso
aconteceu nas suas proximidades, mas aproveita o ensejo para reforçar a pecha daquele como
um local conhecido pelo uso de drogas:
Por volta das 16h30 desta quinta-feira, 18, uma estudante de 15 anos foi
encontrada completamente embriagada nas proximidades da área Caetano
Filho, o ‘Beiral’, local conhecido por abrigar boca de fumo. (ALUNA
FARDADA..., 2017, np).

Em direção complementar, se o Beiral é um local conhecido por abrigar boca de fumo, por
extensão, seus usuários não podem pretender uma legitimidade para gerir os próprios
processos ou decidir sobre a própria vida, o que reflete na veiculação de falas autorizadas
(COIMBRA, 2001). No quando da destruição do Beiral, o então Tenente-coronel da Polícia
militar, na posição de especialista, pessoa que olha a situação de fora e que é autorizado a
falar, reforça a ilegitimidade dos moradores em falar em nome próprio, ao tempo em que, na
posição de “especialista” vaticina do que se trata o lugar: “A Cracolândia de Roraima”
(ESPECIALISTA..., 2017, np).
Nesse caso, a terminação “Cracolândia de Roraima” é suficiente para reforçar que esses
moradores não podem e nem devem pretender falar em primeira pessoa. Nesse sentido, o
Jornal fala do Beiral, sobre o Beiral, mas não dá voz ao Beiral. Tornam-se, nos dizeres de
Foucault (2008) e Butler (2015), vidas de menor valor, rebaixados a uma instância inferior,
tutelados por aqueles que tem autoridade moral e intelectual para falar por elas. Por esse viés,
os variados vocábulos empregados sobre o Beiral fazem com que os usuários comuns dessa
área sejam reconhecidos como criminosos ou associados à criminalidade, antes mesmo de ter
cometido qualquer delito. Do mesmo similar, tornam-se miseráveis, em situação de risco
generalizado, antes mesmo que nos fosse comunicado seus nomes, histórias e condições
financeiras. São, nos temos vistos em um dos fragmentos de textos recolhidos, uma “vergonha
à céu aberto”.

1048
Naquilo de que trata esse estudo, isso se torna possível graças à repetição de notas e notícias
nas quais esse tipo de mensagem torna-se frequente. Ou seja, o simples uso repetitivo, ao
longo de todas essas falas acumuladas, que nem sempre significam exatamente uma situação
de risco, fazem com que a perspectiva do risco, se pareça com o próprio risco.
A cotidiana produção de infâmia ao qual o Beiral foi submetido ao longo de sua história, por si
só deveria bastar para causar comoção afetivas inquietantes de revolta e de indignação. O
curioso, no entanto, é perceber que, como área de interesse social, o Caetano Filho não sofre
uma intervenção que se volte a minorar as condições precárias de vida de seus moradores. Ao
contrário disso, o que se empreendeu foi a retirada de mais de 300 famílias, a despeito de sua
vontade, das condições materiais, históricas, emocionais e simbólicas que esse processo de
remoção possa lhes causar como o próprio poder público conta com um desprezo que beira à
provocação: "A avaliação do pagamento não é feita pela casa, porque a casa não será utilizada.
A avaliação é feita pela área, pelo terreno que ocupa cada residência", disse a Prefeita Teresa
Surita” (MORADORES..., 2017, np).
Dessa forma, o Beiral foi destruído sem muitas vozes contrárias. Seu desaparecimento não foi
motivo de luto, tal como as razões de sua existência precária não era causadora de grandes
estranhamentos à população. Pelo contrário, seu fim foi recepcionado como um evento
necessário e até mesmo desejável – conforme admitido e ratificado por alguns boa-vistenses.
Seja na forma de um discurso velado, seja de modo explícito, como atestam o fragmento que
dá título a esse texto e mais outro fragmento de notícia: “O Beiral já deu o que tinha que dar"
(MAITO JÚNIOR, 2017, np).

4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS: SOBREVIVÊNCIA


A essa altura, podemos afirmar que o Jornal, como operador daquilo que a sociedade aspira,
interveio decisivamente sobre o Beiral: produzindo existências infames, espetacularizando
algumas de suas nuances, forjando realidades e regulando as disposições afetivas de reação à
sua destruição. Contudo, o mesmo Jornal que sustentou e contribuiu com as ações
governamentais de intervenção sobre os corpos abre uma possibilidade de recuperação dessas
existências na atualidade. Ao produzir infâmia, ao resumir as vidas do Beiral em pequenos
fragmentos textuais, o Jornal cria uma via de acesso a essas vidas, cuja restituição no presente
pode fornecer meios de conduzir a crítica e a resistência a essas formas de poder.
A despeito do enfrentamento assimétrico com forças que investiram o silenciamento do Beiral,
portanto, é preciso olhar e ver como ele resiste, insiste e sobrevive. Para isso, é necessário
ressaltar que a denúncia dessas formas de poder é endereçada às nossas obrigações éticas e

1049
políticas e nossas disposições afetivas. A destruição do Beiral foi tolerada, tanto quanto outras
violências são toleradas cotidianamente Brasil à fora porque sequer são reconhecidas como
violência. Nesse sentido, falar do Beiral tem como intuito, tornar essa e tantas outras
cotidianas destruições algo intolerável, de modo a impedir que o direito de abrir e modificar os
espaços da cidade seja mais uma vez entregue a elite política e econômica e não plenamente
acessível a todos nós, por mais diferentes que sejamos. Sustentamos que esse é um
empreendimento urgente, se considerarmos que a revitalização de boa parte das nossas
cidades – em moldes muito próximos do aqui apontado – nos é comunicada em tom festivo,
não só pelos poderes, mas também pelas pessoas.
Assim sendo, avessos ao silenciamento, é lícito fazermos ressoar a inquirição: quando as
silhuetas das grandes edificações começam a imprimir uma imagem de modernidade nas
nossas cidades, o quanto da violência da demolição das casas e remoção das famílias será
possível entrever nas espetaculares (sem dúvida espetaculares!) edificações vindouras?

Referências

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maio. Caderno A: página Policial, np.

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FOUCAULT, M. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008b

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MAITO JÚNIOR, L. Alagamentos, especulação imobiliária, drogas e você. Folha de Boa Vista. Boa Vista,
RR. 14, 15 e 16 de julho de 2017. Caderno A: página Opinião, np.

MORADORES do Calungá e Beiral serão deslocados para o Bairro Laura Moreira. Folha de Boa Vista. Boa
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PARA RECEBER mais, moradores estão ampliando suas casas, diz prefeitura. Folha de Boa Vista. Boa
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PREFEITURA vai desapropriar famílias no Beiral e anuncia demolição de 14 casas. Folha de Boa Vista.
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Opinião, np.

1051
LOS CUMBES VENEZOLANOS: la emergencia de la reparación de la memoria ante el
silencio
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Juan Carlos Piñango Contreras


Cientista político; Universidad Federal de Pelotas; Juancpinangoc@gmail.com

Los espacios libertarios para la resistencia a la esclavitud, en América Latina y el Caribe,


conocidos como cumbes y quilombos fueron creados desde el siglo XVI por los africanos
esclavizados y sus descendientes. Hoy, estos espacios tienen un lugar importante en el
discurso político de las organizaciones afrodescendientes en las luchas por el reconocimiento
de la memoria que ha persistido a pesar de haber sido negada y silenciada durante siglos. A
partir de una exhaustiva revisión bibliográfica, se pretende presentar los principales aportes
académicos y debates sobre la memoria y el patrimonio cultural de los afrodescendientes y,
reflexionar de forma crítica sobre los cumbes y quilombos como símbolos de resistencia y
libertad.
Palabras clave: Afrodescendientes; Cumbes; Patrimonio Cultural; Memoria; Venezuela.

The libertarian spaces for resistance to slavery, in Latin America and the Caribbean, known as
cumbes and quilombos, were created since the 16th century by enslaved Africans and their
descendants. Today, these spaces have an important place in the political discourse of Afro-
descendant organizations in the figth for the recognition of their historical memory that has
persisted despite being denied and silenced for centuries. Based on an exhaustive
bibliographic review, it is intended to present the main academic contributions and debates on
the historical memory and cultural heritage of Afro-descendants and to reflect on the role of
cumbes and quilombos as symbols of resistance and freedom.
Keywords: Afro-descendants; Cumbes; Cultural heritage; Memory; Venezuela.

1052
1. Consideraciones Iniciales: Afrodescendientes, desigualdad y silenciamiento.

Para comprender la discusión sobre los lugares de memoria de los afrodescendientes, es


importante hacer un balance histórico de su situación. Por ello, es importante destacar que la
población identificada como descendiente de africanos esclavizados es producto de un sistema
económico esclavista que tuvo su desarrollo desde el siglo XVI, y que consistió en el secuestro,
traslado y explotación de estos seres humanos hasta las Américas y el Caribe, después de
varios siglos, los descendientes de los esclavizados africanos representan un porcentaje
importante en la matriz de desigualdad en América Latina. Para tener una mejor visión de este
tema, comenzaremos con una publicación reciente de la Comisión Económica para América
Latina y el Caribe, CEPAL (2020) sobre “Afrodescendientes y la matriz de desigualdad social en
América Latina”:
La desigualdad es una característica histórica y estructural de las sociedades
latinoamericanas y caribeñas, que se ha mantenido y reproducido incluso en
períodos de crecimiento y prosperidad económica. Es un fenómeno
multifacético, y se caracteriza por un complejo entramado en el que las
desigualdades socioeconómicas se entrecruzan y se potencian con las
desigualdades de género, étnico-raciales, territoriales y por edad,
encadenándose a lo largo del ciclo de vida de las personas” (CEPAL, 2020,
p.12).

Así, es posible percibir que hablar de desigualdad en América Latina y el Caribe no solo
significa hacer referencia a variables económicas, por tratarse de un asunto estructural, las
consecuencias del régimen colonial de esclavitud se reflejan hoy en los ámbitos social, cultural,
político y espiritual, además del económico, según el enfoque mencionado el documento
muestra que:
Las desigualdades y las brechas de bienestar que afectan a la población
afrodescendiente en América Latina, que asciende actualmente a 134
millones de personas, que representan un 21% de la población total,
constituyen, sin duda, uno de los ejes estructurantes de esa matriz de la
desigualdad social. (CEPAL, 2020, p.12).

Más adelante, el documento continúa profundizando sobre la desigualdad:


Este es el caso de las sociedades latinoamericanas. En ellas, las
desigualdades y la discriminación basadas en la condición étnico-racial no
son solo reminiscencias del pasado colonial y esclavista, sino mecanismos
contemporáneos que se reproducen a sí mismos y producen nuevos
mecanismos a través de los cuales las personas discriminadas se mantienen
en una situación de exclusión y subordinación y se da la reproducción
intergeneracional de dicha situación. (CEPAL, 2020, p. 19).

Así, las diferencias sociales, como legado de las estructuras coloniales fueron establecidas
como diferencias raciales, étnicas e nacionales, definiendo el destino de las nuevas sociedades

1053
en el nuevo mundo, una estructura establecida con bases tan firmes que hasta hoy se
mantienen vigentes, siendo el racismo una de las manifestaciones más visibles de la
“colonialidad del poder”. (QUIJANO, 2000).
Teniendo el panorama más claro sobre la situación actual de los afrodescendientes en las
últimas dos décadas, varias acciones de gran importancia han sido desarrolladas en función de
generar transformaciones en la estructura social, política y económica, algunas de estas
acciones fueron implementadas a nivel internacional, entre estas destacan la III Conferencia
mundial contra la discriminación racial y formas conexas de intolerancia, realizada en el año
2000, en la ciudad de Durban, Sudáfrica, y las demandas de reparaciones por tráfico de
africanos para ser sometidos a la esclavitud solicitadas por algunos países del Caribe ante la
Organización de los Estados Americanos, en el año 2016.
De esta manera, con la implementación de múltiples estrategias, las organizaciones,
intelectuales, líderes y gobiernos, han trabajado para visibilizar las demandas de las
movilizaciones y, así, alcanzar las transformaciones necesarias para combatir la desigualdad
existente en América Latina y el Caribe, como lo destaca Miranda (2019):
La historia de la diáspora africana empieza a ser reivindicada en el mundo y
en el campo político, el campo de la lucha retórica. Desestabilizan las bases
de esta perspectiva europea, que se concibe como única. Las herencias
africanas están en el centro de las preocupaciones de los grupos interesados
en fomentar procesos antirracistas. No obstante, podemos indagar sobre lo
que sería la reorganización de la existencia y donde podríamos abrigarla en
términos conceptuales. (MIRANDA, 2019, p.30).

Precisamente, como parte de las políticas de algunos estados latinoamericanos en el marco de


las movilizaciones sociales por las demandas de políticas de inclusión dirigidas a las
poblaciones afrodescendientes, el Mercado Común del Sur (MERCOSUR) aprobó, en el año
2017, el proyecto de declaración de patrimonio “Cumbes, Quilombos y Palenques del
MERCOSUR”, y consecuentemente, la República Federativa de Brasil incluyó la Serra da
Barriga, en donde se encontraba localizado el “Quilombo dos Palmares”, información
destacada en la página del Instituto de Patrimonio Histórico y Artístico Nacional (IPHAN, 2010):
O reconhecimento da Serra da Barriga como Patrimônio Cultural do
MERCOSUL, além de contribuir para o reconhecimento dos indivíduos e suas
comunidades de matrizes africanas no continente americano, e nos países
da região, representa também, uma reparação às perseguições e à
intolerância praticadas e reveladas através dos quilombos, refúgios de
negros foragidos e perseguidos por séculos e que hoje, como não poderia
deixar de ser, são reconhecidos, como testemunhos da resistência e dos
processos de ressignificação das referências culturais dos afrodescendentes
na construção das identidades da América, em especial aos países do
MERCOSUL. (IPHAN, 2010).

1054
Es importante destacar que esta declaración de patrimonio realizada por MERCOSUR forma
parte del proceso de visibilidad y reconocimiento de los Estados que integran este sistema,
atendiendo algunas de las demandas sociales y políticas de los afrodescendientes
mencionadas en parágrafos anteriores, tomando como punto de partida estos proceso nace
como inquietud ahondar en el debate sobre la patrimonialización de esos lugares de memoria
de importancia para las comunidades afrodescendientes de las Américas y el Caribe, a partir
de la discusión sobre las categorías "memoria colectiva" y "lugares de memoria”, considerando
que, en las últimas décadas, el reconocimiento de esos lugares como testimonios del
patrimonio cultural latinoamericano ganó notoriedad en el discurso político de las
organizaciones afrodescendientes de las Américas y el Caribe, aunque dicho reconocimiento
haya sido negado y silenciado durante algunos siglos.
Con el objetivo de reflexionar sobre el impacto de esas declaraciones de patrimonio en las
comunidades afrodescendientes de las Américas y el Caribe, buscamos, por medio de este
trabajo, en primer lugar, discutir las categorías clásicas sobre memoria colectiva y su utilidad
en el análisis sobre contextos de las luchas de los afrodescendientes en Latinoamérica,
seguidamente, profundizar en la patrimonialización de los lugares de memoria de importancia
para las comunidades afrodescendientes, entre estos los cumbes, como parte de las
reparaciones históricas exigidas por esos grupos sociales.

2. Afrodescendientes: entre la memoria colectiva y la memoria subterránea


Entre las grandes contribuciones hechas por Maurice Halbwachs, inaugurando una nueva
etapa conocida como la sociología de la memoria, está la teorización sobre los cuadros sociales
de la memoria, definitivamente esta puede ser considerada una de las contribuciones más
significativas, pues ofreció una perspectiva social sobre estos estudios, en este sentido Colacrai
(2010) apunta que:
La principal hipótesis y novedad de Halbwachs es la noción de lo que
denominó marcos sociales de la memoria. Esos marcos son sociales en tanto
se construyen con los otros y son los que posibilitan la aparición de un
recuerdo. El sociólogo francés los define como recuerdos estables que
permiten a los individuos la recuperación del pasado. Todo recuerdo está
entonces condicionado por el recuerdo de los otros. (COLACRAI, 2010, p.65).

De este modo, es importante enfatizar que, aunque Halbwachs no niega la posibilidad de que
una memoria individual tenga lugar en el intento de evocar algún momento, ese acto sólo es
posible en la medida en que esa memoria se establece en una relación con los otros.
Posteriormente (COLACRAI, 2010, p. 65) continua en el mismo texto:

1055
Otro de los ejes de la teoría de Halbwachs que también significó un gran
aporte al pensamiento de la memoria colectiva fue la afirmación de que los
recuerdos no son revividos sino reconstruidos. Según Halbwachs la acción
de los marcos sociales, de los cuales los individuos nunca pueden escapar, ni
aun cuando se encuentren solos, son los que moldean el pasado.
(COLACRAI, 2010, p.65)

De acuerdo con lo ante expuesto, esos cuadros sociales pasan a ser la referencia para que los
individuos puedan recrear la memoria a partir de una construcción colectiva, de donde se
puede deducir que los seres humanos no pueden escapar de la influencia de los elementos que
componen el ambiente en el que se desarrollan, teniendo como marco los llamados cuadros
sociales de la memoria, como la familia, la clase social, la religión. Por tanto, estos marcos
sociales se convierten en el referente para que los individuos recreen una memoria a partir de
una construcción colectiva, y a propósito de este planteamiento hacemos las siguientes
preguntas: ¿Qué sucede en las sociedades en donde estos marcos sociales no corresponden a
un criterio de homogeneidad culturalmente hablando? ¿Es posible reconstruir una única
memoria en un ejercicio colectivo cuando las desigualdades son el reflejo de una sociedad
estructurada desde una perspectiva racial?
En este sentido, tenemos que (POLLAK, 2006, p. 17), en el texto, “Memoria, olvido y silencio”,
destaca la idea de que “Halbwachs lejos de ver en la memoria colectiva una forma de
imposición simbólica o de violencia, mira hacia el lado positivo, reforzando la cohesión social,
no a través de la cohesión, sino a través de la adherencia afectiva al grupo”, tesis que podría
asociarse con la teoría del “compartilhamento” desarrollada por Joel Candau para referirse al
intento de experimentar un sentimiento subjetivo de memoria común. .
Posteriormente, continúa (POLLAK, 2006), dado el carácter problemático de la categoría de
memoria colectiva planteada por Halbwachs en un intento de conciliar la memoria colectiva y
la memoria individual, a través de un proceso de negociación para reconstruir la memoria
sobre una base común, surgen otras miradas que muestran los procesos y actores que
intervienen en la constitución de esta memoria, permitiendo el florecimiento de tensiones por
parte de las memorias subterráneas que se oponen a las memorias oficiales.
En este punto, rescatamos el enfoque de (CANDAU, 2009) sobre la falsa idea de que eventos
conmemorativos, celebraciones, museos, por ejemplo, implican y garantizan una
representación del pasado común, ya que cada individuo no tiene la misma experiencia
cuando entra en contacto con esa representación del pasado.
Entonces, podemos decir que tal panorama es el caso de las sociedades latinoamericanas, en
donde el proyecto modernizador, que se instauró con la creación de la Nación, desarrolló un
discurso sobre orígenes comunes, memorias nacionales, estables, inalterables, allí en donde

1056
justamente los esclavizados africanos y sus descendientes permanecieron al margen, sin
formar parte del imaginario, como colectivos ausentes, en este punto, es posible acceder a la
tentación de preguntarnos sobre lo siguiente: ¿Estos grupos marginalizados han sido capaces
de reconstruir su memoria y mantenerla a partir de sus propios cuadros sociales?
Si bien no es posible dar respuesta a esta pregunta en este momento, debido a que el formato
de este documento no nos permite investigar en profundidad, lo que sí podemos hacer es
reflexionar sobre el estado del arte del caso que sometimos a estudio a saber; el discurso de
los afrodescendientes y su relación con la categoría de lugares de memoria.

3. Reparaciones por esclavitud: en busca de un lugar en la historia.


Así, es posible conocer a través de la revisión de dos de los documentos más importantes
relacionados con las luchas de estas comunidades, a saber; el Plan de Acción de Durban (2001)
y la Declaración sobre las reparaciones por la esclavitud de los africanos y sus descendientes y
el tráfico de esclavos (2016), que el discurso político de estas organizaciones y sus demandas
no se corresponde con lo que ha sido relatado en las historias oficiales, de esta manera, para
efecto de este análisis, ubicamos a estas organizaciones en la categoría de memorias
subterráneas que, además de representar una oposición a la memoria nacional, también
pueden constituir metamemoria (CANDAU, 2015). Usando esta categoría desarrollada por el
famoso sociólogo francés, para comprender la movilización social por el reconocimiento y los
derechos vulnerados de las comunidades afrodescendientes, se observa el desarrollo de
identidades individuales y colectivas, como formas de sociabilidad que tienden a fortalecer los
lazos de unión de las personas que se identifican con esas luchas.
Algunas de estas prácticas ya ocurrieron en las comunidades de africanos y afrodescendientes,
por ejemplo, la creación de los quilombos, por un lado, se debió a la necesaria creación de
espacios como refugios luego de la huida del sistema esclavista, pero también para a recrear
formas compartidas de sociabilidad compatibles con los valores de libertad. Así lo describe
(ACOSTA, 1986), cuando destaca los valores y costumbres presentes en los cumbes, quilombos
y palenques:
La idea de libertad se expresó en las huidas y en la constitución de
comunidades. Roger Bastide opinó que el cimarronaje significó también
resistencia cultural. En este caso, el lazo de solidaridad no era la procedencia
específica, sino la idea de la libertad. La solidaridad sobrepasó también los
lazos que hubieran podido significar, en ciertos casos, los lugares de origen
dentro de América Latina. Siempre fueron bien acogidos en las cimarroneras
del Continente los esclavos huidos de las Antillas o los que llegaban de muy
lejos, a través de las selvas, desde países desconocidos. (ACOSTA, 1986, p.
120)

1057
Lo interesante de estas experiencias, y que se puede resaltar a propósito de este análisis, es
que los vínculos que se desarrollaron en estos espacios de liberación tendieron a reforzar
identidades, las cuales han sido articuladas históricamente en los procesos de reconstrucción
de la memoria individual y colectiva.
En los últimos años, especialmente después de la Tercera Conferencia Mundial contra el
Racismo, celebrada en Durban, Sudáfrica, en 2001, se creó con gran fuerza un movimiento
político, social y cultural, teniendo como antecedentes algunas experiencias políticas e
intelectuales sobre la negritud en el Caribe y otras latitudes, cuyo principal objetivo fue
denunciar la exclusión histórica a la que fueron sometidos los descendientes de africanos
víctimas de la “trata de esclavos” ahora reconocidos como afrodescendientes.
Con las transformaciones sociales ocurridas en algunos países de la región latinoamericana, se
generó una producción de conocimientos que han servido de marco para visibilizar a los
grupos excluidos y sus memorias transmitidas por generaciones a través de la oralidad en
como respuesta a las memorias oficiales y sus usos a través de los sociotransmisores (CANDAU,
2008), son precisamente estas acciones impulsadas desde corrientes críticas que han
permitido el engranaje de vínculos culturales, y la conformación de nuevas formas de
identidad., en este caso nos referimos a los afrodescendientes.
Precisamente, esta manera de reconstruir el pasado en el proceso de evocación de la memoria
colectiva fue posible gracias a la exclusión por la cual se produjo la invisibilidad indiscriminada
de las comunidades afrodescendientes durante siglos, paradójicamente, muchos de los
saberes y costumbres que exaltan estas organizaciones y comunidades, como elementos
característicos de su especificidad como grupo social y étnico, ha persistido como sinónimo de
resistencia, y hoy sin duda representan un elemento central en el discurso por el
reconocimiento de los aportes de estas comunidades en las sociedades latinoamericanas y las
reparaciones por la esclavitud.
Para (POLLAK, 2006, p. 152)
Este ejemplo también muestra la supervivencia durante decenas de años de
recuerdos traumáticos, recuerdos que esperan el momento adecuado para
expresarse. A pesar del importante adoctrinamiento ideológico, estos
recuerdos durante tanto tiempo confinados al silencio y transmitidos de una
generación a otra de forma oral, y no a través de publicaciones, siguen
vivos. (POLLAK, 2006, p. 152).

Más adelante, (POLLAK, 2006) sigue reforzando la idea de que los largos periodos de silencio a
los que son sometidos los grupos excluidos, lejos de representar alguna posibilidad de olvido,
por el contrario, permiten desarrollar más resistencias a los discursos oficiales. La denuncia

1058
contra el racismo estructural, que se ha desarrollado durante siglos, es el eje central del
discurso movilizador de estas organizaciones. La negación de los otros tiene varios matices que
se pueden identificar en nuestra historia como testimonio del legado colonial, y, en nuestra
región, esta práctica se remonta al establecimiento del régimen colonial. Este proceso implicó
no solo la dominación de territorios y la apropiación de vastas riquezas, sino también la
implantación de una hegemonía política y cultural, aún vigente, y que sólo con la superación
de la misma será posible lograr la demandada justicia social.
Comprender cómo el racismo no solo se manifiesta individualmente, sino que también
encuentra en las instituciones la manifestación de un orden estructural nos permite tener una
visión más amplia del lugar de los afrodescendientes desde la subalternidad y las luchas contra
la lógica colonial y sus efectos materiales, epistémicos y simbólico, como lo describe (TORRES,
2020).
Estas prácticas de silenciamiento y exclusión bajo la responsabilidad de las élites políticas en
los últimos siglos, y su repercusión con la implantación de las Repúblicas latinoamericanas, y
con ellas su carácter homogeneizador y totalizador representó la materialización de los
procesos de anulación de los descendientes de africanos esclavizados, sus memorias, aportes y
patrimonio cultural, así “La racialización de las relaciones de poder entre las nuevas
identidades sociales y geoculturales fue el soporte y la referencia legitimadora fundamental
del carácter eurocéntrico del patrón material e intersubjetivo del poder, es decir, de su
colonialidad ”(QUIJANO, 2007, p. 120).
En este orden de ideas, es posible identificar que el racismo se constituyó y constituye en una
política, y de este argumento podemos inferir que olvidar y silenciar otras narrativas que no
forman parte de las historias oficiales y memorias colectivas son acciones que forman parte de
estas políticas, de ahí el carácter estructural del racismo, para complementar esta idea,
presentamos un fragmento de la reflexión de (MBEMBE, 2020, p. 18) en Necropolitica, en
donde se refiere a lo siguiente:
Que a “raça” (ou, na verdade, o “racismo”) tenha um lugar proeminente na
racionalidade própria do biopoder é inteiramente justificável. Afinal de
contas, mais do que o pensamento de classe (a ideologia que define história
como uma luta econômica de classes), a raça foi a sombra sempre presente
no pensamento e na prática das políticas do Ocidente, especialmente
quando se trata de imaginar a desumanidade de povos estrangeiros- ou a
dominação a ser exercida sobre eles. Referindo-se tanto a essa presença
atemporal como ao caráter espectral do mundo da raça como um todo.
(MBEMBE, 2020, p. 18)
.
Una vez que las Repúblicas Latinoamericanas avanzaron en sus procesos constitutivos y
hubo una emergencia para decretar la abolición de la esclavitud, muchos de los descendientes

1059
de africanos permanecieron asentados en los espacios habitados hasta entonces, en los límites
de las plantaciones en donde eran esclavizados, bajo otras formas de explotación, o en los
cumbes, siendo estos últimos en los cuales concentramos nuestras reflexiones como lugares
de memoria de los afrodescendientes.
Siguiendo a (NORA, 1993, p.17)
El paso de la memoria a la historia obligó a cada grupo a redefinir su
identidad revitalizando su propia historia. El deber de la memoria hace de
cada uno un historiador de sí mismo. El imperativo de la historia ha
superado hasta ahora el círculo de los historiadores profesionales. (NORA
,1993, p.17).

Los lugares de la memoria juegan un papel importante en la sociedad como agentes


transmisores de la memoria, en la lucha contra el olvido y en la generación de experiencias
simbólicas que permiten a las personas recordar y recordar hechos que no vivieron, superando
así la barrera entre lo vivido y lo que no se ha vivido. Es importante resaltar que la
preservación de estos espacios, en este caso, los cumbes, quilombos y palenques, permite la
recreación de un pasado de lucha en el imaginario de comunidades de descendientes de
africanos esclavizados, convirtiéndose en lugares de referencia en la memoria de grupos
sociales subalternizados, lo que contradice las versiones oficiales que indican la naturalización
y actitud pasiva de los africanos hacia la trata y explotación esclavista. Por tanto, podemos
concluir que el reconocimiento de estos espacios simbólicos se encuentra entre las
reparaciones morales por la esclavitud durante la colonia en América Latina.

4.Consideraciones finales

La realidad social, política y cultural de los descendientes de africanos esclavizados en las


Américas es muy compleja, intentar comprenderla resulta en un gran esfuerzo intelectual
debido a que el proceso reflexivo debe ser realizados con novedosas metodologías, que
permitan otras miradas más allá de las lecturas que desde el universalismo abstracto se realiza
de los fenómenos sociales y culturales, este es el caso de los lugares de memoria de los
afrodescendientes como los cumbes, quilombos y palenques, en relación con las demandas de
visibilidad, derechos y las respuesta de los Estados en su intento de reconocimiento e
inclusión través de la política de patrimonialización de lugares, expresiones y manifestaciones
culturales.
A través del desarrollo de este trabajo, que aborda la invisibilidad a la que fueron sometidos
los descendientes de los africanos esclavizados en América Latina y el Caribe, incluyendo sus
memorias, intentamos introducir una discusión relacionada con el tratamiento de la memoria

1060
a partir de categorías académicas que han sido utilizadas como instrumentos para profundizar
el racismo estructural y mantener un sistema de relaciones en las que los descendientes de los
esclavizados africanos continúan invisibilizados, de allí la inquietud por explorar las tensiones y
los procesos de negociación que se producen en la relación entre estos movimientos sociales y
los Gobiernos latinoamericanos en las demandas por visibilidad y las respuesta de estos
últimos los cuales emplean la política patrimonial como estrategia de inclusión.
Para tal objetivo seleccionamos varias categorías sobre los estudios de la memoria social,
empleadas en las discusiones académicas sobre patrimonio cultural, con el fin de explorar su
aplicabilidad en los actuales contextos de las movilizaciones sociales de los afrodescendientes,
por ello, este documento pretende aportar elementos para el debate que contribuyan con el
proceso de reconstrucción de la memoria colectiva de los afrodescendientes en las Américas.

Referencias

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La Trama de la Comunicación. Rosario: UNR Editora, Vol. 14, pp. 63-73.

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POLLAK, Michael. Memoria, olvido, silencio. Buenos Aires: Ediciones al margen, 2006.

QUIJANO, Anibal. El giro decolonial. Bogotá: El siglo del hombre editores. 2007.

1061
LUTAS E RESISTÊNCIAS NO TERRITÓRIO DE IDENTIDADE BAIXO SUL/BA:
(re)descobrimentos
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Erivan de Jesus Santos Junior


Graduando em Arquitetura e Urbanismo; Faculdade de Arquitetura da UFBA;
sannarchi@gmail.com.

Marta Raquel da Silva Alves


Doutoranda em Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo PPGAU/UFBA;
Profa. Faculdade de Arquitetura da UFBA; martaraquelsa@gmail.com.

Os povos de resistência do território brasileiro, entre eles as populações indígenas e negras,


tiveram que readaptar o seu modo de vida ao longo dos anos como forma de sobrevivência.
No Baixo Sul/BA, percebe-se que os traços do passado não foram de todo apagados e
permanecem até hoje marcando as práticas, conhecimentos e cotidiano da população. Uma
identidade em constante mudança e agora passando por um novo processo de readaptação,
devido ao avanço das indústrias e do turismo.
Palavras-chave: comunidades remanescentes; territorialidade; história oral; conflito agrário;
turismo.

Resistance folks of the Brazilian territory, among them the indigenous and black populations,
had to readapt their way of living over the years to survive. In the Baixo Sul, it is clear that the
traces of the past weren’t erased and remain today, marking the practices, knowledge and
daily life of the population. An identity that is constantly changing and now undergoing a new
process of readaptation, due to the advancement of industries and tourism.
Keywords: remaining communities; territoriality; oral history; agrarian conflict; tourism.

1062
1 – Apresentação, descoberta e redescoberta.
Baixo Sul é um território de identidade que faz fronteira com o Recôncavo baiano ao norte e
está ao sul da Baía de Todos os Santos. Ele engloba 15 cidades, dentre as quais 8 são
litorâneas, ricas em paisagens e cultura e atrai olhares curiosos por conhecer e viver o
cotidiano dos povos locais que vivem da agricultura, pesca, mariscagem e artesanato. Esta
pesquisa começa no ano de 2019, na região, como um desejo pessoal deste pesquisador que
vos fala (Erivan Santos Júnior) de apresentar e descobrir suas origens. A sistematização e
leitura dos dados desanuviam a história do local e possibilitam um novo olhar para ela.
A impossibilidade de ir a campo em função da pandemia do Covid-19 dificultou o
desenvolvimento da pesquisa, porém registros e memórias das pessoas próximas (parentes,
amigos, vizinhos) apoiaram a elaboração de desenhos, fotografias e narrativas que trouxeram
dados importantes para cruzamento com publicações variadas que fizeram ela avançar.
Durante 21 anos morei no Baixo Sul, vivendo entre os municípios de Camamu e Valença, nas
casas dos parentes beiradeiros ou roceiros, nas vilas de operários da manufatureira de látex
Plantações Michelin da Bahia (PMB), e proximidades de rios e mares. Por causa da
familiaridade com os contextos, as práticas existentes nas espacialidades litorâneas e rurais
chamam mais atenção para a pesquisa. Ao mergulhar nelas encontro informações sobre meus
antepassados e a origem do conhecimento agrícola e artesanal dos meus contemporâneos. A
seguir [figura 01], represento afetivamente elementos marcantes nas paisagens deste
território; florestas de mata atlântica, morros, vales, rios e praias; onde há inúmeras
populações, dentre elas algumas que conheço, que possuem características identitárias
singulares reverberadas de um processo histórico rico neste local, como veremos a seguir.
Assim como veremos que muitas dessas comunidades não conhecem a própria história.

Figura 01: Representação dos municípios de Igrapiúna, Ituberá, Nilo Peçanha e Cairú no Baixo Sul.

Fonte: Santos Junior, 2019.

1063
2 – Os roceiros e os beiradeiros: quilombolas das matas e das marés.
As cidades do Baixo Sul, pequenos centros administrativos, surgiram de vilas coloniais
originadas nos aldeamentos indígenas dos povos tupinambás, tupiniquins e aimorés (SKINNER,
2017). São cortadas por braços de rios que deságuam nos estuários, onde a água é salobra e
segue variações de maré, por vezes baixas, com áreas lamacentas boas para pegar
caranguejos, às vezes altas, ideais para navegar e pescar; onde se localizam os portos, nos
quais atracam variadas embarcações diariamente, lotadas de pessoas e produtos [figura 2].

Figura 02: Chegada de barco no porto do Galeão, comunidade quilombola do município de Cairú.

Fonte: Santos Junior, 2019.

No senso local, os não-moradores dos centros urbanos podem ser beiradeiros ou roceiros,
habitantes das zonas litorâneas e rurais. Os beiradeiros são pescadores, marisqueiros e
artesãos. Já os roceiros são agricultores, produtores de farinha, azeite de dendê e artesanato.
Nessas zonas é comum a utilização do termo fazenda. Fazenda Agrisa, Faz. Cultrosa, Faz.
Andaia, Faz. Manoel Antônio, entre outras. Algumas dessas fazendas são comunidades que se
auto reconhecem quilombolas, outras não apresentam esse discernimento, mas a partir do
que se observa dos hábitos e práticas, laços familiares, suas tradições, marcas de resistência e
organização coletiva, conclui-se que resultam de aquilombamentos. 1
A distância e dificuldade de acesso das roças e beiradas para aos centros urbanos conserva
características culturais que as tornam singulares em seus modos cotidianos. Embora
beiradeiros ou roceiros designe de forma generalizada espaços habitados é importante

1
NASCIMENTO (1980) aponta que em muitos momentos as comunidades negras escravizadas
recorreram a espacialidades de difícil acesso onde poderiam pôr em prática a libertação contra o
sistema racista brasileiro, assumindo o comando da própria história ao desempenharem papéis para
sustentar a continuidade africana: a recusa à submissão, a organização de sociedade livre, a resistência
e a luta.

1064
destacar que os povoados dessas zonas, sobretudo aqueles mais afastados das centralidades
municipais, possuem formas particulares de lidar com o meio onde vivem. Há povoados
habilidosos na produção de azeite de dendê, como na beirada do Pau D’óleo em Igrapiúna;
artesãos de barco na beirada dos arquitetos do mar de Cajaíba do Sul em Camamu; e as
artesãs da piaçava, quilombolas do povoado de Jatimane em Nilo Peçanha; entre outros em
quilombos em torno de lagoas, cachoeiras e pedras sagradas.
BATISTA (2015) apresenta 39 quilombos certificados pela Fundação Cultural Palmares,
instituição responsável pela regularização dos territórios quilombolas do Brasil. GUIMARÃES
(2019) afirma que a região possui o maior número de comunidades quilombolas registrados no
estado da Bahia. SKINNER (2017), informa que esse território era uma grande metrópole
indígena antes da colonização europeia. OLIVEIRA (2016) traz um dado parecido ao falar como
a nação indígena Aimoré resistiu por muito tempo na região, devido ao fato de serem “hostis”.
SILVA (2013) nos traz uma série de relatos que apontam para a coletividade entre indígenas e
afrodescendentes em lutas de resistência no território. BATISTA (2015) ainda apresenta que a
resistência indígena e o empobrecimento das fazendas propiciaram a formação de quilombos.
Estes dados reforçam a origem afroindigena da população do Baixo Sul. Além disso, a partir do
entendimento da diversidade de povos indígenas e africanos é compreensível o porquê de os
povoados da região serem tão diversos e singulares. Os números apresentados, contudo, não
são fiéis ao quantitativo real de quilombos no local, pois, Maruim e Tabocas, ambas no
município de Igrapiúna, que se reconhecem como quilombolas, não constam na lista de
comunidades reconhecidas e não sabem o que precisam fazer para tanto. Além de haver
outras comunidades na mesma situação, ainda há aquelas que não sabem que são
quilombolas.

3 – Atracadouros e feiras livres: aprendizados e intercâmbios culturais.


Relatos de vovó, Dona Magnólia Luz, 75 anos e beiradeira da Fazenda Manoel Antônio,
apontam que a avenida BA-001, que corta a maioria dos municípios deste território de
identidade, era uma estrada de barro com baixo fluxo de veículos vindo de outras regiões; que
os movimentos feitos de uma cidade para outra e entre suas comunidades, eram,
maioritariamente, por meio fluvial; e que muitos trajetos aconteciam entre “companheiros”
em caminhadas, quando em momentos de maré baixa. Essa informação traz lembrança de
cenas vistas na minha infância no povoado do Macacuá, nas quais burros armados de

1065
panacum2 carregavam bananas, cacau, farinha, aipim, entre outros produtos, para as estradas,
depois de longas trajetos nas densas florestas de mata atlântica, com meus tios. Quando as
marés estavam cheias, as canoas eram armadas com esses produtos, que seguiam para
abastecer as barracas nas feiras livres, nas proximidades dos portos de cada cidade. Dona
Magnólia ainda nos conta que aprendeu a catar piaçava na infância observando o trabalho das
mulheres adultas do Macacuá — povoado no qual todos possuíam algum grau de parentesco,
estavam diretamente ligados com a cultura da piaçava e com a agricultura familiar, e de onde
uma parcela da produção, além de abastecer as feiras, era destinada ao fazendeiro posseiro.
Crescer em ambientes variados dentro desse território me possibilitou presenciar as
produções e aprender um pouco do processo delas. São mais de 14 tios e tias que vivem em
condições variadas desenvolvendo trabalhos diversos na região; catadores de piaçava,
agricultores, pescadores, marisqueiros, comerciantes, cacauicultores e seringueiros. Sempre
levando para as feiras livres os produtos dos seus trabalhos.
Pontos de encontro comum entre os distintos povoamentos, as feiras livres, são onde esses
trabalhadores passam as manhãs conversando enquanto comercializam; onde as trocas
acontecem, os mitos se espalham, os velhos tempos são recordados e novos laços acontecem.
Elas são verdadeiras instituições de conhecimento, comércio e amizade e todos os seus
elementos são frutificações das histórias de pessoas que conhecem florestas, rios, lendas e
outras pessoas dentro deste território e no tempo.

Figura 03: Produtores roceiros e beiradeiros comercializando seus produtos na feira livre de Ituberá.

Fonte: Santos Junior, 2019.


4 – Indústrias, turismo e silenciamentos.

2
Cesto confeccionado de forma artesanal com cipós e fibras vegetais. Pode ser utilizado armado às celas
de burros para o transporte do aipim, madeira, dendê, frutas, etc. Segundo o dicionário Michaelis o
termo tem origem tupi: panakú.

1066
A mata atlântica existente no território resume-se a fragmentos de mata densa. Em contraste
com elas, estão extensas terras marcadas pelo cultivo de seringueiras (Hevea brasiliensis) e
coqueiros (Cocos nucifera L.). As indústrias que se beneficiam da heveicultura, são as grandes
proprietárias de terras no território. Em alguns casos, a área particular delas chega a alcançar
limites intermunicipais. A PMB é exemplo disso, junto com a Agroindustrial Ituberá, do mesmo
ramo, elas são agentes hegemônicos dos projetos de produção de borracha no Baixo Sul
(LIMA, 2011).
O Governo [brasileiro] permitia e respaldava a Firestone nesse projeto,
dando autonomia para desmatar, contratar mão-de-obra, construir vilas de
moradores com equipamentos urbanos e promover, a seu modo, as ações
sociais. Na década de 1970 o próprio Governo procurou ampliar o processo,
estendendo os financiamentos para os pequenos agricultores desmatarem e
plantarem entre duas e cinco hectares de seringueiras na região do Baixo Sul
da Bahia. Apesar de todo esforço, em 1982 a Firestone desistiu do projeto e
vendeu a fazenda para CBB, que por sua vez vendeu para a Michelin em
1983. (LIMA, 2011, p. 65)

Nas palavras de SILVA (2013) essas “fazendas construíram-se a partir de grilagens de terras
onde viviam famílias e comunidades negras” (SILVA, 2013, p. 41). Por determinação dos novos
posseiros os moradores dos povoamentos existentes na propriedade, então, privada, passam a
seguir os roteiros técnicos determinados por essas empresas (LIMA, 2011). Dão lugar à
utilização de produtos e práticas nocivas para a saúde e meio ambiente, para impulsionar a
produção de borracha. Em 2003/2004 a PMB implantou o projeto Michelin Ouro Verde Bahia3
que, entre outras ações, destinou 3.000 hectares de sua propriedade para a criação da Reserva
Ecológica Michelin4, que em 2010 é transformada em Reserva Particular do Patrimônio
Natural5 Ouro Verde (RPPN OURO VERDE) (FLESHER, 2014). A partir desse enquadramento
legal realizaram-se ações de recuperação da remanescente florestal existente no entorno da
Cachoeira da Pancada Grande (símbolo religioso e atrativo de lazer para as pessoas da região e
turistas) ao mesmo tempo em que aplica sanções sobre os moradores locais.
Durante uma invasão de terra entre dezembro 1993 e janeiro de 1994,
pequenos agricultores da Colônia (uma área ao norte da RPPN) cortaram
vários hectares ao longo da fronteira ocidental da reserva e dois trechos

3
Mais informações sobre o projeto disponíveis no link https://corporativo.michelin.com.br/povb/.
4
O projeto da Michelin ocorre logo após a instituição no ano 2000 da Lei 9.985/2000, também
conhecida como lei do SNUC que regulamenta o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da
Natureza, onde estabelece critérios e normas para a criação, implantação e gestão das unidades de
conservação.
5
A Reserva Particular de Patrimônio Natural é uma categoria de unidade de conservação criada pela Lei
do SNUC/2000, enquadrada como Unidade de Uso Sustentável onde são admitidas atividades científicas
e visitação para fins turísticos, recreativos e educacionais. São áreas que seguem um regulamento
próprio conforme Decreto federal n. 5746/2006 e ganham alguns benefícios fiscais ao serem instituídas.

1067
menores na beira do rio e no coração da floresta. Sendo ilegal a invasão, os
invasores foram expulsos pela Policia Federal e a terra devolvida a PMB.
(FLESHER, 2014, p. 5)

Se nas plantações da Michelin predomina o plantio de seringueiras, nos pequenos terrenos e


roças dos moradores locais, há cultivos variados que chegam a comportar mais de 51 espécies
de plantas num único quintal, entre ornamentais, alimentícias e ritualísticas, como visto no
quintal de Antônia Luz [Figura 04]. Isso se repete ao longo de todo o território e confirma o
que GUIMARÃES (2019) observou como “roças de quase tudo do saber ancestral indígena e
africano” no Baixo Sul. Para esse autor,
O “plantar misturado” das tradições ancestrais é uma forma de rebeldia,
radicalmente diferente da diversificação de cultivos e dos consórcios do
projeto monocultural da agricultura comercial de exportação, que está no
lado avesso do projeto desenvolvimentista em curso. (GUIMARÃES, 2019, p.
191)

BATISTA (2015) analisa que “o cultivo de culturas permanentes corresponde a 86,23% da área
plantada, com destaque para o cacau, o coco-da-baía, a borracha e o dendê” (BATISTA, 2015,
p. 68). Ela ainda informa que entre às culturas temporárias destacam-se as de mandioca.

Figura 03: Antônia Luz e Ismael Santos em seu quintal em Nova Igrapiúna (conjunto habitacional com
prioridade de consorcio para ex-moradores e trabalhadores da Michelin), semeando coentro.

Fonte: Santos Junior, 2020.

A partir dos anos 2000 um outro mercado começa a avançar sobre a região, o turismo (PORTO,
2019). Tal como as indústrias ele se apropria e especula terras, e retira direito dos povos que
ao longo dos séculos ocupam-nas.

1068
Já na primeira década de 2000, as novas áreas de interesse correspondem
não mais às terras agricultáveis dos vales, mas aos trechos litorâneos, dos
estuários e das praias, visados agora pela expansão da atividade turística na
região, incidindo sobre os territórios de pescadores e quilombolas. Houve,
portanto, um deslocamento do mercado de terras, do vale para a costa, dos
fazendeiros, pra “novos” empresários do turismo [...]. (PORTO, 2019, p. 306)

Na citação anterior, o destaque para a palavra “novos” deve-se ao fato de que, em alguns
momentos, esses empresários do turismo são de famílias beneficiadas diretamente pelo
movimento do agronegócio há muito tempo na região (PORTO, 2019). SILVA (2013) fala que
“as terras que pertenciam aos seus antepassados [das famílias e comunidades negras]
encontram-se, atualmente, nas mãos do latifúndio, resultado do processo de expropriação e
invasão que a comunidade sofreu ao longo do século XX” (SILVA, 2013, p. 41). Um século
depois, ruídos comuns no século passado continuam a atormentar as populações não-
hegemônicas do Baixo Sul.
Mesmo sem haverem, ainda, investimentos diretos e um fluxo de capital
voltado para a costa do Baixo Sul, ocorre um processo inicial de especulação
fundiária na região. É nesse momento que várias pessoas influentes,
“famosos”, grandes proprietários, políticos locais e até mesmo estrangeiros,
já visualizando o futuro e o avanço da exploração turística de toda a costa
do Baixo Sul, iniciam um intenso processo de medição e privatização de
terras, que até então vinham sendo ocupadas pelas comunidades
tradicionais. (PORTO, 2019, p. 313)

Ao longo dos anos novos mercados vem ditando regras e reprimindo as populações
tradicionais com agressão por meio da força policial, utilização de ferramentas jurídicas para o
desfavorecimento delas e com a utilização do poder econômico e político para favorecimento
próprio; demarcando opressões contra essas populações e impondo práticas de racismo
ambiental. O modelo hegemônico que impera nessa região afroindigena ignora a identidade
de uma povoação construída ao longo dos anos, que teve pouco acesso a alfabetização, onde
muito do que sabem é reverberação do que seus pais, avós, bisavós e assim sucessivamente,
sabiam. O que se percebe é que, tão presente quanto o conhecimento ancestral, as marcas
coloniais imprimem concepções em cima da memória dessas populações e o resultado é um
silenciamento discreto e agressivo.

5 - Conclusão
O Baixo Sul é pouco citado nos livros e artigos. Para encontrar informações sobre ele é preciso
primeiro conhecê-lo como nativo e pesquisar como acadêmico. Os dados surgem na medida

1069
em que a história oral direciona informações que suscitam questionamentos. É assim que se
percebe que as fazendas atualmente existentes têm suas histórias intimamente entrelaçadas
aos quilombos, entendidos aqui, como propõe NASCIMENTO (2006) como espaço de fuga e
reação ao colonialismo, ou ainda como agrupamentos de antigos escravizados ou seus
descendentes que permaneceram nas terras onde trabalhavam mesmo após as falências de
algumas fazendas coloniais; e que as populações atuais deste território, por vezes, vivendo
praticamente isoladas dos centros urbanos, desconhecem os instrumentos jurídicos onde
podem reivindicar direitos de posse e permanência sobre a terra que viveram desde gerações.
A cada vez que um novo fazendeiro ou empresa surge e reivindica direitos legais sobre a terra,
fica evidente as mordaças às populações rurais e litorâneas impedidas de registrar e dar
continuidade à vida de seus territórios.
Estes territórios ancestrais requerem profundas pesquisas para que, ao registrá-las, estejam
disponíveis para serem lidas, contadas, escutadas e relembradas pelos seus contemporâneos.
A oralidade tem apontado que as pessoas pouco conhecem sobre seu passado e
ancestralidade, mas em suas práticas e paisagens um acervo vivo de conhecimento afro
diaspórico e indígena insiste em se manter falante. Com o avanço do turismo e das indústrias
de forma indiscriminada tal como acontece, a voz dessas paisagens pode estar com os dias
contados. É preciso, portanto, inventariar as práticas do Baixo Sul, reconhecê-las como
biopatrimônio histórico e cultural devido ao longo período de resistência enfrentado;
compreendê-las como resultado deste grande encontro afro-indígena capaz de promover um
legado impresso na pele, nos corpos, nos modos de existir, habitar e fazer mundos; e enxergá-
las como fortes por reinventarem-se em (re)existências.
Ao longo do desenvolvimento dessa pesquisa pude desanuviar a visão sobre essa história que
é minha e que estava escondida. Não cabe em palavras a minha emoção, nem as da minha
mãe (Antônia Luz) e avó ao ouvirem um pouco mais do nosso processo neste território. É
importante que essas histórias ecoem para outros resistentes do Baixo Sul.

Referências

BATISTA, Delania Santos Azevedo. Políticas urbanas e seus impactos na territorialidade do quilombo
Laranjeiras-BA. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2015.

FLESHER, Kevin M. Plano de manejo Reserva Particular do Patrimônio Natural Ouro Verde. Igrapiúna,
2014. Disponível em: <https://bit.ly/2P8pLSe>. Acesso em 24 de mar. de 2021.

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Bahia”. Antropologia Portuguesa. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2019, Vol. N. 36, pp.
191-211.

1070
LIMA, Paulo Henrique Silveira. O circuito espacial da produção de seringueira: A tecnologia e a Michelin
como principal agente do circuito. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal da Bahia. Salvador,
2011.

NASCIMENTO, Abdias do. O Quilombismo: documento de uma militância pan-africanista. Petrópolis:


Editora Vozes, 1980.

NASCIMENTO, Beatriz. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. In: RATTS, Alex. Eu sou
atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006, pp. 117-
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OLIVEIRA, E. O. da Silva. Valença: dos primórdios à contemporaneidade. Salvador: Secretaria da Cultura


e Turismo, 2006.

PORTO, José Renato Sant‘Anna. A expansão do turismo, conflitos territoriais e resistência quilombola no
Baixo Sul da Bahia. Revista Del Cesla. Polonia: Uniwersytet Warszawski, 2019, pp. 301-329.

SILVA, Egnaldo Rocha da. Comunidade negra rural de Lagoa Santa: história, memória e luta pelo acesso
e permanência na terra. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São
Paulo, 2013.

SKINNER, Pedro P. D. Além do Mar: pesca e pessoa no povoado de Moreré – Cairú/BA. Dissertação
(Mestrado) - Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2017.

1071
MACEIÓ: cidade fraturada, submersa, silenciada
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Marina Milito de Medeiros


Mestra em Artes da Cena; UFAL e IFAL; marinamilito@yahoo.com

Maria Angélica da Silva


Arquiteta, Professora Titular; FAU/UFAL; mas.ufal@gmail.com

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de


Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

As histórias das pessoas e dos lugares se entrelaçam, então, quando quatro bairros deixam de existir,
para onde vão as suas histórias? Maceió, capital de Alagoas, tem hoje uma expressiva área urbana
esvaziada devido ao afundamento de territórios decorrente da extração do sal-gema pela indústria
química Braskem. Parte da história da cidade está sendo soterrada e, provavelmente, nem as ruínas
restarão como testemunhas. Na área devastada observa-se acréscimos da tragédia - Pichações,
Grafites, Marcações. Como se portar perante versos de lamento pelo abandono do lar impressos nas
paredes quebradas? Além da denúncia, há algo a se fazer? Haveria algum lugar para a arte? Este
seria também um direito, quando nada mais resta das histórias de vida de um lugar?
Palavras-chave: Maceió, tragédia, memória, arte.

People and places historys are intertwined, so, when four neighborhoods ceased to exist, where will
their stories be saved? Maceió, Alagoas capital, has today a significant urban area emptied due to
territories sinking resulted from the salt rock extraction by the Braskem chemical industry. Part of the
city´s history is being buried and problably not even the ruins will remain as witnesses. In the
devastated area there are additions to the tragedy – Graffiti and Markings. How to face the home
abandonment regret verses printed on the broken walls? In addition to the complaint, is there
anything to be done? Would there have any space for art? Would art also be a right, when nothing
remains of a places life stories?
Key words: Maceió, tragedy, memory, art.

1072
“Habitar – esta é a definição que eu gostaria de deixar provisoriamente proposta – significa criar, conservar e
intensificar vestes e hábitos, ou seja, modos de ser1.”
(AGAMBEN, 2018, p. 5, Tradução nossa)

1 – O habitar submerso
O direito à história, o direito à memória. Onde se guardam as lembranças? E as lembranças de uma
cidade, de um bairro, de uma comunidade? As memórias habitam as pessoas, mas os lugares
também guardam memórias, corporificam, a seu modo, passados, mistérios e lembranças. Não existe
história e memória sem espaço assim, as histórias das pessoas e dos lugares estão sempre
entrelaçadas em um emaranhado, difícil de distinguir onde termina a memória individual para
começar a memória coletiva, a memória de um lugar. E quando o espaço físico de um bairro inteiro
subitamente deixa de existir - ou seja, suas ruas, suas casas, seu comércio, suas árvores, calçadas,
transeuntes, automóveis, lixo - para onde vão as suas histórias? Onde podem se ancorar? E quando
quatro bairros deixam de existir? E quando esta ameaça se amplia mais ainda, amedrontando outras
áreas da cidade, tudo isto em um curto intervalo de tempo?
Este artigo versa sobre a incrível história de uma capital que está perdendo enormes pedaços
habitados do seu território e desconfigurando todo um complexo ambiental do seu entorno. A área
em tela faceia a lagoa Mundaú, águas que ajudaram a conceder o nome da cidade, Maceió, vocábulo
advindo dos povos originários do lugar, que significa o que tapou o alagado. Por outro lado, a capital
de Alagoas, é mais conhecida por outras águas: o seu mar cristalino, responsável pela cidade se
tornar famoso destino turístico.

Figura 1: Acima, típica imagem da Maceió “Paraíso das águas” com a praia de Ponta Verde em primeiro plano.
Abaixo, pôr do sol na lagoa Mundaú, com o bairro de Bebedouro em primeiro plano e o município de Coqueiro
Seco ao fundo, no lado oposto da margem.

Fonte: https://culturaeviagem.wordpress.com/2014/08/02/machattan-a-incrivel-ponta-verde-de-maceio/ e
SOS Pinheiro (grupo de Whats app)

1
“Abitare – questa è la definizione che vorrei provvisoriamente proporvi – significa creare, conservare e
intensificare abiti e abitudini, cioè modi di essere” (AGAMBEN, 2018, p. 5).

1073
Maceió, cidade ensolarada do nordeste brasileiro, alegre destino de tantos turistas em férias e que
exibe como epíteto “Paraíso das águas”, hoje enfrenta esta catástrofe que esvazia expressiva parte
de sua área urbana. Este fato se dá devido ao afundamento de territórios decorrente da extração do
sal-gema em seu subsolo pela indústria cloro alcoolquímica Braskem2. O problema que se iniciou
oficialmente com um tremor de terra no começo de 2018 vem se alastrando, sem previsão de
estabilização. A empresa parou com a extração nas 35 minas presentes na região lagunar desde 2019
e, apesar de não assumir a culpa pelo desastre, assinou, no início de 2020, um Termo de Acordo com
os Ministérios Públicos Estadual e Federal tomando a responsabilidade pelos gastos com a
realocação dos moradores da área atingida, pagamento de aluguel social, do imóvel condenado e de
indenização por danos morais. Esse é um processo longo e complexo, uma vez que mais de 20 mil
pessoas já foram relocadas e a cada dia aumentam os números de imóveis inseridos em área de risco
e/ou de monitoramento3.
Uma das inúmeras questões que fica para além destes procedimentos jurídicos é: qual é o destino da
história e da memória dos moradores desses quatro bairros – Pinheiro, Mutange, Bebedouro e Bom
Parto4? Há possiblidade de se reivindicar este direito? De se realizar uma ponderação valorativa do
mesmo? Em que instância? Com que medida? Na verdade, desfazem-se os limites que separam a
história de Maceió que está sendo soterrada - com as minas de sal abaixo e no entorno da lagoa
Mundaú, juntamente com as edificações, vias de acesso, comércio, vegetação, bordeamentos
topográficos - e a história individual dos moradores das casas, dos edifícios, das favelas, antes
existentes na região. Pois de fato, o local se constitui de um mosaico de paisagens sociais, com
diversas feições formais, que estão paulatinamente desaparecendo. Ao modo de um monstro
mitológico, este soterramento se alastra com os pedaços da cidade sendo vertidos para um
sumidouro e lentamente mastigados. Que tipo de figura noturna foi gerada pelas forças ditas do
desenvolvimento, que prometiam para a cidade, emprego, moradia, novas oportunidades5?

2
A então denominada Salgema se instalou na década de 1970 em Maceió, no bairro do Pontal da Barra –
extremo sul da cidade, em uma região de restinga – estreita faixa de areia entre o mar e a laguna Mundaú. Essa
base industrial está estrategicamente localizada, com fácil escoamento marítimo de seus produtos e a
aproximadamente 8 km de distância da, hoje esvaziada, região das minas. O sal extraído era conduzido em
forma de salmora – mistura de sal e água, através de dutos subterrâneos.
3
Segundo dados da própria Braskem, em janeiro de 2021, 15 mil imóveis estavam na área de desocupação.
Fonte: https://www.braskem.com.br/detalhe-noticias-de-alagoas/braskem-assina-acordos-e-encerra-acao-
civil-publica-dos-moradores-e-acao-civil-publica-socioambiental-em-maceio
4
O último mapa divulgado em dezembro de 2020 ainda inclui um pequeno trecho de um quinto bairro, o Farol,
porém, apenas como “área de monitoramento”, ainda sem imóveis a serem desocupados.
5
A justificativa, há quase cinquenta anos atrás, era de um pacto visando o desenvolvimento local, que suavizou
as normas de implantação da indústria, permitindo que se localizasse dentro da malha urbana da cidade.

1074
Figura 2: Imagens aéreas, respectivamente do bairro do Pinheiro e do Mutange, 2020.

Fonte: SOS Pinheiro (Whats app) e Maceió antiga (Facebook)

O que se sabe hoje é que, provavelmente, nem as ruínas restarão para contar suas histórias. O
avanço deste engolimento das terras avança agora para Bebedouro, bairro histórico que serve de
referência ao processo de urbanização de Maceió. Portanto e desta forma, além de atravessar
enormes áreas que poderiam ser erroneamente encobertas pelo estigma de arquitetura banal,
apesar de não o sê-lo, agora avança para locais onde a história da cidade converge, sob o estatuto
concedido pelos monumentos: grandes casarões antigamente habitados pelas elites alagoanas, com
suas fachadas adornadas pela caligrafia do eclético, vão sendo igualmente arruinados.
As perdas da catástrofe avançam por Maceió afora, ao engolir ruas, obrigar motoristas a se dirigirem
para outros roteiros, ao interromper o trajeto da única linha férrea que atravessa a cidade e já chega
a amedrontar uma das vias mais importantes da cidade, a avenida Fernandes Lima, símbolo do
processo desenvolvimentista local que, na sua sucessão, será representado pela implantação da
Braskem. Sem entrarmos aqui, em consideração acerca dos imensos impactos ecológicos sobre a
lagoa e o mar.

2- O habitar em pedaços
O desastre amplia não só a mancha da destruição nas áreas diretamente atingidas, mas também
espalha as suas marcas. Em locais diversos da cidade, veem-se acumular uma série de pedaços de
arquitetura: janelas, portões, telhas, madeira, louças sanitárias, mas até mesmo vasos de planta,

1075
cadeiras, mesas, objetos de decoração que como carcaças das antigas construções, mas no caso,
nem tão velhas assim, vão sendo migradas para o comércio de ferro velho, como se aves de rapina
acumulassem à distância, o que restou de memória material dos bairros abandonados, para, ainda
dela, tirar um benefício. Assim, dentro das engrenagens da triste reciclagem da pobreza, pedaços dos
lares em geral de casas e até mesmo apartamentos de classe média, se tornam apenas um
amontoado de janelas, vidros, telhas, madeiramento, de vasos e pias sanitárias monotonamente
empilhadas umas ao lado das outras como fonte para a sobrevivência de outros.

Figura 3: Portas, janelas, pias e sanitários à venda no bairro de Garça Torta (litoral norte).

Fonte: Acervo do autor. Fotógrafa: Maria Angélica da Silva

O cenário da catástrofe se apresenta esvaziado, enquanto outras partes da cidade começam a


“transbordar” na oferta de pedaços daquilo que antes era chamado lar. Portas e janelas que
habitavam vãos internos e externos, mas também louças sanitárias, que se resguardavam no mais
íntimo das casas, agora se expõem ao relento, até mesmo em terrenos à beira-mar. Se na área
atingida pela mineração as casas estão sem portas e janelas, aqui as portas e janelas sem casa
sobram. Estão soltas, “abandonadas”. Encontramos as partes que “faltam” nas casas do Pinheiro,
Mutange e adjacências, sobrando no litoral norte, a uma distância de aproximadamente 15
quilômetros. Se uma área imensa da cidade está sendo esvaziada o restante terá de absorver esse
“excesso” ou, transbordar.

1076
Transbordar: despindo esta palavra de seu sentido figurado, em se tratando da lagoa que bordeia a
área atingida, certamente as águas aumentadas desenharão um outro perfil de suas margens, já
atingindo outras cidades, com seus ecos podendo chegar ao mar.
Quem anda na área devastada, observa também acréscimos da tragédia. Pichações? Grafites? Como
chamar a letra “A” grifada em diversas paredes que sinaliza a condenação do imóvel pela Defesa Civil
e o seu abandono próximo? E como se portar perante as palavras que alguns moradores deixaram
impressas nas paredes quebradas, como versos de lamento por ter de deixar os locais onde
edificaram suas histórias de vida?

Figura 4: Casas condenadas grafadas com o “A” da Defesa Civil e com lamento dos antigos moradores.

Fonte: Acervo do autor. Fotógrafa: Marina Milito

3- O habitar e suas marcas


Ao mesmo tempo que a paisagem destroçada parece calar, nesse momento excepcional ela também
vira suporte para o grito de indignação dos atingidos. Arquitetura-testamento de uma tragédia, com
entrelinhas de rachas e frestas. Andar nos bairros atingidos é se deparar com essas mensagens, um
clamor aos ventos, aos olhos dos passantes. Mas que também, como tudo que está ali, terá vida
breve. O manso caminhar das máquinas de terraplanagem e dos tratores, alisarão os restos e
tornarão chão tudo que ainda aflora como sobra.

1077
Essa não é a primeira vez que os imóveis servem de suporte para denúncias da população contra os
abusos da indústria cloro química. Na década de 1980, quando da possibilidade de duplicação de
produção da então Salgema (atual Braskem), houve uma grande mobilização da população alagoana
e, principalmente, dos moradores do bairro do Pontal da Barra que viam suas casas e seu bairro
ameaçados. Segundo Maria do Carmo Vieira, nas ruas do bairro de pescadores e rendeiras podiam-se
ler algumas das seguintes mensagens nos muros: “A lagoa é do povo, abaixo o salgema”, “Pontal é
vida, salgema é morte” (VIEIRA, 1997, p. 68).
Hoje, quase 40 anos depois, vemos as ruas de Maceió tomadas novamente de pichações contra a
Braskem. Na década de 1980, a previsão era de retirada de aproximadamente 40 famílias da região
do Pontal da Barra e esse movimento já indignava a população, principalmente, os diretamente
atingidos. Hoje, mais de 8 mil imóveis já foram esvaziados e, como dito antes, os números seguem
crescendo. Quem imaginaria que as denúncias voltariam dessa forma, que os impactos da instalação
da indústria em Maceió seriam muito maiores do que os inicialmente previstos, e que a destruição
trazida pelo desenvolvimento econômico iria muito além do Pontal da Barra e da poluição da lagoa?
Além do lamento dos atingidos, temos também as marcações da Defesa Civil, cada “A” é uma
sentença. Independentemente do tamanho da casa, localização, quantidade de moradores, se a
marcação chegar, o imóvel deverá ser desocupado. Em meio às regiões condenada, ou, em seus
arredores, quem ficou acaba também querendo sair, pois o bairro já não é mais o mesmo. Como
continuar morando em um lugar onde a maioria dos vizinhos foram embora, deixando seu imóvel em
ruínas e/ou lacrado, com a possibilidade de em breve ser demolido? Um bairro sem comércio, sem
transporte público, sem movimento. Então, mesmo que alguns moradores remanescentes ainda não
tenham observado grandes impactos estruturais em seus imóveis, acabam sendo constrangidos
também à mudança pela alteração completa na dinâmica do bairro.
Aqui as perspectivas estão invertidas, a casa e suas paredes, que deveriam ser o símbolo da
estabilidade, da permanência, está ruindo e fadada, pouco a pouco, à destruição e esquecimento. E o
gesto, movimento efêmero, fadado ao esquecimento, aqui insiste em reverberar. A despedida da
casa, as histórias e lamentos grafados na parede, as intervenções artísticas, as próprias casas
esvaziadas, tudo registrado pela fotografia - tanto para compartilhar e se fazer ver o caso, quanto
para eternizar as memórias de quem por lá viveu.
Imóvel, aquilo que não tem movimento, estático, seguro, perpétuo. A própria palavra já traz a ideia
de estabilidade. A vida prescinde do movimento, o universo e tudo nele estão em constante
movimento, mas a casa, por sua definição, deveria permanecer imóvel, sempre de braços abertos
para abrigar os seus moradores. Se a casa não vai mais existir, nem a escola, a igreja, o mercadinho,

1078
se o bairro vai deixar de existir, onde restarão as memórias de seus moradores? Quem poderá
cumprir a função de “manter a infância imóvel”?
Não é de casa que eu tô falando não, eu tô falando de projeto de vida. A
verdade é que era o meu projeto de vida envelhecer aqui. Lugar pequeno,
aconchegante, bons vizinhos. E hoje eu estou sendo obrigada a ir embora
porque essa área está condenada. Não é possível permanecer aqui, é o que
dizem os órgãos competentes. Eu tenho que sair da minha casa. Deixar
minha casa, sendo forçada a sair da minha casa, que eu não acredito em
perigo de nada. Anotem o que eu estou dizendo, não tem perigo de nada,
eles vão continuar cavando mais meio século, e a gente que refaça a vida
em outro lugar. Por que não é assim que sempre é assim? 6

4 – O habitar e o consolo estético


Além do crivo da denúncia, há algo a fazer com esta dor? Em cenários como o descrito, causado pela
mineração em Maceió, aguarda-se a ação dos geólogos, dos urbanistas, dos arquitetos, dos
profissionais da área do direito, dos biólogos, dos sociólogos, entre outros. Contudo, haveria lugar
também para o artista? Haveria lugar para os que fossem observar a carga estética vinculada a
paisagens afetadas pelos ares do horror e da catástrofe? Em outros cenários de destruição, tanto em
casos no Brasil quanto em outros países, os artistas se unem na tarefa de decodificar, transformar e
requalificar as atitudes, espaços, posturas e impasses vinculados a tais situações. Outras vezes a obra
de arte vem no sentido de tentar apaziguar as dores e horrores da catástrofe, servindo como um
memorial às vidas que se perderam, como um epitáfio a guardar as memórias dos que já não estão.
Diversos artistas locais têm se mobilizado, estabelecendo um diálogo com essa cidade fraturada que
deságua em produções artísticas contundentes nas mais diversas linguagens e suportes - músicas,
poesias, vídeos, documentário, curta de ficção, lambes, fotografias, entre outros. Encarrar a tragédia
e tentar ressignificá-la através de uma abordagem poética. Haveria de fato um lugar para a arte
quando o que se alarda é o esquecimento? Este seria também um direito, quando não resta nada
mais das histórias de vida de um lugar?
Como visto, cidades litorâneas como Maceió, que servem de destinação turística, em geral se voltam
par ao mar. No caso da capital alagoana, nem as belas lagoas e rios se rivalizam com a força da praia.
Mas árvores, flores, que o urbano usualmente formata em parques e jardins pouco frequentam a
paisagem maceioense. Contudo, nesta grande falha que surgirá na paisagem, se prevê um destino
verde... Os planos futuros da indústria junto à prefeitura, que ocupam as páginas dos informativos
locais, falam da construção de um parque. Assim, o provimento trazido pela estética da natureza
verde é uma outra convocação artística, agora partindo da própria Braskem.

6
Depoimento de Dora, ex-moradora do Conjunto Bosque do Mundaú (Bebedouro), enviado através de vídeo
para o Grupo do Whats App do SOS Pinheiro, em 06/09/2020.

1079
Figura 5: Páginas do projeto em questão - Imagem aérea da região do Mutange/Bebedouro – acima, antes da
desocupação e abaixo, imagem do projeto do Parque.

Fonte: PLANO DE AÇÕES ESTRATÉGICAS PARA OS BAIRROS BEBDOURO, MUTANGE, PINHEIRO e BOM PARTO
(páginas 13 e 14), 2020.

Nas páginas dos informativos locais, paisagens advindas de destruição da Braskem se dobram sobre
mais esta outra tragédia, agora de caráter universal: a pandemia. Ambas acabam por se debruçar em
cenas sem pessoas, ambas ecoam cemitérios. Entre as fotos mais destacadas das manchetes que se
voltaram para o tema da pandemia no Brasil, estão as que mostraram as enormes áreas de terra
abertas em covas, à espera dos seus inúmeros habitantes. O parque, menos eloquente, ao modo dos
modernos cemitérios, calarão as histórias desta extensa parte de Maceió e de seus milhares de
habitantes debaixo de um manto verde. “O Fragmento semeia a dúvida. Ele pode ser um pedaço,
uma etapa ou um todo, até, o contrário de si mesmo. O acaso se instala. A arquitetura tem grandes

1080
dificuldades em enfrentar os riscos do acaso, do aleatório, do arbitrário, do fragmentário” (JACQUES,
2001, p. 44).
O homem é um ser habitante, já lembrava Agamben. Portanto, olhando a catástrofe causada pela
Braskem, pelo alto, em voo de pássaro, supõe-se que, no movimento geral da matéria, não há perda.
Ruas e arquiteturas viram material de refugo. Pedaços maiores, salvos das máquinas, são levados à
venda. Os milhares de habitantes estão a cada dia se pondo a caminho em busca de outras moradias.
Finalmente, terras e águas tomarão conta de tudo. Os buracos, as perdas, a visão das ruinas, serão
fatos do passado. Um tecido liso, lembrando Deleuze e Guattari, se estenderá sobre as feridas da
cidade, aparentemente cicatrizando-as. Mas inúmeros silêncios estarão inevitavelmente registrados
pela pauta da ausência, pela pele lisa apenas aparentemente restaurada pela placidez da grama e do
jardim.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Abitare e costruire. Disponível em: <https://www.quodlibet.it/giorgio-agamben-abitare-e-


costruire>. 2018, Acesso em jul. 2020

JACQUES, Paola Berenstein. Estética da ginga: a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. Rio
de Janeiro, Casa da Palavra, 1ª edição, 2001.
VIEIRA, Maria do Carmo. Daqui só saio pó! – Conflitos urbanos e Mobilização Popular: A Salgema e o Pontal da
Barra. Maceió: Edufal, 1997.

1081
MULHER, FIQUE EM CASA: o espaço doméstico em tempos de Covid-19
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Mariana Rocha Silva


Arquiteta e Urbanista, marianarocha308@gmail.com

Andresa dos Santos Oliveira


Pós-Graduanda em Assistência Técnica nas Áreas de Arquitetura, Urbanismo e Engenharia,
UFPB; arq.urb.andresaoliveira@hotmail.com.

Matheus dos Santos


Mestrando em Dinâmicas do Espaço Habitado, UFAL; matheusdossantos_arq@hotmail.com.

Pedrianne Barbosa de Souza Dantas


Profª. Dra. do curso de Arquitetura e Urbanismo da UNIT, pedrianne@hotmail.com

Numa cidade, cuja forma de seus espaços urbanos e domésticos cristaliza valores de uma
sociedade capitalista e patriarcal, este artigo reforça uma nova historiografia da arquitetura e
do urbanismo, ressaltando como os papéis de gênero nas sociedades ocidentais moldaram a
casa e a cidade. Morar é a inserção do espaço individual no espaço coletivo, e revela
marcadores sociais de privilégios e exclusões. O reconhecimento da pandemia da Covid-19
mudou o cotidiano da cidade, afetando a sociedade em diferentes escalas e expondo
deficiências do morar contemporâneo. Nesses tempos, ao intencionamos compreender o
sentido integral da nossa existência individual e construção coletiva de sociedade, precisamos
entender o morar e as especificidades do espaço doméstico em suas expressões, renovações e
insurgências históricas.
Palavras-chave: urbanismo feminista; pandemia; casa.

In a city, whose form of its urban and domestic spaces crystallizes values of a capitalist and
patriarchal society, this article reinforces a new historiography of architecture and urbanism,
highlighting how gender roles in Western societies have shaped the home and the city.
Dwelling is the insertion of individual space into collective space, and reveals social markers of
privilege and exclusion. The recognition of the Covid-19 pandemic has changed everyday life in
the city, affecting society on different scales and exposing the deficiencies of contemporary
living. In these times, when we intend to understand the integral meaning of our individual
existence and collective construction of society, we need to understand living and the
specificities of domestic space in its historical expressions, renovations, and insurgencies.
Keywords: feminist urbanism; pandemic; house.

1082
1 - A mulher ocupa a casa ou é a casa que à ocupa?
A instituição familiar no Brasil tem como ponto de partida o modelo patriarcal, importado pela
colonização e adaptado às condições sociais locais, como latifundiário e escravagista. Apesar
da fragmentação do patriarcado rural, ocorrida de maneira diferenciada em diversas regiões
do país, a mentalidade patriarcal permaneceu na vida e na política brasileira. Mesmo no meio
urbano, a gênese das atitudes autoritárias sobre a condição feminina deve ser entendida em
relação aos esquemas de dominação social que caracterizam o patriarcado tradicional. A
posição da mulher, na família e na sociedade em geral, desde a colonização até hoje,
demonstra que a família patriarcal foi uma das matrizes de nossa organização social (NARVAZ
E KOLLER, 2006).
De acordo com Montaner e Muxí (2014, p.197),
o gênero é a construção cultural de papéis atribuídos aos sexos que outorga
espaços e estabelece prioridades: o privado e o público, pares
complementares e antagônicos; ao mesmo tempo, o cotidiano, o interior e o
privado são secundários e relativos; o exterior e o público são principais e
importantes, e sendo assim, só podem ser formulados a partir de teorias
neutras, racionais e abstratas, e não a partir da experiência pessoal. Essa
valorização discriminadora encontra sua formalização na ordem doméstica e
na urbana, duas figuras complementares e inseparáveis.

Imersos em cidades que perpetuam valores de uma sociedade capitalista e patriarcal, onde a
forma física de seus espaços urbanos e domésticos são pensados e estruturados para atender
ao público e privado, faz-se urgente compreender que a construção dos gêneros se articula de
acordo com as hierarquias que a estrutura patriarcal carrega consigo, e os papéis de gênero
são uma definição sociocultural sobre o que é apropriado para cada sexo. A cada papel
corresponde um espaço: a casa e a cidade.
Ao longo do tempo, a representação histórica e contemporânea tem situado os espaços
designados a cada gênero: a rua para os homens e o interior controlado para as mulheres. Em
uma construção ideal buscada pelas hierarquias dominantes, a figura feminina encontra-se
resguardada no lar, tolhida do direito ao trabalho e responsável pelos cuidados dos filhos e da
casa. As janelas, reais ou metafóricas, são o espaço por meio do qual o feminino, como modelo
cultural e hierárquico, acessa o exterior: a mulher vive o exterior através das experiências do
homem da casa, observa a rua da janela e da televisão; a mulher vive uma realidade mediada e
vivida por outros, uma realidade que não lhe cabe (MONTANER & MUXÍ, 2014).
Nesta perspectiva, embora o exterior urbano tenha sido o espaço de desenvolvimentos de
trabalhos complementários do papel atribuído, a presença das mulheres como ser ativo na

1083
produção econômica de muitas sociedades, da mesma forma que em revoluções políticas e
civis modernas, foi ocultada. Problema que perdura na atualidade, e só se reconhece uma
maneira de fazer e explicar as coisas, e aquelas mulheres que quebraram tabus e hierarquias
foram silenciadas e afastadas.
Dentro do espaço privado, a casa corresponde ao primeiro lugar de socialização onde são
construídos os papéis associados a cada gênero, o espaço não é neutro e, portanto, a maneira
em que se divide, se articula e se hierarquiza influi diretamente no desenvolvimento das
relações e as pessoas que o habitam. A cidade, por sua vez, é considerada uma extensão da
casa, o segundo espaço público de socialização, nela convivem os papeis de gênero, classes,
sexo, origens, idades (SEBALHOS E COELHOS, 2019).
As histórias da construção e da questão de gênero no ocidente evidenciam o apagamento
sofrido pela mulher. No caso específico da arquitetura, como em tantas outras esferas da
nossa vida cotidiana, o espaço doméstico teve poucas variações, porque as relações profundas
que o marcam não variaram. É um espaço no qual são consideradas óbvias e imutáveis certas
caraterísticas essenciais, como a distribuição em espaços estagnados e, geralmente,
monofuncionais (MUXÍ, 2018).
A casa permanece sendo o lugar de maior trabalho para a maioria das mulheres visto que o
determinismo biológico que afirma ser da natureza feminina a maternidade e a vocação para
os afazeres domésticos continuam validando o engessamento das divisões estabelecidas no
âmbito privado.
(...) os usos do tempo, interpretados como a experiência objetiva e subjetiva
que outorgam organização para as atividades da vida cotidiana,
transformaram se em uma espécie de medida da desigualdade. (...) o tempo
dedicado às atividades da vida diária se reparte de forma desigual e
desequilibrada entre homens e mulheres (BRULLET apud MUXI, 2020, p. 5).

Dito isso, é possível afirmar que a casa é fundamentalmente, um lugar cuja distribuição e
articulação espacial refletem os papéis hierárquicos e estáticos, já observados no âmbito
público e na sociedade como um todo. O espaço privado reitera as estruturas rígidas da família
nuclear patriarcal, que se materializa através da divisão sexual de trabalho, de maneira
desigual, sobrecarregando em sua maioria as mulheres, que se dividem entre a esfera
produtiva e doméstica.
Apoiado nessas relações, a pandemia de Covid-19 expõe as precariedades da vida e a
vulnerabilidade de pessoas já afetadas por assimetrias históricas e culturais. Com as
circunstâncias ocasionadas pelo momento atual, houve um desnudamento das relações

1084
díspares de trabalho, e a dupla, tripla ou até quádrupla jornada de trabalho passou a ter a casa
como palco principal.
Em suma, apesar de uma aparente tomada de consciência coletiva da importância do trabalho
do cuidado na pandemia, foi verificado que a valorização não ocorreu de forma sustentada ou
permanente. Enquanto isso, as mulheres são tomadas por tarefas domésticas e de cuidados
que se multiplicam infinitamente e por uma série de gargalos físicos e sociais potencializados
ao “ficar em casa”. Reforçando ainda mais como os papéis de gênero nas sociedades
ocidentais moldaram a casa e a cidade (LAGES & JORGE, 2020).

2 - Quando “ficar em casa” não é uma opção


A problemática da reprodução das desigualdades entre os gêneros dentro do espaço público e
privado, composta por diversas relações profundas e recheadas de significados e estereótipos,
foi bastante evidenciada nesse período de crise pandêmica. A vida das pessoas passou por
inúmeras adaptações e mudanças que acarretaram alterações profundas nos hábitos e
práticas cotidianas, dentro e fora de casa.
Com a pandemia da COVID-19, o bombardeio da população por diversas orientações para
contenção da contaminação do vírus, que priorizavam a permanência em casa, distanciamento
social, uso de máscara e lavagem frequente das mãos, contribuíram para a valorização do
espaço doméstico como lugar das ações/reações e características mais evidentes do ser
humano no contexto de um sistema capitalista e patriarcal. No entanto, o discurso do “fique
em casa” rapidamente se confrontou com a realidade (LAGES & JORGE, 2020).
O déficit habitacional compilado com a precariedade dos espaços domésticos, evidenciou
urgentes questões durante o contexto pandêmico. O que fazer, por exemplo, quando as casas
não possuem requisitos mínimos de conforto, salubridade e dimensões físicas para atender as
recomendações de contenção ao vírus? Como tratar as diferentes realidades existentes, onde
a maioria da população vive em áreas ausentes de qualquer saneamento básico para
higienização e ingestão de água tratada? Esses lares fazem parte do dia a dia de muitos
brasileiros e brasileiras que moram em assentamentos precários e são obrigados a se
reinventar e se adaptar.
Embora o vírus tenha ganhado um discurso de “democrático” por não escolher a idade,
género, raça, nacionalidade ou credo, o seu impacto diário na vida das pessoas está longe de
ser igual para todos. Para Lages e Jorge (2020), os mais frágeis e vulneráveis da sociedade
nomeadamente são as mulheres, pois sofrem com incertezas e violências, seja no interior de

1085
suas casas - quando as têm e nelas podem permanecer em segurança -, seja no habitar da
cidade.
Assim, numa escala global, a pandemia tem atingido de forma desproporcional as mulheres,
trazendo reflexões sobre a casa como espaço de precariedade e violência. Em alguns casos,
quando existe a presença de um espaço para chamar de lar, este é sinônimo de dor e agressão,
longe de toda romantização da família tradicional e patriarcal, repleta de harmonia e paz. De
acordo com Helene (2020), a casa já se constituía como o local em que se prevalecem os
maiores números de violência e morte de mulheres no Brasil - na maior parte realizada por
parentes, pessoas próximas a família, companheiros e parceiros sexuais - e com a pandemia
esta situação tem sido agravada severamente.
Vários países, como China, Espanha, Estados Unidos, França, Itália e Portugal, informaram
aumento de ocorrências da violência doméstica durante a pandemia. No Brasil, houve um
aumento de 27% das denúncias no ‘ligue 180’. No entanto, os registros de lesão corporal
diminuíram em 25,5% nos meses de março e abril de 2020 comparados com o mesmo período
do ano anterior, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2020).
Em um estudo realizado com mulheres em estado de vulnerabilidade durante a pandemia, em
Portugal, foram colhidos relatos de aumento das violências físicas, psicológicas, sexuais e
patrimoniais, de companheiros que bateram, mas também fugiram e roubaram. Estas
implicações levaram algumas destas mulheres a perder a casa onde viviam, iniciando-se um
ciclo de vulnerabilidades em situação de sem-abrigo e, em muitos casos, com a presença de
filhos pequenos. (LAGES; JORGE, 2020)
Concomitantemente, a casa estabeleceu-se também como espaço de intensificação do
trabalho de cuidado atrelado ao grande número de desempregados nesse período de crise. A
mulher, cujo salário é inferior se comparado ao do homem, teve de se submeter a trabalhos
informais, muitas vezes mal remunerados para sustentar o lar (mesmo em casos de países que
disponibilizaram medidas temporárias de auxílio financeiro) e ainda se dividir entre as tarefas
de casa e de cuidados com os filhos. Muitas delas, viram-se obrigadas a pôr em risco a própria
vida e da sua família, ao utilizar transportes públicos lotados, pelo contato iminente com
outras pessoas, devido às características de seus trabalhos. Não é à toa que o número de
óbitos pelo coronavírus é mais alarmante nas áreas onde as pessoas não puderam atender à
máxima do “fique em casa”, tendo que sair para trabalhar e realizar percursos longos de
transporte coletivo, como bem apontam os estudos do Marino et al (2020).
Os diferentes valores atribuídos para os trabalhos de gêneros, alimentam a remuneração do
trabalho produtivo nas custas da exploração e desvalorização do trabalho reprodutivo.

1086
Segundo Lages & Jorge (2020), a divisão entre “trabalhos de homens” e “trabalhos de
mulheres” inviabiliza a criação de juízo de valor econômico e social dos cuidados realizados na
esfera privada da casa.
Esta condição de gênero violentado e explorado pelo dominante, torna quase inevitável o
início de um ciclo de vulnerabilidades, a mulher que irá optar por ficar em casa com o agressor
ou abandonar ambos, que em casos extremos acaba em situação de rua.
Se por um lado, ficar em casa significa diminuição ou perda dos rendimentos por tempo
indeterminado, devido ao desemprego, por outro, sair para trabalhar formalmente ou
informalmente, acaba por sobrecarregar as pessoas que além do papel de cuidadora, garante
o sustento da família através de um trabalho precário e mal pago. As desigualdades sociais que
caracterizam a precariedade habitacional na vida de muitas mulheres perpassam os limites do
privado e atinge a escala da rua e do bairro onde vivem, bem como a forma como se movem
na cidade, tendencialmente circunscritas à relação casa-trabalho/trabalho-casa, tornando-se
verdadeiros espaços de resistência (LAGES & JORGE, 2020).

3 - O espaço doméstico em tempos de pandemia


O ano de 2020 foi marcado por muitas adaptações e problemáticas evidenciadas no campo
físico, social e psicológico. Se por um lado os problemas de ordem social demonstraram-se
mais severos, como a violência e abuso de gênero, sentimento de impotência, medo,
ansiedade, depressão, esgotamento físico e mental frente às rotinas e realidades vividas, por
outro lado, muitos passaram a refletir profundamente sobre relações físicas do espaço
doméstico e as novas práticas e atividades realizadas pelos ocupantes, seja por puro tédio,
ócio ou necessidades surgidas durante este contexto pandêmico.
As pessoas tiveram que olhar para dentro de si e para o seu entorno, se recriar, e buscar
ambientes mais confortáveis para a nova rotina de teletrabalho, estudos e atividades físicas.
Viver nessa “nova realidade” não foi/é algo tão simples por diversos motivos, porém, em meio
ao caos nasce diversas alternativas de ver e habitar a casa.
Nesse processo de auto-observação obrigatória e extensa, aprimorando a conscientização de si
e dos outros, a criatividade e a prática de atividades brotam do imaginário de cada um. Com
isso, a análise da casa tornou-se algo imprescindível e, consequentemente, as deficiências da
arquitetura doméstica em responder tais necessidades humanas foram expostas.
Coisas que antes eram camufladas pelas rotinas aceleradas, passaram a ser percebidas com
maior clareza, como por exemplo, a incapacidade dos espaços de proporcionar conforto,

1087
muitas vezes por serem pequenos, enclausurados, mal dimensionados, sem iluminação e
ventilação natural, transformando-se em verdadeiros ambientes de terror para os residentes.
A arquitetura doméstica precisa de ferramentas acessíveis a poucas pessoas,
porque elas são condenadas pela arquitetura oficial. O espaço da casa deve
ser um volume que nutre a nossa psicologia, longe dos espaços estéreis e
estreitos dos corredores, dos tetos baixos planos e opressivos, das janelas
colocadas em uma geometria livre que ignora o caminho do sol. O ‘estilo
universal’ não é adaptado à vida humana (ARESTAS, SALÍNGAROS, 2020).

Como afirmam os autores, tudo está errado: a circulação entre as salas, a conexão entre os
espaços, as superfícies sádicas de acordo com a moda minimalista da academia, as cozinhas
que não permitem a mobilidade do corpo para preparar comida etc. Todos os fatores da
percepção humana e dos movimentos do corpo foram substituídos por ideias desumanizadas
de formalismo estético e uma imagem de utopia opressiva e sectária. É necessário observar
ainda, que esse modelo de arquitetura segue sendo reproduzido por arquitetos e urbanistas
devido ao entendimento mecanizado e industrializado do habitar. Onde as máquinas de morar
foram construídas para seres humanos completamente sem autonomia do pensar e do sentir
devido à logica capitalista dos dias atuais.
A busca por verter esses espaços o mais próximo possível do sentimento de liberdade e
normalidade, nesse panorama social e político, leva à urgente e imperativa necessidade de
retomar o pensamento da casa como espaço de estar, descanso, mas também de realização de
atividades físicas, artísticas, laborais e cuidados familiares.
Diversas transformações e adaptações físicas foram realizadas para atender as novas
percepções e anseios. Os cômodos passaram por reorganização de layout, troca ou acréscimos
de mobiliários, mudanças nas funções dos ambientes sobressalentes ou de longa permanência,
como quartos com bancada mais generosas para o teletrabalho e estudo a distância (Figura
01).

Figura 01: Um cômodo para tudo.

Fonte: Ilustração feita por Annare Reis, ANO.

1088
As janelas e varandas nunca exerceram sua função tão veemente como nesse período de
isolamento. Elas significaram verdadeiros portais de passagem para ver o mundo lá fora
(Figura 02). Concomitantemente, os espaços adjacentes da casa passaram por reformulações.
Os quintais das residências se apresentam agora como extensões importantíssimas para
realizar as atividades ao ar livre, e os jardins incrementados com pequenas hortas orgânicas.

Figura 02: Janelas como portais para o externo.

Fonte: Ilustração feita por Annare Reis.

Assim como o espaço físico interno teve suas adaptações, a dinâmica de trabalho dentro dele
foi reinventada. As mulheres – principais motores nos trabalhos de cuidado – tiveram que
conciliar sua rotina de trabalho laboral com a sobrecarga das tarefas diárias do lar. Se antes,
em um cenário sul-americano, parte das famílias de classe média contratavam “empregadas
domésticas” para exercer tal função, no contexto atual, isso já não seria mais possível. Para
isso, a casa precisou ser otimizada e compactada, e em poucos casos, a subdivisão das tarefas
com seus parceiros foi algo indispensável para sobrevivência.
Essa nova forma de habitar e ser habitado pela casa, nos leva a repensar sobre o modelo de
urbanismo tradicional e capitalista e suas formas hierárquicas da ocupação do espaço,
remetendo ao que o filósofo francês, Henri Lefebvre (1974), descreve. É preciso uma releitura
da produção do espaço desde a cotidianidade, através de um sistema de baixo para cima, que
defende o direito à cidade desde o nível privado até o da política. Para tanto, faz-se urgente o
estudo de gênero a partir das práticas diárias, entendendo que a abordagem feminina no
espaço urbano acolhe não só mulheres, mas sim as pessoas. Esse olhar do gênero no contexto
urbano parte das necessidades e experiências diárias integradas com o objetivo de construir

1089
cidades equitativas, justas e mais habitáveis, “melhorando as condições de vida por meio de
bairros e cidades, em todos os seus detalhes, escalas, complexidades e diversidade, sem dar
prioridades exclusivas ou apoiadas em considerações apenas econômicas” (BORGES;
MARQUES, 2020, p. 136).
Nesse intuito, vale destacar a importância de projetar a partir das práticas cotidianas, quando
é possível desenhar relações complexas entre os espaços privados, coletivos e públicos, que
possam apoiar, cuidar, relacionar as atividades do dia a dia, articulando-as tanto no trabalho
produtivo quanto no reprodutivo, não perpetuando, portanto, as diferenças e desigualdades
de gênero, raça, classe ou idade (MUXI, 2011). Não é necessário inventar uma nova
arquitetura, mas devemos focar e estudar a domesticidade, formando novos arquitetos que
trazem o ser humano como protagonista do espaço, é preciso escapar do engessamento no
pensar a arquitetura doméstica e considerar a participação primária do ser humano como
elemento principal e não apenas coadjuvante.
Isso posto, é entendido que a pandemia de COVID-19, nos esclarece enquanto arquitetos e
urbanistas a real necessidade repensar o modelo atual de produção arquitetônica, visto que a
casa deixou de pertencer emocionalmente a cada família e tornou-se um espaço de ações
obrigatórias como comer, cozinhar e dormir.
A pandemia e a quarentena estão a revelar que são possíveis alternativas,
que as sociedades se adaptam a novos modos de viver quando tal é
necessário e sentido como correspondendo ao bem comum. Esta situação
torna-se propícia a que se pense em alternativas ao modo de viver, de
produzir, de consumir e de conviver... (SANTOS, 2020, p. 29).

Entende-se também que o atual modelo de produção de cidades, através dos ideais
capitalistas, intensificou a divisão sexual e racial do trabalho, estabelecendo a separação
hierárquica entre trabalho x moradia, público x privado, consequentemente a desvalorização
das atividades reprodutivas. Para Helene (2020 apud MARQUES E BORGES, 2020), a retomada
da morfologia urbana voltada para a reprodução da vida, que proporcione formas de
organização coletiva, menos individualizantes dentro do núcleo unifamiliar, novas relações
entre moradia, trabalho e produção, ou seja, a cidade como apoio físico para a manutenção e
produção da vida, de modo que o cuidar seja uma responsabilidade compartilhada entre os
gêneros.
É preciso compreender a casa como parte de organismo adaptado às necessidades de seus
habitantes é não como objeto de fomento de desigualdades e violências também observadas
no espaço urbano. Assim como é fundamental pensar cidades para as pessoas, também é
imprescindível pensar casas mais humanas. Portanto, devemos encarar um modelo que difere

1090
da perspectiva heterossexual, binária, machista e centralizada nas relações de poder já
existentes, e sim levar em conta as múltiplas visões de construção do espaço habitado e da
manutenção das relações existentes no âmbito público e no privado.

Referências

ARESTA , Marco; SALÍNGAROS, Nikos. "A importância do espaço doméstico em tempos de COVID-19"
[La importancia del espacio doméstico en tiempos de COVID-19 ] 17 Mai. 2020. ArchDaily Brasil. (Trad.
Sbeghen Ghisleni, Camila). Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/939395/a-importancia-
do-espaco-domestico-em-tempos-de-covid-19>. Acesso em: 18 fev. 2021.

BORGES, Andrea; MARQUES, Leila (org.). Coronavírus e as cidades no Brasil: reflexões durante a
pandemia. Rio de Janeiro: Outras Letras, 2020. 208 p. Kindle.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Violência doméstica durante a pandemia de Covid-19. 2.


ed. [S. l.: s. n.], 2020. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/wp-
content/uploads/2020/06/violencia-domestica-covid-19-ed02-v5.pdf>. Acesso em: 22 fev. 2021.

LAGES, Joana; JORGE, Silvia. Crise Pandémica e Crise na Habitação: Mulheres em foco. Lisboa, 2020.

LEFEBVRE, Henri. The production of space. Tradução: Donald Nicholson- Smith. Oxford, 1974.

MARINO, Aluizio; KLINTOWITZ, Danielle; BRITO, Gisele; ROLNIK, Raquel; SANTORO, Paula; MENDONÇA,
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jun. 2020. Disponível em: <http://www.labcidade.fau.usp.br/circulacao-para-trabalho-inclusive-servicos-
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MARTINEZ, Zaída. Las Ciudades de las mujeres. Artigrama, Espanha, n.33, pp.131-140, 2018. Disponível
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MONTANER, Josep; MUXÍ, Zaída. Arquitetura e política: ensaios para mundos alternativos. Barcelona,
2014.

MOREIRA, Lisandra Espíndula; ALVES, Júlia Somberg; OLIVEIRA, Renata Ghislene; NATIVIDADE, Cláudia.
Mulheres em tempos de pandemia: Um ensaio teórico-político sobre a casa e a guerra. Belo Horizonte,
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MUXÍ, Zaída. Mulheres, Casas e Cidades: Para Além do Umbral. Barcelona, 2018.

NARVAZ, Martha; KOLLER, Sílvia. Famílias e patriarcado: da prescrição normativa à subversão criativa.
Psicologia e Sociedade, Porto Alegre, v.18, n. 1, pp. 49-55, 2006. Disponível em:
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REIS, Annare. Mulher na Quarentena: Cotidiano. Aracaju, 22 fev. 2021. 2 ilustrações.

OVERSTREET, Kaley. "O que faz de uma casa um lar – e o que isso significa?" [What Makes a Home and
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SANTOS, Boaventura. A Cruel Pedagogia do Vírus. Coimbra: Edições Almedinda, 2020.

1091
NO SILÊNCIO E NO ASSOMBRO, UMA ESTÉTICA ALÉM DO SAGRADO
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Anderson Diego da S. Almeida


Doutorando em Artes Visuais; UFRGS; andersondiego.almeida@gmail.com.

O intento deste artigo é falar de alguns fragmentos da Coleção Perseverança, formada a partir
de objetos que carregam as memórias do Quebra do Xangô, episódio que silenciou, em 1912,
as religiões de matrizes africanas no estado de Alagoas. O texto a seguir propõe apresentar
marcas, não somente do quebra-quebra, mas de algumas histórias que perpassam a estética
dita assombrada, cuja essência não se concentra somente no sagrado, todavia em inúmeros
elementos que nos possibilitam a afirmação: os objetos da coleção aqui analisada são
documentos da formação cultural afro-alagoana, ou melhor, são arquivos das representações
culturais produzidas por mãos negras.
Palavras-chave: Coleção Perseverança; Quebra do Xangô; Estética assombrada; Afro-alagoana.

The purpose of this article is to talk about some fragments of the Perseverança Collection,
formed from objects that carry the memories of Quebra de Xangô, an episode that silenced, in
1912, the African religions in the state of Alagoas. The following text proposes to present
marks, not only of the smash-smash, but of some stories that permeate the so-called haunted
aesthetics, whose essence is not concentrated only in the sacred, however in innumerable
elements that enable us to affirm: the objects of the collection here analyzed are documents of
the Afro-Alagoas cultural formation, or rather, they are archives of the cultural representations
produced by black hands.
Keywords: Perseverança Collection; Quebra do Xangô; Haunted Aesthetics; Afro-alagoana.

1092
Desatar e atar, os nós de uma coleção
[...] porque uma imagem é uma impressão, um rastro, uma cauda visual do
tempo remoto que ela quis tocar, mas também de outros tempos
suplementares, heterocronias e heterotopias que, como arte da memória,
ela não pode deixar de condensar, como cinza que é, porém, misturada a
partir de várias fogueiras. (DIDI-HUBERMAN, 2018, p. 21)

Há sangue, óleo, restos de animais. Há cheiro de ritual. Há um assombro. Há um silêncio. Há


cinzas. Há fogo. Há som de atabaques. Há blocos de carnaval. Há Reisado. Há Maracatu. Há
memórias. Este artigo propõe desatar nós, ao mesmo tempo atá-los. Desatar histórias de
assombração que paira sobre a estética sagrada da Coleção Perseverança, que teve seu
primevo nas batidas policiais aos terreiros de Maceió, em 1912, episódio que ficou conhecido
como a Quebra da Xangô. Atar os mesmos nós para reconstruir as histórias de alguns objetos
que constituem a coleção, que ainda parecem queimar nas fogueiras da noite da devassa em
1º de fevereiro daquele ano.
Nosso objetivo será evidenciar como se construiu a plasticidade sagrada que carrega marcas
de um rito peculiar de Alagoas, que traz memórias do sincretismo, dos folguedos populares, da
relação dos africanos e descendentes com a formação cultural do estado.
Diante disso, anunciamos que, ávidos, sopraremos cinzas, como a metáfora daquilo que
Georges Didi-Huberman (2018) menciona para as imagens, elas queimam. E para esta queima,
é preciso soprá-las. Do sopro, veremos o fogo, as falemas, as memórias do Quebra de 1912, a
estética assombrada e o silêncio de pais e mães de santos que ainda ardem. Alguns objetos da
coleção aqui analisada carregam pó cinzento, resíduo do que foi velado, esquecido, retido num
porão, hoje nas vitrines do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL). Nesse
construto, apontaremos algumas marcas da mão do artista afro-alagoano, anônimo, numa
feitura local, que não só evidencia o religioso, mas a paisagem e as circunstâncias em que este
mesmo artista estava inserido.
De certo, aqui fica o convite para que nosso leitor se aproxime e sopre conosco as cinzas que
velam o fogo, as muitas outras histórias da Coleção Perseverança além do fatídico quebra-
quebra.

O sopro, o fogo, as memórias


[...] deixando fluir em mim as memórias das escritas alagoanas, das escritas
de suas cores e sons, de personagens esquecidos e de eventos de origem
soterrados, doloridos e esquecidos e, [...] deixando fluir paisagens e coisas de
negros, memórias e imagens. (BEZERRA, 2014, p. 9)

1093
As palavras de Edson Bezerra, autor alagoano do célebre Manifesto Sururu (2014), nos
encorajam dizer que a Coleção Perseverança não é somente um conjunto expositivo, preso em
seis vitrines, cujos objetos apresentam etiquetas que os dimensionam como objetos de
bruxaria. A Coleção Perseverança é um arquivo, não daqueles que se formam a partir de
emaranhados de coisas, quinquilharias, bugigangas, como apontou o principal período do
estado de Alagoas, Jornal de Alagoas, em 1912.
A coleção é um arquivo. Certamente daqueles defendidos por Foucault (2008, p. 147), como
aquilo que se pode dizer, sem ser condicionado a uma pilha amorfa, um amontoado, “mas o
que desde o princípio, nas raízes de uma própria afirmação, define o sistema enquanto
acontecimento, e isso no próprio corpo em que essa afirmação se dá”. Assim, a referida
coleção deve ser vista além da estética fetichizada, de bruxaria ou feitiçaria; nomenclaturas
que a acompanham por mais de um século. Pensemos que, como arquivo, a coleção nos incita
outras análises. Ademais, a partir dos rastros deixados por homens e mulheres negros, aqui
entenderemos como a mão afro-alagoana. Assim, poderemos compreender a formação
cultural do estado de Alagoas, através das paisagens, das cantigas, das poesias, dos folguedos
populares, do cotidiano do povo africanizado que é também berço da identidade que hoje se
enxerga nas ruas e nos terreiros.

Figura 01: Salão da antiga Sociedade Perseverança, hoje anexo ao IHGAL.

Fonte: arquivo do autor.

Dos terreiros à zombaria, a Coleção Perseverança se forma a partir dos objetos que foram
arrancados dos pejis dos terreiros invadidos pela Liga dos Republicanos Combatentes na noite
de 1º de fevereiro de 1912. Objetos que além de serem destruídos e parcialmente queimados

1094
nas portas dos religiosos, foram preservados para justificar “o ato de bravura” daqueles
homens incautos. Hoje, a coleção possui 208 objetos, catalogados e tombados pelo IPHAN.
O trânsito dos objetos, da noite da quebra até os salões do IHGAL, em 1950, permitiu que a
coleção fosse vista somente dentro do contexto de destruição, de silenciamento dos
atabaques, da violência aos pais e mães de santos e das perseguições, ou como já dito, objetos
que carregam vestígios de ritual, visto por muitos como do mal.
Esse mal enraizado na estética chamada de sagrada, por ter sido originada dos terreiros, é o
que condiciona o repugnar, perceber os elementos que são dos terreiros, muitas vezes os
cheiros, todos, de certo, construídos nos pilares do preconceito e do racismo.
Pensemos, então, nesta condição de assombrar, como algo intrínseco à existência dessa
estética sagrada. Esta compreensão fará toda diferença em nossos apontamentos, pois é nela
e a partir dela que identificaremos o quão habilidosa e intensa foi a mão afro-alagoana. Sim,
afirmar esta mão, fazedora dessa assombração, como alagoana, é preponderante, visto que os
objetos apresentam técnicas e elementos locais.
Voltemos à estética assombrada. Agora compreendida como algo primordial à existência dos
objetos produzidos para os rituais, trazemos ao debate Vieira Costa (2014), que constrói o
conceito de arte assombrada na perspectiva da exclusão, da arte feita nas margens e da
sobrevivência, na arte contemporânea, das formas produzidas por índios e afro-brasileiros,
especificamente na região amazônica:
O que pretendo afirmar na estética assombrada é, por um lado, que a
mesma possibilita sobrevivências, não apenas de elementos visuais
relacionados a populações tradicionais amazônicas, mas principalmente a
sobrevivência de discursos e comportamentos. (VIEIRA COSTA, 2014, p. 123)

Esta, por exemplo, permite-nos adentrar camadas outras em diversos objetos da Coleção
Perseverança. Uma dessas camadas é a de cinzas, literalmente as marcas do fogo, das
fogueiras que arderam na noite do dia da invasão aos terreiros.

1095
Figura 02: Objeto de assentamento. Ferro e algodão, 34 x 20 cm.

Fonte: arquivo do IHGAL.

Uma peça de ferro, com pano de algodão queimado, revelando que fora retirada do fogo e
preservada, dentre tantas outras peças, servindo como troféu do grupo de milicianos que
acreditava no silenciamento das religiões de matrizes africanas.
A arte assombrada também pode ser vista na presença de materiais, considerados estranhos,
daí a conotação de serem esses objetos de feitiçaria e bruxaria. Além de substâncias, como
óleos e sangue, perceptíveis em algumas esculturas da coleção, há elementos que são de
origem animal, como por exemplo, o bastão cerimonial, figura abaixo, confeccionado com
taliças de dendezeiro, algodão, contas coloridas e transparentes, búzios, traz no topo a
presença de penas de papagaio.
É importante depreendermos que esta assombração, aqui ratificamos o já dito, é uma estética
necessária à existência desses objetos. Não se trata de fealdade, escuridão ou mau cheiro,
como apontado pelo principal jornal alagoano, financiador do golpe em 1912, Jornal de
Alagoas. Mas, de uma estética construída no terreiro, por artistas anônimos, por mãos afro-
alagoanas que sinalizam diversas formas de representação do cotidiano de homens e mulheres
negros que margeavam a população de Alagoas, que cresciam pelas ruas do centro da capital,
que invadiam espaços antes só freqüentados pela sociedade que se via cristã em processo de
uma Europa nordestina.
Voltando à peça, é visível a complexidade das técnicas de bordados e amarrações. A habilidade
do artista em imprimir o sagrado, utilizando diversidade de materiais e formas. O bastão
cerimonial revela este artista, sem identidade e assinatura, através de marcas, rastros,
vestígios de feituras que, de certo, nos aproximam de sua existência, de suas histórias e

1096
memórias além do quebra-quebra, permitindo-nos, também, falar em uma estética genuína e
alagoana.

Figura 03: Bastão cerimonial; detalhe do topo com penas de papagaio. Taliças de dendezeiro, algodão,
búzios e miçangas, 56 x 11 cm.

Fonte: arquivo do IHGAL.

Do ensejo, podemos depreender que a estética afro-alagoana se faz a partir dessa


assombração e foi construída sob memórias que vão muito além do visual. Este ser estética
afro-alagoana não pode ser compreendido sem antes colocarmos nossos pés na lama da lagoa
Mundaú, sentirmos o cheiro do sururu e ouvirmos o intenso barulho dos atabaques que
ecoavam antes da história do xangô rezado baixo. Para ver o artista afro-alagoano é preciso
cantar uma entoada, no chão massapê ralar os calcanhares e, ofegante, não deixar o ritmo
cessar. É preciso bater palma no mesmo ritmo de um ilu. A estética afro-alagoana é terreiro, é
engenho, é rua, é chão, é barro, que nasceu entre os batuques e os morros (BEZERRA, 2014), é
corpo, gesto e sentimento.
Em meio a essa estética silenciada, o que mais nos pode revelar o ser afro-alagoano, ou
melhor, ainda é possível ir além desta assombração? Sigamos a outros sinais!

1097
Nesses sinais, agora foquemos nos detalhes, no que deles podemos tirar e em quais
possibilidades este “ser estranho”, assombrado, apresenta-se como poética, documentos
plásticos, rastros de feitura, memórias do que foi vivido, onde, enxergando este estranho, a
imaginação permitir-nos-á desenhar a imagem do artista de terreiro, produzindo em meio aos
batuques e em meio a tantas paisagens, vislumbradas e tão bem definidas por Bezerra (2014,
p. 9), em seu Manifesto sururu:
[...] deixando fluir em mim as memórias das escritas alagoanas, das escritas
de suas cores e sons, de personagens esquecidos e de eventos de origem
soterrados, doloridos e esquecidos e, [...] deixando fluir paisagens e coisas
de negros, memórias e imagens.

Na Coleção Perseverança, portanto, a história do Quebra de 1912 não se torna única, nem
exclusiva, ela perpassa muitas outras histórias que nos condicionam afirmar que os objetos
arrancados das casas dos religiosos em fevereiro de 1912 é a memória africana e
afrodescendente em solo alagoano.
Ao primeiro olhar, aqueles mais de 200 Objetos, entre as vitrines do Museu do IHGAL, revelam
somente o significado do sagrado, da manipulação ritual e a funcionalidade para os quais
foram criados. Contudo, mal sabemos que este sagrado não está somente condicionado à
sacralização, algo peculiar como banho de folhas e aterramentos de ferramentas, onde os
objetos ganham outra conotação, mas para serem utilizados de outras maneiras e revelar uma
miscelânea de características que fazem os xangôs alagoanos diferenciados. Objetos que
queimam revelando outras memórias:
O fogo em que se queima a imagem provoca sem dúvida “buracos”
persistentes, mas é ele mesmo passageiro, tão frágil e discreto como fogo
em que se queima uma falena que se aproximou demais de uma vela. É
preciso que observemos por bastante tempo a dança da falena para termos
uma chance de surpreender esse breve momento. O mais fácil, o mais
corrente é não ver nada. Além disso, é bastante fácil tornar invisível o fogo
em que se queima uma imagem: os dois meios mais notáveis consistem ou
em “afogar” a imagem em um fogo mais forte, em um auto-da-fé de
imagens, ou em “asfixiar” a imagem em um fogo muito maior de clichês em
circulação. (DIDI-HUBERMAN, 2018, p. 52)

Desta camada diferenciada e revelada por mãos afro-alagoanas, apresentamos mais duas, a
seguir. A primeira delas está relacionada ao processo sincrético e de impureza dos cultos em
território local. Sim, a escultura de um caboclo, tirada do terreiro de um dos religiosos,
provável de Tia Marcelina, revela ser o rito alagoano repleto de elementos do catolicismo,
assim como da jurema, de traços indígenas, muçulmanos, nagô, jêjes e voduns. Todas essas

1098
especificações podem ser encontradas na Coleção Perseverança entre esculturas, adornos e
indumentárias.

Figura 04: Caboclo. Gesso e tinta a óleo, 98 x 22 cm.

Fonte: arquivo do IHGAL.

A segunda camada está condicionada à ligação dos terreiros a grupos folclóricos, ou


especificamente ao folguedo. Na coleção, por exemplo, encontramos uma infinidade de
instrumentos musicais que eram usados tanto nas cerimônias aos espíritos, como em
composição dos desfiles do cortejo da nação de maracatus que saíam pelas ruas de Maceió em
pleno carnaval. Salientamos que um dos religiosos agredido na devassa de 1912, Chico
Foguinho, era conhecido como mestre de maracatu, tendo seu barracão como uma espécie de
sede para os ensaios do grupo.
A seguir, apresentamos dois instrumentos, um gonguê e um pandeiro. O primeiro pertence à
composição do maracatu, e o segundo, a pastoril, folguedo popularmente celebrado nas
portas das igrejas em lembrança ao nascimento de Jesus. O gonguê e o pandeiro são
instrumentos confeccionados em ferro batido e utilizados durantes os cultos.

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Figura 05: Pandeiro pastoril. Ferro, 29 x 12,5 cm; Gonguê. Ferro batido, 38 x 11,5 cm.

Fonte: arquivo do IHGAL.

Nitidamente, é onde o artista afro-alagoano se revela, mais uma vez. Explicitando seu grau de
conhecimento nas técnicas de ferreiro. Mais do que estético e funcional, estes instrumentos
revelam muito mais do que o sagrado buscado no religioso, mas um sagrado que está
intrínseco aos materiais e às formas das peças.

Mais fogo e o último sopro


[...] a imagem queima pela memória, ou seja, que ela queima ainda, ainda
que só seja cinza: um jeito de expressar sua vocação essencial para a
sobrevivência, para o apesar de tudo. Mas, para sabê-lo, para senti-lo, é
preciso ousar, é preciso aproximar o rosto da cinza. E soprar suavemente
para que a brasa, por debaixo, comece a emitir de novo seu calor, sua luz
[...]. Como se, da imagem cinza, saísse uma voz: “Não vês que estou
queimando?”. (DIDI-HUBERMAN, 2018, p. 69).

Este artigo é um breve sopro. Daqueles em que acreditamos ser brando, mas necessário. Na
breve análise, intencionalmente estruturada a partir de fragmentos, ficou evidente que a
Coleção Perseverança está além do Quebra do Xangô, que a história canonizada do quebra-
quebra nada mais era do que a das páginas policiais, dos noticiários que contribuíram com o
silêncio dos atabaques. Disso, compreendemos que a história da Coleção Perseverança não é a
de uma devassa, nem da Liga dos Republicanos, nem tão pouco de Euclides Malta, mas a de

1100
homens e mulheres negros que construíram Alagoas a partir do solo massapé e dos batuques
dos terreiros e dos folguedos.
Não esqueçamos, então, que está coleção continua a arder. Imagens que quando sopradas,
intensificam o fogo, as memórias que, avassaladoramente, saltam aos nossos olhos. Não
esqueçamos, por fim, de continuar o sopro, intensificando, cada vez mais, para que outros
vestígios venham à tona e modifiquem a forma de olharmos estes objetos para além do
assombro e das raízes de 1912. Que nos queimemos, ainda mais, entre as labaredas que
sobem dos muitos detalhes dos objetos que necessitam ser relidos. Sopremos, continuemos a
soprar, a nos queimar!

Referências

BEZERRA, Edson. Manifesto sururu: por uma antropofagia das coisas alagoanas. Maceió: Editora Viva,
2014.

DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem queima. Helano Ribeiro (Trad.). Curitiba: Medusa, 2018.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Luiz Felipe Baeta Neves (Trad.). Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2008.

VIEIRA COSTA, Gil. Estética assombrada: um olhar sobre a produção artística contemporânea na
Amazônia brasileira. In: Revista Pós: Belo Horizonte, v. 4, n. 7, p. 117 - 130, maio, 2014. Disponível em:
https://periodicos.ufmg.br/index.php/revistapos/article/view/15657/12532. Acesso em: 5 mai. 2020.

1101
NOS ALICERCES DO TEMPO: o resgate do pátio São José do
Ribamar no Recife-PE.
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Josebias Costa do Nascimento Neto


Mestrando em Arquitetura e Urbanismo; UFPB; josebiasneto2014@gmail.com.

Pedro Henrique Cabral Valadares


Dr. em Desenvolvimento Urbano; Faculdade Damas;
pedro.henrique@faculdadedamas.edu.br.

As transformações dos espaços urbanos no decorrer dos tempos, são motivadas pelas
readequações das demandas por novas dinâmicas sociais. Nessa perspectiva, o pátio
de São José do Ribamar é firmado enquanto um genuíno espaço público localizado no
seio do núcleo histórico da cidade do Recife. O pátio apresenta-se atualmente como
um espaço subutilizado, desvalorizado e descaracterizado, com sua utilidade reduzida
a um mero espaço de estacionamento. Com reflexões acerca de intervenções em sítios
históricos permeados pelos conceitos trabalhados por alguns teóricos, no que diz
respeito ao patrimônio histórico-artístico-cultural da paisagem urbana, foram
realizadas pesquisas bibliográficas, documentais e iconográficas, visando fazer um
apanhado histórico e de valores; reafirmando assim sua relevância, seus valores e a
importância de sua preservação.
Palavras-chave: Patrimônio Edificado; São José do Ribamar; Preservação; Pátio; Recife.

The transformations of urban spaces over time are motivated by the readjustment of
demands for new social dynamics. In this perspective, the São José do Ribamar
courtyard is established as a genuine public space located in the heart of the historic
center of the city of Recife. The courtyard currently presents itself as an underutilized,
undervalued and uncharacterized space, with its usefulness reduced to a mere parking
lot. With reflections on interventions in historical sites permeated by the concepts
worked by some theorists, with regard to the historical-artistic-cultural heritage of the
urban landscape, bibliographical, documentary and iconographic research were carried
out, aiming at making a historical and values survey; thus, reaffirming its relevance, its
values and the importance of its preservation.
Keywords: Built Heritage; São José do Ribamar; Preservation; Courtyard; Recife.

1102
1-Pátio de São José do Ribamar: a gênese.
No Brasil, até meados do século XX, os interiores dos espaços sagrados eram amplamente
frequentados, os quais tinham a finalidade de catequizar, cuidar, educar e proteger; enquanto
o terreiro (ou pátio), espaço externo aos templos, considerado público, era utilizado para
celebrar, viver, trabalhar, circular e efetuar trocas, celebrando a relação das pessoas com o
monumento (a igreja) e as novas conexões entre os homens e a cidade (PESSOTTI e RIBEIRO,
2011).
Nessa conjuntura, nasceu a proposta do pátio como um núcleo básico urbano onde se constituiu
uma área ampla que conferia às igrejas um caráter de monumentalidade e imponência,
rodeadas por estruturas arquitetônicas enfileiradas e, comumente, geminadas (PESSOTTI e
RIBEIRO, 2011).
Diante disto, diversas cidades brasileiras tinham os pátios como núcleos mais importantes,
concentradores de fluxos, acontecimentos, onde a vida coletiva cotidiana se desenvolvia, a
exemplo dos pátios de Salvador, capital do Brasil durante o período colonial, mas também em
outros núcleos urbanos como o Recife, em Pernambuco. Além de locais de intensa
movimentação, os pátios também eram locais de aproximação das pessoas à igreja, pois nem
todos os habitantes iam aos templos apenas por motivação religiosa.
O Recifense não está ligado às suas igrejas só por devoção aos santos, mas de
um modo lyrico, sentimental: Porque se acostumou à voz dos sinos chamando
para a missa, anunciando incêndio, porque em momento de dôr ou aperreio
elle ou pessôa sua se pegou com nossa senhora, fez promessa, alcançou a
graça, porque nas igrejas se casou, se baptisaram seus filhos e estão
enterrados avós queridos (FREIRE, 2005).

No Recife – assim como nos demais centros urbanos coloniais –, a relação dos habitantes com
as igrejas era fortalecida pela presença dos pátios, e estes se formaram, predominantemente, a
partir da segunda metade do século XVII e foram consolidados na dinâmica urbana local ao longo
do século XVIII, concentrando-se na ilha de Antônio Vaz, principalmente a partir da construção
da Igreja Matriz de Santo Antônio e da Igreja de São José do Ribamar, cujas localidades se
tornaram dois bairros que levam os nomes desses santos.
A Igreja de São José do Ribamar foi inaugurada em 1754, ainda inacabada, pela Irmandade dos
Marceneiros, Carpinteiros e Pedreiros, entidade fundada em 1735 e que costumava se reunir
no Hospital Nossa Senhora do Paraíso (atualmente demolido), nas proximidades (PACHECO,
2017). O registro gráfico mais antigo da Igreja de São José do Ribamar, de que se tem
conhecimento, encontra-se em mapa datado de 1771, existente no Arquivo Histórico do
Exército. Todavia, somente no mapa de 1808, de autoria de José Portugal, o pátio da igreja

1103
aparece já completo, na configuração geométrica que se apresenta na atualidade, com sua
respectiva igreja como elemento dominante.
O padrão de ocupação do solo na área seguiu a tradicional configuração de lotes estreitos e
compridos, com edificações geminadas de uso misto, tendo no térreo atividades comerciais,
ao passo em que que, nos pátios, havia a presença dos ambulantes.
Mesmo com a obra inacabada, há diversos relatos de reuniões, procissões e festejos dirigidos à
igreja de São José do Ribamar, tornando seu pátio em um ponto central de acontecimentos
culturais. Comunicados acerca dessas atividades eram veiculados nos jornais do século XIX e
logo as cerimônias religiosas passaram a receber outras irmandades, a exemplo da Irmandade
da Nossa Senhora do Bom Parto e a Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Aflitos (PACHECO,
2017).
A Irmandade do Glorioso Patriarca S. José de Riba-mar pretende no dia 15 de
agosto, do corrente anno, celebrar a festa do mesmo santo, e no mesmo dia
pela 3 horas da tarde faser a solemne Procissão, aqual deverá corre as ruas
do costume, tanto no Bairro do S. Antonio como no do Recife (Diário de
Pernambuco, 18 de maio de 1837, p. 1).

Observa-se que, durante o século XIX, a igreja de São José do Ribamar passou por reformas,
sendo reinaugurada em 1896, todavia, ainda sem ornamentos e torre sineira, elementos que
somente viriam a ser acrescidos no início do século XX. Naquele momento, a data de 1653 foi
cravada na fachada, com a intenção de vincular a edificação ao período da ocupação holandesa,
visto que foi uma época importante para os memorialistas da cidade (PACHECO, 2017).
Atualmente, o pátio é delimitado por vinte e dois imóveis e a igreja de São José do Ribamar,
conforme mostrado na Figura 01, inserido no centro de comércio e serviço mais adensado da
região metropolitana do Recife, o pátio de São José do Ribamar é sufocado pelo seu entorno
conturbado e caótico, nas proximidades de mais de uma dezena de outras igrejas e outros
monumentos relevantes a história do bairro.

1104
Figura 01: Localização do bairro e demarcação do pátio de São José do Ribamar.

Fonte: ESIG (2008), editado pelo autor, 2019.

3-A paisagem urbano-cultural e o patrimônio histórico


Entre o final do século XIX e início do século XX, a conceituação de cultura a delimitava a um
ambiente físico que condicionava a diversidade de expressões na sociedade e tinha o clima como
um determinante do seu progresso. Atualmente, considera-se que há limites dessa influência
sob os fatores da cultura, revelando inclusive que é possível coexistir uma vasta variedade
cultural em uma mesma área. A partir dessa ideia, denota-se que as forças que influem
diretamente no desenvolver da cultura estejam nela mesma e na sua história, o que possibilita
o romper dos limites e significâncias que, por sua vez, tomam novas roupagens no decorrer dos
tempos (LARAIA, 2004).
A complexidade etnográfica, que se estende principalmente nas crenças, nos códigos morais e
éticos, nas artes e nos costumes locais, fortalece o caráter cultural e garante a pluralidade
socioespacial de uma comunidade, conforme mostrado na manifestação popular dos diferentes
lugares. Posto que a herança cultural é nutrida com o passar das gerações, logo o tempo é
constituído como agente de extrema importância para que haja a dinâmica no sistema cultural,
sabendo que a mesma se renova calma e constantemente (LARAIA, 2004).
Esse cenário cultural manifesta a natureza do patrimônio cultural que, por sua vez:
[...]Estende-se a todas as formas de manifestações coletivas ou individuais
remetentes às construções sociais materiais e imateriais que são referências
para os grupos detentores, transmitidas entre gerações, e que estão
relacionadas diretamente à memória social e à identidade de artefatos,
indivíduos e lugares, incluindo-se as tradições” (REIS, 2010, p.27).

Visto que o patrimônio cultural é o resultado da soma da paisagem natural com o produto que
o homem faz através do uso desses recursos (LEMOS, 1982), a paisagem cultural, segundo
Fernandes (2014), é formada pelo produto dessas transformações em determinado ambiente.
Desse modo, a diversidade conceitual empregada sob a paisagem cultural dá-se justamente

1105
pelas discussões entre o ambiente natural e o homem, que, conforme Prado (2004), pode
resultar em distintas paisagens morfológicas, sendo elas a paisagem rural, paisagem urbana e a
paisagem industrial.
É oportuno frisar que existe um embate filosófico entre a paisagem natural (tida como o
conjunto de elementos hidrográficos, de geologia, flora e fauna) e a paisagem cultural (sendo o
conjunto de elementos humanizados, ou seja, manejados pelo homem em meio urbano e rural);
e sob a ótica da relação ambiente-homem, nos é revelado que é impossível existir uma paisagem
puramente natural ou cultural, uma vez que é sobre o espaço natural que o homem projeta suas
ambições e expectativas de desenvolvimento, essa última herança da era moderna.

Diante dessas considerações, Lynch (1997) reafirma o papel da arquitetura e do urbanismo no


que se diz respeito a se apropriar, modificar e renovar a paisagem urbana conforme as novas
necessidades humanas e o dever de debruçar-se sob ela, com a finalidade de analisar e intervir
nesse processo. Dessa forma pode-se constatar que a paisagem urbana pode ser vista como o
que foi a cidade e no que ela se tornou, com todas as suas cicatrizes e marcos deixados pela
coletividade e suas respectivas sensações espaciais que delas emanam; e é sob essa perspectiva
que a presente pesquisa se desenvolve.
Segundo Choay (2006), a expressão “patrimônio histórico” assegura um bem e o destina a
determinada comunidade que, por sua vez, o usufrui. As edificações são exemplares desse
patrimônio que se relaciona intimamente com a vida da população. Os monumentos históricos
compõem parte dessa herança histórico-cultural de determinada área. “A natureza afetiva do
seu propósito é essencial: não se trata de apresentar, de dar uma informação neutra, mas de
tocar, pela emoção, uma memória viva” (CHOAY, 2006, p. 18). Pois, a relação entre o tempo
vivido com a memória, configura sua função antropológica, ou seja, sua essência.
Assim sendo, as obras arquitetônicas e urbanas ocupam de fato o centro da cena na história, no
que diz respeito a “eternizar a lembrança de coisas memoráveis”. A memória, por sua vez, é
parte integrante do imaginário coletivo social, segundo Pollak (1992), e deve ser compreendida
primeiramente em sua individualidade, sendo subdividido entre acontecimentos pessoais e
vividos pela coletividade, a exemplo dos pátios urbanos, presentes nos sítios históricos da
cidade.
Nora (1993, p. 09) diz que “a história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do
que não existe mais.” Entretanto, é através da memória que é transmitida à comunidade o
sentimento de pertencimento e seus valores conforme o passar dos tempos. Como
consequência é formada a identidade cultural do local, tendo o tempo como ponto essencial na
manutenção desses valores, conforme exemplificado por Coutinho (1998, p. 78): “o tempo induz

1106
a tratamento artístico desde que se o considere por seus efeitos nas coisas da objetividade [...].”

Sendo assim, o espaço urbano-arquitetônico é construído a partir da disciplina de valores1 e suas


respectivas acomodações, onde a coexistência empática deles resulta na atual dinâmica do local.
Entretanto, esse espaço vive “sob o risco de dissolver-se por força de alguma alteração no
maciço continente, alteração que se executa em face de motivos alheios à estética” (COUTINHO,
1998 p. 74).
Dessa forma, observa-se que a ausência de valores de uma comunidade para com seus imóveis
históricos acarreta não só no seu esvaziamento literal, mas também de seus significados e
consequentemente seu fim, como elucida Coutinho (1998, p.75):
[...] O desaparecimento, agora impossível de remediar-se, de toda uma série
de conjunturas, em linguagem humana, que se verificou a expensas do estojo
espacial; de modo a se poder dizer, de qualquer demolição, que ela
representa uma segunda morte no tocante aos fatos que anteriormente
aconteceram [...] (COUTINHO, 1998, p.75).

Nessa perspectiva, são evidenciadas as dimensões do monumento enquanto parte fundamental


no resguardo dos valores culturais e históricos de uma determinada população em determinado
espaço-tempo. O que nos permite reafirmar os conceitos e teorias de preservação e restauro de
obras e conjuntos arquitetônico-paisagísticos desenvolvidos ao longo da história, desenvolvido
através de nomes como Viollet-LeDuc (1814-1879), Camilo Boito (1836-1914), Alois Riegl (1858-
1905), Cesare Brandi (1906-1988), Gustavo Giovannoni (1873-1943), entre outros.
Conforme foi colocado, o valor cultural materializado no patrimônio cultural, considerado nas
representativas evidências do passado, formam a paisagem cultural de determinada sociedade,
essa última, por sua vez, tem o papel de autenticar e testemunhar as transformações do
conjunto construído, a exemplo do pátio de São José do Ribamar, que por sua vez, apresenta
uma imagem atual desfigurada comparada ao seu surgimento, seja pelo abandono e descaso
para com o patrimônio edificado ou pelas atividades culturais abolidas em detrimento das que
hoje ali são exercidas.

3-O Pátio de São José do Ribamar: o apocalipse.


Dos tempos áureos do Recife, cercado de tradições, lembranças e identidades, a imagem

1
“Os valores estéticos, artísticos, históricos e paisagísticos estão ligados, necessariamente, à lógica da
fruição; não existem por si, mas em relação com sujeitos, na reciclagem identidade-objeto. Do mesmo
modo, a cultura imaterial está intrinsecamente ligada à dimensão humana. Não há expressão possível do
patrimônio cultural dissociado das pessoas que o ergueram e daqueles que lhe constituíram o destino.”
(PIRES, 2010, p. 79)

1107
construída da cidade é multifacetada e dinâmica. O bairro de São José, suas festividades, seus
casarios e monumentos históricos, testemunhos vivos desse passado, transpassam as barreiras
do tempo e perpetuam na alma da cidade, com suas ruas estreitas, pátios e becos.
A busca pela modernização, por sua vez, reforma o pensamento científico sobre a cidade e
interfere diretamente na produção social do espaço urbano. Na contemporaneidade, essa
composição representada pela paisagem urbana corresponde aos princípios do
desenvolvimento da sociedade atual fincada nos fatores econômicos e nas políticas de
revitalização para determinadas áreas da cidade, conforme já apresentados no presente
trabalho.

O resultado desses fatores que incidem no tecido urbano é exposto por Reynaldo (2017), que
categorizou a antiga ilha de Antônio Vaz em área decadente e ociosa, resultando em um
incontido empobrecimento cultural.
A igreja de São José do Ribamar, um bem material de valor histórico e artístico, é tombada
isoladamente em nível federal desde os anos 1980 e seu pátio, bem como todo o entorno, é
protegido por lei municipal. Entretanto, tais proteções legais não contaram com fiscalização
suficiente para evitar, reverter ou mitigar os danos causados pelos proprietários dos imóveis
que delimitam o pátio, assim como ocorre em muitos outros trechos da cidade.
Atualmente, observa-se que as edificações apresentam um elevado grau de descaracterização,
decorrente de adaptações sucessivas em função de necessidades de cada proprietário, mas sem
anuência dos órgãos de preservação. Essas interferências consistem no alargamento e
fechamento de aberturas, acréscimo de pavimentos, alterações estilísticas, instalação de placas,
letreiros de publicidade, toldos, marquises etc. Os imóveis do pátio não possuem mais os usos
originais e funcionam predominantemente como depósito de mercadorias, enquanto o pátio
em si funciona como estacionamento de veículos, desvirtuando a dinâmica primitiva e
tradicional do pátio, bem como contribuindo para a eliminação das práticas culturais que
surgiram com o próprio lugar.
Observa-se que são raros os vestígios de elementos de períodos remotos, enquanto, em
alguns imóveis, percebe-se a presença de componentes do estilo eclético, em voga no Recife
no iníciodo século XX, sendo, portanto, uma intervenção reestilizadora, visto que tais imóveis
datam de períodos entre os séculos XVIII e XIX, quando não possuíam estilo arquitetônico
definido. Estas mudanças notáveis na paisagem histórica, comuns na cidade, equivocadamente
interpretadas como a noção de modernidade, são evidentes.

De forma geral, os registros destas transformações podem ser percebidos através da

1108
comparação de fotografias, obtidas pelo acervo iconográficos do IBGE, com a situação do pátio
de São José do Ribamar e seu entorno nos dias atuais, conforme exposto na Figura 2, obtidos
por intermédio da geolocalização do Google Maps e Google earth2 e também através do
levantamento realizado pela antiga Companhia de Saneamento do Recife, que, por meio de
plantas e cortes, registraram o plano de saneamento idealizado pelo engenheiro sanitarista
Francisco Saturnino de Brito para o Recife entre 1910 e 1917. É ainda importante ressaltar a
dificuldade, sobretudo em tempos de pandemia, de encontrar um maior número de registros
iconográficos antigos, além do atual nível de descaracterização das fachadas impedir uma
análise mais aprofundada.

Figura 02: Situação atual do Pátio de São José do


Ribamar.

Fonte: GOOGLE EARTH (2020).

Sendo assim, observa-se a presença de elementos espúrios em todas as fachadas dos imóveis
do pátio e percebe-se que o tipo mais recorrente são os usos de instalações elétricas em geral
presentes em 90,8% das edificações, seguido por instalações de toldos e cobertas provisórias,
presentes em 40,86% dos imóveis do pátio; enquanto o alargamento/fechamento/abertura de
vãos presentes em 95,34% dos imóveis, seguido pela mudança do material da coberta e
simplificação/eliminação dos elementos decorativos da fachada, ambos marcados em 77,18%
dos imóveis analisados.
O ato de ignorar esses elementos arquitetônicos presentes nos imóveis do pátio nos oportuna
refletir acerca dos valores artísticos e históricos, impregnados na área de entorno do
monumento tombado, visto que, provavelmente, essas alterações não foram produzidas por
técnicos competentes (no caso arquitetos e urbanistas especializados na preservação do

2
O uso do Google Maps foi o principal instrumento utilizado para captar o cenário atual do objeto de
estudo, tendo em vista as medidas de isolamento social diante a situação de pandemia do covid-19 no
momento em que a pesquisa foi realizada.

1109
patrimônio edificado), sendo assim executadas sem os devidos critérios teóricos e legais
previstos para o respeito ao patrimônio, com vistas à preservação daquela paisagem histórica e
cultural da cidade do Recife.
É importante atentar que apesar das alterações presentes no pátio de São José do Ribamar não
representarem o comprometimento total e permanente da configuração morfológica e
paisagística, apresentada no contexto histórico do bairro de São José, sendo a maioria dos danos
apresentados reversíveis ou minimizáveis; essa mudança de uso dos imóveis do pátio, outrora
predominantemente de uso misto e nos dias de hoje é utilizado como depósito de mercadorias,
além da grande mudança do uso do pátio em si, antes usado como um espaço de comércio,
troca, circulação e festejos religiosos e passa a ser apenas um estacionamento, resulta por
eliminar as práticas culturais que surgiram com o pátio.

Essas mudanças de uso, junto as descaracterizações impostas a esses imóveis terminaram por
eliminar a paisagem cultural dessa área que deu origem, inclusive, ao bairro.
E com a paisagem urbana desfigurada, em consequência o empobrecimento da paisagem
cultural, ocasiona-se o esquecimento e amordaça-se o passado, a memória e a identidade do
lugar.
Por tudo isso, evidencia-se a necessidade do resgate dessa paisagem cultural e histórica do pátio
de São José do Ribamar como fator de preservação e utilidade, a considerar as dinâmicas
socioespaciais atuais que envolvem o núcleo histórico do Recife, de modo que seja devolvido a
sociedade recifense, em toda sua integridade, a sua memória coletiva e tenha respeitada a sua
identidade cultural.

Referências

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https://esigportal.recife.pe.gov.br/arcgis/webappviewer/index.html?id=17a5f2738ff54c6881efca6cf9fac3
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LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 17, ed. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro,
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1110
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SILVEIRA, Emerson Lizandro Dias. Paisagem: um conceito chave na Geografia. In: Encontro de Geógrafos
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TIBOR, Jablonsly. 1 fotografia. Rua São José do Ribamar em Recife (PE). ID: 11469. Disponível em:
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de abr 2020.

LEMOS, Carlos. O que é patrimônio histórico. 2.ed. Editora Brasiliense: São Paulo, 1982.

1111
O ESTADO ANTE A SUBSIDÊNCIA DO SOLO EM BAIRROS DE MACEIÓ-AL:
responsabilidades no passado, presente e futuro.
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Caroline Gonçalves dos Santos


Doutora em Desenvolvimento Urbano; Professora Adjunta FAU-UFAL;
caroline.santos@fau.ufal.br.

Inara Querino de Mendonça


Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; FAU-UFAL; inara.querino@gmail.com.

Leandro Ferreira Marques


Graduando em Arquitetura e Urbanismo; FAU-UFAL; frleandro98@gmail.com.

Mariana Lima Lopes Lôbo


Mestre em Arquitetura e Urbanismo; FAU-UFAL; mariana.lobo@fau.ufal.br.

A subsidência do solo em cinco bairros da cidade de Maceió-AL, em virtude da exploração de


sal-gema pela Braskem, impeliu a remoção de cerca de 10 mil famílias e tem suscitado
reflexões acerca dos impactos socioespaciais e o alto preço das políticas desenvolvimentistas
de outrora, assim como sobre o papel do Estado no passado, presente e futuro nesse
contexto. Em um cenário de desocupação, que se assemelha a um pós-guerra, verifica-se um
maior protagonismo da Braskem na proposição, execução e comunicação das ações para as
áreas e famílias atingidas, enquanto o Estado se mantém silente sobre suas responsabilidades
perante o ocorrido. É urgente discutir e cobrar um Estado que se posicione e responda aos
interesses da coletividade acima do individual.
Palavras-chave: Estado silente; subsidência do solo; planejamento urbano.

The subsidence of the soil in five neighborhoods in Maceió-AL, due to the exploration of rock
salt by Braskem, impelled the removal of about 10,000 families and have raised reflections
about the socio-spatial impacts and the high price of developmental policies in the past, as well
as on the role of the State in the past, present and future in this context. In a scenario of
emptying that resembles a post-war, Braskem has a greater role in proposing, executing and
communicating actions for the affected areas and families, while the State remains silent about
its responsibilities. It is urgent to discuss and demand a State that positions itself and responds
to the interests of the community above the individual.
Keywords: Silent state; soil subsidence; urban planning.

1112
1 - Introdução
A cidade de Maceió, capital do estado de Alagoas, enfrenta uma catástrofe ambiental urbana
sem precedentes no âmbito nacional: a subsidência do solo - ou afundamento do terreno - em
pelo menos cinco bairros, em virtude da mineração de sal-gema1 pela mineradora Braskem. A
empresa atua no estado desde o ano de 1976, com uma planta industrial localizada no bairro
Pontal da Barra e poços de extração nos bairros Mutange, Bebedouro e Pinheiro, outrora
predominantemente residenciais.
As evidências do desastre em curso foram percebidas entre os meses de fevereiro e março de
2018, após fortes chuvas e o aparecimento de rachaduras nas vias e imóveis no bairro do
Pinheiro, culminando em um tremor de terra de 2.5 na escala Richter que ampliou as
rachaduras e o sentimento entre os moradores de que havia algo grave (G1 AL, 2019). Apenas
um ano depois em maio de 2019, estudos realizados pelo Serviço Geológico do Brasil - CPRM
(BRASIL, 2019) apontaram como causa da subsidência do solo a desestabilização do terreno
em decorrência da exploração de sal-gema ao longo de quatro décadas e mapearam a
abrangência do problema, que atingia mais dois bairros Mutange e Bebedouro, sendo
posteriormente incluídos Bom Parto e, mais recentemente, parte do bairro do Farol.
Entre os vários mapas revisados com as definições de riscos e indicações de realocação de
famílias, comércios, serviços e instituições de determinadas áreas e monitoramento de outras,
o mais recente, atualizado em dezembro de 2020, recomenda a realocação de toda área
atingida, incluindo a que estava em monitoramento, por perceber que são terrenos de
potenciais danos nos próximos anos, o que totaliza a necessidade de remoção de mais de 10
mil famílias. As realocações foram iniciadas em janeiro de 2020, chegaram a ser suspensas com
a declaração da pandemia do Sars-CoV-2 em março daquele ano, sendo retomadas no mês
seguinte. Até a primeira semana de janeiro de 2021, cerca de 9.400 imóveis já haviam sido
desocupados (BRASKEM, 2021).
Está-se diante de um cenário devastador: um extenso território - mais de 240 hectares -
desocupado, imóveis demolidos, instituições desativadas, vias interditadas, inúmeras famílias
em busca de novos locais de moradia na cidade e o processo ainda pode vir a se expandir. É
um problema inédito dentro do contexto brasileiro, de grandes implicações sociais e
urbanísticas e que tem suscitado reflexões acerca do alto preço do progresso almejado pelas
políticas desenvolvimentistas de outrora, bem como o papel do Estado no passado, presente e

1
Sal-gema é um tipo de cloreto de sódio utilizado na fabricação de soda cáustica e PVC.

1113
futuro. Dispondo de um conjunto de instrumentos que atuam de forma legal sobre a regulação
do espaço urbano, é esperado que o Estado atue de forma coerente e unitária a fim de
garantir o bem-estar social. O Estado brasileiro, contudo, esteve ao longo dos anos
amplamente ligado às bases de capitalismo dependente, assentado, como aborda Mendes
(2016), numa heterogeneidade interna dos espaços estruturais, dependentes uns dos outros
para a sua reprodução e que leva, com isso, a relações instáveis entre eles, originando lógicas
de atuação heterogéneas e fragmentadas, ora deixando sua sociedade sob a mão invisível do
mercado, ora intervindo para restabelecê-la. E destaca que:
As situações de catástrofe obrigam à intervenção do Estado nas questões
sociais, para além das questões securitárias ou de regulação dos mercados,
de forma a repor a normalidade, os laços sociais, apoiando as comunidades
e fomentando a ação coletiva (MENDES, 2016, [S.p.]).

Dito isto, este artigo objetiva analisar o posicionamento do Estado diante do caso de
subsidência do solo nos bairros do Bebedouro, Bom Parto, Farol, Mutange e Pinheiro
confrontando suas responsabilidades e práticas no passado, presente e futuro a fim de refletir
as implicações socioespaciais urbanas. Para tanto, adota-se como procedimentos
metodológicos: revisão bibliográfica e análise dos documentos, relatórios técnicos e notícias,
com ênfase na identificação de atuação do Estado, desde o reconhecimento do problema
passando pelos processos de desocupação e definições para a área atingida e para a cidade.
Entende-se que é urgente discutir e cobrar um Estado que se posicione e responda aos
interesses da coletividade acima do individual.

2 - O Estado progressista e desenvolvimentista e a implantação da indústria de extração de


sal-gema em Maceió-AL

A implantação da empresa SALGEMA Indústrias Química dá-se em 1976, alguns anos após
explorações à procura de petróleo, em que foram encontradas grandes quantidades de sal-
gema. Em 1995 houve uma mudança da administração, rebatizando, em 1996, a petroquímica
como Trikem. Em 2002, depois da fusão da Trikem com outras empresas do setor, foi criada a
Braskem, que manteve a operação em Alagoas (BRASKEM, 2021). Com a sua planta industrial
no bairro Pontal da Barra, área de restinga e poços de extração nos bairros do Pinheiro,
Bebedouro e Mutange.
À época da sua instalação, muitos questionamentos surgiram sobre os riscos de uma indústria
desse porte na capital alagoana. Era de competência federal permitir a atividade em
coadunância ao Código de Mineração (1967) e embora não se contasse com um cabedal

1114
significativo de diretrizes ambientais e nem de um sistema de licenciamento de atividades
efetiva ou potencialmente poluidoras, que só surgiu com a Política Nacional do Meio Ambiente
(PNMA), por meio da Lei nº 6.938 de 1981, que estabelece os objetivos, as ações e os
instrumentos da política ambiental brasileira, havia no governo estadual a Secretaria
Executiva de Controle da Poluição, atual Secretaria do Meio Ambiente, sob o comando do
biólogo e ambientalista José Geraldo Marques que deveria avalizar às condições de segurança
da implantação da empresa.
Em entrevista veiculada em janeiro de 2020, José Geraldo destacou que ele e sua equipe
tinham informações de que aquele tipo de atividade industrial poderia causar complicações
como subsidências do solo, coalescência das minas e riscos mais baixos de explosões e
contaminações. Além disso, preocupava o fato de a área de interesse para a planta industrial
ser muito próxima à cidade e ambientalmente frágil, por ser a ponta de uma restinga. Assim,
as contrapropostas feitas à empresa foram principalmente a instalação da fábrica na área do
Tabuleiro do Pilar, que ficava fora da capital e também distante das lagoas - que fora rejeitada
- e, no caso da instalação no Pontal da Barra, a manutenção das dunas de topix - responsáveis
pela estabilidade em áreas de restinga- , que seriam uma forma de proteção contra os riscos
de explosão e a existência de um cinturão verde. Porém, contrariando todas as informações e
exigências solicitadas, o então secretário afirma ter sido surpreendido com o início das
perfurações dos poços2.
É importante salientar que essas decisões ocorreram em um contexto nacional de políticas
desenvolvimentistas, com vistas ao propalado progresso em um governo de regime ditatorial
bastante centralizado na esfera federal. Assim, com o discurso de importante geração de
emprego para o estado de Alagoas e desenvolvimento, a empresa iniciou suas operações em
1976 e somente em 1986, teve seu processo de licenciamento das operações, em virtude das
mudanças na legislação em 1981. Obtendo a regularização de Licença de Operação (LO) e de
Licença de Regularização de Operação (LRO), essas renovadas em 2011 e em 2016, que tinham
validade até 2022.
Deve-se destacar que no Relatório de impacto ambiental produzido pela empresa em 1986,
eram afirmados os impactos mínimos da atividade e a garantia de seguridade, reduzindo o
processo de exploração a uma operação simples de substituição: “Não serão provocadas
alterações ou comprometimentos ambientais de nenhuma forma [...] Pode-se admitir uma

2
Ver Programa Ricardo Mota Entrevista, TV Pajuçara, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=CVQmZ3oB61Q, acesso em 24/11/2020

1115
segurança ambiental total em relação ao projeto do empreendimento descrito”. (VIEIRA, 2019,
[S.p.]).
Hoje, cabe às três esferas - federal, estadual e municipal, atualmente representadas pela
ANM3, IMA4 e Prefeitura de Maceió respectivamente - a responsabilidade de permitir e
monitorar atividades de exploração como a da empresa Braskem. Sendo competência federal
autorizar, conceder e permitir a lavra em obediência ao Código de Mineração e às Normas
Regulamentadoras de Mineração. No que se refere ao licenciamento ambiental, que trata da
operação dos poços de sal e do salmouroduto e leva a matéria-prima até a planta, este deve
ser concedido na esfera do Estado pelo Instituto do Meio Ambiente (IMA) do Estado de
Alagoas e no âmbito municipal compete à prefeitura a liberação para funcionamento da
atividade de mineração em relação ao seu aspecto locacional levando em consideração o
zoneamento urbano e as leis municipais (VIEIRA, 2019).
No entanto, nesses 40 anos de operação da mineradora, os riscos levantados à época pelo
então secretário José Geraldo, bem como os riscos afastados pela empresa em relatório de
impacto ambiental, foram se confirmando e estão atualmente associados aos problemas de
rachaduras de vias e imóveis, decorrentes da subsidência do solo em virtude das atividades de
extração. Todavia, Relatórios de Avaliação de Desempenho Ambiental (RADA) de 2013, 2017 e
2018 solicitados pela ANM não tinham constatado qualquer subsidência (VIEIRA, 2019). Ou
seja, os órgãos responsáveis pela regulação não identificaram em tempo os problemas de
grandes proporções ambientais, sociais e espaciais.

3 - Ações e Reações do Estado ante a subsidência do solo nos bairros


Aos primeiros sinais mais notórios de problemas nos bairros, com o surgimento e/ou
evidenciamento de trincas, fissuras e rachaduras em vias e imóveis, após as fortes chuvas de
fevereiro e março de 2018, junto e ao tremor de terra também em março no bairro do
Pinheiro e entorno próximo, o Estado reage, em suas diferentes escalas - municipal, estadual e
federal -, a partir da: solicitação e realização de estudos técnicos para identificar as possíveis
causas desses eventos, tanto pela Defesa Civil de Maceió-AL e principalmente pelo Serviço
Geológico do Brasil (CPRM); execução de obras de reparo e monitoramento local;
levantamento de dados sobre a população e danos da área; repasse de verba emergencial de
R$14 milhões pelo Governo Federal para atuação da Defesa Civil e auxílio emergencial de

3
Agência Nacional de Mineração, criada em 2017 e substituindo o antigo Departamento Nacional de
Produção Mineral (DNPM)
4
Instituto do Meio Ambiente de Alagoas, criado oficialmente em 1988

1116
moradia aos moradores do bairro Pinheiro (pelo programa Ajuda Humanitária); e suspensão
das licenças ambientais da Braskem (empresa mineradora, apontada como possível causadora
dos eventos no bairro afetado) pelo Ministério Público do Estado de Alagoas, bem como, das
licenças de construção na área pelo Município.
Essas ações ocorreram ao longo de 2018 e apenas em maio de 2019, um ano após as fortes
chuvas e o tremor de terra, a hipótese de que a extração de sal-gema pela empresa
petroquímica Braskem foi a causadora desses eventos é confirmada pelos estudos e análises
do Serviço Geológico do Brasil (CPRM): “Está ocorrendo desestabilização das cavidades
provenientes da extração de sal-gema, provocando halocinese (movimentação do sal) e
criando uma situação dinâmica com reativação de estruturas geológicas preexistentes,
subsidência e deformações rúpteis em superfície em parte dos bairros Pinheiro, Mutange e
Bebedouro, Maceió-AL.” (BRASIL, 2019, p. 39, grifo nosso).
Mesmo antes dos estudos da CPRM, em março de 2019, a Prefeitura de Maceió já havia
declarado Estado de Calamidade Pública nos bairros afetados. Por sua vez, só a partir das
conclusões do Serviço Geológico do Brasil, o Governo Federal também reconhece o Estado de
Calamidade Pública. Além disso, a Defesa Civil indicou a retirada de famílias de parte do
Pinheiro e do Mutange (os moradores locais, inclusive, já vinham se retirando do bairro devido
ao risco dos imóveis que sofreram com as rachaduras).
Em setembro de 2019, a Prefeitura de Maceió renovou o Estado de Calamidade Pública,
incluindo, desta vez, o bairro do Bom Parto. Ao passo que a área dos bairros Pinheiro,
Mutange, Bebedouro e Bom Parto passa por esse demorado processo de reconhecimento de
possível calamidade, há uma construção da noção de risco local a partir das posturas adotados
pelo Estado diante de toda a situação de possível afundamento da área, o que leva alguns
moradores dos bairros afetados a optarem por se mudar da área.
Já em dezembro de 2019, após forte cobrança de parlamentares federais, pressionados por
moradores das áreas afetadas, o Estado divulgou o ‘Plano de Ação Integrado - Ações do
Sistema Federal de Proteção e Defesa Civil para os Bairros Pinheiro, Mutange e Bebedouro
(PAI)’ através da Secretaria Nacional da Defesa Civil: documento constituído a partir do ‘Mapa
de Setorização de Danos - Versão 01 - Junho/2019’, que aponta imóveis, instituições e
equipamentos que necessitam de realocação e define uma estratégia de integração da gestão
dos poderes Municipal, Estadual e Federal em 10 eixos: 0.Governança; 1.Monitoramento
(estrutural, geológico e meteorológico); 2.Obras de Mitigação; 3.Habitações; 4.Segurança
Pública; 5.Comunicação do Risco e do Desastre; 6.Serviços Essenciais; 7.Educação;
8.Recuperação de Negócios; e 9.Saúde (BRASIL, 2019).

1117
Ainda no final de 2019, a Braskem anunciou o fechamento dos poços de mineração em
Maceió-AL - ao tempo em que também solicitou, e obteve, autorização da ANM para pesquisas
de viabilidade de exploração de sal-gema no litoral Norte de Maceió e municípios ao Norte - e
propôs a criação de uma Área de Resguardo na superfície em torno dos 15 poços de extração
de sal-gema, sugerindo a realocação da população local (cerca de 740 famílias, localizadas
dentro de boa parte do perímetro territorial do bairro do Mutange). Com isso, a Prefeitura de
Maceió-AL divulgou o cronograma de desocupação preventiva, com início em janeiro de 2020,
a partir de acordo assinado entre Braskem, Município, Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e
Caixa Econômica Federal (através do asseguramento da disponibilidade de casas do ‘Minha
Casa, Minha Vida’ para parte da população evacuada).
Assim, surgiu o ‘Programa de Compensação Financeira e Apoio à Realocação’ da Braskem para
auxílio nesse processo: “O Programa prevê auxílio à desocupação de R$ 5 mil, auxílio aluguel
de R$ 1.000, transportadora, custos com imobiliária, custos de depósito para móveis, apoio
psicológico e de assistentes sociais.” (BRASKEM, 2021, [S.p.]). Em janeiro de 2020, um acordo é
assinado entre Braskem, Defensorias Públicas do Estado, da União e Ministérios Públicos
Federal e de Alagoas para que moradores das áreas de criticidade dos bairros afetados
também sejam atendidos pelo ‘Programa de Compensação Financeira e Apoio à Realocação’,
na época, cerca de 4.500 imóveis e 17.000 moradores (BRASKEM, 2021).
Ainda em 2020 o decreto de calamidade pública foi renovado por mais seis meses e no
decorrer do ano foram assinados entre Braskem e Prefeitura mais Termos de Cooperação
Técnica para ampliar o monitoramento geológico e gerir a demolição de imóveis (iniciadas em
abril do mesmo ano). Para além disso, alguns acordos judiciais de recuperação dos prejuízos
socioeconômicos e educacionais - prevendo a construção pela Braskem de unidades
educacionais em até 02 anos (BRASKEM, 2021) - foram firmados entre Braskem e poder
público. Em abril de 2020, a Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) removeu a estação
do Mutange, após interromper a locomoção do VLT no trecho Bom Parto-Bebedouro e a
Prefeitura de Maceió-AL interditou a circulação na Av. Major Góes de Cícero Monteiro,
importante eixo estruturante de mobilidade da cidade no sentido Norte-Sul.
Em junho de 2020, diante da atualização dos estudos da CPRM e da divulgação do ‘Mapa de
Setorização de Danos - Versão 2 - Junho/2020’ pela Defesa Civil de Maceió-AL, com ampliação
das áreas a serem evacuadas (BRASIL, 2020), o acordo de apoio à desocupação preventiva
recebe um aditivo de 1.918 imóveis, devido à ampliação da área de criticidade dos bairros
afetados. Em setembro de 2020, há uma nova atualização do mapa de evacuação (Mapa de
Setorização de Danos - Versão 03 - Setembro/2020), indicando a inclusão de mais 1.706

1118
imóveis localizados no bairro Bebedouro. Já em dezembro de 2020, após mais estudos da
Defesa Civil de Maceió, Defesa Civil Nacional e do Serviço Geológico do Brasil, mais uma
atualização do mapa de evacuação é feita (Mapa de Linha de Ações Prioritárias – Versão 4 –
dezembro 20205), apontando a inclusão de mais 1417 lotes para área de monitoramento e a
realocação de 586 lotes. Até o momento, o total de imóveis a serem desocupados nas áreas
afetadas passa da marca de 10.000 (Mapa 01). De acordo com Vitor Azevedo, engenheiro civil
do Centro Integrado de Monitoramento e Alerta de Defesa Civil (Cimadec) e um dos
responsáveis pela nova versão do mapa:
O Mapa tem como finalidade identificar regiões que estão sofrendo danos e
que há necessidade de realocação e, ao mesmo tempo, se antecipar em
verificar regiões que podem vir a apresentar algum tipo de dano no futuro.
O acréscimo de áreas se deve ao monitoramento contínuo da região e o
refinamento no entendimento dos efeitos da subsidência e seus possíveis
danos na área. (MACEIÓ, 2020, [S. p.])

Mapa 01: Ações Prioritárias nos bairros Pinheiro, Mutange, Bebedouro e Bom Parto, Maceió/AL.

Fonte: Defesa Civil Municipal e do Brasil, CPRM, (2020); Braskem, (2021), adaptado pelo autor, 2021.

5
Disponível no sítio da Prefeitura Municipal de Maceió em:
http://www.maceio.al.gov.br/2020/12/mapa-de-acoes-prioritarias-e-atualizado-e-amplia-area-de-
monitoramento/.

1119
Além da revisão do mapeamento, destacam-se novos acordos firmados entre Ministério
Público e Braskem, sobretudo o acordo ambiental e sociourbanístico, em que a Braskem
assume o compromisso de arcar com todas as despesas financeiras para adoção de medidas
de estabilização e monitoramento da subsidência; elaboração de diagnóstico ambiental, com
vistas à reparação, mitigação ou compensação de potenciais impactos e danos ambientais
decorrentes da exploração de sal-gema.

4 - A necessidade de um Estado garantidor do bem estar social para o futuro da cidade


Como se pode observar, os números dos diretamente atingidos ainda estão em frequente
atualização e crescimento, mas já dão conta da dimensão da tragédia urbana, com perdas
inestimáveis - embora precificadas para fins de compensação -, que rebatem no patrimônio
histórico e cultural, tanto material quanto imaterial; na mobilidade urbana; nos usos da
cidade, com destaque as desocupações de escolas, postos de saúde, hospitais; e nas vidas de
cerca de 10 mil famílias. Portanto, é urgente pensar no futuro da cidade de Maceió e das
famílias atingidas, como a cidade absorverá usos e funcionalidades desse território esvaziado?
O que poderá ser realizado no imenso vazio urbano que se conforma?
Neste ponto, volta-se o olhar para as responsabilidades do Estado, com ênfase na esfera
pública municipal de traçar diretrizes que garantam condições de expansão e desenvolvimento
da cidade equacionando às inúmeras perdas de eixos viários, de determinados usos, em
síntese de território significativo da cidade. No entanto, o Plano Diretor da cidade, principal
instrumento que orienta a ocupação do solo urbano, que visa garantir os interesses coletivos
relacionados ao crescimento e desenvolvimento da cidade, encontra-se em revisão desde
2015, quando a vigente Lei nº 5486/2005 completou 10 anos, tempo máximo para um plano
ser revisto conforme determina o Estatuto da Cidade.
É incontestável que todos os problemas agora vivenciados demandam novas discussões para
que sejam incorporadas diretrizes e zoneamentos adequados no novo Plano Diretor, a fim de
evitar um plano que venha a vigorar repleto de exceções, as quais já acontecem devido à
situação declarada de calamidade pública. No entanto, é igualmente relevante que essas
discussões contemplem a participação da sociedade civil organizada, população atingida e
academia, como é preconizado para elaboração de planos urbanos.
Essa participação torna-se ainda mais indispensável, em virtude dos interesses envolvidos,
coletivos e privados, no território em função dos impactos ambientais, sociais, econômicos e
urbanísticos atrelados ao desastre da subsidência que atinge cinco dos cinquenta bairros da

1120
cidade. Em agosto de 2020 chegou a circular em redes sociais um estudo preliminar de
proposta para o território desocupado, elaborado pela Prefeitura Municipal de Maceió e
apresentada a Braskem, em que se previa realocação de parte do trilho, implantação de uma
Via Perimetral e Via Parque, manutenção das Unidades Especiais de Preservação (UEP) e uma
extensa área de reflorestamento com espécies da Mata Atlântica (TNH1, 2020). A proposta
surpreendeu, especialmente, os moradores atingidos, pois não houve participação social,
justificada por serem estudos iniciais e que em momento oportuno, haverá participação e foi
bastante questionada quanto à sua viabilidade, haja vista que cerca de 10 mil famílias
precisam ser retiradas como algumas atividades poderiam ser mantidas?
Passados 6 meses da veiculação dessa proposta, a sociedade e academia ainda não foi
convocada pelo governo municipal para discutir o planejamento da cidade, sobretudo da área
já esvaziada. Enquanto isso, alguns pontos do acordo ambiental e sociourbanístico assinado
em janeiro de 2021 incitam atenção especial e demandam maior cobrança de um Estado
garantidor, protetor e que se comprometa com os interesses da população, uma vez que se
define que cabe a Braskem, com cooperação entre poder público, iniciativa privada e demais
setores, restabelecer e compensar, além de preservar, a ordem urbanística, a mobilidade
urbana, o patrimônio histórico, cultural, artístico, paisagístico e arqueológico, a comunidade
atingida, os vazios urbanos decorrentes das demolições e a memória dos bairros. De modo que
a empresa se compromete a desenvolver, executar e gerir intervenções para garantir a
mobilidade na cidade, bem como intervenções sociourbanísticas nas áreas desocupadas, a fim
de promover o convívio seguro da coletividade com a área - sendo acordado que as áreas
transferidas à petroquímica Braskem em decorrência da execução do Programa de
Compensação Financeira não serão edificadas, para fins comerciais ou habitacionais, salvo se,
após a estabilização do fenômeno de subsidência, caso esta ocorra, isso venha a ser permitido
pelo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano da Cidade de Maceió.
Portanto, é urgente que se tenha um Plano Diretor que garanta os interesses coletivos e o bem
estar social, assim como que regule e defina as condições de manutenção da empresa no
município - haja vista o interesse dela em novas frentes de exploração no litoral Norte, a fim
de que se efetivamente consiga evitar novas tragédias. Ainda que também no acordo
ambiental e sociourbanístico garantiu-se que deverá haver um Plano de Melhorias
Socioambiental específico, o qual poderá ser objeto de licenciamento ambiental, e que a
Braskem se compromete a não iniciar novas atividades de extração de sal-gema nos
municípios de Maceió, Paripueira e Barra de Santo Antônio, até a implementação desse plano.

1121
Neste sentido, a extrapolação dos limites do município com o movimento de deslocamento
massivo da população à procura de novos imóveis e da própria Braskem à procura de novos
locais para a exploração de sal-gema despertam questões relacionadas ao planejamento da
Região Metropolitana de Maceió (RMM). Os municípios que compõem a RMM não possuem
articulação de maneira que as ações de planejamento sejam integradas de forma que, neste
caso específico, os novos territórios vislumbrados não sejam prejudicados com a atividade de
mineração.

5 - Considerações
Ainda que no passado não houvesse um sistema de licenciamento ambiental consistente que
garantisse e exigisse da empresa as condições ideais para mitigar impactos socioambientais, ao
longo dos anos de sua operação, foram se implantando e consolidando leis ambientais mais
criteriosas, passando a haver meios e esferas responsáveis para fiscalizar e regular suas
atividades e sua relação com o espaço de instalação. Porém, não se evitou a catástrofe urbana
em curso, que não foi identificada nos acompanhamentos das atividades.
Em situações de crises desencadeadas por catástrofes, quando o Estado mais é necessário,
pois conforme aponta Mendes (2016) é o que garante último apoio de reconstituição dos laços
sociais e das comunidades após a ocorrência de um desastre, tem-se observado um Estado
silente sobre suas responsabilidades nos acontecimentos, e embora tenha firmado acordos
que garantem a realocação da população, com um processo bem arrastado de indenização,
encontra dificuldades em dar respostas céleres e necessárias à população atingida sobre
futuro da cidade, bem como em manter um espaço de envolvimento e diálogo com a
sociedade.
É preciso uma sociedade mobilizada e organizada para cobrar um Estado que proteja os
interesses da coletividade, para participar da elaboração do Plano Diretor a fim de minimizar
os profundos impactos ambientais, sociais, econômicos e urbanísticos desse drama urbano
inédito no país.

Referências

BRASIL. Serviço Geológico do Brasil (CPRM). Estudos sobre a instabilidade do terreno nos bairros
Pinheiro, Mutange e Bebedouro, Maceió (AL): Relatório síntese dos resultados nº 1. Brasília, DF:
Ministério de Minas e Energia, 2019. Disponível em:
<http://rigeo.cprm.gov.br/jspui/bitstream/doc/21133/1/relatoriosintese.pdf>. Acesso em: 05 set. 2019.

BRASKEM. Sítio da Braskem. 2021. Disponível em: <https://www.braskem.com.br/alagoas>. Acesso em


22 fev. 2021.

1122
G1 AL. O que se sabe sobre as rachaduras no Pinheiro. 17 jan. 2019. Disponível em:
<https://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2019/01/17/o-que-se-sabe-sobre-as-rachaduras-no-bairro-
do-pinheiro-em-maceio.ghtml>. Acesso em 20 nov. 2020.

MENDES, J. A dignidade das pertenças e os limites do neoliberalismo: catástrofes, capitalismo, Estado e


vítimas. In: Sociologias, Porto Alegre, v. 18, n. 43, dez. 2016. p. 58-86. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-45222016000300058&lng=en&nrm=iso
>. Acesso em: 29 maio 2020.

TNH1. Prefeitura prepara projeto para áreas desocupadas em Pinheiro, Bebedouro, Mutange e Bom
Parto. 18 ago. 2020. Disponível em: <https://www.tnh1.com.br/noticia/nid/prefeitura-prepara-projeto-
para-areas-desocupadas-em-pinheiro-bebedouro-mutange-e-bom-parto/>. Acesso em: 20 nov.2020.

VIEIRA, Leonardo Lopes de Azeredo. Audiência Pública: Instituto do Meio Ambiente do Estado de
Alagoas IMA/AL - Câmara dos Deputados (Apresentação). Brasília, 2019.

1123
O cotidiano ‘periférico’, e o redesenho da paisagem urbana padronizada.
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Rochelle Silveira Lima


Mestranda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Ceará;
rochelle.arq@hotmail.com

Rafael Carvalho Fernandes Pereira


Mestrando em Geografia pela Universidade Federal do Ceará;
rcarvalho.fp@gmail.com

A expansão urbana com o advento do movimento moderno, e com seu pensamento de


ordenamento do espaço foi crucial para a construção das diretrizes de convivência modernas.
A partir desse pressuposto abordaremos as reverberações que este período tem sobre o
cotidiano e a vivência da cidade contemporânea. Observando as limitações impostas devido a
forma que a materialidade é dada através do processo de urbanização. Como contraponto, é
analisada a produção e significação da favela, que transpõe preconceitos e limitações da
arquitetura erudita. Metodologicamente é proposta uma breve revisão histórica sobre o tema
supracitado e o estudo de caso sobre a tipologia arquitetônica dos conjuntos habitacionais.
Tais quais surgem como modos de doutrinamento e parametrização estatal.
Palavras-chave: Favela; Identidade; Apropriação; Controle; Ordenamento.

Urban expansion with the advent of the modern movement, and with its spatial planning
thinking, was crucial for the construction of modern living guidelines. Based on this
assumption, we will address the repercussions that this period has on the daily life and the
experience of the contemporary city. Observing the limitations imposed due to the way that
materiality is given through the urbanization process. As a counterpoint, the production and
significance of the favela is analyzed, which transposes prejudices and limitations of erudite
architecture. Methodologically, a brief historical review on the aforementioned theme and a
case study on the architectural typology of housing estates is proposed. Such as appear as
modes of indoctrination and state parameterization.
Keywords: Favela; Identity; Appropriation; Control; Ordering.

1124
1 – INTRODUÇÃO
O espaço o urbano, é resultado do trabalho da ação do homem sobre a terra natural. Segundo
Carlos (2008), este processo vai conferir particularidades próprias ao espaço urbano, que a
partir das relações sociais estabelecidas nele, vai constituir esse espaço-produto. Pensando no
potencial transformador dessas relações, é válido destacar que, o modo como a sociedade
contemporânea se ordena é determinado pelo mecanismo de produção de capital. Esse, por
sua vez se auto regula e estabelecendo controle. Ainda segundo Carlos (2008) “o modo de vida
urbano, sob o capitalismo, impõe disciplina.” (p.95) O espaço urbano, então aparece como um
elemento em que sua principal função é a espacialização e reprodução da dinâmica do capital.
Durante o movimento moderno na arquitetura é possível vislumbrar como a produção do
capital é fator determinante no ato de pensar os espaços, o uso, e as dinâmicas sociais Claval
(1979). Dito isso a presente pesquisa se divide fundamentalmente em dois momentos,
primeiro explorar a relação sócio econômica entre o Capital e o espaço urbano moderno,
seguido pelo estudo de caso “favela” e a contraposição a perspectiva reguladora moderna.
Com isso o trabalho objetiva primordialmente fomentar a crítica no que diz respeito a
influência direta da produção econômica na dinâmica das relações estruturais e socias, do
espaço urbano. Além de explorar os aspectos controversos a esse contexto presente na
“Favela” e nas habitações de interesse social.

2 – METODOLOGIA
A metodologia utilizada para desenvolvimento da presente pesquisa consiste em uma revisão
bibliográfica, em livros, artigos e publicações, acerca do tema proposto. Dessa forma a seguir é
apresentado a discussão de partida do trabalho e os autores a serem abordados.
Dito isso, iniciamos com o debate acerca do ordenamento das infraestruturas urbanas. Essas
reflexo da consolidação da produção do capital. A circulação de pessoas e bens vai estar no
centro da discussão e implantação da metrópole que reforça essa expressão máxima de poder
sócio econômico, discorre Carlos (2008).
Já Claval (1979), traz a luz a imagem mental criada de forças e grupos que trabalham para
significar os territórios que ocupam. Sendo assim a imagem da metrópole é criada, significada
e reforçada tanto por símbolos abstratos quanto por símbolos concretos, desencadeando no
subconsciente do citadino uma realidade urbana condicionada, onde o capital acaba sendo o
grande articulador das modificações.
É nesse momento que os planejadores urbanos entram. Primeiramente interessados na
produção de uma imagem, de um ambiente almejado, mesmo que existam imagens diferentes

1125
que vão contra estes objetivos. Para estes casos, instrumentos são adotados para minimizar a
produção destas imagens conflitantes assevera Lynch (1999).
É por estes motivos que Carlos (2008, p. 63) afirma que conforme a reprodução do espaço
urbano ocorre, “traz em si a ideia de que a cidade crescer e o ser humano desaparece”, ou
seja, muitas vezes a ação instrumentalizada dos planejadores inibem ações do cotidiano dos
citadinos, o que limita a imagem de uma cidade mais “humanizada” e aprazível.
Desta maneira, no atual cenário mundial, é comum a criação e espetacularização de imagens
das cidades a partir de consenso urbanos, onde o espaço é concebido como estratégia de
promoção de marcas publicitárias de consumo imediato. Os projetos urbanísticos tem um
papel decisivo nesta estratégia homogeneizadora e espetacular, que buscam transforar a
cidade em cenários ou peças publicitárias (JACQUES, 2010).
Esta impessoalidade na produção do espaço da cidade é um fenômeno que vem ocorrendo
desde o início da modernidade, ao qual Harvey (2008) considera a Revolução Francesa como
ponto inicial. Porém para este estudo, recordaremos de alguns princípios do movimento
moderno, e como estes foram importantes na constituição de uma cidade onde o cotidiano
não conseguia se estabelecer em seu processo de construção.
Pontuado os conceitos básicos e autores que alicerçam a presente pesquisa também é
fundamental destacar o caráter exploratório da pesquisa. Esse caráter por sua vez é observado
no estudo de caso sobre os conglomerados urbanos das “Favelas”.

3 – A CIDADE MODERNISTA E A CRÍTICA À SUA PRODUÇÃO


A utilização e valoração do solo segundo Claval (1979), vão implicar em um mínimo de
ordenamento espacial. E é esta organização a qual Le Corbusier (2000), cita que reconfortará o
coração do homem moderno, colocando-o em harmonia com o Universo.
A geometrização utilizada no espaço urbano, é uma configuração proposta como figura de
dominação (CLAVAL, 1979). Ela buscava inserir novos costumes ligados a produção em massa e
circulação de bens, por isso, uma nova circulação espacial e sistema de símbolo e valores eram
necessários.
Para que isso fosse fixado, era preciso uma constante transferência de informações a valores
desse poder, ao qual o espaço e sua estética eram usados como canal. Assim como a sua
organização facilitava esta comunicação, ela deveria ser feita de forma mais homogênea e
onipresente para que tivesse efeito. Assim é criado um tipo de coação coletiva
comportamental imposta pela sociedade através da forma do espaço urbano (CLAVAL, 1979).

1126
O espaço tem em si o poder de estimular, comunicar e incentivar determinados
comportamentos. Para o movimento moderno era necessário a construção de um espaço
universal, que direcionasse o indivíduo a ter condutas que era consideradas mundiais (LE
CORBUSIER, 2000). Um novo comportamento, uma nova cidade, um novo agir para uma nova
realidade, a realidade da indústria e da automação moderna.
A proposta trazida pelo movimento moderno tinha a ideia de uma organização social que
demonstrasse uma harmonia perfeita com a máquina. O próprio Le Corbusier (2000) já citava a
possibilidade de construção de edifícios estadunidenses em altura devido a técnicas de
concreto e aço e a uso de elevadores. Estas novas técnicas aliadas ao vidro tornam-se as bases
da estética adotada pelo movimento.
Esta cidade pensada de maneira funcional e quantitativa, teve em sua reverberação também
nos espaços públicos. Le Corbusier (2000), indicava a separação dos pedestres com os
automóveis, ou seja, vias sem calçadas, conhecidas como autoestradas. A solução buscava
acabar com a “confusão entre trânsito de pedestres e trânsito de carros” (p. 81) e assim
promover um deslocamento de automóveis mais fluido e dispor de um maior espaço para
estacionamento fora da pista de circulação. Este cenário seria a plena harmonia da sociedade
com as máquinas. Sem o contato do pedestre com a via -a qual milenarmente foi criado por
ele na cidade (TUAN 1980;1983) - tanto a atuação quando a identificação do transeunte na
cidade é ameaçada.
Dentre muitos críticos a este modelo de urbanização, Jane Jacobs (2009) é uma personalidade
indispensável na discussão desse cenário. A autora supracitada afirma que, o desenho além de
homogeneizador e criador de paisagens monótonas, ele também propõe relações
interpessoais fracas propõe bairros inteiros voltados para si mesmos. Este pensamento
segundo a autora teve como base “[o] presumível controle sobre as crianças e ao bate-papo
das donas de casa” (p. 126).
Estes modelos habitacionais como a proposição da Ville Radiouse em Nova York, são exemplos
de prédios sem vida e apagados que Jacobs (2009) chama de “Grande Praga da Monotonia”.
Onde os grandes empreendimentos e o mono funcionalismo barram a diversidade e
consequentemente o fluxo de pessoas, além de capacidade de identificação e aproximação do
sujeito com a cidade. Outro elemento causador da “Praga” segundo a autora, é a padronização
de edifícios, esta é adotada em vezes para aumentar a densidade populacional e otimizar o
tempo de construção, porém acaba por homogeneizar a paisagem, e limitar as diferentes
camadas sociais que podem coexistir no mesmo espaço.

1127
A monotonia visual é apenas um produto da ausência da interação dos usos urbanos, Jacobs
(2009) afirma que grandes conjuntos habitacionais fechados para si, grandes artérias de
trafego e parques demasiadamente compridos podem ser considerados ruins, pois diminuem a
interação das pessoas com o espaço. Segundo a autora é principalmente na rua que estas
interações em sua maioria ocorrem, porém, para os “planejadores urbanos ortodoxos” o fato
de se estar na rua, se mostra a necessidade de produção de um lugar adequado para se
exercer tais funções (parques, playgrounds etc.). Sendo a rua um lugar propício ao fluxo,
porque não também de atividades fixas? Aumentando assim a dinamicidade e segurança
destes espaços.
Para Jacobs (2009), as calçadas são os principais locais públicos da cidade, que aparentemente
podem parecer desordenadas, mas na verdade elas garantem a manutenção da segurança,
além de permitir a livre ação de moradores e transeuntes no espaço. Para que isso ocorra é
necessária uma diversidade de usos de comércios, serviços, moradias, institucionais entre
outros, para que o uso do espaço público seja contínuo. É esta dinâmica da diversidade que
Lynch (1999) nos afirma serem os “meios mais significativos do quais o todo pode ser
organizado.” (108).
Ou seja, existe sim uma organização, não geométrica, não padronizada e não modular, mas
viva e enérgica que tem mais uma forma e mais de uma interpretação, talvez seja esta
produção colaborativa e de diversas aparências que o movimento moderno não conseguisse
compreender. Ao dividir o fluxo humano e dos carros, se destrói a relação da rua como um
espaço público de interatividade, e coloca em xeque as experiências que vivenciamos durante
o simples ato de caminhar.

4 – O LUGAR DE INTERAÇÃO, A INTERAÇÃO DO LUGAR


O Segundo Carlos (2007), o lugar onde acontece a reprodução da vida, é onde o sujeito se
identifica, interage, se reconhece e significa o espaço. É nesta perspectiva que o habitante usa,
se apropriando do espaço urbano (fisicamente) e se conectando cognitivamente (mental), em
um conjunto de significações e simbolismos.
É através das relações e situações que o espaço se torna lugar, onde este só poderá ser
entendido através das referências que lhe são atribuídas produzidas através de um grupo de
sentidos impressos pelas ações dos cotidianos (CARLOS, 2007). O lugar então é construído
através vivência, onde a experiência do corpo no espaço dá base para a construção de uma
identidade que é produzida e transformada constantemente por meio da ação, e

1128
consequentemente o espaço físico é transformado pelas consequências destas significações
que são atribuídas a ele.
A paisagem da cidade é produzida constantemente por meio do cotidiano, ela não é estática
(CARLOS, 2008), porém é na favela que temos uma dinâmica mais acelerada. Jacques (2001)
explica que tanto os exemplares edificados quanto o espaço urbano das localidades menos
abastadas e de interesse social, estão em constante construção. Pois esta ocorre durante o
cotidiano do morador. Sempre há algo para se fazer, a adaptação e o sentido de organicidade
dessa ocupação são constantes. Ao contrário da produção arquitetônica erudita que tem
começo e fim definidos, a construção na favela segue um “contínuo estado de incompletude”
(p. 24). Ou seja, o lugar favela é produzido e reproduzido pelos seus moradores
ininterruptamente.
Este “movimento do imóvel” que Jacques (2001) considera a favela como resultado, é uma
ação coletiva da construção do lugar. Ação essa que se transforma, adaptando-se as
necessidades de seus moradores. Estes objetos tem como seu principal compromisso a
construção de um abrigo, deixando para segundo plano a estética formal do conjunto.
A estética despretensiosa e fora dos cânones arquitetônicos eruditos é que acaba por
“estigmatizar” a favela como um lugar “feio”. Jacques (2009) nos lembra que uma das
heranças que carregamos do movimento moderno, é a crença de que a diversidade é feia.
Propondo assim que modelo que deveríamos almejar é o controlado e homogêneo. Jacques
(2009) ainda cita que a monotonia formal do espaço também acarreta em impasse de
orientações, a diversidade por sua vez, se apresenta necessária para o sentido de direção no
lugar.
Segundo Weimer (2012), este desprezo por outros tipos de manifestações populares espaciais
no Brasil, vem do autoritarismo colonial das classes dominantes, que demonstravam
intolerantes a estas ações. Segundo o autor foram usados aparelhos ideológicos e estatais com
fins de doutrinação da população, ao qual ele cita no texto de “marasmo conservador da
arquitetura popular brasileira” (p. XLVII-XLIX).
A tentativa de uma imposição a modelos que inibem ação de moradores em uma construção
coletiva do espaço tem a função de um ordenamento e controle estatal da forma. No Brasil,
nos últimos 70 anos um dos modelos mais utilizados foram os conjuntos habitacionais. Estes
principalmente são usados para a relocação de moradores de favelas para módulos
habitacionais sob um plano estatal de ordenamento do território.
Como exemplo de transformações espaciais urbanas através do cotidiano e da aplicação do
conceito de lugar sob o espaço imposto, trazemos o caso do Conjunto São Vicente de Paulo em

1129
Fortaleza. A construção do modelo habitacional se dá entre os anos de 1981 e 1986, para uma
população já moradora do local, porém em uma favela. Após mais de 30 anos passados, o
modelo estatal homogêneo e rígido, dá lugar a particularidades das vidas dos moradores. É
possível visualizar diversas modificações, adaptações e ressignificações de espaços públicos e
de suas residências, como podemos ver na Figura 1. Identificado em vermelho é possível notar
as alterações realizadas ao longo dos anos decorridos. Verificando-se principalmente o avanço
das residências no sentido das vias.

Figura 1: Planta original do conjunto habitacional (1986), e levantamento das modificações feitas pelos
moradores (2018).

Fonte: Imagem produzida pelos autores.

É nítido que a produção do lugar, e a constante transformação do espaço que Jacques (2001),
chama de “espaço em movimento” sobrepõem-se sobre a normativa imposta pelo conjunto
habitacional. Dessa forma é possível identificar as características e dinâmicas de ocupação
presentes na favela se estendendo sobre o conjunto habitacional. Com isso, hoje é tangível
declarar que o conjunto habitacional perdeu todas os traços ortodoxos que o definiam sendo
assim retrato da adaptação e da necessidade que se sobrepõem ao pragmatismo moderno. Na
Figura 2, é retratada a fachada original do conjunto habitacional, e a mesma fachada
posteriormente já completamente alterada.

1130
Figura 2: Estudo sobre as modificações das habitações pelos moradores no conjunto.

Fonte: Imagem produzida pelos autores.

5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das discussões decorridas até o momento é válido destacar que a manipulação da
configuração do espaço urbano tem implicações diretas no seu desenho, em como lidamos e
no relacionamos socialmente. Constatamos que a prática urbana modernista busca
estabelecer controle das ações humanas na cidade. Colocando-se como instrumento de
domínio, adotado pelo Estado como forma de manutenção do seu poder.
O conceito de lugar então entra em questão à medida que seu uso se mostra contrário ao
modelo imposto, sendo necessária modificações para que o processo de identificação e
apropriação seja completo.
A favela se mostra como um lugar que é criado fora dos padrões de ordenamento do
território, fruto de um constante processo de identificação, produção, assimilação e
significação. Por este fato é colocado o morador como principal atuante do lugar, não apenas
na construção de sua habitação, como também na construção de seu espaço urbano.
A necessidade de transformação de espaços impostos como Conjuntos Habitacionais, só nos
revelam a necessidade de uma maior interação durante o processo de projeto e concepção de
ideias de forma participativa. Objetivando que os conceitos e normatizações não sobreposto
as necessidades específicas de um dado grupo, implicando em futuras descaracterizações do
ideal de projeto. Além disso, no estudo de caso observado é possível verificar que não era
necessário destruir todo um assentamento para a construção de um modelo padronizado de
habitação, posteriormente alterado pela comunidade. Todavia decidir coletivamente por
melhorias espaciais, considerando a história e a identidade de um “outro” lugar que não
carrega as mesmas características formais da cidade que conhecemos como a “oficial”.

1131
Com isso o presente trabalho propõe a reflexão sobre a constante necessidade de
normatização e aformoseamento das comunidades menos abastadas, ante mesmo a suas
necessidades básicas. Porque a diversidade de uso assusta tanto o arquiteto moderno? Qual o
papel que cabe a nós arquitetos contemporâneos com o tratamento de tais problemáticas?

Referências

CARLOS, Ana Fani Alessandri. O lugar no/do mundo. São Paulo: Labur Edições, 2007.
CARLOS, Ana Fani Alessandri. A (re)produção do espaço urbano. 1. ed. 1. reimpr. São Paulo:
Editora da Universidade da São Paulo, 2008.
CLAVAL, Paul. Espaço e Poder. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.
LE CORBUSIER. Planejamento Urbano. 3. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.
LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. Lisboa: Edições 70, 1999.
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna: Uma Pesquisa sobre as Origens da Mudança Cultural.
17 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
JACOBS, Jane. Morte e Vida das Grandes Cidades. 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins
Fonseca, 2009.
JACQUES, Paola Berenstein. Estética da ginga: a arquitetura das favelas através da obra de
Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001.
JACQUES, Paola Berenstein. Zonas de tensão: em busca de micro-resistências urbanas. In:
JACQUES, Paola Berenstein; BRITTO, Fabiana Dutra (org). Corpocidade: debates, ações e
articulações. Salvador: EDUFBA, 2010. p. 106-119.
TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção. São Paulo: DIFEL, 1980.
TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: DIFEL, 1983.
WEIMER, Gunter. Arquitetura popular brasileira. 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2012.

1132
O SILÊNCIO DO ESPAÇO PÚBLICO: Sandoval Cajú e a Cidade Sorriso, Maceió-AL, 1961-
1964
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Myllena Karla Santos Azevedo


Arquiteta e Urbanista; IFAL; mykazevedo@gmail.com.

Sandoval Cajú, paraibano, radialista e jornalista, elege-se prefeito de Maceió em 1960, com
uma campanha de apelo popular com a promessa de recuperar o sorriso de Maceió, fazendo
referência ao estado de aparente abandono dos espaços públicos. Durante o mandato entre
1961 e 1964, sua interpretação da ideia de Cidade Sorriso coloca o povo no foco do espaço,
como usuário e elevado simbolicamente ao mesmo patamar dos ilustres. Por interferir
simbolicamente no espaço público estabelecido, a obra será rejeitada, primeiro nos jornais,
depois com a cassação do mandato pela Ditadura Militar e, por fim, com o abandono que
levou ao desaparecimento gradativo dos seus elementos de inspiração moderna. Além de uma
questão estética, a rejeição trata de um problema simbólico.
Palavras-chave: Praça; Moderno; Maceió; Alagoas.

Sandoval Cajú, born in the Brazilian state of Paraiba, radio broadcaster and journalist, is
elected Mayor of Maceio in 1960, after a campaign filled with popular appeal and the promise
of recovering the smile of Maceio, making a reference to the apparent abandonment of the
public spaces. During his term, between 1961 and 1964, his interpretation of the idea of the
Smile City focuses on the people as the user, as well as elevates them to the same plateau as
those recognized as honorable. For having interfered symbolically in the stablished public
space, the works will be rejected, at first through newspapers, then with the annulment of his
term by the Military Dictatorship, and, finally, by the abandonment that led to the gradual
disappearance of the work’s modern-inspired elements. In addition to a question of aesthetics,
the rejection addresses a symbolical problem.
Keywords: Square, Modern, Maceio, Alagoas.

1133
1 – Sandoval Cajú: candidato, prefeito, ex-prefeito
Com uma revista (CEPAL, 2010) e um documentário (ALÉM DO, 2010) realizados a seu respeito,
Sandoval Cajú, ex-prefeito de Maceió, é uma figura que desperta nos maceioenses curiosidade
e uma discussão tão viva quanto àquela da época de sua campanha. Sua obra divide opiniões
ainda em tempos recentes: uma que condena qualquer iniciativa de favorecimento ou por
considera-la sem valor e outra que defende um estudo para validá-la como patrimônio
modernista a partir de seus elementos estéticos. A história de Sandoval Cajú demanda o
retorno 61 anos na história.
Maceió, Alagoas, 1960. Três candidatos à Prefeitura de Maceió se apresentam ao público.
Jorge Quintela, médico e ex-vereador, ligado à UDN1; Cleto Marques Luz, ex-vereador e
deputado Estadual, pelo PSP2; Joaquim Leão, comerciante, do PDC3; e Sandoval Cajú,
jornalista, radialista, sem experiência em cargos públicos, também do PDC, e que vinha
denunciando os problemas da cidade de Maceió em seu próprio programa de rádio na Rádio
Difusora, o Tribuna do Povo, desde 1958 (JORNAL DE ALAGOAS, 23/01/1960). Vence Sandoval
Cajú, que, além da popularidade do rádio e do carisma, tinha como argumento central da
campanha a promessa de “recuperar o sorriso” da cidade, acordo que havia sido bem aceito
tanto pelas classes mais favorecidas quanto por aquelas que habitavam os bairros mais
periféricos de Maceió. Esta promessa fazia referência à Maceió Sandoval havia encontrado ao
descer do trem pela primeira vez em 1947, em: “no começo do século (...) era muito
arrumadinha, muito limpa, suas praças bem tratadas; cidade que chegou a conquistar o
epíteto de ‘Cidade Sorriso'” (BRANCO, 1993, p. 93, grifo nosso).
Esta ideia coincidia também com a opinião da mídia impressa, representada neste estudo pelo
Jornal de Alagoas. Ao longo do ano de 1960, as matérias deste jornal haviam trazido denúncias
de problemas urbanos, inclusive em respeito às praças:
Praças Públicas de Maceió foram abandonadas pela municipalidade – Já
várias vezes estas colunas levaram ao público e às autoridades competentes
a necessidade de melhor tratamento para com as nossas praças públicas,
em franco abandono há longo tempo (...) (JORNAL DE ALAGOAS,
16/02/1960, grifo nosso).

A gestão do Prefeito Sandoval Cajú foi marcada pelas obras públicas prometidas na campanha.
Ao longo dos 3 anos até a cassação do mandato pela Ditadura Militar, foram feitas pela gestão

1
União Democrática Nacional.
2
Partido Social Progressista.
3
Partido Democrata Cristão.

1134
obras de infraestrutura, saúde, educação e embelezamento. Como infraestrutura, foram
realizadas obras de calçamento, assentamento de meio-fio e obras de escoamento pluvial das
vias arteriais, a construção de uma ponte, entrega de 100 compartimentos de feira-livre na
Feira do Passarinho, na Levada; construção de uma agência dos Correios, do Prédio do
gabinete provisório do Prefeito no bairro da Ponta Grossa, e de uma Coletoria Municipal do
Tabuleiro. Para favorecer à saúde, foi realizado o reaparelhamento do Hospital de Pronto
Socorro, único municipal à época; a construção de um Hospital Infantil de Pronto Socorro; a
construção de novos postos de urgência no Jacintinho e no Tabuleiro do Martins, e da
Maternidade Popular “Nossa Senhora do Bom Parto” no Jacintinho. Para as demandas da
educação, a gestão agiu com a aquisição do prédio para o Grupo Escolar do Jacintinho, a
construção de um grupo escolar no “Carrapato” (atual Rio Novo), da primeira Biblioteca
Municipal “Luiz Lavenère”, e do primeiro Salão para exposição de trabalhos artísticos
“Portinari”, no Farol. Finalmente, o embelezamento traz o principal foco das obras da gestão:
58 praças, sendo 36 construídas e 22 reconstruídas (CAJÚ, 1991, p. 163-164), distribuídas pelos
bairros de periferia - Ponta Grossa, Trapiche da Barra, Pontal da Barra, Pajuçara, Poço e
Bebedouro; e nos bairros de moradia da elite – Centro e Farol4.
As melhorias urbanas, tão esperadas e defendidas pela mídia, começaram finalmente a ser
realizadas pela gestão, e no entanto, as inaugurações das primeiras praças - Força Total, no
bairro de Bebedouro, e Moleque Namorador – são recebidas com crítica quanto a seus nomes.
Para a primeira, o nome seria modificado para Praça Batista dos Santos, e para a segunda,
Praça Augusto Calheiros, cantor da velha guarda, ou ainda Praça Intendente Roberto Machado,
pela Câmara de Vereadores. Enquanto as praças pequenas recebem crítica quanto ao seu

4
49 das 58 praças da gestão Sandoval Cajú foram identificadas em fontes primárias, sendo 27
construídas - Elias Cardoso (Rio Novo), João Martins (Tabuleiro dos Martins), Fôrça Total (Bebedouro),
Jorge de Lima (Centro), 7 de Setembro (Centro), São Vicente (Centro), Santo Antônio (Ponta Grossa),
Carlos Paurilio (Ponta Grossa), Alfredo de Maya/3º Distrito (Ponta Grossa), Moleque Namorador (Ponta
Grossa), Menino Petrúcio (Ponta Grossa), Santa Tereza (Ponta Grossa), Guedes de Miranda (Ponta
Grossa), 11 Nacional (Ponta Grossa), Do Pobre/Leonel Brizzola (Vergel do Lago), Almirante Custódio
Melo (Prado), Dr. Manuel Brandão (Trapiche da Barra), Pingo D’Água (Trapiche da Barra), Inocência/Caio
Porto (Pontal da Barra), São Sebastião (Pontal da Barra), Cipriano Jucá (Poço), Aloísio Branco/Bomba da
Marieta (Poço), Unidos do Poço (Poço), Guimarães Passos (Poço), Largo da Vitória/Do Ó (Pajuçara), São
Francisco (Cruz das Almas) e Marechal de Ferro (Ipioca); e 22 reconstruídas – Liberdade/Lucena
Maranhão (Bebedouro), Do Centenário (Farol), Sergipe (Farol), Hercílio Marques (Farol), Ilhota dos
Martírios (Farol), Dom Antônio Brandão (Farol), Parque Gonçalves Lêdo (Farol), Antídio Vieira (Farol),
Rosalvo Ribeiro (Farol), Élio Lemos (Cambona), Dom Pedro II (Centro), Visconde de Sinimbú (Centro),
Dos Palmares (Centro), Do Montepio (dos Artistas) (Centro), Tiradentes/Independência (Centro),
Marechal Deodoro (Centro), Nossa Senhora das Graças (Levada), Nosso Senhor do Bonfim (Poço), Da
Maravilha (Poço), Artur Ramos/Raiol (Jaraguá), Euclides Malta/do Rex (Pajuçara) e Manoel
Duarte/Liberdade (Pajuçara).

1135
batismo, as maiores, de maior destaque e importância, são criticadas pelo “mau gosto”
estético das obras:
A Praça Centenário, se bem que seja uma obra considerável do governo
municipal, (...) péca, como as demais recentemente construídas, do mesmo
mau gosto. São os invariáveis bancos com SS por toda parte, culto da
personalidade que tanto deforma o sistema democrático, as floreiras de
azulejo com flores artificiais, as estátuas removidas de outros logradouros.
(...) Por sinal esse máu gosto municipal invadiu todas as praças da cidade
construídas na atual administração. Veja-se o caso da Praça Deodoro, que
de um logradouro de linhas vetustas está se transformando apenas numa
pracinha catita do interior (...). E há muita gente, sem dúvida, que acha
aquilo uma lindeza...” (JORNAL DE ALAGOAS, 06/09/1963)

Ora, se havia uma demanda de obras urbanas que foi suprida pela administração, praças
estavam abandonadas e foram recuperadas, por que surgem críticas nestes pontos
específicos? No momento em que as promessas de “sorriso” se transformam em
materialidade, as reações de jornais locais de perfil conservador deixam claro que há regras a
serem seguidas. O espaço público é mais do que seu nome leva a pensar a princípio.

2 – A Cidade Sorriso
Promessa de campanha, o lema Cidade Sorriso, epíteto de Maceió, permeará as obras e as
críticas à Gestão, expressos nos títulos das matérias: de “‘Cidade Sorriso’” festeja o dia da
pátria e, de braços abertos, recebe visitantes” (JORNAL DE ALAGOAS, 07/09/1963), a “Cidade
Sorriso... amarelo” (JORNAL DE ALAGOAS, 15/04/1962), a referência é constante. Para
entender os motivos da crítica baseada neste slogan, é preciso retornar na história ao seu
momento de criação, pois, no caso do discurso, a história se faz presente no cotidiano. Este
fenômeno é consequência do que Bourdieu (1989), define como o discurso regional, que pode
ser entendido como a identidade local de uma região. Seja a região uma cidade, estado,
distrito ou nação, o processo se dá de forma semelhante. As primeiras definições dos
elementos que forem oficialmente gerados, sob um discurso coerente que corresponda às
necessidades vigentes serão, após sua disseminação para o público, institucionalizados e
fundidos à imagem do lugar. A continuidade deste discurso, associado àqueles que constroem
sua identidade a partir deste, será defendido energicamente nos momentos em que estiver
sob ameaça de uma redefinição de seus princípios.
O estudo do momento em que o espaço público de Maceió é formado pela primeira vez, e a
identificação dos discursos que o definem, apresentam a chave para entender os motivos que
levam a municipalidade, a mídia e, por vezes, os próprios maceioenses, a colocar ressalvas na
enfim recuperação do “sorriso”, realizada pela gestão Cajú.

1136
Maceió recebe o título de Cidade Sorriso após um processo de transformação do espaço
urbano entre o fim do século XIX e o início século XX. O povoado de Maceió, que havia se
desenvolvido em razão do comércio marítimo de importação e exportação através do porto
natural de Jaraguá foi favorecido pela abertura dos portos brasileiros ao comércio
internacional em 1808. Essa atividade econômica, em conjunto com a atividade de agiotagem
dos mascates, garantiu o enriquecimento dos comerciantes e agiotas residentes no povoado
de Maceió (COSTA, 1939, p. 18; LINDOSO, 2005, p. 64) e fará surgir na região uma elite antes
inexistente: a “burguesia mercantil urbana” (LINDOSO, 2005, p. 37).
Diferente da capital Santa Maria Madalena da Alagoa do Sul, a cidade de Alagoas, localizada
em terreno alto, o termo Massayó, nome do povoado, faz referência a uma depressão de
terreno alagada que se forma no litoral em razão das marés ou da água da chuva. Um terreno
alagado, segundo as ideias higienistas da época, importadas da Europa, indicava insalubridade,
fato comprovado pelas várias epidemias que assolavam a cidade no início do século XX.
A elite legítima, habitante da capital, tinha da vila de Maceió a imagem de uma “vila espúria
[adj. imunda], sem tradições históricas, constituída por mascates gananciosos5” (COSTA, 1939,
p. 71). A capital será o local de concentração não apenas do capital material, mas também do
simbólico: centro do poder e da legitimidade. A partir da identidade da capital serão definidos
os estigmas das demais, mais negativamente percebidas quanto mais se afastarem do modelo
estabelecido por esta. Em reposta ao estigma da região em relação à identidade dominante
surge a reivindicação regionalista – uma luta pela inversão do sentido e do valor das
características estigmatizadas (BOURDIEU, 1989, p. 124-126).
Os comerciantes, organizado em elite, empreenderão esforços em afastar de si mesmos e da
cidade o estigma de insalubridade atrelado ao nome Massayó e começarão a trabalhar em
direção à construção uma identidade positiva ou ao menos legítima.
Ao longo do século XIX, serão feitos melhoramentos com o objetivo de transformar o terreno
natural da capital - nivelamento das ruas e construção de sistema de esgoto como base para
calçamento com paralelepípedos; construção das calçadas em frente às casas; e iluminação a
gás; mas também obras que relacionavam salubridade a beleza, sob o padrão europeu, ligado
à identidade da elite comerciante. O primeiro edifício construído em Maceió em estilo eclético,
distinto do estilo colonial característico da elite rural da cidade de Alagoas, foi o Palacete da

5
A classe de comerciantes a que Lindoso se refere era formada por europeus, principalmente
portugueses, como traz no trecho “eram portugueses esses mascates gananciosos da acusação de
Craveiro Costa, embora conste a presença de ingleses, italianos e alemães. Mantinham praticamente o
monopólio do comércio de cabotagem com os portos do Recife e Salvador, e depois, o comércio com os
portos europeus” (LINDOSO, 2005, p. 64-65).

1137
Assembleia Legislativa (1851), na Praça Dom Pedro II. A partir da construção de edifícios
particulares ao longo deste século, se formará na cidade uma estética diferenciada das demais
cidades do Estado: um estilo de vida urbano característico, expresso em palacetes, sobrados e
jardins (LINDOSO, 2005, p. 67).
Serão os estudos e médico-geográficos de Dias de Moura (1869) e Espíndola (1871) que irão
orientar a transformação do espaço urbano de Maceió do ponto de vista higienista, e também
do que iria configurar sua beleza urbana. É recomendada a dissecação dos pântanos, a limpeza
das ruas, a arborização das praças e estradas, o nivelamento e calçamento dos becos, e a
limpeza dos cemitérios (ESPÍNDOLA, 1871, p. 126-128). Citam, também, a beleza da paisagem
natural que circunda o núcleo urbano – coqueiros que “dão o aspecto de uma paisagem assás
pitoresca” (ESPÍNDOLA 1871, p. 184). Seguindo estas recomendações, o espaço público do
núcleo urbano de Maceió deixaria de ser insalubre e se tornaria belo, compondo o conjunto
com os seus edifícios particulares e sua paisagem natural.
As praças são, portanto, arborizadas, completando a estética urbana que representará a elite
comerciante, durante a chamada Oligarquia Malta (1900-1912). As praças Wanderley de
Mendonça (1905), Dom Pedro II (1906), Marechal Floriano Peixoto/dos Martírios (1908),
Euclides Malta (1908) e Marechal Deodoro da Fonseca (1910), com projeto e elementos
inspirados no ecletismo europeu, definirão com suas configurações as regras para as praças
maceioenses: seu objetivo deve ser homenagear os notáveis de Alagoas e do Brasil; sua
localização deve estar próxima a instituições e residências da elite burguesa; a autoria do
projeto e dos elementos deve ser atribuída a artistas reconhecidos nacional e
internacionalmente; o traçado deve ser organizado de acordo com as ideias de higiene da elite
maceioense e em relação à homenagem: bancos, postes de iluminação, estátuas, e vegetação
de grande porte são organizados seguindo princípios de alinhamento geométricos – em linha
ou em círculo, e espaçados, para permitir a circulação livre do ar, requisito para um ambiente
com boa higiene; o mobiliário deve ser importado diretamente da Europa, em material e
formato modernos; os equipamentos e elementos decorativos devem ser importados e
forjados em ferro fundido; os elementos decorativos também importados e forjados em ferro
fundido; os materiais devem representar a modernidade e progresso tecnológico, em especial
o ferro fundido, representativo da revolução industrial europeia, como material de bancos,
postes de iluminação e estátuas; a vegetação deve ser disposta como filtro do ar impuro,
segundo as ideias higienistas; o nome deve homenagear membros ilustres da sociedade
alagoana; e o tempo deve ser investido sem pressa, representando a construção de apenas 5
praças ao longo de 12 anos. De extrema importância é o cuidado com as praças, que devem

1138
ser mantidas sempre bem cuidadas, e reformadas periodicamente sob uma atitude de
reverência e investimento que corresponda àquela primeira experiência de transformação.
O novo núcleo urbano com conjuntos urbanos de prédios ecléticos e praças de inspiração
europeia serão o objeto das propagandas de Maceió, através da fotografia, em cartões postais
e publicações custeadas pelo Estado, que retratavam as paisagens urbanas e naturais
exuberantes das praias e da Lagoa Mundaú: o Indicador Geral do Estado de Alagoas, em 1902
(CABRAL & COSTA, 2016) e o Album Illustrado do Estado de Alagoas, em 1908 (CARDOSO,
1908). As construções e praças posteriores a 1908 completarão o conjunto de paisagens
estabelecidas como “Maceió” nos cenários escolhidos no curta-metragem Casamento É
Negócio, lançado em 1933 (BARROS, 1993, p. 49) e no posterior Vade Mecuum do Turista em
Alagoas (BRANDÃO, 1937).
O processo de transformação da imagem estava, portanto, completo, e validado pelo
reconhecimento externo dos visitantes e turistas, que batizará este núcleo urbano
transformado, com suas praças arborizadas rodeadas de prédios públicos ecléticos e rodeados
de paisagens naturais de ímpar beleza, “Cidade Sorriso”. Enquanto o termo Massayó ficara
ligado à insalubridade do terreno alagado natural, a expressão “Cidade Sorriso” surge ligada à
ideia de uma cidade bela, com todas as implicações deste termo no contexto em que foi
forjado. Neste momento ficou estabelecida a identidade positiva da cidade de Maceió. Ligada
a essa percepção positiva ficou o condicionamento do espaço público, e nessa categoria está
inclusa a praça, de onde surge a insatisfação dos jornais quando a cidade vai ganhando
aparência de abandono pela inércia das gestões municipais durante as décadas de 1940 e
1950, e de onde vem a força da campanha de Sandoval Cajú.

3 – Recuperar o sorriso
Quando a gestão inicia as obras urbanas prometidas, encontra resistências da mídia impressa e
da câmara de vereadores. Desconsiderando por hora os conflitos políticos que podem ser o
motivo gerador de tais críticas, tem foco neste caso aqueles relacionados à interpretação do
discurso Cidade Sorriso. É necessário, antes de comparar o discurso institucionalizado com a
interpretação da gestão, apresentar o modo como a campanha despertou as expectativas dos
maceioenses.
As expectativas da nova Cidade Sorriso estavam, como revelam trechos da mídia impressa,
ligados ainda ao turismo, ao reconhecimento externo, em 3 vertentes distintas separadas pela
possibilidade do acesso do visitante à localidade.

1139
Para a área exterior ao perímetro turístico, o discurso higienista da limpeza ainda predomina,
como no caso do Canal da Levada, próximo ao Mercado Público: “Fizemos ver a necessidade
de proceder-se, de logo, a limpeza do Canal e sua imprescindível desobstrução – para o livre
curso das águas poluídas oriundas de diversos pontos de Maceió (...) (JORNAL DE ALAGOAS,
27/04/1960)”.
Para a área passível de ser vista por visitantes, o tradicional discurso higienista recomenda
também a aparência de asseio e organização, como no caso do Mercado Municipal, localizado
à beira da linha férrea que leva à Estação Central:
Quem entra na cidade de Maceió pela via férrea que liga esta Capital ao
interior e ao Estado de Pernambuco, depara-se, logo de início com este
aspecto (foto), apresentado pelo Mercado Público Municipal. (...) O prédio,
em péssimas condições de conservação, muito pequeno, e cercado de
barracos anti-higiênicos, impedindo a passagem do público, amontoados
quase sobre os trilhos da Rêde (sic) Ferroviária do Nordeste (...) (JORNAL DE
ALAGOAS, 16/02/1960).

Nos limites do perímetro acessível aos visitantes, algumas localidades, referidas como “cartões
postais” – praias e praças, carros-chefe da propaganda externa da cidade, divulgados aos
potenciais visitantes, deveriam estar sempre limpos, prontos para receber o visitante e,
principalmente, para encantá-lo com sua beleza:
As nossas praias, principalmente a da Avenida Duque de Caxias, e de
Pajuçara, que estão incluídas entre as mais pitorescas do nordeste
brasileiro, estão ultimamente a nos oferecer, bem como aos que visitam a
nossa capital, um espetáculo deprimente e contristador (...) (JORNAL DE
ALAGOAS, 30/03/1960); Por que os Poderes Públicos não fazem com que
volte aquela praça a ser o nosso “cartão de visita”? (...) Por que não
arborizam o velho parque do Centenário? Por que não transformá-lo num
verdadeiro “cartão postal”, dando uma nova vista aos visitantes, aos nossos
turistas? Nova administração surge na Prefeitura. Esperamos dela a
conservação e melhoria daquela “entrada da cidade sorriso” (JORNAL DE
ALAGOAS, 12/02/1961).

Os discursos são despertados quando surge a promessa de Sandoval Cajú para recuperar o
Sorriso de Maceió. Maceió deveria ser não só uma cidade perfeitamente asseada, mas acima
de tudo, deveria estar organizada e preparada para proporcionar a melhor experiência ao
turista, que, encantado, sentiria vontade de voltar, confirmando o ideal. O desvio da
experiência em relação a estas expectativas específicas gera os conflitos entre gestão, mídia e
legislativo.

1140
A experiência ideal de transformação de praças seria algo semelhante àquela feita pelo
governo de Luiz Cavalcante (1961-1966)6 para a Praça Marechal Floriano Peixoto/dos
Martírios, que tem seu traçado transformado à semelhança do projeto de Burle Marx para os
jardins do Ministério da Educação e Saúde – MES, no Rio de Janeiro, com um projeto moderno
cuidadoso, mas dispendioso para o poder público. O projeto corresponde aos princípios
contidos no discurso Cidade Sorriso e é louvado pelo Jornal de Alagoas, colocando em foco
especial a fonte sonoro-luminosa, da Fontes Castro, de Poços de Caldas, MG: a primeira do
Nordeste.
A Fonte pois, em espetáculo fascinante de luminosidade, de policromia e de
música, é um convite ao devaneio. E continua a desatar nos lábios, então já
quase sisudos, da Cidade-Sorriso, a expressão de encanto que lhe irrompe
dos jactos (sic) coloridos, alegrando a terra melhor do mundo que é Maceió
(JORNAL DE ALAGOAS, 15/07/1962)

Na mesma medida que tecia elogios aos esforços do governador, a mídia impressa publicava
críticas às obras da municipalidade. O primeiro ponto de comparação é o objetivo: nas praças
modificadas, “cartões postais” já localizados no perímetro turístico, são feitas homenagens a
ilustres alagoanos em monumentos que representam símbolos da cultura alagoana como o
mapa do Estado, o indígena Caeté e o Gogó da Ema, e novos playgrounds infantis e espaços de
convivência à sombra das árvores. Nas praças que foram criadas durante a gestão, em
quarteirões irregulares e de menor dimensão, a função é apenas de convívio, no coração dos
bairros periféricos e dos distritos distantes do perímetro urbano oficial, por vezes fornecendo
apenas o essencial para atingir este objetivo: a sombra por vezes de uma única árvore, bancos
em marmorite e um passeio. Em entrevista, o Sérgio Moreira conta (ALÉM DO, 2010):
“[Sandoval Cajú] dizia que fazia aquelas praças para que as crianças brincassem, batessem
bola, pra que o jovem tivesse uma árvore verde pra namorar embaixo...”. O objetivo das
praças era promover a convivência dos maceioenses, entendendo que a beleza da Cidade

6
“(...) encomenda para esta praça uma fonte sonoro-luminosa da Fontes Castro, pioneira na construção
de fontes luminosas, e convida o paisagista pernambucano Abelardo Rodrigues, reconhecido
nacionalmente por projetos durante a década de 1950, para a transformar o traçado anterior num novo
local de atrativo turístico da cidade de Maceió. Abelardo define como prioridade a harmonia visual do
conjunto acima da permanência do usuário, retirando, por exemplo, as árvores que forneciam sombra,
por entender que eram obstáculos à visão dos edifícios do entorno. A antiga configuração de 1936 –
com árvores em duas fileiras, bancos, caramanchões, canteiros recortados com arbustos em topiaria e
duas fontes baixas que destacavam, ao centro, a estátua do Marechal Floriano Peixoto – será
considerada excessiva. A nova praça terá traçado com abundância de espaço livre, com pavimentação
em pedra portuguesa e apenas 7 canteiros preenchidos por gramado, em formato circular ou orgânico,
em semelhança ao projeto de Burle Marx para os jardins do Ministério da Educação e Saúde – MES, no
Rio de Janeiro” (AZEVEDO, 2018, p. 142-143)

1141
Sorriso só seria completa com o movimento que anima os espaços públicos. Nas palavras do
próprio Sandoval Cajú:
“Vendo a cidade – não minha, mas dos meus, - ao deus-dará, e sua boa
gente entregue à própria sorte, julguei que tomar uma atitude em seu favor,
seria uma tarefa mais meritória que temerária; pois fazia-se mister
interromper a decadência da urbe, mesmo indo às últimas consequências,
desafiando gregos e troianos!... (...) julguei imperativo diligenciar no sentido
de transformar o triste panorama da cidade, num visual menos sombrio e
desumano, no menor espaço de tempo possível, usando meios quaisquer
para alcançar tais fins...” (CAJÚ, 1991, p. 146).

A localização escolhida para as novas praças também entra em conflito com o ideal: enquanto
as 22 praças modificadas estavam no perímetro de interesse turístico, foram construídas
outras 36 em bairros periféricos e distritos distantes, sendo 13 delas em ruas de acesso local,
para desfrute dos moradores. Os autores dos 36 projetos foram os desenhistas da
Superintendência Municipal de Obras e Viação, funcionários da prefeitura, Lauro Menezes e
José Passos Filho. Experientes no ofício e (re)conhecidos localmente, e, mas sem formação
profissional formal, visto que o primeiro curso de Arquitetura e Urbanismo de Alagoas seria
criado apenas em 1973, afastam-se, como autores, das regras da Cidade Sorriso. O traçado das
praças criadas, em sua maioria com espaços exíguos, ateve-se ao mínimo necessário para
promover um espaço de convivência, como é o caso da Praça Santa Tereza, no bairro
residencial Ponta Grossa (Figura 01), mas gerou exemplos de inspiração moderna nas praças
modificadas, como as praças do Centenário, Marechal Deodoro e Visconde de Sinimbú, praças
que se tornaram efetivamente cartões postais após as modificações da gestão Sandoval Cajú
(Figura 02).

Figura 01: Traçado da Praça Santa Tereza.

Fonte: Secretaria Municipal de Infraestrutura, 1983.

1142
Figura 02: Traçado das praças do Centenário, Marechal Deodoro e Visconde de Sinimbú,
respectivamente.

Fonte: Projeto QUAPÁ, 1997.

O mobiliário e equipamentos em marmorite são de inspiração moderna, marcados com o


característico “S” de “Cidade Sorriso”. Os elementos decorativos jarros luminosos, estátuas,
fontes, painéis e totens, também marcados com “S”, e encontrados com maior frequência nas
praças modificadas. Os materiais representavam o progresso, com destaque para o marmorite
e os cacos de azulejo coloridos, materiais representativos do momento modernista, usados no
interior e fachadas das residências maceioenses populares. A vegetação cumpre não uma
função higienista ou estética, mas uma ligada à permanência: fornece sombra ao convívio. Os
nomes das praças homenageiam alagoanos, mas não ilustres. São feitas referências à
localidade onde está localizada a praça, homenagens a personalidades públicas, sátiras de
autoria de Sandoval Cajú e homenagens a organizações ou instituições próximo à praça. O
tempo é ditado pela velocidade de realização das obras e a relativa simplicidade dos projetos
da Prefeitura, que permitem que sejam inauguradas 9 praças no ano de 1961, 27 praças no
ano de 1962, 7 praças em 1963 e 6 praças em 1964.

4 – Silenciamentos
A dissonância entre o ideal e a interpretação que orienta a obra da gestão Sandoval Cajú é
parcial. Para o Jornal de Alagoas, a Prefeitura estava tentando acertar no cumprimento de sua
promessa, mas errava em alguns pontos, por falta de correta orientação que a fizesse
corresponder mais corretamente ao ideal Cidade Sorriso. Foram louvados o seu dinamismo
para o trabalho, a velocidade com que executou obras esperadas pela cidade – com exceção

1143
dos “cartões postais” que deveriam ser alvo de maior cuidado, e os equipamentos modernos,
como a televisão, instalada em algumas praças. Os pontos que correspondem ao ideal não são
suficientes para legitimar a obra, e se torna impossível reconhecer como legítimo aquilo que
ameaça o discurso institucionalizado, mesmo que apenas em parte. A resposta nesse caso foi o
silenciamento.
O primeiro silenciamento da obra acontece em concomitância com sua produção, pelo Jornal
de Alagoas. O nome das praças, indicado como “ridículos”. O traçado característico dos
projetos, com elementos que se repetiam como que para marcar seu pertencimento a um
conjunto e época, foi classificado como “mau gosto”, e a repetição dos elementos,
banalização. A crítica é mais forte quanto às praças modificadas, centrais e de maior dimensão.
A expressão estética “comum” incluindo o mobiliário, seria característica de praças de interior,
aquém do esperado para praças da Cidade Sorriso:
São dignas de nota as características dêsse (sic) inédito plano “piloto” em
que as características constantes são: a repetição abusiva do “S” (que
ninguém pode até hoje explicar o que quer dizer ao certo); os bancos em
forma de répteis, banalizados em todas as praças; talvés (sic) expressando a
“socialização” dos colóquios ao ar livre; também a presença constante dos
jarros em mosaico, com aquelas flores de matéria plásticas de extremo mau
gosto, que mais lembram urnas funerárias, principalmente à noite (JORNAL
DE ALAGOAS, 07/07/1963)

Desta crítica surge a visão de maceioenses que consideram a obra da gestão Sandoval Cajú
como não merecedora de valorização ou preservação.
A segunda maneira de silenciamento acontece no âmbito político, com a cassação do mandato
logo após a eclosão do golpe militar em 1964, tendo encurtado para 3 anos o mandato que
estava previsto para 5 anos. Os crimes de que foi acusado jamais foram apurados, como conta
o ex-prefeito (CAJÚ, 1991, p. 162-163). O movimento político de rejeição do mandato político,
em conjunto com a crítica da mídia, adotada por parte da população como lente para
interpretar a obra, condena as praças realizadas pela gestão pouco a pouco ao silêncio.
Dos cerca de 5 mil "SS" que deixamos na Cidade e seus Distritos, os vândalos
eliminaram mais de 90%. E até que não foi muito: poderiam eles ter atingido
os 100%, livres de quaisquer problemas com a Lei, já que vivem e atuam num
país onde grassa a impunidade, - tanto no varejo como no atacado!... (CAJÚ,
1991, p. 335).

As expressões modernistas, por seus materiais pouco resistentes à ação do tempo, se


valorizadas, teriam de sofrer manutenção constante. Entre 1964 e 2017, no entanto, apenas 3
projetos fizeram investimentos de manutenção nestas praças de maior visibilidade - no sentido
de ao menos mantê-las em condições aceitáveis de uso. Na gestão Pedro Vieira (1992-1992),

1144
as praças foram cercadas e os jardins delimitados para protege-los da degradação e do “uso
indevido” (VIEIRA in BRANCO, 1993, anexo 7, s/p), com gradeamento, ajardinamento,
modificações no layout e áreas de lazer infantil. As grades foram aos poucos sendo retiradas e
não voltaram a ser colocadas nas gestões posteriores (FARIAS, 2012). No mandato do Prefeito
Cícero Almeida (2005-2009) foram também recuperadas as praças e foi feita uma homenagem,
batizando uma alça viária com o nome de Sandoval Cajú e inaugurando um monumento em
forma de “S”, em aço inox para marcar o local. No primeiro mandato do Prefeito Rui Palmeira
(2013-2016), o “Programa Boa Praça”, destinado a fornecer maior segurança na utilização dos
espaços, as necessidades das obras de revitalização são distribuídas de acordo com a
necessidade de cada local, com novos brinquedos, instalação de bancos, calçadas, jardineiras e
arborização (AQUI ACONTECE, 18/11/2013). As ações periódicas de recuperação, que não
tratam especificamente dos materiais e símbolos da gestão fazem parte de um ciclo que aos
poucos vai deixando que os vestígios sejam perdidos. O resultado é uma degradação gradual,
por abandono, que pode ser claramente observada comparando fotografias do Painel Jorge de
Lima (Figura 3), uma das expressões mais significativas do conjunto de praças produzidas nesta
gestão:

Figura 3: Fotografias do Painel Jorge de Lima

Fonte: SILVA, 1991; AZEVEDO, 2012.

Nos últimos 30 anos, o estudo de Silva (1991) dá início a uma segunda vertente de opiniões
direcionado à preservação dos remanescentes materiais desta obra como uma expressão
modernista alagoana, deixando de lado as motivações políticas que a fez surgir. Ferrare (2005)
e Ferrare (2013) trazem, na sequência, argumentos acadêmico em favor da recuperação dos
vestígios já degradados como bens de memória coletiva alagoana. Mesmo com tais estudos a
favor de ações públicas afirmativas de reconhecimento desta obra, ainda inexiste ação que
enfim retire as praças da gestão Sandoval Cajú ao silêncio a que estão condenadas.

1145
5 - O silêncio do espaço público
Sandoval Cajú, paraibano, ex-prefeito de Maceió, ao despertar nos maceioenses a promessa
do “Sorriso” desperta ao mesmo tempo uma série de regras que, ao serem descumpridas pelas
obras realizadas em seu mandato, relegam a obra herdada ao esquecimento. Com um conflito
que a circunda, pouco ao pouco ao longo dos anos, por ação do tempo, os materiais modernos
utilizados deterioram-se, deixando no espaço público a leitura de uma expressão modernista
rejeitada.

Referências

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Documentário. Disponível em: <http://audiovisualagoas.com.br/sandoval-caju-alem-do-conversador>.
Acesso em: 14 fev. 2017.
AQUI ACONTECE. Boa Praça: 1ª etapa será encerrada com 80 espaços revitalizados. Maceió, 18 nov.
2013. Disponível em: <http://ftp.voceacontece.com.br/noticia/2013/11/18/boa-praca-1-etapa-sera-
encerrada-com-80-espacos-revitalizados>. Acesso em: 06 dez 2016.

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JORNAL DE ALAGOAS. Estão limpando o canal da levada. Jornal de Alagoas, Maceió, 27 abr. 1960.
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SILVA, Maria Angélica da. Arquitetura Moderna: A Atitude Alagoana. Maceió: SERGASA, 1991.

1147
OS MÚLTIPLOS USUÁRIOS DO ESPAÇO URBANO E AS AUSÊNCIAS EM NARRATIVAS
PATRIMONIAIS DE PRÉDIOS HISTÓRICOS EM PORTO ALEGRE
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Nicolli Bueno Gautério


Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural;
Universidade Federal de Pelotas; nicollibg@gmail.com.

Renata Ovenhausen Albernaz


Doutora em Direito; Universidade Federal do Rio Grande do Sul; renata.ovenhausen@ufrgs.br.

Propõe-se aqui uma discussão sobre a percepção do Jornal Boca de Rua, mídia impressa
produzida pela População em Situação de Rua de Porto Alegre, acerca dos usos do patrimônio
na esfera urbana. Para isto, foi realizado um estudo de caso utilizando-se de uma revisão
bibliográfica através de autores dos eixos de memória social e patrimônio cultural, sobre uma
denúncia de um episódio de racismo na Casa de Cultura Mário Quintana, em Porto Alegre,
descrita na edição 55 do jornal do ano de 2015. Percebe-se que para uma democratização da
cultura além da disposição arquitetônica que apresenta uma proposta integrativa, visando
contemplar seu uso e discursos de forma democrática, as dimensões imateriais também
devem facilitar o acesso de usuários diversos.
Palavras-chave: População em Situação de rua; Memória e Patrimônio; território urbano.

This article we propose a discussion about the perception of the Boca de Rua newspaper,
printed media produced by the Population in Street Situation in Porto Alegre, about the uses of
heritage in the urban sphere. A case study was carried out using a bibliographic review by
authors from the fields of social memory and cultural heritage, about an episode of racism at
the Casa de Cultura Mário Quintana, in Porto Alegre, described in the edition 55 published in
2015. For a democratization of culture, in addition to the architectural layout that presents an
integrative proposal, to contemplate its use and speeches in a democratic way, the immaterial
dimensions should also facilitate access for different users.
Keywords: Population on the streets; Memory and Heritage; urban territory.

1148
1-Memória e sujeitos refletidos no Patrimônio Edificado Urbano
Ao analisar o Patrimônio Cultural expresso na cidade, é importante considerar que diversos
são os grupos sociais que convivem no fluxo deste espaço, com diferentes interesses e
experiências que variam conforme o contexto sociocultural de cada um e as demandas
singulares de cada indivíduo. Portanto, as memórias construídas neste meio são plurais.
Inclusive os indivíduos de um mesmo grupo podem compartilhar os mesmos marcos
memoriais, mas não as mesmas representações do passado. Desta forma, compreende-se que
a memória coletiva não é uma noção homogênea, mas um artifício para ancorar os estudos de
memórias compartilhadas, sendo similares entre diversos indivíduos que fazem parte do
mesmo grupo (CANDAU, 2019). Logo, os grupos sociais revelam-se fundamentais para os
processos de produção e resgate de memórias.
As memórias são construções do presente que variam conforme os laços sociais e as noções de
valores dos grupos também mudam, bem como os referenciais espaciais auxiliam para este
processo de construção e rememoração. Em decorrência disto, Halbwachs (1990) considera
em seus estudos - pioneiros no tema – a dificuldade vivenciada, por exemplo, nos casos em
que os sujeitos passam a viver em um local onde não estão adaptados e não verificam as
marcas e construções simbólicas de seus grupos, o que poderia ocasionar uma ruptura na sua
ideia de personalidade (HALBWACHS, 1990, p.134).
A relação mediadora que os objetos e o espaço operam nas relações sociais e
consequentemente na construção das memórias coletivas serão importantes para o presente
estudo, assim como os conceitos de cultura e democracia. Para Chaui (2008), a ideia de cultura
surge inicialmente relacionado ao cultivo, ou seja “ação que conduz à plena realização das
potencialidades de alguma coisa ou de alguém; era fazer brotar, frutificar, florescer e cobrir de
benefícios.” (CHAUI, 2008, p.55). Porém, a autora destaca que no ocidente a palavra ressurge
com uma conotação diferente, sendo sinônimo de civilização, sendo um critério para avaliar o
quão evoluído é um povo. Assim, cultura torna-se um sinônimo de progresso de forma a
hierarquizar o valor das sociedades:
As sociedades passaram a ser avaliadas segundo a presença ou a ausência
de alguns elementos que são próprios do ocidente capitalista e a ausência
desses elementos foi considerada sinal de falta de cultura ou de uma cultura
pouco evoluída. Que elementos são esses? O Estado, o mercado e a escrita.
Todas as sociedades que desenvolvessem formas de troca, comunicação e
poder diferentes do mercado, da escrita e do Estado europeu, foram
definidas como culturas “primitivas”. Em outras palavras, foi introduzido um
conceito de valor para distinguir as formas culturais. (CHAUI, 2008, p. 56)

1149
A definição de cultura passa por variações ao longo dos séculos, chegando a ser compreendida
como um campo de elaboração de símbolos e signos – por exemplo, as próprias noções de
valores, tempo, espaço, identidade, estética, vida e morte, entre outros. Porém, como em
sociedades ocidentais há uma valorização da individualidade - inversa à ideia de bem comum-
a ideia de coletividade muitas vezes passa a ser intangível. Desta forma o conceito de cultura
como algo abrangente e compartilhado, construído em uma coletividade também passa a ser
impedido. (CHAUI, 2008)
Para contemplar esta complexidade em seu debate, Chaui (2008) apresenta a noção de divisão
cultural que muitas vezes passa a ser ocultada na sociedade. Nessa perspectiva, a autora
aponta a problemática do valor, neste caso o valor de mercado. Estes valores passam a
funcionar de forma que quanto mais rara, mais cara e vista como importante é uma obra em
detrimento à outras. Os privilegiados que obtém acesso a estas, passam a fazer parte de uma
elite cultural, que promove o fortalecimento da ideia de cultura citada anteriormente
enquanto sinônimo de civilização e progresso em detrimento às outras camadas sociais. Ou
seja, cultura passa a ser sinônimo do caro e erudito, ligado ao estudo formal das áreas de
conhecimento de grande prestígio, enquanto o saber fazer de outras camadas sociais não é
legitimado da mesma forma.
Partindo desta discussão, considera-se neste estudo o Patrimônio Cultural Edificado das
cidades como uma dimensão da memória coletiva do espaço urbano, bem como um espaço
cultural plural, composto de diferentes manifestações dos diversos grupos sociais que fazem
parte do fluxo da cidade. O patrimônio cultural em sua materialidade e imaterialidade, passa a
ser um desses recursos para mediar as relações de memória e identidade no espaço onde está
inserido, seja em forma de representação destas identidades, ou representação dos diversos
conflitos presentes neste espaço.
Meneses (2006) dimensiona a própria cidade enquanto bem cultural, sendo ela explicada
entre três dimensões: a cidade, considerada enquanto artefato, por ser uma “coisa fabricada”.
O autor leva em conta que esta produção não apenas resulta das relações sociais
desenvolvidas neste espaço, mas também faz parte da produção destas. Isto perpassa a
segunda dimensão, apresentada como “campo de forças” devido às tensões e conflitos de
interesses próprios das relações urbanas. Por último, o autor cita a dimensão das
representações sociais, onde é produzida e reproduzida as relações de memória e identidade,
completando que:
Todavia, as representações, para deixarem de ser mero fator ou psíquico e
integrarem a vida social, precisam passar pelo mundo sensorial, do universo
físico: o patrimônio ambiental urbano tem matrizes na dimensão física da

1150
cidade, pois é por meio de elementos empíricos do ambiente urbano que os
significados são instituídos, criados, circulam, produzem efeitos, reciclam-se
e se descartam. (MENESES, 2006, p. 37)

Considerando os significados e o “poder simbólico” do patrimônio como o que baliza essas


relações de poder entre grupos e as relações dos diversos atores sociais com a produção de
memórias, pode-se dizer através dos pressupostos de Fonseca (2017) que são os processos de
atribuição de valor que possibilitam a compreensão do modo como são os patrimônios são
fabricados. Enquanto forma de comunicação social, a autora considera a heterogeneidade dos
bens que integram os patrimônios históricos, artísticos e nacionais. De acordo com ela, cada
um deles cumpre funções diferentes: econômicas e sociais, de acordo com o sistema ao qual
cada um integra, tornando-se assim um discurso de segundo grau.
Partindo desta perspectiva, torna-se indispensável o debate em relação ao acesso e modos de
uso do patrimônio cultural edificado. Os patrimônios culturais são partes inseparáveis das
relações sociais aos quais estão inseridos, quanto uma afirmação das questões morais e
simbólicas destas coletividades pois “ os objetos que compõem um patrimônio precisam
encontrar “ressonância” junto a seu público. “ (GONÇALVES, 2005, p. 19). Ou seja, a
ressonância que o autor destaca diz respeito a própria relação dos sujeitos com os usos do
patrimônio, quando compreendido como uma dimensão material e imaterial das relações dos
diversos grupos sociais que fazem parte do fluxo da cidade e como estes patrimônios estarão
permeando e sendo permeados pelas vivências destes sujeitos, através do seu poder simbólico
(FONSECA, 2017) e sua intensão de representar uma identidade nacional (GONÇALVES, 2005).

2- A População em Situação de Rua e as vivências do patrimônio cultural na esfera urbana


A população em situação de rua (PSR) é definida como um grupo heterogêneo, ou seja, estar
vivenciando esta modalidade de moradia (ou uma não-moradia) não basta para que os
diversos sujeitos que se encontram nesta situação façam parte do mesmo grupo social.
Ferreira (2007) considera também as seguintes características ao definir seu estudo sobre esta
população: “Pessoas de baixa renda, em idade adulta que, por contingência temporária ou
permanente, pernoita em logradouros públicos, tais como praças, calçadas, marquises, baixios
de viaduto, em galpões, lotes vagos, prédios abandonados e albergues públicos.” (FERREIRA,
2007, p. 4). No caso da População em Situação de Rua, as vivências entre público e privado
passam a estar difundidas, assim como a noção de entorno e os bens patrimoniais urbanos:
tais sujeitos fazem parte da paisagem, ao mesmo tempo que se colocam no entorno desta.

1151
Com a função de cartografar estas vivências e denunciar os diversos aspectos da vivência em
situação de rua no espaço urbano, constitui-se o Jornal Boca de Rua. Consiste em uma mídia
impressa produzida pela População em Situação de Rua de Porto Alegre, de forma
independente e apoiada pela ONG Agência Livre para Informação, Cidadania e Educação,
fundado em 2001.
Portanto, neste sentido, o Jornal também se coloca como um registro de relatos que até
então seriam transitórios, assim como o estar no mundo destes indivíduos, que passam a
permear diferentes cenários, ou sendo muitas vezes alvo de violências ou negligências em
relação ao acesso à saúde e outras necessidades básicas. Logo, tais registros evidencia também
as relações destes sujeitos com o espaço urbano, em sua dimensão material e social, se
identificando ou não com diferentes estruturas e relacionando-se com os patrimônios urbanos
(bens estáticos, materiais mas com seus significados, identificações e seus usos transitórios
dependendo do sujeito ao qual se relacionam) .

3-Estudo do caso
Em resposta à discussão e a fins de um estudo de caso, propõe-se aqui uma percepção do
Jornal Boca de Rua. O caso analisado consiste em um episódio relatado no Jornal Boca de Rua
na edição número 55, referente aos meses de Abril, maio e junho de 2015, intitulado como
“PRECONCEITO E RACISMO na Casa de Cultura Mário Quintana”. A análise será realizada
utilizando-se de uma revisão bibliográfica através de autores dos eixos de memória social e
patrimônio cultural, descritos anteriormente. Assim, propõe-se relacionar e destacar: como as
narrativas que os moradores-em-situação evocam são utilizadas para representar a sua
história de vida na cidade, e como estes passam a transformar a narrativa deste espaço
urbano.
A Casa de Cultura Mário Quintana, local que o fato descrito ocorre, é um bem tombado pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado do Rio Grande do Sul, registrado no
Livro Tombo Histórico no dia 03 de dezembro de 1982. Consiste em um antigo hotel,
idealizado pelo empresário Horácio de Carvalho, que “buscava fazer um empreendimento que
colaborasse para o momento em que a cidade estava vivendo, estava crescendo, se
desenvolvendo e carecia de embelezamento.” (ROSA, 2016, p. 3). Portanto, a edificação foi
construída através do projeto do arquiteto Theo Wiederspah, inaugurado em 1918.
Em 1987 houve um processo de revitalização da edificação, com a intenção de oferecer um
local voltado à cultura, de forma que todas as salas do prédio e os halls fossem integrados, o
“que foi chamado de ‘percurso cultural’, então o usuário entraria na Casa e acessaria pela

1152
escada nova e seguiria o seu percurso pelos mezaninos e intercalaria o seu trajeto através das
passarelas, circulando assim de um bloco para outro, sem ao menos perceber.” (ROSA, 2016,
p. 6). Portanto, em tese, trata-se de um espaço público voltado à cultura e com o objetivo de
integrar o valor histórico do patrimônio aos usos no espaço urbano.
Porém, no estudo de caso em tela, demonstra-se a necessidade de ampliar o debate sobre os
usos do patrimônio e sua democratização. No caso relatado pelo Jornal Boca de Rua, destaque
da edição 55 de 2015, que também conta com uma carta aberta das vítimas à equipe da Casa
de Cultura Mário Quintana em que alguns participantes do jornal relatam ter sido “enxotados”
do local:
Neste dia, dois participantes do jornal chegaram mais cedo ao local e
sentaram nos degraus e na calçada para esperar o início da reunião. Eles
foram enxotados primeiro por um segurança e depois por um faxineiro.
Durante o incidente, usaram expressões como “nêga fedorenta”,
ameaçaram derrubar um cadeirante e bater em um dos envolvidos, além de
jogarem sua mochila na rua (JORNAL BOCA DE RUA, 2015, p. 8)

Ainda na carta, a equipe reconhece a importância da Casa de Cultura, mostram-se gratos pela
oferta do local para subsidiar as reuniões do grupo. Na mesma edição, há uma reportagem
intitulada como “Mario sem teto”, onde é apresentada a história de vida do poeta Mario
Quintana na cidade de Porto Alegre, caracterizado como “andarilho”: “Conhecia Porto Alegre
com a palma da mão, e adorava fumar e tomar café pelos bares da cidade. Era um boêmio. E
não tinha casa.” (BOCA DE RUA JORNAL , 2015, p. 3) e descrevem que o poeta morava no hotel
ao qual foi revitalizado como a Casa de Cultura em seu nome.
Em resposta ao Jornal Boca de Rua, na mesma página, há uma nota emitida pela Casa de
Cultura Mário Quintana (CCMQ):
Após ser notificado do ocorrido com os integrantes do Jornal Boca de Rua, o
diretor da CCMQ, Émerson Martinez Fortes, realizou reunião com os
representantes do grupo, lamentando o fato e se desculpando em nome da
instituição. Além disso, solicitou ao grupo a organização de oficinas, em
parceria com a CCMQ, para treinamento dos seus funcionários, tanto
efetivos quanto os terceirizados, quanto à pluralidade que deve ser
respeitada, valorizando todos os públicos que frequentem o centro cultural,
não fazendo qualquer distinção a quem nele circula (JORNAL BOCA DE RUA,
2015, p.3)

Na mesma edição do Jornal, consta um relato de experiência da equipe sobre um passeio no


segundo andar do ônibus turístico ao ar livre pelo sistema de Cota Social da Secretaria
Municipal de Turismo de Porto alegre. Momento em que os principais pontos do centro
histórico da cidade são apresentados aos visitantes.

1153
4-Discussão e Considerações finais:
No caso descrito, percebe-se que para haver uma democratização da cultura – de acordo com
a definição apresentada anteriormente através dos estudos de Chaui (2008) – não bastaria
apenas a construção arquitetônica do Patrimônio com uma proposta integrativa. Além da
materialidade, a dimensão imaterial apresenta-se como um processo ativo, tornando tais bens
culturais (MENESES, 2006) em movimento conforme os diferentes sujeitos e discursos que
constituem seu uso ao longo do tempo.
A proposta da Casa de Cultura, embora seja de uma participação social no uso deste bem, ao
estar inserida em um contexto social como o brasileiro – onde há tanto o racismo estrutural,
quanto um cenário de extrema desigualdade social associado às categorias de gênero, raça e
classe – torna-se um desafio que ilustra a problemática dos usos e discursos do patrimônio.
Desta forma, fica também evidente o que Fonseca (2017) destacou como o “poder simbólico”
do patrimônio e como este passa a ser uma modalidade discursiva do meio ao qual está
inserido.
Em contraponto, a ideia proposta pela Casa de Cultura Mario Quintana em sua nota de
retratação, mostra-se como um potencial no que tange a educação patrimonial. O fato de a
própria equipe do jornal – composta por pessoas em situação de rua - ministrar oficinas sobre
os temas abordados na carta aberta emitida pelo Jornal, possibilita que os usuários possam
participar da gestão deste patrimônio em sua esfera imaterial – ação que já se inicia na
tentativa de utilizar o local e posteriormente a própria reinvindicação acerca do ocorrido.
Destaca-se que inclusive, há uma identificação destas pessoas enquanto ao poeta que é
homenageado ao ter seu nome utilizado como identificação do local, outro aspecto
importante para essa noção de pertencimento em relação ao bem.

Referências

CANDAU, Jöel. Memória e identidade. Traduzido por: Maria Leticia M. Ferreira. São Paulo: Contexto,
2019.

CARTA à Casa de Cultura. Jornal Boca de Rua, Porto Alegre, v. 55, p.8, abril-junho 2015.

CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia. In: Crítica y emancipación : Revista latinoamericana de Ciencias
Sociales. Anño 1, no. 1 (jun. 2008- ). Buenos Aires : CLACSO, 2008- . -- ISSN 1999-8104. Disponivel em:
<http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/CyE/cye3S2a.pdf>. Acesso em 17 Mar. 2021.

FERREIRA, F. P. M.; Crespo Sulamita . Vidas privadas em espaços públicos: Os moradores de rua em Belo
Horizonte. Serviço Social e Sociedade, v. 90, p. 1-20, 2007.

1154
FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em processo: trajetória da política federal de
preservação no Brasil. 4 ed. Ver. Ampl. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2017.

GONCALVES, José Reginaldo Santos. Ressonância, materialidade e subjetividade: as culturas como


patrimônios. Horiz. antropol., Porto Alegre , v. 11, n. 23, p. 15-36, June 2005 . disponível em
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
71832005000100002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 17 Mar. 2021.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Rio de Janeiro, Vertice, 1990.

MARIO sem teto. Jornal Boca de Rua, Porto Alegre, v. 55, p.7 abril-junho 2015.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A cidade como bem cultural - Áreas envoltórias e outros dilemas,
equívocos e alcance na preservação do patrimônio ambiental urbano. In: MORI, Victor Hugo; SOUZA,
Marize Campos de; BASTOS, Rossano; GALLO, Haroldo (Org.). Patrimônio: atualizando o debate. São
Paulo: IPHAN, 2006

TODO mundo trabalhando e a gente passeando. Jornal Boca de Rua, Porto Alegre, v. 55, p.2, abril-
junho 2015.

1155
PAISAGEM SILENCIADA: Memória, História e Paisagem na Leitura da Orla do
Educandos
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Calina Ramos de Brito Souto


Arquiteta e Urbanista e Mestranda pelo o Programa de Pós - Graduação Interdisciplinar em
Ciências Humanas- PPGICH/UEA; Universidade do Estado do Amazonas;
calinasouto@gmail.com.

Dra. Tatiana de Lima Pedrosa Santos


Doutora em História; Professora do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências
Humanas - UEA; tatixpedrosa@yahoo.com.br.

O artigo discorre sobre atitudes de silenciamento da paisagem cultural da cidade de


Manaus/AM, silêncio como esquecimento de parte da população mais pobre e dos espaços
urbanos que compõem a orla da cidade pelo poder público. Sobre um trecho da orla da cidade
que tem grande valor histórico, a orla do Educandos, pois foi um dos primeiros pontos de
ocupação das margens por palafitas. A paisagem desse trecho da orla da cidade é palco de
transformações ocasionados por fatores diferentes que vão tanto da sua morfologia enquanto
paisagem urbana quanto cultural, ambiental e social. Com isso, o artigo buscou tratar a orla do
Educandos como uma paisagem cultural silenciada.
Palavras-chave: Paisagem cultural; Manaus; Orla; Educandos; Memória.

The article discusses attitudes of silencing the cultural landscape of the city of Manaus / AM,
silence as forgetfulness of part of the poorest population and of the urban spaces that make up
the city's edge by the government. Over a stretch of the city's edge that has great historical
value, the edge of Educandos, as it was one of the first points of occupation of the banks by
stilts. The landscape of this stretch of the city's edge is the scene of transformations caused by
different factors, ranging from both its morphology as an urban landscape as well as cultural,
environmental and social. With this, the article sought to treat the edge of Educandos as a
silent cultural landscape.
Keywords: Landscape; Manaus; Edge; Educandos; Memory.

1156
1 - Paisagem enquanto Conceito
[...] Do rio o que vemos em toda a sua extensão são terrenos arenosos
lixiviados, matas, aldeias e cidades, e quando se vai aproximando da foz, já
cansado da longa jornada, vê-se a cidade [...]. Manaus não se permite o
lugar, mas os lugares vistos do rio, como a nos olhar, nos fixar e nos povoar
como paisagem da paisagem, do rio e da cidade, de fora e de dentro a se
descortinar em tabuleiros como fronteira da terra e água, ou em rias que
como artérias penetram para o interior do tecido urbano, serpenteando no
rumo do norte. Beleza quase não há mais, a paisagem é cinza. (OLIVEIRA,
2017, p.13)

A paisagem pode ser entendida, dentro do campo conceitual, como um termo diverso nos
seus significados e interpretações, cada área do conhecimento vai buscar representações que
podem ser físicas, simbólicas, culturais, morfológicas, urbanas, enfim, diversidade em um
único termo. Aqui vamos nos prender na paisagem como algo que não é estático, e sim
dinâmico, que faz parte do processo social, econômico, político que as modificam e estão em
constante transformação. Importante também é entender que a paisagem não pode ser
pensada isoladamente, em caixinhas de significados, pois estes se relacionam e se
complementam.
Para iniciar o debate acerca do conceito de paisagem e as questões que estão inerentes a ela,
é importante iniciar com a origem do conceito do qual, segundo o estudo da escritora filósofa
francesa Anne Cauquelin, que em seu livro, A Invenção da Paisagem, faz uma investigação
sobre a gênese do conceito, mesmo considerando difícil se tratar gênese como começo e
apontar o momento exato que esse conceito foi criado, ela aborda como a paisagem pode ser
considerado algo intrínseco ao sujeito. Anne Cauquelin diz que segundo autores confiáveis a
paisagem passa a ser entendida como termo e noção em 1415, onde teria tido início na
Holanda e ganharia força na Itália, a partir da elaboração das leis da perspectiva e passaria a
triunfar posteriormente passando a existir por ela mesma, deixando de ser um papel
decorativo e se torna elemento principal. Segundo a autora, a representação da paisagem nas
pinturas dos quadros e obras de artes despertou a vontade de olhar a paisagem natural com
mais interesse, pois o quadro representaria a realidade.
(BESSE, 2014) vai trazer a questão simbólica da paisagem sobre o que é vivido e sentido a
partir da experiência do sujeito ao se deparar a uma paisagem, assim como sua experiência
através de representações artísticas, cientificas ou espirituais do qual ela é objeto. (BESSE,
2014) aborda a paisagem como significado também relativa ao sujeito que a observa, sobre o
que se percebe, o que pensa e o que se diz a respeito dela. Em (LEONIDIO, 2009) o autor trás
as considerações de Denis Cosgrove do qual propõe que a paisagem seja ligada a formas

1157
visíveis de representações culturais, como uma construção simbólica, porém que é/está
vinculada pela realidade socioeconômico que está inserida.
Se me fosse pedido para definir o conceito de paisagem urbana, diria que
um edifício é arquitetura, mas dois seriam já paisagem urbana, porque a
relação entre os dois edifícios próximos é suficiente para libertar a arte da
paisagem urbana. As relações entre os edifícios, e o espaço entre eles, são
questões que imediatamente se afiguram importantes. Multiplique-se isto à
escala de uma cidade e obtém-se a arte do ambiente urbano; as
possibilidades de relacionação aumentam, juntamente com as hipóteses a
explorar, e os partidos a tomar. (CULLEN, 2018, p.135)

Já Gordon Cullen aborda o conceito de paisagem no âmbito do urbanismo, (CULLEN, 2018) diz
que dependendo da perspectiva visual do sujeito em relação a uma paisagem urbana, podem
ter assimilações diferentes de determinados espaços. Por exemplo, uma imagem de uma
composição de uma avenida em linha reta ou de um conjunto de prédios iguais, podem se
tornar monótonas ou não, dependendo da perspectiva visual do observador. Daí se pensar
paisagem como um conceito interdisciplinar, no qual é condicionado a questões que a fazem
produto da ação humano.

2 – A Orla do Educandos como lugar de memórias


Tendo os igarapés1 como elemento característico de Manaus por ser uma cidade em meio a
floresta amazônica, o igarapé do Educandos e sua orla se inserem como um trecho da cidade
que compõe parte importante da sua memória e história por diversos motivos, alguns
debatidos no decorrer desse artigo. Buscando abordar e entender como a Orla do Educandos é
um espaço de memória, é importante trazer as considerações de autores como Maurice
Halbwachs, que em seu livro Memória Coletiva aborda o fenômeno da memória como algo
construído de acordo com os fatos sociais e o contexto histórico do indivíduo. (HALBWACHS,
1990) categoriza memória coletiva como algo que não é individual, segundo ele, as memórias
saem da dimensão individual pois as lembranças de cada sujeito nunca são apenas suas, elas
fazem parte de uma memória de conjunto, de um grupo social.
As lembranças de um indivíduo que tenha vivenciado algo não podem considerar como sendo
individual, pois nunca estamos sós e essa lembrança pode fazer parte de uma memória
coletiva, em que cada sujeito teve percepções e lembranças diferentes de um lugar ou

1
Um igarapé é um curso d'água amazônico de primeira, segunda ou terceira ordem, constituído por um
braço longo de rio ou canal. Existem em grande número na Bacia amazônica. Caracterizam-se pela
pouca profundidade e por correrem quase no interior da mata. Apenas pequenas embarcações, como
canoas e pequenos barcos, podem navegar pelas águas de um igarapé devido a sua baixa profundidade
e por ser estreito.

1158
acontecimento, por exemplo. (HALBWACHS, 1990) também aborda sobre as diferenças entre o
que é memória coletiva e memória histórica, do qual ele fala que a memória histórica busca
reconstruir o passado através dos registros históricos, na busca por entender o presente. É
através dos registros históricos que podemos reconstruir fatos e acontecimentos que não
vivenciamos, porém nos foi possível ler ou ouvir a respeito, fatos reproduzidos através do
tempo. Já a memória coletiva é um processo de reconstrução do passado vivido por um grupo.
Aqui me atento a acrescentar que essas memórias podem ser negativas e positivas.
Entendendo que a orla do Educandos é uma paisagem urbana que em todo seu processo
histórico de transformação, foi palco de vários acontecimentos e lugares que marcaram de
alguma forma, seja na história da cidade, pelo patrimônio cultural, por suas relações sociais e
simbólicas, enfim, parte que é importante salvaguardar e levantar discursos a respeito.
O processo de ocupação e transformação da orla do Educandos não pode ser desvinculada a
história da cidade. Manaus é a capital Amazonense, localizada na confluência do rio Negro com
o Rio Solimões. Banhada pelas águas do Rio Negro através de quatro macro bacias
hidrográficas: a bacia do Educandos, do São Raimundo, do Tarumã e a bacia de Puraquequara.
A cidade passou por dois picos econômicos importantes, Período Áureo da Borracha no século
XIX e a implantação da Zona Franca em 1970, que aumentaram de maneira rápida a migração
de pessoas que vinham de outros estados e de ribeirinhos que buscavam por trabalho na
capital, porém, alguns não tinham condições de pagar por pedaços de terras em áreas
urbanizadas e/ou por buscar manter os costumes ribeirinhos de morar na beira do rio, foram
ocupando as orlas da cidade em palafitas. Para (JÚNIOR E NOGUEIRA, 2010) não foi somente a
questão financeira que levou as pessoas a ocuparem as margens dos igarapés, foi também o
fato simbólico que os que vinham de outra região traziam consigo.
Essas ocupações nos igarapés da cidade são historicamente, vistas pelos governantes como
uma “patologia” na paisagem, desconsiderando o contexto sócio econômico, culturais e
simbólicos que motivaram as pessoas a ocuparem as margens dos igarapés. As pessoas que
ocupam áreas irregulares devem ser entendidas como parte integrante no processo de
construção da cidade.
Considerar como uma aberração na paisagem da cidade, a ocupação de
áreas influenciadas pela natureza tem de ser vistas a partir da lógica da
construção da sócio- espacialidade numa sociedade desigual, onde se
apropriar da cidade pressupõe o direito à cidade. (VALLE E OLIVEIRA,1999,
p.213)

Dentro de todo esse contexto de urbanização de Manaus, o bairro do Educandos se insere


como espaço de importante valor histórico, pois foi um dos primeiros bairros a serem criados

1159
quando Manaus ainda era um pequeno núcleo urbano na ilha São Vicente. No período da
borracha, o bairro Constantinópolis, atual Educandos, foi uma das primeiras regiões que os
migrantes foram ocupando, motivados pela falta de planejamento urbano e crescimento
acelerado da cidade. A partir da construção do Educandos Artificies o bairro começou a se
desenvolver, sendo batizado de Constantinópolis em 1907, porém, os moradores preferiam
chamar de Educandos, em referência a escola. O Educandos Artificies, funcionava como
internato e tinha como um dos objetivos civilizar crianças índias e disponibilizar cursos
profissionalizantes.
No entanto, através os relatos feitos em 1865, por Elizabeth Agassiz, podemos ter uma visão
diferente da relação do instituto com os alunos e outros objetivos que eram implantados lá.
Elizabeth Agassiz acompanhava seu esposo, Luiz Agassiz que era zoólogo e natural da suíça
durante uma expedição do qual passou pelo Amazonas e por Manaus, ela trabalhou como
cronista durante a viagem e fez importantes relatos sobre Manaus século XIX. O Educandos
aparece em um dos momentos quando ela cita a visita do qual ela chama de “escola dos
índios”, que era o Instituto Educandos Artificies. Sobre o prédio ela se mostra encantada e
descreve o edifício afirmando que contem salas de aula, os dormitórios, os depósitos, a
cozinha. Ela demostra pontos positivos acerca do local, no entanto, lhe chama a atenção o fato
dos estudantes indígenas muitas vezes serem forçados a entrarem na escola, pois relata que a
escola não é apenas destinada a ensinar cursos profissionalizantes, mas também como
maneira de impor a civilidade aos índios.
Teríamos trazido daí a mais feliz das impressões, si não tivéssemos sabido
que, nesse orfanato, se retêm ás vezes, sob pretexto da instrução a
ministrar, pobres criaturinhas que ainda têm pai e mãe e que foram
subtraídas ás tribos selvagens. [...] é tão somente para arrancar a criança a
uma condição selvagem e degradada; pois a civilização, mesmo imposta pela
força, é preferível á barbaria. (AGASSIZ, 1938, p. 250)

Entende-se através de seus relatos a violência imposta para domesticar o índio e moldá-los a
uma civilização. Impondo o silenciamento dessas culturas pró de um discurso do “progresso” e
da modernidade, este que só atendia a uma pequena parcela abastada da população e
cobrava da maioria de baixa renda. Essas práticas civilizadoras também podem ser vistas com
o código de posturas criado na segunda metade do século XIX, onde restringia costumes
comuns da população para se construir a Manaus moderna e próspera. Na imagem a seguir,
localizado no alto da colina no canto superior esquerdo, o Edifício do Instituto Educando
Artifícies.

1160
Figura 01: Vista da Orla do Educandos

Fonte: Álbum do Amazonas 1901-1902

A seguir mais um registro do Educandos Artifícies, mas após se tornar grupo escolar Machado
de Assis, que segundo (DUARTE, 2009) foi criado pelo Decreto 1.472, de 11 de janeiro de 1924,
o então Grupo Escolar Machado de Assis funcionava antes em uma pequena instalação que
não tinha condições de higiene, no bairro de Constantinópolis, se mudando para o prédio do
antigo Educandos Artifícies em 1925. Além do instituto, o Bairro também recebeu dois
cinemas que funcionaram na década de 50, o Cine Teatro Rio Negro e o Cine
Constantinópolis/Rex e um terceiro cinema que funcionou por mais tempo, de 1954 a 1973,
Cine Vitória. Hoje todos estão arquitetonicamente modificados e são lojas comerciais.

Figura 02: Escola Machado de Assis

Fonte: Instituto Durango Duarte

O bairro do Educandos aparece em 1947, na página três do O Jornal, em coluna que foi escrita
por M. J. Antunes, em que se referia ao bairro Constantinópolis (atual Educandos) como sendo
um bairro populoso e proletariado. A coluna diz que um grupo de moradores do bairro

1161
estavam insatisfeitos com o aumento da tarifa da cobrança das passagens das pequenas
embarcações que fazia o transporte das pessoas do bairro para a cidade. Era um apelo ao Sr.
Capitão dos Portos. Antunes acrescenta que o bairro era formado por humildes trabalhadores,
que o aumento da taxa iria prejudicar os que trabalhavam em escritórios, oficinas e
estabelecimentos fabris situados na outra margem do rio, como também os estudantes que
terão que utilizar as embarcações. Vale aqui acrescentar que até hoje esse tipo de transporte é
usado pelos moradores do bairro do Educandos, que utilizam das pequenas embarcações
como meio de transporte.
A paisagem desse trecho da orla da cidade e suas transformações foram ocasionados por
fatores diferentes que vão tanto da sua morfologia enquanto paisagem urbana quanto
cultural, ambiental, política e social, pois existem marcas que os moradores das palafitas
passaram e ainda passam. Uma das modificações foram através de projeto urbanístico
realizados para a implantação do projeto da Manaus Moderna, aterrou grande parte do
Igarapé do Educandos para dar lugar a Avenida Lourenço da Silva Braga, construção que foi
finalizada no ano de 2004. E em 2003 foi criado o PROSAMIM2, que tem como objetivos a
recuperação dos leitos dos igarapés, mas ao invés disso, aterrou e canalizou importantes
igarapés da cidade e criou um estreitamento das margens, visando apenas uma “maquiagem”
do igarapé e não sua recuperação, tendo o próprio igarapé algo que está não apenas
relacionada ao fator ambiental, de preservação da natureza, como também o forte valor
cultural e simbólico que tem para a cidade. Porém, relação que hoje se questiona quando
olhamos para a orla do Educandos, será que esses moradores das palafitas ainda mantem essa
relação afetiva com as águas do Rio Negro? No livro Crônicas da minha cidade, José Aldemir de
Oliveira indaga essas questões e crítica sobre o “abandono” que se encontra as margens da
cidade, utilizando metáfora como forma de expressar as relações simbólicas entre rio, cidade e
pessoas.
[...] deveríamos nos indignar com a especulação imobiliária, com a busca do
lucro a qualquer custo e com a falta de ação política dos gestores e da
sociedade que foram destruindo a beira e colocando a cidade de costas para
o rio. O rio Negro na frente de Manaus já foi nossa sala de visitas, depois a
nossa cozinha, agora talvez seja a nossa privada [...]. (OLIVEIRA, 2017, p.14)

Uma das questões levantadas pela citação do José Aldemir é sobre o acúmulo de lixo e esgoto
que é trazido pelos igarapés da cidade e desaguam no Rio Negro, e um desses pontos de
acúmulo é nas margens do Educandos. A seguir mostramos um mapa ilustrativo

2
PROSAMIM – Programa Social e Ambiental dos Igarapés de Manaus.

1162
exemplificando os principais igarapés que formam a Bacia do Educandos. Parte do lixo e
esgoto da cidade é lançado nesses igarapés sem tratamento e desaguam no Rio Negro, como
também o lixo e esgoto das próprias palafitas.

Figura 03: Igarapés que compõem a Bacia do Educandos

Fonte: Google Earth editado pela autora

Em conversa3 com moradores mais antigos do bairro, contam saudosos como o Igarapé fez
parte de suas infâncias e lamentam como ele se encontra tão degradado e poluído
atualmente. Segundo o senhor Claudio (popularmente conhecido como Ginga), morador há
mais de 50 anos, e que na ocasião era presidente do Conselho Comunitário do Educandos, o
igarapé era atrativo de lazer por toda a população, ele conta que tanto em época de cheia
quanto na vazante do rio, eles usufruíam do igarapé como ponto de lazer e tomavam banhos
em suas águas até então limpas. O morador conta que no período de vazante, o igarapé era
ocupado pelas crianças que faziam campos de futebol nos bancos de areia que se formavam.
Claudio, em suas memórias, conta que existiam várias árvores dentro do igarapé e que na
cheia eram totalmente submersas pela a água.
Também, na ocasião, moradores comentam muito sobre os processos que levaram a
degradação desse trecho da orla da cidade que, segundo eles, algumas medidas políticas
ajudaram no assoreamento, degradação e aterragem do igarapé, como também a falta de
conscientização das pessoas que invadiram as margens, pois todo o esgoto e lixo das
habitações são direcionados ao igarapé. Já em conversa com o historiador do bairro, Claudio
Amazonas, ele fala sobre medidas dos governos passados que ajudaram no processo de
degradação e conta que parte da areia do igarapé foram retiradas na época da construção da

3
Entrevistas realizadas em 23/10/2017

1163
feira do Panair, em 1987, pois para a aterragem do terreno onde seria localizada a feira, foi
utilizado areia do igarapé que era retirada da Praia da Ponta Branca, um antigo balneário do
Educandos. Isso ajudou no assoreamento do igarapé. Ele conta que parte da Feira do Panair
veio a desabar por causa do uso da areia na aterragem do terreno, uma vez que areia não é
material adequado para aterrar.

Figura 04: Praia da Ponta Branca, década de 60.

Fonte: Instituto Durango Duarte

O amante e pesquisador das causas de preservação ambiental de Manaus, Erasmo Amazonas,


conta mais sobre o processo de assoreamento do igarapé, ele fala que muitos problemas
ambientais hoje enfrentados foram ocasionados pela falta de consciência e visão de futuro dos
prefeitos que vem administrando Manaus, pois estes viraram as costas para os problemas
ambientais da cidade. Segundo ele, o que motivou os migrantes a ocuparem as margens do
igarapé foi por usufruírem das águas para o consumo próprio, pela a falta de recursos
financeiros para pagar as taxas de ocupação e a comodidade da proximidade ao centro da
cidade.
Esse trecho da orla também sofre por grandes problemas de alagamentos que acontecem
quando o nível do Rio Negro sobe demais e acaba por deixar parte das palafitas submersas
pelas águas. É um problema constante e pouco se faz em beneficio desses moradores que
sofrem sempre que isso acontece. Reflete-se os desafios que é habitar as margens do rio em
Manaus.

1164
Figura 05: Orla do Educandos durante a cheia do Rio Negro de 1953

Fonte: Arquivo IBGE

Outra questão, dentre vários problemas que os habitantes da orla do Educandos sofreram e
ainda sofrem, são os incêndios que devastam áreas de palafitas. Há um registro em matéria
publicada em 1945, pelo jornal Gazzetilhas, que diz que na área estudada, 10 palafitas teriam
sido destruídas por um incêndio, no qual na ocasião um jovem havia ficado ferido ao retirar
uma criança das chamas, mas não houve vidas perdidas. O outro registro é sobre o último
incêndio que aconteceu em 2018, foi o segundo maior da história da cidade e devastou mais
de 600 palafitas que até hoje se encontram marcas dessa destruição, segundo informações da
defesa civil.

3 – A Orla do Educandos como Paisagem Cultural Silenciada


Porque se falar nesse trecho da orla da cidade como uma Paisagem Cultural que é silenciada?
De acordo com a chancela da Paisagem Cultural, que foi lançado em 2009 pelo IPHAN, que
define paisagem cultural, conforme a Portaria Iphan nº 127/2009 como Paisagem Cultural
Brasileira é uma parte específica do território nacional, representada por um processo de
interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas
ou atribuíram valores. A Paisagem Cultural é uma categoria que muito auxilia na preservação
do patrimônio cultural brasileiro, pois se encarrega de salvaguardar paisagens e as relações
dos sujeitos com o espaço natural. Para se ter uma paisagem cultural salvaguardada precisasse
atestar uma relação homem e natureza de forma harmoniosa e equilibrada.
Entendendo a Orla do Educandos nesse debate, de uma paisagem urbana que é produto da
construção social e cultural, pode se pensar na relação homem natureza perdida e silenciada
através do tempo e na história. Não podemos pensar paisagem como algo que é parado no
tempo, e sim como parte de um processo continuo de transformação. O que vale nos
questionar é sobre a forma com que essas transformações acontecem. Essa relação homem e

1165
natureza, que deixa de ser harmoniosa e passa a ser silenciada, silencio por esquecimento,
como apagamento tanto do sujeito e seu poder de ocupar o espaço urbano e ter seus direitos
como cidadão, apagamento de uma natureza importante em termos de preservação ambiental
e, por fim, apagamento de uma relação simbólica e cultural entre ambos. O espaço urbano
deve ser pensado e planejado para as pessoas com um olhar atento à multiplicidade cultural e
social que se encontra em uma cidade e, assim, poder ter sua memória ouvida e valorizada, o
que não se viu no processo de urbanização do Bairro do Educandos, que mesmo sendo um
bairro importante histórica e culturalmente, não é visto como lugar de memória pelo poder
público, tendo seus patrimônios culturais negados e apagados da história da cidade.

Referências

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na paisagem de Manaus. Dissertação de mestrado em sociedade e cultura da Amazônia. Manaus:
Universidade Federal do Amazonas, 2011.

AGASSIZ, L. AGASSIZ, E.C. Viagem ao Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1938

ALMEIDA, Larissa Christinne Melo de. Habitabilidade da cidade sobre as águas: Desafios da implantação
de infra-estrutura de saneamento nas palafitas do Igarapé do Quarenta – bairro Japiim – Manaus.
Dissertação de mestrado em Arquitetura e Urbanismo: Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
2005.

CULLEN, Gordon. Paisagem Urbana. Lisboa: Edições 70, 2018.

DUARTE, Durango Martins. Manaus, entre o passado e o presente. 1º ed. Manaus: Mídia Ponto Comm,
2009. 268p.

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jardins históricos no brasil - memória, inventário e salvaguarda. 2015. 436 f. Tese (Doutorado) - Curso de
História, Unicamp, Campinas, 2015.

OLIVEIRA, José Aldemir de. Crônicas da minha (c)idade. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2017

JÚNIOR, Waldemir Rodrigues Costa; NOGUEIRA, Amélia Regina Batista. De Eduardo para Eduardo: A
cidade sobre os igarapés. Revista Eletrônica Abaré. Manaus, Amazonas, 2010, P.192.

VALLE, Arthemisia de Souza; OLIVEIRA, José Aldemir de. A cidade de Manaus: análise da produção do
espaço urbano a partir dos igarapés. In: OLIVEIRA, José Aldemir de; ALECRIM, José Duarte; GASNIER,
Thierry Ray Jehlen (Org.). Cidade de Manaus: visões interdisciplinares. Manaus: Edua, 2003. Cap. 5. p.
151-180.

HALBWACHS, Maurice. Memória Coletiva. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.

1166
PAISAGENS SONORAS DE RESISTÊNCIA: o Rap na Bika e a ocupação da cidade
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Bruna Lúcia dos Santos1


Mestranda em Geografia no PPGEOG-UFSJ; brunaluciasantos@gmail.com

Liziane Peres Mangili1


Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela FAUUSP; professora do Departamento de
Arquitetura, Urbanismo e Artes Aplicadas da UFSJ; liziane.mangili@ufsj.edu.br

Maria Clara Oliveira Santos1


Doutora em Direito pela UFMG; professora do Departamento de Ciências Sociais da UFSJ;
mariaclara@ufsj.edu.br

Wilgner Henrique Thomaz1


Graduando em História na UFSJ; wilgner_henrique@yahoo.com.br

Relato testemunhal das desigualdades sociais e étnico-raciais brasileiras, o rap carrega em si


uma dimensão documental de expressão espaço-temporal que exorbita sua existência
enquanto projeto sonoro. Neste sentido, o presente trabalho objetiva refletir acerca do rap
enquanto expressão da resistência urbana formada a partir do movimento Rap na Bika em São
João del-Rei, que se propôs a conjugar diversos elementos de memória social e coletiva por
intermédio da narrativa musical. É sob este viés que as ações do movimento reforçam as
identidades periféricas e marginalizadas alçando-as a centralidades espaciais e também sociais
e promovendo, ao sustentar suas diversas memórias, a afirmação da identidade ancestral
inscrita na resistência coletiva.
Palavras-chave: Rap; paisagem sonora; narrativas de resistência.

A testimonial narration of Brazil´s social and ethnic-racial inequalities, rap carries within a
documentary dimension of space-time expression that exorbitates its existence as a sound
project. In this sense, the present work aims to reflect on rap as an expression of urban
resistance framed under the Rap na Bika movement in São João del-Rei. Through musical
narrative, Rap na Bika has combined several elements of social and collective memory. It is
under this sense that the movement's actions fortify peripheral and marginalized identities by
taking them into spatial and social centralities while promoting the affirmation of the ancestral
identity inscribed in the collective resistance by sustaining its diverse memories.
Keywords: Rap; soundscape; resistance tales.

1
Integrantes do Observatório Urbano de São João del-Rei, projeto de ações indissociáveis de ensino,
pesquisa e extensão da Universidade Federal de São João del-Rei.

1167
1 – “Olha meu povo nas favelas e vai perceber”
Com esta frase, o grupo brasileiro de rap Racionais MC’s evoca esse artigo a traçar o debate na
perspectiva das paisagens sonoras de resistência que denunciam mazelas sociais e recontam
histórias, lugares e memórias. Relato testemunhal das desigualdades sociais e étnico-raciais
brasileiras, o rap carrega em si uma dimensão documental de expressão espaço-temporal que
exorbita sua existência enquanto projeto musical. Nascido dos afrodescendentes norte-
americanos, ganhou sotaque nacional nas periferias da maior metrópole brasileira.
Tomado pelo direito de narrar as experiências periféricas, o rap “desce o morro” e ocupa
outros espaços nos centros das metrópoles brasileiras. Consubstanciado em voz de resistência
que passa a ecoar além das grandes capitais, interioriza-se no país e crian paisagens sonoras
que, impulsionadas por sujeitos outros, também posicionados à margem das capitais, assim
como às margens dos demais centros, promovem a transmutação das narrativas desses
espaços. É sob este prisma também que o rap se interioriza e alcança as cidades pequenas
como São João del Rei, em Minas Gerais.
O movimento Rap na Bika, nascido em São João del Rei, funde-se em uma implosão-explosão
cultural que pulsa nas periferias da cidade histórica mineira, de modo a irradiar nos espaços
públicos ideias e revoltas que não cabem nos limites urbanos, e confrontam exatamente o
espaço e a história que denunciam. Para tanto, utiliza-se de uma intensa narrativa musical que
conjuga diversos elementos de memória social e coletiva.

2- São João del Rei e a materialização de memórias


Como recorte espacial deste artigo, a cidade de São João del Rei está localizada no Campo das
Vertentes no estado de Minas Gerais e sua história remonta à sua origem às margens do Rio
das Mortes. Importante ponto de parada dos viajantes rumo às áreas mineradoras no século
XVIII, o “Porto Real de Passagem”, como era conhecido esse ponto de parada, teve seu
primeiro aglomerado liderado por Tomé Portes Del Rei. A partir de 1704, São João del Rei,
assim como outras cidades mineiras, passou a desenvolver atividade mineradora que logo
atraiu a constituição do Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar, elevado à Vila de São João del-
Rei em 1713. Durante longos anos, São João del-Rei afigurou como importante pólo na
Comarca do Rio das Mortes, com extensa ligação entre as capitanias do Rio de Janeiro, São
Paulo, Sabará e Vila Rica (SILVA, 2011, p. 17).
Seu processo de povoamento e urbanização segue mediado pela centralidade das atividades
desempenhadas por esta localidade e seus impactos na região. A proeminência da atividade
agropecuária induziu à instalação da Estrada de Ferro Oeste de Minas. Inaugurada em 1881,

1168
inicialmente como meio de ligação entre a elite e regiões do Império, posteriormente facilitou
a chegada de imigrantes no município e a ampliação das trocas comerciais. Com as facilidades
de escoamento de produção pela ferrovia, uma década depois, em 1891 a Companhia
Industrial Sãojoanense instala-se e passa a capitanear, ao longo da primeira metade do século
XX, os anos áureos da produção têxtil na cidade.
Ao longo do tempo, a constituição da urbe esbarrava nas complexidades da formação social
difusa, entre vilas operárias, concentração de terras aos imigrantes italianos e seus
descendentes e pequenos bairros periféricos distantes das águas do Córrego do Lenheiro, que
corta a cidade e se estabelece como principal acesso à água para atividades cotidianas. Não
em outro sentido, a paisagem urbana de São João del Rei constitui-se a partir da
materialização de relações sociais histórica e hierarquicamente construídas, sendo o centro
histórico tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) a mais
pujante representação não somente da expressão arquitetônica colonial como também das
hierarquias sociais vigentes no espaço urbano.
Sem a fixidez do tombamento, as demais áreas da cidade vêm enfrentando, nas últimas
décadas, grandes investidas imobiliárias, restando assim poucos lugares que preservam
edifícios antigos, como a Avenida Leite de Castro, onde a Companhia Têxtil Sãojoanense
mantém ainda nos dias atuais suas atividades em funcionamento. Atuando como outro limite
da cidade, o bairro Colônia do Marçal concentra as atividades dos imigrantes italianos,
plantação e colheita de gêneros alimentícios.

Figura 01 – Vista parcial da cidade de São João Del-Rei

Fonte: Acervo Observatório Urbano (Coleção Panoramas/MCS, 2021)

1169
Além do panorama nacional de avanço do capital imobiliário, São João del Rei passa
por uma reorganização de suas funções comerciais e vislumbra uma maior valorização dos
seus espaços por sediar a Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ) e o Centro
Universitário Presidente Tancredo de Almeida Neves (UNIPTAN). Juntas, as instituições
oferecem a principal oportunidade de ensino superior para toda a região do Campo das
Vertentes, criando uma dinâmica sazonal e diversificada de usos de cidade.
Este movimento de expansão urbana não é marca somente das grandes capitais
brasileiras; acontece também nas médias e pequenas cidades do interior, e reflete o panorama
padronizante da globalização. Assim, cidades consideradas históricas como São João del Rei
levantam questões em torno das contradições entre a manutenção do patrimônio e a
supressão dos outros espaços em face ao capital. O centro histórico tombado corporifica-se
em uma demanda perene de restauração à medida em que é transformado em área turística
que oferece arte, história e música sob a ótica exclusivista da “cultura erudita”. Esta dinâmica
converte-se em mercado de troca, de modo a suprir os anseios de arrecadação do Estado e do
empresariado, e fomentando uma imagem de cidade que possa ser vendida como cenário
cultural nacional. Não em outro sentido, sua agenda cultural anual conta com variadas
expressões tradicionais, como os festejos católicos e o Inverno Cultural da UFSJ. Como
elementos marcantes das paisagens urbana e sonora de São João del-Rei destacam-se ainda o
toque dos sinos das igrejas barrocas e a Maria Fumaça, que transpassa parte da cidade e segue
sentido Tiradentes pela estrada de ferro.

Figura 02 - Rua Getúlio Vargas, centro histórico de São João del-Rei

Fonte: Acervo Observatório Urbano (Coleção Centro histórico/BLS), 2021.

1170
A conjugação destes elementos conta aos moradores e aos visitantes da cidade mineira
histórias que fixam o imaginário social de um território que, apesar de seu passado
escravagista do século XVII até o século XIX, se impõe enquanto pólo microrregional de cultura
acessível a todos. Entretanto, o aspecto patrimonial no Brasil demonstra a hierarquização
histórica da sociedade e dos espaços quando diferencia a presença dos diversos sujeitos, suas
expressões culturais, artísticas e arquitetônicas. Mediada por esta seleção de testemunhos de
espaços e tempos distintos, o centro histórico, em suas vozes e seus silêncios, traduz-se em
informação tanto sobre o passado como sobre o presente.
Em outras palavras, nossas memórias são construídas a partir de compartilhamentos do grupo
ou sociedade do qual fazemos parte e que, também neste caso, são expressos na cidade. Em
concordância com a noção teórica de memória coletiva de Maurice Halbwachs, Paul Ricoeur
afirma que “temos acesso a acontecimentos reconstruídos para nós por outros que não nós”
(RICOEUR, 2007, p. 131). É deste modo que a cidade se engrandece simbolicamente, à medida
que conta histórias vangloriosas sobre seu passado colonial, enaltece a proeminência católica,
e romantiza sua própria construção, que baseada no trabalho compulsório, vê-lo apagado
enquanto se processa a invisibilidade das experiências de exclusão e de segregação
socioespacial que a constitui.
Não obstante, não somente o centro histórico recebe uma maquiagem para agradar seu
visitante e a elite social que tem o uso do espaço a ela autorizado. Nesta dinâmica de
produção da cidade, são maquiadas no plano perfeito da administração municipal também as
rasuras espaciais. Ao produzir e difundir a imagem da “cidade dos sinos”, orgulhosa de sua
herança artística e militar, o poder público - e com ele a cidade - relega às margens as vozes, os
sons, as danças e a cultura de periferia. Deste modo, os espaços periféricos são excluídos
também da visão sobre a paisagem da cidade, a ser formada somente nas vias principais, ao
tempo em que as manifestações artísticas dos grupos subalternos são negligenciadas,
insuladas e reiteradamente discriminadas.

3 - O mundo é diferente da ponte pra cá: o Rap na Bika como denúncia socioespacial
Com marcas originárias nas práticas dos Mestres de Cerimônia dos grandes eventos de Sound
System na Jamaica, o rap chegou às ruas de Nova York nos Estados Unidos pelos migrantes e
nos encontros da cidade cosmopolita converteu-se em movimento cultural Hip-Hop. Formado
pelo MC (Master of cerimonies), DJ (Disc Jockey), Grafite e o Breakdance, o movimento Hip-
Hop chegou à cena cultural no Brasil na década de 1980, onde o rap enquanto estilo musical
ocupou as periferias das metrópoles cumprindo o papel de denunciar as questões sociais

1171
através de letras que refletissem estruturas desiguais tradicionalmente negadas no Brasil,
como o racismo. Assim como se proliferou nas periferias brasileiras, o rap interiorizou-se às
cidades de pequeno e médio porte carregado com a perspectiva cotidiana das camadas
populares, fator que contribuiu para uma associação ao imaginário socialmente construído
acerca da marginalidade.
O rap alcança São João del Rei (Minas Gerais), como também outras cidades do interior, por
meio do aumento na veiculação musical dos rappers das grandes metrópoles que já figuravam
o cenário de denúncias e reivindicações, como Thaíde, Facção Central, GOG, Racionais MCs,
entre outros. Com esta chegada, a cidade vê a ascensão gradativa de expressões artísticas e
culturais que antes não compunham a paisagem sonora tradicionalmente erudita composta
por sinos, trens e orquestras. O rap, tratado como manifestação cultural marginal, é elemento
estranho aos aspectos urbanos, sonoros e paisagísticos da São João del Rei que preserva a
rigidez da patrimonialização arquitetônica e cultural. Nesse panorama, reflete-se o
estranhamento dos corpos, seus lugares, suas histórias e experiências enquanto projeto
político de negação à diferença através da seleção das narrativas e memórias a serem
materializadas e contempladas na cidade.
Em contrapartida à diferenciação e hierarquização dos lugares, o Rap na Bika surge em São
João del Rei como um evento, que evolui a movimento, para agregar todas as formas de
expressões artísticas que se viam limitadas pela ausência e escassez de investimento municipal
em políticas culturais direcionadas à juventude periférica. Somando 22 edições até o
momento, o Rap na Bika tornou possível a realização de diversas atividades, como
apresentações artísticas de Dj’s, cantoras(es), poetisas e poetas, músicos, expositores, além de
contação de histórias, cinema (cinebika) e batalhas de rima.
Para que esses encontros acontecessem, os organizadores optaram por ocupar a Praça da
Biquinha, como é popularmente conhecida a Praça Dr. Fausto Mourão. Este espaço constitui-
se em um dos poucos, na cidade, a apresentar infra-estrutura de recreação, como quadra
poliesportiva e playground. Além de carregar a significância de estar próxima ao limite da
poligonal do centro histórico tombado pelo IPHAN, a Praça da Biquinha remonta a um possível
espaço de sociabilidade negra no século XVIII, quando um chafariz nela instalado servia como
entreposto de encontros, conversas e trocas, enquanto negros escravizados ali realizavam a
tarefa de coletar água neste importante equipamento de infra-estrutura urbana das cidades
coloniais.
Além de reunir diferentes vivências em um espaço aberto que deixa soar os ruídos desse
encontro, o Rap na Bika concentra rappers que estão espalhados por distintos bairros da

1172
cidade, marcando posições à medida que vivem seus cotidianos. Embora algumas metrópoles
brasileiras já conhecessem a experiência de ocupação de múltiplos espaços por esse estilo
musical2, em São João del Rei o Rap na Bika representa, nos últimos quatro anos, a via
potencial na qual artistas da cidade e região puderam mostrar suas habilidades de construção
lírica e improvisação. Para além, com o aumento gradativo do alcance e do público, os
participantes fazem ecoar a presença desse estilo musical também em outras cidades do
entorno e, ao retornarem a seus bairros de origem, criam um prolongamento deste
movimento hip-hop nas áreas marginalizadas da cidade, em um duplo vetor que se irradia e se
converge ao centro.
Entretanto, a Administração Municipal manteve-se em disputa por este território, elencando
inúmeros entraves para a realização dos eventos. Tendo em vista as dificuldades para sua
manutenção na Praça da Biquinha, o Rap na Bika alterou suas rotas de atuação. Uma vez que
reuniu diferentes atividades artísticas no centro histórico, ressignificando o uso, fluxos e sons
desse espaço e proporcionando outras funcionalidades à Praça, o evento retornou aos bairros
periféricos da cidade de maneira a reforçar a construção política da comunidade bem como a
afirmar a existência desses corpos, identidades e sonoridades, em momentos de ruptura com
o cotidiano que são marcados, agora, pela ocupação das ruas e dos centros comunitários pelo
rap.
Mesmo sem realizar eventos desde 2019, o Rap na Bika potencializou o uso dos espaços
públicos pela juventude de São João del Rei, enaltecendo as diversas possibilidades de
ocupação destas áreas para viabilizar batalhas de rimas e apresentações de músicas autorais.
Em suma, a ideia de conjugar elementos da memória coletiva por intermédio da narrativa
musical fez-se possível através do testemunho narrativo do rap que fundiu diferentes
experiências espaço-temporais através de corpos que, pela voz e pelo som, eliminam o
aspecto mudo da experiência.
Assim, o testemunho narrativo do rap funde-se às diferentes experiências espaço-temporais
através de corpos que ressignificam os sons da experiência urbana. O espaço expresso a partir
do movimento Rap na Bika passa a constituir-se em paisagem-acervo de memórias coletivas
experienciadas em nível distinto do cotidiano e da convencionalidade, ao receber jovens de
distintos bairros da cidade para atividades que são propostas junto à comunidade do entorno
e com enfoque também no cuidado das crianças.

2
São representativas a Batalha do Tanque na Praça dos Ex-combatentes em São Gonçalo e a Batalha da
estação de Santa Cruz em São Paulo.

1173
Sob este viés, as ações do movimento reforçam as identidades periféricas e marginalizadas
alçando-as a centralidades espaciais e também sociais e promovendo, ao sustentar suas
diversas memórias, a afirmação da identidade ancestral inscrita na resistência coletiva
proposta em modais sonoros, lúdicos e urbanos.

Figuras 03 e 04: Atividades do Rap na Bika.

Fonte: Facebook oficial do Rap na Bika, [2018], 2021.

4 - Da disputa das rimas à disputa das memórias


A memória (HALBWACHS,2006) coletiviza-se por exigir que lembranças e recordações
coexistam apenas se vinculadas a um grupo social. Nesse sentido, é também a memória um
lugar de disputa de narrativas que visam à definição acerca da preservação e do esquecimento
de um passado. É pelo seu passado escravagista que São João del-Rei reforça uma identidade
cultural marcada pela branquitude. Ao desprezar a forte presença de negros na região, a
cidade promove uma obliteração que segue o esteio daquele silenciamento típico do
nascimento da nação que “se constituiu por meio da democracia racial, que apagou diferenças
étnicas e culturais importantes.” (SANTOS, 2007, p.4). É pela percepção de que há ainda uma
história própria a contar que os grupos sociais devem construir, reivindicar e ressignificar suas
narrativas, de modo a vencer as barreiras de silenciamento.
Não em outro sentido, a memória é mais uma reconstrução a partir dos problemas e questões
do presente de elementos dispersos do passado vivido, e é menos uma imagem preservada e
intacta do passado. Pela reconstituição e reavivamento de suas memórias, grupos enrevesam
traumas e construções simbólicas excludentes. É sob esta perspectiva que o RAP, e sua forma
de expressão que conjuga arte e política, atua como um agente constituinte de memórias
coletivas experienciadas em espaços-tempos distintos, e torna-se, assim, testemunho.
Segundo Sarlo (2007), uma vez que a narração posiciona a experiência em uma temporalidade

1174
que não é a sua e sim aquela da lembrança, a cada vez repetidas essas lembranças, elas
ganharão novos sentidos

Figuras 05 e 06: Atividades do Rap na Bika.

Fonte: Facebook oficial do Rap na Bika, [2018], 2021.

Originado em um grupo de jovens da periferia da cidade, ao direcionar-se para a ocupação de


espaços públicos centrais, o movimento promove uma experiência de temporalidade que
ultrapassa o imediatismo e serve como motor de diversos novos sentidos que se extrapolam a
partir de lembranças ancestrais narradas, cânticos de resistência e de denúncia, e que se
misturam e se imiscuem aos sons e ruídos da urbe, pela adesão da comunidade às diversas
atividades em paralelo que são propostas e realizadas ao longo de cada dia de ocupação.
Ao organizar o encontro de diversas vozes, o Rap na Bika agrupa as resistências frente ao
projeto desigual no qual o Brasil se estruturou. Enquanto música que se faz principalmente
pela voz, o rap é linguagem, mediadora importante na construção social e coletiva dos sujeitos
(HINKEL; MAHEIRIE, 2007) e que exorbita o lirismo em uma explosão de sentidos, simbólicos,
sonoros, vocais, temporais e espaciais.

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1175
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de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói.

1176
PATRIMONIOLOGIA: identidade como tática de existência no território
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Helena Tuler Creston


Doutora em Arquitetura e Urbanismo; UFBA; helenatuler@hotmail.com.

O artigo propõe um olhar sobre o patrimônio cultural por meio do modo de pensar rizomático,
tensionando o conceito identidade. Partimos de três eventos disparadores: o tombamento do
Terreiro Casa Branca, em Salvador/BA, ocorrido nos anos 1980; a desapropriação territorial a
favor do Quilombo da Caçandoca, em Ubatuba/SP, em 2006; e o anúncio de resistência até a
morte, feito pelos Guarani-Kaiowá, em 2012, contra o despejo que se pretendia executar em
seus territórios no Mato Grosso do Sul. Assim, tratamos de territorialidades negras e
indígenas, destacando o valor político da identidade: identidades assumidas na luta por
territórios. Nesse sentido, problematizamos a controversa noção de identidade, pelo
pensamento da multiplicidade, entretanto, validamos a identidade como tática de resistência
na macropolítica.
Palavras-chave: patrimônio cultural; pensamento rizomático; identidade; território;
resistência.

This article intent to show a view into the cultural heritage, from a rhizomatic perspective,
pushing the concept of identity. We started from three trigger events: the preservation of
“Terreiro Casa Branca”, in Salvador/BA, in the 1980s; the territorial expropriation in favor of
the “Quilombo da Caçandoca”, in Ubatuba/SP, in 2006; and the resistance announcement
made by the Guarani-Kaiowá, in 2012, against the intention to expel them out from their lands
in the state of Mato Grosso do Sul. Therefore, this research is about black and indigenous
territorialities, highlighting the political value of identity: identity formed by their struggle for
territories. In this sense, when problematizing the controversial notion of identity from the
rhizomatic thinking, though it validates the identity as tactic of resistance.
Keywords: cultural heritage; rhizomatic thinking; identity; territory; resistance.

1177
1 - Patrimoniologia, uma outra lógica
O trabalho aqui exposto propõe um olhar sobre o patrimônio cultural por meio do modo de
pensar rizomático, tensionando o conceito identidade nesse campo e no que se relaciona a
disputas territoriais no Brasil. O termo “patrimoniologia”, portanto, se refere a essa outra
lógica (logia) de pensar o patrimônio cultural, pela aplicação dos princípios do rizoma,
elaborados por Deleuze e Guattari. Este artigo constitui um recorte da tese de doutorado na
qual este estudo foi realizado.
O pensamento rizomático emergiu na segunda metade do século XX, a partir de e
concomitante a outros movimentos macro e micropolíticos revolucionários. Foram Deleuze e
Guattari (2011) que definiram esse plano outro de imanência, a partir da observação empírica
de como acontecem na natureza as raízes do tipo rizoma: raízes superficiais, que crescem
paralelas ao solo, espalhando-se a partir de nós, tais como, por exemplo, os tubérculos,
gengibre, samambaias, bambus, gramas, orquídeas. Não conseguimos identificar onde
começam ou onde vão acabar; encontram-se sempre no meio, no entre, no intermezzo das
coisas.
Assim, o rizoma, na filosofia, é um pensamento que reconhece o limite e o alcance do
pensamento herdado da Modernidade: a dialética e sua lógica binária. Lógica ainda
hegemônica no mundo globalizado e que volta seus olhares para a chamada Macropolítica: o
universo molar (macro) do “real e do possível”, do corpo/cérebro objetivável, do “Fora”. O
pensamento rizomático, por sua vez, evidencia o universo molecular do “virtual e atual”: a
Micropolítica, que se situa no corpo/cérebro inobjetável do “Fora” que se dobra no “Dentro”.
É na micropolítica que os processos são traduzidos na construção de subjetividades.
Enquanto a macropolítica adota conceitos como ordem, continuidade, identidade, organismo,
entre outros, a micropolítica orienta seu pensar pela multiplicidade e heterogeneidade, com
uma série de conceitos próprios. Nesse sentido, o conceito identidade, amplamente utilizado
no campo do patrimônio cultural, vai aparecer como apenas um reconhecimento no
pensamento rizomático. Reconhecimento, por um lado, utilizado pelo Aparelho de Estado para
exercer seu controle sobre a sociedade, controle que se consolida, muitas vezes, no território.
Conceito também acionado pelo Capital em seus discursos de venda cultural (de
manifestações artísticas, bairros e até cidades inteiras). Por outro lado, a identidade, ainda que
entendida como reconhecimento, é a forma pela qual um grupo se afirma pública e
politicamente. Ou seja, as identidades também podem (e são) operacionalizadas por
movimentos de resistência, como veremos adiante.

1178
2 - Acontecimentos disparadores: as territorialidades negras e indígenas
Partimos de três eventos disparadores para adentrar no debate identitário em nossa tese: o
tombamento do Terreiro Casa Branca, em Salvador/BA, ocorrido nos anos 1980; a
desapropriação territorial a favor do Quilombo da Caçandoca, em Ubatuba/SP, em 2006; e o
anúncio de resistência até a morte, feito pelos Guarani-Kaiowá, em 2012, contra o despejo que
se pretendia executar em seus territórios no Mato Grosso do Sul. Como vínculo entre esses
acontecimentos, está, exatamente, a relação identidade-território, explícita na Constituição
brasileira de 1988, que discorre sobre os “grupos formadores da Nação” e seus direitos
territoriais inerentes a esta condição.
Assim, tratamos de territorialidades negras e indígenas, destacando o valor político da
identidade: identidades assumidas na luta por territórios. Por territorialidade, nos interessa,
especialmente, o sentido relacional do território a partir do entendimento de Ribeiro (2012),
correspondente ao de Haesbaert (2007): territorialidade “não significa simplesmente
enraizamento, estabilidade, limite e/ou fronteira. Justamente por ser relacional, o território
inclui também o movimento, a fluidez, as conexões” (HAESBAERT, 2007, p. 56). Nesse sentido,
o território é feito por fragmentos de todo tipo, que acabam ganhando um valor de
“propriedade”, a partir de agenciamentos ligados ao Aparelho de Estado.
Na aplicação das políticas de identidade no direito ao território, por exemplo, acaba
predominando uma visão materialista. O território é pensando somente como espaço físico,
com a delimitação de limites que, por vezes, não correspondem aos modos de vida ali
presentes. Não obstante, essa prática corresponde à ideia de Estado-Nação: exatamente uma
configuração territorial amparada no espaço bem demarcado por fronteiras. Essa noção vai ser
então a mais aplicada na prática, deslegitimando outras formas de territorialidade.
Segundo Emília Godoi (2014), o fato de a territorialidade ser tratada pelo olhar materialista,
como uma questão quase que exclusivamente fundiária, explica a dificuldade do Estado em
reconhecer territorialidades regidas por outras lógicas que não a da propriedade individual –
lógicas observadas nas coletividades quilombolas e indígenas, por exemplo, que configuram
nossos estudos de caso.
Optamos por apresentar dois estudos relacionados à territorialidade negra para abranger a
diferença nos processos. No primeiro caso, trata-se de um objeto reconhecido via patrimônio
cultural institucionalizado e, no segundo, ganha maior destaque a questão fundiária, embora
em ambos destaquemos a importância simbólica do espaço para a manutenção e a
reprodução da vida em suas diversas nuances. Essa dimensão também aparece na
territorialidade indígena, ligada a séculos de luta pela sobrevivência.

1179
Quanto ao primeiro estudo disparador, o Terreiro Casa Branca, em Salvador/BA, defendemos
seu tombamento como um acontecimento, uma criação simbólica sem precedente, um afeto,
enquanto agenciamento coletivo. Foi o primeiro tombamento de terreiro no Brasil, em
períodos de redemocratização do país e, em certas medidas, de “(re) identificação” da Nação.
Falamos em criação quanto a esse primeiro tombamento de terreiro, então, pela
desconstrução de determinadas ideias e grandes mudanças de paradigma no campo do
patrimônio cultural. Destacamos, nessa perspectiva: 1. O uso do instrumento do tombamento
como dispositivo de políticas urbanas, na contenção da especulação imobiliária, portanto,
contra processos hegemônicos guiados pelo capital; 2. A necessidade do protagonismo social
no lidar com o patrimônio cultural, que não deve se limitar a decisões de ordem técnica; 3. A
desconstrução do princípio de proteção relacionado ao imutável, considerando que todo e
qualquer bem, como parte das dinâmicas urbanas e sociais, passa por transformações.

Figura 01: Visão geral do Terreiro da Casa Branca, a partir da Av. Vasco da Gama, em Salvador/BA.

Fonte: IPHAN (2015, p. 89).

A Comunidade Quilombola da Caçandoca, em Ubatuba/SP, também representa um marco


emancipatório como primeiro quilombo no país a conseguir um decreto de desapropriação do
Governo Federal por interesse social, em 2006. Uma luta claramente territorial, na qual
ressaltamos a força da identidade nessa conquista, a partir do autorreconhecimento do
coletivo como quilombolas, para o direito ao território via Constituição. Nesse segundo estudo,

1180
a relação identidade-território se amplia para além do patrimônio institucionalizado pelos
órgãos de patrimônio cultural.

Figura 02: Quilombo da Caçandoca, Ubatuba/SP.

Fonte: Acervo próprio (2018).

Por fim, em nosso terceiro estudo disparador, a luta Guarani-Kaiowá, percebemos que a
rostidade assumida se expande também para a virtualidade, chegando a um coletivo
“solidário” que assume, mesmo que de forma simbólica e efêmera, determinada “identidade”.
Com sua repercussão na mídia, através da carta pública que anunciava a resistência Guarani-
Kaiowá “até a morte”, a voz indígena ganhou mais força e pressionou o Governo, que
suspendeu a liminar de despejo de seus territórios em Pyelito Kue/Mbarakay-Iguatemi, no
Mato Grosso do Sul. Um exemplo que não finaliza a luta indígena, mas gera afetos em outros
grupos de batalhas cotidianas pela existência.
Diante desses estudos disparadores, acreditamos que as identidades são assumidas na
macropolítica como táticas de resistência. Resistência, por vezes, no território – territórios que
se dão no nível político, social, cultural, não só físico; que são tratados ou não pelos órgãos de
patrimônio cultural, mas que se conectam por fluxos relacionais.

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Figura 03: Um ano após a carta dos Guarani Kaiowá, a situação de descaso permanece.

Fonte: SPOSATI (2013).

3 - A identidade como tática


Ao longo de nossa pesquisa, percebemos que não há uma relação intrínseca entre patrimônio
cultural e identidade, mas sim o uso discursivo desse conceito. Percebemos também que,
enquanto controle, a noção de identidade esteve ligada à construção do patrimônio cultural
nacional no projeto simultâneo de construção da Nação. Mesmo com as aberturas
conquistadas no Brasil por meio da Constituição de 1988, prevalece a totalização desse
patrimônio cultural como parte de um Estado-Nação. Ou seja, nossa Carta Magna não escapa à
lógica arborescente do pensamento ocidental e da defesa de uma mistura que leva à ideia de
fusão, ao invés de coexistências, multiplicidades e conexões, que são princípios do
pensamento rizomático.
Por conseguinte, consideramos relevante pensar o patrimônio cultural pela lógica do rizoma,
porque, a partir do momento em que o entendimento da identidade é expandido, permite-se
uma multiplicidade de devires, possíveis nos processos micropolíticos contínuos de
subjetivação. Todavia, ressaltamos, como visto, o uso político do conceito identidade
enquanto tática de resistência no território. Esse olhar nos foi fundamental devido aos
momentos pelos quais estamos vivendo na atualidade brasileira de grande descaso com a vida,
de capturas e de restrição de direitos.
O termo “tática” foi usado por Certeau (1998) para indicar operações cotidianas de
apropriação daquilo que é imposto por uma ordem econômica dominante – “maneiras de

1182
utilizar a ordem imposta pelo lugar”. Segundo ele, tais operações cotidianas seriam
resistências ao desenvolvimento da produção sociocultural e também espacial. Empregamos
esse termo com semelhante entendimento: a apropriação de instrumentos do sistema como
resistência a ele próprio. Todavia, em nossa pesquisa, exemplificamos táticas em
acontecimentos disparadores, embora entendamos que, também em nossos casos, a luta
permanece dia após dia.
São as “re-existências”: lutas para existir, lutas em prol da vida. Nesse sentido, trabalhamos
com as identidades não por que significam ou definem, mas por que “servem a”. Além disso,
observamos que rostos ou identidades adotados não são somente externalidades; eles
produzem/ criam/(re)criam subjetivações. Intuímos, então, efeitos concretos que se assumir
em um rosto, que assumir uma identidade na macropolítica, tem no modo como as
coletividades também se percebem e mantêm suas relações. Os Guarani Kaiowá, por exemplo,
retomaram as práticas das grandes assembleias (Aty Guasu), após a Constituição de 1988, para
a discussão de estratégias de recuperação de seus antigos territórios. Essa adesão política ao
modo de luta via identidade também foi observada por nós no Quilombo Caçandoca. A partir
do momento em que se assumiram como coletividade na Associação quilombola, organizaram-
se nesse novo agente institucional coletivo para a conquista de seus direitos territoriais, com a
realização de uma série de reuniões, eventos e festividades.
Nessa perspectiva, Mignolo (2008), pensador decolonial, destaca a fala de Fausto Reinaga,
aymara intelectual e ativista, que afirmou nos anos 1960: “Danem-se, eu não sou um índio,
sou um aymara. Mas você me fez um índio e como índio lutarei pela libertação” (REYNAGA
apud MIGNOLO, 2008, p. 290). Como Rolnik (2018), quando trata dos ativismos
contemporâneos, concluímos que, por vezes, “conservar a vida depende de negociar com as
formas vigentes na superfície do mundo, de modo a encontrar os pontos onde o desejo poderá
perfurá-la...” (ROLNIK, 2018, p. 64). No caso dos indígenas, afirma Krenak (2019), “o enunciado
de uma identidade significa reivindicar o Brasil de volta” (KRENAK et al., 2019, p. 25).
Assim, mantemos na tese as duas frentes como potentes na macro e na micropolítica,
lembrando que não se anulam, são apenas de diferentes naturezas. Reiteramos o pensamento
rizomático da diferença e da multiplicidade, embora tenhamos reforçado, simultaneamente, o
contra saber/poder de resistência no processo histórico de domínio no Brasil, exaltando as
táticas resistentes nos territórios. Nesse sentido, problematizamos a controversa noção de
identidade, pelo pensamento da multiplicidade (o pensamento rizomático), entretanto,
validamos a identidade como tática de resistência (ou existência) na macropolítica – “vozes e
manifestações vivas que persistem”.

1183
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SILÊNCIO E ESQUECIMENTO: a toponímia como possibilidade de pesquisa na
paisagem no caso do Parque do Ibirapuera, em São Paulo
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Gabriel Aires Peixoto de Lima


Graduando em Arquitetura e Urbanismo; Universidade Federal de Goiás;
gabriel.aires@hotmail.com

O artigo proposto seguirá a toponímia e a identificação de traços remanescentes do sítio


original na condição atual do Parque do Ibirapuera e em seu entorno como possibilidade de
pesquisa a respeito dos apagamentos e das permanências da paisagem. Busca-se, dessa forma,
o reconhecimento e a valorização de vestígios de elementos naturais que, embora alterados,
persistem na atualidade e dos povos que os nomearam, enunciados na língua e materializados
em espaços urbanos residuais. Compreendendo as relações estabelecidas entre toponímia,
memória e paisagem, adota-se como referenciais teóricos: Bartalini (1999, 2013), Dick (1990) e
Lofego (2000, 2004).
Palavras-chave: espectros; memória; paisagem; silêncio; Tupi-Guarani.

The proposed paper will follow the toponymy and the identification of remaining traces of the
original site in the current condition of Parque do Ibirapuera and its surroundings as a
possibility for research about the erasures and the permanence of the landscape. In this way, it
tries to acknowledgethe traces of natural elements that, although altered, still persist and also,
the people who named these traces, spelled out in the language and materialized in residual
urban spaces. In the process of understanding the relationships established between toponymy,
memory and landscape, it is adopted as theoretical references: Bartalini (1999, 2013), Dick
(1990) and Lofego (2000, 2004).
Keywords: spectrum; memory; landscape; silence; Tupi-Guarani.

1186
1 - Introdução
Ao longo da urbanização, o silenciamento dos povos originários se associa fortemente à
descaracterização da paisagem original. Revelar traços desse passado demanda “um trabalho
semelhante ao do arqueólogo ou do detetive que, a partir da espreita dos movimentos e da
observação de fragmentos, busca esclarecer ou reconstituir uma cena ou um contexto”
(BARTALINI, 2013).
No caso da cidade de São Paulo, no ano de 1954 durante seu IV Centenário foi inaugurado o
Parque do Ibirapuera, marcando o novo tempo que supostamente se iniciava. O nome
Ibirapuera (Yby-ra-puêra) é uma palavra residual da língua, uma sobrevivência do Tupi-guarani
que, ao denominar o território de árvores apodrecidas, faz referência à fisionomia paisagística
dos brejos onde o parque foi implantado. Os nomes comunicam ideologias referentes à
memória coletiva dos grupos sociais que os utilizam, carregando significados e peso histórico.
A tupinização dos sobrenomes, dos títulos maçônicos foi um fenômeno
correlato ao resgate da toponímia indígena pelas mesmas elites que
estavam silenciando os etnônimos indígenas nas cartas geográficas. [...] a re-
emergência da toponímia indígena foi simultânea ao aprofundamento das
práticas de exclusão das populações indígenas e africanas. (KANTOR, 2009,
p. 57)

Figura 01: Levantamento aerofotogramétrico de São Paulo/SP por S.A.R.A. Brasil (1930). Adaptado pelo
autor com delimitação em preto do atual Parque do Ibirapuera.

Fonte: Geosampa/Prefeitura de São Paulo (2021).

1187
Na história é possível identificar narrativas recorrentes em que povos indígenas são
considerados um impeditivo para o desenvolvimento do progresso da nação, evidenciando o
esquecimento de que, antes mesmo da compreensão de cidade ou nação, o território
brasileiro era terra indígena. A história dos aldeamentos indígenas se articula com o discurso
sobre a construção da identidade ao longo de processos em que a memória de diversas
comunidades se vê atravessada pelo progresso e por suas implicações e que podem ser
compreendidas em termos de uma “narrativa da extinção, na qual o desaparecimento total
dos índios demarcaria o triunfo do processo civilizatório” (MONTEIRO, 2001, p. 127).
O resultante diálogo entre o pensamento científico e a política indigenista
produziu, ao longo do século XIX e, de certo modo, do XX, imagens e
opiniões conflitantes, ora promovendo a inclusão das populações indígenas
no projeto de nação, ora sancionando a sua exclusão. (MONTEIRO, 2001, p.
133)

Nesse sentido, as cidades dão suporte para as disputas de grupos hegemônicos que conduzem
leis, educação e cultura para o estabelecimento e consolidação de seu poder. A reflexão
histórica permite identificar aspectos da construção da memória coletiva que buscam criar
uma identidade de cidade e de estado, tratando-se de uma identidade inventada ou que, na
melhor das hipóteses, silencia vozes e promove o esquecimento daqueles que a proferiram. As
relações de poder são construídas tanto no campo material quanto no imaginário, de forma
que as cidades se tornam o “povoamento de imagens e fontes de imaginários” (LOFEGO, 2004,
p. 22).
A identificação e a recuperação da memória da materialidade original silenciada na condição
atual da paisagem, mas persistente em certos topônimos, possibilitam a compreensão dos
vestígios dessa materialidade como lembranças e manifestações na paisagem. Dessa forma, o
trabalho objetiva o reconhecimento e a valorização de indícios da fisionomia do sítio original
reconhecíveis na atualidade e dos povos que o nomearam. Além disso, busca compreender a
relação entre o silenciamento e a descaracterização da identidade de povos indígenas nos
contextos urbanos, assumindo com especial interesse o caso do Parque do Ibirapuera, em São
Paulo.

2 - O esquecimento de vestígios enunciados na língua


A toponímia, estudo do nome dos lugares, possibilita a identificação de dois tipos de acidentes
toponímicos, os naturais e os antropoculturais, referentes a elementos geográficos e à cultura
humana, respectivamente (DICK, 1990 apud FAGGION & MISTURINI, 2014, p. 143). O
topônimo, nome atribuído a determinado local, resgata a memória e indica elementos da

1188
cultura, da história e da linguagem de um povo (FAGGION & MISTURINI, 2014, p. 143). Além
disso, certos topônimos enunciam a materialidade original da paisagem - frequentemente
silenciada nas cidades atuais.
Certos topônimos podem ser assumidos como um “fóssil linguístico” (DICK, 1980), nos casos
em que remontam a línguas extintas ou em desuso. Além disso, as denominações dos lugares
trazem à tona a identidade e a cultura de povos distintos - frequentemente silenciadas pela
memória oficial. Nesse sentido, os topônimos carregam significado cultural, guardando
características do território que nomeia e estabelecendo relações entre o ato de nomear e as
características do sítio.
Nomeada pelos povos originários de Yby-ra-puêra, ou “árvores apodrecidas” em português, o
povoamento inicial parcial da área correspondente ao atual Parque do Ibirapuera se deu por
aldeias indígenas, posteriormente expulsas no período colonial em decorrência do violento
processo de colonização. A área passa a ser utilizada como pasto para boiadas oriundas do
interior do país, destinadas ao Matadouro Municipal. No caso do Ibirapuera, a toponímia em
Tupi-Guarani carrega traços originários do território que nomeia, sugerindo não apenas a
“identificação dos lugares mas a indicação precisa de seus aspectos” (DICK, 1980).
Línguas, como formas de vida, recortam o mundo, produzem e comunicam
valores e constroem perspectivas e sociedades. Elas expressam e organizam
cosmologias, racionalidades, temporalidades, valores, espiritualidades. Uma
língua funda e organiza o mundo, pois é material constituído de culturas, de
sujeitos culturais, políticos e humanos. (LUCIANO, 2006, p. 121)

Indicando um topônimo essencialmente descritivo da paisagem originária, o termo Yby-ra-


puêra faz menção ao território das árvores apodrecidas, outrora abundantes na várzea
dessecada para a implantação do parque. O silêncio da materialidade original, contudo, não é
completo: espectros na paisagem indicam vestígios de sua sobrevivência. Agamben (2014)
define espectros como formas de vida silenciosas, que surgem repentinamente, constituídos
de signos e assinaturas que indicam temporalidade. O reconhecimento e a valorização de
espectros do território original do Ibirapuera permitem decifrá-lo, tornando-o íntimo e
familiar, trazendo contribuições significativas para a memória, para a imaginação e para a
experiência sensível da paisagem.
A associação entre palavra e imagem, construída historicamente, permite a obtenção de
significado social. Desse modo, a pesquisa da qual resulta o presente artigo propõe a
investigação de questões de caráter teórico em relação à materialidade primordial do sítio
urbano do Parque do Ibirapuera, localizado na cidade de São Paulo, considerando aspectos

1189
políticos do discurso da história da ocupação do território das cidades, além da toponímia
propriamente dita.
A língua indígena é um dos sinais diacríticos da identidade étnica, mas não o
único. É importante chamar a atenção para isto, uma vez que
constantemente a perda da língua por um povo é usada para negar o
reconhecimento da identidade indígena. Um exemplo claro é o que
acontece com os povos indígenas do Nordeste que, por falarem apenas o
português, como resultado de cinco séculos de opressão e repressão
cultural, têm sofrido forte discriminação e preconceito por parte do Estado,
da sociedade em geral e até mesmo de outros povos indígenas. (LUCIANO,
2006, p. 122)

3 - O silenciamento da memória na materialidade da paisagem


Historicamente, o movimento indígena no Brasil possui como pauta central a luta por
território, tornando impossível a discussão indissociada entre povos indígenas e a terra.
Embora vastas as diferenças históricas, culturais e cosmológicas de cada povo, um ponto em
comum seria como os povos se veem a partir da paisagem natural e a importância do território
que, para além da materialidade, simboliza o reencontro com o passado, com a natureza e seu
universo simbólico. Assim, compreende-se que a identidade para os povos indígenas está
atrelada, em parte, à sua identificação com a terra.
Deste modo, podemos definir terra como o espaço geográfico que compõe
o território, onde este é entendido como um espaço do cosmos, mais
abrangente e completo. Para os povos indígenas, o território compreende a
própria natureza dos seres naturais e sobrenaturais, onde o rio não é
simplesmente o rio, mas inclui todos os seres, espíritos e deuses que nele
habitam. [...] Terra e território para os índios não significam apenas o espaço
físico e geográfico, mas sim toda a simbologia cosmológica que carrega
como espaço primordial do mundo humano e do mundo dos deuses que
povoam a natureza. (LUCIANO, 2006, p. 101-102)

A natureza, nas visões cosmogônicas dos povos originários, é assumida como um espaço
sagrado e constitui o próprio universo ocupando enquanto presença física e simbólica, em um
elo “estreito e profundo com a terra, de forma que o problema inerente a ela não se resolve
apenas com o aproveitamento do solo agrário, mas também no sentido de territorialidade”
(LUCIANO, 2006, p. 102).
Na origem do Parque do Ibirapuera, as características naturais do terreno escolhido para sua
implantação e as populações que o habitam são vistas como obstáculos para o
empreendimento, no qual assume-se a negação das preexistências do sítio como mecanismo
para o apagamento da memória de povos originários juntamente à exclusão de grupos sociais
vulneráveis. A inauguração do Parque do Ibirapuera durante as comemorações do IV
Centenário da cidade consolida a disseminação hegemônica de um suposto espírito

1190
bandeirante associado ao pioneirismo, valores construídos na modernidade e que perduram
por meio de marcos como o Monumento às Bandeiras de Victor Brecheret.
Os terrenos da Várzea do Ibirapuera eram terras devolutas tornadas
públicas em 1891, por cessão do Ministério da Agricultura ao município de
São Paulo. A decisão de se implantar um parque público ali foi levada à
Câmara Municipal em 1926. Mas o parque só foi efetivamente implantado
em 1954, viabilizado pelas comemorações do IV Centenário de fundação da
cidade. (BARONE, 2017, p. 169)

Silvio Luiz Lofego (2000) afirma que “os esquecimentos e os silêncios da história são
reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva” (LOFEGO, 2000, p. 306).
Inventa-se, assim, uma identidade nacional construída, contudo, por meio da sobreposição a
histórias de sujeição em que há o controle da memória coletiva por grupos hegemônicos
através da seleção e da distorção de certos fragmentos do passado em detrimento de outros.
A representação de uma identidade nacional pode ser uma enganosa construção ideológica,
como no caso brasileiro, em que se denotam heranças de uma colonização reminiscente até a
atualidade por meio da homenagem perpetuada a colonizadores e do esquecimento de
atrocidades por eles cometidas, por exemplo.
Ao longo do processo de colonização, aldeamentos indígenas foram extintos e seus habitantes
relegados a espaços desvinculados das vilas e das cidades em início de desenvolvimento. A
expropriação de terras indígenas ocasionou a dispersão de povos em territórios à margem da
colonização em seu avanço pelo interior. A visão colonial estabelece que as perdas são
mitigadas com substituições, barganhas, e a terra não é exceção. Nesse sentido, a
fragmentação dos povos originários brasileiros implicou na destituição de elos fundamentais
com a natureza, do pertencimento, da espiritualidade e de sua territorialidade, ocasionando
perdas culturais, populacionais, físicas e espirituais.
Em 1927, os então crescentes processos de urbanização observados na cidade de São Paulo
avançavam em direção às terras de Yby-ra-puêra ao mesmo tempo em que novas imagens da
paisagem começam a ser forjadas por meio de sua desfiguração. É dado início, naquele ano, ao
plantio de eucaliptos para dessecamento da várzea (BARONE, 2017, p. 173) possibilitado pela
implantação de um viveiro municipal que viria a ser incorporado ao atual Parque do
Ibirapuera. Além disso, nas décadas seguintes, é adotada como solução para drenagem do solo
alagadiço a canalização de córregos, promovendo assim, a salubridade e o “progresso” urbano
(CURY, 2018, p. 3).
A condição brejosa e alagadiça das terras do Ibirapuera impõe dificuldades à sua urbanização e
é assimilada como um aspecto de desvalorização pelo mercado imobiliário. Seu dessecamento,

1191
à custa da perda de laços identitários com a paisagem, denota, à época, a possibilidade de
superação de um obstáculo para sua ocupação e desenvolvimento indiferentes ao fato de se
tratar de um sítio de fragilidade ambiental, localizado em situação de fundo de vale onde
concorrem as “principais vertentes de drenagem dos bairros de Vila Mariana, Paraíso, Vila
Clementino, acomodando também as várzeas de inundação dos córregos Sapateiro, Caaguaçu
e Uberaba” (MARIANO, 2005, p. 103).
Em 1937, é iniciada a escavação para a formação do lago do Ibirapuera, alimentado pelas
águas dos córregos do Sapateiro e Caaguaçu, na mesma época em que ruas são abertas no
entorno e o relevo alterado (BARTALINI, 1999, p. 135). Mariano (2005) afirma que Otávio
Augusto Teixeira Mendes, arquiteto paisagista responsável, “redesenhou os lagos,
arrematando-os no conjunto e adequando-os aos córregos existentes” (MARIANO, 2005, p.
115), o que não resolve nem desfaz os desvios forçados da força originária da natureza
promovidos segundo os interesses do homem, e não o contrário. Atualmente tamponados, os
córregos que alimentam os lagos do Parque não são assumidos na paisagem, são clandestinos,
embora seu escoar incessante deixe marcas passíveis de detecção na trama urbana atual
(BARTALINI, 2013).
Ao pretendermos um meticuloso e generalizado domínio sobre toda e
qualquer manifestação da força originária da natureza, trazendo-a
subjugada para nossa órbita, domesticando-a, perdemos justamente o outro
com o qual poderíamos nos medir. Não conhecemos mais as feras fora dos
locais onde as confinamos, apenas os animais de estimação que moldamos à
nossa semelhança. (CABRAL & BARTALINI, 2016)

Os avanços na urbanização e os esforços pelo controle da força originária da natureza


observados naquela época são acompanhados pela disseminação de áreas verdes públicas nas
cidades através da plantação de espécies arbóreas, arbustivas e herbáceas, buscando a higiene
nos centros urbanos. Nesse sentido, são projetados jardins históricos no parque na tentativa
de disseminar uma identidade nacional, contrária à diversidade e à multiplicidade. Essa nova
identidade paulista é reforçada pela arquitetura moderna e pelos espaços livres criados.
Anteriormente à implantação do parque, havia uma favela no terreno com ocupação de 204
famílias em 186 barracos (BARONE, 2017). Com o início das tratativas para a criação do
parque, a maior parte da população foi removida para a periferia, como a favela do Canindé,
evitando ruídos ou manchas à imagem inventada da cidade do progresso. A ação demonstra a
perpetuação de traços da ética colonial associados, especialmente, à expulsão de populações e
às tentativas de controle da natureza, e que podem ser reconhecidos ao longo dos processos
de urbanização das cidades brasileiras, nos quais a paisagem é negada e não há espaço para os

1192
problemas sociais de moradia da população pobre, como as famílias que habitavam a área do
futuro Parque.
Em ofício de 21 de janeiro de 1952, a comissão responsável pela promoção
dos festejos do IV Centenário demandava ao prefeito a remoção da favela
existente no terreno do Ibirapuera, situada entre as ruas Padre Manoel da
Nóbrega e Abílio Soares. (BARONE, 2017, p. 189)

Na criação de um símbolo de modernidade não há espaço para determinados grupos sociais e


certos aspectos da fisionomia da natureza, não assumidos inteiramente, tornando-se
espectros clandestinos. São derrubadas matas, córregos e rios são negados e canalizados, são
criados aterros e constroem-se prédios. Logo, a transformação da paisagem está associada ao
progresso na cidade de São Paulo de 1954 (LOFEGO, 2004, p. 24).
A falta de terra para viver de acordo com as tradições indígenas acaba por enfraquecer a
ligação estabelecida com o território, causando morte simbólica e física, configurando um
processo em que questões étnico-culturais dos povos indígenas são suprimidas pela cidade e
pela cultura urbana. Em que pesem a negação das paisagens e a descaracterização de seus
sítios urbanos, as cidades contemporâneas ainda são espaços carregados de reminiscências de
ancestralidade e de sua materialidade original.
O estudo da paisagem no caso do território do Yby-ra-puêra proporciona a identificação de
espectros e possibilita identificar forças dos povos originários que o habitavam e da natureza,
mesmo que esse reconhecimento seja fragmentado devido ao processo de silenciamento e
tributário de vestígios desconexos da materialidade original denominados em topônimos e
persistentes no espaço. A territorialidade constitui objeto fundamental na cosmovisão dos
povos indígenas, não podendo ser feita a mitigação do significado do valor de um território
ancestral.

4 - Considerações finais
A pesquisa da qual resulta este artigo, tendo como ponto de partida o topônimo Tupi-Guarani
Ibirapuera, possibilitou a reflexão acerca de cosmovisões indígenas de território e paisagem,
instigando questionamentos a respeito dos apagamentos e das permanências na paisagem.
Além disso, a reflexão histórica proporcionou analisar o modo como a cidade acolhe e
transforma esse imaginário e legitima as narrativas de determinados grupos sociais em
detrimento de outros, colaborando para a manutenção de desigualdades e injustiças sociais.
O estudo possibilitou a compreensão da cidade como lugar de negação do indígena e de suas
visões de mundo, em processos de apagamento dados pela construção material e simbólica de

1193
um conjunto de imagens que encontram suporte em monumentos históricos que transmitem
discursos hegemônicos, nos quais o silenciamento dos povos indígenas encobre, ao mesmo
tempo em que legitima, práticas genocidas, etnocidas e ecocidas. Mesmo em constante
transformação, a cidade carrega “traços ou marcas que foram impressas em espaços nem
sempre visíveis” (LOFEGO, 2004, p. 23). Logo, o não reconhecimento da construção de cidades
em um processo de supressão de territórios indígenas intensifica a disparidade entre povos
urbanos e povos da terra.
O reconhecimento de violências no passado e como elas se perpetuam no presente permite a
compreensão da urgente necessidade de territorializar espaços de educação como escolas e
universidades, fazendo-os próximos do movimento e luta indígena no fomento e criação de
políticas públicas afirmativas direcionadas para a demarcação e proteção de territórios
indígenas objetivando a reparação de injustiças, combate ao racismo e respeito à autonomia
irrestrita dos povos originários. Como o passado é encontrado no presente, proporcionam-se,
também, reflexões acerca do processo de cristalização da memória coletiva, forjada pelos
grupos hegemônicos, haja visto que “o controle da memória é uma estratégia política vital das
classes dominantes” (LOFEGO, 2000, p. 305).
Por fim, o trabalho estimula a busca por amadurecimento teórico e instiga mudanças no
ensino tradicional que hierarquiza sujeitos, saberes e territórios em categorias que perpetuam
violências físicas e simbólicas. Desta forma, a pesquisa evidenciou que a leitura a respeito do
tema permite a revisão de cosmovisões tradicionais, buscando aprender com os povos
indígenas a se relacionar com a natureza como elementos de vida e não como recursos,
remetendo à essência do que significa ser humano e estar no mundo.

Referências

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Pessoa. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014, p. 59-68.

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<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
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BARTALINI, Vladimir. Palcos e bastidores. Ainda sobre córregos ocultos. Arquitextos, São Paulo, ano 14,
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1194
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CURY, Laura de Souza. O Parque Ibirapuera e a construção da imagem de um Brasil moderno. In: Anais
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LOFEGO, Silvio Luiz. 1954 – A cidade aniversariante e a memória coletiva: o IV Centenário da cidade de
São Paulo. Proj. História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, v. 20, p. 301-314,
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LUCIANO, Gersem dos Santos. O Índio Brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no
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<http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001545/154565por.pdf>. Acesso em: 11 fev. 2021.

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1195
TERRITÓRIOS DE RESISTÊNCIA: redes contra a pobreza, o esquecimento e o silêncio
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Débora de Barros Cavalcanti Fonseca


PhD em Planejamento Urbano; Professora na FAU/UFAL;
debora_cavalcanti@hotmail.com

Gustavo Almeida Matos


Graduando em Arquitetura; Bolsista ProCCAExt FAU/UFAL;
gamatos1995.gm@gmail.com

Jéssica Muniz Costa


Arquiteta e Urbanista; Pesquisadora no NEST/UFAL;
jessica.munizcosta@hotmail.com

Este artigo apresenta um breve panorama do cotidiano dos moradores da Ocupação Dandara,
um acampamento coletivo, improvisado e gerido pelo Movimento dos Trabalhadores Sem
Teto de Alagoas (MTST-AL) no bairro do Benedito Bentes em Maceió. São registradas
estratégias de sobrevivência social e econômica enquanto formas de resistência ao
esquecimento por parte do poder público e o silêncio da sociedade. Ocupar e resistir emergem
como mecanismos de sobrevivência durante o processo de luta por direitos. Redes sociais de
indignação e de solidariedade desafiam cotidianamente a hegemonia das instituições
econômicas e políticas através de práticas insurgentes capazes de mobilizar os moradores
desses territórios. As redes dinamizam o processo de luta do movimento, ao abrir espaço para
a participação, através do seu rápido poder de influência e mobilização.
Palavras-chave: Movimentos sociais; Redes sociais; Resistência; Direitos; Ocupação Dandara.

This article presents a brief overview of the daily lives of residents of Ocupação Dandara, an
improvised collective camp managed by the Movement of Homeless Workers of Alagoas
(MTST-AL) in the Benedito Bentes, in Maceió. Social and economic survival strategies are
registered as forms of resistance to forgetfulness on the part of the public sector and the
silence of society. Occupation and resistance emerge as survival mechanisms during the
process of fighting for rights. Social networks of indignation and solidarity challenge daily the
hegemony of economic and political institutions through insurgent practices capable of
mobilizing the residents of these territories. The networks streamline the movement's struggle
process, by opening space for participation, through its rapid power of influence and
mobilization.
Keywords: Social movements; Social media; Resistance; Rights; Ocupação Dandara

1196
Ocupar e resistir: estratégias de sobrevivência na luta por direitos
O crescimento desordenado das cidades aliado à desigualdade social, culminou no surgimento
de territórios de pobreza (CAVALCANTI, 2010) em áreas afastadas dos centros urbanos.
Lefebvre (2008) considera que o espaço enquanto mercadoria - reprodução e acumulação do
capital - tem seu acesso determinado pelo mercado. Deste primeiro acesso, redefinem-se
outros, como o acesso à centralidade, a bens e serviços urbanos. Esta condição reproduz
continuamente fragmentações do espaço e da vida cotidiana trazendo, como resultado, o
aprofundamento da segregação urbana, onde determinados territórios são esquecidos e,
portanto, silenciados pela negação dos direitos na cidade, causa e consequência resultado da
transmissão intergeracional da pobreza.
A ausência do estado e as discrepâncias entre os discursos postos em papel através de
programas, projetos e leis e o que realmente é praticado pelo poder público para resolvê-las,
revela a maneira como a segregação espacial e a pobreza urbana são encaradas pelos agentes
do planejamento e gestão urbana em Maceió. Auyero (2012) considera que a subordinação
permanente e o controle social através da burocracia utilizada nos órgãos públicos, revelam
como a população pobre é tratada pelos mais diversos sistemas como o jurídico, de saúde,
educacional, e assistência social, tornando estes reféns ou pacientes do estado, ao lidar com a
incerteza em relação ao atendimento de suas necessidades. Este é de fato, resultado de um
sistema econômico essencialmente instável e injusto, que inibe a capacidade do ser humano
de viver com dignidade, liberdade e felicidade.
Entretanto, a segregação que aparece sob o signo da fragmentação é o modo como se vive e
se percebe o processo, é neste plano que se leem as insurgências. Nesse sentido, as ações dos
movimentos sociais passam a ser centrais e importantes para revelar à análise os conteúdos da
prática. Apontam exigências diversas, tanto a urgência da moradia, do emprego e dos serviços,
quanto o questionamento das políticas públicas (desafiando o planejamento estatal que
aprofunda as desigualdades) e o esvaziamento da democracia. Esses movimentos no seio da
sociedade corroboram a instabilidade, a fragmentação, a produção de um espaço segregado,
que tem na sua origem a existência da propriedade privada (do poder da concentração de
renda) na prática socioespacial vivida (CARLOS, 2020).
A formação de territórios coletivos localizados às margens urbanas (RAPOSO, 2017) emerge
como resposta através da autogestão enquanto resistência à pobreza e à negação de direitos.
Ocupar e resistir surgem como estratégias de sobrevivência durante a luta por direitos. Nesse
contexto, as ocupações, territórios construídos coletivamente pelos moradores e geridos por

1197
lideranças de movimentos sociais, desafiam os contornos neoliberais do planejamento
hegemônico através de práticas insurgentes.

Ocupar entre desafios e insurgências


A dinâmica social de uma ocupação envolve a compreensão da qualidade da infraestrutura
local, dos serviços públicos prestados, da disponibilidade e qualidade do transporte público,
fatores cruciais no cotidiano dos moradores destes territórios. Entretanto, a ausência ou
precariedade destes serviços são também a negação dos direitos nas cidades, já que os
indicadores de qualidade de vida estão diretamente ligados ao acesso aos serviços de primeira
necessidade. O perfil socioeconômico e espacial da ocupação está relacionado com o alto grau
de desemprego, o acesso fácil e rápido de matéria prima (lixo) para construção dos barracos e
a relação de conhecimento com o seu entorno (Figura 01). O desmonte das políticas de bem-
estar social, aliado ao alto valor do aluguel e o aumento da inflação, teve como consequência
uma maior adesão e crescimento dos acampamentos geridos pelos movimentos de luta pela
moradia. Apesar de muitas famílias acampadas enfrentarem a pobreza extrema, uma parcela
tem um perfil socioeconômico de maior poder aquisitivo, por serem assalariados com carteira
assinada. No entanto, para essas pessoas, o alto custo dos aluguéis, tornou a ocupação uma
opção viável na garantia da moradia e alimentação. Neste contexto, observa-se a construção
de barracos com melhor estrutura, acesso à energia elétrica e água encanada, divisão interna
dos barracos em cômodos equipados com eletrodomésticos.

Figura 01: Disposição e materialidade dos barracos na ocupação Dandara

Fonte: Acervo pessoal, 2019.

1198
Antes de ocuparem o terreno no Benedito Bentes (Figura 02), os moradores habitavam locais
estratégicos, próximos às centralidades da cidade. O distanciamento dos núcleos urbanos
consolidados, impacta na sobrevivência diária destes grupos, uma vez que, a demanda de
trabalho, transporte, educação e saúde, se concentram, principalmente, em áreas centrais,
servidas de infraestrutura.

Figura 02: Localização da Ocupação Dandara no Benedito Bentes

Fonte: Google Earth adaptado, 2020.

O aprofundamento das desigualdades sócio territoriais aliado ao desemprego, à atual política


depreciadora do salário-mínimo, e consequentemente a dificuldade de se pagar aluguel, fazem
com que muitas famílias encontrem na ocupação o acolhimento de um lar improvisado, ao
mesmo tempo em que se engajam na luta por uma moradia adequada e permanente. O sonho
de ter uma casa para viver em segurança com os filhos e deixar como herança no futuro,
motivam a permanência na ocupação.
Além disso, é através do MTST e da ocupação que muitos moradores conhecem a força da luta
coletiva pelo direito à moradia adequada e à cidade. O aprendizado sobre trabalho coletivo,
igualdade, justiça social, solidariedade, sustentabilidade, fazem parte das estratégias de
sobrevivência nesses territórios. Estes aspectos ecoam os princípios de organização coletiva
propagados pelo movimento. Deste modo, os ideais e valores políticos da luta se refletem
diretamente na identidade coletiva da ocupação Dandara.

1199
As estratégias de sobrevivência e luta adotadas nos acampamentos do MTST estão divididas
entre atividades coletivas, regidas por regras de convivência e organização social, e funções
atribuídas individualmente a cada morador. Fazem parte da cartilha guia das ocupações
(manifesto nacional do MTST) a construção e manutenção da cozinha e da horta comunitária,
a trilha de vigilância noturna, a criação de espaço de reuniões da coordenação para
recebimento de novos acampados, denominado G (grupo) Central, além de uma área ampla,
de uso coletivo, destinado a reuniões e assembleias. Essas estruturas coletivas têm o intuito de
montar uma estrutura espacial padronizada nos acampamentos do MTST como forma de
organização social durante o processo de conquista da moradia. Associadas às estruturas e às
atividades realizadas, há um conjunto de normas de convivência e um programa de formação
política acerca de direitos que são fundamentais para o pleno funcionamento da ocupação
relacionados aos temas de gênero, classe, etnia e religião.
A cozinha é um espaço importante para a coletividade e sobrevivência, pois além de funcionar
através da cooperação e da rotatividade entre moradores, é responsável por fornecer até três
refeições diárias aos acampados. Os alimentos utilizados no preparo das refeições são
provenientes de doações feitas pelos próprios moradores, indivíduos ou grupos filantrópicos,
instituições governamentais, além da própria horta comunitária. A cozinha se mostra como
estratégia para superar dificuldades que se intensificaram durante a pandemia, além de
fortalecer os vínculos associativos e comunitários que é fulcral para o processo de pós-
ocupação.
A trilha de vigilância noturna é uma atividade diária que tem o intuito de manter a segurança
no acampamento. O objetivo desta função coletiva é impedir o avanço da criminalidade na
ocupação, e impedir quaisquer tipos de infração nas normas de convivência, como o consumo
de bebidas em excesso, o preconceito à diversidade sexual e a violência contra a mulher. Para
o movimento, essas estratégias podem garantir a segurança e quebrar os estereótipos
comumente denotados nestes territórios. O processo de luta é considerado justo, inclusive
pelo comando da criminalidade local que respeita, da sua maneira, e proíbe a circulação de
drogas nesses territórios, dependendo da região da cidade na qual está construída os barracos.
Esse é um contato e diálogo necessário, realizado pela coordenação local, para não afastar os
moradores e evitar o processo de esvaziamento do acampamento e abandono da luta. Esse
processo é discutido pela coordenação que acredita que “barracos não fazem luta urbana,
pessoas sim”, argumento utilizado quando ocorre processo de abandono dos barracos e a não
participação nos processos coletivos.

1200
A organização coletiva é uma força no combate à desigualdade, mas enfrenta problemas
nesses territórios. Após o tempo de consolidação da ocupação, algumas pessoas não se
comprometem com a manutenção dos barracos e abandonam a luta, mesmo assim, esperam
ser contempladas sem a participação e cooperação na conservação do acampamento. As
regras do movimento foram desenvolvidas para romper esse ciclo comum, que é nocivo ao
processo de luta urbana. Essas estratégias têm o objetivo de garantir o direito daqueles que
estão sempre presentes no acampamento. Para tanto, é feito o controle daqueles que
colaboram através de uma lista de frequência semanal. Além disso, cada representante
familiar é responsável por manter o seu barraco em boas condições, contribuindo com a
limpeza do local e o respeito à política de boa vizinhança.
O espaço para reuniões é um ponto central nos processos de luta urbana. Está nas diretrizes
políticas do MTST o dever de participar nas assembleias. Essa ação tem o objetivo de fortalecer
e ser pedagógico com relação às lutas de classe e os direitos civis e políticos dentro dos
territórios. O espaço de reuniões é uma referência nesse processo político, pois é a partir dele
que as decisões coletivas e o exercício da democracia se fortalecem para enfrentar os ataques
constantes de indivíduos e/ou grupos políticos.

Redes sociais de indignação e de solidariedade


Para o geógrafo Milton Santos, das periferias globais sairia a possibilidade de uma nova relação
entre os países do globo, com mais igualdade e menos injustiça entre os povos. A cultura
popular e a crescente capacidade de se comunicar impulsionada pelas novas tecnologias da
informação dariam resultados. No entanto, dentro dos mecanismos da política global
neoliberal, a lógica das disputas e da sobrevivência retira qualquer possibilidade altruísta de
ação, segundo o autor. Resta à sociedade retomar o conceito de solidariedade e ajuda mútua.
Nesse contexto, as redes se inserem na disputa da globalização do capital especulativo e
predatório. Santos (2000) acredita que é possível uma outra globalização utilizando as mesmas
bases materiais que sustentam a ação das empresas globalizadas, apoiadas na comunicação e
informação, servindo a outros objetivos, desde que colocadas a serviço de uma outra
consciência e fundamento, como as redes em construção pelos movimentos sociais.
O fenômeno das redes é considerado um resultado da política de lutas sociais. A apropriação
das mídias digitais pelas camadas populares e movimentos sociais, perpassa a denúncia da
pobreza, do esquecimento por parte das instituições e do silenciamento da sociedade. Estas
ferramentas, antes restritas à elite intelectual, reafirmam o lugar de fala daqueles que vivem
cotidianamente as desigualdades oriundas do sistema econômico atual. A segregação e a

1201
mordaça são, portanto, desafiadas pela apropriação desses instrumentos que contribuem para
atos de engajamento sócio-políticos e formas de resistência, atuando fortemente na conquista
e/ou permanência dos direitos civis.
Conforme Castells (2013), as redes sociais são espaços públicos digitais onde se desenrolam
redes de resistência e mudança social. São lugares de autonomia em que não há o domínio por
parte de grandes instituições monopolizadoras, consideradas redes de domínio. Fazem parte
de uma nova conjuntura social, a do movimento pós mídia, onde ideias são disseminadas
rapidamente, através da autocomunicação, de forma que o governo e instituições financeiras
não conseguem mais controlar a formação desses movimentos na internet. Esse tipo de
organização se une para compartilhar lutas e esperanças, além de fazer acontecer ações, numa
tentativa deliberada de alterar os sistemas de poder e voltá-los aos interesses e valores da
sociedade civil.
Costa (2008) acredita que convém entender que dentre os fatores geradores das mobilizações,
além dos desejos, expectativas e aspirações do chamado “senso comum”, o fenômeno da
sociabilidade (que confere sentido à vida social) e da cooperação (o motor que faz funcionar o
trabalho e a vida social) são encorajadores para a afirmação de uma comunidade participativa
e auto-organizada. Como afirma Pierre Lévy (1996), as comunidades virtuais são uma nova
forma de se fazer sociedade, e tudo isso é possível com o apoio das novas tecnologias de
comunicação.
Nesse sentido, as redes sociais aparecem como elementos que possibilitam estruturar a nova
paisagem sociocultural através dos protestos e da pressão popular nas decisões políticas. Elas
emergem com a capacidade de conscientizar e colaborar na luta pelas causas sociais com
rapidez e abrangência, e de abrir caminhos para a reivindicação dos direitos, em nível
ambiental, político e social (SILVA, CARVALHO JUNIOR, 2015). Logo, a luta pela igualdade
social não depende apenas de interlocutores políticos para ser levada em consideração, mas
resiste, com a riqueza das iniciativas econômicas, com a insurgência na relação com o estado e
com a mobilização frente à sociedade nos territórios populares em Maceió.
Para além de ocupar os espaços públicos na cidade, o MTST passou a utilizar o Facebook,
Instagram e grupos de WhatsApp, como forma de compor o cenário de reivindicações,
ultrapassando assim, as fronteiras do urbano na tentativa de confirmar a luta pelo direito à
moradia e à cidade. Estes dispositivos aparecem como redes de indignação e solidariedade
(sobretudo em tempos de pandemia do covid-19), enquanto práticas insurgentes, na
resistência à hegemonia das instituições econômicas e políticas. As redes dinamizam o

1202
processo de luta do movimento, ao abrir espaço para a participação, através do seu rápido
poder de influência e mobilização.

Figura 03: Campanha online de combate a fome na periferia

Fonte: Instagram do MTST Brasil, 2020.

Além de questionar o governo sobre a destinação dos recursos públicos, reivindicar direitos
constitucionais como saúde, trabalho, moradia e educação, denunciar a repressão policial do
estado nos territórios populares, o MTST através das lideranças e moradores, têm utilizado as
redes sociais para difusão de campanhas nacionais de arrecadação do fundo de combate à
fome na periferia, contando com a contribuição de vários doadores internautas de todo o
Brasil, que apoiam a causa e têm ajudado na construção das cozinhas solidárias em Maceió e
em várias outras cidades (Figura 03).
Costa (2008) afirma que é no âmbito da vida cotidiana que as pessoas sofrem as necessidades
e dificuldades, e que assim podem determinar sua conscientização e politização. As redes,
enquanto vetores de cognição coletiva conectada, encorajam modos de empoderamento,
chegando a estimulá-las no engajamento na luta por demandas sociais. Com a internet, abre-
se a possibilidade da criação de certa simpatia às causas que afetam a todos em escala
mundial, que desperta hoje uma modalidade singular de consciência e engajamento político.
Portanto, acredita-se que as redes sociais têm o poder de conscientizar e colaborar na luta
pelas causas sociais com rapidez e abrangência, e de abrir caminhos para a reivindicação dos
direitos, a nível político, social e ambiental. Os processos coletivos adotados nos territórios
populares são fundamentais para denunciar na sociedade os percalços que os moradores

1203
enfrentam. As redes sociais se configuram como dispositivos importantes na consolidação e
fortalecimento das pautas sociais e da luta pelos movimentos sociais e pela comunidade,
fazendo com que estes atores protagonizem a sua própria história, sem a necessidade de
interlocutores, mas com o respaldo da força coletiva.
São esses movimentos, suas atividades e ação política que transformam os territórios da
pobreza em territórios de resistência, onde a vida cotidiana se utiliza de tramas e redes contra
a pobreza que assola, o esquecimento que dói e o silêncio ensurdecedor de uma vida indigna.

Referências

AUYERO, Javier. Patients of the State: The Politics of Waiting in Argentina. Durham: Duke University
Press, 2012.

CASTELLS, Manuel. Redes de Indignação e Esperança: Movimentos Sociais na Era da Internet. Rio de
Janeiro: Editora Zahar, 2013.

CAVALCANTI, D. D. B. Fighting for a Place in the City: Social Practices and State Action in Maceió, Brazil.
1. ed. Londres: [s.n.], 2010. p. 1-295.

COSTA, Rogério da. Por um novo conceito de comunidade: Redes sociais, comunidades, pessoas,
inteligência coletiva. In: Antoun, Henrique (org.). Participação e vigilância da era da comunicação
distribuída. Rio de Janeiro: Mauad x, 2008. P. 29 – 49.

CARLOS, A. F. A. Henri Lefebvre: o espaço, a cidade e o "direito à cidade”. Direito e práxis, Rio de
Janeiro, V.11, N.01, 2020, p.349-369.

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 5.ed. São Paulo: Centauro, 2008.

O MUNDO GLOBAL visto do lado de cá. Produção de Sílvio Tendler, 2006. documentário. youtube.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. (2 ed.) Ed.
Record, Rio de Janeiro, 2000.

SILVA, I. D. F; CARVALHO JÚNIOR, J. G. A. As redes sociais como espaço de articulação dos protestos
sociais no contexto democrático do século XXI. Temática, Ano XI, N. 05, 2015.

RAPOSO, I. O. S. Intervir nas margens do urbano, o papel da academia. Revista Espaços vividos e
espaços construídos, Lisboa, V. 01, N.05, 2017.

1204
UM CANTO DE GUERRA: a luta pelo direito de apropriação do espaço na Comunidade
Recanto da Paz, Aracaju/SE
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Andresa dos Santos Oliveira


Pós-Graduanda em Assistência Técnica nas Áreas de Arquitetura, Urbanismo e Engenharia,
UFPB, João Pessoa; arq.urb.andresaoliveira@hotmail.com.

Annare Reis Almeida


Arquiteta e Urbanista; UNIT, Aracaju; anna.re.reis@gmail.com.

Lygia Nunes Carvalho


Mestre em Arquitetura e Urbanismo, FAU/USP; Docente, UNIT; lygiacarvalhoarq@gmail.com.

Matheus dos Santos


Mestrando em Dinâmica do Espaço Habitado, UFAL, Maceió;
matheusdossantos_arq@hotmail.com.

A emergência da luta pelo direito à cidade, desnudando a lógica da invisibilização social das
comunidades vulneráveis, se faz gritante. Em Aracaju, capital do Estado de Sergipe, a
comunidade Recanto da Paz existe e resiste há mais de 40 anos, e através da associação de
moradores local reivindica seus direitos por meio de ações pontuais para melhoria da
estrutura do seu lugar. Conhecemos a comunidade através de intervenção realizada
colaborativamente, a partir da metodologia do jogo Oasis, do Instituto Elos. Este artigo
objetiva difundir as vozes que orquestram os movimentos da comunidade na luta pelo direito
de se apropriar, modificando e usufruindo do espaço urbano, juntamente a ações de
estreitamento de laços coletivos para o enfrentamento das desigualdades sociais.
Palavras-chave: resistência; direito à cidade; comunidades vulneráveis.

The rise of the fight for city rights, which bares the structure of social oppression towards
vulnerable communities, is glaring. In Aracaju, state capital of Sergipe, the Recanto da Paz
community exists for over 40 years, and through the local residents association, claim their
rights through occasional interventions to improve the structure of the place. We got to know
the community through a collaborative intervention based on the steps of the Oasis Game
methodology, developed by the Elos Institute. This paper aims to broadcast the voices that
orchestrate the social activism within the community in their fight for the rights of
appropriation, use, and modification of the urban space, alongside activities focused on
collective bonding in order to face social inequality.
Keywords: resistance, city rights, vulnerable communities.

1205
1 - A emergência da luta pelo direito à cidade diante da invisibilização social das ocupações e
comunidades vulneráveis
A luta pelo direito à cidade no Brasil esbarra em diversos obstáculos no que se refere à criação
de políticas públicas efetivas e ao descaso da sociedade capitalista frente a invisibilização
social das ocupações e comunidades vulneráveis. O que se tem sobre o modelo de
planejamento urbano neoliberal, baseado em padrões holísticos de uso e ocupação do solo, na
centralidade e racionalidade do aparelho de Estado, é sua aplicação em apenas uma parte das
nossas megacidades – a “cidade formal ou legal”. Essa importação de padrões, que atendem
apenas a um determinado grupo, contribui significativamente para que as cidades brasileiras
sejam marcadas pela modernização incompleta e excludente. (MARICATO, 2009)
Em um país onde as leis são aplicadas de acordo com as circunstâncias, o Plano Diretor torna-
se totalmente desvinculado da gestão urbana. Segundo Maricato (2009), ele é um discurso
pleno de boas intenções, mas distante da prática, que ignora a maioria da população. A
habitação social, o transporte público, o saneamento e a drenagem não têm o status de temas
importantes para tal urbanismo, como deveriam ser. A ausência da atuação e aplicação das
legislações vigentes por parte do poder público, principalmente dentre os temas defendidos
por Maricato, impactam diretamente no acesso aos direitos na cidade.
No caso da habitação, quando negligenciado este direito para uma parcela cada vez maior da
população das cidades brasileiras, é negado além do direito ao morar, o pertencimento físico e
de laços sociais (TAVOLARI, 2016). A negação de um direito presente na vida urbana, como o
de ter uma casa, acarreta uma série de negações, como por exemplo: conseguir um emprego
ou usufruir de certos serviços públicos que exigem um endereço fixo. Portanto, não só o
planejamento, mas a gestão urbana é seletiva, determinando quem pode ficar, fazer parte,
circular, usufruir e se apropriar das cidades brasileiras. Resultando assim, um tecido urbano
fragmentado tanto na escala física, como política, econômica e social.
Atrelado a isso, há um movimento insurgente que se apropria do espaço a partir de suas
práticas do cotidiano. São ações que nascem através de táticas ordinárias na “cidade ilegal”
como forma de subverter o que é imposto à população marginalizada. Sem moradia, sem
infraestrutura, e sem serviços básicos. Certeau (1998) descreve essas táticas como sendo uma
aversão àquilo que é imposto por uma força estranha, que não se mantém recuado, previsível
e que acontece dentro do terreno em que há um poder dominante instaurado.
Brenner (2016) ressalta que esse fato decorre como resposta ao urbanismo neoliberal.
Urbanismo este que não se classifica como uma formação unificada e homogênea de

1206
governança urbana, e que representa uma síndrome ampla de instituições, políticas e
estratégias regulatórias que dominam o mercado.
A produção do espaço urbano visando o lucro tem sido a tendência predominante desde a
década de 1980, e tem promovido a “mudança do perfil das urbanizações beneficiando o
modelo de muita lucratividade urbana para poucos”. Consequentemente, por intermédio da
grande especulação imobiliária, que dita “as regras do jogo”, os mais ricos são priorizados em
detrimento aos mais pobres, que são invisibilizados e excluídos da “cidade legal”. (CRUZ apud
BRENNER, 2016)
Parte intrínseca ao processo de urbanização no Brasil são as ocupações de terras urbanas. Elas
são estruturadas e institucionalizadas pelo mercado imobiliário excludente e pela ausência de
políticas sociais, em que a maioria da população vive sem o título de propriedade, e sem
acesso à infraestrutura básica de saneamento urbano – água, energia, esgoto. Isso representa
uma multidão de brasileiros(as) sem os direitos fundamentais de cidadania.
“Esta gigantesca ilegalidade não é fruto da ação de lideranças subversivas
que querem afrontar a lei. Ela é resultado de um processo de urbanização
que segrega e exclui. Apesar de o processo de urbanização da população
brasileira ter se dado, praticamente, no século XX, ele conserva muitas das
raízes da sociedade patrimonialista e clientelista próprias do Brasil pré-
republicano (...)” (MARICATO, 2009, p.154)

Dentro deste contexto de crise de governança mais ampla nas cidades contemporâneas, em
que tanto os Estados como os Mercados se mostraram falhos na entrega sistemática de bens
públicos básicos e essenciais (como habitação, transporte e espaço público) às ocupações e
comunidades vulneráveis em rápida expansão, surge o urbanismo emergente (ou tático),
propondo modos de intervenção imediatos a partir de suas vivências cotidianas, como
“acupunturas” urbanas, em relação a questões locais vistas como extremamente urgentes por
seus proponentes que atuam coletivamente. (BRENNER, 2016)
Diante disso, comunidades como o Recanto da Paz - objeto deste estudo, se mobilizam em
busca de ecoar seu “canto de guerra”. Lutar e re-lutar pelo espaço que é seu por direito. Essa
luta, por vezes, esbarra na burocracia de uma cidade legal e mercantilizada, que, como já
mencionado aqui, sufoca e exclui a população mais pobre. Em contrapartida, “remando contra
a maré”, a população se une como símbolo de resistência, e decide pôr em prática ações
pontuais para melhoria da estrutura do seu lugar. Práticas estas que reivindicam o direito de
se apropriar, usufruir e modificar o espaço urbano - que vão de encontro aos interesses do
poder público, mercado imobiliário e classes contrastantes do entorno.

1207
2 - “Somos a água que brota da fonte em meio ao sertão”1: A Comunidade e suas vozes
Em Aracaju, capital do Estado de Sergipe, o loteamento Recanto da Paz existe e resiste há mais
de 40 anos, e através da associação de moradores local reivindica seu lugar e direitos para seus
mais de quatro mil e quinhentos habitantes. Inserida em uma zona de grande interesse
imobiliário, nas proximidades do aeroporto e do circuito turístico das praias da capital, seu
processo de consolidação na malha urbana é marcado por grandes pelejas. (Figura 01)
Nesse primeiro momento, queremos convidar a prática do olhar da abundância para entender
como se desenvolveu a comunidade em meio a tantas lutas, quais são suas belezas, e como é a
vivência em seu espaço.2
Constituída a partir chegada de pessoas oriundas do interior do estado em busca de melhores
condições de vida na capital, na década de 70, a comunidade era conhecida como Malvinas.

“Em setembro de 1996, ano de fundação da nossa associação, meu primo


Manoel Hosano dos Santos - um dos fundadores da comunidade e da
associação -, deu o nome de Recanto da Paz, que foi batizado pelo próprio
Deus com uma chuva repentina!” (Lene, 2021)3

Figura 01: Localização da Comunidade Recanto da Paz.

Fonte: Google Maps com adaptação dos autores.

A chegada em Aracaju é marcada por grandes incertezas, sem qualquer título de terra ou
condições financeiras para sobrevivência, o que obriga seus primeiros moradores a
trabalharem um dia da semana para a Infraero - Empresa Brasileira de Infraestrutura
Aeroportuária – em troca do direito de habitar área de posse da empresa. No entanto, as

1
Os títulos remetem a estrofes da música composta pela prof. Lygia Carvalho para a comunidade.
2
As histórias aqui relatadas foram capturadas através da vivência junto à comunidade durante jogo
OASIS, além de entrevistas realizadas posteriormente com duas de suas lideranças.
3
Entrevista realizada com liderança local em janeiro de 2021.

1208
condições impostas eram desfavoráveis para permanência: não lhes era permitido a
construção de casas de alvenaria, além da não existir serviços públicos básicos como
abastecimento de água, saneamento e drenagem. Conforme a população foi crescendo, a
comunidade se manteve resistente e se consolidou por meio da luta pelo território.
“Desde o início sempre vinham se juntando pra buscar melhorias pra
comunidade. Primeiro com o pagamento dos dias de trabalho lá na Infraero,
pra poder ter o direito de morar lá. E com o passar dos anos foi a luta, a
resistência pra poder continuar lá na terra, o enfrentamento às autoridades
pra poder permanecer.” (Nildo, 2021)4

Durante a nossa vivência na comunidade, identificamos dois grupos atuantes no território: a


Associação de Moradores - fundada em 1997 - e o Instituto Atitude, Cidadania e Meio
Ambiente - que direciona ações para trabalho de cunho social, promoção da cultura e lazer, e
formada, também, pelos moradores locais. Para nós, era nítido que a população detinha uma
articulação que possibilitava ações coletivas para melhoria da comunidade, buscando por
conta própria solucionar problemas de responsabilidade do Poder Público. (Figura 02)

Figura 02: Ações realizadas na Comunidade Recanto da Paz.

Fonte: Associação de Moradores, com adaptação dos autores.

Aos poucos, como resultado de muito esforço, a comunidade conquistou a identificação das
ruas, água encanada e energia elétrica, porém ainda há muito o que se fazer para garantir o

4
Entrevista realizada com liderança local em janeiro de 2021.

1209
direito ao território5, questão fundamental para o bem viver de seus moradores.
Cotidianamente a população sofre com esgoto a céu aberto, ratos, escorpiões, lama e diversos
insetos; além de outros agravantes à higiene e saúde. Todavia, mesmo com essa realidade
latente, as pessoas se fortalecem e buscam alternativas para lutar por seus direitos - seja
através dos protestos que reivindicam a pavimentação e urbanização da área, ou na auto-
organização para instalação da rede de esgoto, feita pelos próprios moradores através de
mutirões comunitários. Atualmente, apenas 10% das ruas estão com esgotos expostos, e a
meta é abranger todo o território. (Figura 03)

Figura 03: Precariedades da Comunidade Recanto da Paz.

Fonte: Associação de Moradores, com adaptação dos autores.

O Recanto da Paz possui uma preciosidade inegável e rara: o afeto e cuidado com o outro. Os
moradores sonham com a melhoria para sua comunidade e lutam, mesmo com inúmeros
desafios, para dar voz ao seu povo.
“É um local bom, harmônico, onde se desenvolve bastante. Antes era mais
familiar, hoje tá mais comunitário. [...] É um local de proximidade boa, pelas
casas serem próximas umas das outras, com portas próximas, que acaba
tendo esse convívio próximo um com o outro.” (Nildo, 2021) 6

5
A área que era da INFRAERO foi doada ao Governo do Estado para resolução da situação da
comunidade, porém, atualmente, há interesses diversos em relação a essa área.
6
Entrevista realizada com liderança local em janeiro de 2021

1210
Ao reivindicar seus direitos, a população protesta, mas também mobiliza e fortalece o espírito
do viver em comunidade por meio das diversas ações locais - eventos, mutirões, palestras - e
parcerias externas. Apesar do estigma criado em relação às comunidades vulneráveis, que são
tidas como locais perigosos e violentos - viver no Recanto da Paz é sonhar e acreditar em uma
cidade mais justa, e ir à luta por esse sonho.

3 - “Somos a água que bate na pedra, resistência e união”: Oásis Recanto da Paz
Nesse segundo momento, te convidamos a conhecer a intervenção que realizamos junto à
comunidade e a celebrar conosco cada passo do processo. Aqui iremos apresentar a
materialização de um sonho comunitário, o Oásis Recanto da Paz: um projeto de mobilização
social fundamentado no urbanismo colaborativo para promoção de cidades mais justas.
“O Oásis foi fundamental na vida da comunidade! A ação Oásis mostrou a
potencialidade das pessoas carentes quando elas se unem pelo mesmo
objetivo! Além de revelar os muitos talentos que temos na comunidade e nos
tirar da invisibilidade e do anonimato! [...]” (Lene, 2021) 7

O Jogo Oásis é uma ferramenta de mobilização social desenvolvida pelo Instituto Elos para a
realização de sonhos coletivos; ele foi concebido para ser de uso livre e realizado de forma
totalmente cooperativa, cujas regras permitem a vitória de todos, sem exceção - para que
juntos possamos materializar um sonho em comum. O real objetivo do jogo, entretanto, vai
além do produto final: é um chamado para a ação, uma forma de mobilizar a comunidade e
identificar lideranças, de modo que possam melhor se articular. (INSTITUTO ELOS, 2014)
Para o desenvolvimento do projeto, diversas pessoas com o propósito de construção de laços
e realização conjunta de um sonho da comunidade montaram uma equipe diversa envolvendo
parcerias com o Núcleo de Projetos, Pesquisa e Extensão em Arquitetura e Urbanismo - NUPPE
-, professores e alunos do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Tiradentes,
voluntários externos, Guerreiros Sem Armas8, e a própria comunidade.
A metodologia do Jogo Oásis propõe algumas etapas para organização e fluxo do processo, as
quais foram incorporadas no projeto - são elas OLHAR, AFETO, SONHO, CUIDADO, MILAGRE,
CELEBRAÇÃO e RE-EVOLUÇÃO (Figura 04). Durante cada etapa foram realizadas dinâmicas de
aproximação para conhecer a área e a população, criar uma rede afetiva, identificar as belezas

7
Entrevista realizada com liderança local em janeiro de 2021.
8
Guerreiros Sem Armas - participantes que realizaram o curso de capacitação social “Guerreiros Sem
Armas” desenvolvido pelo Instituto Elos Brasil.

1211
e recursos locais, entender a realidade da comunidade, e sonhar em coletivo. (INSTITUTO
ELOS, 2014)

Figura 04: Oásis Recanto da Paz.

Fonte: Autores.

O processo deu início através da articulação com as lideranças locais, a fim de compreender a
dinâmica da comunidade e desenvolver um cronograma que melhor se adequasse a sua rotina.
Esse primeiro contato foi essencial para garantir que a chegada da equipe à comunidade
ocorresse de forma espontânea e afetiva.
Logo nas primeiras dinâmicas, pudemos observar a abundância do local. Uma diversidade de
belezas e talentos se apresentou aos nossos olhos, fazendo valer o lema da primeira etapa: "só
verei se acreditar". Passamos o dia na comunidade e, depois de um delicioso almoço oferecido
pelos moradores, saímos em busca dos recursos locais, apontando o foco sempre para o nosso
mutirão comunitário.
Na etapa seguinte, ao conversar e ouvir as histórias de seus moradores, notamos muitos
construtores, marceneiros e ferreiros que poderiam ajudar na mão-de-obra e coleta dos
materiais necessários para a intervenção. Mas os talentos não paravam por aí; a comunidade é
recheada de artistas, atletas, cozinheiras e comerciantes - talentos estes muitas vezes
irreconhecíveis pela própria população local. Assim, com o intuito de juntar as pessoas e
mostrar suas belezas, oferecemos um convite irresistível aos moradores para participar do
primeiro Show de Talentos da Comunidade Recanto da Paz. A noite foi uma festa; teve muita

1212
cantoria, comida, dança e exposição de artes. Saímos com o sentimento de conexão e afeto
latente em nossos corações, prontos para continuar em frente.
As próximas dinâmicas foram importantíssimas para o desenvolvimento do mutirão. Era
chegada a hora de sonhar com a comunidade, colher as sementes que outrora foram
plantadas, e ouvir seus sonhos. Movidos por esse desejo, fomos para a rua em um empolgante
e animado cortejo. As conversas com a população enfatizavam a necessidade de saneamento
básico, mas também traziam à tona a vontade de ter um espaço de reunião e brincadeiras do
qual os moradores pudessem usufruir. Pois bem, foi dito e feito. A população resolveu se
apropriar de uma área vazia na entrada da comunidade para materializar o sonho. Naquele
mesmo encontro foi projetado pelos moradores a maquete do Sonho Comunitário e divididas
frentes de atuação para realização e captação de recursos para o mutirão. Aos poucos, com a
contribuição de cada morador em sua concepção, tudo foi tomando forma e a partir daí
edificamos o MILAGRE. (Figura 05)

Figura 05: Oásis Recanto da Paz.

Fonte: Autores.

O mutirão foi desenvolvido em 3 dias de muita mão-na-massa. Atuamos em grupos de Pintura


e Artes, Brinquedos e Mobiliários, Jardinagem, e Cozinha, cada um com um turbilhão de
tarefas a cumprir nesse prazo tão curto. Um verdadeiro desafio que nos unia. No entanto, uma
vez que as relações cotidianas em qualquer ambiente são complexas - e não poderia ser
diferente nesse contexto -, as tarefas práticas a serem realizadas foram apenas a ponta do
iceberg. Algumas dificuldades apresentaram-se fortemente nesse momento: a difícil relação
com o poder público e seus interesses particulares naquela área, além dos diversos conflitos
instaurados por grupos e interesses políticos.

1213
“Como em outras realidades, sabemos que não faltam recursos, o que falta é
vontade política dos nossos governantes! Com um agravante: o poder
público, constituído quase que na sua totalidade pela elite, acha mal
empregado uma área nobre ser ocupada por pobre! Por isso querem nos
tirar daqui!” (Lene, 2021)9

Durante a intervenção sofremos um embargo por parte da Emurb (Empresa Municipal de


Obras e Urbanização de Aracaju). A alegação foi clara: tratava-se de uma denúncia por
construção sem autorização. Mesmo sendo uma intervenção de caráter efêmero, tático, o
urbanismo emergente teve de ser interrompido naquele momento. Era preciso RE-
EVOLUCIONAR e lutar pelo direito de se apropriar do espaço.
A partir dessa intermissão, o objetivo do jogo já havia sido alcançado: a comunidade não
parou. Diversas outras atividades foram encadeadas a partir dos laços coletivos construídos
durante o Oásis. A comunidade agora se encontra mais fortalecida para enfrentar as
desigualdades sociais que lhes são impostas diariamente. A implantação de infraestrutura de
esgotamento sanitário através da mobilização coletiva local continuou, e mais recentemente,
durante esse momento pandêmico que vivenciamos, ações emergenciais com iniciativa dos
moradores foram organizadas. Através de uma rede colaborativa, da qual participamos,
diversas cestas básicas de alimentos foram distribuídas à população.
Apesar dos desafios enfrentados em meio ao processo, o que levamos dessa experiência é a
importância do poder da colaboração, de estarmos juntos e fortalecidos para enfrentar as
adversidades de uma sociedade capitalista.

“Outro (re)canto não há”: Apreciações e Considerações finais


Passados os meses da intervenção que promovemos, pudemos enfim refletir sobre tantas
histórias que nos envolveram, admiração mútua que desenvolvemos, o carinho com o qual
fomos acolhidos, as dificuldades que jamais imaginamos enfrentar, e, também, sobre a
responsabilidade que carregávamos ao longo dos dias em que estivemos focados em realizar o
antigo sonho da população - ter um local bem estruturado para suas práticas de esporte, lazer,
reuniões e encontros.
Hoje podemos sentir que, embevecidos das nossas mais genuínas boas intenções, da nossa
capacidade técnica e da forte crença no potencial do método que adotamos, extasiávamo-nos
a cada nova conquista. Por fim entendemos que demos e recebemos mutuamente, mas, mais
aprendemos do que ensinamos.

9
Entrevista realizada com liderança em janeiro de 2021.

1214
Imersos nessa experiência que nos convocou a abandonar o senso comum e enxergar a
preciosidade de cada lugar, cultura e suas raízes, podemos encerrar esse pequeno texto certos
de que coletividade demanda envolvimento, marcados pelas dificuldades advindas da lógica
neoliberal onipresente nas cidades - que nos penetra sem pedir licença, lúcidos de que não
desfizemos todos os nós que atravancam o direito inegável dessa população a esse território,
mas gratos pelos laços que se fizeram, e pelas potencias e percepções que emergiram durante
a construção da praça, do lugar demarcado, estabelecido e apropriado pelos moradores do
Recanto da Paz.

Referências

ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando
consensos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

BRENNER, Neil. “Seria o ‘urbanismo tático’ uma alternativa ao urbanismo neoliberal?”. e-metropolis.
Rio de Janeiro: Observatório das metrópoles (UFRJ), Vol. 27, N. 7, pp. 6-18. Disponível em:
<http://emetropolis.net/system/edicoes/arquivo_pdfs/000/000/027/original/emetropolis27.pdf?14859
98410>. Acesso em: 12 jan. 2021.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

INSTITUTO ELOS. Jogo Oasis, 2014. Disponível em:<https://institutoelos.org/jogooasis/>. Acesso em: 10


mar. 2020.

TAVOLARI, Bianca. Direito à cidade: uma trajetória conceitual. Novos Estudos, São Paulo, v.35, n. 1, ed.
104, pp. 92-109, 14 mar. 2016. Disponível em: <http://novosestudos.com.br/produto/104>. Acesso em:
23 fev. 2021.

1215
UM ESTUDO SOBRE SILENCIAMENTOS PATRIMONIAIS EM MACEIÓ/AL
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Patrícia Soares Vieira


Arquiteta e Urbanista pela UFAL; Mestranda em Dinâmicas do Espaço Habitado - PPGAU/UFAL;
patriciasvieira.arqurb@gmail.com.

Camila Gonzaga de Oliveira


Arquiteta e Urbanista pela UFAL; Mestranda em Dinâmicas do Espaço Habitado -
PPGAU/UFAL; arq1camilaoliveira@gmail.com

Bianca Machado Muniz


Arquiteta e Urbanista pela UFAL; Mestre em Dinâmicas do Espaço Habitado - PPGAU/UFAL;
Doutoranda em Cidades - PPGAU/UFAL;
bianca602@outlook.com

Laís Máximo Pessoa


Engenheira Civil pelo CESMAC; Designer de Interiores pelo IFAL;
laispmaximo@gmail.com

Maceió apresenta um considerável acervo histórico edificado, testemunhas da formação e


expansão da cidade. Entendendo o patrimônio histórico enquanto suporte dinâmico de modos
anteriores de vida de uma sociedade, podemos nos perguntar até que ponto nos representa.
São desdobradas questões de como ressignificar sem silenciar marcas de exploração e como a
falta de identidade e sentimento de pertencimento acontece ou não pela necessidade de
“valorização” por parte de políticas de preservação. Este artigo versa sobre como esta
problemática pode estar relacionada à forma como as pessoas se relacionam com os espaços,
a história e a memória. Apontamos como o olhar além da superfície pode nos auxiliar a
compreender e ressignificar o patrimônio sem silenciar a cidade e suas contradições.
Palavras-chave: Maceió; patrimônio; história; degradação; exploração.

Maceió presents a built historical collection, witnesses to the formation and expansion of the
city. By understanding historical heritage as a dynamic support in previous ways of a society,
we can ask ourselves to what extent it represents us. Questions unfold as to how to reframe
without silencing exploitation marks and how the lack of identity and feeling of belonging
happens or not due to the need for “valorization” by preservation policies. This article discusses
how this problem can be related to the way people relate to spaces, history and memory. We
point out how looking beyond the surface can help us understand and reframe heritage
without silencing the city and its contradictions.
Keywords: Maceió; patrimony; history; degradation; exploitation.

1216
1-Introdução
Apesar de ser uma cidade relativamente jovem, Maceió apresenta um considerável acervo
arquitetônico, testemunha dos vários acontecimentos pelos quais a cidade passou. Bairros
como Jaraguá, Centro, Bebedouro, mostram através de suas edificações de características
coloniais, ecléticas e/ou modernas fragmentos da expansão da cidade, que se tornou capital
do “estado” em 1839, destronando Alagoas do Sul, conhecida hoje como Marechal Deodoro.
Acessando fontes para compreensão da origem de Maceió como Costa (1981), situamos o que
chamamos hoje de bairro do Centro como um dos primeiros assentamentos da cidade,
especificamente o núcleo ocupado pela Praça Dom Pedro II, em que antes era ocupado por um
pequeno engenho de açúcar e uma capela com invocação de Nossa Senhora dos Prazeres. Em
torno das atividades mercantis em Jaraguá e os caminhos do comércio construídos pelo
desenvolvimento do Centro, foi possível a expansão da cidade para aglomerações mais
distantes como Bebedouro, Levada, Trapiche, Poço, Farol.
Dentro dessa contextualização, é possível enxergar nestes bairros da cidade fragmentos de
outros tempos em partes de seus acervos urbanos e arquitetônicos: alguns protegidos
institucionalmente, outros não. Apresentam uma diversidade e riqueza formal que seria, à
primeira vista, “conflitante” com a desvalorização material de muitos de seus conjuntos
institucionalmente protegidos e sua visibilidade pela cidade, no sentido da participação desses
acervos na construção de uma memória coletiva e/ou traumática.
Entendendo o patrimônio histórico enquanto suporte dinâmico material e imaterial de modos
anteriores de vida e organização social e política da sociedade, podemos nos perguntar, de
forma geral, até que ponto nos representam. Dessa questão podem ainda desdobrar questões
como: até que ponto as contradições e tensões entre memórias oficiais e memórias pessoais,
ancoradas por lugares históricos, permitem a ressignificação sem o silenciamento de histórias
de exploração? Até que ponto o conjunto materialidade e imaterialidade silenciam memórias
de exploração em detrimento de ressignificações e políticas de preservação focadas no
consumo desse patrimônio? Até que ponto uma falta de consumo e sentimento de
pertencimento se dá pela necessidade de “valorização” material do acervo urbano e/ou
arquitetônico por meio de incentivos de políticas institucionais de preservação?
Tendo em vista estas questões, este trabalho busca compreender a forma como esta
problemática pode estar relacionada à forma como as pessoas se relacionam com os espaços,
a história e a memória, o que seria uma forma de estudar a maneira pela qual memórias
coletivas são construídas, desconstruídas e/ou impostas.

1217
2 - Enquadramentos
Em Maceió, o plano diretor prevê como dispositivo de preservação do patrimônio cultural o
Artigo 52, que inclui edificações isoladas e também núcleos urbanos de diversos bairros, pelo
reconhecimento de seu papel como suporte urbano e arquitetônico de longa data:
Art. 52. Serão instituídas as seguintes Zonas Especiais de Preservação
Cultural: I – Jaraguá, coincidente com a ZEP 1 de Jaraguá já existente; II –
Centro, coincidente com a ZEP 2 do Centro, abrangendo nova delimitação;
III – Bebedouro, abrangendo o centro histórico de formação do núcleo,
incluindo a praça Lucena Maranhão, a igreja de Santo Antônio e o Colégio
Bom Conselho; IV – Fernão Velho, abrangendo o centro histórico do bairro,
incluindo a indústria têxtil, antiga vila operária, e a estação ferroviária; V –
Pontal da Barra, equivalente ao núcleo urbano de artesanato do bairro.
(PREFEITURA MUNICIPAL DE MACEIÓ, 2005, p. 26).

Figura 1: Demolição do Colégio Batista em 2013.

Fonte: Portal Alagoas 24 Horas, 2013.

Embora bairros como Jaraguá, Centro, Bebedouro e Fernão Velho sejam, no todo ou em parte,
contemplados por este instrumento de preservação, é perceptível o descaso que na prática é
destinado aos exemplares arquitetônicos de seus patrimônios edificados. Podemos citar uma
quantidade significativa de obras que, mesmo sendo protegidas por instrumentos normativos
como as ZEPs1 ou UEPs2, encontram-se degradadas, descaracterizadas ou até mesmo
demolidas, como exemplo do Colégio Batista Alagoano (figura 1), que funcionava há 94 anos
na Rua Aristeu de Andrade, no bairro do Farol. No local da escola foram construídos dois

1
Zonas Especiais de Preservação (PREFEITURA MUNICIPAL DE MACEIÓ, 2005).
2
Unidades Especiais de Preservação (PREFEITURA MUNICIPAL DE MACEIÓ, 2005).

1218
prédios residenciais. Com o instrumento da UEP foi possível preservar características materiais
originais da edificação da casa principal do colégio.
O bairro do Centro talvez seja um dos mais abundantes em termos de exemplares
arquitetônicos do patrimônio cultural maceioense. Entre eles podemos citar os conjuntos
edificados da Rua do Comércio, os conjuntos urbanísticos das Praças que envolvem edificações
como a Catedral, o Palácio Floriano Peixoto, o Teatro Deodoro, entre outras. Ao mesmo
tempo, pode ser o bairro onde há mais exemplares descaracterizados, inclusive devido às
intervenções visando à reutilização de prédios antigos, que foram convertidos em diversas
modalidades de lojas. Além das modificações realizadas no interior das construções, a
paisagem do centro comercial maceioense é dominada por letreiros e marquises (figura 2),
que divulgam produtos e que escondem os remanescentes ornamentais da arquitetura
alagoana do início do século XX. Mas Entretanto, ainda continua ilustrando a continuidade da
vocação comercial do bairro desde seus primórdios.

Figura 2: fachadas de parte do conjunto histórico edificado da Rua do Comércio escondidos


por letreiros e marquises.

Fonte: Acervo das autoras, 2019.

O bairro de Bebedouro, que também foi um dos primeiros núcleos da cidade, apresenta a
permanência de traçados mais antigos, edificações históricas protegidas oficialmente e
remanescentes de tradições culturais e religiosas. Teve seu crescimento originalmente no
entorno do Riacho do Silva — que deságua na Lagoa Mundaú — e funcionava como ponto de

1219
parada de mercadores da época de seu surgimento (CAVALCANTI, 1998). Seu conjunto
edificado apresenta notáveis edificações antigas, testemunho dos tempos em que Bebedouro
era um aglomerado urbano que atraía muitas pessoas a passar temporadas em períodos de
festividades ou residir permanentemente. Ao longo dos anos vem se depreciando
gradativamente, além de estar sendo fortemente atingido pela intensificação dos problemas
de subsidência urbana causados pelas atividades extrativistas da indústria petroquímica
Braskem. Um arrabalde que virou bairro e que desperta memórias, nomes que marcam ruas,
praças e edificações, além do imaginário quanto aos modos e hábitos de vida desde o início da
expansão da cidade.
Com o tempo, vivências cotidianas e edificações se esvaem de forma traumática do espaço
físico para habitar, talvez, o espaço das memórias de seus habitantes e passantes. Dessa
forma, não só os pontos de referências enquadrados institucionalmente nestes bairros, que
constroem parte da memória oficial da cidade, se encontram em arruinamento, mas também
os diversos mosaicos de memórias individuais contextualizados e atravessados pelas
edificações, espaços públicos, usos e relações cotidianas.
Nesse sentido, podemos entender que, quando a paisagem sofre alterações, a relação do
indivíduo com o espaço é afetada. A paisagem possui relação direta com suas memórias, sua
identidade e suas narrativas. As narrativas contam histórias construídas pelos sujeitos e situam
suas identidades no espaço e no tempo. Segundo Assumpção e Ferreira, as narrativas fazem
parte do próprio narrador, pois “é a sua representatividade na experiência existencial” (2017,
s/p). Para Benjamin (1987), as narrativas transmitem uma mensagem inteligível no âmbito de
um grupo cultural. Assim, elas contribuem, de certa forma, para a construção da memória
coletiva dentro de cadeias de significantes sociais e culturais comuns aos grupos”.
A memória, por sua vez, é indissociável da identidade. Não há construção
identitária sem memória, e vice-versa, porque a busca memorial é
constituída por uma identificação do eu que reordenará sua história. Os
espaços e a memória estão entrelaçados com a identidade na medida em
que as experiências rememoradas constroem um sentimento de
familiaridade com os lugares e as situações, sugerindo uma sensação de
pertencimento (DUARTE, 2020, p. 28).

Embora preserve importantes exemplares da arquitetura maceioense, dos quais podemos


destacar a Associação Comercial e o prédio do Museu da Imagem e do Som de Alagoas (MISA),
o bairro do Jaraguá (figura 3) também teve seu conjunto arquitetônico histórico e paisagístico
bastante desconfigurado, com o agravante de que, após sucessivas tentativas de revitalização,
Jaraguá parece se tornar cada vez mais esvaziado, inclusive devido a ações político-

1220
governamentais de remoção de moradores pobres como forma de diminuir a violência no
local, como aconteceu com a remoção da Vila dos Pescadores. O esvaziamento do bairro,
entretanto, traz um efeito rebote de maior sensação de insegurança por parte da população.

Figura 3: Esvaziamento no bairro histórico de Jaraguá.

Fonte: Portal G1 Alagoas

Embora seja evidente que este panorama é influenciado por questões bastante pragmáticas,
como políticas públicas e estratégias de governo, este artigo busca se deter na forma como
esta problemática pode estar relacionada à forma como as pessoas, atualmente, se relacionam
com os espaços, a história e a memória.

3-Identidade e Memória
Em seu ensaio “O Que É Contemporâneo”, Giorgio Agamben aborda a importância de se
buscar um distanciamento de seu próprio tempo, para que se possa perceber com clareza o
momento atual. O autor afirma que:
Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os
aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque,
exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar
sobre ela (AGAMBEN, 2009, p.59).

Deste ponto, podemos inferir que o conhecimento histórico, ou seja, um conhecimento mais
profundo sobre o passado, pode contribuir para perceber com mais clareza o momento
“presente”, uma vez que fornece referenciais diversos aos vividos atualmente. Pode contribuir,
por exemplo, para a noção de que a realidade atual não é o único caminho possível, pois, em
um momento passando, houveram problemas e soluções diversas. Da mesma forma, é
possível que no futuro, o que parece “absoluto” no momento presente, pode se revelar
predominantemente transitório.

1221
Partindo desse ponto de vista, as edificações históricas de uma cidade podem ser consideradas
testemunhos de momentos passados de um determinado lugar e exemplos concretos da
transitoriedade do momento presente. Ao mesmo tempo, espera-se que estas edificações
antigas sejam elementos geradores de identidades. Mesmo não apresentando uma definição
rígida para o termo “identidade” as pessoas falam de diferentes maneiras, sinalizam para o
grande número de bens representativos das pessoas do lugar: histórias de vida, memórias,
expressões, hábitos, cantares, contares, singular, perante as demais. Isso demonstra a
complexidade que envolve esse fenômeno.
Marc Augé, na obra “Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade”
(1994), ao discorrer sobre o efeito do que denomina “supermodernidade” na criação de
ambientes impessoais e transitórios, também aborda a ideia do lugar histórico, como exemplo
de lugar que pode gerar uma identificação. Diz ele:
Finalmente, o lugar é necessariamente histórico a partir do momento em
que, conjugando identidade e relação, ele se define por uma estabilidade
mínima. Por isso é que aqueles que nele vivem podem aí reconhecer
marcos que não têm que ser objetos de conhecimento. O lugar
antropológico, para eles, é histórico na exata proporção em que escapa à
história como ciência. (AUGÉ, 1994, p. 52).

O lugar ao qual o autor se refere, é o “lugar que antepassados construíram (‘mais me agrada a
morada que construíram meus avós...’)” (AUGÉ, 1994, p. 52). Ou seja, o lugar histórico é
aquele que faz parte da história pessoal do indivíduo, mais do que da história formal, científica
ou “instituída”. Poderá o maceioense, se espelhar nas edificações, consideradas exemplares
arquitetônicos relevantes do nosso patrimônio cultural? Tais edificações portam o cidadão a
memórias de sua trajetória?
Cabe ao próprio Augé lançar uma luz sobre essa questão. O autor aborda algumas
transformações que contribuíram para configurar o mundo contemporâneo. Uma delas é a
mudança da percepção do tempo, que não é mais um princípio de inteligibilidade:
A ideia de progresso, que implicava que o depois pudesse ser explicado
em função do antes, encalhou, de certo modo, nos recifes do século XX, ao
sair das esperanças ou das ilusões que acompanharam a travessia do mar
aberto no século XIX. Esse questionamento, a bem dizer, refere-se a várias
ocorrências distintas entre si: as atrocidades das guerras mundiais, dos
totalitarismos e das políticas de genocídio, que não atestam - e isso é o
mínimo que se pode dizer - um progresso moral da humanidade; o fim das
grandes narrativas, dos grandes sistemas de interpretação que
pretendiam dar conta da evolução de conjunto da humanidade, e que não
o conseguiram, assim como se extraviavam ou se apagavam os sistemas
políticos que se inspiravam oficialmente em alguns deles; no total, ou
além, uma dúvida sobre a história como portadora de sentido, (...) Se os
historiadores, na França, principalmente, duvidam hoje da história, não é

1222
por razões técnicas ou razões de método (a história como ciência fez
progressos), mas porque, mais fundamentalmente, eles sentem grandes
dificuldades não só em fazer do tempo um princípio de inteligibilidade,
como, mais ainda, em inserir aí um princípio de identidade. (AUGÉ, 1994,
p. 27).

Dessa forma, a história não é mais vista como uma narrativa do ”progresso” da humanidade,
mas diante de tantos acontecimentos lamentáveis, como as duas grandes guerras mundiais, e
as políticas de genocídio citadas pelo autor, é cada vez mais comum o conhecimento histórico
gerar uma repulsa pelos eventos que fazem parte de sua narrativa, e que muitas vezes, são
representados concretamente, por edificações históricas consagradas.
Outra ideia que o antropólogo aborda e denomina como “segunda transformação acelerada
própria do mundo contemporâneo, e a segunda figura do excesso, característico da
supermodernidade” (AUGÉ, 1994, p. 32), diz respeito a mudanças relacionadas às relações
com o espaço. A superabundância de espaço corresponde, segundo ele de forma paradoxal, a
um encolhimento do planeta.
Estamos na era das mudanças de escala, no que diz respeito à conquista
espacial, é claro, mas também em terra: os meios de transporte rápidos
põem qualquer capital no máximo a algumas horas de qualquer outra. Na
intimidade de nossas casas, enfim, imagens de toda espécie, transmitidas
por satélites, captadas pelas antenas que guarnecem os telhados da mais
afastada de nossas cidadezinhas, podem dar-nos uma visão instantânea e,
às vezes, simultânea de um acontecimento em vias de se produzir no outro
extremo do planeta. Pressentimos, é claro, os efeitos perversos ou as
distorções possíveis de uma informação cujas imagens são assim
selecionadas: elas não só podem ser, como se diz, manipuladas, como a
imagem (que não passa de uma entre milhares de outras possíveis) exerce
uma influência, possui um poder que excede de longe a informação objetiva
da qual ela é portadora. Além disso, é preciso constatar que se misturam
diariamente nas telas do planeta as imagens da informação, da publicidade
e da ficção, cujo trabalho e cuja finalidade não são idênticos, pelo menos
em princípio, mas que compõem, debaixo de nossos olhos, um universo
relativamente homogêneo em sua diversidade. (AUGÉ, 1994, p. 33, grifo
nosso).

A superabundância de espaço, corresponde, portanto, ao acesso fácil, constante e muitas


vezes imediato, de informações3, produtos e serviços provenientes das mais diversas
localidades. Dessa forma, qualquer pessoa comum é bombardeada diariamente por uma
quantidade absurda de informações, sendo inclusive exposta a influências de outras realidades
e práticas culturais, que frequentemente são “oferecidas” e divulgadas como um produto
passível de ser consumido.

3
Outro conceito abordado pelo autor: a superabundância factual. Cf. Augé, 1994, p. 30.

1223
As formas como um “lugar de cultura”, pode ser facilmente revertido em “estande comercial”,
são mostradas de forma marcante no relato de Didi-Huberman no livro Cascas (2017) que
relata a “visita” do autor a um antigo campo de concentração Aushwitz-Birkenau. Ao longo da
narrativa, podemos ver as intersecções entre o “lugar de cultura”, o “estande comercial”, mas
também o “lugar da barbárie”. De forma controversa, embora o local seja um memorial ao
holocausto, em outras palavras, o lugar foi, de fato, um lugar onde teve lugar a bárbarie,
atualmente, ao ser convertido num “lugar de cultura”, passa a ter muito mais identidade com
um lugar de comércio, onde pequenas memórias, a exemplo dos souvenirs, podem ser
compradas.

Figura 4: Edificação histórica no bairro de Bebedouro - Vila Lilota -


Hospital psiquiátrico José Lopes de Mendonça.

Fonte: RELU, 2020.

O Fragmento é força daquilo cuja natureza não conhecemos, daquilo que


não oferece qualquer garantia de atualização. O Fragmento semeia a
dúvida. (...) diz respeito a uma ordem incompleta e mutável, mas o
inacabado, a ausência de um conjunto, de uma totalidade, também incita à
exploração, à descoberta, o que os fragmentos têm de incompleto, de
inacabado, possibilita também outras associações (...) (JACQUES; DUTRA,
2015, p. 52-53).

O fragmento, como uma condição para a possibilidade da coexistência de conjuntos urbanos,


edificações, bem como seus topônimos, que evocam diferentes momentos e pessoas na
história dos lugares, nos permitem a exploração, a (re)descoberta de significados e narrativas
que vão além da superfície de características que constroem um “estilo arquitetônico” ou
conjunto de estilos. Em meio ao processo de esvaziamento e demolições no bairro de
Bebedouro, podemos ver na figura 4, em destaque, a permanência do antigo Hospital

1224
Psiquiátrico José Lopes de Mendonça4 na paisagem. Além de sua superfície, podemos nos
questionar também como a clínica pode ter sustentado formas de abuso, exploração e/ou
precariedades no tratamento psiquiátrico de seus pacientes antes das reformas psiquiátricas e
lutas antimanicomiais que buscavam tratamentos mais humanizados no estado (RIBEIRO,
2012).

4 - Considerações finais
Nesse sentido, nos perguntamos quantas outras edificações de nosso acervo histórico urbano
estiveram, de forma direta ou indireta, relacionadas a algum tipo de exploração, ou mesmo de
barbárie? Basta lembrar que a elite alagoana, por muitos séculos, foi principalmente formada
de senhores de engenhos de açúcar, e que à sombra da beleza e opulência das capelas e casas
grandes, permanecem obscuras as memórias do torturante processo de produção do açúcar,
que tinha na figura do escravo negro seu motor humano.

Figura 5: Cena do filme Bacurau com destaque para a mancha de sangue nas paredes do
Museu Histórico de Bacurau (MHB) que é deixada intacta durante limpeza após vários acontecimentos
violentos entre os habitantes e exploradores estrangeiros.

Fonte: Globo Filmes, 2019.

Exemplares arquitetônicos de longa data na cidade, sejam de forma direta ou indireta, eram
representantes dessa classe dominante e exploradora. Talvez em sua superfície e nas
dinâmicas atuais tenhamos dificuldade de acessar esse lado da história. Talvez as tentativas de
ressignificações como parte de uma política patrimonial acabam pondo o foco na preservação
de características materiais, no consumo superficial desse patrimônio, nas narrativas
dominantes quanto às formas de vivências nestes antigos espaços. “Bacurau” (Kleber

4
Um palacete, delimitado como UEP, que em 1914 foi a residência da família Leão e em 1962 adquirido
pelo médico José Lopes de Mendonça para residir e implementar sua clínica psiquiátrica (TICIANELI,
2020).

1225
Mendonça Filho, 130’, 2019) nos lembra como as memórias de barbáries, lutas, traumas
imprimem marcas na história de uma cidade (figura 5) e a importância de preservá-las. Um
olhar atento ao patrimônio histórico pode nos auxiliar a desvendar, compreender e
ressignificar sem silenciar a cidade e suas contradições.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

ASSUMPÇÃO, R. V.; FERREIRA, J. V. ST 7 Narrativas da cidade: uma aproximação entre memória coletiva,
cidade e literatura. Anais ENANPUR, v. 17, n. 1, 2017.

AUGÉ, M. Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994.


(Coleção Travessia do século).

BACURAU. Direção: Kleber Mendonça Filho, Juliano Dornelles. Pernambuco: Vitrine Filmes, 2019. (132
min).

BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987.

CAVALCANTI, V. R. La production de l’espace à Maceió (1800-1930). Tese de doutorado - Pantheon -


Sorbonne: Universite de Paris I, Institut D’étude du development économique et Social, 1998.

DIDI-HUBERMAN, G. Cascas. São Paulo: Editora 34, 2017.

DUARTE, C. R. S. Silêncio, memória traumática e ressignificação do lugar: o caso do Memorial da


Abolição da Escravidão de Nantes. In: DUARTE, Cristiane Rose; PINHEIRO, Ethel. (Org.). Arquitetura,
Subjetividade e Cultura. cenários de pesquisa no Brasil e pelo mundo. 1ed.Rio de Janeiro: Rio Books,
2020, v. 1, p. 12-29.

JACQUES, P. B.; Britto, F.D. (Org.). Memória, Narração, História. 1. ed. Salvador: EDUFBA, 2015. v.
1.168p.

PREFEITURA MUNICIPAL DE MACEIÓ. Plano Diretor – Maceió -Alagoas. Maceió: editora, 2005.

RIBEIRO, M. C. A Saúde Mental em Alagoas: trajetória da construção de um novo cuidado. Tese de


Doutorado - USP. São Paulo, 2012.

1226
VOZES DE UMA CATÁSTROFE URBANA: o que moradores de bairros em subsidência
em Maceió-AL têm a dizer.
Nó3 - O silêncio como esquecimento e mordaça.

Júlia Amorim Bulhões


Discente de Arquitetura e Urbanismo; Universidade Federal de Alagoas;
juliaabulhoes@gmail.com.

Caroline Gonçalves dos Santos


Doutora em Desenvolvimento Urbano; Professora adjunta da Universidade Federal de Alagoas;
caroline.santos@fau.ufal.br.

O presente trabalho discute o processo de desocupação de cinco bairros contíguos localizados


em Maceió, capital de Alagoas e o lugar de fala daqueles moradores que estão sendo retirados
às pressas de seus lares, mesmo em meio a pandemia da COVID-19. Objetiva-se verificar como
tem se dado a participação dos moradores em todo esse processo, a fim de debater o respeito
à memória como forma de minimizar os grandes impactos que a situação em si provoca. Para
tanto, recorreu-se a levantamentos iconográficos e documentais, experiências e observações
feitas na área, e entrevistas com ex-moradores dos bairros, buscando captar e compartilhar as
narrativas vivenciadas por cada habitante ante esta catástrofe urbana, inédita no país.
Palavras-chave: memória; desocupação; catástrofe urbana.

This work discusses the process of eviction of five contiguous neighborhoods located in Maceió-
AL and the standpoint of those residents who are being hurriedly removed from their homes,
even in the midst of the COVID-19 pandemic. The objective is to verify how residents have
participated in this whole process, in order to discuss respect for memory as a way of minimizing
the major impacts that the situation itself causes. To this end, we used iconographic and
documentary surveys, experiences and observations made in the area, and interviews with
former residents of the neighborhoods, seeking to capture and share the narratives experienced
by each inhabitant in the face of this urban catastrophe, unprecedented in the country.
Keywords: memory; eviction; urban catastrophe

1227
1 - Introdução
As narrativas diante da desocupação de bairros na cidade de Maceió, capital de Alagoas, têm
um marco inicial no dia 3 de março de 2018, quando moradores do bairro do Pinheiro e
adjacências relataram um tremor de terra que chegou à magnitude de 2.5 na escala Richter. O
tremor aconteceu após um período intenso de chuvas e intensificou o aparecimento de
rachaduras e afundamentos de solo em vias públicas e residências no local, posteriormente se
expandindo para os bairros de Mutange, Bebedouro, Bom Parto e mais recentemente, em 2020,
o bairro do Farol.
Tais acontecimentos demandaram estudos de investigação da Defesa Civil e da Companhia de
Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM) na área atingida e foram divulgados em maio de 2019,
onde apontam que a subsidência do solo ocorre devido a desestabilização do terreno,
consequência da exploração de sal-gema realizada pela empresa Braskem, mineradora que
funciona no estado de Alagoas há mais de 40 anos (BRASIL, 2019). Diante do avanço do processo
de afundamento do solo, os bairros atingidos passaram a ser locais de risco geotécnico e deu-se
início a desocupação e esvaziamento de áreas consolidadas na cidade.
Os bairros atingidos pela subsidência do solo são distintos entre si, cada um possui suas
particularidades culturais, econômicas e sociais, mas a população hoje compartilha de
experiências semelhantes por estarem deixando, de forma abrupta, suas casas, seus pontos
comerciais, vivências na área e vínculos com a vizinhança. Somado a esse doloroso processo de
mudanças, os moradores não têm tido voz e espaço para participar de forma ativa das decisões
tomadas pelo poder público acerca da desocupação e das propostas divulgadas para área
atingida.
Em meio a pandemia da COVID-19, a empresa responsável informou que até a primeira semana
de 2021, 9.400 famílias foram realocadas da área de desocupação em Maceió (BRASKEM, 2021),
sendo o número de pessoas que deixaram os bairros ainda maior, já que muitas delas se
mudaram por conta própria devido ao medo de permanecer em locais de risco e cada vez mais
desertos e inseguros. Este artigo tem como objetivo verificar como tem se dado a participação
desses moradores em todo esse processo, a fim de debater o respeito à memória como forma
de minimizar os grandes impactos que a situação em si provoca.
O trabalho baseia-se em levantamentos iconográficos e documentais, experiências e
observações feitas na área, utilizando o método da observação participante com a relação e o
convívio direto de uma das autoras com a situação em estudo, sendo ela uma moradora da
região atingida, e entrevistas realizadas com outros moradores dos bairros, buscando captar e

1228
compartilhar as narrativas vivenciadas por cada habitante e observar o atendimento ao direito
à memória em uma catástrofe urbana como esta, que é inédita para a cidade de Maceió.
Parte-se do pressuposto, abordado por Mendes (2016), que salienta que os acontecimentos
extremos, como desastres e catástrofes, revelam todo um trabalho político para colocar os
grupos e os indivíduos descartáveis fora das redes sociais e das comunidades nacionais
imaginadas, e que é papel, portanto, das ciências sociais, tornar visíveis as pessoas e os grupos
envolvidos, bem como participarem do esforço coletivo necessário para dar voz a essas pessoas
e esses grupos num processo político de cidadania plena.

2 - A origem do colapso urbano: causas do esvaziamento urbano


As transformações urbanas na área atingida se iniciam na década de 70, com a implantação da
empresa Salgema Indústrias Químicas S.A, hoje conhecida como Braskem, na cidade de Maceió.
Esta inserção demandou intervenções físicas, como a construção do Dique-Estrada – via com
cinco quilômetros de extensão às margens da Laguna Mundaú – no bairro do Pontal da Barra, e
gerou mudanças socioeconômicas na cidade. A orla lagunar e o entorno dos poços de exploração
da empresa, que estão localizados em três dos quatros bairros que hoje passam pelo processo
de desocupação - Pinheiro, Mutange e Bebedouro - sofreram com o processo de desvalorização
em decorrência aos possíveis vazamentos de produtos químicos e acidentes, que colocavam em
risco a população e o meio ambiente (DUARTE, 2018).
Com o crescimento populacional a ocupação dos bairros foi se intensificando e se estruturando
dentro da cidade, com conjuntos habitacionais, vias de fluxo intenso, equipamentos urbanos
importantes como escolas, hospitais, cemitérios e diversos pontos de serviço e comércio que
atendiam a população da área e de Maceió como um todo. Essa dinâmica passou a mudar a
partir de 2018 com a intensificação do aparecimento de rachaduras e afundamento de solo na
região, causando danos a imóveis e vias públicas, que segundo a CPRM deve-se a deformação
nas cavernas de mineração da empresa Braskem.
Antes mesmo da conclusão dos estudos feitos na área para a compreensão do fenômeno de
subsidência, imóveis já haviam sido desocupados dado o risco em que se encontravam. Os
moradores inicialmente receberam ajuda humanitária, cedida pelo governo federal, para arcar
com aluguel em outras localidades (PREFEITURA DE MACEIÓ, 2019). A área de risco vem sendo
atualizada desde 2019, com a divulgação de mapas de setorização, e passa a ter maiores
proporções a cada revisão, intensificando o processo de esvaziamento dos bairros e assustando
os moradores da região.

1229
Durante esse processo de incertezas, no decorrer das investigações e estudos feitos pelas
autoridades, a população residente da área atingida buscou ser ouvida através de atos pacíficos,
organizados pelas associações de moradores e sindicatos de trabalhadores, com o intuito de
pressionar o poder público por respostas em relação ao que estava acontecendo na área e para
que fossem tomadas as decisões cabíveis para solucionar as angústias dessas pessoas, que por
meio de cartazes de socorro e caixões pretos, buscavam denunciar a morte dos bairros em que
construíram suas casas e vivenciaram inúmeras memórias.
Os primeiros mapas divulgados em 2019 pela Prefeitura de Maceió dividiam a região atingida
entre monitoramento e realocação, onde 4500 famílias deveriam ser retiradas (BRASKEM,
2020), já em 2021 após atualizações da área de risco cerca de 15 mil imóveis devem ser
desocupados, afetando diretamente a vida de mais de 40 mil pessoas (FERREIRA, 2020). Em
janeiro de 2020 o Ministério Público Federal e Estadual divulgou um acordo com a empresa
responsável pela subsidência do solo onde definia um Programa de Compensação Financeira e
Apoio à Realocação, ofertado pela mineradora, em que prevê auxílio a desocupação, auxílio
aluguel no valor de R$ 1 mil reais, apoio psicológico e de assistentes sociais (BRASKEM, 2020). O
acordo foi estabelecido sem participação popular, e sofre muitas críticas dos moradores
atingidos, visto que não possuem voz diante da situação e estão sendo removidos de suas
residências sem o conhecimento do valor a ser recebido na indenização e quando irão obtê-lo.
Inicialmente o acordo contemplava 17 mil moradores de 4.500 imóveis, já em julho de 2020
foram incluídas mais 1.908 propriedades a serem desocupadas e no final de dezembro do
mesmo ano o Ministério Público divulgou um segundo termo aditivo do acordo com a empresa
Braskem, mais uma vez sem participação popular, nele foram incluídos mais imóveis no
Programa de Compensação Financeira que constam na área de realocação. Além desses imóveis,
a área de monitoramento passou a ser incluída no acordo, os moradores desse setor não
precisam deixar o bairro de imediato, mas irão sair até a data da compensação definitiva prevista
no Programa ou até 31 de dezembro de 2022, o que ocorrer primeiro (BRASIL, 2020).
Outro acontecimento que surpreendeu os moradores foi a divulgação, de forma extraoficial, nas
redes sociais, de um Plano de Ações Macroestratégias elaborado pela Prefeitura de Maceió para
os bairros atingidos. O Plano propõe aterramento de parte das margens da laguna Mundaú,
reposicionamento dos trilhos do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), manutenção das UEP’s
presentes na área de risco, implantação de uma grande área de reflorestamento e de uma
Estrada Parque na atual Av. Major Cícero, entre outras propostas. As ações devem ser

1230
executadas nos próximos 10 anos, mas dependem, entretanto, da estabilização do solo e
controle da sedimentação (PREFEITURA DE MACEIÓ, 2020).
O plano gerou indignação em parte dos moradores pela sensação de indiferença do poder
público para com a população que habitava aqueles locais ao planejarem e tomarem decisões
sem nenhuma consulta pública, e também por propor áreas de lazer como ciclovias, parques e
até mesmo o VLT na área que hoje é considerada de risco, como criticou em suas redes sociais
a bailarina alagoana Eliana Cavalcanti, que por 39 anos manteve uma academia de balé no bairro
do Pinheiro, mas que assim como outros atingidos, precisou abandonar seu local de trabalho e
ao ver as propostas chegou a dizer que “a cada dia que passa, o sofrimento aumenta porque a
indignação se agiganta.” (CAVALCANTI, 2020).

Figura 01: parte da encosta do Mutange desocupada.

Fonte: acervo pessoal dos autores, 2021.

3 - Vozes oprimidas
O ato de habitar um ambiente carrega muitos significados, entre eles muitas vezes há a intenção
de perdurar-se no local, a fim de criar laços e estabelecer relações duradouras, como define
Cunha (2013):

1231
Habitar quer dizer fixar residência, morar, estar presente em, no sentido de
frequentar. Por outro lado, morar também quer dizer demorar-se, no sentido
de tardar, de permanecer, de cativar, de aquerenciar-se ao lugar. (CUNHA,
2013, p.179)

Verifica-se tal intenção apresentada por Cunha (2013) por entre as falas de moradores dos
bairros atingidos. Elas expressam o peso da memória em habitar seus bairros por anos, em vários
casos até mesmo décadas, e a vontade de permanecer em suas moradias que por muitas vezes
significam um local de afeto e segurança mas que precisaram romper de forma abrupta com
esse planos e expectativas devido ao fenômeno de subsidência do solo, a exemplo da fala de
uma das entrevistadas, uma mulher de 60 anos de idade, que morou no bairro do Pinheiro por
mais de 40 anos e que quando comprou sua casa acreditava que iria viver ali até o final da vida,
e que hoje após precisar se mudar, sente falta da segurança em habitar um local conhecido,
conviver com seus vizinhos e enfatiza “(...) Independente do valor que eu vou receber, eu perdi
meu bairro, eu posso ter até uma casa melhor, mas o meu bairro nunca vai ser o mesmo (...) não
importa o tamanho do imóvel, pode ser uma mansão ou um casebre, mas a perda é igual para
todo mundo. A dor é a mesma.” (entrevista realizada em 08/09/2020).
Falas como essa são frequentes, porém pouco ouvidas, visto que a população que sofre com o
processo de desocupação não vem tendo participação nas decisões tomadas pelas autoridades
juntamente com a empresa responsável pela situação. Por isso, acabam por recorrer às redes
sociais e aos muros e paredes das próprias casas, desocupadas, para expressar seus sentimentos
e registrar suas histórias. Ao visitar os bairros desocupados, que por algumas vezes se
assemelham a um cenário de pós-guerra, com ruas desertas, casas destelhadas, sem portas e
janelas, esqueletos de edifícios que foram o lar de diversas famílias, é possível ler frases de
indignação, pedidos por justiça, declarações de saudade, desenhos e até mesmo registros de
uma árvore genealógica, como é possível observar na imagem abaixo, onde uma família
eternizou nas paredes de casa seus componentes que viveram por 52 anos naquele local.

1232
Figura 02: Registro de família em casa desocupada na área afetada pela subsidência do solo.

Fonte: acervo pessoal dos autores, 2020.

Outro fato que aflige moradores e usuários atingidos é o grau de repercussão da catástrofe por
entre a população maceioense, que parece não estar dando a devida atenção ao que vem
acontecendo, tendo em vista que cinco bairros da cidade já foram atingidos pelo fenômeno e os
problemas gerados por esta situação implica em mudanças para toda Maceió. Já que a cidade
perde equipamentos urbanos importantes como hospitais e escolas, a mobilidade urbana é
diretamente afetada com a interdição de avenidas, ruas e de parte do trilho do VLT, e pelos
milhares de moradores que estão deixando suas casas e migrando para outros bairros da cidade
modificando a dinâmica do mercado imobiliário local.
Esse incômodo é notório na fala da bailarina alagoana Eliana Cavalcanti que vem se posicionado
através de textos postados em suas redes sociais, em um deles ela faz um apelo à população
para que compartilhem e divulguem a situação em que se encontram os empresários e
moradores que ainda não receberam suas indenizações e passam por dificuldades financeiras
para bancar aluguéis em outras localidades e conclui dizendo “A tragédia não só pertence a cinco
bairros, mas é de toda Maceió. Quem sabe se mais bairros não serão afetados? A magnitude
desta tragédia não tem fronteiras. Isto aqui é um grito de socorro!” (CAVALCANTI, 2021).
É importante ressaltar o cenário de risco que essas desocupações estão sendo feitas, a autora
Spink (2018) aponta que “(...) risco é uma noção essencialmente moderna. Implica na
reorientação das relações das pessoas com eventos futuros, tornando-os passíveis de

1233
gerenciamento, sem mais deixá-los à mercê do destino.” (SPINK, 2018, p.179). Ainda assim, esse
é um entendimento pouco palpável para alguns moradores, que questionam o fato de serem
obrigados a deixar suas casas mesmo sem risco aparente, tornando ainda mais complicado o
processo de aceitação e luto. Destaca-se também que para além dos perigos gerados pela
subsidência da área, a população atingida está lidando com todas estas mudanças durante a
pandemia da Covid-19 e a recomendação de isolamento social, o que tem afetado ainda mais o
psicológico já abalado dessas pessoas.
Buscando dar voz e registrar parte da história desses moradores, surge o coletivo “A gente foi
feliz aqui”, um projeto visual idealizado pelo artista Paulo Accioly que realiza entrevistas com
pessoas que deixaram suas casas e através de colagens de fotografias busca reviver memórias
por entre os muros e paredes de lares desocupados. Em uma das publicações no Instagram, uma
das famílias atingidas por essa catástrofe fala sobre sua moradia:

“A nossa casa foi um sonho realizado. Foi um lugar escolhido com muito
cuidado, com muito carinho. Eu tenho registrado em minha memória a
primeira vez que entramos nela, naquele momento eu senti que ali seria o
nosso lugar. E foi. (...) o lugar que fez parte da nossa vida e que foi tirado de
uma forma tão cruel.” (A gente foi feliz aqui, 2020a)

Figura 03: Colagem de fotografia de garoto em sua casa, agora desocupada, no bairro do Pinheiro.

Fonte: Instagram do coletivo “A gente foi feliz aqui”, 2020b.

Essas memórias registradas pelo coletivo reproduzem também os vínculos que os moradores
ainda possuem com o bairro, mesmo os que já deixaram suas casas ainda enxergam a área como

1234
seu lugar de pertencimento, como é possível observar na fala de uma moradora entrevistada
pelos responsáveis do “A gente foi feliz aqui”:

“Enquanto não se define nossa situação de moradia, o Pinheiro representa


ainda a minha definição de "casa". Representa a estabilidade, a segurança, o
ver minha filha brincar com as amigas ao redor do prédio quando criança e
vê-la chegar a fase adulta nesse ambiente cercado de amizade e
companheirismo (...) E mesmo sob escombros e destruição, representa ainda
minha sensação de pertencimento.” (A gente foi feliz aqui, 2020c)

É comum ouvir de moradores que mesmo morando distante ainda voltam ao bairro de origem
para frequentar estabelecimentos comerciais que ainda estão abertos, academias, igrejas, como
forma de manter os vínculos estabelecidos ao longo dos anos, pois como coloca uma das
entrevistadas, moradora de 58 anos que vivia no Pinheiro desde os 11 anos de idade, “o bairro
é uma extensão da nossa família, a casa era uma extensão de nós e tudo tem uma história, tudo
que a gente viveu ali, é a nossa história de vida.” (entrevista realizada em 22/12/2020).

4 - Considerações finais
A população atingida nos bairros de Maceió sofre as consequências de uma mineração danosa
e negligenciada pelas autoridades fiscalizadoras, assim como aconteceu em Mariana e
Brumadinho, cidades de Minas Gerais que sofreram com tragédias decorrentes da exploração
extrativista.
Os acordos feitos pela empresa responsável pela catástrofe em Alagoas visam reparar os
atingidos por meio de uma compensação financeira, porém foram decididos de maneira não
democrática, sem participação das pessoas que foram afetadas diretamente e geram incertezas
sobre o futuro, ansiedade e esperas angustiantes, visto que os moradores são obrigados a deixar
seus imóveis sem previsão de quando e quanto irão receber por eles.
Os atingidos não vêm tendo voz ativa nas decisões tomadas acerca do território, que para eles
é patrimônio e lugar de identidade, memória e afeto. Tais vínculos estão sendo quebrados de
maneira violenta sem a possibilidade de participação no processo de retirada e realocação, o
que acarreta em sofrimento social e adoecimento emocional de uma população fragilizada, que
vive incertezas acerca de seu território há quase 3 anos.
Como exposto, os impactos sociais, além dos urbanísticos, econômicos e ambientais são
profundos, é necessária e urgente a escuta aos atingidos a fim de mitigar os danos no inevitável
redirecionamento do crescimento da cidade, com vistas a garantir o atendimento aos interesses
da coletividade.

1235
Referências
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Disponível em: <https://www.instagram.com/p/CGvEkIMr6H0/> . Acesso em: 30 jan. 2021.

A GENTE FOI FELIZ AQUI. [Menino e sua bicicleta]. 2020. Instagram: @agentefoifelizaqui. Disponível em:
<https://www.instagram.com/p/CFcbxoSpjs5/> . Acesso em: 30 jan. 2021.

A GENTE FOI FELIZ AQUI. Enquanto não se define. Maceió, 1 out. 2020. Instagram: @agentefoifelizaqui.
Disponível em: <https://www.instagram.com/p/CFztkjhJuEk/> . Acesso em: 31 jan. 2021.

BRASIL. Ministério Público Federal. Segundo termo aditivo ao termo de acordo para apoio na
desocupação de áreas de risco. Alagoas, 2020.

BRASKEM. Sítio da Braskem. 2020. Disponível em: <https://www.braskem.com.br/alagoas>. Acesso em:


11 jan. 2021.

CAVALCANTI, Eliana. Palhaços de um circo de horror. Maceió, 21 ago. 2020. Facebook:


@elianacavalcanti. Disponível em:
<https://www.facebook.com/eliana.cavalcanti.754/posts/3121891114605200>. Acesso em: 16 jan.
2021.

CAVALCANTI, Eliana. Um apelo necessário e urgente. Maceió, 29 jan. 2021. Facebook:


@elianacavalcanti. Disponível em:
<https://www.facebook.com/eliana.cavalcanti.754/posts/3556809941113313>. Acesso em: 30 jan.
2021.

CUNHA, Neiva. In: DUARTE, Cristiane; VILLANOVA, Roselyne. Novos olhares sobre o lugar: ferramentas
e métodos, da arquitetura à antropologia. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2013.

DUARTE, Rubens de O.; MANHAS, Adriana C. B. da S. A LAGUNA MUNDAÚ NO CONTEXTO URBANO DE


MACEIÓ (AL) A PARTIR DA IMPLANTAÇÃO DA SAL-GEMA INDÚSTRIAS QUÍMICAS S.A. In: REUNIÃO
ANUAL DA SBPC, 70., 2018, Maceió. Anais. Maceió: Sbpc, 2018. p. 1 – 4.

FERREIRA, Arnaldo. Estudos apontam que bairros começam a "afundar" em 2021: Geólogos dizem que
afundamentos começarão no mutange e bebedouro e sugerem interditar parte da lagoa. 2020.
Disponível em: <https://d.gazetadealagoas.com.br/cidades/294855/estudos-apontam-que-bairros-
comecam-a-afundar-em-2021>. Acesso em: 11 jan. 2020.

MENDES, J. A dignidade das pertenças e os limites do neoliberalismo: catástrofes, capitalismo, Estado e


vítimas. Sociologias, Porto Alegre, v. 18, n. 43, p. 58-86, dez. 2016. Disponível em:<
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-
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Prefeitura de Maceió. Ações nos bairros Bebedouro, Mutange e Pinheiro. 2019. Disponível
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Prefeitura de Maceió. Plano de Ações Estratégicas para os bairros: Bebedouro, Mutange, Pinheiro e
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de-reurbanizacao-para-areas-afetadas-por-instabilidade/>. Acesso em: 19 ago. 2020.

1236
Serviço Geológico do Brasil. Apresentação dos Resultados - Estudos sobre a Instabilidade do Terreno
nos Bairros Pinheiro, Mutange e Bebedouro, Maceió (AL). 2019. Disponível em:
<http://rigeo.cprm.gov.br/jspui/bitstream/doc/21133/1/relatoriosintese.pdf>. Acesso em: 07 dez.
2019.

SPINK, Mary Jane. Viver em áreas de risco: Reflexões sobre vulnerabilidades socioambientais. São
Paulo: Educ: Terceiro Nome, 2018.

1237
O silêncio
dos silentes,
dos mistérios...
Coloca-se aberto ao patrimônio e à introspecção, mas
também às manifestações culturais que aludem ao
imaginário, ao fantástico, ao sagrado. Pode se referir à
lacuna que abriga o silêncio: a pausa, o esquecimento
e o ocultamento que escapam, intencionalmente ou
não, dos processos de representação. Abrange
discussões que envolvem lendas, ritos, religiosidade,
àquilo que tende à impenetrabilidade institucional.
Aborda também o patrimônio na dimensão da imagem
e das sensorialidades; além daquela que pressupõe
deciframentos, como os processos de compreensão
das pinturas rupestres, da atribuição de autorias,
dentre outros.
A DIMENSÃO SIMBÓLICA DO MORAR: discutindo a Teoria da Casa a partir das
habitações da comunidade quilombola Volta do Campo Grande- PI
Nó4 - O silêncio dos silentes, dos mistérios.

Felipe Ibiapina
Arquiteto e Urbanista; doutorando – MDU/UFPE; pesquisador – NUSARQ
ibiapinafelipe@gmail.com.

Lúcia Leitão
Arquiteta e Urbanista; docente – MDU/UFPE; coordenadora – NUSARQ
leitao.lucia@uol.com.br.

Lia Pereira Sabino


Engenheira; doutoranda – MDU/UFPE; pesquisadora – NUSARQ
lia_sabino@hotmail.com.

Este trabalho, em caráter de ensaio, busca refletir sobre os valores intrínsecos ao morar, o
simbolismo da casa e seu papel na construção subjetiva dos sujeitos que nela habitam.
Interseccionando com a temática patrimonial, elege-se como objeto empírico a arquitetura
tradicional dos quilombolas da Volta do Campo Grande, comunidade situada na cidade de
Campinas do Piauí. Apresenta-se como problema de pesquisa, o questionamento: Quais os
elementos materiais e imateriais implicados no processo de identificação dos quilombolas da
Volta do Campo Grande com suas habitações? Compõem os procedimentos metodológicos,
estudos bibliográficos e documentais – com destaque para um relatório produzido pelo INCRA
–, observação direta, entrevistas e fotografias, realizadas durante uma visita feita pelo autor.
Palavras-chave: Arquitetura; Casa; Quilombo; Identidade; Pedra

This work seeks to reflect on the intrinsic values of living, the symbolism of the home and its role
in construction of the inhabitants subjectivity. Intersecting with the heritage theme, the
traditional architecture of the quilombolas of Volta do Campo Grande, a community located in
the city of Campinas do Piauí, is chosen as an empirical object. The following question arises as
a research problem: What are the material and immaterial elements involved in the process of
identifying quilombolas in Volta do Campo Grande with their homes? As a methodological
procedures, was used bibliographic and documentary researchs, direct observation, photos and
interviews made by the author during a visit.
.Keywords: Architecture; Home; Quilombo; Identity; Stone.

1239
1 – Introdução
Pensar a arquitetura como um fenômeno cultural, implica em uma consideração sistêmica dos
fatos arquitetônicos, em que elementos de ordem material e imaterial encontram-se
articulados. Este trabalho tem por intento ampliar o olhar sobre um objeto já estudado – as
habitações de pedra da comunidade quilombola Volta do Campo Grande, em Campinas do Piauí-
PI – investindo em uma nova problemática, subjacente à primeira.
A pesquisa pregressa de Siqueira (2014) investigou as técnicas construtivas vernaculares
utilizadas pelos quilombolas da comunidade Volta do Campo Grande. Observou-se, na ocasião
de uma visita de campo realizada no ano de 2013, tensões na paisagem cultural do quilombo,
oriundas da inserção de novas habitações padronizadas segundo o modelo genérico adotado
pelos programas de habitação social.
A avaliação da relação dicotômica entre tradição e contemporaneidade na paisagem da
comunidade tradicional pesquisada – a paulatina substituição das casas tradicionais de pedra
por novas moradias em alvenaria de tijolo, despersonalizadas – acarretou discussões da ordem
do patrimônio cultural, levando a pensar alternativas para conciliar progresso e memória.
Ademais, a pesquisa de Siqueira (2014) identificou que havia um apego das pessoas com relação
à moradia tradicional em pedra – expressada na resistência à mudança para as novas casas-
padrão em alvenaria de tijolos.
O exposto põe em evidência a função simbólica da casa, tema já explorado na literatura da teoria
da arquitetura. O presente artigo, de caráter ensaístico, busca na “Teoria da Casa”, nas
discussões teóricas relativas aos significados subjetivos do morar, um diálogo analógico, que
possa elucidar a questão referente ao caso concreto apresentado. Quais os elementos materiais
e imateriais implicados no processo de identificação dos quilombolas da Volta do Campo Grande
com suas habitações? Alguns relatos de moradores da comunidade quilombola sugerem que a
pedra, dentre outras funções – estruturais e estéticas –, exerce o papel de invólucro simbólico
da memória. Partindo de uma pesquisa documental e bibliográfica, intenta-se solver a
problemática apresentada, a partir da compreensão do que define a casa em sentido amplo.

2 – As habitações do quilombo Volta do Campo Grande


Em breve histórico, a formação do quilombo da Volta do Campo Grande se deu entre os anos
de 1885 e 1890 por escravizados fugidos e, posteriormente, por ex-escravizados libertos, que se
estabeleceram em parte do território das Fazendas Estaduais (na época, nacionais) Castello e

1240
Campo Grande. A extensa dimensão das fazendas, e a topografia acidentada do sítio escolhido
para a instalação do quilombo contribuíram para a eficácia do refúgio. O início da ocupação se
deu com a instalação de três famílias que constituíram os troncos genealógicos fundamentais
da comunidade. O critério familiar foi o principal regulador da implantação das habitações no
território – quanto maior o grau de parentesco, maior a proximidade (INCRA, 2006).
A tradição construtiva da comunidade da Volta do Campo grande caracteriza-se, sobretudo, pelo
uso da pedra não aparelhada e variantes híbridas com a utilização do barro. Observa-se no
território quilombola exemplares arquitetônicos executados exclusivamente em pedra, a partir
da técnica do canjicado, com a pedra aparente sem nenhum recobrimento e, nos modelos
híbridos, associa-se a pedra com a taipa de mão, utilizando esteios verticais de madeira e barro
como elemento ligante (SIQUEIRA, 2014).
As variações na técnica tradicional das construções em pedra podem ter sido mobilizadas por
alguns fatores, dentre eles, o processo de reconstrução das casas – o costume de se reconstruir
a casa herdada dos pais e avós, realocando a habitação no território. Concernente a isso,
durante as reformas mais recentes, é provável que o uso misto da pedra com a taipa tenha se
apresentado como uma necessidade, seja pelo fato de não se achar tão facilmente pedras que
pudessem se encaixar na estrutura das vedações verticais ou pelo fato do conhecimento da
técnica construtiva original ter se esvaído no tempo (SIQUEIRA, 2014).
Um segundo ponto diz respeito às frestas, comuns às vedações de pedra, e sua contribuição
para a insalubridade do meio, uma vez que se transformam em habitat para o inseto barbeiro,
hospedeiro da Doença de Chagas que é causa de muitas mortes entre os moradores da região.
Apesar da taipa não garantir uma grande eficiência na proteção da residência contra o barbeiro
por estar sujeita a rachaduras, ainda assim, se mostra como uma alternativa na tentativa de
aprimorar a vedação dos fechamentos laterais, podendo ser esse um dos motivos do seu uso
misto com a pedra (SIQUEIRA, 2014).
Na Figura 01, apresenta-se um exemplar arquitetônico da técnica hibrida da pedra com a taipa.
Nesta, são usados esteios verticais de madeira para garantirem maior aderência do barro e
armarem a estrutura. Troncos, como o de carnaúba ou no formato de forquilha, são adossados
à parede e são eles que garantem a sustentação da cobertura que é composta por telha
cerâmica disposta em duas águas, com ripas feitas de bambu, caibros e terças com toras de
madeira redonda da região. O uso da telha cerâmica é um dado da modernidade, uma vez que
no passado, de certo, a coberta era executada com fibras vegetais. O piso em estado bruto é
feito de barro batido. As portas e janelas contam com portais que garantem sua estruturação.

1241
As divisões internas ficam por conta de meias paredes. Com vista a coibir a presença do
hospedeiro da Doença de Chagas, algumas paredes são rebocadas com argila. No caso ilustrado,
observa-se que o reboco e a caiação na parede da fachada principal atuam, também, como
artifício de diferenciação estética (SIQUEIRA, 2014).

Figura 01: Arquitetura tradicional quilombola na comunidade Volta do Campo Grande.

Fonte: acervo pessoal do autor (2012).

Conforme apontado na introdução, na última década, alguns moradores foram contemplados


pelo Governo Federal com casas populares que se enquadram no padrão da habitação de
interesse social, construídas com alvenaria de tijolos de furo. Os beneficiados, apesar de terem
ganhado uma moradia de “melhor qualidade” – destaca-se a ressalva porque não se coaduna
com essa valoração insuflada no senso comum, que representa os ideais tecnocráticos moldados
em critérios técnicos e estéticos de base racionalista –, passaram a se dividir entre as duas casas,
utilizando a nova como abrigo e a tradicional em pedra como morada, onde passavam o dia.
Diante dessa breve descrição acerca do objeto empírico, segue uma reflexão acerca dos
significados dicotômicos abrigo/morada referentes ao significante casa e o sentido simbólico da
mesma.

3 – A função simbólica da casa


A distinção entre os significados de abrigo e morada que fazem referência ao significante casa,
encontra ancoragem no plano do simbólico. Com efeito, os significados arrolados fazem jus a

1242
sentidos distintos: enquanto que o abrigo está mais próximo dos aspectos tangíveis, tal como a
proteção contra as intempéries, a morada compreende o invisível, subjacente às necessidades
subjetivas dos sujeitos.
Ao tratar da casa, a partir da leitura feita por Rykwert em “Casa de Adão no Paraíso”, Leitão
(2007, p.65) acentua que “muito além da materialidade que mais facilmente a caracteriza, a
construção da casa humana é, na verdade, um espaço para a alma”. Ou seja, ainda que o
significado de abrigo, viés funcionalista relativo à salvaguarda física do corpo, sobrevenha com
mais facilidade à mente consciente quando se faz menção à casa, existe um outro significado,
ainda mais amplo, que – ousa-se dizer – traduz a ontologia da casa: o de espaço para a alma,
para se demorar, para retornar, para se reconhecer.
A casa que constitui morada humana pode servir de abrigo, mas o contrário nem sempre é
verdade. O “abrigar-se” não é uma condição exclusiva da espécie humana e animais também o
fazem, tanto que nos primórdios não haviam grandes distinções entre o modo como estes e os
hominídeos se abrigavam: as cavidades naturais, cavernas, buracos, etc.
Fazendo uso de uma narrativa alegórica, Vitrúvio (1787) conta que os homens viviam em meio
à natureza, dividindo o espaço das selvas, grutas e bosques com as feras. Com o advento da
descoberta do fogo, algumas mudanças teriam ocorrido na vida do homem primitivo, tal como
a proteção contra o frio e a defesa contra os animais ferozes. Em razão desses condicionantes,
deu-se um princípio de agregação que acarretou no desenvolvimento da linguagem e no
surgimento das primeiras construções.
Em tese – constitui o pressuposto temático que tem orientado as pesquisas do Núcleo de
Estudos da Subjetividade na Arquitetura-NUSARQ/UFPE –, a função abrigo se torna insuficiente,
florescendo a noção ampliada de casa, à medida que emerge a linguagem e o humano se insere
na ordem do simbólico.
Um sem fim de significados subjetivos podem ser atribuídos à casa. A experiência do morar,
ainda que parta da coletividade e do convívio com o Outro, se desenvolve particularmente em
cada indivíduo, ensejando que as atribuições de valor e a significação da morada opera de modo
diferente para cada um.
Todavia, para o entendimento de uma noção ampla e geral da casa – à guisa de uma reflexão
ontológica que, não necessariamente, exclui a noção particular –, recorre-se à teoria da
arquitetura, adotando como referência as definições de espaço anteriormente citadas: espaço
para a alma, espaço para se demorar, espaço para retornar, espaço para se reconhecer.

1243
De início, elucida-se que o espaço aqui referenciado é, necessariamente, o espaço da arquitetura
e, enquanto tal, “se define por um vazio, que o constitui em consequência de uma ação humana
compositiva” (LEITÃO; LACERDA, 2016, p.809). A partir desse entendimento, é possível fazer a
primeira distinção ontológica entre casa (sentido amplo) e abrigo. A casa, ao contrário do
abrigo, é uma construção humana, fruto de uma intencionalidade geradora, uma ideia original
– arkhé – que se consubstancia na matéria – tékton.
Entre os antigos – utiliza-se como referência as civilizações grega e romana, raiz ancestral da
cultura Ocidental – a casa era a morada dos mortais e dos seus ancestrais, representados pelo
fogo sagrado. É pressuposto que o culto aos mortos – associado ao fogo sagrado influenciou na
configuração primeva da casa e, foi por ela influenciado, em uma dinâmica de correspondências
recíprocas. Em decorrência da religião doméstica, os antigos gregos e romanos tiveram a
necessidade de uma moradia perene. Eles acreditavam que o morar era uma condição
inalienável, a qual não cabia finitude. Nas palavras de Coulanges (2002, p.69): “levantavam-se
as paredes em redor do altar para o isolar e defender [o fogo sagrado], e podemos afirmar, como
os gregos, que a religião ensinou a construir a casa”. Esse laço entre a casa e o sagrado conota
a qualidade do espaço arquitetônico enquanto morada da alma. O simbolismo do Lar transcende
a existência material, o que pode ser exemplificado a partir da dupla referência ao significante
Lar, que tem como significados a casa e o deus – este associado ao fogo sagrado e aos
antepassados mortos.
Hodiernamente, ainda que não haja o fogo sagrado, a memória dos antepassados mortos
subsiste no lar, seja em relíquias materiais ou na cultura transgeracional que integra os
descendentes e a ancestralidade. Portanto, ainda faz sentido pensar na casa como o espaço para
a alma, sobretudo se essa alma, mais do que referenciar o morto, disser respeito ao ser vivente,
ao mortal que ali habita.
O referido habitar é tratado em sentido amplo que, no olhar de Heidegger (1951/2012), consiste
em uma condição dos mortais de demorar-se sobre a terra. Concordando com a posição do
filósofo de que só é possível habitar o que se constrói, defende-se que o espaço construído – e
a casa pode ser considerada o exemplar fundamental – é parte de todas as experiências vividas
pelo humano em sua “demora”. Analogamente, diz Coutinho (1977, p.210) que “o espaço
interior [arquitetônico] é de si mesmo a ilustração de uma conjuntura filosófica: a de ser
presente em alguma parte”.
Uma outra interpretação que pode ser dada à casa enquanto espaço para alma e espaço para
se demorar, diz respeito à sua função de sucedâneo do útero materno, suscitada por Freud.

1244
Acerca desta, diz Leitão (2007, p.66): “o espaço da arquitetura se fez por não se poder evitar.
[...] porque uma memória, inconscientemente inscrita no psiquismo, guiou o humano em
direção às cavidades”, em uma tentativa de reconstituir o espaço intrauterino.
Mumford (1989) rememora que no antigo Egito, o hieróglifo (significante) que se relacionava
com o significado de mãe, era o mesmo de casa, o que reforça a tese freudiana. O espaço para
retornar, aqui atribuído à casa, diz respeito à tentativa (sem êxito) do sujeito aplacar a angústia
primordial, através do retorno para a condição de completude que é o estado intrauterino ou,
pelo menos, a fase psíquica de indiferenciação mãe-bebê (que vai do nascimento até os
primeiros meses de vida). “Repensando a natureza da angústia, Freud descobre, no desamparo
primordial do nascimento, a angústia na sua forma originária – a Urangst. Ela se repete nas
diversas formas de angústia de separação que nos acompanha do nascimento à morte” (ROCHA,
1999, p.339).
Assim, como uma sina perpétua, o sujeito vivencia uma busca pelo caminho “de volta” à
completude. A casa – enquanto arquitetura, espaço que inclui o humano e espaço para retornar
– “[...] permite reviver a ilusão de volta a espaços, tempos e memórias que um dia foram caros
ao ser humano, quer individual, quer coletivamente falando” (LEITÃO, 2007, p.67).
Por fim, apresenta-se a perspectiva de casa como espaço para se reconhecer, fundamentada na
analogia casa-espelho, cuja proposta é lançar uma visão ampla sobre o fato arquitetônico,
integrando espaço e forma – ponto essencial diante do intento de analisar a arquitetura
quilombola em pedra. Refletindo, a partir da teoria lacaniana, Leitão (2011, p.63) defende que
“os desenhadores do mundo imprimem as linhas do seu rosto na forma que produzem porque
essa é a imagem que trazem impressas em si mesmos como parte da experiência psíquica de
estruturação do Eu”. Portanto, se existe uma componente de não-intencionalidade integrada ao
processo de produção do espaço, tal como a construção da casa, e essa componente reflete
aspectos da subjetividade individual ou – em maior escala, de grupo –, é presumível que a
arquitetura standartizada não gere empatia, como se observa no caso concreto em estudo.

4 – Considerações Finais
Os relatos de alguns habitantes da Volta do Campo Grande reforçam os significados simbólicos
que foram alçados para definir o sentido amplo de casa. O primeiro ponto diz respeito ao fato
de que técnica tradicional das construções em pedra, e suas variações com o barro, foi aprendida
com os antepassados. Ou seja, destaca-se o “saber construtivo” como um elo transgeracional, o
que por si só, justificaria o “apego à tradição”, e o porquê da casa tradicional de pedra gerar

1245
identidade nos moradores e as casas padronizadas de tijolos não. Todavia, destaca-se que, para
além da técnica que é “lembrada”, coexistem memórias difusas, transgeracionais, que se
expressam no ato construtivo como as “linhas do rosto”.
Outro ponto diz respeito ao costume, presente entre os quilombolas da Volta, de reformar suas
habitações utilizando como matéria-prima as pedras reminiscentes de outras construções que
lhes foram herdadas de seus pais e avós. Ou seja, constitui uma prática recorrente a demolição
de casas antigas e o reaproveitamento dos seus materiais construtivos nas reformas de
ampliação ou, até mesmo, na construção de novas casas. A mesma pedra que sustentava a
habitação dos antepassados passa a ser utilizada pelos descendentes e, assim, de algum modo,
se mantém uma continuidade que extrapola a imaterialidade do “saber fazer técnico” e da
memória transgeracional inconsciente, agindo na concretude da matéria, a pedra. Tudo isso faz
pensar que a pedra além de portadora das propriedades naturais que lhes são próprias, mostra-
se também como um elo entre os antigos habitantes do quilombo e os atuais, seja em sentido
literal, quando na ocasião de reconstruções, seja encarnando em si uma parte importante da
memória do grupo.
A partir do significado simbólico da casa, algumas hipóteses são levantadas – sem intento
resolutivo – a pedra (fundamental), em sua materialidade, traria para o espaço interno da
morada a presença do pai morto (da mãe e dos demais ancestrais que partiram), tal como
acontecia com o fogo sagrado? A partir daí, seria reforçado o caráter da casa enquanto espaço
para a alma e espaço para retornar? A componente tectônica da casa, figurada nas qualidades
materiais da pedra criaria uma ambiência de familiaridade, considerando que há gerações “é
assim que se mora”? Novamente, isso reforçaria o caráter de espaço para retorno e para se
reconhecer?
Apesar de conclusões não serem possíveis – tampouco houve essa pretensão –, em resposta ao
problema de pesquisa levantado, entendeu-se que a identificação dos quilombolas da Volta do
Campo Grande e suas habitações: (1) perpassa a materialidade e expressão tectônica da
construção em pedra, parte integrante do modelo arquitetônico tradicional; (2) tem conexão
com o fato da pedra portar um valor simbólico equivalente à relíquia, fazendo memória aos
antepassados, e outros valores simbólicos que se desconhece mas que encontram ancoragem
na cultura local; (3) decorre da possibilidade de expressão através da técnica construtiva e da
fruição subjetiva.

1246
Referências

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COUTINHO, Evaldo. O espaço da arquitetura. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977.

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Conferências. Petrópolis: Vozes, (1951/2012), pp. 125-141.

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Remanescente de Quilombo Volta do Campo Grande. Teresina, 2006.

LEITÃO, L.; LACERDA, N.. O espaço na geografia e o espaço na arquitetura: reflexões epistemológicas.
Caderno das Metrópoles, V.18, N.17, pp. 803-822, 2016.

LEITÃO, L.; “Uma relação especular: anotações sobre a dimensão imaginária da arquitetura”. RISCO. São
Carlos: IAU-USP, Vol.13, N.1, pp.58-64, 2011.

LEITÃO, L.. Entra na tua casa: anotações sobre arquitetura, espaço e subjetividade. In: A casa nossa de
cada dia. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2007. pp. 49-69.

MUMFORD, L.. The City in History. New York: Harcourt, 1989.

ROCHA, Z..“Desamparo e metapsicologia: para situar o conceito de desamparo no contexto da


metapsicologia freudiana“. Síntese- Revista de Filosofia, V.26, N.86, 331-346, 1999.

SIQUEIRA, F.I.M.R..; “Quilombo de pedra: análise arquitetônica da comunidade quilombola Volta do


Campo Grande”. Ciências e Saberes: série científica. Vol.4, pp.71-80, 2014.

VITRÚVIO. Los Dies Libros de Architectura. trad. J. Ortiz y Sanz. Madrid: Imprenta Real, 1787.

1247
A INVENÇÃO DO BRASIL ENTRE A ADORAÇÃO E A DOMINAÇÃO DO ÉDEN TROPICAL
Nó4 - O silêncio dos silentes, dos mistérios.

Maria Clara Oliveira Santos


Doutora em Direito pela UFMG;
professora adjunta do Departamento de Ciências Sociais da UFSJ;
mariaclara@ufsj.edu.br.

Se há um nascedouro do Brasil, este se dá se deu por olhares outros que foram também
desenhando as paisagens brasileiras, e que se alicerçaram em um conceito de harmonia do
cosmos refletida em relatos que adotam o motivo edênico como temática estável na “longa
narrativa” daqueles que descrevem as maravilhas encontradas em terra brasilis. Estas
xenonarrativas, então, estabelecem um contraponto entre a natureza exuberante e pródiga dos
trópicos e as características não tanto elogiáveis dos seus habitantes e seu impulso de destruição
da natureza. Tal dicotomia entre adoração e dominação marca o embate entre o mito edênico
e o mito satânico na descrição que os brasileiros passarão a fazer de si próprios e de seu país.
Palavras-chave: narrativas históricas; paisagem cultural; motivo edênico

If there is a birthplace in Brazil, it is due to those foreigner’s view that have also drawn Brazilian
landscapes, and that are based on a concept of harmony of the cosmos that reflects in an
adoption of the Edenic motif as a stable theme in the “long narrative” from those whom describe
all the wonders found in terra brasilis. These xenonarratives establish a counterpoint between
the exuberant and lavish nature of the tropics and that less praiseworthy characteristics of
Brazil’s inhabitants and their impulse to destroy nature. Such a dichotomy between worship and
domination clashes the Edenic myth and the Satanic myth in the description that Brazilians will
start to make of themselves and their country.
Keywords: historical narratives; cultural landscape; Edenic motif.

1248
1 – Um país precisa nascer, e nascerá de sua paisagem
Se há um nascedouro do Brasil, este se dá se deu por olhares outros que foram também
desenhando as paisagens brasileiras. As principais narrativas sobre as origens e características
do país – os termos lavrados em suas inúmeras certidões de nascimento - exaltam a graciosidade
natural da terra. Dos primeiros escritos do colonizador europeu até as narrativas estrangeiras
apressadas sobre as terras e seus povos, a temática do motivo edênico mantém-se estável como
mediadora do léxico de informações que se repetiam para desvendar a paisagem, seus
elementos e personagens, compondo um senso comum europeu sobre o Brasil e os brasileiros,
de modo a conformar também a imagem que os brasileiros tinham de si. É nessa meta-
paisagem, onde se mesclam a experiência social e o enquadramento social dos valores do
imaginário em contraposição aos valores do personagem, que encontram abrigo inúmeras
análises sobre o caráter do brasileiro, forjando um contexto que extrapola aquilo que é o visível.

2 – O paraíso como visão e como identidade para o Brasil


O caráter simbólico da paisagem é ponto de convergência nas narrativas acerca da identidade
nacional brasileira. Da carta de Pero Vaz de Caminha, no “descobrimento”, passando pela
ufanista Canção do Exílio de Gonçalves Dias, chegando aos dias atuais, elementos naturais
instituem-se como centrais na relação que os colonizadores, os colonos, os estrangeiros e,
futuramente, os brasileiros travam com o território.
Pode-se falar de uma invenção do Brasil à medida que esse enunciado remete a uma construção
imaginária de sentido, endossando uma comunidade simbólica de pertencimento criada, não só
pelo olhar de si mesmo, mas antes e também pelo olhar do outro. “As identidades, como
invenções imaginárias, com um lado prosaico e apoiado no cotidiano da vida, e outro no
maravilhoso, remetem bem à figura metafórica do espelho, que é tanto mimetismo quanto
imagem” (PESAVENTO, 2004, p.2).
Também nestas terras de cá, encontram-se as características marcantes da relação europeia
com a paisagem (SEVCENKO, 1996) uma percepção sensorial que a coloca como objeto
desejante a ser exaltado nas artes, e uma prática agressiva e predatória, que irá marcar o
processo de desbravamento do território. O movimento que Petrarca realiza no Ventoux será
repetido inúmeras vezes por outros que, ao aventurar-se no Brasil, tinham por fim contar uma
história que se liga irremediavelmente ao deslumbramento e ao enfrentamento da natureza.
Essa perspectiva se fundirá em narrativas de uma visão que traduz o Brasil em uma razão

1249
edênica, alicerçada na laudatória crença ibérica de um paraíso terreal que poderia ser
encontrado nas zonas recém descobertas do Novo Mundo.
Muito provavelmente, a obra que mais se destaca na análise dessa construção de um imaginário
edênico é Visão do Paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda, publicada em 1959 (2010). O autor
de Raízes do Brasil amplia de modo notável as fontes documentais ao traçar um novo paralelo
entre espanhóis e portugueses1, de modo a estabelecer a “história de uma ideia” (HOLANDA,
2010, p. 24) que parte dos motivos que estavam inscritos no livro do Gênesis e teriam se
incorporado ao imaginário dos povos cristianizados (LIMA in EUGÊNIO; MONTEIRO, 2008) que
os reproduzira quando da representação imagética e textual das áreas recém descobertas e
conquistadas. Seleciona, então, relatos que, ao desvendar a paisagem, cobrem-na também de
adjetivos esplendorosos, coloridos, perfumados, ressaltando os aspectos sensíveis dessa
narrativa (FRANCO in EUGÊNIO; MONTEIRO, 2008). Para o autor, a visão do Éden faz parte do
universo mental europeu quinhentista (TUNA in EUGÊNIO; MONTEIRO, 2008).

A mentalidade da época acolhe de bom grado alguns modos de pensar de


cunho analógico, desterrados hoje pela preeminência que alcançaram as
ciências exatas. Em tudo discernem-se figuras e signos: o espetáculo terreno
fornece, em sua própria evanescência, lições de eternidade. A Natureza é, em
sua, o “livro da Natureza”, escrito por Deus, e, como a Bíblia, encerra sentidos
ocultos, além do literal. Até a razão discursiva, feita para uso diário, deixa-se
impregnar, não raro, da influência do pensamento mítico, e entre os espíritos
mais “realistas” encontram-se as marcas dessa atitude, que traz no bojo um
sentimento vivo da simpatia cósmica (HOLANDA, 2010, p. 118).

É a partir da comparação sobre o Paraíso Terreal que Sérgio Buarque constrói todo o seu texto,
verificando uma “uma maior ressonância dos mitos edênicos entre os textos dos conquistadores
da América Espanhola do que entre relatos de portugueses que tratam do Brasil”. Os cronistas
lusitanos, então, vislumbravam as belezas naturais como elementos a serem conhecidos e
explorados a fim de gerarem mais riquezas. O pragmatismo português dava preferência a narrar
o visível, o cotidiano, e a realizar exercícios de dominação da natureza. Embora impressionados
com a grandiloquência da fauna e da flora tropicais, a série de descobrimentos anteriores, na
África e na Ásia, “haviam contribuído para o esmaecer de lendas” (TUNA in EUGÊNIO;
MONTEIRO, 2008, p. 509). Nesse sentido, se tanto entre portugueses e espanhóis era possível
encontrar no século XVI lendas e crenças acerca da fonte da juventude, de homens imortais, e

1
Uma análise semelhante entre os dois povos já havia sido delineada pelo autor quando da escrita do
capítulo O semeador e o ladrilhador, na obra Raízes do Brasil. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do
Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 93-138.

1250
de um paraíso tal qual descrito na Bíblia, com eldorados, amazonas, serras de prata, os
espanhóis foram mais profícuos em difundir tais lendas no mundo das Índias de Castela,
enquanto que na América Portuguesa tais mitos eram filtrados e ofuscados (HOLANDA, 2010) a
partir das experiências trazidas das viagens anteriores. “Assim, os mitos em torno do paraíso
terrestre ganhavam ares fantásticos e se consubstanciavam em idealizações maravilhosas entre
os espanhóis, enquanto, entre os portugueses, perdiam a cor e se colavam à experiência
imediata” (WEGNER in BOTELHO; SCHWARCZ, 2009, p. 221).
Sérgio Buarque não tinha dúvida de que os cronistas lusos ficavam admirados
com a natureza que viam aqui. Mesmo para os olhos mais experimentados, o
cenário que se apresentava no Novo Mundo guardava seus segredos e
particularidades. O novo espaço desconhecido, entretanto, para os
portugueses, precisava ser desbravado, conhecido através da experiência, a
fim de dele se tirar o melhor proveito possível. (TUNA in EUGÊNIO;
MONTEIRO, 2008, p. 513-514).

Uma leitura otimista pode fazer crer que os portugueses estariam, então, mais influenciados
pelos ares do Renascimento que avançavam pela Europa; mas não é essa a aposta de Sérgio
Buarque de Holanda. Para o professor catedrático da USP, embora mais prosaicos, mundanos e
secularizados que os espanhóis (FRANCO in EUGENIO; MONTEIRO, 2008), os portugueses faziam
leituras pedestres, e principalmente no campo das artes era visível uma série de permanências
medievais (TUNA in EUGÊNIO; MONTEIRO, 2008). O humanismo renascentista crescente parece
ainda não refletir suas abordagens culturais em terras lusitanas. De todo modo, o pensamento
aturdido sobre a grandiosidade da natureza em terras tropicais irá perdurar aos séculos
seguintes, ainda que mediado pelas novas construções filosóficas que passam a moldar o Velho
Mundo.
A filosofia europeia entronca nas grandes construções sistemáticas da
filosofia da natureza elaboradas entre Iluminismo e Romantismo, para as
quais remete em última instância o pensamento da paisagem. O cruzamento
de natureza e cultura longamente sedimentada pela pintura e literatura, ou
pela arte dos jardins, não considera problemática a reunião de Natureza,
Cultura e História, que encontram precisamente na paisagem um momento
concordante. Pode acentuar um ou o outro dos pólos, consoante as correntes
mais naturalistas ou mais culturalistas, pode celebrar as manifestações
sublimes e selvagens ou a modelação humana dos lugares, mas não se detém
na ficção de um estado de natureza intocado (SERRÃO, 2014, p.25).

A relação com o território, a natureza, o povo que habita e explora a terra passa a ser ponto
referencial para todas as narrativas iniciais sobre o Brasil. A identidade do Novo Mundo é
atribuída pelo olhar do outro, europeus que vieram para representar essas relações e enviá-las,

1251
como notícia, imagem, relato ou alegoria, aos cobiçosos reis que aguardavam maiores
informações sobre seus projetos de exploração nas Américas. Os autores dessas peças, literárias
ou imagéticas, acentuaram durante o período a alteridade da paisagem, reafirmando a postura
de criação da paisagem enquanto objeto, vez que fora da natureza, na condição de sujeitos
aptos a reordená-la e representá-la. “Por outro lado, a paisagem é produto do que ele vê, mas
também do quadro de referências que, previamente, ele possui e que passa a estar presente
nesta tarefa imaginária de reconstrução do mundo” (PESAVENTO, 2004, p. 2).
Nicolau Sevcenko, de seu turno, irá apontar uma outra característica do binômio com a natureza
deslumbrante: a necessidade de domá-la. Todo o perigo que se apresenta aos colonizadores que
chegaram a essas terras deriva desse imenso mundo desconhecido que precisa ser controlado
e explorado. Não há mais ligação com a Europa, muitos dos que aqui chegaram à sua terra natal
não retornarão, e a natureza grandiosa afirma-se, também, como obstáculo a ser enfrentado.
E se eles estão ali para conquistar alguma coisa, só podem ver o que há para
conquistar se a mata sair da frente. Portanto a melhor paisagem do ponto de
vista de quem está na posição do colonizador – que já não tem mais nenhum
contato com a Europa e não tem outra alternativa senão marchar para diante
– é a paisagem ausente, é a eliminação completa daquele verde. Porque o
verde é o perigo, a possibilidade iminente de sua extinção física. Nessa
direção é que se constrói a lógica da ocupação predatória da terra e é assim
que se desenvolve a sensibilidade nativa com relação à natureza (SEVCENKO,
1996, p. 111).

É neste sentido, então, que as atitudes do colonizador, marcadamente opostas entre si,
sedimentarão a relação com a paisagem brasileira. De um lado, um impulso desejante,
alicerçado na natureza sensual ou sensorial da paisagem inclina-os a uma projeção desejante e
alumbrada, que se traduzirá em cânticos e loas à coisa amada. É o desejo do desconhecido, a
vontade de conquistar, de penetrar naquilo que é virgem e indevassável, intocado. A construção
da paisagem, nesses termos, se dá a partir da adoração e de um ato de desejo. Por outro lado,
porém, tem-se uma ação interveniente predatória e agressiva dos colonizadores. O que há
diante de si não é paisagem, mas mata e sertão. É imprescindível impor o seu controle e o seu
domínio sobre a natureza2. Tal postura, ela também encontraguarida nas imagens retratadas.

2
Sevcenko se utiliza ainda da história do barão de Langsdorff como ilustração de sua teoria. Para ele, o
espião russo é uma espécie de criatura emblemática da relação com a natureza. Em seus escritos,
demonstrava a sedução sensual da paisagem, a curiosidade científica e pretendia o domínio da natureza,
atuando como agente colonizador. Ao que parece, nem mesmo o professor da USP conseguiu se
desvencilhar do poder enigmático desse objeto, e analisa que as intempéries sofridas por Langsdorff
seriam um “contragolpe da natureza contra essa atitude interveniente do homem - e a natureza se
preservando na sua condição de enigma virgem”. Parece um relato alegórico interessante, e que

1252
3 – As narrativas de viagem e o olhar do estrangeiro
Se a metáfora do paraíso perde espaço e tem seu alcance reduzido a partir da segunda metade
do século XVI (FRANÇA, 2012), as narrativas de viagem sobre o Brasil continuam a ser permeadas
por descrições acerca do bom clima – e a metáfora de uma primavera eterna toma lugar –, assim
como a reafirmação do caráter produtivo das terras, dos portos naturais, bons rios e o anúncio
de muitas riquezas, tudo isso a ilustrar as análises daqueles que servem aos colonizadores.
Um exemplo clássico de leitura a partir do olhar estrangeiro é o realizado pelos holandeses em
terras nordestinas, ainda no período colonial. Aliando saberes científicos, lendas e relatos do
maravilhoso, a comitiva de sábios e artistas enviados ao Brasil pelo Príncipe Maurício de Nassau
Von Siegen estabeleceu um inestimável acervo de dados a traduzirem não só os efeitos de uma
globalização em escala internacional, de um mundo em constantes trocas comerciais e culturais
entre novos povos conhecidos e conquistados, mas também os preconceitos e utopias que se
inscreveram nas representações metafóricas e alegóricas destas conquistas (PESAVENTO, 2004).
Ora, este Brasil do século XVII foi objeto do olhar de um outro, o holandês
invasor e dominante, mas também sensível à nova terra, que dela compôs
uma tradução imaginária, compondo uma paisagem. Neste olhar desde fora,
desejo, curiosidade, atração e repulsa, cobiça e sede de saber se mesclavam,
fazendo da natureza a representar um mosaico de significados. As referências
deste olhar estavam, sem dúvida, ancoradas na Holanda e na Europa, padrões
de referência para a sua sensibilidade estética (PESAVENTO, 2004, p. 3-4).

Dentre a comitiva, composta por geógrafos, engenheiros, arquitetos, humanistas, destacavam-


se pintores, gravuristas e cartógrafos como Frans Post, Gillis Peters, Zacharias Wagener, Georg
Macgraf e Albert Eckhout. Nesse período, começam a se descortinar abordagens pictóricas e
sociobiológicas alicerçadas em uma certa positividade que, no entanto, ainda não abandona a
ideia de um paraíso perdido tropical, intocado e primitivo onde a natureza, por ser ainda maior
que a cultura, levava os artistas ao encontro das antigas lendas. “E o próprio Nassau, ao chegar
ao Brasil, teria dito: Eu não vejo senão maravilhas. Só faltam os habitantes! Diante do espetáculo
da natureza, Nassau quis transplantar uma cultura” (PESAVENTO, 2004, p. 12).
São os traços da arte batava que irão se perpetuar nas representações do Nordeste colonial. O
colorido homogêneo, a baixa perspectiva, já eram elementos comuns à pintura panorâmica
desenvolvida pelos holandeses à época. É com esse traçado espacial, onde o céu expansivo é

demonstra bem a grandiosidade do mito natural, seu poder e ações sobre os homens; inclusive sobre
aqueles que pretendem desvendá-lo. (SEVCENKO, 2006, p. 119).

1253
presença fundamental, que Frans Post dará início ao seu conjunto de obras onde retrata o Novo
Mundo, com paisagens serenas e reservadas, um tanto quanto destoantes da exuberância
tropical (ZAPPI, s.d.). Considerado o primeiro pintor da paisagem brasileira (LAGO; LAGO in
LAGO, 2010), descobre-a em 1637 no desembarque em Pernambuco, e constitui sua obra
exclusivamente de quadros com temas brasileiros3. Alguns quadros foram pintados durante sua
estadia de sete anos no país, mas a imensa maioria é fruto da recriação memorial do artista,
onde demonstra uma enorme preocupação com detalhes e a reprodução informativa do meio
pitoresco e exótico que experienciou. “Sempre a partir de sua experiência e de esboços e notas
feitas, inventou uma natureza ausente do olhar, mas que se faz presente através da imaginação”
(PESAVENTO, 2004, p.18).
Assim, até cerca de 1659, as imagens de Post serão dotadas de uma precisão documental
substituídas pouco a pouco por uma reconstrução simbólica de um desejo de vir-a-ser marcado
pela perda da serenidade nas cenas pintadas na Europa (ZAPPI, s.d.). É crescente o domínio da
técnica e das cenas brasileiras, e a presença de elementos exóticos combina-se com cânones da
pintura de paisagem holandesa, a despertar tanto a ambientação da cena como o imaginário
holandês e europeu sobre o Brasil (PESAVENTO, 2004). No texto imagético de Post, o deslumbre
tropical será oferecido dentro de um contexto harmonioso aos olhares europeus, que ansiava
por conhecer as possessões coloniais no ultramar, suas representações sociais e memorabilia
de uma paisagem (OLIVEIRA, 2014), a fim de fabricar uma visão acerca do Brasil holandês,
relacionando-se não somente ao aspecto cultural da visualidade e da representação pictórica da
época “mas também às redes sociais de poder que permeavam as relações entre o artista – o
pintor de paisagens –, e o patrão – o governador-general da colônia” (VIEIRA in VIEIRA et al.,
2012, p. 94).
No entanto, se podemos, por um lado, localizar elementos de medições
altimétricas, por exemplo, na obra de Frans Post; por outro, não estaríamos
autorizados a afirmar que sua imagem se reduzisse apenas ao uso dos
elementos deduzidos como “técnicos”, uma vez que na análise de sua
imagem outros aspectos podem ser aferidos. A altimetria nas composições
das telas podem ser referidas como os elementos que denotam as
características orográficas dos sítios observados. Porém, para que esses
elementos quantitativos da descrição pudessem ser articulados em termos
de uma descrição topográfica, foi necessário a Post arranjá-los de forma que
pudesse fazer ver aspectos qualitativos que terminariam por transformar a

3
Há uma série de dúvidas acerca da extensão da obra de Post e costumeiramente sua produção é
classificada em 4 períodos onde os estilos e as motivações pessoais do artista sofrem grandes mudanças.
LAGO, Bia Correa do; LAGO, Pedro Corrêa do. Uma proposta de periodização da obra de Frans Post. (LAGO;
LAGO in LAGO, 2010, p. 13-22).

1254
planialtimetria do sítio em construção imaginária de lugar (VIEIRA in VIEIRA
et al., 2012, p. 108).

A mesma imaginação criadora pode ser encontrada em Albert Eckhout. Enquanto o mnemônico Post, no
qual a natureza e sua majestade se impunham sobre o homem, pintava destacando o meio físico à mirada
de seus quadros, o naturalista, também a serviço da corte de Nassau, pintava a partir de modelos,
centralizando elementos humanos em suas pinturas de modo a integrar os indivíduos ao meio para
fornecer uma leitura mais social da paisagem apresentada (PESAVENTO, 2004). Se, em Post, a natureza é
o cerne da composição, e elementos humanos e culturais servem apenas para situar uma dimensão
pictórica, uma vez que os elementos zoológicos, botânicos e etnográficos submetem-se a uma unidade
da composição enquanto paisagem, em Eckhout, os planos de fundo apresentam-se muito mais como
cenários, servindo de componente identificador das características dos seres humanos representados no
primeiro plano (VIEIRA in VIEIRA et al., 2012, p. 103). Se a essa altura, e apenas para caracterizar uma
distinção, pode-se estabelecer gradações entre os dois pintores, Post será aquele de uma paisagem
cultural marcadamente mais naturalista enquanto que Eckhout, ao trazer personagens e compor um
universo simbólico para eles com suas paisagens (PESAVENTO, 2004), poderá ser classificado como o
pintor que imortalizou a paisagem cultural social do período.
Olhares outros foram desenhando as paisagens brasileiras. Se, desde nossa certidão de nascimento, a
carta de Pero Vaz de Caminha a el-Rei já exaltava a graciosidade natural da terra, de modo a se compor
um estilo literário próprio (NOVAIS, 2005), as narrativas dos viajantes dos séculos seguintes estarão
alicerçadas em um conceito de harmonia do cosmos a se refletir na literatura e na ciência. Ainda que
alguns relatos não se constituam como uma cega adoração dos trópicos (FRANÇA, 2012), é possível
apontar essa temática como sendo um ponto estável na “longa narrativa” daqueles que descrevem as
maravilhas encontradas em terras brasilis de 1500 a 1808.
No entanto, não somente a natureza passa a ser descrita, mas também a relação dos colonos e demais
povos para com a terra. Tais narrativas, “escritas por homens de países e grupos sociais variados, em estilo
pouco cuidado e, na sua maioria, produzidas a partir de observações apressadas” (FRANÇA, 2012, p. 284),
estabeleceram um léxico de informações que se repetiam, com pequenas variações, e que tratavam dos
mesmos temas e dos mesmos personagens, compondo um senso comum europeu sobre o Brasil e os
brasileiros, de modo a conformar também a imagem que os brasileiros tinham de si. É nessa meta-
paisagem, onde se mesclam também a experiência social e o enquadramento social dos valores do
imaginário do viajante em contraposição aos valores do personagem (PESAVENTO, 2004, que estarão
alicerçadas inúmeras análises sobre o caráter do brasileiro, forjando um contexto que extrapola em muito
aquilo que é visto.
No esteio de um contexto de união relacional entre arte ciência e natureza, expressas por meio da pintura
de paisagem, os europeus estabelecem um movimento de observação a fim de captar as duas dimensões
que compõem a verdadeira natureza:

1255
a ordem do cosmos e a alma humana, na qual convergem o movimento da
história universal e o ritmo da biografia pessoal do viajante, possibilitando,
pela observação das ruínas humanas e naturais dispostas na paisagem, a
recomposição de uma totalidade rompida (razão e sensibilidade) e a
reconciliação com a natureza (RÜSCHE, 2014, p. 178).

A partir dessa alteridade, sedimentam-se algumas ideias a conformar o imaginário nacional. O


pensamento estético-científico de Goethe e von Humboldt se farão centrais nas letras europeias
e, em muito, influenciarão os relatos dos viajantes que vieram explorar a topografia, os
elementos naturais e a imagem do povo brasileiro e seu território. A representação da natureza
enquanto conjunto assume uma função de organizar o pensamento científico a partir dos
objetos visíveis e experienciados diretamente. Caberá à sensibilidade o papel de desvendar à
razão, por meio das artes visuais, a estrutura da natureza vivenciada4. Nenhuma paisagem é,
então, mimetismo puro, pois, seja ela orientada à análise geográfica, seja ela voltada à
composição de um contexto, será sempre representação e criação estética.
Mesmo aqueles que não se destacam na ilustração de figuras paisagísticas naturalistas5, e se
afastaram de algum modo dos relatos científicos exaustivos (LIMA, 2007) influenciaram
fortemente a imagem sobre e no Brasil. Rugendas e Debret, com suas viagens pitorescas,
expuseram formas muito particulares de enxergar a realidade brasileira no início do século XIX,
a partir de escolhas que deixam claras as intenções dos autores de atender à curiosidade do
público leitor na Europa. Debret faz a opção pelo reforço pictórico de sua narrativa histórica
sobre o Brasil, e, através do emprego da pena e do pincel, conduz a uma determinada leitura
sobre a sociedade e o país; as imagens organizadas em sua obra são até hoje mais forte que seus
textos.
A natureza é uma instância não privilegiada por Debret, nos moldes em que
o fora para os viajantes naturalistas. Nos momentos em que se refere a ela -
comentários sobre as florestas virgens, cenários naturais das imagens
dedicadas aos indígenas e algumas descrições de plantas, flores e frutos -
parece estar, sobretudo, atendendo à expectativa do público ou à imposição
de sua forma de pensar a história brasileira. Na marcha da civilização, seus
primeiros atores convivem em meio a esse lugar, cujos mistérios estariam

4
RÜSCHE, Roberto. Estética e natureza. Pós, op. cit., p. 177-178. O autor ainda destaca que em Humboldt
a paisagem é “um fenômeno da representação, forma visual dada pela experiência da relação do homem
com o mundo, em um determinado momento de tempo, em que estão implícitos, simultaneamente, o
olhar e o lugar” (op. cit. p. 178).
5
Cite-se o caso de Félix-Emile Taunay que criava panoramas de cidades. Não contava com uma crítica
positiva acerca da posição deste tipo de composição no universo das artes, mas fez grande sucesso com
o público ao apresentar as grandes aquarelas, com a sequência de desenhos panorâmicos de cidades
como Roma e Rio de Janeiro. DIAS, Eliane. Paisagem e academia: Félix-Émile Taunay e o Brasil (1824-
1851). Campinas: Editora da Unicamp, 2009, p. 271et seq.

1256
eternamente fora do alcance da mente classificadora e racional dos
estrangeiros. A natureza é, no fundo, o elemento diferenciador da
experiência brasileira, origem de tudo o que particulariza o país no cenário
internacional. Debret não a nega, mas seus projetos para o Brasil previram a
superação de um estado por demais associado às forças da natureza, o que
acabara dificultando o reconhecimento de seu potencial histórico (LIMA,
2007, p. 231).

As xenonarrativas parecem, então, estabelecer um contraponto entre a natureza exuberante e


pródiga dos trópicos e as características não tanto elogiáveis dos seus habitantes. Essa imagem,
ou o embate entre o mito edênico e o mito satânico, marca profundamente e de modo
persistente a forma como os brasileiros passarão a descrever a si próprios e o país6.

4 – Serões bravios sertões


No afã de construir uma identidade nacional, os olhares dos brasileiros voltam-se, durante
Império e início da República, a esses mesmos constructos. Em alguns momentos, povos ou
raças específicos serão exaltados, em construções quiméricas. O romantismo literário que, sob
a influência do Romantismo europeu, estabelecerá o indianismo como um “natural recurso de
reação espiritual nacionalista” (VERÍSSIMO, 1963, p. 163) e os escritos de Varnhagen virão
exaltar o regime colonial e as características portuguesas, em oposição um tanto conflitante ao
paraíso celebrado na poesia tocante de Gonçalves Dias7, seguido como primeiro dos poetas e
exaltado por sua Canção do Exílio, hino memorial das belezas da terra brasileira do qual
encontrava-se apartado.
A virada de olhar para o sertão não desfaz essa organização narrativa. Se a geografia do lugar
não assegura espaço para os arroubos fantásticos, a aridez permite o desenvolvimento de uma
visão mais singela para seus habitantes. A “natureza” aparece como símbolo das diferenças
assimétricas; ela é espaço econômico, espaço climático, meio determinante e “terra incógnita”
(BARTELT, 2009, p. 241). A resistência física e a fortaleza moral do povo sertanejo estão inscritos
em Soledade, que representava ela todos os gravames da seca. O romance A bagaceira (1928)

6
FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. A construção do Brasil na literatura de viegam dos séculos XVI, XVII e
XVIII, op. cit., p. 286. E o autor faz questão de lembrar ao leitor “como a própria cultura brasileira ainda
está impregnada dessas imagens, ou melhor, dessas “verdades” lentamente construídas pelos europeus
nas outrora popularíssimas narrativas de viagem, e que também as ações e as expectativas dos brasileiros
em relação a si próprios e ao país ressentem-se até hoje do seu poder”.
7
“O seu brasileirismo, que não era apenas manifestação do seu indianismo, mas lhe estava, para falar
com o nosso povo, na massa do sangue, e lhe vinha do nascimento e criação em um meio genuinamente
brasileiro e de influições da raça indígena na formação da sua psique, o fortificaram estudos da história e
etnografia nacional, nos quais revelou outras faces do seu talento e capacidade literária” VERÍSSIMO, José.
História da literatura brasileira, op. cit., p. 183-184.

1257
vem no esteio da influência da obra de Gilberto Freyre sobre a produção literária nordestina
(D’ANDREA, 2010) e marca também a preocupação dessa geração em resolver questões
seculares; é freyriana, entre nós, a assinatura da raça como “sinônimo de caracteres adquiridos
pelos homens ao se adaptarem ao meio” (RICUPERO, 2008, p. 83). Essa busca de um lugar do
nacional consolida-se a partir das últimas décadas do século XIX (LIMA in BOTELHO; SCHWARCZ,
2009), quando o sertanismo se dá como uma espécie de regionalismo, posterior ao indianismo
da “selva”, numa “trama de paradigmas que apreendia os indivíduos em suas relações pessoais,
em sua ligação com a paisagem, a linguagem e as culturas locais” (BARTELT, 2009, p. 244).
Essa literatura mirava, então, em um sertão apresentado como “puro” e
“saudável”, o Brasil verdadeiro. Sob a perspectiva da crítica da civilização, o
sertão reluzia como símbolo de uma vida melhor e esquecida, contrastando
com o abandono físico e moral dos moradores excessivamente protegidos
das grandes cidades(BARTELT, 2009, p. 243).

A sedução das paisagens do sertão permitirá a caracterização desse espaço como uma região de
extremos – climas, meios e personalidades que ocilarão entre o inferno e o paraíso. A principal
obra a retratar esse topos sertanejo da naturalização da unidade intrínseca de natureza e
homem é Os Sertões, de Euclides da Cunha8, o grande exemplo de construção nacional a partir
de uma alteridade interna (BARTELT, 2009, p. 267). Nele, elementos geográficos e geológicos
são apresentados não somente como imagem e metáfora do espaço ocupado, mas também
como fator de impacto sobre os sertanejos, historicamente afastados do litoral (LIMA in
BOTELHO; SCHARCZ, 2009).
O regionalismo, então, aposta na tendência naturalista para atribuir à natureza a qualidade de
um espelho da alma. Esses brasileiros enraizados nos recônditos do país – sertanejos, gaúchos
e paulistas – seriam mais autênticos que os brasileiros do litoral, que estiveram à mercê de
miscigenações e contatos com povos outros. A ode ao homem do interior liga-se à cultura da
raça branca conquistadora (BARTELT, 2009). Se os indianistas consideravam os bandeirantes
paulistas como a síntese dos vícios do colonizador, outros autores filiavam-se aos princípios

8
Além da guerra de Canudos, Euclides da Cunha explorou outros “sertões” em suas viagens e narrativas.
Percorreu a vasta Amazônia, chamando-a de paraíso perdido em carta a Coelho Neto (10 de março de
1905): “Nada te direito da terra e da gente. Depois, aí, e num livro: Um paraíso perdido, onde procurarei
vingar a Hiloe maravilhosa de todas as brutalidades das gentes adoidadas que a maculam desde o século
XVII. Que tarefa e que ideal”. E escreveu em À margem da história: “A impressão dominante que tive, e
talvez correspondente a uma verdade positiva, é esta: o homem, ali, ainda é um intruso impertinente.
Chegou sem ser esperado nem querido - quando a natureza ainda estava arrumando o seu mais vasto e
luxuoso salão. E encontrou uma opulenta desordem…”. Ambas as passagens estão destacadas em
BIBLIOTECA NACIONAL. Euclides da Cunha: uma poética do espaço brasileiro. Rio de Janeiro: Fundação
Biblioteca Nacional, 2009.

1258
teóricos do cientificismo positivista e do determinismo geográfico para estabelecer os modos
de interação entre o colonizador e o meio físico. Nesse sentido, a formação da nacionalidade se
daria pela luta territorial, pela exploração e dominação dos espaços, do meio, do interior,
promovendo a abertura de caminhos coloniais e permitindo a chegada da modernidade
brasileira.
O bandeirante revalorizado emergia, assim, em finais do século XIX, ao
mesmo tempo como carro-chefe de uma historiografia nacional renovado
pela temática territorialista, e como um símbolo identitário regional vincado
por um forte sentido republicano, fruto do investimento de intelectuais
paulistas contra a interpretação monárquica de nosso passado (FERRETTI,
2009, p. 267).

Ressalte-se que a busca por uma identidade nacional, de um modo ou de outro, retorna às
origens coloniais para forjar um caráter nacional. Sejam os sertanejos, sejam os bandeirantes os
legatários do colonizador, as narrativas sobre o brasileiro típico não se afastam da construção
dicotômica apresentada por Nicolau Sevcenko: são homens que, maravilhados ou determinados
pelo meio natural, coexistem pela necessidade inafastável de explorá-lo e dominá-lo. Em seu
viés naturalista, o motivo edênico ainda se impõe central na relação que o brasileiro estabelece
com o território e com o imaginário criado a partir e para as qualidades do país9.

5 – O Éden não é aqui


O processo de modernização brasileiro, iniciado no século XIX, mas ampliado nacionalmente
com maior pujança ao longo do século XX, parece ter incorporado a ideia de que a paisagem
deve ser suplantada e exterminada, seu único destino é desaparecer (PRADO apud SEVCENKO,
1996). Não é de se espantar que a natureza tenha sido abandonada também como modelo de
beleza (SANTOS, 2012) e que sua destruição seja causada artificialmente pelo país, ao adotar
um modelo de desenvolvimento urbano-industrial que trouxe consequências ambientais graves,
“cujos impactos e implicações podem ser tecnicamente comparadas aos efeitos de grandes
catástrofes naturais que até hoje têm poupado o país” (FERNANDES in MENDONÇA, 2004, p.
101). Se ao olho do viajante francês a natureza tratava os bárbaros do Novo Mundo como uma
mãe e a Europa como uma madrasta (BARBINAIS apud FRANÇA, 2012), não é muito diversa a
visão que outros visitantes têm do Brasil, encantados com as belezas naturais remanescentes.

9
Sobre as relações e o desenvolvimento desse mito e também a orientação social que se cria a partir dele,
cf. DIEGUES, Antonio Carlos Santana O mito moderno da natureza intocada. 3. ed. São Paulo : Hucitec
Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras, USP, 2001.

1259
Queixava-se Machado de Assis que essa atitude pisava o homem e sua obra, excluindo qualquer
ideia de ação humana (CARVALHO, 1998).
Não deixa de ser paradoxal a vinculação dos brasileiros a um motivo edênico como razão de
orgulho nacional. Elementos naturais são apontados como as principais características a serem
consideradas para enaltecer o país, em oposição a fatores e elementos culturais como o caráter
dos habitantes dessa terra, à mesma medida que o movimento de produção do espaço brasileiro
estabelece uma relação de enfrentamento à natureza, a ponto de dizimá-la.

Referências
BARTELT, Dawid Danilo. Sertão, República e Nação. Trad. Johannes Krestschmer e Raquel Abi-Sâmara.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009.

BIBLIOTECA NACIONAL. Euclides da Cunha: uma poética do espaço brasileiro. Rio de Janeiro: Fundação
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1261
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post-2/>. Acesso em 18/05/2017.

1262
A PAISAGEM DOS LUGARES DE MEMÓRIA DO RECIFE ENCANTADO/MAL-
ASSOMBRADO: uma abordagem sobre os bairros de Santo Antônio e São José dos
séculos XIX e XX.
Nó4 - O silêncio dos silentes, dos mistérios.

Dr. Tomás de Albuquerque Lapa


Arquiteto e Urbanista; UFPE, professor titular do programa de pós-graduação em
Desenvolvimento Urbano (MDU/UFPE); thlapa@outlook.com.

Felipe Moura Hemetério Araújo


Designer; mestrando em Desenvolvimento Urbano (MDU/UFPE); araujofmoura@gmail.com.

Dra. Onilda Gomes Bezerra


Arquiteta e Urbanista; UFPE, professora adjunta do Departamento de Arquitetura e Urbanismo
(DAU/UFPE); onibezerra@yahoo.com.br.

Célio Henrique Rocha Moura


Arquiteto e Urbanista; mestrando em Desenvolvimento Urbano (MDU/UFPE);
celiohrocha@gmail.com.

Esta investigação se insere no âmbito da conservação do Patrimônio Cultural Imaterial da cidade


do Recife, reconhecido na tradição oral dos citadinos e confirmado nos registros literários de
autores como Carneiro Vilela e Gilberto Freyre. Em suas obras, esses autores destacam fatos e
eventos, envoltos num ambiente de crendices e mistérios, ambientados nos bairros de Santo
Antônio e São José. Tendo em vista a indissociabilidade entre as lendas e encantos e a dimensão
tangível dos lugares de memória que lhe servem de palco e, por outro lado, a constatação do
rápido processo de descaracterização desses cenários, a pesquisa se propõe a identificar os
elementos da paisagem que conferem a certos lugares do Recife um caráter encantado e, quiçá,
mal-assombrado.
Palavras-chave: Lugar de Memória; Paisagem; Patrimônio Imaterial; Recife Assombrado.

This study is set to contribute in the conservation of the Intangible Cultural Heritage of the city
of Recife, compiled in citizens oral tradition and confirmed in the literary records of authors such
as Carneiro Vilela and Gilberto Freyre. Their works highlight facts and events, wrapped in an
environment of popular beliefs and mysteries, set in the neighborhoods of Santo Antônio and
São José. In view of the inseparability between legends and wonders and the tangible dimension
of the memory spaces that serve to them as stages and, on the other hand, the
acknowledgement of the rapid process of mischaracterization of these scenarios, the research
proposes to identify the elements of the landscape that give certain places in Recife an enchanted
and, perhaps, haunted aura.
Keywords: Place of memory; Landscape; Imaterial Heritage; Haunted Recife.

1263
1 – Introdução
Os bairros de Santo Antônio e São José, na área central do Recife, apresentam um emaranhado
de vias e caminhos, dentre os quais, alguns deles, em breve, completarão cinco séculos, sendo
a capital de estado mais antiga do Brasil. Isso implica numa longa acumulação de vivências,
histórias e relatos, com situações inusitadas que apelam ao sobrenatural, ao encanto e ao mal-
assombro. Tais relatos não são apenas evocativos de experiências individuais ou coletivas, sobre
fenômenos que outrora não se explicavam de maneira objetiva. Na construção desses cenários,
personagens, dilemas, perigos e desfechos, transparecem aspectos da própria cultura citadina,
sua organização, sua moral, seus anseios, suas perspectivas, seus lugares, sendo manifestação
e participante da identidade do Recife e de sua gente. Todos esses aspectos configuram-se,
portanto, como um verdadeiro Patrimônio Cultural Imaterial.
Para além disso, o Patrimônio Imaterial se relaciona simbioticamente com uma materialidade,
qual seja, aquela que está a ele relacionada. No caso das lendas urbanas, os relatos e os
evocativos de ordem subjetiva muitas vezes só existem na presença de seu correspondente
material, numa confluência conjunta em que o material perpetua a existência do imaterial e o
imaterial confere valor simbólico ao material.
A discussão deste artigo se insere na problemática da conservação do patrimônio cultural
imaterial e material urbano. No século XX, nas cidades brasileiras, muitos desses lugares de
memória (NORA, 1993) passaram a sofrer pressões de ordens distintas, dentre as quais se
sobressai a imobiliária. Sob o pretexto de renovação dos espaços e da infraestrutura urbana, ou
da higienização social, a verticalização das edificações é colocada como um símbolo de futuro e
progresso (LAPA, 2011). Muitos destes bairros, como Santo Antônio e São José são dotados de
valor simbólico, singular — ao qual Oliveira (2007) se refere como “mistérios” e busca base em
Freyre para destacá-los como razão maior da sua relevância, a contraponto da cidade “moderna,
superficial, utilitária e funcional” (p.94).
Tal citação traduz a forte dicotomia entre o tradicional e a cidade contemporânea que se
expande para essas localidades. Veras (2014) corrobora com a problemática destacando que:
na tentativa de requalificar espaços, com investimentos em parceria com a iniciativa privada,
nem sempre se consegue manter os aspectos físicos do lugar, o que vem apontando para a
criação de um ‘lugar fora do lugar’, descolado da paisagem, como se esta porção de solo do
Recife pertencesse a outros territórios. Um Recife vertical, fora-de-cena e, portanto, “ob-sceno”
(p. 55).

1264
Assim, questiona-se: quais são e como se caracterizam esses lugares de memória cenário das
lendas? Quais as mudanças e permanências entre sua paisagem descrita outrora e a que hoje se
apresenta nos bairros de Santo Antônio e São José?

2 – Santo Antônio e São José, Paisagem e Lugar de Memória


Tradicionalmente, os Bairros de Santo Antônio e São José se configuram como áreas primordiais
de ocupação da cidade do Recife. No século XVII, a ocupação holandesa nas terras de
Pernambuco logo determinou um processo de expansão com o projeto de construção da cidade
Maurícia1, na Ilha de Antônio Vaz (Figura 1). Assim fazendo, inaugurou-se o processo de
urbanização da localidade na qual viriam a se constituir os bairros estudados, em cuja paisagem
foram despontando sobrados e edificações de cunho religioso. Tais sobrados foram sendo
construídos, de preferência ao norte da ilha, onde foi se consolidando o locus político e
administrativo da província. No decorrer dos séculos, mesmo após a expulsão dos holandeses,
a ilha passou a ser ocupada paulatinamente, expadindo-se para o bairro de São José mais ao sul,
solidificando assim a sua vocação residencial e comercial, tomando a feição de uma cidade típica
colonial (Figura 2).

Figura 01: Vista da Cidade Maurícia. Óleo sobre madeira, 48,2 cm x 83,6 cm, Frans Post, 1953.

Fonte: Coleção pessoal de Jacques Ribemboim.

1
Mauritzstadt, “Cidade Maurícia” em homenagem ao conde João Maurício de Nassau-Siegen.

1265
Figura 02: Panorama do Recife, 1855. Friedrich Hagedorn.

Fonte: Acervo de Iconografia / Instituto Moreira Salles.

Nos bairros estudados, notadamente a partir de meados do século XIX, os aspectos sociais e
culturais relativos aos lugares estavam relacionados com a paisagem da nova cidade que se
impunha aos antigos ermos. Sobre esses aspectos, Gilberto Freyre destaca que “Por séculos, o
Recife foi, como as demais cidades do Brasil colonial, um burgo escuro, cujas casas se
iluminavam a azeite ou a vela”. Segundo o autor, essa circunstância propiciava, no imaginário
popular, visões quiméricas e assustadoras, uma vez que a cidade estava envolta numa áurea de
penumbra e mistério, despertando nos habitantes o medo do desconhecido. Segundo Freyre:
Só na segunda metade do século XIX apareceram nas casas — as mais
fidalgas já iluminadas a vela nos dias de festa e até nos comuns — os
candeeiros belgas, os candeeiros de querosene, as lâmpadas de álcool,
os bicos e as lâmpadas de gás. Luz mais brilhante que a antiga e que
foi afugentando os fantasmas não só das ruas como do interior das
casas. Obrigando-os a se refugiarem nos ermos, nos cemitérios, nas
ruínas, nos restos de igrejas, de conventos, de fortalezas, nos casarões
abandonados, nas estradas tão sombreadas de arvoredo a ponto
dessas sombras abafarem a própria luz dos lampiões de gás. (2000,
p.35)

Os aspectos relativos às precárias condições infraestruturais da cidade colonial contribuíram


para intensificar o surgimento de lendas e assombrações do Recife que, ao fim e ao cabo,
alimentaram a memória coletiva de seus habitantes. Essa memória está prenhe do sentimento
de afetividade e identidade, relacionado com os lugares que abrigaram no passado, e continuam
abrigando no presente, folguedos populares e práticas religiosas. Em seu livro “Arruar - história
pitoresca do Recife Antigo”, de 1948, Mario Sette (1886-1950), notável linguista e historiador
pernambucano, faz referência às ruas, aos becos e aos largos que sumiram da paisagem do
Recife Velho:
Não há saudosismo em recordá-lo. Nem desejo de que a vida houvesse
parado. Há, porém, uma modalidade de amor a tudo o que
desapareceu, e que se não foi nosso contemporâneo, terá sido de
nossos bisavôs: [...] Daí nossa ânsia de saber-lhes
particularizadamente dos costumes, dos trajos, dos hábitos sociais.

1266
Essa existência longínqua e apagada é bem verdade que se projeta
somente numa quase realidade através das velhas crônicas, dos
romances, dos relatos verbais de pessoas idosas, numa carta, mas,
sobretudo, nas páginas amarelecidas dos jornais da época. (SETTE,
1952, p.16)

O fragmento de texto deixa claro que, em se tratando do imaterial, da memória e da afetividade,


a materialidade (descrita em Sette no que diz respeito à arquitetura e ao traçado urbano) está
imbricada, convertendo ruas, becos e entornos de sobrados em paisagem eivada da dimensão
cultural que se traduz nos lugares. Do mesmo modo, Gilberto Freyre (2000) pontua a relação do
imaterial expresso nas lendas urbanas com a paisagem: “... Veneza americana boiando sobre as
águas — é natural que no Recife o sobrenatural esteja, como em nenhuma cidade grande do
Brasil, ligado à água. À água do mar e às águas dos rios” (p.47) (Figura 3). Tais relatos evocam a
paisagem que está atrelada a lugares específicos que por sua vez sediam as práticas sociais que
lhe conferem significados.

Figura 3: Cruz do Patrão2 em 1939; (b) Cruz do Patrão em 2018.

Fonte: Acervo da FUNDAJ, Benício Dias;

Para compreensão de tais práticas e, consequentemente, do significado dos lugares, Nor (2013)
discute a categoria de lugar, enquanto bem patrimonial atrelado à categoria de paisagem
cultural. Para a autora, o lugar, portanto, se configura como aquele espaço dotado de valor
simbólico, que sedia experiências, modos, costumes e que remete a uma memória afetiva e

2
A Cruz do Patrão é considerada um dos lugares mais mal-assombrados do Recife e do Brasil. Segundo a
crença popular, seria o ermo local onde eram enterrados os corpos de pessoas escravizadas. Gilberto
Freyre, em Assombrações do Recife Velho, relata que uma mulher teria sido arrastada para as águas do
Capibaribe por entidade que emergiu da água, em períodos de festividades sincréticas de religiões de
Matriz Africana, que faziam do lugar local de comemoração e profissão de sua fé.

1267
identitária. Nesse sentido, o lugar é onde as práticas ocorrem, mas, para compreender como
tais práticas se manifestam e, assim, a essência do lugar de memória, é necessário compreender
a paisagem desses lugares.
A paisagem não se configura apenas como um somatório de objetos e elementos tangíveis. Mais
do que isso, resulta da experiência do sujeito com o espaço que o cativa, num contínuo diálogo
de sentidos e objetos que enriquece a dimensão subjetiva do espaço sentido e experimentado
(COLLOT, 2013). Segundo Lage (2019): “a paisagem é um processo pelo qual identidades são
formadas. Através de seus atributos físicos mostra o significado das crenças, valores e ideologias
que as pessoas trazem para a sua forma, assim como as pessoas se sentem em relação a si
mesmas”. (p.16) A paisagem, portanto, é a manifestação dos lugares em suas dimensões
materiais e imateriais.

3 – Lugares encantados dos bairros de Santo Antônio e São José

A partir da compreensão de “lugares de memória” e “paisagem”, no presente são discutidos


dois exemplos de lugares de valor simbólico, com base no confronto entre a paisagem descrita
nos escritos de Gilberto Freyre e de Carneiro Vilela e a paisagem tal qual se encontra atualmente.
Assim fazendo, espera-se destacar as confluências e afastamentos das duas realidades: a
literária e memorial e a contemporânea.

Rua de São João – “A Casa da Rua de São João”


Em “Assombrações do Recife Velho”, Freyre aborda alguns eventos sobrenaturais que ocorrem
em casas específicas, na seção “Algumas casas”. Dentre esses relatos, ele traz “A Casa da Rua de
São João”, onde apresenta ao leitor uma casa simples, “de-porta-e-janela”, onde morava um
funcionário público e sua família, no bairro de São José que, no início do século XX, configurava-
se como uma rua tranquila. Segundo o autor, a família convivia em harmonia, até que, por
motivo que ninguém soube explicar, o funcionário público cometeu suicídio.
Após o trágico evento, um vulto passou a ser avistado à noite, à janela da casa, a partir das onze
horas, com a regularidade típica de um funcionário público. Tal evento causou um burburinho
na rua, outrora tranquila, e teve seu ápice quando Barbosa, um conhecido ateu, assombrou-se
com a aparição, causando alarde em toda a população residente na rua: “até o ateu se
assombrara!” (p.186).

1268
A questão foi resolvida pelos próprios moradores, conforme escreve Freyre, quando, unidos,
foram à Basílica da Penha encomendar missas em intenção do fantasma do funcionário público,
fazendo retornar a tranquilidade e a paz da Rua de São João.

Figura 04: Rua de São João. a) Situação atual; b) Simulação gráfica, com base nas descrições encontradas
no romance Freyreano

Fonte: Acervo fotográfico dos autores. Edição: Felipe Moura.

A caracterização da rua como um ambiente residencial, conforme descrito por Freyre (2000)
como “uma quieta rua de pequenos burgueses, de gente simples e pacatamente cristã.” (p.164)
contrasta com o intenso movimento atual de uma rua comercial. Assim, a ambiência singela que
outrora caracterizara a rua de São João, com suas casas de porta e janela, cadeiras de balanço
na calçada, de boas relações de vizinhos e moradores (FREYRE, 2000) não mais existe na
contemporaneidade.
Ademais do contraste entre as relações dos indivíduos com o espaço urbano na via, as alterações
na paisagem também se tornaram notáveis, o que pode ser percebido, principalmente nas
diferenças entre os tipos arquitetônicos descritos no romance e os novos tipos, dentre os quais
despontam os edifícios em altura. Hoje em dia, os novos tipos arquitetônicos se impõem na
atmosfera da rua, que um dia já fora singela, refletindo o aporte da modernidade que
transformou radicalmente a ambiência explicitada por Freyre.

1269
A despeito das alterações, ainda se observam permanências que remontam à paisagem da obra
de Gilberto Freyre, quando se refere às casas prosaicas como sendo comuns, delimitadas e
concretas, ou seja, as relações de volume entre alguns tipos arquitetônicos remanescentes. As
portas e janelas que um dia foram registros das relações de vizinhança entre os indivíduos, ao
cederem espaço para as vitrines das novas instalações comerciais, apesar de escassas, ainda se
fazem presentes, não com as mesmas esquadrias nem adornos, mas com os mesmos vãos. Por
si só, essas edificações conseguem remontar, não à ambiência explicitada por Freyre, mas, ao
volume das casas prosaicas do início do século XX, da Rua de São João. A questão intrigante que
se coloca é se tais permanências seriam suficientes para salvaguardar a materialidade do
patrimônio imaterial relacionado intrinsecamente com a via.

Rua Nova – “A emparedada da Rua Nova”


Em seu livro “A emparedada da Rua Nova”, o escritor pernambucano Carneiro Vilela (1846-
1913) traz a narrativa da história de uma família abastada de comerciantes do Recife, moradores
da Rua Nova, dantes tradicional rua localizada no bairro de Santo Antônio.
O livro, que faz uma narrativa imersiva na sociedade pernambucana do século XIX, conta a
história trágica da paixão entre Clotilde, filha de Jaime Favais – um importante comerciante da
capital – e um malandro sedutor chamado Leandro Dantas – que também era amante da esposa
de Jaime Favais, mãe de Clotilde –. Como ato derradeiro do romance, ao saber que a filha foi
engravidada por Leandro, Favais amordaça Clotilde e a empareda viva no banheiro do sobrado
da Rua Nova. Após o crime, muda-se para Portugal com a esposa, a esta altura enlouquecida.
Tempos depois da morte de sua esposa, Favais retorna ao Recife, passando a morar no primeiro
andar do sobrado da Rua Nova. Conta o romance que ele era acordado aos sobressaltos pela
imagem de sua filha, pálida, aos pés da cama, ou pelos gemidos abafados vindos do interior da
casa.
Apesar de se tratar de um romance, muito se discutiu sobre a prática do emparedamento no
Recife do século XIX, alçando o relato ao patamar de possível crime verdadeiro no imaginário da
cidade. Desde a publicação de Carneiro Vilela, impregnou-se no saber popular que a história
havia se passado no sobrado de número 200 da Rua Nova, hoje, substituído por um edifício em
altura, mas ainda assim considerado um dos lugares mal-assombrados mais célebres da tradição
recifense. A emparedada, por sua vez, caiu em domínio público da contação assombrada, tendo
aparecido para várias testemunhas desde então.

1270
Figura 05: Rua Nova em dois momentos: à esquerda, 2018; À direita, 1908.

Fotos: (Esq.) Manoel Borges; (Dir) Acervo Fundaj/MEC.

De acordo com a rica descrição de Carneiro Vilela, a Rua Nova se configurava como uma
privilegiada via, ladeada por sobrados onde viviam muitos dos burgueses do Recife. Como típica
cidade brasileira do século XIX, durante o dia, a rua efervescia, graças às atividades comerciais.
No andar térreo, se localizavam os depósitos, se realizavam as vendas e era onde os escravos
dormiam à noite; no andar de cima, morava a família proprietária do negócio. Pelo chão da Rua
Nova, circulavam pessoas escravizadas, vendendo produtos em seus tabuleiros, animais
transportando carga, compradores eventuais. A maioria das pessoas abastadas, no entanto,
residentes elevados dos sobrados se abstinha deste espaço público.
Atualmente, a rua ainda mantém sua vocação original, caracterizada pelo intenso comércio,
principalmente relativo ao setor de vestuário. A efervescência comercial se faz presente durante
o dia e se esvai à noite, tornando-se vazio o local. Isso é consequência de uma das maiores
mudanças em relação à sua configuração anterior: os sobrados não mais são residências no
centro do Recife, mas puramente lojas.
No que diz respeito ao romance de Carneiro Vilela, é importante ressaltar a maior das diferenças
entre a paisagem descrita do século XIX e a atual: o sobrado específico que sediou o evento no
imaginário popular foi substituído por um edifício moderno. Apesar disto, a ele ainda é atribuído
o caráter misterioso que envolvia o seu antecessor. Este fato lembra a alusão de Freyre a um
certo fantasma “tão preso à sua casa ou ao seu castelo que, quando os reconstrutores de casas
velhas alteram o piso, elevando-o, o fantasma tipicamente inglês só se deixa ver pela metade:
não toma conhecimento da reforma da casa.” (2000, p.50).

4 – Considerações finais
A discussão aqui apresentada, ancorada na necessidade da conservação do Patrimônio Imaterial
urbano, busca corroborar a indissociabilidade entre a materialidade dos lugares de memória da

1271
cidade e seus mitos e mal-assombros identitários, que provém da tradição oral. No que tange às
lendas e relatos do Recife mal-assombrado/encantado, tal concepção destaca a necessidade de
se compreender os lugares que servem de locus para tais eventos, por meio não só do seu
suporte físico-espacial, como também dos fatores de memória coletiva e afetiva e de imaginário
compartilhado, que se manifestam ou já se manifestaram em sua paisagem.
No que concerne à degradação da materialidade, assim como do Patrimônio Cultural Imaterial,
os lugares de memória, associados às lendas e crendices que conferem um caráter misterioso
aos bairros de Santo Antônio e São José, necessitam ser identificados, estudados e
acompanhados. Não obstante, além disso, deve-se entender a evolução da paisagem atual da
cidade, comparativamente à paisagem evocada nos relatos e lendas que perpetuam a existência
desse patrimônio, ao menos no campo literário, configurando um registro, mas não assegurando
completamente sua salvaguarda patrimonial.
A presente investigação poder-se-ia encerrar com o seguinte questionamento: que outros
lugares da cidade do Recife necessitam ser desvendados, do ponto de vista da sua
imaterialidade? E quais destes lugares ainda conservam os traços que serviram de suporte
material para a consolidação das lendas e histórias encantadas que referenciam nossa cultura
secular? Por fim, tais questões exaltam a condição singular do Recife, não do ponto de vista de
uma ocupação ordinária, mas, de cidade velha, cheia de mistérios, que um dia inspirou o
jornalista Nilo Pereira (1909-1992) a afirmar que “Esta cidade é mágica, meio bruxa / Enfeitiça,
quebranta, tira as forças”.

Referências
COLLOT, Michel. Poética e Filosofia da Paisagem. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Oficina Raquel, 2013.

FREYRE, Gilberto. Assombrações do Recife Velho. 5. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000.

LAPA, Tomás de Albuquerque. Grandes cidades constroem-se com edifícios grandes? Recife: Editora
Universitária da UFPE, 2011.

LAGE, Laura Beatriz. Paisagem 'como modo de ver o mundo'. 3º Simpósio Científico do ICOMOS Brasil:
Belo Horizonte, pp. 1-18, 2019.

NÓR, Soraya. O lugar como imaterialidade da paisagem cultural. Paisagem e Ambiente: São Paulo, Vol.
32, pp. 119-128, 2013.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História: São Paulo, Vol. 10,
pp. 7-28, 2010.

OLIVEIRA, Luís Antônio Chaves. O Patrimônio para além da pedra e cal: um estudo sobre usos e
apropriações da cidade. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2007.

1272
SETTE, Mário. Arruar: História pitoresca do Recife antigo. Rio de Janeiro: Livraria editora da casa do
estudante do Brasil, 1948.

VERAS, Lúca Maria de Siqueira Cavalcanti. Paisagem Postal: A imagem e a palavra na compreensão de um
Recife Urbano. Tese de Doutorado – Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2014.

1273
A PATRIMONIALIZAÇÃO DA IMAGEM DO ‘OUTRO’ COMO FERRAMENTA DE VOZ.
Nó4 - O silêncio dos silentes, dos mistérios.

Rafael Carvalho Fernandes Pereira


Arquiteto urbanista; Mestrando em Geografia pela Universidade Federal do Ceará;
rcarvalho.fp@gmail.com

André Araújo Almeida


Arquiteto urbanista; Docente no Centro Universitário 7 de Setembro (UNI7) e na Universidade
de Fortaleza (Unifor); Doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie; arqandrealmeida@netscape.net

Este trabalho aborda as estratificações e relações sociais contemporâneas e suas reverberações


no espaço urbano. Tem como escopo abordar o saber-fazer favela e contribuir para sua
compreensão como patrimônio. Ao acentuar os fluxos e nós, a cidade assume maior importância
na história, vivenciando mudanças físicas e simbólicas. A noção de patrimônio, referente a
significados e representações, contribui com a perpetuação de relações de poder pré-existentes;
em diversas classificações como ‘patrimônio imaterial’, excluem-se e negam-se modos
específicos de se representar no espaço urbano. No contexto brasileiro, a colonização instituiu
uma noção de identidade ‘coletiva’, porém seletiva. A ‘identidade nacional’, como resultado,
reduz ou criminaliza a figura do outro e nega sua representatividade, principalmente na cidade,
local de grandes disputas de narrativas.
Palavras-chave: Lugar; Cotidiano; Identidade; Saber-fazer; Favela.

This work talks about contemporary social relations and stratifications and their reverberations
in urban spaces. It aims to approach the favela know-how and contribute to its comprehension
as heritage. While the flows and nodes are intensified, the city assumes bigger importance in
history, facing material and symbolical changes. The concept of heritage, referring to
significance and representations, may contribute to perpetuate pre-existent power relations; in
several ‘intangible heritage’ classifications, specific means of representing urban spaces are
excluded and denied. In Brazilian context, colonization established a sense of ‘common’ identity,
but socially selective. As a result, the current ‘national identity’ reduces and criminalises the other
figure, denying its representativeness, especially in cities, places of strong dispute among
narratives.
Keywords: Place; Daily Life; Identity; Know-how; Favela.

1274
1 – Introdução
O presente trabalho é o resultado parcial de uma investigação interinstitucional que integra uma
pesquisa de Mestrado em Geografia e um Doutorado em Arquitetura e Urbanismo, cujos temas
estruturantes abordam respectivamente a paisagem e a imagem urbana como patrimônio
cultural. A investigação aborda, de maneira particular, as relações de poder e a estratificação
social dela resultante que influenciam na compreensão e aceitação de certos trechos do espaço
urbano como também parte da paisagem cultural.
A favela, de modo especial, termo comumente associado a uma ideia pejorativa, é um dos
elementos-chave na compreensão da diversidade cultural existente no Brasil. A paisagem social
e urbana composta por favelas também possui valores intrínsecos, por expressar formas de ser
e ocupar que resultam não apenas do contexto natural, mas também do contexto histórico e
social em que se inserem.
O Brasil é reconhecido por ser uma nação de grande diversidade étnica e cultural, reforçada no
contexto da pós-modernidade quando uma parcela do mundo se defronta com a questão da
convivência de culturas (WEIMER, 2005, p. XXIII). Com tal diversidade, não podemos falar de
uma ‘cultura’ no sentido nacional, já que estamos falando de um país com território de
dimensões continentais com grandes variações histórico-geográficas. Também não podemos
falar de ‘homogeneidade’, em virtude das diversas matrizes étnicas que constituíram o nosso
povo, oriundas não apenas das culturas indígenas pré e pós-coloniais, mas também dos últimos
cinco séculos de miscigenação e ‘aceitação’, onde o português colonizador (de variadas matizes
como celtas, romanas e mouras), o africano escravizado (bantos, sudaneses, entre outros) e o
imigrante estrangeiro (alemães, italianos, japoneses, entre outros) representam importantes
contribuições à cultura do país. (RIBEIRO, 1995; WEIMER, 2005).
Para compreender a questão da ‘aceitação’, Günter Weimer (2005), ao estudar a arquitetura
popular brasileira, parte de importantes reflexões acerca da formação étnica e cultural do Brasil.
O autor observa, entre outras coisas, que a contraposição entre uma arte (e cultura) tida como
‘erudita’ e outra tida como ‘popular’, no Brasil, não acontece de forma tão rígida. O erudito e o
popular convivem, mas de maneiras distintas: aproximam-se na esfera imaterial (social) e
separam-se na esfera material (espaço).
Sérgio Buarque de Holanda (1995) segue atual em vários aspectos da sua análise, como ao
apontar elementos de aproximação entre o erudito e o popular, onde a rigidez e as formalidades
do primeiro ‘se afrouxam’, aproximando-se em comportamento ao segundo. Em cerimônias
religiosas, por exemplo, citando o viajante naturalista e botânico francês Auguste de Saint-

1275
Hilaire (1887 apud HOLANDA, 1995, p. 151), “Os homens mais distintos delas participam apenas
por hábito, e o povo comparece como se fosse a um folguedo”.
Contudo, na esfera material (como no espaço), essa separação entre o erudito e o popular faz-
se mais perceptível. Tanto na arquitetura como na cidade, a ‘aceitação’ de que trata Weimer
(2005) ganha novas interpretações. O autor explica:
Desse caldo de cultura resultou um produto híbrido com duas faces opostas:
uma pública, oficial, erudita, materializada no uso da língua, vestimentas,
religião, administração pública, que se contrapunha a outra domiciliar, em
que os modos de vida de origem berbere (ou moura) se harmonizavam com
a culinária, usos e costumes africanos e indígenas. (WEIMER, 2005, p. XXV,
grifo nosso)

Enquanto na face privada, ou domiciliar de que fala o autor, a aproximação cultural alimenta a
miscigenação através das trocas de saberes (do dormir na rede e da renda de bilros à tapioca e
ao azeite-de-dendê), na face pública da ‘cultura brasileira’, a aproximação ganha aspectos de
imposição de uns sobre outros, depreciando, inferiorizando e desvalorizando o diferente, o
‘outro’ de que trata o título deste trabalho. Essa face pública manifesta-se também na
materialidade do espaço urbano, na arquitetura e no urbanismo. Considerando que “as relações
de convivência sempre foram pautadas pelas relações de poder” (ibidem, p. XXIII), é no espaço
físico onde se percebe uma ‘aceitação’ da cultura do outro pela cultura hegemônica, menos do
tipo aproximação e mais do tipo tolerância por conveniência, ou negação e destruição. O espaço
urbano, em especial, apesar de conter trechos de propriedade pública e privada, tem na sua
paisagem (e suas imagens) um caráter público e coletivo por natureza. Assim, a imagem e a
paisagem urbanas devem ser defendidas, pois, em prol de uma ‘identidade nacional’, as
paisagens dos diversos ‘Brasis’ são deslegitimados, encobertos ou apagados para promover uma
“falsa uniformidade externa” (WEIMER, 2005, p. XXVI) imposta pela hegemonia cultural.

2 – Do Patrimonialismo à Patrimonialização da imagem do ‘outro’


A construção do espaço na sociedade moderna tem forte relação com a intencionalidade do
Estado, como meio de se instituir e permanecer no exercício do poder. Para isso é utilizado o
fortalecimento dos conceitos de nacionalismo e território, no intuito da constituição de uma
identidade coletiva (COSGROVE, 1998). Para que isso ocorra de forma efetiva é produzido um
espaço ordenado e regulado que servirá como meio de transmissão do sistema de controle tanto
do Estado como ente administrador, quanto das estratégias globais do capital, criando assim
hierarquias espaciais dentro do espaço urbano. Logo, quanto mais interligadas e estabilizadas

1276
estão estas conexões, menor serão as forças contrárias de resistência, e mais fáceis serão as
ações estratégicas de controle sobre o território (CARLOS, 2007).
Estas diversas formas de ação buscam uma regulação da identidade brasileira, que já vinha se
desenvolvendo naturalmente no país desde os tempos coloniais. Na nossa história há registros
de leis que limitavam, ou mesmo criminalizavam, determinados padrões culturais, em grande
parte associados às práticas das consideradas ‘minorias’, como por exemplo o Código Penal da
República, Decreto nº 847 de 11 de outubro de 1890 que proibia a prática da capoeira, com
pena de dois a seis meses de prisão.
Esse processo de formação de uma identidade nacional seletiva vai se transparecer nitidamente
durante o período do Regime Militar entre os anos 1964 e 1985. Um exemplo disso aconteceu
no I Encontro de Governadores, em 1970, cujo foco era a discussão das políticas de educação e
cultura (BRASIL, 1970). Entre os diversos assuntos, houve a discussão sobre a introdução da
disciplina de ‘Moral e Cívica’ nos currículos escolares, que tinha como intuito a formação da
consciência nacional e o estímulo à atenção dos monumentos que representassem a tradição
do nosso povo. Discutiu-se também o tema patrimônio, principalmente o material e a
necessidade de uma unificação do sentido de pátria nacional. Debateu-se ainda a indicação de
uma relação mais estreita entre Estado e as ordens religiosas, para que fosse possível registrar
e preservar as obras de valor histórico ou artístico de sua posse. Esta mesma cautela é prevista
no documento para instalações militares históricas “para a sua conveniente preservação”
(BRASIL, 1970, p. 03).
O direcionamento de uma formação identitária brasileira que fosse nacionalista, militarizada e
conservadora era nítida por meio de uma educação que privilegiava o reconhecimento seletivo
de bens e costumes de determinadas classes em detrimentos de outras. Ao trazermos essa
discussão para a questão espacial, Cosgrove (1998) comenta que a evocação de mitos e
interpretações do passado vão legitimar os valores aos quais o espaço é concebido para
rememorar, exigindo assim um padrão de comportamento quando se está nele. Desta forma,
se reforça pelo próprio espaço a aceitação por meio do código de comunicação cultural da classe
dominante. Então, para ser reconhecido, aceito e inserido de alguma forma pelo grupo
hegemônico, é necessário que o sujeito esteja em sintonia com as ordens de comunicação, isto
é, aceitá-las e reproduzi-las no espaço.
[...] A cultura hegemônica é um instrumento estruturado e estruturante de
conhecimento e comunicação, senso comum e a base da ordem moral. Na
sociedade de classes ela cumpre um papel político de impor e legitimar a
dominação de classes [...]

1277
[...] Como o poder simbólico na sociedade de classes, a ideologia se apropria
e reproduz o espaço para legitimar e sustentar a dominação de classes. [...]
(COSGROVE, 1998, p. 19; 26)

Além disso, na atualidade, para se inserir no contexto cultural ocidental, desde o início da
formação nacional da identidade brasileira são reforçadas características que fazem referência
ao colonizador, ou mais recentemente, a outros grupos hegemônicos que, através das
migrações e das influências socioeconômicas trans-continentais, passaram a minimizar, negar
ou até mesmo apagar as demais contribuições culturais à identidade nacional.
Porém, Ribeiro (2007) nos mostra que no século XX houveram algumas tentativas de mudança
desta visão. O autor cita a atuação de Mário de Andrade no SPHAN, antigo IPHAN, ao qual, por
meio do Anteprojeto da instituição, tentou introduzir uma ampla compreensão do que pode ser
considerado ‘patrimônio’. No documento permitia-se reconhecer e registrar manifestações
culturais populares, dentre elas objetos, monumentos, folclores e até paisagens. Para este
último caso, ele utilizava os mocambos de Recife e vilarejos da Amazônia como exemplos de
paisagens com valores etnográficos da cultura popular. Porém, na versão final do documento
foi retirada esta possibilidade de reconhecimento.
Outro exemplo, é o processo de reconhecimento como Paisagem Cultural pela UNESCO em 2012
à parte da área litorânea da cidade do Rio de Janeiro na altura dos bairros da zona sul e centro,
conhecidos mundialmente pelo seu potencial turístico. A polêmica encontra-se na não inclusão
dos morros com favelas dentro da chancela de reconhecimento como parte integrante da
paisagem da cidade. Afinal, se a paisagem cultural é o conjunto de relações entre o homem e a
natureza, relacionando o material e o imaterial, tornando estes portadores de referência à
identidade, ação ou memória de grupos formadores da sociedade brasileira, porque esses
assentamentos não poderiam ser considerados? (RIBEIRO, 2007).
A forma como estas espacialidades, como manifestações populares e a realidade de morros e
de favelas, são consideradas e reconhecidas em nosso país nos indica que o caminho trilhado na
construção da identidade brasileira continua a ser excludente, seja por agentes externos ou
internos. A impossibilidade da assimilação dessas outras realidades como parte do patrimônio
nacional e da identidade brasileira é o que Moreira e Barros (2009) afirmam resultar em “uma
identificação ancorada em antigos problemas e pouco aberta para a criação de novos universos
de referência.” (p.55). Para os autores, uma das formas em que o Estado atua para se auto
legitimar como detentor dessa identidade é a autoridade que lhe cabe, “além de estratégias
mais simbólicas como a criação de um mito de origem, de uma história coerente e de datas

1278
comemorativas e feriados nacionais.” (p.57). Exemplificando a citação, a criação do mito dos
bandeirantes como desbravadores do interior do Brasil; a abolição da escravidão pela Princesa
Isabel como ato de caridade; o desfile cívico e militar do dia 7 de setembro; entre outros. Estas
são algumas das estratégias criadas para a formação neste sentido identitário nacional.
Nesse debate, contrapondo-se à ideia de espaço físico e abstrato homogeneizado de identidade
estática de uma pátria, a qual é formada por uma burguesia de raízes colonizadoras, trazemos
o conceito de ‘lugar’ relacionando como um espaço ‘outro’ ao qual é formado e reformulado
ativamente pelos seus moradores. Segundo Carlos (2007), o lugar é o local onde a vida é
reproduzida, e pode ser estudado por três elementos formadores: o habitante; a identidade; e
o espaço físico. Lugar é onde existe a possibilidade de sentir, apropriar e viver o espaço por meio
de nossos corpos, no cotidiano através de atividades triviais. Se configura como o local
reconhecido e ocupado pelos moradores, no nível do bairro, de uma praça, de uma rua ou
mesmo da casa (SANTOS, 1985), podendo criar diferentes morfologias físicas e sociais dentro da
cidade a partir de seus usos e/ou relações estabelecidas.
Estas relações criadas dia-a-dia dão sentido ao lugar, isso porque este só pode ser compreendido
em suas referências, que não se limitam à forma ou à funcionalidade, mas são formados por
uma união de ideias e materializados pelas práticas sociais ali presentes. Ou seja, o lugar tem
em si sentido e dimensão na constituição da história enquanto trajetória, o qual é percebido e
guardado pela memória através dos sentidos (CARLOS, 2007). Para Cosgrove (1998) a prática
cultural é imprescindível para constituição da idéia de lugar, incorpora-se à produção material
de bens, pois ambas estão atreladas à consciência humana, suas crenças e seus ideais, fazendo
com que um fortaleça o significado do outro. Assim, compreende-se que:
1. o lugar é instituído por meio do cotidiano, e
2. isso se dá de forma inconsciente e espontânea, gerado por consequência simbólicas que
estão relacionadas à materialidade.
Cotidiano e espontaneidade são elementos de compreensão do lugar, pois são decorrentes dos
processos culturais nos quais se dão as relações sociais. Para o atual processo de integração dos
territórios às redes globais, a articulação dos espaços é necessária e a reformulação de lugares
se torna inevitável para o processo de unificação e homogeneização espacial na escala local,
fazendo destes homogêneos e hierarquizados (no espaço intraurbano) dentro de uma lógica do
mercado mundial (CARLOS, 2007). Para Cosgrove (1998), estamos diante de uma tentativa da
hegemonia cultural de controle de bens e significados por meio da produção em que “A luta

1279
entre classes é uma luta sobre a constituição cultural da existência material humana e este
resultado não seguirá um curso previsível.” (p. 22).
O fortalecimento das características heterogêneas dos lugares torna-se fundamental para o
enfrentamento das consequências negativas desse processo de integração global: a
homogeneização dos territórios e a manutenção dos poderes hegemônicos de determinadas
classes e suas instituições (MAGNAGHI, 2011). Consideramos as favelas como alguns destes
lugares heterogêneos, de constituição simbólica na imagem da cidade, pois conseguem guardar
na dimensão espacial a identidade dos grupos que as produzem espontaneamente por meio de
suas próprias relações sociais. O objeto resultante servirá posteriormente como suporte de
memória coletiva, e reforçará a sua identidade por meio da construção cotidiana, como
explicado anteriormente.
Para Jacques (2001), a favela tem uma estética própria, que difere do restante da cidade, e esta
é uma das maiores questões pela qual ela é ‘perseguida’. Em desconformidade com a
arquitetura erudita, sua composição é tomada de forma não intencional, ao acaso, sem critério
estético, buscando primeiramente atender à necessidade do abrigo. Por serem construídas
coletivamente e por imprimirem no espaço as características identitárias dos seus moradores, a
favela torna explícita uma apropriação dos lugares diferente da cidade formal, e o uso destes
espaços acaba sendo extremamente dinâmico e intenso em diferentes horários do dia. Estas
características locais identitárias são visíveis na Favela das Quadras representada na Figura 01.

1280
Figura 01: Favela das Quadras em Fortaleza, onde os moradores retirantes utilizavam a taipa como um
dos estágios de construção de suas habitações.

Fonte: Acervo Diário do Nordeste, fevereiro de 1981.

A dinamicidade construtiva presente em uma favela vai do objeto arquitetônico à malha urbana.
A construção das habitações na forma de ‘barracos’, edificações precárias com materiais como
madeira e lona, costuma acontecer de forma fragmentada. À medida que o habitat cresce, os
antigos pedaços menores são substituídos por maiores e mais duráveis, findando em um último
estágio, a casa de tijolo. O processo de evolução, mesmo no caso das habitações já em alvenaria,
continua a ser fragmentada, pois a evolução destas habitações é contínua e necessária para
acompanhar as relações sociais ali estabelecidas com suas respectivas expansões.
No caso da malha urbana, esta não obedece a um traçado definido, salvo no caso de
loteamentos clandestinos e de loteamentos populares organizados (BONDUKI, 2004). As favelas
se constituem na maioria das vezes como uma espécie de ‘labirinto’, onde o tecido urbano
maleável segue o movimento da vida, esta obra acaba por não ter um autor, mas sim a atuação
de diversos autores, que são estes os moradores (JACQUES, 2001).
A favela então se compreende por um espaço dinâmico, em constante mudança, sempre em
construção, adaptação, expansão, melhoria, verticalização. A obra de construção da favela
difere do loteamento e aproxima-se à construção de cidade: é feita de maneira coletiva e sem
um término previsto, e a característica de incompletude é inerente à sua personalidade. São
estas características do aleatório, do acaso, do incerto e do despretensioso que transparecem

1281
em sua estética, que não é bem aceita pela arquitetura e urbanismo formais (JACQUES, 2001).
Podemos ver isso na Figura 2, o qual esta dinâmica é presente no cotidiano da Comunidade das
Quadras (Conjunto São Vicente de Paulo) em Fortaleza.

Figura 02: Modificações cotidianas nas habitações da Comunidade das Quadras em Fortaleza.

Fonte: Arquivo do autor, agosto de 2018.

Sendo estes espaços, lugares ricos em processo vernáculo e, portanto, de produção patrimonial
(JACQUES, 2001), eles nos mostram que existe uma outra alternativa de ver, ser, habitar e
compreender o lugar, no qual a exploração do potencial acumulativo do capital não seja o
principal objetivo. Porém, temos visto até aqui que tais lugares não são valorizados por tais
riquezas. Ao contrário, são desvalorizados por essas mesmas características, acabando por
entrar na mira dos processos de reestruturação urbana, normalmente exercidos por meios de
remoções ou construções de conjuntos habitacionais.
Os projetos de urbanização, em especial de favelas, comumente produzida por intervenções de
um estado patrimonialista, produz-se, como observa Carlos (2007) em função das necessidades
de interconexões, principalmente de larga escala, e de mobilidade, dentre outros motivos,
criando assim hierarquias no espaço urbano. Para a autora, este processo também “produz
modelos éticos, gostos, valores, moda, constituindo-se como elemento fundamental da
reprodução das relações sociais” (p. 36) onde a mercadoria acaba sendo a mediadora das
relações e os produtos culturais de uma parcela da população vai sendo gradativamente

1282
imposto aos demais. Assim o lugar vai sendo, pouco a pouco, modificado para atender a padrões
homogeneizantes culturalmente.
Se o lugar é simbolicamente produzido, é compreensível afirmar que os modos de produção do
espaço também se constituem como modos de produção simbólicos. Cada modo de vida produz
diferentemente seu espaço, ao passo que seu foco de produção também é diferente.
Consequentemente sua simbologia expressa na cidade seguirá destoando das demais.
Crosgrove (1998) e Magnaghi (2011) nos ajudam a compreender, por fim, que essa questão
torna-se relevante quando percebemos as tentativas de universalização e homogeneização dos
espaços urbanos, do lugar, da sua paisagem e da sua imagem a partir dos modelos ideológicos
vigentes, em especial da produção simbólica do espaço pautado unicamente nos princípios
econômicos da globalização

3 – Considerações finais
Neste trabalho foi discutida a compreensão e a representatividade que é estabelecida no
significado que é dado ao lugar, à paisagem e sua imagem, principalmente nos contextos
urbanos. Esta ação tem como princípio a criação de uma identidade de uma cultura que está
relacionada à cultura dominante, muitas vezes atrelada a um Estado patrimonialista, os quais
propõem formatações homogeneizadoras na ocupação de territórios.
A favela como lugar de uma ‘outra’ configuração, formada pelo cotidiano da autoconstrução e
da espontaneidade, alguns dos mesmos elementos que caracterizam as cidades tradicionais,
serve de aparato físico para auto identificação e reafirmação cultural da população que tem sua
produção cultural e seu patrimônio (material e imaterial) negadas. A constituição material e
representativa da favela, em particular, é resultado da dinamicidade da ação direta dos seus
moradores, ou seja, seus construtores. Sendo assim, na compreensão do que é patrimônio,
precisamos ir além do pensamento de Mário de Andrade, já vanguardista à sua época. Segundo
Jacques (2001), não se pode 'patrimoniar' a favela nos termos atuais, pois está em constante
movimento. O que se deve fazer é a preservação da imaterialidade da atuação dos moradores
no espaço, para assim se garantir as características do atual movimento das favelas.
Identificar a figura do ‘outro’ como forma de expressão cultural, seja na produção material
urbana/arquitetônica como na produção imaterial, impressa na significação tanto abstrata
quanto espacial, é um caminho de aproximação da figura na qual historicamente esteve sempre
em negação.

1283
Referências

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Cultura, 1970. Disponível em: «http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Compromisso%20
de%20Brasilia%201970.pdf». Acessado em: 31 mai. 2020.

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Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001.

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RIBEIRO, Rafael Winter. Paisagem cultural e patrimônio. Rio de Janeiro: IPHAN/COPEDOC, 2007.

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espaços de uso coletivo em um centro de bairro. São Paulo: Projeto, 1985.

WEIMER, Günter. Arquitetura popular brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

1284
APAGADOS DA PAISAGEM: um estudo sobre arquitetura cemiterial e hospitalidade
Nó4 - O silêncio dos silentes, dos mistérios.

Leonardo Oliveira Silva


Doutorando; Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS;
arq.leonardo.oliveira@gmail.com.

No silêncio dos cemitérios modernos, jazem abafadas as vozes dos Outros, aqueles que, em
razão das suas diferenças, foram apagados da paisagem antropicamente arquitetada. Buscando
dissolver barreiras entre arquitetura e filosofia, este estudo se propôs a investigar a
hospitalidade materializada na paisagem do cemitério Campo da Esperança, na cidade de
Brasília (DF), bem como a ética, os limites e as condições desta hospitalidade, baseando-se no
pensamento desconstrutivista do filósofo Jacques Derrida. Tal proposta é justificada pela
hipótese de que os hóspedes – Outros, diferentes, estrangeiros indesejáveis –, ao serem
suprimidos da paisagem cemiterial sem deixar rastros, são inseridos em uma espécie de política
do apagamento, estando este ato intimamente vinculado ao que será chamado aqui de
modernidade.
Palavras-chave: Ética; Política; Desconstrução.

In the silence of modern cemeteries, the voices of the Others, those who, due to their differences,
have been erased from the anthropically designed landscape, lie muffled. In order to break down
the barriers between architecture and philosophy, this study aimed to investigate the hospitality
materialized in the landscape of the cemetery Campo da Esperança, in the city of Brasília (Distrito
Federal, Brazil), as well as the ethics, limits, and conditions of this hospitality, based on the
deconstructive thought of philosopher Jacques Derrida. This study was built on the hypothesis
that the guests – Others, different, undesirable foreigners –, when removed from the cemetery
landscape without leaving a trace, become somewhat socially invisible, fact which can be closely
linked to what will be called here modernity.
Keywords: Ethics; Policy; Deconstruction.

1285
1 – Introdução, ou Paisagem como representação ético-política
Paisagem é um termo polissêmico que deriva do francês paysage, cuja etimologia, de acordo
com Jean-Charles Filleron (1947-), professor de geografia da Universidade de Toulouse-Jean
Jaurès, parece bem consolidada. A raiz da palavra francesa vem do latim pagus, que pode
significar “pequena vila rural” ou “pequeno país delimitado” e que, por sua vez, é derivado do
verbo pangere (“fincar um marco na terra”)1. O geógrafo brasileiro Rafael Winter Ribeiro (2020)
diz que a paisagem tem como “marca de nascença” o fato de estar ligada à percepção do mundo;
entretanto, ela não é o que se vê, mas como se vê, culminando em uma construção de sentidos,
uma narrativa. Além destas e outras definições acadêmicas de paisagem que podem ser
encontradas na área da geografia2, descortinam-se aquelas oriundas dos campos da ecologia,
da arquitetura e do urbanismo. Já na linguagem cotidiana, pode-se dizer que o sentido do termo
está comumente associado ao ato de olhar, contemplar, corolário de um processo cognitivo
pleno de valores simbólicos e mediado por representações de imaginários sociais e territórios
específicos.
Fato é que as paisagens antrópicas estão em constante transformação e são determinadas por
interesses de diversas sortes, e aquelas que existem nas cidades contemporâneas3 representam
tão somente o desenlace da sobreposição de camadas de diferentes tempos e histórias,
processo que resulta em fragmentados palimpsestos. Também é verdade que a
heterogeneidade do mundo atual requer ressignificações e problematizações mais
aprofundadas, razão pela qual noções como subjetividade, imaginário e percepção têm sido

1 “L’étymologie du terme semble cependant bien établie. Paysage puise sa racine dans le pagus latin,
terme signifiant ‘canton rural’ dérivé lui-même du verbe pangere, ‘ficher en terre une borne’. Pagus peut
ainsi être traduit par ‘petit pays delimité’.” (FILLERON, 2008, grifos do autor).
2
Cabe destacar também aquela elaborada em 1984 pelo geógrafo francês André-Louis Sanguin (1945-):
“A paisagem política é um conceito relativamente novo na geografia cultural e na geografia política. Até
o momento, ela pouco chamou a atenção dos geógrafos de língua francesa. É uma noção que resulta
principalmente do impacto, da pegada da ideologia e da autoridade política sobre a paisagem. [...]
Observam-se três níveis de paisagem política (nacional, regional, local). As fronteiras internacionais
e intrafederais, bem como as capitais nacionais ou estaduais, constituem os dois tipos principais de
espaço onde a legibilidade da paisagem política é a mais evidente.”. Do original: “Le paysage politique est
un concept relativement nouveau en géographie culturelle et en géographie politique. Jusqu'à maintenant,
il a peu retenu l'attention parmi les géographes de langue française. Cette notion résulte principalement
de l'impact et de l'empreinte de l'idéologie et de l'autorité politique sur le paysage. [...] On observe trois
niveaux de paysage politique (national, régional, local). Les frontières internationales et intrafédérales
ainsi que les capitales nationales ou provinciales constituent les deux principaux types d'espace où la
lisibilité du paysage politique est la plus évidente.” (SANGUIN, 1984, p. 23).
3
As palavras contemporâneo(a) e contemporaneidade serão empregadas aqui de modo generalizado,
referindo-se àquilo que teve lugar na história humana a partir da segunda metade do século XX e/ou
perdura até os dias atuais.

1286
incorporadas às discussões vigentes sobre paisagens, podendo figurar como categorias de
análise destas e evidenciando uma maior consideração pela pluralidade de pensamentos e
dimensões sociais, culturais e ético-políticas humanas que coexistem nas cidades de hoje.
Embora uma remodelação de questões que envolvem ética4, política5 e até mesmo cidade tenha
sido propiciada pelo pensamento pós-estruturalista6 surgido na segunda metade do século XX,
tornando aquelas mais concatenadas com as demandas do mundo contemporâneo, pode-se
afirmar que desde muito antes, na Antiguidade ocidental, a ética já resguardava uma
indissociabilidade com a política e a pólis – a antiga cidade grega. Nesta, tais questões já
determinavam o comportamento do cidadão, que idealmente deveria ser “justo” para garantir
o “bom” funcionamento da cidade. O homem justo, de acordo com Platão (c. 427-347 a.C.), em
nada diferiria da cidade justa se fosse, tal como ela, temperante, corajoso e sábio (2000, p. 208)7,
e em todas as cidades o princípio da justiça era sempre o mesmo: referia-se ao que era vantajoso
para o governo nela constituído (Ibid., p. 67). As cidades governadas pelos que menos
mostravam desejo de governar seriam “bem dirigidas” e “livres de discórdias”, acontecendo o
contrário naquelas onde os governantes pensavam diferente (Ibid., p. 327), isto é, fossem ávidos
por administrar a pólis. Crítica de Platão foi a filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975),

4
Oriunda da expressão grega ethike philosophia (“filosofia moral”), de ethos (“caráter moral”),
originalmente tinha o sentido de “costume”. A ética, tal como tradicionalmente é conhecida, é produto de
centrismos e hierarquizações logocêntricas que o pensamento contemporâneo busca criticar (FUÃO;
SOLIS, 2018, p. 17).
5
Oriunda do grego politikos (“relativo ao cidadão ou ao Estado”), de polites (“cidadão”), derivado de polis
(“cidade”), a palavra política veio do indo-europeu polh- (“espaço fechado, em geral em local elevado”),
que descreve o núcleo inicial de muitas cidades nas civilizações antigas. O pensamento contemporâneo
busca pensar a política não mais vinculada ao conceito clássico de Estado-Nação ou de cidadania,
mas mais próxima de uma democracia inclusiva, capaz de considerar todos os indivíduos,
mesmo aqueles abstraídos dos direitos de cidadania como, por exemplo, os “imigrantes
indesejáveis” (Ibid., p. 18).
6
De modo geral e superficial, trata-se do movimento que emergiu na segunda metade do século XX, na
França. Este representou a tentativa de superação do estruturalismo e, para Derrida, representava o
pensamento metafísico ocidental e logocêntrico, que era passível de desconstrução. No campo filosófico,
teve alguns representantes (além de Derrida): Michel Foucault (1926-1984), Gilles Deleuze (1925-
1995) e Jean-François Lyotard (1924-1998).
7
“Cada governo promulga as leis com vistas à vantagem própria [...]. Uma vez promulgadas as leis,
declaram ser de justiça fazerem os governadores o que é vantajoso para os outros e punem os que as
violam, como transgressores da lei e praticantes de ato injusto. Eis a razão, meu caro, de eu afirmar que
em todas as cidades o princípio da justiça é sempre o mesmo: o que é vantajoso para o governo
constituído.” (PLATÃO, 2000, p. 67).

1287
segundo a qual, em seus escritos políticos, o grego negara a “pluralidade”8 humana, que para
ela era essencial à política. Em agosto de 1950, a autora apontou que
Política é o estar juntos e uns com os outros dos diversos. O homem se
organiza politicamente conforme determinadas características comuns
essenciais em um caos absoluto ou a partir de um caos absoluto de
diferenças. Na medida em que se constroem corpos políticos sobre a família
e se compreendem à imagem desta, o parentesco em seus graus é, por um
lado, aquele que pode unir os mais diversos e, por outro lado, aquele pelo
qual as entidades semelhantes a indivíduos novamente se distinguem umas
das outras9. (ARENDT, 1993, p. 9-10, grifos do autor).

A partir deste entendimento é possível pensar a política como um exercício de convívio entre
diferentes, cuja prática seria encenada tendo as paisagens das cidades como palcos onde os
desfechos das decisões governamentais se concretizariam. Exemplo desta relação entre política
e paisagem foi representado, provavelmente pela primeira vez no século XIV, mais precisamente
entre fevereiro de 1338 e maio de 1339, pelo pintor italiano Ambrogio Lorenzetti (c. 1258/1290-
1348), cidadão de Siena, que, à época, era uma cidade-estado italiana. Lorenzetti pintou uma
série de três afrescos, Alegoria do bom governo, Efeitos do bom governo na cidade e no campo
e Alegoria e efeitos do mau governo na cidade e no campo, que mostram as possíveis
consequências diretas do governo sienês sobre as paisagens urbana e rural daquela sociedade,
recorrendo a personificações de justiça, sabedoria, temperança, paz e bem comum, entre
outras. Tais representações evidenciam que a convicção da indissociabilidade entre política e
cidade (ou paisagem) não foi perdida na transição da Idade Antiga para a Média, tampouco desta
para a Moderna e, posteriormente, para a Contemporânea.
Tal como para Arendt, o ético e o político são também indissociáveis para Jacques Derrida (1930-
2004), filósofo de origem judaica nascido na Argélia cujo pensamento desconstrutivista, usado
como um modo de questionar modelos previamente instaurados pela metafísica logocêntrica,

8
Arendt ([1958] 2007, p. 16) define pluralidade como a “[...] condição da ação humana pelo fato de
sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa
que tenha existido, exista ou venha a existir”. Para Fuão e Solis (Ibid., p. 18), o perigo do discurso
universalizante, o qual propõe considerar todos os homens como iguais, acaba por rejeitar os
diferentes e produzir historicamente efeitos de exclusão “atrozes e sanguinolentos”, podendo-
se citar como exemplo o Holocausto (1941-1945).
9
Do original: “Politik handelt von dem Zusammen – und Miteinander – Sein der Verschiedenen. Politisch
organisieren sich die Menschen nach bestimmten wesentlichen Gemeinsamkeiten in einem absoluten
Chaos, oder aus einem absoluten Chaos der Differenzen. Solange man politische Körper auf der Familie
aufbaut und im Bild der Familie versteht, gilt Verwandtschaft in ihren Graden als das einerseits, was die
Verschiedensten verbinden kann, und als das, andererseits, wodurch wieder individuen-ähnliche Gebilde
sich von – und gegeneinander absetzen.”.

1288
abalou as estruturas da arquitetura filosófica ocidental na segunda metade do século XX. Neste
contexto e sob o pano de fundo pós-estruturalista, Derrida desenvolveu noções fundamentais
para que as reverberações ético-políticas governamentais nas sociedades, cidades e
arquiteturas contemporâneas pudessem ser pensadas, com destaque para a questão da
hospitalidade, a qual o autor desenvolveu baseando-se na noção de acolhimento elaborada pelo
filósofo francês Emmanuel Levinas (1906-1995) e alicerçando-se na perspectiva
desconstrutivista.
Isto posto, propõe-se aqui um estudo sobre as relações entre a paisagem arquitetada pelo
homem e questões ético-políticas relativas à sociedade onde este se insere. Para tanto, sugere-
se uma abstração da paisagem para pensá-la como o território onde os resultados de práticas
humanas se sedimentam e são impactados por diversos fatores, atendo-se àqueles oriundos da
ética e política. Neste sentido, portanto, a paisagem seria uma espécie de representação ético-
política. Tal proposta vai ao encontro do pensamento do grupo de intelectuais que compõem o
Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP), que percebe a
paisagem como um espaço aberto no horizonte onde se cruzam e desdobram múltiplas
experiências humanas e não humanas e têm seu significado inserido em um contexto simbólico,
no qual se presentificam corpos, território e imaginação. A política da paisagem e a paisagem
como representação ético-política envolvem pensar os corpos humanos – vivos e mortos – que
nela habitam e esta, devido a características como o espaço de encontro e reunião, a
horizontalidade e o terceiro entre o natural e o cultural, trata-se de um autêntico agente político
(SEDINI, 2017; 2018).
Tendo como alicerce teórico principal os escritos de Derrida – especificamente De l'hospitalité
(1997) – associados às leituras que deste filósofo fizeram os pensadores contemporâneos Dirce
Solis e Fernando Fuão, ambos simpáticos ao pensamento desconstrutivista derridiano, propõe-
se um exame (ou uma leitura, nos termos de Derrida) do cemitério Campo da Esperança,
construído na notoriamente moderna cidade de Brasília (DF). Lança-se como hipótese a de que,
na paisagem antropicamente arquitetada deste cemitério, os Outros10 – hóspedes, diferentes,

10
A questão da hospitalidade tal como pensada por Derrida está ligada à questão da diferença. Esta, no
entanto, não se trata da diferença excludente, que encara o Outro como “aquele que não sou eu, do qual
me precavenho e devo me proteger”; a hospitalidade derridiana diz respeito às diferenças enquanto
diferenças, e a desconstrução, sob esse ponto de vista, é uma forma de hospitalidade enquanto um
acolher, um receber o Outro, sendo, portanto, uma forma de política (SOLIS, 2009, p. 151-152).

1289
estrangeiros – são inseridos em uma espécie de política do apagamento, ato intimamente
vinculado ao que será chamado aqui de modernidade11.

2 – A questão da hospitalidade segundo o pensamento desconstrutivista


O senhor do lugar espera ansiosamente na soleira de sua casa pelo
estrangeiro, que ele verá despontar no horizonte como um libertador. E do
mais longe que o vir chegando, o senhor terá pressa em gritar-lhe: “Entre
logo, pois tenho medo da minha felicidade”. “Entre logo“ [...] entre sem
demora, faça uma pausa em nosso lar sem demora, apresse-se em entrar,
“venha ao interior”, não apenas até mim, mas em mim: ocupe-me, tome lugar
em mim [...]12. (DERRIDA, 1997, p. 109).

Segundo Solis (2009, p. 152-153), em quase todas as formas e estilos arquitetônicos, da


Antiguidade à contemporaneidade, poderia ser encontrada uma pequena ideia de
hospitalidade. Pode-se pensar que espaço construído enquanto abrigo tem sido interpretado
nas leis da hospedagem, necessitando de pelo menos dois elementos: o hospedeiro (aquele que
recebe) e o hóspede (aquele que é recebido). Estes são, por exemplo, as cidades que recebem
um estrangeiro ou viajante quando ele não traz conflitos ou interfere no cotidiano destas13. Em
tempos de paz, havia nas pólis antigas uma predominância da hospitalidade; cabe destacar que
esta, no entanto, era marcada muito mais pela tolerância entre diferentes povos que pela forma
dos edifícios, e que cada um desses elementos que serviriam para denotar hospitalidade
encerram uma ambiguidade, que será objeto da atenção de Derrida, nem sempre
imediatamente manifesta:
A própria palavra “hospitalidade”, diz Derrida, vem do latim “hospes” que é
formado de “hostis” (estranho) significando, também, o inimigo estranho
(hostilis) ou estrangeiro. Derrida aprendeu com Benveniste14 que o

11
É compreendida, de modo geral, como um fenômeno que despontou no contexto europeu e se
consolidou com a Revolução Industrial, no século XVIII, modificando relações sociais e impondo a
produção de novos valores humanos baseados no progresso, racionalidade e conhecimento científico.
12
Do original: “Le maître de céans ‘attend avec anxiété sur le seuil de sa maison l’étranger qu’il verra
poindre à l’horizon comme un libérateur. Et du plus loin qu’il le verra venir, le maître se hâtera de lui crier:
‘Entre vite, car j’ai peur de mon bonheur.’ ‘Entre vite’ [...] entre sans attendre, fais halte chez nous sans
attendre, hâte-toi d’êntrer, ‘viens au-dedans’, ‘viens en moi’, non seulement vers moi, mais en moi: occupe-
moi, prends place en moi [...].”.
13
Fuão (2014, p. 54-55) trata da questão do acolhimento como uma afetividade perdida no tempo,
fundadora do espaço da arquitetura e da cidade, e aponta que, segundo Derrida, o sentido da
hospitalidade é o que realmente funda as cidades e se relaciona ao ato de acolher, à relação entre
hóspede e hospedeiro e a tudo que possa desta advir, mostrando que o pensamento derridiano sobre a
hospitalidade convida o indivíduo a reconhecer que ele é, primeiramente e antes de nada, um hóspede
de passagem neste mundo.
14
Solis refere-se ao linguista nascido na Síria Émile Benveniste (1902-1976), que, neste contexto, disse:
“Um grupo de palavras remete a um fato social bem estabelecido: a hospitalidade, a noção de ‘hóspede’.

1290
estrangeiro (hostis) é ora acolhido como hóspede (hôte), ora como
inimigo. [...] A hospitalidade combina, então, hostis + pets (potis, potes,
potentia); indica poder. Há, assim, o hospedeiro, aquele que exerce o poder
e recebe o estranho, o dono da casa digamos; e há o hóspede, aquele que é
recebido. (SOLIS, 2009, p. 153, grifos do autor).

Para o hóspede, há sempre regras claras de comportamento e convivência ditadas pelo


hospedeiro, as quais devem ser cumpridas para que não haja um “abuso da hospitalidade”. O
hospedeiro, ou estrangeiro, deve observar limites bem definidos, sob pena de ser considerado
“intruso” ou “parasita”. De acordo com Derrida, esta ambivalência é a marca da desconstrução
com relação à hospitalidade e esta não existe de forma incondicionada, mas está sempre por
vir15 para o homem (Ibid., p. 153-154).
A ambivalência hospitalidade/hostilidade discutida por Derrida também se aplica à arquitetura
sob o prisma da desconstrução, apresentando-se como um direito moral, quase humano, um
dever de humanidade devido a um outro ser humano em razão da sua própria humanidade; em
suma: um imperativo moral que se deve indiscriminadamente a todos os indivíduos (SOLIS,
2009, p. 23-24). Neste sentido, Fuão (2014, p. 50-51) aponta que tanto para Levinas como
Derrida16 o movimento da hospitalidade é sempre um ato ético: eles entendem o Outro
enquanto o hóspede, o estrangeiro, o diferente. As figuras centrais do hóspede e hospedeiro,
pressupostas na hospitalidade derridiana com base nos fundamentos do acolhimento de

O termo de base, o latim hospes, é um antigo composto. A análise dos elementos que o compõem permite
esclarecer duas noções distintas que acabam por se unir: hospes representa *hosti-pet-s. O segundo
componente, pet-, é alternativo de pot-, que significa “senhor”, de modo que hospes significaria
propriamente ’o senhor do hóspede’.”. Do original: “Un groupe de mots se rapporte à un fait social bien
établi: l’hospitalité, la notion d’‘hôte’. Le terme de base, latin hospes, est un ancien composé. L’analyse
des éléments qui le composent permet d’éclairer deux notions distinctes et qui finissent par se rejoindre:
hospes represente *hosti-pet-s. Le second membre pet- est en alternance avec pot- qui signifie ‘maître’,
en sorte que hospes signifierait proprement ‘le maître de l’hôte’.” (BENVENISTE, 1969, p. 88, grifos do
autor).
15 No campo ético derridiano insere-se a “democracia por vir”, noção trazida pela desconstrução cujo

entendimento depende da pergunta: “[...] que comprometimentos ético-políticos temos como indivíduos,
como cidadãos em situações que na maioria das vezes fogem ao nosso controle?”; assim, desconstruindo-
se essa noção desconstroem-se os discursos universalizantes, expressões de interesses particulares e que
podem resultar na segregação dos indivíduos de diferentes etnias, religiões ou nações, retirando-lhes a
possibilidade de reconhecimento como inscritos na humanidade (FUÃO; SOLIS, 2018, p. 17-18).
16
A questão da hospitalidade é apresentada por Derrida como fundação de uma ética da alteridade
(FUÃO, 2014, p. 44), uma espécie de relacionar-se com o Outro que resguarda implicações ético-políticas,
que o filósofo desenvolveu também a partir de Levinas e tem sido amplamente problematizada no
pensamento contemporâneo.

1291
Levinas, equivalem, para Fuão (Ibid., p. 50-51), à “espera” e “errância”17. Assertivamente, o
autor pergunta:
Quem é esse hóspede? Quem é esse ser que espera, que chega muitas vezes
sem se anunciar? Quem é esse que evito colocar na ordem do discurso
arquitetônico? O que é essa coisa que chega errando, assustando? E mais
precisamente, como o discurso do acolhimento se reflete na arquitetura?
(Ibid., p. 52).

Acolhimento, que para Fuão e Derrida é sinônimo de hospitalidade, é um elemento para se


compreender a cidade e a arquitetura não apenas a fim de se perceber os lugares hospitaleiros
e hostis mas sobretudo para se abrir a um outro entendimento da arquitetura que tem as formas
de hospitalidade traduzidas em termos de abertura/fechamento18, público/privado,
familiaridade/não familiaridade etc. (Ibid., p. 43). O primeiro acolhimento seria acolher a ideia
do próprio acolhimento e, para se abrir a essa questão, é preciso abrir-se para o seu sentido,
universalizando o mundo sem torná-lo igual e unindo em simultaneidade as diferenças
existentes (Ibid., p. 43). À guisa de exemplo, Fuão (Ibid., p. 56) diz que uma casa não se torna
uma casa se não houver uma porta, uma abertura; portanto, abrir-se é a condição da
hospitalidade, pois um lugar fechado nunca é hospitaleiro para quem fica de fora. Abertura, no
entanto, não significa separação, mas abrir-se para uma possibilidade, dar passagem; assim, ao
pensar a partir do Outro e incluí-lo, é possível reestabelecer uma ética na arquitetura, já que dar
passagem à chegada daquele significa deslocar o projeto para o plano ético desta (Ibid., p. 43 e
56). Em termos arquitetônicos, logo, hospitalidade é acolher a diferença; nunca é um terreno
vazio, mas uma relação entre pessoas, entes, “ambi(entes)” (Ibid., p. 52-53).
A hospitalidade (ou o acolhimento) coloca o tema do espaço não no espaço propriamente dito,
mas no indivíduo, como se ele próprio portasse a hospitalidade; é como se o sentido estivesse
não na arquitetura, mas nas pessoas e ligações afetivas (FUÃO, 2014, p. 44). De acordo com Fuão
(Ibid., p. 44), este tema foi trasladado para o campo arquitetônico inicialmente por Dirce Solis,

17
Fuão (Ibid., p. 51) assinala ainda que hospedeiro (“espera”) e hóspede (“errância”) equivaleriam,
respectivamente, ao “ser da espera” e ao “errante” no pensamento do escritor francês Roland Barthes
(1915-1980). Segundo este, o “errante” também é o Outro, que compartilha as mesmas características
do Outro de Levinas e Derrida.
18
De acordo com Fuão (Ibid., p. 52), a hospitalidade é uma questão muito mais de abertura que de
fechamento e pode ser oferecida apenas por alguém em um aqui e agora, em uma situação específica.
Não é possível pensar a hospitalidade somente em sua relação com o lugar que a funda; na verdade, é
como se este pertencesse ao gesto mesmo pelo qual um oferece acolhida ao Outro, sobretudo se o Outro
está sem morada. Assim, a questão da hospitalidade é tratada não só como o lugar que faz repensar a
arquitetura mas como o lugar onde se deveria receber o(s) Outro(s) que não têm papel na sociedade
(Ibid., p. 55-56).

1292
que, para tal, adotou como procedimento uma “estratégia de leitura” sob uma perspectiva
filosófica: trata-se de “ler-o-texto-da-desconstrução”, especialmente o “texto arquitetônico
desconstruído”, a partir de Derrida e com ele discutir quando necessário19. Com este
procedimento, a autora investigou a questão do abrigo, da moradia (que neste estudo será
representada pelo cemitério – a última morada20) e do que eles poderiam imediatamente trazer
à tona: a hospitalidade (SOLIS, 2009, p. 22-23).
Solis (Ibid., p. 155-156) afirma que a desconstrução derridiana em arquitetura parece reproduzir
a ambivalência da hospitalidade e que não há nada fora do texto arquitetônico21, que é passível
de interpretação ao ser desconstruído. Neste sentido, Derrida não se refere ao “objeto
arquitetônico” enquanto desconstruído, mas ao acesso à realidade deste objeto, feito por meio
de quase-conceitos que possibilitam esse acesso, os quais incluem os sistemas de linguagem,
cultura e representação marginalizados para além das fronteiras da razão logocêntrica do
mundo ocidental. Portanto, a desconstrução “textualiza” as coisas, e este “texto” se apresenta
como hospitalidade; assim como a interpretação do “objeto arquitetônico” como “texto”
presentifica a aporia22 hospitalidade/hostilidade (Ibid., p. 156-160).
De acordo com Solis (Ibid., p. 150-151), a questão da hospitalidade é sempre pensada em termos
de arquitetura. Nos ensaios publicados em De l’hospitalité, oriundos de investigações
apresentadas por Derrida primeiramente na conferência intitulada Questions of Responsability:
Hostility/Hospitality, na Universidade John Hopkins (EUA), em março de 1996, o filósofo se
pergunta sobre a ambivalência da questão da hospitalidade e faz dela uma questão da política
por vir, defendendo o “deixar vir o outro” – que significa respeitar a multiculturalidade sob todas
as formas (religiosa, cultural, racial e – por que não – social, sexual etc.?) – e a aceitação das
diferenças enquanto diferenças, não enquanto “identidades” (os Outros, diferentes) “que
possam se aproximar de nós” (os iguais, familiares):
A hospitalidade diz respeito, em primeiro lugar, às diferenças enquanto
diferenças. A desconstrução sob esse ponto de vista é uma forma de

19
A autora esclarece que este “ler-Derrida” não significa, no entanto, corroborar integralmente todas as
afirmações do autor sobre a desconstrução e seus desdobramentos, mas a partir dele e com ele discutir
quando julgar necessário (SOLIS, 2009, p. 22).
20
Fuão (2014, p. 54) diz que a hospitalidade derridiana fala de uma primeira morada e também de uma
última, razão pela qual a “morada”, neste estudo, será tratada como o próprio cemitério, ou o “texto
arquitetônico cemiterial desconstruído”.
21
Aludindo à frase de Derrida ([1967] 1973, p. 119): “não há nada fora do texto” (“il n'y a pas de hors-
texte”).
22
Em termos gerais, a aporia no pensamento derridiano seria uma espécie de impasse identificado pela
leitura textual desconstrutivista, o qual serviria para mostrar que o sentido de um texto invariavelmente
atingiria o nível da indeterminação, ou indecidibilidade.

1293
“hospitalidade”, enquanto um acolher, um receber o outro. É, portanto, uma
forma de política, mas uma forma de compreender dentro dessa dimensão
política, também a arquitetura. (SOLIS, 2009, p. 152).

Historicamente, a hospitalidade sempre foi condicionada aos iguais, familiares, cidadãos. Neste
contexto, a primeira regra referia-se ao grupo familiar e às relações de parentesco: hospedar
“bem” era condição de apreço doméstico e estima, e a condição para ser “bem-recebido” era a
de ser íntimo ou integrado à parentela. Por isso é que o acolhimento, de certa forma, assume
este ar familiar, sobretudo em sociedades nas quais a tradição com base no parentesco
desempenha papel fundamental na reprodução e hierarquização do grupo social23. Na
contemporaneidade, a hospitalidade é pensada como um fazer do Outro, acolhido
independentemente do parentesco; tomada neste sentido, é remetida à cidadania e a regras,
direitos e deveres do grupo que acolhe, regras, direitos e deveres esses que definem a inclusão
nesta mesma cidadania. Com efeito, a definição de qualquer palavra destes binômios
(hospitalidade/hostilidade; cidadania/não cidadania e inclusão/exclusão) depende da política e
do direito político, humano, social, e todas essas variáveis serão condicionantes da arquitetura
e imperativos morais de inclusão (Ibid., p. 24-25).
Para Fuão (2014, p. 49), a questão da hospitalidade enquanto política (pólis, público/privado)
requer necessidades e configurações distintas das existentes nas cidades contemporâneas, já
que aquela mostra o quanto estas vêm se tornando cada vez mais hostis e o quanto a arquitetura
que nelas é construída – fechando sobre o já fechado – corrobora um isolamento que insufla
violência (Ibid., p. 43). O autor ressalta ainda que tais cidades estão organizadas com base na
segregação, que separa grupos e classes sociais, agrupando e afastando as diferenças pelos mais
refinados artifícios. A organização que caracteriza a cidade formal, pré-configurada, é
basicamente a segregação espacial, a definição de usos, e quando esta ordem é desafiada, não

23
A esse respeito, Derrida faz uma distinção entre A lei da hospitalidade – que é incondicional, não solicita
identidade, nome, sobrenome e não quer nada em troca – e as leis da hospitalidade, que são: “[...] esses
direitos e deveres sempre condicionados e condicionais, tais como os define a tradição greco-latina, ou
mesmo a judaico-cristã, todo o direito e toda a filosofia do direito até, particularmente, Kant e Hegel,
através da família, da sociedade civil e do Estado.”. Do original: “[...] ces droits et ces devoirs toujours
conditionnés et conditionnels, tels que les définit la tradition gréco-latine, voire judéo-chrétienne, tout le
droit et toute la phiosophie du droit jusqu’à Kant et Hegel en particulier, à travers la famille, la société
civile et l’État.” (DERRIDA, 1997, p. 73). Segundo Solis (2009, p. 155), Derrida observa que essas leis da
hospitalidade são devidas a um modelo patriarcal e falogocêntrico no qual o déspota familiar, o pai, o
patrão, é o responsável pelas regras. A autora afirma ainda que a exigência de hospitalidade não consegue
ser destruída pela ambivalência Lei incondicionada/leis de direitos e deveres, pois um termo implica o
outro, tal como implicam uma ética, uma política e um direito (DERRIDA, 1997, p. 131). Portanto, trata-se
sempre de uma ligação do problema da hospitalidade com questões éticas, políticas, morais e jurídicas.

1294
apenas em seu sentido e uso mas na estrutura física do espaço, é que começa a hospitalidade
(Ibid., p. 54):
Nossas cidades, nossos bairros, nossas casas tornaram-se mais hostis,
individualistas e/ou fechadas em grupos, conformam o que chamaríamos de
a infelicidade da “cidade da tolerância”. Não acolhemos de fato, apenas
toleramos. Os elementos arquitetônicos dessa triste hostilidade todo mundo
conhece, e os arquitetos mais ainda. Os arquitetos são educados a perpetuar
desde cedo nas escolas esses modelos [...]. (FUÃO, 2014, p. 58).

Provavelmente referindo-se ao modernismo arquitetônico, Fuão (Ibid., p. 58) diz que não é mais
possível pensar a cidade como uma “arte de acomodar utopias”, que transformam diferenças
em indiferenças e pensam a cidade por meio da estética, não da ética; a esse respeito, a política
da hospitalidade é sempre uma “ética de desacomodação”, a qual retira tudo do cômodo e o
reestrutura de outro modo para receber o Outro. Conforme o autor (Ibid., p. 59 e 62), faz-se
cada vez mais emergente estudar o tema da desacomodação da cidade pré-configurada para
receber esses Outros, e a capacidade para este ato representa a própria hospitalidade; para isso,
não é necessário dar nada em troca, apenas a presença de quem espera e de quem chega, pois
a hospitalidade se funda, principalmente, na impossibilidade de retribuição. Inclusive, a
hospitalidade é mais visível onde falta tudo, quando não há quase nada para oferecer e
importam apenas os vínculos de solidariedade: o acolhimento pode se dar mesmo na ausência
de uma casa, como no caso de moradores de rua. A lei da hospitalidade endereça, em um
primeiro momento, a questão da morada; mas, sob o pano de fundo da desconstrução, no
núcleo daquela está a negação dessa morada, que reenvia constantemente a uma ausência da
morada na existência humana (Ibid., p. 63).

3 – Hospitalidade na paisagem ético-política do cemitério Campo da Esperança (Brasília, DF) e


Conclusão
De acordo com os geógrafos franceses Nathalie Blanc e Étienne Grésillon, Derrida pouco
desenvolveu o tema da paisagem; entretanto, os autores defendem que elementos do
pensamento derridiano possibilitam uma redefinição das relações dos seres humanos com os
ambientes que os abrigam24. Pensa-se aqui o cemitério como um destes, que, além de abrigarem

24
“[...] en dehors de la ville, Derrida a très peu travaillé l’espace ou les notions propres à la géographie
(paysage, territoire, etc.). [...] notre thèse est que plusieurs éléments font de Derrida potentiellement un
prescripteur pour la redéfinition des relations des êtres humains à leur environnement [...].” (BLANC;
GRÉSILLON, 2016, p. 47).

1295
os mortos25, envolvem a ação direta dos vivos e operam como cenários de rituais fúnebres; os
túmulos, enquanto construções materiais, representam também o elo simbólico e imaterial de
ligação entre mortos e vivos (SILVA, 2019, p. 498-499). Logo, o cemitério é um espaço
ambivalente ou, como talvez dissesse Derrida, portador de uma “ambivalência indecidível”: ao
mesmo tempo que pode representar um espaço Outro, completamente estranho, perturbador
e não familiar, tem sido para o ser humano a última e eterna casa, que, na arquitetura,
representa o doméstico, o aconchego. Similar a esta questão é a da hospitalidade, cuja
[...] ambivalência faz vir à tona o espaço que abriga e acolhe; mas também
todos os elementos que indicam rejeição, expulsão, não acolhimento e que já
não dizem mais respeito à forma em arquitetura, mas aos valores de
humanidade que se fazem presentes, que novamente afloram. (SOLIS, 2009,
p. 160, grifo do autor).

De acordo com Fuão (2014, p. 85), a hospitalidade está atrelada ao lar e culto dos mortos, os
quais, neste domínio privado, representam os deuses lares. Já no domínio público (a cidade,
pólis), o Estado governa a vida humana desde o nascimento até a morte, não oferecendo
acolhimento ou morada a quem precisa (Ibid., p. 63) nas cidades dos vivos ou, tampouco, nas
dos mortos. Portanto, pode-se pensar o cemitério como um espaço político onde é conformada
uma paisagem ético-política na qual os corpos mortos estão à mercê da ética dos vivos, que
podem administrá-los e fazê-los desaparecer sem deixar rastros, configurando uma espécie de
política do apagamento. Mas esses mortos, que podem subitamente desaparecer dos cemitérios
modernos, tinham alguma visibilidade quando vivos? Se tivessem sepultura na paisagem, seriam
lembrados ou reverenciados depois da morte?
O Campo da Esperança foi projetado pelo arquiteto e urbanista Lucio Costa (1902-1998) na
década de 1950 e inaugurado em 1959, antes mesmo da inauguração de Brasília. Ao anteceder
o nascimento da própria cidade, esse espaço da morte trouxe consigo uma primeira marca da
desconstrução. Concebida no seio da modernidade, a arquitetura cemiterial brasiliense
naturalmente reflete alguns aspectos modernos, como a organização geometrizada e racional
da planta, que impôs a segregação social e religiosa entre mortos26; a expurgação da morte da

25
Este é, portanto, o elemento central, a unidade que fez nascer este estudo: o corpo humano morto e o
que dele pode surgir. Junto as suas moradas individuais – as sepulturas –, os mortos conformam as
paisagens cemiteriais, que podem ser “lidas” como representações ético-políticas arquitetadas com base
na hospitalidade.
26
Há pequenos cemitérios dentro do cemitério Campo da Esperança: os de autoridades, pioneiros, judeus,
islâmicos e enterramento social.

1296
paisagem cotidiana dos vivos, conforme deixa claro Costa no Relatório do Plano Piloto (1957)27;
e, como supõe-se aqui, uma espécie de limpeza humana, ou apagamento dos Outros, os
hóspedes na casa cemiterial. Segundo Fuão (Ibid., p. 70), a filosofia tem servido de metáfora da
casa, do lugar para explicar o ser, mas, simultaneamente, a casa é a própria condição da
existência humana. Derrida e Levinas mostram que os seres humanos são, ao mesmo tempo,
hóspedes e hospedeiros sem lugar nesta vida, e a casa não passa de uma ilusão, um efeito de
superfície. Os vivos, que no cemitério são os hospedeiros, transformar-se-ão em hóspedes um
dia, representando a hospitalidade que estranhamente “transforma o outro em sua própria
condição” (Ibid., p. 83).

Figura 01: a casa cemiterial moderna e seus lugares de alteridade: áreas de sepultamento de
muçulmanos (imagem n.º 1) e judeus (imagem n.º 6), religiões que necessitam de cemitérios individuais;
áreas de sepultamento de autoridades e pioneiros (imagens n.º 4 e 5) e áreas de sepultamento social
(imagens n.º 2 e 3).

6
4
1

4
2

3 3

Fontes: o autor, com a colaboração do arquiteto Brahyner Lemos Figueiredo (planta); O autor (imagens
n.º 1, 4, 5 e 6); DISTRITO FEDERAL, 2017, p. 34 (imagem n.º 2); CENTRO DE EXCELÊNCIA
ADMINISTRAÇÃO E FINANÇAS, 2020 (imagem n.º 3).

27
“19 - Os cemitérios localizados nos extremos do eixo rodoviário-residencial evitam aos cortejos a
travessia do centro urbano. Terão chão de grama e serão convenientemente arborizados, com sepulturas
rasas e lápides singelas, à maneira inglesa, tudo desprovido de qualquer ostentação.” (COSTA [1957],
1991, p. 13).

1297
O Campo da Esperança e os outros cinco cemitérios atualmente ativos no Distrito Federal28 são
administrados pela empresa Campo da Esperança Ltda., cujo contrato de concessão foi
celebrado entre esta e o Governo do Distrito Federal em 13 de fevereiro de 2002. Tal acordo
visa, entre outros objetivos, à “modernização das instalações físicas” e “exploração econômica
das atividades inerentes aos serviços públicos de cemitérios” por no mínimo dez anos (DISTRITO
FEDERAL, 2002, p. 1). Segundo a jornalista Ana Maria Campos (2012), esse contrato entregou a
um grupo privado um “negócio” que mais uma vez misturava uso do solo com interesses
políticos, empresariais e sociais.
Seis anos depois, em 18 de março de 2008, foi instalada em Brasília uma Comissão Parlamentar
de Inquérito (CPI) dos Cemitérios, fundamentada em denúncias recebidas pela ouvidoria da
Câmara Legislativa do Distrito Federal e matérias jornalísticas, que se destinou a investigar
“irregularidades e atos de improbidade administrativa” ocorridos no âmbito da gestão
cemiterial do DF entre 1999 e 2007 (CLDF, 2008, p. 3-8). Dentre as denúncias, as principais
diziam respeito “à remoção não autorizada, ou não comunicada às famílias, de restos mortais
de parentes enterrados em cemitérios do Distrito Federal” (CLDF, 2008, 17). O relatório final da
CPI, publicado em setembro de 2008, reúne os trabalhos investigativos realizados pelos
membros daquela Comissão, que apontaram a existência de uma “política ‘mercenária’, de
cunho eminentemente comercial [...], em detrimento da função social que deveria nortear a
atividade exercida pela concessionária de investimentos nos cemitérios” (Ibid., p. 37).
O documento também relata que a empresa concessionária utilizava o artifício de remover os
restos mortais para um ossuário sem o conhecimento das famílias, sendo que, em alguns casos,
as ossadas não foram separadas nem identificadas, sendo utilizada apenas uma pá mecânica no
terreno. Ademais, a empresa demolia sepulturas de uma gaveta, localizadas nas áreas de
enterramento social, sob o argumento de que “era necessário abrir espaços para novos
sepultamentos”, onde eram construídos novos jazigos, de três gavetas, vendidos a preços
elevados e havendo pressão sobre as famílias para a compra de mais de uma gaveta, com vistas
à “utilização futura” (Ibid., 37-38).
As áreas antigas do cemitério, pouco lucrativas (por serem reutilizadas somente mediante
exumações), haviam sido negligenciadas e se encontravam em estado de abandono, sem
manutenção ou conservação, embora muitas famílias pagassem a taxa de manutenção dos

28
São eles: São Francisco de Assis, Taguatinga; cemitério do Gama, Gama; cemitério de Sobradinho,
Sobradinho; Santa Rita, Planaltina e cemitério de Brazlândia, Brazlândia.

1298
jazigos. A empresa concessionária impõe uma série de dificuldades para exumação e
sepultamentos nas áreas antigas, privilegiando as áreas parque novas, mais onerosas e
lucrativas (Ibid., p. 38).
As áreas de enterramento social, onde eram sepultados gratuitamente indigentes ou pessoas
carentes de recursos financeiros, em geral eram consideradas “nobres” em razão de sua
destinação inicial ter sido para áreas hoje localizadas em lugares mais valorizados: na entrada
do cemitério ou próximos às capelas deste. Assim, a remoção de restos mortais dessas áreas –
que a empresa concessionária chamou de “reciclagem” (Ibid., p. 37) – configura a hipótese aqui
lançada, de que a exclusão destes Outros da paisagem cemiterial representa uma política de
apagamento baseada em um aniquilamento dos diferentes, na supressão dos hóspedes
indesejáveis. Para Fuão (2014, p. 69), lugares acolhedores são os que conseguem juntar as
grandes diferenças e reduzi-las a pequenas, a singularidades; na paisagem arquitetada no
Campo da Esperança, no entanto, vê-se o inverso: o afastamento entre diferenças, tal como
propalou a modernidade na arquitetura das cidades dos vivos, as pré-configuradas, que
pensavam a pólis por meio da estética e não da ética.
O acolhimento é uma po-ética da arquitetura, uma pró-ética, mas essa
poética não é a poética das formas arquitetônicas, mas as formas dessa pró-
ética. E essa ética é sempre uma ética de religação de singularidades dos
lugares e das pessoas, do mundo. O outro é sempre um outro espaço, um
outro lugar, um outro tempo, um síngulo. (Ibid., p. 71, grifo do autor).

Outra denúncia apontada no relatório da CPI dos cemitérios foi a dos enterros de três corpos
em uma mesma cova, no caso de sepultamento de indigentes, o que é proibido por lei pelo
decreto regulamentador e pelo contrato de concessão (CLDF, 2008, p. 40). Esses indigentes – os
Outros, errantes, hóspedes nas cidades dos vivos e dos mortos – são aqueles que encontram a
fissura dos hospedeiros e podem desestruturar a lógica destes, virando-os do avesso (FUÃO,
2014, p. 80). No cemitério – última e derradeira casa –, o silêncio é sepulcral, total e definitivo,
no entanto, os Outros, silenciados na vida e apagados na morte, não desaparecem por completo,
estes retornam sob forma de espectros e, na paisagem do Campo da Esperança, voltam para
obsidiar os vivos e denunciar “violências políticas” e outras formas de totalitarismo, pois, como
aponta Derrida ([1993] 1994, p. 13), “justiça alguma parece possível sem o princípio da
responsabilidade para com os que não estão vivos”.

1299
Referências

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CAMPOS, Ana Maria. Cemitérios do DF têm administração terceirizada e acumulam reclamações.


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DISTRITO FEDERAL. Controladoria-Geral do Distrito Federal. Relatório de Inspeção nº 02/2017 –


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1300
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SILVA, Leonardo Oliveira. Espaços da morte no Distrito Federal (2008-2018): um estudo comparativo. In:
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SOLIS, Dirce Eleonora. Desconstrução e arquitetura: uma abordagem a partir de Jacques Derrida. Rio de
Janeiro: Uapê Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas, 2009.

1301
CAMINHOS POSSÍVEIS: IMAGEM NEGRA, TRABALHO E PAISAGEM URBANA
Nó4 - O silêncio dos silentes, dos mistérios.

Gabriela Leandro Pereira


Arquiteta e Urbanista; professora adjunta da FAUFBA/UFBA; gabrielagaiaa@gmail.com.

Thalia Santos Silva


Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; FAUFBA/UFBA; silva.01.thalia@gmail.com.

O presente trabalho parte da percepção da coexistência temporal do uso da fotografia no século


XIX e das dinâmicas do trabalho, cativo e de ganho, bem como da transição para o trabalho livre,
para a investigação da produção iconográfica – em acervos de instituições, arquivos, publicações
– que abarca as trabalhadoras e trabalhadores negros urbanos no século XIX no território
compreendido como Centro Antigo da cidade de Salvador. Está compreendido dentro do projeto
de pesquisa A Presença negra no centro antigo de Salvador: saberes, fazeres e ofícios,
contemplado pelo Programa Permanecer - PROAE/UFBA, e coordenado pela Profª Gabriela
Leandro Pereira.
Palavras-chave: trabalho urbano; pessoas negras; fotografia; acervos.

The present work starts from the perception of the temporal coexistence of the use of
photography in the 19th century and the dynamics of work, captive and gain, as well as the
transition to free work, for the investigation of iconographic production – in collections of
institutions, archives, publications – which encompasses urban black workers in the 19th century
in the territory understood as the Old Center of the city of Salvador. It is understood within the
research project The Black Presence in the old center of Salvador: knowledge, doing and crafts, ,
contemplated by the Permanecer Program - PROAE/UFBA, and coordinated by Prof. Gabriela
Leandro Pereira.
Keywords: urban work; black people; photography; collections.

1302
1 – Introdução
Buscando compreender as relações da presença negra no Centro Histórico de Salvador e as
conexões com os espaços públicos da cidade, a pesquisa A Presença negra no centro antigo de
Salvador: saberes, fazeres e ofícios (PROAE/FAUFBA) se propôs a investigar a produção
iconográfica – em acervos de instituições, arquivos, publicações – que abarca as trabalhadoras
urbanas no século XIX no território compreendido como Centro Antigo da cidade de Salvador.
Nas imagens produzidas no início da fotografia dos centros urbanos no Brasil, é possível
perceber vultos, “fantasmas vivos” que transitavam pelos espaços. Estes “fantasmas” muitas
vezes eram as trabalhadoras e trabalhadores urbanos, como as ganhadeiras e ganhadores, as
quituteiras, os carregadores, as quitandeiras, etc., que se deslocavam pela cidade. Entre ruas,
feiras, praças e mercados públicos, as ganhadeiras eram de extrema importância no comércio
de bens alimentícios na cidade do Salvador e em outras cidades do Brasil, sendo sua presença
relatada também por diversos viajantes que aportaram nas cidades do país ao longo do século
XIX. “Nos tabuleiros, que podiam ser fixos em pontos das ruas ou carregados na cabeça, eram
oferecidos outros tantos produtos e utensílios, como pastéis, fitas, linhas, linho e outros objetos
necessários ao uso caseiro" (SOARES, 1994, pág. 59)
Tendo em vista a coexistência temporal do uso da fotografia no século XIX e as dinâmicas do
trabalho, cativo e de ganho, e a transição para o trabalho livre, é possível que as fotografias nos
informem sobre dimensões importantes da presença negra em centros urbanos, como
Salvador?

2 – A evolução da fotografia e o Brasil


A fotografia surge no início do século XIX e rapidamente vai ganhando espaço como expressão
imagética de uma sociedade em constantes mudanças socioeconômicas como, por exemplo, o
desenvolvimento tecnológico de novas fontes de energia e o crescimento das indústrias em
muitas cidades europeias e nos Estados Unidos. Um dos primeiros registros conhecidos é
atribuído ao francês Joseph Nicéphore Nièpce (1765-1833) e sua imagem A mesa posta, de 1822.
Porém foi Louis Jacques Daguerre (1787-1851) que se tornou reconhecido pela descoberta do
princípio da fixação e obtenção de imagens de melhor qualidade ao inventar o daguerreótipo,
em 1838, a partir dos aprimoramentos dos inventos de Nièpce.1

1
MAYA, 2008; OLSZEWSKI FILHA, 1989;

1303
No Brasil, o século XIX se caracteriza por diversas mudanças impulsionadas, dentre outras
razões, pela vinda da família real portuguesa em 1808. Além disso, o interesse na América do
Sul cresce, incluindo o Brasil, que se torna espaço de oportunidade para diversas expedições de
estudiosos, artistas, mercadores europeus, etc. É nesse fluxo de estrangeiros no Brasil que a
fotografia chega ao país, com a presença do primeiro daguerreótipo datada da década de 1840.
A presença da família real e seu interesse na fotografia contribuem para a adoção deste tipo de
representação por parte da elite brasileira. Dentre os gêneros, o retrato em daguerreótipo se
tornou bastante popular como relata CAMPOFIORITO (1983):
Devido ao seu alto custo, o retrato foi o gênero mais solicitado tendo o
daguerreótipo registrado uma parcela das figuras mais proeminentes da
nobreza e da burguesia nacional. Sem dúvida o interesse da Família Imperial
em se fazer fotografar influenciou toda a sociedade ávida de lhes fazer
semelhança. (CAMPOFIORITO, 1983, p. 18, apud. OLSZEWSKI FILHA, 1989, p.
35)

A possibilidade de registro de si e de momentos da vida em sociedade alcança diversas parcelas


da população ao passo que as técnicas fotográficas evoluem. De forma paralela à criação do
daguerreótipo, temos o físico inglês William Henry Fox Talbot (1800-1877) desenvolvendo
técnicas diversas de fixação da imagem em diversos materiais, como o papel – apesar de
inicialmente a impressão em papel não ter grande impacto por conta da baixa qualidade e da
ideia de exclusividade em torno do daguerreótipo (única cópia, custos, etc.).
A popularização da fotografia no Brasil se conecta à invenção do fotógrafo francês André
Adolphe Disdéri (1819-1889), em 1854, do carte-de-visite juntamente com a melhoria de
processos como o colódio e a albumina. Surge assim a possibilidade de cópias da fotografia
ligada à produção do formato carte-de-visite e a criação dos álbuns fotográficos que continham,
para além de fotos familiares, imagens de pessoas lidas como importante para a sociedade –
como a família real, por exemplo. A existência dos carte-de-visite permitiu também o
barateamento dos processos fotográficos, o que contribuiu para sua popularização em parcelas
mais pobres da população. Os estúdios fotográficos, principais produtores de imagens nesse
primeiro momento, investiram na criação de narrativas atrelada à confecção dos retratos, que
conquistou a busca de projeção de sua imagem da nova classe que se formava:
“A introdução dos novos processos fotográficos no Brasil coincidiu, na
realidade, com a formação gradativa de uma classe média urbana nas maiores
cidades costeiras. Nesta fase já não será apenas a elite constituída pela
aristocracia agrária a clientela dos fotógrafos, mas também os pequenos
comerciantes, os funcionários da administração das províncias, os militares

1304
de menor patente, os artesãos mestiços, imigrantes e até os escravos
alforriados.” (KOSSOY, Boris, 1983, p. 877 apud OLSZEWSKI FILHA,1989, p. 38)

3 – Acervos Fotográficos
Considerando a relativa popularização da fotografia à partir da segunda metade do século XIX
no Brasil, a pesquisa se debruça sobre sua produção e características, sobretudo aquelas nas
que possam ter sido capturadas imagens de trabalhadoras negras urbanas. Abaixo, estão
itemizados os acervos elencados pela pesquisa até o momento, com o intuito de iniciar um
mapeamento sobre os possíveis lugares (físicos e/ou virtuais) de investigação relacionados à
temática de estudo.
1. Acervo da Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia
2. Biblioteca Digital Mundial (Acervo Digital)
3. Biblioteca do Congresso (EUA) (Acervo Digital)
4. Biblioteca Nacional Digital (Acervo Digital)
5. Biblioteca Pública de Nova York (Acervo Digital)
6. Fundação Gregório de Matos (Acervo Físico)
7. Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ) (Acervo Físico)
8. Instituto Feminino da Bahia (Biblioteca Marieta Alves) (Acervo Físico)
9. Instituto Histórico e Geográfico da Bahia (Acervo Físico)
10. Instituto Moreira Salles (Acervo Digital)
11. Museu Afro-Digital da Memória Africana e Afro-Brasileira (Acervo Digital)
12. Nationaal Archief (Acervo Digital)
13. Retratos Modernos / Arquivo Nacional (Acervo digital)
14. SMB-digital (Museus Estatais de Berlim) (Acervo digital)
Considerando o recorte temporal da pesquisa (séc. XIX), as informações contidas nos descritores
dos acervos sobre localização das fotografias, e pesquisas biográficas sobre as trajetórias
profissionais dos fotógrafos, até esta publicação, foram mapeados 16 fotógrafos e uma empresa
de bilhetes postais que atuaram em Salvador e/ou produziram retratos de pessoas negras cuja
produção acessada foi considerada relevante para essa pesquisa.
Tais fotógrafos atuaram em diversos períodos ao longo do século XIX e utilizaram diferentes
técnicas fotográficas em suas atividades profissionais.
O século XIX é conhecido por diversas expedições científicas para as Américas, o que fez com
que na segunda metade do século se testemunhasse o encontro de fotógrafos e viajantes, a

1305
criação da fotografia com fins científicos, as séries de costumes transpostas para os estúdios, e
a individuação promovida pelo fenômeno das cartes-de-visite que inundam a sociedade imperial
em diversas capitais (HEYNEMANN, 2012, p.4). Podemos citar como exemplo a expedição
Comisión Científica del Pacífico que ocorreu entre 1862 e 1866 organizada pelo governo
espanhol com o objetivo de percorrer o continente americano, e que teve como um dos
participantes o fotógrafo Rafael Castro y Ordoñez.
Ocorre também ao longo do século diversas obras públicas, sobretudo ligadas ao transporte,
que contaram com a participação de diversos fotógrafos que eram também, algumas vezes,
desenhistas, engenheiros, etc. Podemos citar obras como a construção da Estrada de ferro da
Bahia a São Francisco documentada por Benjamin Mulock; a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré,
construída entre 1908 a 1912, que contou com Camillo Vedani na equipe de desenho inicial em
1883, e com fotografias de Dana B. Merril; e as obras urbanísticas da São Paulo Tramway, Light
and Power Company, cujos registros foram feitos por fotógrafos como o Guilherme Gaensly.

4 – Trabalhadores no estúdio
Em seu trabalho Olszewski (1989) identifica dois ramos principais da produção fotográfica no
século XIX: a reprodução da natureza, com fotos de paisagens, frequentemente voltada para o
turismo crescente; e o retrato, muito importante na produção de estúdios na Bahia. Devido à
demora na captura das imagens e necessidade de maior controle de luz, os estúdios se tornaram
os principais meios de produção das imagens de um público cada vez mais interessado na
captura e na criação de uma representação idealizada de si. Koutsoukos (2007), ao analisar o
funcionamento dos estúdios fotográficos da segunda metade do século XIX, reflete sobre as
influências dos princípios da pintura nas fotografias que eram produzidas, observando como
durante muito tempo os retratos buscavam simular, a partir de composições corporais e
inserções de objetos em cena, a ideia de status e respeitabilidade, o que foi sendo incorporada
as fotografias realizadas. Desta forma, muitos estúdios contavam com diversos cenários
fantasiosos, promovendo uma fluidez entre realidade e ficção com a presença de colunas,
pilares, vegetações e ofertando vestuários que seguiam a moda da época a fim de atender os
anseios de auto-representação da clientela (FATH, 2009, p. 35).
Segundo Boris Kossoy e Mª Luiza Tucci (2002, apud HEYNEMANN, 2012, p. 6) a existência de
imagens de pessoas negras nas cartes-de-visite produzidas no Brasil pode ser dividida em três
possibilidades: como contratante; como parte de uma relação senhor - escravo e, a serviço do
fotógrafo, como modelo para as séries de suvenires vendidas comercialmente.

1306
Parte dessa comercialização era destinada a viajantes que estavam no Brasil, muito deles
estudiosos que acompanhavam expedições científicas. A partir disso pode-se perceber tanto a
presença de padrões fotográficos muito utilizados para catalogações científicas, como as
antropológicas, em diversos retratos encontrados de pessoas negras produzidos em estúdios e
comercializados como cartões de visita. São retratos de bustos, sem muitos adereços,
focalizando os traços dos rostos, com posições frontal ou de perfil.
Nos registros referentes às fotografias de estúdio acessados até o momento, são variados os
retratos de pessoas negras, cuja identificação, em alguns casos, apresenta informação como
etnia ou ofício que desempenha. Tais retratos aparecem em formato de corpo inteiro ou de
busto, estes bastante frequentes, com posições de três quartos de perfil, frontal e às vezes de
perfil. Muito deles contam com decorações, mesas, cadeiras, fundos que simulam espaços
externos, vegetações, além de objetos como cestos, frutas e instrumentos típicos dos
trabalhadores urbanos retratados. Ainda, nas legendas das fotografias encontradas, poucas
vezes estão informados os nomes das pessoas fotografadas quando se tratavam de retratos de
pessoas negras.
Um aspecto importante de observar em algumas das fotografias de corpo inteiro é a
presença/ausência de calçados nos pés dos fotografados, uma vez que andar descalços era
atrelada a condição de escravizados. Assim, mesmo em fotos de mulheres com vestidos longos,
ou cercadas por objetos (simulando produtos a venda, por exemplo – Figura 01), é possível notar
a atenção do fotógrafo ao evidenciar os pés descalços, de forma tal que destaque a condição de
escravizada de quem se está fotografando.

Figura 01: Produções de Cristiano Junior – Vendedora de legumes / Casal de vendedores. Rio de Janeiro
(estúdio), c. 1866. Autor: Christiano Júnior

Fonte: LEITE (2011).

1307
O século XIX é conhecido por diversas expedições científicas para as Américas, o que fez com
que na segunda metade do século se testemunhasse o encontro de fotógrafos e viajantes, a
criação da fotografia com fins científicos, as séries de costumes transpostas para os estúdios, e
a individuação promovida pelo fenômeno das cartes-de-visite que inundam a sociedade imperial
em diversas capitais (HEYNEMANN, 2012, p.4).
Uma questão interessante é observar como os fotógrafos transportaram atividades realizadas
nas ruas da cidade para o estúdio, simulando muitas vezes a interação entre vendedor e cliente
ou a feitura do objeto vendido. Um exemplo disso é o trabalho do fotógrafo açoriano Christiano
Júnior, que se instala no Brasil a partir de 1855 e produz uma série de fotografias, na época em
que trabalhou no Rio de Janeiro, da população cativa da cidade. Acerca do seu trabalho Leite
(2011) descrevem:
Dentre o material deixado por Christiano, os retratos de corpo inteiro são
aqueles que mais nos chamaram a atenção, são neles que vemos os negros
executando os mais diferentes ofícios, típicos dos escravos de ganho:
vendedores de frutas, barbeiros, amoladores de facas, carregadores, entre
outros. Estas imagens são vendidas no comércio local e servem como uma
espécie de souvenir dos trópicos, sobretudo, útil ao imaginário que
acompanha os viajantes que por aqui passam. (LEITE, 2011, p.34)

Por meio dessas reflexões levanta-se um questionamento sobre a interlocução possível entre os
fotógrafos e essas trabalhadoras no espaço urbano. Quais são os caminhos possíveis de construir
quando se cruza os trânsitos das ganhadeiras na cidade de Salvador e a localização de estúdios
fotógrafos no espaço da cidade?

5 – Possíveis caminhos reflexivos / Caminhos que se cruzam


Buscando localizar os estúdios no espaço urbano de salvador, foram consultados no acervo
digital da Biblioteca Nacional os Almanaks Administrativo, Mercantil e Industrial da Bahia (BA)
de divulgação dos diversos trabalhadores no século XIX. Os exemplares que se teve acesso
compreendem os anos de 1854, 1855, 1857, 1858, 1860, 1862 e 1863. Uma coisa importante de
destacar é que a divulgação de pessoas ligadas à fotografia se dava por denominações como
Retratista à “daguereotypo/ electrotypo”, só aparecendo a expressão “photographia” uma vez
no Almanak de 1863. Nos Almanaks consultados foram localizados estúdios de fotógrafos
anteriormente levantados, como Francisco Napoleão Bautz e João Goston, bem como nomes de
profissionais até o momento não encontrados em outras fontes, sendo necessária investigações
mais profundas sobre estes últimos.

1308
A existência de fotografias que simulem o trabalho de ganhadoras em estúdio nos leva a
especular sobre a convivência dos fotógrafos e esses trabalhadores considerando a
representação das vidas nas ruas para os estúdios – observado nas fotografias acessadas.
Como exemplo, toma-se o Largo do Theatro, local de estúdios de fotógrafos como o de Gaensly
& Lindermann. No largo, se localiza o que hoje é conhecida como Praça Castro Alves, que no
início do século XIX, ainda era chamada de Portas de São Bento, até a construção do Theatro
São João, em 1812, quando passou a ser chamado de Praça de São Bento, depois, Largo do
Theatro (CAVALCANTE, 2017, p. 39-40). Era um local de convergência de ruas que possuíam a
presença do comércio (de fotografia, inclusive) e de cantos de trabalhadores de ganho.

Figura 02: Mapa de Pontos Fixos de comércio das ganhadeiras em Salvador – 1831. Em destaque Largo
do Theatro, local de estúdios de alguns fotógrafos, e seu entorno englobando um dos pontos de
comércio das ganhadeiras.

Fonte: (SOARES, 1994, p. 57) (modificado).

Soares (1994) estuda em sua dissertação a condição da mulher negra e mestiça, escrava e
liberta, em Salvador no século XIX, tendo como foco a presença no trabalho doméstico e no de
ganho. Sobre a localização dos cantos de ganho das mulheres, ao consultar o livro de posturas
municipais de Salvador no Arquivo Municipal, Soares identifica que em 1831 foram destinados

1309
locais para comércio com tabuleiros fixos, como o campo da Pólvora, o largo da Vitória,
o largo do Pelourinho, a praça das Portas de São Bento e o largo de São Bento (SOARES,
1994, p. 56). Ao cruzarmos estas informações com a investigação sobre as localizações dos
estúdios de alguns fotógrafos, como Henschel, percebemos a proximidade destes espaços
(Figura 02) além da recorrência da tematização dessa presença em séries sobre os
trabalhadores urbanos.
Dois fotógrafos identificados que estiveram em Salvador no século XIX, e possuíam estúdios no
Largo do Teatro, foram Guilherme Gaensly e Rodolpho Lindemann, parceiros no estúdio
denominado Gaensly & Lindemann.
O alemão Rodolpho Lindemann (1852- ---) foi pintor e fotógrafo retratista, que atuou em locais
como Pernambuco e Bahia. Entre 1870 e 1922 o fotógrafo esteve em Salvador. A trajetória de
Lindemann traz diversos aspectos que se relacionam ao próprio desenvolvimento da fotografia
no Brasil. Assim como muitos, Lindermann iniciou seu trabalho no ramo como auxiliar em um
estabelecimento, o Photographia Premiada, do suíço Guilherme Gaensly. Além disso, tornou-se
sócio de Gaensly, com o estúdio passando a se chamar “Photographie do Commercio”. Parcerias
e inícios como aprendiz não foram de todo incomum, marcando trajetórias como a do fotógrafo
Marc Ferrez, que trabalhou na Casa Leuzinger (estúdio fotográfico de George Leuzinger) e o
próprio sócio do Lindemann, Guilherme Gaensly, que se aprimora na função de fotógrafo no
estúdio de Alberto Henschel. O estúdio de Gaensly e Lindemann funcionava também como
galeria com fotografias de Salvador. 2
Lindemann foi tanto um fotógrafo paisagista quanto retratista. Em seu trabalho é possível
analisar tanto a presença dos trabalhadores nas imagens do ambiente urbano quanto os retratos
de negros escravizados e libertos feitos em estúdio e que se tornaram um dos focos da pesquisa.

2
WANDERLEY, 2016; ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras.

1310
Figura 03: Casarão do médico Antônio Pacífico Pereira - Campo Grande, Salvador, c. 1890. Foto: Rodolfo
Lindemann..

Fonte: Instituto Moreira Salles.

Ainda que as fotografias de paisagem não tivessem como foco o registro dos trabalhadores e
trabalhadoras negras nos espaços urbanos, seus vultos são apreendidos pelas imagens, uma vez
que tais presenças se faziam constantes na cidade. Embora a leitura de tais imagens não se
realize de forma nítida, os processos de captura fotográfica fora dos estúdios registra a sombra
de pessoas em movimento, como pode ser observado na figura acima (Figura 03).
Guilherme Gaensly foi um fotógrafo suíço-brasileiro que cresceu em Salvador. Dentre as suas
produções, realizou fotografias do ambiente urbano, retratando o cotidiano e o
desenvolvimento da cidade, principalmente quando atua em São Paulo. Além disso, fez uma
série de fotografias das plantações de café, seus trabalhadores e sua cadeia de produção. Em
Salvador, produziu o álbum Vues da Bahia (Vistas da Cidade da Bahia) com fotografias realizadas
entre as décadas de 1870 e 1880. Nele podemos observar imagens produzidas pelo fotógrafo
que apresentam locais como o Largo do Theatro e suas proximidades, e o Novo Cais das Amarras
– conhecidos também pela presença de trabalhadores de ganho, pescadores, quituteiras –
registrando as dinâmicas que diversas vezes foram descritas por viajantes que aqui estiveram.
Outro fotografo com estúdio na região do Largo do Theatro foi Alberto Henschel, que trabalhou
e possuiu estúdios em quatro cidades brasileiras: Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.
Em Salvador, Henschel atuou por volta de 1868 com estúdios na rua da Piedade, nº 16, e depois
no Largo do Theatro.
Como fotógrafo paisagista e retratista é considerado um empresário da fotografia no século XIX,
e atualmente são encontradas diversas imagens produzidas por Alberto Henschel espalhadas

1311
por acervos nacionais e internacionais. Sua produção abarca a realização de retratos, de
paisagens e imagens etnográficas, capturando imagens de pessoas influentes da sociedade
brasileira, de mulheres e homens africanos e afrodescendentes. Henschel, assim como outros
fotógrafos, participou de diversas exposições nacionais e internacionais. Foi, junto com seu sócio
Francisco Benque, o representante oficial do Brasil na Exposição Universal de Viena, em 1873,
expondo retratos da família imperial e de uma quitandeira, ocasião na qual ganhou a medalha
de mérito.
Muito se especula sobre a intencionalidade e finalidade das fotografias de pessoas negras
retiradas por Henschel. Cardim (2012) discorre como Henschel, como empresário, “soube
corresponder às expectativas da sociedade brasileira em ser retratada segundo as convenções
sociais da época – à moda europeia – contribuindo para a construção da imagem social, politica
e econômica do Brasil”. Além de notar a potencialidade comercial dos retratos de negros que
atendessem à demanda étnico-antropológica de colecionadores e pesquisadores europeus.

Figura 04: Fotografias de Alberto Henschel realizadas na Bahia. c.1869, Salvador. Autor: Alberto
Henschel.

Fonte: Brasiliana Fotográfica / IMS.3

Produções em carte-de-visite observadas na Figura 04 retomam a questão do deslocamento das


atividades e dos costumes das ruas da cidade para o estúdio (I.1, I.2), ou, como na imagem I.3,
o registro de trabalhadores no espaço urbano. Registros como I.3 nos leva a especular a natureza
da composição: foi um retrato espontâneo ou uma encomenda planejada, sendo os
trabalhadores participantes contratados como modelos? E quanto a imagem I.4, identificada

3
I.1 Negra com criança na Bahia / I.2 Duas negras posando em estúdio / I.3 Escravos transportando
homem numa liteira / 1. 4 Negra da Bahia. Títulos das fotografias extraídos nos acervos em que foram
localizadas.

1312
como Negra da Bahia, seria mais um dos retratos feitos como souvenirs para venda e/ou foi
realizado a pedido da mulher fotografada? Nele é interessante observar o olhar direto, os ricos
trajes e a presença de joias, com uma composição que não enquadra seus pés, deixando assim
em suspenso uma possível identificação de sua condição de liberta ou cativa. Desta forma,
podemos imaginar que ela possa ser uma das mulheres negras, talvez quitandeira/quituteira,
que lideravam alguns comércios na cidade, por meio do qual obteve a alforria e certo status
econômico, podendo assim fazer obter um retrato de si.
A confecção de retratos encomendados por pessoas negras e a proximidade do estúdio do
fotógrafo com locais de intensa presença negra é vista no trabalho de Cardim (2012). Em sua
pesquisa ela estabelece três arquivos com a presença de imagens de Alberto Henschel: o arquivo
etnográfico composto por imagens levadas pelos geógrafos Alphons Stübel e Wilhelm Reiss após
expedição na América do Sul e que ela define como o olhar europeu; o arquivo histórico,
formado por imagens da Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ), com a Coleção Francisco
Rodrigues, e de imagens presentes na Fundação Gilberto Freyre (FGF); e o arquivo do feiticeiro
constituído pela coleção fotográfica formada pelo influente feiticeiro Juca Rosa, e encontrado
no registro de uma apreensão policial, à época, das posses do feiticeiro no Rio de Janeiro, vista
na Figura 05 abaixo:

Figura 05: Fotografias da Coleção de Juca Rosa extraída do Trabalho de Cardim(2012).

Fonte: Cardim(2012).

Sobre essa coleção, Cardim reflete, assim como os autos do processo de acusação de Rosa,
sobre como foram adquiridas estas fotografias. Indaga-se sobre a possibilidade de que Juca
tenha pedido aos seus clientes a confecção destes retratos para efeitos ritualísticos, bem como
a distribuição de retratos seus para os devotos. A casa de Juca no Rio de Janeiro era próxima
ao estúdio de Henschel, no que a autora especula uma relação entre ambos: talvez houvesse
uma troca entre a realização de retratos de Juca com a ida de seus clientes ao estúdio de
Henschel?. É importante ressaltar que parte das fotografias da Figura 05 foram feitas por

1313
Henschel e que, nesta pesquisa, foram encontradas algumas delas em formato carte-de-visite
com identificação do estúdio do fotógrafo localizado em Pernambuco, e não no Rio de Janeiro.

5 – Considerações Finais
A partir do exposto, nota-se a necessidade de imaginar as dinâmicas negras nos centros urbanos
por outras dimensões, como a da fotografia, que surge como fonte potente. No cruzamento de
informações ao longo da pesquisa vê-se a relevância de buscar compreender as relações entre
os espaços de trabalho e os estúdios, bem como entender melhor as relações não dadas nos
relatos oficiais, como a história de Juca, que extrapola a visão da produção de imagens negras
como objetos/modelos. É necessário ressaltar que as imagens não são espelhamentos
fidedignos do que se vê no território, sendo simulações, representações que passam pela
interlocução do fotógrafo com as referências imagéticas de sua época e do seu trânsito no
território, bem como com as próprias referências e imposições que o fotografado imprime no
momento em que é retratado. O contato com essas fotografias nos levanta outros regimes de
produção de imagens que contribuem para novos caminhos no pensar as relações territoriais e
de trabalho no século estudado e seus reflexos na contemporaneidade.

Referências
CARDIM, Mônica. Identidade branca e diferença negra: Alberto Henschel e a
representação do negro no Brasil do século XIX. 2012. Dissertação (Mestrado em Estética e
História da Arte) - Estética e História da Arte, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

CAVALCANTE, Cid José Teixeira. Cidade Alta/ Cid Teixeira Cavalcante; organização Fernando
Oberlaender. 1 ed. - Salvador: EPP Publicações e Publicidade, 2017. v2 (Salvador uma viagem
fotográfica).

FATH, Telma Cristina Damasceno Silva. A febre do Carte-de-visite e a Fotografia


Estereoscópica In: FATH, Telma Cristina Damasceno Silva. A fotografia Artística na Bahia e sua
Inserção nos salões oficiais de artes. 2009. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) - Escola de Belas
Artes, Universidade Federal da Bahia – Salvador. 31-40.

HEYNEMANN, Cláudia Beatriz. A fotografia imperial de Albert Henschel. In: VI Simpósio


Nacional de História Cultural Escritas da História: Ver – Sentir – Narrar, 2012, Universidade
Federal do Piauí – UFPI. Anais. Piauí: Teresina. 2012. P. 1- 12

KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. No estúdio do photographo, o rito da pose. Brasil, segunda
metade do século XIX. Revista Ágora, Vitória, n. 5, 2007, p. 1-25.

LEITE, Marcelo Eduardo. Typos de pretos: escravos na fotografia de Christiano Jr. Visualidades, Goiânia
v.9 n.1 p. 25-47, jan-jun 2011.

1314
MAYA, Eduardo Ewald. Nos passos da história: o surgimento da fotografia na civilização da imagem. In:
Revista Discursos fotográficos, Londrina, v.4, n.5, p.103-129, jul./dez. 2008

OLSZEWSKI FILHA, Sofia. A fotografia e o negro na cidade do Salvador/Sofia Olszewski Filha. – Salvador:
EGBA; Fundação Cultural do Estado da Bahia 1989.

SOARES, Cecília Moreira. Mulher Negra na Bahia no século XIX. 1994. 133 f. Dissertação (Mestrado em
História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas- Universidade Federal da Bahia, 1994.

WANDERLEY, Andrea C. T. Cartões de visita – cartes de visite. Brasiliana Fotográfica . 2016. Disponível
em: <http://brasilianafotografica.bn.br/?p=3873>

1315
CERCAMENTOS E HORIZONTES:
ampliando imagens de paisagem, patrimônio e silêncio
Nó4 - O silêncio dos silentes, dos mistérios.

Luciano Gutierres Pessoa


Arquiteto e doutorando FAUUSP; Universidade de São Paulo; pessoluc@gmail.com

Tomando como fundamentos – como diapasões, nós, pontos de escuta – as ideias de paisagem,
de patrimônio e de silêncio, o ensaio buscará estabelecer possibilidades de discussão,
explorando e problematizando tais conceitos no âmbito do imaginário, sobretudo em diálogo
com a filosofia da imaginação poética de Gaston Bachelard, e por essa via aproximando, por
exemplo, silêncio e inconsciente, patrimônio e vontade, paisagem e imagem poética. Em chave
predominantemente teórica e exploratória, iniciando pelos vínculos de Bachelard com as
ciências naturais, a literatura, a psicologia, buscaremos então escutar e amplificar os termos
iniciais, colocando-os em relação, em contraste, a fim de movimentar sentidos de pensar
(imaginar) o lugar, o que nos convida também a rever noções de representação, de
mapeamento, de cartografia.
Palavras-chave: Paisagem; Patrimônio; Silêncio; Amplificação; Gaston Bachelard.

Taking as foundations – as diapasons, nodes, listening points – the ideas of landscape, patrimony
and silence, the essay will seek to establish possibilities of discussion, exploring and
problematizing such concepts in the scope of the imaginary, especially in dialogue with Gaston
Bachelard's philosophy of poetic imagination, and by this way approaching, for example, silence
and the unconscious, patrimony and will, landscape and poetic image. In a predominantly
theoretical and exploratory key, beginning with Bachelard's links with the natural sciences,
literature, psychology, we will seek to listen to and amplify such terms, placing them in relation,
in contrast, in order to move senses of thinking (imagining) the place, which also invites us to
review certain notions of representation, of mapping, of cartography.
Keywords: Landscape; Patrimony; Silence; Amplification; Gaston Bachelard.

1316
1 – Bachelard: filosofia da ciência e da imaginação
Empenhado em uma crítica científica do pensamento científico, a partir do final da década de
1920, por meio da observação minuciosa de métodos e processos, certo da necessidade de a
ciência figurar também como objeto de si mesma, é que o autor de O novo espírito científico
(1934) empreende um refinamento dos sentidos de observação, de experiência, de
conceituação, de objetividade. É nesse movimento de crítica e aprofundamento da razão
científica que Gaston Bachelard se coloca o desafio de uma psicanálise do conhecimento
objetivo, e que, a partir de 1938 – com duas obras que sinalizam com a máxima clareza o
estabelecimento das duas vertentes complementares de sua filosofia –, inicia uma caminhada
que o acompanharia ainda por mais de vinte anos, em direção a uma filosofia da imaginação.
Sempre chega uma hora em que não se tem mais interesse em procurar o
novo sobre os vestígios do antigo, em que o espírito científico não pode
progredir se não criar métodos novos. [...] Os conceitos e os métodos, tudo é
função do domínio da experiência; todo o pensamento científico deve mudar
diante duma experiência nova; um discurso sobre o método científico será
sempre um discurso de circunstância, não descreverá uma constituição
definitiva do espírito científico. (BACHELARD, 1988, p. 70)

É, pois, guiado por sua formação nas ciências naturais e em filosofia, pela capacidade de
acompanhar de perto o impacto técnico e filosófico das revoluções científicas ocorridas entre o
final do século XIX e as primeiras décadas do século XX – sobretudo na física, na química e na
matemática –; assim como por uma percepção aguda dos sentidos de ruptura e de criação como
elementos constitutivos da evolução das ciências e dos métodos científicos; percebendo a
importância da abertura de novos modelos e caminhos de pensamento; dedicado a uma leitura
sensível de escritores e poetas, em diálogo com os surrealistas, e reelaborando procedimentos
e conceitos oriundos da psicologia e da psiquiatria; que Bachelard começa a configurar sua
filosofia da imaginação. Aparentemente de forma indireta, independente, mas efetivamente
como princípio de abertura em relação ao pensamento científico, em diálogo com esse
pensamento e, se não enquanto um método estabelecido (o que seria inteiramente paradoxal),
certamente como recurso poético-psíquico-epistemológico essencial ao pensamento e ao fazer
científico.
E é exatamente a partir da materialidade, de exercícios de imaginação em torno dos quatro
elementos tradicionais da matéria no Ocidente – fogo, água, ar e terra –, que Bachelard começa
a investigar a potência, a multiplicidade e o dinamismo da imaginação na criação de sentidos e
realidades que depois se instaurariam como forma, por exemplo, na aparente simplicidade da

1317
observação dos fenômenos e na aparente coerência e completude da concepção científica e do
pensamento em geral.
Para Bachelard, o espírito científico estaria essencialmente em uma permanente "retificação do
saber, um alargamento dos quadros do conhecimento" (1988, p. 88), e todo o sentido intelectual
da ciência se daria dialeticamente, na fronteira entre o conhecimento e o desconhecido. E é
exatamente pelo olhar de um pensamento novo e de uma experiência nova sobre um
conhecimento estabelecido que este pode então ser aberto e revisto. "Basta verificar
psicologicamente o estado de inacabamento da ciência contemporânea para ter uma impressão
profunda do que seja o racionalismo aberto. É um estado de surpresa efetiva diante das
sugestões do pensamento teórico" (1988, p. 89). A mesma surpresa Bachelard anota em
Gustave Juvet:
É na surpresa criada por uma nova imagem ou por uma nova associação de
imagens que é preciso ver o mais importante elemento do progresso das
ciências físicas, uma vez que é o espanto que excita a lógica, sempre bastante
fria, e que obriga a estabelecer novas coordenações, mas a causa mesma
desse progresso, a razão mesma da surpresa, é preciso procurá-la no seio dos
campos de forças criadas na imaginação pelas novas associações de imagens.
(Juvet, apud BACHELARD, 1988, p.89)

Nesse contexto, prenunciado já n'O novo espírito científico, em que aparecem destacadas a
imagem e a surpresa como elementos constituintes e fundamentais do pensamento,
especialmente na gênese do pensamento científico, Bachelard aponta também certa
naturalização da matemática, no âmbito da ciência moderna, como instrumento supostamente
puro, isento e disponível à expressão de uma razão supostamente neutra e "consciente de si
mesma, senhora de ideias puras dotadas duma clareza ante-matemática" (BACHELARD, 1988,
p. 29). À matemática se atribuiria, hoje, toda a possibilidade de acesso ao real que, antes da
ciência relativista, estaria atrelado a uma ideia revelada por um conjunto de experiências. Mas
"todo pensamento formal é uma simplificação psicológica inacabada, uma espécie de
pensamento-limite jamais atingido", diz Bachelard (1988, p. 29).
À "força indutiva e inventiva" do cálculo, do ponto de vista psicológico, Bachelard acrescentaria
"seu valor de pensamento sintético". "No próprio pormenor do cálculo", diz Bachelard, "vela
uma espécie de consciência da totalidade" (1988, p. 30). Por outro lado,
O que é a crença na realidade, o que é a ideia de realidade, qual é a função
metafísica primordial do real? É essencialmente a convicção de que uma
entidade ultrapassa seu lado imediato, ou, para falar mais claramente, é a
convicção de que se encontrará mais no real oculto do que no dado evidente.
[...] Mas eis então o esforço poético dos matemáticos, o esforço criador,

1318
realizador: subitamente, por uma inflexão reveladora, as sílabas associadas
formam uma palavra, uma verdadeira palavra, que fala à Razão e que
encontra, na Realidade, uma coisa a evocar. Este súbito valor semântico é de
essência totalitária; aparece com a frase acabada, não com a raiz. Assim, no
momento em que a noção se apresenta como uma totalidade, ela faz o papel
de uma realidade. (1988, p. 17-18)

Tais questões ganhariam maiores desenvolvimentos, aparentemente independentes, a partir


dos dois livros que Bachelard publica em 1938, A formação do espírito científico e A psicanálise
do fogo, em que o autor expõe a intenção de tratar separadamente epistemologia e imaginação,
a princípio como reinos não intercambiáveis, não redutíveis a um mesmo sistema, recurso que
também o liberta de qualquer formalidade, permitindo que elaborasse livremente os elementos
da matéria como potências da imaginação, a partir de imagens, devaneios poéticos,
reelaborando procedimentos utilizados na psicologia e na psiquiatria, no que então dialoga com
os trabalhos de Carl G. Jung, de Robert Desoille e de Eugène Minkowski.

2 – Ampliação, devaneio e imagem poética


A referência a Jung, na obra de Bachelard, aparece talvez como a mais constante em torno das
investigações da imagem, da imaginação e do imaginário como elementos basilares dos
processos psíquicos e do inconsciente. Se podemos perceber a presença da terminologia
psicanalítica já em A formação do espírito científico – Contribuição para uma psicanálise do
conhecimento, tal recurso seria também reelaborado por Bachelard em direção a uma
abordagem mais fenomenológica e poética, como em A poética do espaço, de 1957. Mas não
deixa de ser notável, ainda na década de 1930, que ele se reportasse à psicanálise, à libido, no
contexto da epistemologia da física, da química, da matemática.
As forças psíquicas que atuam no conhecimento científico são mais confusas,
mais exauridas, mais hesitantes do que se imagina. [...] Mesmo na mente
lúcida, há zonas obscuras, cavernas onde ainda vivem sombras. (1996, p. 10)

O conhecimento do real é luz que sempre projeta algumas sombras. [...]


Diante do real, aquilo que cremos saber com clareza ofusca o que deveríamos
saber. [...] De modo visível, pode-se reconhecer que a ideia científica muito
usual fica carregada de um concreto psicológico pesado demais, que ela
reúne inúmeras analogias, imagens, metáforas, e perde aos poucos seu vetor
de abstração, sua afiada ponta abstrata. (1996, p. 17-19)

A partir de A psicanálise do fogo e nas obras de Bachelard dedicadas à imaginação torna-se


explícita a referência a Jung, cujos trabalhos teriam "lançado uma intensa luz" sobre territórios
que nem a psicanálise teria ainda investigado adequadamente. É assim que Bachelard propõe,

1319
"a exemplo de C. G. Jung, pesquisar sistematicamente os componentes da libido em todas as
atividades primitivas. Com efeito, não é apenas na arte que se sublima a libido. Ela é a fonte de
todos os trabalhos do homo faber" (BACHELARD, 1999, p. 47).
Só se pode estudar o que primeiramente se sonhou. A ciência forma-se muito
mais sobre um devaneio do que sobre uma experiência, e são necessárias
muitas experiências para se apagarem as brumas do sonho. (1999, p. 34)

Para Bachelard, a imaginação, como território relativamente autóctone, autógeno, escaparia


inclusive a certas tentativas de delimitação operadas pela psicologia e pela psicanálise. "Mais
que a vontade, mais que o impulso vital", diz Bachelard, "a imaginação é a força mesma da
produção psíquica". Pelo devaneio seríamos "criados e limitados", pois é ele que "desenha os
últimos confins de nosso espírito" (1999, p. 161).
Em Jung, os procedimentos de imaginação ativa e de amplificação representariam técnicas de
acesso e de elaboração de aspectos do inconsciente pessoal e do inconsciente coletivo, em que
a exploração de "imagens de fantasias visuais espontâneas" (JUNG, 2014, p. 192-3, par. 319-
320), por exemplo a partir de desenhos, pinturas, modelagens (imaginação ativa), bem como a
identificação de possíveis correspondências com universos simbólicos da mitologia, das religiões
(amplificação), poderiam contribuir na interpretação de sonhos, no reconhecimento e na
investigação consciente de imagens e processos psíquicos que, de outro modo, permaneceriam
inconscientes, ainda que atuantes nas camadas mais externas da personalidade.
Não alheio e não sem pontos de contato com os conceitos junguianos de imaginação ativa e de
amplificação, Bachelard identifica, como funções mesmas da imaginação, os sentidos de
ampliação, de expansão e de movimento. Propondo a imaginação como "uma potência maior
da natureza humana", que, com sua atividade viva, "desprende-nos ao mesmo tempo do
passado e da realidade" (BACHELARD, 1993, p. 18), Bachelard vê a imaginação criadora (distinta
de uma imaginação mais atrelada à memória) associada ao sentido de devaneio poético, que (ao
contrário do devaneio de um estado de sonolência) "não adormece jamais. Sempre lhe é
preciso, a partir da mais simples imagem, irradiar ondas de imaginação" (1993, p. 52-53), a um
ponto que mesmo a pequena "luz que vela no horizonte distante", mesmo a pequena "luz vinda
de um velador solitário" (1993, p. 53) adquire valores cósmicos de totalidade e de centralidade.
Mas toda doutrina do imaginário é obrigatoriamente uma filosofia do
excessivo. Toda imagem tem um destino de engrandecimento. (1993, p. 214)

Interlocutor e amigo de Bachelard a quem o filósofo dedica todo um capítulo em O ar e os


sonhos, Desoille é outra importante referência no tocante a procedimentos de exploração da

1320
imaginação, em especial o devaneio. No âmbito da psiquiatria, Desoille trabalha com uma
técnica do sonho acordado ou "metodologia do devaneio dirigido" (BACHELARD, 2001, p. 111),
pela qual o paciente é guiado em exercícios conscientes de um devaneio de ascensão. Desse
modo, poderiam emergir também imagens do inconsciente, em direção a uma sublimação e a
uma maior consciência dessas imagens e processos psíquicos. Para Bachelard, "o ser educado
pelo método de Desoille descobre progressivamente a vertical da imaginação aérea. Dá-se conta
de que ela é uma linha de vida", uma linha imaginária, que o filósofo definiria como "aquelas
que mais dificilmente se rompem". Ascensão, luminosidade, vontade, pois, parecem se integrar
num mesmo movimento de vida e libertação:
À imaginação que ilumina a vontade, se une uma vontade de imaginar, de
viver o que se imagina. [...] Quem tentar igualar sua vida à sua imaginação
sentirá crescer em si uma nobreza ao sonhar a substância que sobe, ao viver
o elemento aéreo em sua ascensão. Como se vê, não teremos nenhuma
dificuldade em interpretar as teses de Robert Desoille no sentido da nossa
metafísica da imaginação aérea. (2001, p. 111)

A referência ao olhar fenomenológico de Minkowski aparece em A poética do espaço, obra de


maturidade em que Bachelard recorre aos conceitos de repercussão (retentissement) e de
ressonância (résonance) como instrumentos para espreitar a amplitude da imagem poética. Em
sentido ampliado, evocando imagens da propagação sonora, mas interessado especialmente em
uma abertura à profundidade das imagens, para além do aspecto visual e sonoro, para além do
fenômeno físico, Minkowski elabora os conceitos de repercussão, de ressonância, de
sincronicidade vivida, de simpatia (física e psicológica), de sintonia, de respiração, de
preenchimento. É em diálogo com esse contexto que, diz Bachelard (1993, p. 2), "é quase
sempre no inverso da causalidade que acreditamos encontrar as verdadeiras medidas"…
do ser de uma imagem poética. Nessa repercussão, a imagem poética terá
uma sonoridade de ser. O poeta fala no limiar do ser. Assim sendo, para
determinarmos o ser de uma imagem teremos de sentir sua repercussão, no
estilo da fenomenologia de Minkowski. (1993, p. 2)

Se, depois de fixar a forma primitiva ante os olhos da mente, nos colocamos
a questão de saber como esta forma nasce e se enche de vida, descobrimos
uma nova categoria – dinâmica e vital, uma nova propriedade do universo:
repercutir. [...] Além de qualquer instrumento, além de qualquer propriedade
física, com ondas penetrantes e profundas que, mesmo em um sentido não
sensorial da palavra sonoro, não seriam menos harmoniosas, ressoantes,
melódicas, capazes de determinar toda a tonalidade da vida. E esta vida em
si mesma reverberará, na profundidade de seu ser, pelo contato com estas
ondas ao mesmo tempo sonoras e silenciosas, penetrará nelas, vibrará em
uníssono com elas, viverá através de sua vida, todo o tempo a elas

1321
entrelaçada. Esta será a essência do fenômeno "repercutir". (MINKOWSKI,
1999, p. 101)

Cabe notar que, sobretudo n'A poética do espaço, embora Bachelard faça diversas menções à
fenomenologia e ao método fenomenológico como instrumentos de exploração de territórios
da imaginação, não se trata aqui de uma aplicação direta do método husserliano, mas de uma
concepção muito própria de fenomenologia com que Bachelard procura aproximar-se da
imagem poética no instante de seu surgimento, que se dá tanto para o poeta, no momento da
escrita, como para o leitor, que no ato da leitura vive também sua revelação. E é precisamente
por esse caráter de surgimento, de novidade, da surpresa da imagem poética, do que vem sem
ser anunciado, em diálogo com a poesia e a psicologia, que Bachelard desenvolve sua filosofia
psíquico-poética e fenomenológica da imaginação, em que recorre a versos e passagens de
poetas e escritores como pontos de apoio e de potencialização das imagens.
Chegamos sempre à mesma conclusão: a novidade essencial da imagem
poética coloca o problema da criatividade do ser falante. Por essa
criatividade, a consciência imaginante se revela, muito simplesmente, mas
muito puramente, como uma origem. Isolar esse valor de origem de diversas
imagens poéticas deve ser o objetivo, num estudo da imaginação, de uma
fenomenologia da imaginação poética. (BACHELARD, 1993, p. 9)

3 – Ampliando imagens de paisagem, patrimônio e silêncio


Apontadas tais referências a partir de Bachelard, e aqui reunidas em torno do termo ampliação,
queremos então retomar as ideias de paisagem, patrimônio e silêncio, bem como de
cercamentos e horizontes, procedendo então a ampliações desses "nós" primeiros. De início,
em relação à paisagem, cabe anotar que trataremos aqui de paisagem mais como elemento e
como percepção da natureza do que da paisagem projetada, planejada, construída.
Verdade sem prova, como diz Bachelard, valor de origem, tal como as imagens do inconsciente,
a paisagem surge, a natureza surge, em nós e no mundo, e nos informa de coisas que são. Como
o alternar das estações, a paisagem nos abraça e fala do ambiente de que somos parte. Fala do
que nasce, cresce, transforma-se, da Natureza que se expõe e se esconde. Das cores e dos
elementos da terra, fala de ordens e potências do feminino, de maternidade, o que nos reporta
a valores de vínculo e cuidado, corporalidade e alimento, de pertencimento, de fusão, mas
também de estranhamento, de resistência, de oposição e mesmo de destruição. Matéria viva,
preexistente e mutável, ainda que se possa desejar projetá-la, a paisagem é.
Da mesma árvore etimológica a que pertence o termo país, mas também peis, pedi (do gr. παϊς,
παιδί, menino, filho, escravo jovem), a palavra e a ideia de paisagem parecem evocar

1322
desdobramentos e sentidos da terra, da natureza, das coisas que nascem, crescem,
transformam-se, ecoando também um sentido da infância, do infante (ou criado), os seres sem
voz.
Se paisagem é a terra vista, ou o olhar que passeia pela terra, será também tudo o que vejo,
céus e mares, noite e dia, vento e som, garoa, calor, frio, cheiro, flora e fauna, gentes e mudança,
tempo e espaço, relações e fluxos; tudo aquilo que sinto, percebo, bem como aquilo que, dentro
do meu olhar, dentro do que sinto, olha por mim, tudo aquilo que em mim sente. Se quem olha
e sente e percebe está vivo, e se, estando vivo, é corpo e alma em uma mesma entidade
inseparável, quem em mim vê a paisagem que vejo? Memória de milênios de evolução humana
impregnada em meu corpo, em nosso corpo no mundo? Imaginação e sonho que as imagens
multiplicam? Seria possível ver hoje a paisagem da Serra da Capivara, no Piauí, com o olhar das
mulheres e homens que ali viveram há mais de 50 mil anos?
Paisagem propõe sentidos de abertura, de surpresa, certos limites móveis do abarcável pela
visão – visão que a cada momento é memória, sentimento, pensamento, sensação, imaginação
–, e a cada momento oferece a novidade de uma imagem viva, poética, limitada e ampliada
também por nosso olhar. Por nosso ínfimo e infinito olhar humano.
Patrimônio fala do pai, de paternidade, responsabilidade, proteção e limite: Júpiter e Cronos.
Fala de potências e ordens ditas masculinas, de vontade, força e ação (cf. lat. vir, virtus). Da
intenção de poder, de controle, domínio e, diga-se, outras expressões do medo. Fala do
patriarcado. De visão e divisão, de leis e da desmedida. Fala de matéria identificada, registrada,
oficializada, publicizada, politizada, catalogada, salvaguardada. Fala de construção, preservação,
herança, de objetos e bens, de todas as formas e tipos. O patrimônio elabora a posse.
O possuir, e também a falta, a fome, a vontade de comer, com os olhos, com as mãos, atacar,
agarrar, mastigar, lamber, experimentar o mundo pela boca, pela língua, pela saliva, pela carne,
pela carne da imagem, pelo estômago. Patrimônio é visceral. O rosnar: a primeira faca era
extensão dos dentes, das garras, o fio da espada e o corte. Patrimônio é a prova e o provar, o
instrumento e o método, a ciência e a verdade. O morder: patrimônio é o jardim, o fruto e a
serpente, a astúcia sinuosa, o enrolar-se e o bote (e a queda?). Patrimônio é potência manifesta,
acumulação e gordura. Geometria e geografia, medir e escrever a terra, escavar, explorar,
extrair, saber e proclamar a terra. Plantar um sonho, fundar um país, dizer quem somos, de onde
viemos, a quem ou a que pertencemos. Pertencer, pois, que poderíamos também dizer:
matrimônio. Mas a vontade de poder sabe querer pertencer?

1323
Suposto índice de quem somos, do que queremos e imaginamos ser, patrimônio é, então,
identidade. Origem, arqueologia, arquivo, memória, hábito e habitat, história, enredo e
narrativa, continuidade, genealogia e filiação. O patrimônio sabe o peso e o tempo, a
permanência, o duradouro, o que resta. A estabilidade e o estabelecimento. O patrimônio
conserva. Patrimônio é ter e manter, o meu, o nosso. Mas o que é ter, sobre esta terra
movediça? O Louco, no Tarô, associado ao número Zero – valor de ausência, mas também de
totalidade –, à beira do abismo segura ainda sua trouxinha. O patrimônio sonha a eternidade.
Silêncio, a princípio, não fala, quase não. A depender da qualidade da escuta, pode falar por
vozes em silêncio. De lugares e gestos encobertos. Do infante, do velado, do esquecido, do
ausente, negligenciado, inconsciente, do que está à margem, do que se perdeu. Fala do não
visto, do apagado, desaparecido, falseado. Do ruído ensurdecedor. Fala de um vazio que, como
o Caos grego, dá origem – origem que no mito se daria pelo som, pela voz, pela palavra.
Silêncio é modo de dizer: o som que foi, o som que virá. Pausa momentânea, o silêncio é uma
espera e um contorno: entre duas vozes, entre duas palavras. O silêncio encobre o som para
devolvê-lo em seguida. Silêncio é parte da música, então é ritmo e movimento. E como tudo (e
com tudo) se move, já sabiam os antigos, tudo é som. Mesmo em uma câmara anecóica, onde
supostamente reinaria o silêncio absoluto, ainda ouviríamos o som e o pulsar de nossa própria
circulação sanguínea e o sibilar de nosso sistema nervoso. Não a ausência de som, portanto, mas
antes alguma quietude aparente, certos limites do audível, do humanamente audível, e o que
está além: isso a que chamamos silêncio.
O silêncio fala de sutilezas, de pequenas doses, do que (ainda) não sabemos ver. Música de
fundo nas lojas de departamento, o silêncio é parte da história que nos contamos, nós, que
somos história. Persona, pessoa, personagem: o soar através (da máscara). Com que silêncios,
com que sons, componho, delineio uma imagem do mundo, uma imagem de mim? À noite,
escuto, quieto, o zumbido da cidade, talvez uma cidade em meu ouvido. Nesse lugar humano,
nesse lugar de humanidade em que nos reconhecemos, o som muitas vezes será fala e sopro.
Desse lugar humano, silêncio é o som da respiração, sinal de vida, é também o alento, vento que
vem de longe, dentro, dos mundos interiores, da terra interior: sons e silêncios que guardam e
expressam a alma indizível. Silêncio é também uma forma do sagrado, meditação, abertura,
clareira: possíveis olhos, boca, narinas e ouvidos na face da realidade. De onde vem a realidade?
Sendo som, viria do silêncio, do mistério? De onde vêm as formas do mundo? Das mãos de um
demiurgo, diria o Timeu de Platão, mas Leminski pondera: "o barro / toma a forma / que você
quiser // você nem sabe / estar fazendo apenas / o que o barro quer".

1324
Assim contrapostos, patrimônio e paisagem, patrimônio e natureza, eu e o mundo, urbi et orbi,
parecem constituir duas instâncias de um mesmo estar, o que não necessariamente se dá nos
termos de uma oposição. Um centro, uma propriedade, um jardim cercado em que ordenamos
e ruminamos saberes e sabores do eu, do aqui e do agora – e um horizonte ao redor, distante,
aberto, possível, que parece indicar certos limites imprecisos do abarcável, do perceptível.
Limites do sentido de limite, certo ilimitável, indefinível, que, no entanto, é dimensão
profundamente humana, e assim parece soar em Drummond, em um só movimento de
integração e desintegração, de origem como de destino, em certa medida inexorável: "vou subir
a ladeira lenta em que os caminhos se fundem. Todos eles conduzem ao princípio do drama e
da flora".
Assim como o silêncio, que é som e silêncio ao mesmo tempo, sem propriamente configurar
uma oposição, a mesma paisagem que nos escapa, tão expressa quanto inapreensível, pode
conter e acolher o patrimônio e seus limites, sem quebra de continuidade, exceto aquela,
precária, provisória, instaurada pela individualidade que se imagina distinta e separada do
mundo, separada sobretudo da natureza, a mesma natureza que nos faz humanos.
Tal configuração – entre um território demarcado, distinto, porém imerso e em consonância
com um território maior e mais profundo, menos ou nada demarcado – parece refletir-se em
âmbitos tão diversos como nas artes, nas ciências, na filosofia, na psicologia, na cartografia. No
sentido de ruptura da arte moderna, em relação a um contexto mais amplo nas artes. Entre um
sentido cartesiano de objetividade e o sentido bachelardiano de racionalismo aberto. Entre uma
região articulada, nos mapas, por diferenciações, e um entorno que muitas vezes corresponderá
mais a expressões difusas de um território imaginado que propriamente a uma representação
objetiva. Entre consciente e inconsciente, ego e self, por exemplo, nos termos de Jung. Entre
ciência e imaginário, ciência e poesia, dia e noite, nos termos de Bachelard.
Se a cartografia, o patrimônio, a consciência ou a ciência, como posse de um lugar, vivem de
formas e limites cada vez mais agudos, de um crescente sentido de refinamento e reconstituição
de suas bases, nem por isso deixariam de pertencer ao fenômeno humano em que vivem e
vigem as imagens, e em que, lá como aqui, dentro como fora, parece eventualmente
inescapável, fenomenologicamente inescapável, estar "presente à imagem no minuto da
imagem" (BACHELARD, 1993, p. 1).
Cercamentos e horizontes, na percepção do território ou na configuração de um lugar de
consciência, parecem poder evocar, apesar de e por causa de todas as distorções e
simplificações, a força das imagens de um aqui e de um entorno distante; de um eu, cosmos

1325
ordenado e belo, diante de um caos que é ao mesmo tempo abertura, possibilidade e
destruição. Serão apenas imagens? Em torno de uma fenomenologia dos espaços amados, e
parecendo falar de uma consciência posicionada exatamente no limite que a distingue e a separa
de um mundo – da condição e das limitações de uma consciência diante de um dentro e um fora
que, mesmo escapadiços, a tensionam –, Bachelard diz: "O aquém e o além repetem
surdamente a dialética do interior e do exterior: tudo se desenha, mesmo o infinito", mas
continua: "O ser não se vê. Talvez se escute. O ser não se desenha. Não está cercado pelo nada.
Nunca estamos certos de encontrá-lo ou de reencontrá-lo ao aproximarmo-nos de um centro
de ser" (1993, p. 216, 218).
Atento aos convites da imaginação, que parecem brotar de uma fonte inesgotável, sem nunca
abandonar uma articulação com a via epistemológica, Bachelard cria um espaço em que se deixa
conduzir "pela novidade da imagem e por sua amplificação", e em que pudesse estar certo de
"repercutir acima ou à margem das certezas racionais" (1993, p. 219). No meio da rua, no meio
do redemoinho, habitamos limites e a falta deles, entre consciência e inconsciente,
relativamente estrangeiros, que vivem em nós, através de nós. Silenciosamente, sem fim.

Referências

BACHELARD, G. A formação do espírito científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

_____. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

_____. A psicanálise do fogo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

_____. O ar e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

_____. "O novo espírito científico", in Bachelard (Os Pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1988.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo (v.9/1). Petrópolis: Vozes, 2014.

MERLEAU-PONTY, M. "A linguagem indireta e as vozes do silêncio", in Signos. São Paulo: Martins Fontes,
1991.

1326
FOLIA DE REIS, UM NÓ ENTRE O RURAL E O URBANO
Nó4 - O silêncio dos silentes, dos mistérios.

Lucas Silva Pamio


Bacharel em Arquitetura e Urbanismo; Especialização em andamento em Planejamento
Urbano e Políticas Públicas pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho; E-mail:
lucasspamio@gmail.com

De origem egípcia, incorporado a cultura europeia, o rito religioso e festivo foi trazido pelos
portugueses, que a incorporaram ao Brasil tornando-a parte de nossa cultura. Na Folia de Reis
tanto o divino como o profano são exaltados, iconograficamente vários elementos compõem o
jogo cênico, desde a indumentária utilizada pelos personagens, adornos em instrumentos
musicais, até elementos imprescindíveis para sua realização. A Folia de Reis possui grande
importância do ponto de vista da compreensão urbanística, uma vez que ela retrata por meio
dos giros realizados pelos foliões o percurso de passagem entre espaços urbanos e rurais nas
cidades interioranas, uma vez que a tradição resiste devido a famílias de agricultores e pequenos
produtores.
Palavras-chave: Folia de Reis; Rito Religioso; Iconografia; Cidade; Rural.

Abstract: Of egyptian origin, incorporated into european culture, the religious and festive rite
was brought by the portuguese, who incorporated it into Brazil making it part of our culture. In
the Folia de Reis, both the divine and the profane are exalted, iconographically, various elements
make up the scenic game, from the clothing used by the characters, adornments on musical
instruments, to essential elements for its realization. The Folia de Reis is of great importance
from the point of view of urban understanding, since it portrays through the tours performed by
revelers the passage path between urban and rural spaces in the interior cities, since the tradition
resists due to families farmers and small producers.
Keywords: Folia de Reis; Religious Rite; Iconography; City; Rural.

1327
1 – Introdução
A Folia de Reis compõe nossa essência cultural, sua relevância em ser abordada como um nó
artístico, religioso e histórico se faz, pois, ela é parte integrante do patrimônio imaterial de nossa
sociedade, um tesouro que com toda a modernidade e tecnologia perdura e ocorre ano após
ano, e que mesmo com a pandemia do novo Corona Vírus, encontrou meios digitais de reunir
os foliões e entregar a quem prestigia e a quem a tem como referência, sua finalidade: anunciar
a chegada do menino Jesus, homenagear os Reis Magos, Gaspar, Belchior, Baltazar, além de
manter uma tradição secular.
A Folia de Reis é tradicionalmente festejada entre a última semana de dezembro e a primeira
semana de janeiro, geralmente compreendendo as datas de 24 de dezembro e 06 de janeiro –
que é quando se celebram o Dia de Reis, todavia, as festivas e preparos para tal celebração
iniciam logo após a finalização da festa daquele ano, logo, a Folia pode ser entendida do ponto
de vista de sua realização como sem intervalos. Comum em grande parte das cidades
interioranas do centro oeste paulista, compreende o calendário festivos de algumas delas, como
Assis, Ourinhos e Santa Cruz do Rio Pardo, onde as foranias (termo usado para designar o
agrupamento de paróquias que juntas celebram a Folia), se encontram em capelas rurais para
anunciar a chegada de Jesus.
Originaria a partir de outro rito, o Reisado; surgiu como uma forma de adorar o Deus Sol no
Egito, trazido à Europa, a Folia de Reis passou a ter grande difusão pelo oeste europeu, com
destaque a Portugal, onde “se originou a dança Folia.” (GONÇALVES, 2012, p. 04). Todavia, há
uma grande mistura de saberes que resultam na Folia de Reis como é conhecida no Brasil, uma
vez que a origem dos cantos e a métrica utilizada para tal, tem sua origem conforme atesta Félix
e Pessoa (2007) na Alemanha, sendo que também pode ser conhecida como reisada (outra
denominação para Folia).
Em nosso país, a Folia de Reis chegou pelo que se acredita por volta do século 18, difundindo-se
com maior intensidade nas regiões rurais, como uma grande celebração da chegada do menino
Jesus, conforme estuda o IEPHA - Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas
Gerais (2016).
Trazida junto aos jesuítas no processo de colonização, a Folia de Reis encontrou no Brasil ainda
mais energia e sincretismo, uma vez que abraçou a história sociocultural, ao incorporar nos ritos
festivos memorias e histórias que entrelaçam com o cotidiano da roça, o dia a dia dos
agricultores e com os movimentos de partida para o meio urbano, o que na pratica também
levou a tradição da Folia de Reis para as cidades.

1328
Numa cronologia do processo de formação das cidades, em momentos diversos existiram
passagens, limites e conexões entre o que se torna reconhecido como urbano e rural. Seja no
que diz respeito ao processo de formação desses espaços, com a passagem de desbravadores e
sertanistas por matas e pastos, pelas bordas que separam a cidade da camada rural, dos fatores
econômicos que forçaram a vinda de indivíduos para as cidades, na relação de dependência dos
meios de produção advindos do meio campestre, existe um nó que estabelece uma relação de
necessidade entre um e outro, muitas vezes esse nó é pouco percebido, todavia, durante a folia
de reis, ele se torna nítido, uma vez que a folia convoca os moradores citadinos a retornarem ao
campo para celebrar e agradecer por mais um ano fértil.
Na folia de Reis tanto o divino como o profano são exaltados, e como iguais possuem a mesma
importância não somente para a realização do rito, como também para seu entendimento. No
Brasil, figuras mascaradas assemelhando-se a palhaços), representam os temores e males que
perseguem e atormentam Cristo desde os seus primeiros dias de vida, e para o contexto atual,
representam também as provações pelas quais os foliões passam ao longo do ano. A bandeira
trazida como um andor, adornada de fitas, flores e atavios representa a divindade, nela é comum
além do nome da forania encontrar estampada o rosto do Menino Jesus. A bandeira vai sempre
à frente do cortejo, anunciando a chegada de Jesus.

Figura 01: Grupo de foliões se prepara para o giro final, durante encontro para comemorar o Dia de
Reis. A frente do grupo a bandeira, atrás os palhaços, os músicos e os demais foliões.

Fonte: Produzido pelo autor. Janeiro de 2019.

1329
Comumente, um grupo de Folia de Reis é formado por 11 integrantes e juntos representam os
onze apóstolos que confiaram sua fé em Cristo, além destes, também 01 mestre de folia –
integrante que irá guiar a Folia e 02 ou 03 palhaços que representam os soldados do Rei Herodes,
quem manda que persigam o Menino Jesus, uma vez que este é anunciado como o novo Rei.
Atrás do cortejo seguem os músicos, com orações e toadas ao som de instrumentos como
sanfona, viola, violão, bumbo e surdo narrando a história do nascimento de Jesus.
Ao longo do ano os grupos de foliões – nome dado a quem participa dos encontros, se
encontram na casa dos integrantes do grupo para ensaiar os cânticos, para orar e quando mais
próximo da data da Folia de Reis, para ornamentar as vestes usadas pelos músicos e palhaços, a
bandeira e outros utensílios utilizados, como as espadas, um símbolo de força e poder
(confeccionada geralmente em madeira), possui mais um significado simbólico que de utilidade
durante o rito.
Quanto aos Reis, aos quais a Folia leva o nome, estes fazem referência aos Reis Magos,
personagens bíblicos, que ao saberem do nascimento do Menino Jesus, vão ao seu encontro
para presenteá-lo, anunciando sua chegada pelo caminho. De acordo com Oliveira (1983), os
três Reis Magos, tal como outras personificações do catolicismo, objetivam-se em três ações
decorrentes de devoção, o culto, a invocação e a punição: “culto, maneira de mostrar o apreço
e carinho ao santo; a invocação, pedido de proteção, favores e graça; e punição, quando o santo
deixa de atender um pedido ou dar proteção aos fiéis.” (OLIVEIRA, 1983, p. 913).
A complexidade por de trás não somente dos ritos festivos, como também do encontro
proveniente da Folia, não deve ser refletida pela inocência de seus personagens, ou até menos
do modo como é apresentada sua narrativa, mas pelo conjunto de símbolos que constroem toda
a iconografia, revelando uma construção solida que envolve diversas alocuções, tais como
disputa de território, agradecimento por conquistas, celebração do conjunto, mantendo assim
uma legado narrativo e iconográfico.
Mais que tradição, a Folia de Reis é uma parte significativa do nosso patrimônio cultural,
definitivamente, um nó que ao longo dos anos tem se ajustado ao processo urbano, aos
movimentos de saída da área rural para os limites da cidade, além de desafiar as famílias de
festeiros assíduos do rito a manterem viva a sua continuação ao longo de suas gerações.
Os cânticos utilizados durante os ritos da Folia de Reis fundamentam-se em histórias bíblicas
contidas nas passagens presentes nos livros do antigo testamento. Fazendo geralmente
referência a narrativas dos passos de Jesus Cristo, são geralmente marcados por estrofes
cantadas como uma poesia, com uma métrica própria. Tal qual os outros objetos, adornos e

1330
características da Folia, os cânticos são tão importantes quanto, constituindo assim parte do
conjunto de elementos sagrados.

Figura 02: Foliões caracterizados como os 3 Reis Magos participam da celebração litúrgica que antecede
os giros finais durante a Festa de Reis. A personificação em rigor preserva a tradição.

Fonte: Produzido pelo autor. Janeiro de 2018.

Além do grupo musical que entoa os cânticos de adoração e agradecimento, outro elemento
pertencente a sonoridade possui papel importante na abertura da apresentação de um grupo
de foliões e na entrega de sua bandeira para o presépio, tratam-se dos fogos de artificio que
sinalizam o início do giro (quando ocorro ao longo dos dias que precedem o Dia de Reis – 06 de
janeiro) ou do cortejo final durante a festa de Reis. É comum que ao final da apresentação, o
público que prestigiou a apresentação e o rito, troque uma fita por outra presa a bandeira, num
sinal de levar para casa parte da prece, como uma forma de estender o significado da partilha.
“Ainda, segundo algumas crenças, algumas pessoas colocam uma fita na Bandeira e retiram
outra, que é levada para dar sorte.” (KODAMA, 2009, p. 178).
As cores também possuem significado, e dependendo da cor encontrada nas fitas e flores que
adornam a bandeira ou o presépio, que geralmente é montado na festa de encerramento da
Folia de Reis, é possível compreender a que ou o que o grupo clama, o branco simboliza a paz

1331
entre as nações, o azul claro está associado ao Menino Jesus e simboliza união, o vermelho
simboliza o amor, o amarelo a prosperidade, o laranja a amizade. As cores também possuem
relação com entidades religiosas (Santos e Santas), “azul e branco, Nossa Senhora de Lurdes;
branco e marrom, Santa Teresinha do Menino Jesus; vermelho e branco, o Sagrado Coração de
Jesus; (...)”. (CASCUDO, 2001, p.159).
Além dos elementos sonoros e visuais, Kodama (2009), acrescenta que no que diz respeito a
análise da cultura popular, tendo a Folia de Reis como objeto, neste caso, não somente
compreende-se a Folia a partir de seus elementos e manifestações artísticas, mas também do
espaço onde ocorre tal celebração, sua utilização e transformação ao longo do rito, como as
performances nele realizados. No processo de zelo à tradição; o imaginário visual é de extrema
importância para que a memória coletiva seja preservada e transmitida a posterioridade, aliás,
não somente as imagens visuais originadas por meio da visualização expressiva, como também
“pelas imagens criadas pela oralidade”. (KODAMA, 2009, p. 231).
É valido refletir a respeito dos movimentos religiosos populares, que as religiões de modo geral,
concentram simbologias e ritos que divergem de outros tidos como tradicionais, o que pode
gerar certa tensão. Menezes (2003), salienta que isso não significa deixar de revivê-las, mas tê-
las como um motivo a serem mostrados e explanados.
A tradição também ressoa no modo como a Folia de Reis acontece; trata-se de um cortejo, e
como tal deve ser anunciado, com isso a peregrinação conforme avalia Felix e Pessoa (2007), de
seu ponto inicial ao ponto final, geralmente celebrada com uma festa de chegada, o percurso é
composto por visita a casa dos foliões e também de devotos, que preparam altares para receber
e prestigiar a passagem da bandeira, fazendo pedidos, orações e agradecimentos.
No passado, tal peregrinação iniciava-se n período natalino, até mesmo anterior ao dia 24, com
a visita dos foliões a outros distritos, propriedades rurais e cidades. Hoje, devido a muitas
famílias que antes viviam no campo residir na cidade, a Folia de Reis é também vista como um
chamamento para estes retornarem a seu local de origem, com isso, em grande parte das
cidades interioranas do oeste paulista, a Folia de Reis inicia-se nas comunidades rurais, vão até
a cidade e retornam ao campo, como se a Folia buscasse seus integrantes.
Geograficamente, aliás, quanto a Folia fazer essa peregrinação pela cidade, é comum ela ser
avistada em bairros mais tradicionais (antigos), uma vez que se trata de um saber patrimonial
consagrado por pessoas de idade mais avançada. Apesar de que a Folia de Reis parece relutar
para assim como a herança financeira, ser também um legado passado para a próxima geração.

1332
O que pode ser comprovado pela presença de crianças trajadas com vestes adornadas seguindo
as cores ou temática da forania a qual a família pertence.

Figura 03: Palhaços se preparam para irem em procissão visitar outra residência. As cores vibrantes, os
adornos e referências religiosas podem ser visualizadas na imagem, o que comprova a iconografia por
trás do rito.

Fonte: Produzido pelo autor. Janeiro de 2018.

A Folia de Reis é deveras um nó ainda que vivenciado por tantos, é silenciado por muitos. De
certo modo, é estranhado e causa certa repulsa em quem dela indiretamente utiliza. Há uma
certa divergência religiosa pratica por católicos dentro do catolicismo, em partes talvez devido
ao misticismo por trás do mítico já citado. A Folia de Reis de fato acaba sendo ocultada e abafada
por muitos, mas continua viva, manifestando-se nas franjas urbanas e nas comunidades
campestres. Se há estranhamentos e diferenças no modo como a Folia é praticada quanto aos
crentes externos a ela, dentro da própria Folia há modos de executá-las que se diferem. “De
uma região para outra e até entre folias da mesma região, cada uma tem suas características,
detalhes que lhe são próprios, embora todas guardem o mesmo objetivo. Isto se deve ao fato
de ser cultura popular.” (FÉLIX e PESSOA, 2007, p. 179).
Com isso, ela intersecciona três principais pontos, que tangenciam o religioso, o patrimonial e o
urbano social. O religioso, pois a realização do rito desenvolve-se dentro do contexto bíblico,
apoderando-se do mítico e místico envolvendo não somente a história de Jesus como já
mencionado, como também se apropriando da fé e do valor espiritual de quem participa e
prestigia da Folia. Quanto ao patrimônio, um rito tão tradicional e antigo, que somente em

1333
território nacional (existe) desde o período de colonização de nosso país, dá-se o devido
destaque não somente ao fator histórico e artístico, como também cultural que envolve todo o
ritual da Folia, com seus simbolismos e etapas, elucidando memorias afetivas que tal qual a Folia
sucedidas as demais gerações, “o simbólico que representa memórias” (TURNER, 1974, p.119).
Quanto a terceira intersecção, esta diz respeito a paisagem, uma vez que a Folia trata-se de uma
convocação. O percurso por ela realizado, figura-se como uma experimentação de retorno da
cidade-campo, a mudança de paisagem se tornar ainda mais nítida quanto as Folias ocorrem
pela união de foranias em diferentes cidades. Tais encontros podem ser claramente
interpretados como movimentos reversos tais quais o próprio êxodo rural – movimento
migratório, em que por deslocamento (às vezes involuntário) busca-se a cidade com o intuito e
esperança de se obter melhor condição de vida e trabalho.
Ademais, a paisagem espacial é de grande relevância para assimilar a Folia de Reis com as
relações urbanísticas, pois além dos “os espaços percorridos transformam-se em manifestações
iconográficas”, a paisagem como cenário narra todo um contexto de modernização que
cronologicamente pode ser avistada por meio dos giros, ou seja, no deslocamento dos grupos
de foliões, que percorrendo da cidade para os distritos e figueiras1 rurais desenvolvem
“identidade capazes de transcender o tempo e o espaço, criando a identidade das
comunidades.” (KODAMA, 2009, p. 236).
Um ponto relevante não somente no processo de construção da tradição, como também na
ciclicidade com que o rito festivo ocorre, são os desafios percorridos pelos realizadores e
também pela realização. No ano atual, particular aos anos anteriores, a missão concerniu em,
ora realizar pequenos encontros, ora compartilhar a Folia por meio das transmissões virtuais e
redes sociais, algo que pode ser acompanhado em alguns grupos com cantorias e recordações
de anos anteriores; um desafio ainda maior para aqueles desacostumados não somente com a
tecnologia, como também em decorrência do confinamento recomendado, por conta da
pandemia do novo Corona Vírus.
Considerando o período que compreende os anos 50 como um marco onde a população que
vivia nas cidades ainda era minoritária em relação a população rural, evidencia-se que a
facilidade, não somente em mantê-las, mas também reviver as tradições. Com ênfase as

1
Consiste num logradouro, designando um agrupamento rural. Em cidades do interior paulista, é comum
se ter Figueiras, geralmente seguido por uma homenagem a alguma santificação, por exemplo a Figueira
de São Roque.

1334
tradições religiosas, das quais a Folia de Reis é em muitas cidades tão característica. Ainda que
o êxodo rural como já mencionado como um marco territorial tenha sido iniciado anterior a este
marco, é compreensivo que foi a partir da década de 60 que começou a ser cada vez mais difícil
perdurá-la.
Todavia, em algumas cidades, tal como Santa Cruz do Rio Pardo, cerca de 350 quilômetros da
capital, São Paulo, a Folia de Reis além de integrar o calendário festivo da cidade, possui ao longo
do ano todo encontros e ensaios organizados pelos três grupos de foliões existentes na cidade.
Próximo as festividades de Natal, as folias iniciam; partindo de da Igreja de São Benedito, ou da
casa de algum organizador, percorre ruas do centro histórico e também bairros próximos ao
limite urbano. Carregando a bandeira, juntamente com os palhaços e com os músicos; os foliões
também oram no decorrer do trajeto. Ter a cidade de Santa Cruz do Rio Pardo como objeto de
análise não somente da questão histórico-social da Folia, como também de toda a iconografia
que a compreende é válido, devido encontra-se ali diferentes núcleos culturais e religiosos,
tornando-a um valioso objeto de estudo. A cidade é referenciada como a “boca do sertão”2 do
sudeste paulista, com incidência do conceito “caipira”, conjunto a costumes dos migrantes do
Sul e também do Centro Oeste do país, que combinados vão fortalecendo a construção da Folia,
pois, “cada cultura é o resultado de uma história particular, e isso inclui também suas relações
com outras culturas, as quais podem ter características bem diferentes.” (SANTOS, 1987, p. 12).
Calcula-se pelos organizadores da Folia de Reis de Santa Cruz do Rio Pardo, que anualmente
cerca de 5 mil pessoas participam e prestigiam a celebração final, quando ocorre o almoço que
é servido sem custo algum, sendo que o alimento servido é previamente arrecadado ao longo
do ano quando os foliões realizam seus giros e ensaios, ou através de doações da própria
comunidade rural. Esta festa final é sempre marcada por muita alegria, animação e oração.
É notório o esforço por parte dos organizadores, que juntamente com a presença do público, se
encontram para prestigiar o evento, participar do rito e para encontrar amigos. Na Folia de Reis
das Três Ilhas, bairro rural onde ocorre o encerramento da Folia na cidade interiorana, reúnem-
se cerca de dez grupos de Folia de Reis de cidades diversas, que se deslocam ora em romarias a
pé, ora por meio de transporte rodoviário. A programação inicia-se logo cedo com a celebração
eucarística, sincrônico a celebração, os grupos participantes se organizam para que um de cada

2
Definição dada por Pierre Mombeig (1984), para a cidade de Santa Cruz do Rio Pardo, considerada uma
das mais antigos do oeste paulista. Termo utilizado na época para toda cidade paulista que durante o ciclo
do café localizava-se num trecho final ou de entroncamento férreo. MONBEIG, Pierre. Pioneiros e
fazendeiros de São Paulo. São Paulo: Editora Pólis/ Editora Hucitec, 1984, 392 p.

1335
vez, apresente sua Folia aos presentes. Ao longo do dia é servido alimentos preparados pela
comunidade, para celebrar o Dia de Reis, confraternizando todos juntos como uma grande
família.

2 – Considerações Finais
Tendo como base o processo de evolução pelo qual a Folia de Reis percorre, é notável que
apesar de sua dinâmica de constante evolução, mantem-se o simbolismo tradicional que preza
pela simplicidade. Ainda que a festividade em torno do Dia de Reis lance olhares aos
ornamentos, cores e movimentos, a festa resguarda sua condição despretensiosa, acolhendo a
todos sem restrição. Frente a tantos desafios, sejam eles geográficos, sociais, econômicos e os
que dizem respeito a perpetuação da tradição, a Folia de Reis em cidades interioranas, ainda
que desconhecida por parte da população, mostra-se pertencer a cultura local. Dotada de toda
sua iconografia, mais que uma festividade religiosa, é parte integrante da identidade socio
cultural de comunidades.
Para Santos (1987), os elementos que constituem e que constroem a cultura, seja ela, local,
regional ou nacional, está sempre relacionada a um processo histórico, e a história acaba
estabelecendo relação com a necessidade de perpetuar tal valor cultural, originando a
necessidade em tornar patrimônio, ou seja, a conjuntura de valores e bens e memorias
pertencentes a um grupo. No caso da Folia de Reis, focando em seu entendimento em nível
nacional, o ato de tornar patrimônio imaterial (categoria que reúne expressões, movimentos,
saberes, lugares, etc.), é de interesse de localidades, cabendo ao agrupamento urbano, seja ele
estadual ou local torná-lo patrimônio.
Se a Folia de Reis existe e resiste a tantos anos, isso deve-se a garantindo a existência de tal
memória coletiva, além é claro do reforço familiar dos envolvidos na Folia, em ensinar seus
descendentes dos valores impostos e conservados da tradição tanto de preparo para a Folia
como de execução.
Ainda que tal qual se analisa a respeito da cultura diferir-se devido as diferenças sociais e
características de um grupo, sejam elas geográficas, politicas, artísticas, Santos (1987) indica que
a Folia de Reis aparenta pertencer a diferentes núcleos, moldada conforme a região que a
pratica, ela está presente em todo território nacional, todavia, com maior destaque e facilidade
de visualização em algumas localidades, como na região nordeste e sudeste, com destaque ao
centro-oeste paulista.

1336
É valido ressaltar que o público que prestigia, juntamente com as foranias que ano após ano
fazem questão de perpetuar a tradição da Folia de Reis, não somente em realizar os giros, mas
na paramentação e ritualização da festa, há uma grande parcela social que ora desconhece a
existência de tal festividade, bem como sua relação com a cultura internacionalizada,
juntamente com os valores religiosos, ora não ressalta o valor cultural e patrimonial da mesma,
ignorando-a e discriminando. Compreender seu propósito e seu valor cultural é desafiador, uma
vez que a Folia de Reis além de seus elementos iconográficos, possui particularidades quanto ao
modo como é personificada, com isso, “saber da origem, do sentido de sua espacialidade,
evolução histórica e do contexto cultural em que estão inseridas sempre se faz necessário.”
(KODAMA, 2009, p. 231).
De fato encontra-se resistências do ponto de vista do conhecimento de sua existência, apesar
da Folia estar enraizada na cultura popular, principalmente na cultura do interior, porém,
também há certezas quanto ao compromisso em manter a tradição de transmitir a importância
do rito e a homenagem que ocorre ano após ano aos valores religiosos, enaltecendo a figura do
menino Jesus e dos Reis Magos, assegurando tal ciclicidade ritualística, mantendo-as pelas
próximas gerações mantendo vivo esse nó cultural, religioso e alegórico.

Referências
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 11. ed. ilustrada. São Paulo: Global, 2002.
756 p.

FÉLIX, Madeleine e PESSOA, Jadir. As viagens dos reis magos. Goiânia: Ed. Da UCG, 2007.

GONÇALVES, Gabriela Marques. Religiosidade Popular e Folia de Reis. Anais do III Congresso Internacional
de História da UFG/Jataí: História e Diversidade Cultural. Textos Completos. Realização Curso de História
– ISSN 2178-1281. 2012, 10p. Disponível em: < encurtador.com.br/kvERX>. Acesso em: 21 de janeiro de
2021.

IEPHA. Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais. Dossiê para registro das
Folias de Minas do estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2016, 177 p. Disponível em: <
encurtador.com.br/cfoRV>. Acesso em: 11 de fevereiro de 2021.

KODAMA, K. M. R. O. Iconografia como processo comunicacional da Folia de Reis: o avatar das culturas
subalternas. 2009. 282 f. Dissertação (Doutorado em Ciências da Comunicação) - Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em: <encurtador.com.br/suVX7>. Acesso em:
07 de dezembro de 2020.

MENEZES, Renata de Castro. A benção de Santo Antônio e a “religiosidade popular”. In Estudios sobre
Religión. N. 16, dez. 2003 p. 1-6.

1337
OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Expressões religiosas populares e Liturgia. In Revista Eclesiástica Brasileira,
vol. 43, fasc. 172, dez. 1983, p. 909-948.

SANTOS, José L. O que é cultura. 6ª. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. 89 p.

TURNER, Victor W. O processo Ritual: estrutura e anti-estrutura. In. Victor Tuner. Coleção
Antropologia. Petrópolis: Vozes, pp.1974. 13-60.

1338
NOTAS SOBRE CORPO E GÊNERO NAS ENCRUZILHADAS VIRTUAIS: entre
silenciamentos, resistências e visibilidades
Nó4 - O silêncio dos silentes, dos mistérios.

Maurílio Mendonça de Avellar Gomes


Mestrando; Programa de Pós Graduação em Comunicação e Territorialidades (PósCom) da
Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes); maulgom@gmail.com.

Este artigo dialoga sobre os corpos de religiosidades afro-diaspóricas, historicamente


silenciadas, que ocupam e transformam suas paisagens em espaços de recriação, transmissão e
revisão da memória e do conhecimento. São aprendizados compartilhados, sendo o corpo
também território, comunicador de conhecimento. Em período pandêmico, esses corpos
ocupam espaços virtuais e os transformam em encruzilhadas, paisagens comunicacionais que
promovem os cruzamentos de conhecimentos, via Facebook e YouTube. Silêncio rompido por
plataformas digitais. A partir de dois exemplos, analisamos as relações entre memória, corpo e
gênero com apoio de uma metodologia bibliográfica e com análise de imagens, compreendendo
a importância de uma memória presente, não presa ao passado, e reconhecendo que a
ancestralidade também propulsiona a mudança.
Palavras-chave: Corpo; Gênero; Memória; Paisagem Comunicacional.

This article discusses the bodies of Afro-diasporic religions, historically silenced, which occupy
and transform their landscapes in spaces of recreation, transmission and revision of memory and
knowledge. These are shared learnings, and the body is also a territory, a communicator of
knowledge. In a pandemic period, these bodies occupy virtual spaces and transform them into
crossroads, communicational landscapes that promote the crossing of knowledge, via Facebook
and YouTube. Silence broken by digital platforms. Based on two examples, we analyze the
relations between memory, body and gender with the support of a bibliographic methodology
and with image analysis, understanding the importance of a present memory, not stuck to the
past, and recognizing that ancestry also propels change.
Keywords: Body; Gender; Memory; Communicational Landscape.

1339
1 – Introdução
Um ano de pandemia! Um ano de paisagens modificadas pelo isolamento social. Ao pensar a
paisagem por um viés comunicacional, temos a oportunidade de “analisar os aspectos
relacionais que traduzem a experiência de sujeitos comuns em relação ao espaço” (FONSECA,
2008, p. 86). E, dessa forma, podemos compreender os modos e meios que a paisagem urbana
se relaciona com quem a frequenta, e vice-versa. Ou seja, compreender os significados
construídos a partir dessa relação, assim como os que circulam por ela.
Para este artigo, buscamos encontrar essas relações construídas a partir da paisagem de espaços
usados por religiosidades afro-diaspóricas brasileiras, de matrizes africanas. Mas as medidas de
prevenção ao contágio da Covid-19 fecharam as portas dos terreiros. Em consequência, outras
paisagens assumiram esse local de troca, não mais físicas, mas virtuais. Paisagens estabelecidas
por meio de interfaces oferecidas em espaços midiáticos. Relações construídas à distância,
estabelecendo significados e apresentando resistência. Possibilidade de romper o silêncio –
historicamente imposto aos tambores do Axé – mesmo que simbolicamente.
Dessa forma, trazemos para o artigo uma análise de uso comunicacional dessas paisagens, aqui
representadas pela rede social Facebook e pelo canal de vídeos YouTube. Assim, analisamos as
relações construídas a partir de duas publicações: uma foto, disponível no perfil público que o
Babalorixá Luciano Lima de Yemonjá tem no Facebook; e um vídeo, disponível no canal do
YouTube de Pai Marlon D’oyá, sobre a festa à Maria Mulambo. Duas imagens que também são
paisagens comunicacionais, apresentadas a partir de um sistema de informação, onde se tem “a
interseção das diversas tipologias componentes, como seus ocupantes, sua estrutura e
significados gerados” (MAZIERO, 2013, p. 468).
Relações que, inicialmente, já apontam sinais de resistência, seja da memória, por meio da
diáspora encruzilhada pela colonização; seja da ressignificação das relações afetivas construídas
por meio dessas publicações. A partir dessas percepções, abordaremos, ainda, questões
envolvendo discussões sobre corpo e gênero, cruzados com as paisagens construídas nos
espaços virtuais, apresentando um olhar dinâmico sobre a ancestralidade da história, como
“força propulsora, de fidelidade pela mudança, em que recolhe todo o movimento da
identidade” (SODRÉ, 2007, p. 189). Entendemos, assim, “que toda revolução é ancestral, que
sem ancestralidade, não há nem se dá História” (Ibdi).

1340
2 - Corpos em paisagem
Entendendo que a “paisagem é composta pela experiência dos homens que a frequentam, que
já frequentaram e daqueles que se relacionam com ela” (FONSECA, 2008, p. 86), a partir do
relacionamento que estabelecemos com as paisagens comunicacionais que trazemos para este
artigo, partimos para os significados apresentados por elas, assim como para as relações
construídas a partir da presença dessas imagens nas redes sociais. E para melhor compreender
as mensagens transmitidas pelos corpos que ocupam essas paisagens, realizamos o exercício de
“ler” esses corpos por meio dos movimentos, gestos e elementos que os compõem. Afinal, a
“comunicação não é necessariamente apenas a comunicação da mídia, a comunicação das
redes, mas passa também pelos corpos que se encontram. Corpos e discursos que se
encontram”. (SODRÉ, 2019, p. 880).

Figura 01: print da postagem feita pelo Babalorixá Luciano Lima de Yemonjá.

Fonte: Foto de Luciano Lima, publicado em seu perfil pessoal no Facebook, em 25 de agosto de 2020.

A princípio, a foto publicada pelo Babalorixá Luciano Lima de Yemonjá, em seu perfil pessoal no
Facebook, apresenta uma de suas filhas. Responsável por um terreiro de Candomblé, em Belford
Roxo, no Rio de Janeiro – o IGBÁ ASÉ OLAYINKA – Luciano publicou a imagem de uma mulher

1341
transexual e que se apresentava usando de vestimentas femininas condizentes à liturgia da casa.
Uma imagem simples, mas que apontou uma questão recém questionada a essa religiosidade:
o que vem sendo debatido é que alguns terreiros passaram a permitir que mulheres e homens
trans possam usar, respectivamente, de vestes femininas e masculinas, não precisando alterar
sua identidade de gênero dentro do espaço sagrado.
Acompanhando a imagem, um texto escrito por Luciano reforça que essa permissão é
correspondente a casa da qual ele é o responsável (ver figura 01). E ainda levanta a afirmação
de que os próprios participantes dessa religiosidade ainda não estão dispostos a conversar sobre
o assunto. A imagem1 registra 826 reações, entre curtidas e demais classificações habituais da
rede social. Estão registrados 231 comentários e 512 compartilhamentos. O apoio à imagem é
quase totalitário: somente 10 reações apontam algum questionamento – entre emojis de riso,
assustado, choro ou raiva –, com cinco comentários contrários à postagem e sete
compartilhamentos (entre os que foram possíveis de serem analisados) que questionam essa
decisão.
O afeto presente na postagem reforça o que GOMES e ANTUNES (2019) trazem em seu artigo
referente às reflexões feitas por Grossberg, considerando o afeto “como algo que organiza,
disciplina, mobiliza e coloca nossa atenção, volição, humor e paixão a serviço de agendas
específicas” (cf. GROSSBERG, 1992, p. 255, apud. GOMES; ANTUNES, 2019, p. 16). São relações
construídas a partir de ações que assumimos no cotidiano de nossas vidas, entendendo o afeto,
ainda, como instrumento presente na luta por hegemonia, “que tenta transformar os mapas de
importância dos sujeitos e a natureza e os locais de autoridade da vida contemporânea” (Ibdi).
Dessa forma, o afeto também ganha reconhecimento enquanto elemento transformador, social
e cultural.
O diálogo construído nessa paisagem virtual promove, por meio do afeto – presente tanto no
texto publicado pelo Babalorixá quanto pelas mensagens que acompanham a postagem e a
apoiam, reforçadas por sentimentos de amor e respeito – a defesa dos direitos humanos e, em
especial, às pessoas transexuais, promovendo inclusão e, ao mesmo tempo, disruptura a um
pensamento, ainda tradicional, às casas de Candomblé. Os poucos comentários que se opõem
ao discurso majoritário citam os ensinamentos dessa religiosidade, em especial algumas
obrigações religiosas que correspondem ao sexo de nascimento e que poderiam ser feitas

1 Publicada em 25 de agosto de 2020, em perfil aberto do Facebook. Disponível em:


<https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=3814579791892594&id=100000218328711>. Acessado,
pela última vez, em 03/03/2021.

1342
somente por mulheres ou somente por homens, como os motivos para que tal postura do
Babalorixá não correspondesse ao que deveria ser pregado por ele. Um debate que confronta o
afeto com o que alguns argumentam como sendo as tradições do Candomblé.
Por mais que não haja uma linha que determine o que pode ou não ser feito nessa religiosidade
afro-diaspórica, considerando que tais decisões cabem à ancestralidade e, aqui no caso, aos
Orixás; e entendendo que cada espaço, cada terreiro, terá uma forma específica de construir e
desenvolver essa relação entre os integrantes da família e o conhecimento ancestral; cabe aqui,
ressaltar, que não é de nosso interesse apontar o que é correto dentro desse diálogo, mas
refletir sobre o quanto certas “tradições” podem estar escondidas de “tradicionalismos”, como
bem argumenta Muniz Sodré, que entende tradição não como:
(...) transmissão conservadora de formas de uma geração para outra, mas da
reinterpretação de mensagens ancestrais. A transmissão conservadora é
justamente o ‘tradicionalismo’, ou seja, um modo exacerbado dessa
comunicação intertemporal, não-dialógica, de formas fechadas a qualquer
resposta ou reelaboração epocal. (SODRÉ, 2007, p. 190)

Cabe aqui considerar, também, que a “teoria da performatividade de gênero busca entender a
formação de gênero e subsidiar a ideia de que a expressão de gênero é um direito e uma
liberdade fundamentais” (BUTLER, 2017). O que, diante da complexidade em que se encontram
as religiões de matrizes africanas, abrem-se novas possibilidades de discussão referente aos
exemplos abordados neste artigo.
No vídeo2 disponibilizado por Pai Marlon D’oyá, responsável pela Tenda de Umbanda de Sete
Encruzilhadas e Maria Mulambo (TUSEMM), com gravações realizadas em 23 de agosto de 2018,
acompanhamos trechos da festa feita em homenagem a Maria Mulambo. O vídeo também traz
falas de Pai Marlon, que aproveita para apresentar informações referentes a ele, a sua relação
com a Umbanda e a conexão que ele tem com as entidades que lhe acompanham, em especial
à Maria Mulambo. Aqui, nos interessa outro diálogo, o do corpo do entrevistado, suas mudanças
físicas durante a incorporação, assim como as relações que esse corpo incorporado constrói com
o espaço onde acontece a celebração.
Entendendo que “nós não ‘temos’ simplesmente um corpo, já que ‘somos’ igualmente um
corpo” (SODRÉ, 2014, p. 12), e concordando que “o corpo é território de muitos lugares” (Ibdi,
2019, p. 882), abordaremos essa paisagem comunicacional por meio da composição de signos

2
Publicado em 23 de abril de 2020, no canal de Marlon Lima, no YouTube. A descrição do vídeo o identifica como um
registro da nona festa realizada “em louvor a Rainha Maria Mulambo de Pai Marlon D’Oyá”, Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=SgXMOwVNh10>. Acessado em: 01/03/2021

1343
que ela traz e sem estabelecer, previamente, qualquer natureza de linguagem, visto que essas
“podem ser resultantes, por exemplo, da ação e reação (provocada em um movimento), da
emoção (sentimento de prazer de estar em algum lugar) ou da imaginação (um pensamento
ilimitado decorrente das mais variadas sensações” (MAZIERO, 2013, p. 468).
O vídeo contém imagens do terreiro, de elementos que compõem o espaço e a festa, incluindo
comidas, bebidas e vestimentas, além de entrevistas com o Pai Marlon e a presença dos demais
participantes da gira3. Com duração de 15 minutos e 06 segundos, o conteúdo já foi visualizado
mais de 131 mil vezes, obtendo 4,8 mil “gostei”, 111 “não gostei” e 286 comentários, com três
deles criticando a religião. Mais uma vez, um exemplo de apoio às religiosidades afro-
diaspóricas, com grande maioria das mensagens registradas no espaço virtual apontando
identificação, respeito e reconhecimento à religiosidade ali representada.
Os primeiros cinco minutos de vídeo são de contextualização sobre a festa, Maria Mulambo e a
relação de Pai Marlon com a entidade e com a Umbanda. Até chegara ao momento em que o
vídeo nos apresenta a chegada da entidade festejada. Inicialmente vemos um homem, descalço,
vestido com calça e camisa brancas, trazendo em uma das mãos um sino, que permanece com
ele até os primeiros sinais de que a incorporação está prestes a acontecer. Esta torna-se visível
no corpo de Pai Marlon quando ele começa a girar, em sentido horário, tendo como eixo o
próprio corpo. No momento em que sua perna esquerda permanece centralizada, e a direita se
movimenta para trás, em pequenos saltos, os giros vão sendo intensificados enquanto a coluna
é jogada para frente, tendo o corpo inclinado em direção ao chão da cintura para cima, enquanto
as pernas seguem esticadas (ver figura 02). As mãos são levadas para parte de trás da cabeça,
com os dedos fazendo movimentos repetidos, num vai-vem, encostando no cabelo, como se
coçasse a área próxima da nuca. Em seguida, as mãos correm o rosto, a coluna é reerguida, as
mãos são levadas para o quadril, e Dona Maria Mulambo começa a girar, mantendo a perna
esquerda como eixo dos rodopios, ocupando o salão onde acontece a festa em homenagem a
ela.
Percebemos, assim, uma consciência corpórea (SODRÉ, 2014) por parte de Maria Mulambo. O
momento de sua chegada não leva nem cinco segundos. A partir disso, o corpo de Pai Marlon
passa a ser de pertencimento dela que, aos poucos, se apropria e transforma a imagem
inicialmente masculina, desse corpo, em uma imagem mais feminina, pois ali “a consciência é

3 Gira é o nome dado ao culto celebrado na Umbanda. Mesmo sendo uma festa destinada especialmente a uma
entidade, devido a presença de elementos característicos do ritual, esta também pode ser classificada como uma gira
à Maria Mulambo.

1344
uma operação que se realiza em toda parte do corpo” (Ibdi, p. 12). O rosto parece iluminar e,
deste momento em diante, passa a ostentar um sorriso. Mas um sorriso discreto, preso aos
cantos da boca, que se mostra mais escancarado em momentos de trocas íntimas com alguns
dos presentes na festa. Até o olhar traz outra expressão, parecendo acompanhar o sorriso,
significando uma mensagem de leveza e felicidade. Há, inclusive, suavidade para movimentar a
cabeça, com ela levemente erguida e demonstrando que Maria Mulambo mantém seu longo
cabelo (invisível) jogado para trás, mexendo o pescoço de um lado para o outro, soltando os fios
que passeiam pelas costas.

Figura 02: composição de dois momentos da festa à Maria Mulambo

Fonte: Imagens do vídeo Festa Maria Mulambo Pai Marlon, publicado no canal do YouTube de Marlon
Lima, em 23 de abril de 2020.

Em um determinado momento, Maria Mulambo se retira do ambiente e retorna, em seguida,


com outra vestimenta. Ela entra de costas para o salão, com o corpo encurvado em direção a
área que acaba de sair, como se cumprimentasse o chão do espaço para onde retorna. Ao erguer
a coluna, começa seus rodopios. As vestes são outras: está com um vestido cumprido,
misturando um tecido na cor preta com outro que vem por cima, todo florido. Esse mesmo
tecido cobre sua cabeça, como se fosse um turbante. Os pés seguem descalços, favorecendo os
rodopios embalados por Maria Mulambo. Ao redor do pescoço, um colar, provavelmente feito
de metal, com tiras posicionadas uma ao lado da outra, que descem até o início de seu colo,
como se cobrissem o pequeno decote. Nas orelhas, brincos compridos. E, no rosto, uma
maquiagem completa o visual: batom rosa na boca, sombra escura esfumada nos olhos,
incluindo alguns pontos de brilho que remetem ao uso de purpurina, com as sobrancelhas
desenhadas, além de blush nas maçãs do rosto. Agora, sim, Maria Mulambo apresenta-se da
forma como gostaria de estar em sua própria festa (ver figura 02).

1345
O que, socialmente, pode estar pré-determinado a ser “homem” ou “mulher” é desconsiderado
diante da incorporação. Não havendo distinção de sexo nem de gênero para a manifestação da
espiritualidade, o ato performático da incorporação muda todo o contexto (PEREIRA, 2012).
Uma mudança que incomoda e abala a construção social, “não só porque altera os sujeitos que
enunciam, mas porque insere a probabilidade de transformação” (Ibdi, p.373). Transformação
não necessariamente aceita ou compreendida.
A paisagem comunicacional, em questão, é construída por todos os elementos que compõem a
Festa de Maria Mulambo. Cada um deles reforça as conexões relacionais e emocionais
estabelecidas naquele espaço. Relações que também são reforçadas entre os comentários
postados no vídeo e que apontam, inclusive, o desejo por parte de alguns em poder participar
dessa festa. As trocas estabelecidas a partir desse vídeo reforçam a compreensão dessa
paisagem guardar, em si, “uma potência de significação” (FONSECA, 2008, p. 87), em especial a
partir das “relações que são estabelecidas nela e com ela” (Ibdi), por meio da combinação de
elementos e características que a compõem. A transformação, nesse caso, é compreendida. E a
performance apresentada por Maria Mulambo é, então, acolhida culturalmente por meio de
relações estabelecidas entre tecnologia e cultura. Entendendo a constituição das mídias não por
meio de uma base exclusivamente tecnológica, mas sim com uma base sociotécnica, por meio
de uma tecnocultura (GOMES; ANTUNES, 2019).
Em termos conceituais e empíricos, tecnocultura diz respeito ao modo como
vivemos, individualmente, mas sempre de modo compartilhado, as
tecnologias. Pensada efetivamente como articulação entre tecnologia e
cultura, ela não se refere, pura e simplesmente, à tecnologia e nem à cultura,
mas às apropriações e interpretações da tecnologia na vida cotidiana, para
lidar com problemas, questões e necessidades colocadas pela vida, em
sintonia com afetos, desejos, valores e práticas sociais. Tecnocultura se refere
a uma relação que convoca nosso olhar para dinâmicas políticas, sociais,
econômicas e simbólicas da vida cotidiana. (GOMES; ANTUNES, 2019, p. 14-
15)

3 – Memória e resistência
Nos dois exemplos aqui apresentados, a tecnocultura se apresenta no uso de plataformas
digitais que permitem o compartilhamento de imagem, texto e vídeo, tornando pública uma
relação que, até então, era pessoal. Há, dessa forma, uma abertura no espaço virtual para a
troca social de relações a partir dessas duas imagens, compondo paisagens comunicacionais de
diálogo, de afeto e de percepções a cerca de um modo de vida estabelecido diretamente por
meio da memória, em especial a memória do corpo.

1346
Seja o corpo de uma mulher trans, seja o de um homem incorporado e transformado na imagem
de uma mulher, o que percebemos é que os dois corpos se apresentam enquanto “local de
inscrição de conhecimento” (MARTINS, 2003, p. 66), não apenas como “expressão ou
representação de uma ação, que nos remete simbolicamente a um sentido” (Ibdi). Dessa forma,
as performances representadas por essas duas imagens “funcionam como atos de
transferências vitais, transmitindo o conhecimento, a memória e um sentido de identidade
social” (TAYLOR, 2013, p. 27).
“(...) como afirma ainda Roach, “as performances revelam o que os textos
escondem”. Afinal, como também nos alerta Pierre Nora (1994), a memória
do conhecimento não se resguarda apenas nos lugares de memória (lieux de
mémoire) (...), mas constantemente se recria e se transmite pelos ambientes
de memória (milieux de mémoire), ou seja, pelos repertórios orais e corporais,
gestos, hábitos, cujas técnicas e procedimentos de transmissão são meios de
criação, passagem, reprodução e de preservação dos saberes”. (MARTINS,
2003, p. 67).

Essas paisagens comunicacionais tornam-se, assim, ambientes de memória, usando do próprio


corpo como elemento fundamental para que haja transmissão de mensagens, de valores éticos
e, ainda, de tradições; além de quebrarem o silêncio patriarcal e racista sobre esses corpos. São
saberes estéticos, mas também são conhecimentos ancestrais, milenares, reforçando que a
“cultura negra também é, epistemologicamente, o lugar de encruzilhada” (Ibdi, p. 69). A
encruzilhada, aqui em questão, está presente tanto na representação de gênero e sexualidade;
assim como no resgate corporal dessa memória diaspórica. Podemos entender a encruzilhada
geográfica enquanto ponto de encontro de cruzamentos, apresentando caminhos possíveis.
Mas quando o termo considera os conhecimentos ancestrais, em especial a partir dos
relacionados com Exu (Orixá da comunicação e do corpo, e dono da encruzilhada), entendemos
que a ecruzilhada “emerge como o tempo/espaço das invenções cruzadas entre um imaginário
em África e as suas reverberações criativas, circunstanciais e inacabadas na diáspora” (RUFINO,
2019, p. 28). Sendo, ainda, “força plástica, poética e mítica de inúmeras possibilidades de
recriação” (Ibdi).
Dessa forma, tanto na Umbanda (de Pai Marlon D’oyá) quanto no Candomblé (do Babalorixá
Luciano Lima de Yemonjá) a encruzilhada se apresentou diante de questões sociais conflituosas
e questionando posturas conservadoras, reforçadas por uma sociedade paternalista,
representada em comentários racistas, machistas, sexistas, transfóbicos e homofóbicos. Que,
apesar de numericamente bem inferiores aos comentários afetuosos às duas imagens,
demonstram que o espaço virtual também é de disputa.

1347
Enquanto paisagens comunicacionais, esses corpos, socialmente marginalizados, classificados
como minorias4, se apresentaram enquanto encruzilhadas de resistência, sendo “geratriz de
produção sígnica diversificada e, portanto, de sentidos plurais”. (MARTINS, 2003, p. 70). Por
meio do coletivo, souberam apresentar “formas de resistência social e cultural que reativam,
restauram e reterritorializam, por metamorfoses emblemáticas, um saber alterno, encarnado
na memória do corpo e da voz”. (Ibdi, p. 73).
Indo além, se assim for possível, esses corpos também se doaram para serem a própria
encruzilhada. Corpos reconhecidos como territórios, espaços de percepção de sentimentos e
relações, constituídos por meio das trocas sociais, e, ainda, enquanto símbolos de representação
de identidade pessoal e coletiva. Corporalidades concebidas como territórios de conhecimento
e sabedoria, e que, diante da ancestralidade, ainda são espaços “onde se entrecruzam
elementos físicos e míticos e se erigem fronteiras e defesas” (SODRÉ, 2014, p. 16). Nessa relação
comunitária com a ancestralidade cosmo africana, “as fronteiras da carne não marcam os limites
de uma individualidade, tudo está interligado” (Ibdi). Dessa forma, não somente o espaço
geográfico onde se cultua o ancestral é reconhecido enquanto local sagrado, mas, também, o
próprio corpo de quem permite que haja ali a encruzilhada entre vida e morte. Ao permitir essa
conexão, esses corpos “modificam, ampliam e recriam os códigos culturais entrecruzados na
performance e âmbito do rito, em cujo contexto a realidade cotidiana, por mais opressiva que
seja, é substituída e alterada” (MARTINS, 2003, p. 71).

4 – Últimas considerações
Dessa forma, entendemos que essas comunidades, aqui em destaque, respeitam a liturgia
trazida pela ancestralidade, por meio das obrigações que cada um terá que cumprir, mas sem
desconsiderar os valores éticos construídos na relação com os ancestrais, compreendendo que
esses valores são “suscetíveis de transformação segundo a variação espácio-temporal” (Ibdi).
Percebemos, então, que o afeto encontrado nas defesas manifestadas nos comentários
relacionados às duas imagens, aqui analisadas, representa uma conquista ética, contemporânea
e condizente a um momento de transformação social e cultural.

4 Conceito de minoria, aqui abordado, é o mesmo defendido por Muniz Sodré (2005), por haver “possibilidade de
terem voz ativa e intervirem nas instâncias decisórias do Poder aqueles setores sociais ou frações de classe
comprometidas com as diversas modalidades de luta assumidas pela questão social. Por isso, são considerados
minorias os negros, os homossexuais, as mulheres, os povos indígenas, os ambientalistas, os antineoliberalistas, etc.”
(SODRÉ, 2005, p. 11-12). Considerando, ainda, que o que “move uma minoria é o impulso de transformação” (Ibdi p.
12).

1348
Ou seja, para a comunidade construída a partir do IGBÁ ASÉ OLAYINKA, as questões relacionadas
à religiosidade afro-diaspórica ali celebrada não se resumem à dimensão simbólica,
representada pelas reflexões míticas dessa religiosidade. Elas também alcançam uma
identificação com os valores éticos do grupo, por meio de “reivindicações de reconhecimento
identitário e estratégias de poder (em torno da hegemonia das representações) que são
inequivocamente políticas”. (Ibdi, p. 191). Assim como as relações estabelecidas durante a festa
em homenagem à Maria Mulambo, realizada por Pai Marlon D’oyá, apresenta a construção
fundante das religiosidades de matrizes africanas, representadas por uma conexão emocional
que vai além das que são estabelecidas com os elementos ali presentes, reforçando sensações
e sentimentos que extrapolam a paisagem em questão. Em ambos os casos, estamos tratando
de paisagens afetivas, entendendo paisagem afetiva enquanto:
(...) um modo social complexo de estar no mundo, um espaço densamente
texturizado no qual algumas experiências, comportamentos, escolhas e
emoções são possíveis, alguns “sentimos” inevitáveis e óbvios, e outros ainda
são impossíveis ou inimagináveis. Define o que é permitido e o que é proibido.
E é aí que a luta para tornar experiências novas e emergentes, vivíveis e
conhecíveis, é levada a cabo (GROSSBERG, 2018, p. 91, apud GOMES;
ANTUNES, 2019, p. 17-18).

Referências
BUTLER, Judith. Judith Butler escreve sobre sua teoria de gênero e o ataque sofrido no Brasil. Folha de
São Paulo, São Paulo, 19 nov. 2017. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/11/1936103-judith-butler-escreve-sobre-o-
fantasma-do-genero-e-o-ataque-sofrido-no-brasil.shtml>. Acesso em: 11 set. 2020.

FONSECA, Cláudia Graça da. A cidade em comunicação: paisagens, conversas e derivas no Centro de BH.
Tese (Doutorado) – Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG. Belo Horizonte, 2008.

GOMES, Itania Maria Mota; ANTUNES, Elton. Repensar a comunicação com Raymond Williams: estrutura
de sentimento, tecnocultura e paisagens afetivas. Galáxia. São Paulo: PUC-SP, Especial 1, 2019, pp. 8-21.
Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1982-
25532019000400008&tlng=pt>. Acesso em: 23 fev. 2021.

MARTINS, Leda. Performances da Oralitura: corpo, lugar de memória. Língua e Literatura. Santa Maria:
UFSM, n. 26, 2003, pp. 63-81. Disponível em: <https://periodicos.ufsm.br/letras/article/view/11881>.
Acesso em: 02 mar. 2021.

MAZIERO, Lucia Teresinha Peixe; BONAMETTI, João Henrique. Espaço urbano como comunicação: signos
da paisagem. Revista de Estudos da Comunicação. Curitiba: PUC-PR, v. 14, n. 35, set./dez. 2013, pp. 463-
478.

PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. Queer nos trópicos. Contemporânea. São Carlos: UFSCar, v. 2, n. 2, 2012,
pp. 371-394.

RUFINO, Luiz. Pedagogia das Encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019.

1349
SODRÉ, Muniz. Por um conceito de minoria. In: PAIVA, Raquel; BARBALHO, Alexandre (Orgs.).
Comunicação e cultura das minorias. São Paulo: Paulus, 2005.

___________. Uma dimensão política da religião. In: deSignis 6: Comunicación y conflictos


interculturales. Barcelona: Editorial Gedisa, jan-jun 2007, pp. 185-192.

___________. Cultura, corpo e afeto. Dança. Salvador: UFBA, v. 3, n. 1, jan-jul 2014, pp.10-20.

___________. Entrevista com Muniz Sodré. RECIIS – Rev. Eletron. Comun. Inf. Inov. Saúde. Rio de Janeiro:
Fiocruz, out-dez 2019, pp. 876-886. Disponível em: <www.reciis.icict.fiocruz.br>. Acesso em: 29 set. 2020.

TAYLOR, Diana. O arquivo e o repertório: performance e memória cultural nas Américas. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2013.

1350
O RESGATE E O (RE)CONHECIMENTO DA IMAGEM DA ANTIGA MATRIZ DE VITÓRIA
POR MEIO DE SUA RECONSTRUÇÃO DIGITAL 3D
Nó1 - O silêncio do patrimônio reconhecido.

Joana Segatto Scabelo


Arquiteta e Urbanista; Universidade Federal do Espírito Santo; joanasegatto@gmail.com.

Jarryer Andrade de Martino


Arquiteto e Urbanista; Universidade Federal do Espírito Santo; jarryer.martino@ufes.br.

As reconfigurações do espaço urbano acabam muitas vezes por promover um silenciamento de


seus patrimônios, e, portanto, da sua própria história. Não obstante, muitos patrimônios
abandonados clamam por suas respectivas recuperações, cabendo aos estudiosos, profissionais
e pesquisadores o interesse de encarar tais desafios. Por outro lado, existem muitos que acabam
por serem demolidos, trazendo um desafio ainda maior para a continuação de sua lembrança.
Este estudo, parte justamente da possibilidade do uso da tecnologia digital para reconstrução
3D, como ferramenta de resgate do patrimônio histórico que teve seu percurso interrompido
através da demolição. O monumento escolhido foi a antiga Matriz de Vitória- ES, demolida em
1918. Após o processo, foi possível realizar o resgate histórico deste patrimônio.
Palavras-chave: Reconstrução 3D; tecnologia digital; patrimônio arquitetônico; Matriz de
Vitória.

The refurbishment of urban spaces often end up silencing the heritage, and, therefore, of its own
history. Nevertheless, many abandoned patrimonies plead for you own restorations. It`s up to
the scholars, professionals and researchers to show interest to face these challenges. On the
other hand, there are many that end up being demolished, bringing even a bigger challenge to
the maintenance of your memory. This study proposes to be able to use the 3D digital technology
as a tool to rescue historical heritage that have had your course interrupted by demolition. The
monument chosen was the old Matriz of Vitória-ES, demolished in 1918. After this process it was
possible to rescue the historic heritage and memory of this heritage.
Keywords: reconstruction 3D; digital technology; architectural heritage; Matriz de Vitória.

1351
1 – Introdução
No último século, as sociedades passaram por uma série de reorganizações que impulsionaram
novas configurações sociais e culturais que contribuíram com as modificações espaciais,
especialmente no espaço urbano, fazendo com que muitos monumentos edificados fossem
sendo substituídos ou até mesmo demolidos. Neste sentido, recuperá-los, em especial os
inexistentes, proporcionava um grande desafio para profissionais e estudiosos de diversas áreas.
Entretanto, a inserção das tecnologias digitais, após a década de 1990, promoveu novas
possibilidades para a preservação da herança cultural. A reconstrução do patrimônio
desaparecido por meio de modelos digitais, apresenta a possibilidade de resgatar sua imagem e
pode ser aplicada tanto para monumentos, quanto sítios e artefatos históricos (NOGUEIRA,
AMORIM, 2019).
Antes da existência da tecnologia digital, o resgate era feito com base em compilados de técnicas
manuais que exigiam muito conhecimento e tempo de dedicação, e, nem sempre eram capazes
de apresentar tanta precisão de detalhes (BRAGA; PARIZ; DALLABRIDA; RIGO, 2014). Já com as
tecnologias digitais, acabaram por apresentar clareza nos detalhes, otimização de tempo e
possibilidades de aplicações que fazem com que essas sejam adotadas quase como prioritárias
nas reconstruções.
Conforme Braga, Pariz, Dallabrida e Rigo (2014), a tecnologia digital apresenta recursos capazes
de reproduzir as cores, texturas e dimensões exatas, que proporcionam a elaboração detalhada
da edificação, em sua grande maioria, de forma tridimensional. Essa criação digital pode ser feita
utilizando como base, fotos, croquis, e outros formatos de desenhos, que, quando replicados e
tratados nos aplicativos corretos, traduzem-se em imagens que reconstroem o objeto original.
Algumas possibilidades de aplicações dessas reconstruções digitais podem ser observadas em
cenários de cinema, jogos eletrônicos, promoção de locais turísticos, atrativos educativos em
museus, sítios arqueológicos, jornalismo, e ainda, como reconstrução histórica dentro do campo
científico, servindo inclusive como aceitação de documento histórico. Há de se apontar ainda,
que, assim como no caso deste estudo, as tecnologias que favorecem a reconstrução digital têm
sido apropriadas nos projetos de documentação arquitetônica, tanto para arquitetura quanto
para arqueologia (NOGUEIRA, AMORIM, 2019).
No entanto, para reconstrução digital do patrimônio arquitetônico, a modelagem tridimensional
tem sido apontada como uma das mais indicadas, especialmente pela possibilidade de realizar
através dessa técnica a preservação do registro cronológico (CECCO; MONTEIRO; FERREIRA;
PINNA, 2013), ou ainda, a manipulação e reprodução do ambiente em várias escalas, com

1352
possibilidade de inclusão de detalhes e aprimoramentos posteriores, na medida em que a
história e/ou recursos vão sendo encontrados (BRAGA; PARIZ; DALLABRIDA; RIGO, 2014); como
no caso da antiga e inexistente Matriz de Vitória, demolida 1918, cedendo espaço para
construção da atual Catedral Metropolitana de Vitória.

2 – O Patrimônio e sua Reconstrução 3D proporcionada pela tecnologia digital


O Patrimônio está diretamente ligado à construção histórica, social, cultural e identitária de uma
nação. Compreender então, suas dimensões, representatividade e alcance, faz-se essencial, na
medida que, quanto maior seu conhecimento, maior sensação de pertencimento; e,
consequentemente, maior sua preservação. Tendo em vista, então, o monumento como um
objeto de representação da memória e da nacionalidade de um povo, cada vez mais ele terá seu
domínio expandido à medida que valores vão sendo atribuídos a ele pelas sociedades (PÉREZ,
2017).
No período entre 1820 a 1960, a fase de consagração dos monumentos foi assistida em diversos
países europeus e algumas ações preservacionistas foram concretizadas, como: a criação de
instituições patrimoniais, legislações específicas, e serviços de proteção do patrimônio –
compostos por profissionais de várias especialidades (FUNARI; PELEGRINI, 2006; CHOAY, 2017).
Nota-se, a preocupação que os “novos” cidadãos tinham com o valor e a permanência dos
edifícios históricos para não perderem sua história e identidade como nação.
No Brasil, o reconhecimento da necessidade de proteção do patrimônio histórico e artístico foi
percebido em 1937, quando um grupo de intelectuais modernistas criaram o “Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional” (SPHAN). Este era integrado ao Ministério da
Educação e Saúde, e pretendia proteger os bens culturais excepcionais – sobretudo do período
colonial, fosse através de intervenções de conservação e restauração, ou por meio de
tombamentos (REZENDE; GRIECO; TEIXEIRA; THOMPSON, 2015).
Nesse mesmo ano, têm-se dois Atos Oficiais considerados fundamentais para a área: a Lei nº
378, de 13 de janeiro de 1937 – que cria o SPHAN (atual Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional - IPHAN); e o Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, que organiza o
SPHAN, institui o tombamento e insere o termo “patrimônio histórico e artístico nacional”, como
sendo o:
[...] conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação
seja de interesse [sic] público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da
história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico,
bibliográfico ou artístico. (BRASIL, 1937, art. 1º)

1353
O conceito e os valores do patrimônio serão ainda mais ampliados com a Constituição Federal
de 1988, onde nota-se em seu Art. 216º, a substituição do antigo termo do Decreto-Lei nº
25/1937, por “patrimônio cultural brasileiro”, conceituado como sendo
[...] os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em
conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados
às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
[...] (BRASIL, 1988)

Em 2003, a UNESCO contribuiu com a “Carta para a Preservação do Patrimônio Digital”, visando
a definição do termo “Patrimônio Digital”, onde clamou por mais ações protetivas entre as
nações, inclusive quanto ao resguardo dos documentos de registro; e se voltou à questão da
disponibilização dos arquivos digitais para garantir, não só o acesso das pessoas e órgãos, mas
também a proteção e documentação do patrimônio (UNESCO, 2003).
Ainda sobre os cuidados com o patrimônio, de acordo com Porta (2012), pode ser preservado
através de inventários, tombamentos e registros (fotos, textos, documentos, desenhos, dentre
outros), levando sempre em consideração sua representatividade. Já em relação às formas de
documentar e divulgar o patrimônio cultural, o uso de modelos 3D tem aumentado, pois ajudam
na análise e compreensão das informações patrimoniais, bem como no desenvolvimento de
políticas e ações de preservação (MILETO; VEGAS, 2017; GRILLI; REMONDINO, 2019).
Como já aludido, em 2003, a UNESCO proporcionou e incentivou o uso da tecnologia e todas as
ferramentas para salvaguardar a documentação e, possivelmente, a conservação do patrimônio.
Assim, a introdução das tecnologias digitais favoreceu a área de projetos no que tange ao
registro patrimonial como também na sua representação.
Andriasyan, Moyano, Nieto-Julián e Antón (2020) afirmam que o surgimento de softwares de
baixo custo tornou as técnicas mais acessíveis e adequadas para a modelagem do patrimônio
cultural, possibilitando não apenas a preservação histórica, mas a facilidade de acesso às
informações, a história e a representatividade daquele patrimônio.
Também, Kouimtzoglou, Stathopoulou, Agrafiotis, Georgopoulos (2017) afirmam que pesquisas
baseadas em imagens 3D se tornaram meios fundamentais para representar e divulgar o

1354
patrimônio arquitetônico, e ressaltam que os desafios relacionados à reconstrução 3D de
objetos, principalmente os perdidos, devem ser enfrentados, pois se trata de uma fonte valiosa
para sua documentação. Assim também, fornecem informações para outros pesquisadores, e
conhecimento para as demais áreas, como dimensões, proporções e transformações ocorridas
(VERDIANI, 2017). Essas informações permitem o reconhecimento do patrimônio e podem ser
trabalhadas na área da gestão e restauração, se existirem.
Aludem ainda, Opgenhaffen e Sepers (2015, p. 411), que “reconstruções, sejam desenhos,
descrições ou vídeos, visualizam pensamentos e experiências, gerenciam dados complexos e
orientam o processo interpretativo”. Logo, há de se notar que as escolhas metodológicas e a
coleta de dados por parte dos pesquisadores, contribuem com um produto de qualidade.
Assim, o desafio da reconstrução digital 3D decorre de todos os lados, desde a etapa da coleta
de dados, sistematização e organização do acervo, até a modelagem em si. Para Verdiani (2017,
p. 02), a coleta de dados é o primeiro passo no processo da reconstrução digital de um
patrimônio, pois a “materialização” provém de uma base de referência sólida começando por
“[...] evidências, como a presença de ruínas, desenhos precisos ou representações, como
fotografias, registros de arquivos e descrições escritas”.

3 – A antiga Matriz de Vitória/ES e sua reconstrução digital 3D


Para reconstrução digital 3D da antiga Igreja Matriz de Vitória/ES, o primeiro passo foi realizar
uma profunda investigação sobre sua história, especialmente em busca de fotografias que
pudessem servir como base para a reconstrução deste patrimônio. Desta forma, bases teóricas
serviram de apoio para entendimento da história e evolução arquitetônica da igreja.
Para conseguir o acervo iconográfico da antiga matriz, foram realizadas pesquisas na internet e
em acervos públicos. As principais fontes de textos e fotos relevantes foram a Biblioteca do
IPHAN/ES, o Arquivo Público do Estado do Espírito Santo (APEES), a Biblioteca Central e Centro
de Artes da UFES, a página da Comunidade “Fotos e Vídeos Antigos do ES e Memória Capixaba”
da rede social Facebook, e os sítios “Morro do Moreno” e “Estação Capixaba”. Os registros
demonstraram que a Igreja passou por várias adaptações para atender a demanda do
crescimento da região, o que foi necessário então, compreender todos os principais eventos
ocorridos para alcançar o estágio conhecido ao qual chegou em sua última versão.
As primeiras fotografias capazes de fornecer subsídios básicos para reconstrução datam de
1860, porém, como é possível observar na figura 01, desafios com relação as suas dimensões e

1355
visibilidade são notórios, já que a imagem é de baixa resolução e a edificação está ao fundo
escondida pelos casarios.

Figura 01: Matriz de Vitória em Vista Ampliada (1860)

Fonte: 78619451. Victor Frond [Coleção Vitória e Colônias] 1860. Recorte. Biblioteca Nacional do RJ.

Uma outra fotografia encontrada (figura 02), datada do início dos anos de 1900, porém sem
especificação correta, traz a fachada da igreja com maior definição, sendo possível observar seus
aspectos arquitetônicos. Seu frontão (parede de formato triangular acima da fachada que
arremata o telhado) com largura igual à nave central, apresentava decoração barroca; as
cornijas (molduras salientes que decoravam o contorno do frontão) são abauladas e o óculo
(abertura no frontão que possibilita entrada de luz e ventilação na igreja), em formato de cruz.
Composta também por uma torre sineira completa (lado esquerdo) e uma inacabada (lado
direito), ambas simétricas e destacadas do corpo central, e com a presença de dois óculos
redondos, em cada.
Após compreender a história e aspectos arquitetônicos relevantes da igreja, foram selecionadas
imagens que pudessem servir de base para a modelagem geométrica através da fotogrametria
digital. A seleção das fotos considerou os seguintes aspectos: a) A igreja deveria aparecer em
sua maior parte; b) Deveriam ser evitadas imagens que contivessem a igreja muito distante; c)
A resolução da imagem deveria ser a mais alta possível; d) A nitidez dos elementos gráficos
deveria ser alta; e) A Igreja poderia estar em perspectiva ou ortogonal e, por fim, f) Uma escala
humana deveria estar representada em alguma foto.

1356
Após esses critérios de seleção, três imagens foram selecionadas e realizado o procedimento da
fotogrametria digital. Para tal realização, foi utilizado o software de modelagem tridimensional
SketchUp Pro 2019 (versão em inglês) por permitir importar fotos e elaborar modelos 3D com
facilidade a partir delas, além de receber texturas semelhantes às existentes.
Na sequência, foram demonstrados os processos realizados com as principais fotografias
escolhidas: (1) A imagem ao ser importada, foi fixada no quadro verde e algumas informações
apareceram sobrepostas: (1.1) Pequeno quadrado amarelo – origem dos eixos; (1.2) Linhas
contínuas vermelha, verde e azul – eixos X, Y e Z; (1.3) Linhas tracejadas verde e vermelha –
linhas de ponto de fuga; (1.4) Linha amarela – linha do horizonte.

Figura 02: Imagem importada no SketchUp Pro 2019

Fonte: Autora (2020)

Ainda no modo de edição dos eixos (X, Y e Z), a foto inserida foi redimensionada até que a figura
humana contida nela ficasse no mesmo tamanho do calunga do próprio SketchUp. Para isso, o
cursor do mouse foi posicionado sobre o eixo Z (linha contínua azul) e a imagem ajustada
proporcionalmente (figura 03). Após os devidos ajustes, a edição foi concluída.

1357
Figura 03: Escala humana do SketchUp redimensionada com a da foto

Fonte: Autora (2020)

Após esse redimensionamento, o plano frontal da igreja foi desenhado com linhas contornando
cada elemento construtivo, vistos na imagem. A profundidade das portas, janelas, óculos,
pilares, telhado, escada, frisos e molduras, foi projetada seguindo como base a foto importada,
através do comando PUSH/PULL. Foi possível então, finalizar o plano geométrico da fachada
frontal, conforme demonstrado na figura 4.

Figura 04: Face frontal após modelagem geométrica sobre a imagem

Fonte: Autora (2020)

1358
Esse processo foi realizado concomitantemente para cada fachada, com importação de outras
imagens, sendo possível então modelar os quatro planos geométricos da igreja. Assim, foi
possível a Reconstrução Digital 3D (figura 05), da antiga Matriz de Vitória – ES, em sua última
versão, antes da demolição ocorrida em 1918.

Figura 05: Reconstrução Digital 3D

Fonte: Autora (2020)

Foi possível notar que, as fachadas reconstruídas geraram um modelo 3D digital coeso capaz de
representar o edifício em sua volumetria, o que permitirá a sua materialização por meio da
impressão 3D, dando continuidade ao processo de reconstrução do monumento estudado. Até
o momento, a etapa responsável pela reconstrução digital da edificação por meio da modelagem
geométrica foi finalizada, o que já permite contribuir e reforçar o (re)conhecimento da imagem
da antiga Matriz de Vitória em sua última versão, antes de sua demolição total. No entanto, sua
imagem pode ser potencializada, indo além do modelo geométrico digital elaborado por meio
da impressão 3D. Nesse sentido, a pesquisa continuará em um segundo momento, sendo
realizado o preparo do arquivo para a impressão 3D de acordo com a melhor estratégia, técnica
e equipamento para execução da materialização.

4 – Considerações Finais
O “Patrimônio Digital” é uma área importante e une as ciências da computação e humanas com
objetivo de estudar, aprimorar e transmitir o patrimônio cultural por meio das tecnologias
digitais. Para garantir o acesso ao patrimônio, tanto por pesquisadores, quanto pelo público em

1359
geral, sua disseminação, principalmente por meio de modelos tridimensionais, decorre da
análise entre as possíveis formas de exibi-lo e a disponibilidade dos recursos computacionais
disponíveis.
A proteção do patrimônio ganha mais sentido, se as pessoas tiverem acesso e se relacionarem
a ele; desse modo, as reconstruções digitais 3D de monumentos, por exemplo, podem colaborar
como incentivo ao seu conhecimento e conservação. Além disso, reconhece-se que novas
formas atrativas de interação e representação patrimonial estão surgindo para estreitar essa
relação, como a exploração da computação visual e de softwares de modelagem mais eficientes.
Essa crescente demanda por tecnologias 3D contribui para digitalizar o patrimônio; porém,
embora proporcionem maior rapidez e eficiência dos processos, exigem um pré-conhecimento
dos diferentes meios de representação gráfica e das ferramentas de modelagem tridimensional.
Assim, surge o desafio por parte dos profissionais e pesquisadores em buscar atualização para
reconhecer não apenas as demandas, mas também, as diferentes ferramentas e aplicativos
tecnológicos que estão sempre em evolução.
A reconstrução digital 3D da antiga Matriz de Vitória, proporcionou a possibilidade de
reconstrução passo a passo de um patrimônio demolido, bem como, o reconhecimento dos
desafios enfrentados pelos pesquisadores e profissionais durante o processo. Por outro lado, a
possibilidade de ter um patrimônio demolido restaurado, ainda que através da reconstrução
digital, abre possibilidades para seu resgate e conhecimento.

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1362
RITUAL E ENCRUZILHADA: a Encomendação das Almas, o teatro e a cidade de São
João del-Rei.
Nó4 - O silêncio dos silentes, dos mistérios.

Flora Cunha Lucena


Mestranda em Artes da Cena
Universidade Federal de São João del-Rei
floraluccena@gmail.com.

Claúdio Guilarduci
Professor do Departamento de Artes da Cena
Universidade Federal de São João del-Rei
Guilarduci@ufsj.edu.br

O presente artigo objetiva apresentar o ritual católico denominado Encomendação das Almas
realizado durante a Quaresma de 2020 na cidade de São João del-Rei (SJDR), Minas Gerais.A
discussão proposta busca relacionar os possíveis aspectos existentes entre o espaço urbano, o
espaço-tempo ritualístico e a cultura são-joanense. A Encomendação das Almas torna-se um
objeto de estudo importante por dois pontos: primeiramente, por ser pouco documentado e
estudado, apesar dos seus primeiros registros datarem do século XIX. O segundo ponto é que o
ritual é capaz de reverberar memórias e construções sociais, ressignificando os espaços das ruas
e das vielas.
Palavras-chave: Ritual; Espaço; memória; cidade; cultura.

This article focus to present the Catholic ritual called the Encomendação das Almas carried out
during 2020 in the city of São João del-Rei (SJDR), Minas Gerais. The proposed discussion seeks
to relate the possible aspects between the urban space, the space- ritualistic time and São João
culture. The Encomendação das Almas becomes an important object of study on two points: first,
because it is poorly documented and studied, despite its first records dating from the 19th
century. The second point is that the ritual is able to reverberate memories and social
constructions, resignifying the spaces of the streets and alleys.
Keywords: Ritual;space;memory;city;culture.

1363
1 – Introdução
A presente dissertação propõe-se observar através do estudo do ritual católico “Encomendação
das Almas” e de seus registros nos séculos XIX, XX e XXI, aspectos relacionados ao
entrelaçamento da cidade, do ritual e da cultura são-joanense. O ritual “Encomendação das
Almas” não é exclusivo da cidade de São João del-Rei. Porém, no município em questão, esse
ocorre de maneira diversa em relação a outros estados brasileiros que tem documentado e
estudado esse ritual. Dessa maneira, o ritual torna-se um objeto de estudo importante por dois
pontos: primeiramente, por ser pouco documentado na cidade em questão; e, em segundo
lugar, por demonstrar como um mesmo ritual de origem comum pode se transformar e ter
diversas abordagens dependendo da maneira como é realizado. Ou seja, a modificação do
objeto pelos agentes envolvidos.
Acredita-se que é possível através do estudo do ritual de Encomendação das Almas observar a
relação dos seus agentes, suas experiências e memórias, que através desse ritual invocam uma
cidade que, naquele momento, é uma cidade diferente e ressignificada. Ao dissertar sobre as
experiências e as memórias, compreendemos a experiência no sentido que Walter Benjamin
(1985) aborda como algo que pode ser transmitida, por ser atemporal, ao contrário da vida, que
é efêmera e tem um tempo para acabar. Essa experiência pode ser passada por histórias ou por
tradições populares, como é o caso que abordamos aqui. A partir do momento que se
experiencia algo, se experiencia aquilo por completo.

A Encomendação de Almas no Brasil: origem e aspectos gerais


Acredita-se que o ritual de Encomendação das Almas foi trazido por jesuítas em várias regiões,
e pelos portugueses nas regiões auríferas de Minas Gerais. O ritual era realizado nas regiões do
Sul, Sudeste, Nordeste, Norte e, posteriormente, Centro-Oeste, abrangendo, assim, todo o país.
Convém destacar que a cerimônia apresentava certas diferenças dependendo da localidade. De
acordo com Passarelli (2007), em Juazeiro, na Bahia, existia o hábito da flagelação enquanto se
fazia o percurso. Em Cuiabá, Mato Grosso, não havia esse costume, mas mostrava
particularidades: era proibido espiar o grupo que passava pelas ruas, as pessoas deveriam se
trancar em suas casas e fechar as janelas. O autor expõe que caso alguém desobedecesse a
proibição, dizia-se que uma velha entregaria uma vela para o indivíduo, que ele se transformaria
em osso humano. A mesma lenda se encontra na região de Santa Bárbara, em Minas Gerais1.

1
História contada através de relato oral coletado durante conversas informais sobre a Encomendação das

1364
Paes (2007) relata que Câmara Cascudo presenciava as Encomendações da Alma e as
denominava “sinistras”, além de se assustar ao ver pessoas se autoflagelando. Moraes Filho
(1979), que acompanha o ritual no Norte, afirma que o ritual é macabro e que só pode ser visto
por quem participa dele.
Além das diferenças na estrutura do percurso e na forma como é feito, identifica-se uma
mudança no nome de acordo com a localidade. Paes (2007) relata que na comunidade
remanescente do quilombo de Pedro Cubas, localizada próxima ao município de Eldorado (SP)
o ritual é denominado Recomendação das Almas. Teixeira (2009), que estuda o ritual em
Rondônia escreve que naquela região, o ato denomina-se “procissão das almas”, em São João
del-Rei se mantém o nome português de Encomendação das Almas. Diante disto, observa-se
alguns pontos interessantes sobre os aspectos gerais da prática e as diferenças e semelhanças
entre os rituais portugueses e brasileiros.
O ritual se desenvolveu de diferentes formas em Portugal e no Brasil, tanto em sentido musical
como em sua estrutura. Uma das singularidades da cerimônia consiste na utilização do signo de
Saimão2 ou Salomão (como é mais conhecido no Brasil). Segundo Dias e Dias (1953) ele é
utilizado em várias regiões de Portugal, enquanto no Brasil não parece tão recorrente3.
Outro ponto que merece destaque diz respeito às três maneiras que o ato se desenvolve em
Portugal, quais sejam: 1) O responsável pela oração e encomendação e cânticos se dirige para o
lugar mais alto da região e lá encomenda as almas sozinho; 2) Um grupo de pessoas, em algumas
regiões apenas mulheres e em outras somente homens, escolhe um local para realizar a oração
lá permanecem imóveis durante a encomendação até o seu encerramento; e 3) Um grupo de
pessoas caminha em procissão realizando a encomendação das almas pelas ruas, parando em
alguma Igreja ou encruzilhada para finalizar a cerimônia.
Ao observar a relação com o Brasil, nota-se nos relatos de Passarelli (2007), Paes (2007), Eufrásio
(2017) e Nascimento (2007) que as práticas são todas procissões, com algumas diferenças no
número de paradas, participantes (a maioria grupos mistos de homens e mulheres), a

Almas com as pessoas que seguiram a procissão no ano de 2020.


2
O signum Salomonis, propagado desde longínquas eras por grande parte da superfície do globo, goza de
grande vitalidade nos costumes e crenças de todo o Portugal, e toma, quer entre nós, quer lá fora, várias
formas. As formas de pentalfa ou pentágono regular estrelado (estrela de cinco pontas) e um hexalfa
(estrela de seis pontas), dá o nosso povo o nome genérico de sino-saimão; ou a algumas delas,
chama sino-saimão dobrado” (VASCONCELOS 1996, p.17)
3
Ao escrever que não observei recorrência do uso do signo de Saimão/Salomão no Brasil, digo de acordo
com a bibliografia pesquisada até o momento. Por ser um ritual muito complexo e de várias facetas em
cada região pode ser que ocorra em algum lugar e que ainda não foi documentado.

1365
vestimenta usada, sendo que em alguns lugares utilizam panos para cobrir a cabeça (Eufrásio,
2017; Passarelli, 2007) e em outros não existe regras de traje (caso de São João del-Rei).
O último ponto que merece destaque sobre as diferenças e semelhanças do ritual em Portugal
e Brasil refere-se à utilização da matraca e os cânticos. Apesar de suas variadas formas, a
Encomendação das Almas no Brasil mantém em comum o uso de um instrumento chamado
matraca. Em São João del-Rei, esse instrumento é tocado no começo da procissão, para avisar o
seu início, e também em cada parada quando reinicia o percurso para rezar pelas almas e
proclamar os cânticos. Esse instrumento consiste numa tábua de madeira com um pedaço de
ferro curvilíneo, que ao bater produz um som peculiar e alto. Abrunhosa (2016) relata que a
utilização de matracas em Portugal ocorre na região de Idanha-a-Nova. Ainda segundo a autora
o motivo de tocar esse instrumento ao invés de sinos é que
o som, quando produzido por um instrumento metálico, assinala, em quase
todas as religiões, a presença do sagrado, tendo uma função exorcista. Na
altura da Semana Santa, o sino deve ser substituído pela matraca, pois o sino
(ou campainha) pode indicar, também, festa e alegria. (ABRUNHOSA, 2016,
p.50)

Ainda sobre o aspecto musical nota-se que ambos países usam cânticos durante o ritual, com
letras diferentes em cada lugar, mas sempre no intuito de pedir a Deus misericórdia pelas almas
do purgatório. Diferente de Portugal, porém não utilizamos nenhuma espécie de funil para
transformar a voz durante os cânticos.

A Encomendação das Almas em Minas Gerais e São João del-Rei.


Para compreender como a prática começa em São João del-Rei é necessário analisar a sua
chegada em Minas Gerais. Neste âmbito, requer um estudo sobre o contexto sociocultural em
que essa manifestação está inserida, não esquecendo que o ritual aqui abordado, “assim como
várias práticas da religiosidade popular, é uma tradição cuja transmissão se dá principalmente
pela via da oralidade” (EUFRÁSIO, 2017). Dessa maneira, existe a escassez de registros escritos
(particularmente referentes aos séculos XVI, XVII e XVIII), tais como arquivos oficias que tenham
documentado a Encomendação das Almas vivenciada em Minas Gerais. Contudo, baseado em
análises históricas podemos inferir alguns elementos importantes sobre o ato em terras
mineiras.
Primeiramente cabe pontuar que Minas Gerais é extensa, realizando divisas com São Paulo (sul
e sudoeste), Rio de Janeiro (sudeste), Mato Grosso do Sul (oeste), Goiás e Distrito Federal
(noroeste), Espírito Santo (leste) e Bahia (norte e nordeste). Cada local é dotado de

1366
características próprias, culturais, sociais e comerciais. Portanto, devemos observar a
importância dessas divisas, não apenas no período setecentista, mas também nos períodos
posteriores, para as trocas culturais em cada região. Esse fato é muito importante ao constatar
como o ritual se desenvolveu em cada região mineira, aparentemente, influenciados por
agentes diferentes. Em segundo lugar será realizado um breve histórico de Minas Gerais, focado
em compreender a origem do ritual nesse estado.
A demarcação, desenvolvimento e exploração do território mineiro nos séculos XVIII e XIX foi
marcado por intensas disputas e rígidos controles, motivados pelas descobertas de ouro e
pedras valiosas. Vale ressaltar que “é a mineração que preside as decisões do poder público,
que delimitam espaços de poder-administrativo, militar e religioso” (RESENDE, 2007, p.20). A
coroa Portuguesa passava por dificuldades financeiras no século XVII e enxerga o Brasil, sua
colônia, como a solução deste problema. Desta maneira, inicia-se o desbravamento da área, e
com isso, a implantação de novos espaços conquistados. Busca-se conhecer o local para poder
controlá-lo e assim conseguir gerar riquezas. Nesse contexto são elaborados
descrições de viagem, a elaboração de roteiros dos caminhos, as viagens de
autoridades administrativas, as expedições de reconhecimento de novas
regiões, a coleta de informações sobre possíveis rendas reais e o
levantamento de necessidades de apoio logístico, tais como fortificações,
abertura de caminhos e estradas para controle administrativo, financeiro e
militar” (RESENDE, p.20,2007)

Segundo Resende (2007), começam as entradas de bandeirantes paulistas no século XVII. A


descoberta de terras ricas em ouro e diamantes provoca a vinda de uma grande população,
atraída pelo desejo de encontrar ouro. Essa revelação acaba motivando o nome Minas Gerais:
“é da divulgação de que havia ouro, em maior ou menor quantidade, em qualquer direção que
tomassem as pessoas que surge a expressão Minas Gerais” (RESENDE, 2007, p.28). Após esse
interesse inicial de metais preciosos, outras atividades começam a se desenvolver, como o
comércio, movimentação de tropeiros, e agricultura em lugares com terras férteis.
A população local era composta por portugueses, mestiços, negros e indígenas cativos. A
população indígena de Minas, segundo Venâncio (2007) adentra cada vez mais para o sertão a
fim de se refugiar, quando começa a colonização efetiva do território. Catão (2007) menciona
que os jesuítas não eram bem-vindos, pois costumavam “atrapalhar” os colonos educando os
escravos indígenas e negros.

1367
Nesse ponto, torna-se necessário dissertar sobre a importância das irmandades para a
religiosidade em Minas Gerais. A criação de irmandades pode ser vista em toda Minas Gerais e
refletem como a religiosidade e seus rituais ocorreram nas Minas setecentistas.
Observamos que Villalta (2007) conta que as instituições religiosas no Brasil serão fortemente
influenciadas pela coroa portuguesa e os detentores de poder. Ainda segundo o autor, a coroa
interferia no bispado e suas questões, chegando a negar bulas papais que não estivessem de
acordo. Também demorou para que tivéssemos nossa primeira Diocese, sendo ela fundada
apenas em 1551 na Bahia. Apenas em 1745 que será fundada a diocese de Mariana em Minas
Gerais.
Nesse contexto surgem as irmandades nas regiões auríferas de Minas Gerais. O surgimento das
irmandades se dá de forma curiosa. Uma grande população de portugueses e paulistas chegam
na região em busca de ouro, e sem a presença da Igreja Católica de forma institucional, uma vez
que a Coroa proibiu que padres se fixassem na região e construíssem estabelecimento. Logo, as
ordens religiosas não tem lugar ou espaço dentro das Minas de setecentos.
Coube então aos leigos, pessoas sem formação especifica na área religiosa, cuidarem dos
assuntos religiosos com a intenção de manter a tradição religiosa e a ordem. Formam-se então
as irmandades. Onde os sacerdotes eram contratados por elas quando convinha, e todas as
outras decisões de cunho religioso e festivo eram tomadas por reuniões da irmandade. As
irmandades que constroem capelas que irão se tornar igrejas, e, solidificam, não apenas sua
influência na formação daquela sociedade, como também, a religiosidade e os costumes
portugueses cristãos. Segundo Villalta:
As irmandades precederam ao Estado e à Igreja, como instituições.
Quanto ao pimeiro, quando a máquina administrativa chegou, já as
irmandades floreciam. Quando as primeiras vilas foram criadas por
Antônio Albuquerque, em 1717, a presença e atuação delas era
incontestes. Á época Sabará possuía, pelo menos, três irmandades; São
João del-Rei, duas; Vila do Carmo e Vila Rica, uma cada (VILLALTA,
2007,p.61)

Vemos aqui que diferente de outros lugares de Minas Gerais, os lugares que tinham reservas
auríferas se desenvolvem de maneira diferente, podemos pressupor que como por aqui não
tivemos tanto a presença católica ou jesuíta, o ritual de Encomendação das Almas foi trazido por
portugueses que participam dessas irmandades e viram a necessidade de manter essa tradição,
a realizando da maneira como se lembravam em sua região. Por isso, talvez, que a

1368
encomendação das Almas de São João del-Rei e da região mantenha o nome Encomendação das
Almas, igual ao ritual português, e talvez por isso também, vemos certas diferenças do ritual
português para o nosso: é impossível, depois de tantos anos longe de Portugal lembrar-se de
todos os detalhes, ou, talvez, quem de fato inicia a realização do ritual o tenha ouvido de
histórias ou relatos orais de parentes.

2 – O Ritual
Vemos que o Ritual de Encomendação das Almas em São João del-Rei possui atualmente a
seguinte estrutura: são três sextas-feiras de ritual4, cada dia é realizado um trajeto diferente
porém em todos os trajetos temos um número de paradas onde são feitas rezas de pai-nosso e
ave maria e cantadas as músicas “Senhor Deus, misericórdia” e “Misere”. Suas paradas são feitas
em encruzilhadas, cemitérios e igrejas, a única parada que não é realizada exatamente em uma
encruzilhada é a parada realizada no oratório localizado na Rua Antônio Josino Andrade, porém
entende-se que essa parada é realizada lá pela presença do oratório. Diferente do emprego
usual utilizado no contexto urbano de tais lugares, vemos a encruzilhada se tornando um lugar
de reza para as almas, a cruz de Cristo, o cemitério não é mais o lugar do enterro do corpo físico,
mas sim, um lugar em que as almas se encontram despertas e as Igrejas o lugar de repouso e de
paz, não o lugar de oração. Temos uma ambuiguidade das passagens. Algo rápido e volúvel: ao
acabar o ritual isso se desfaz. Existe uma lenda, relacionada ao ritual que acredito dizer muito
sobre esse espaço, essa lenda nos conta que se olharmos para trás durante o ritual, vemos
espíritos seguindo o ritual, mas ao finalizar o ritual, se olharmos para trás não vemos nada.
Talvez, essa lenda tenha a intenção de mostrar essa transformação momentânea que ocorre
quando o ritual pede passagem pelas ruas de São João del-Rei.
O ritual abre espaço para essa mudança, mas o ritual se desfaz e acaba, pois é sua função iniciar,
ter um meio e ter fim. Assim como a vida humana tem seu começo, meio e fim. Em Passagens
(2007) Benjamin ao dissertar sobre a ambiguidade das passagens com a ambiguidade dos
espaços, escreve algo que relaciono a essa modificação do espaço ocasionada pelo ritual e a
lenda que o acompanha:

Um murmúrio de olhares preenche as passagens. Aqui não há coisa


alguma que, quando menos se espera, não lance um pequeno olhar
para então fechar os olhos num rápido piscar, e se alguém quiser
olhar mais atentamente, terá desaparecido. O espaço concede seu

4
No capítulo 2 colocamos a imagem da programação do ritual que foi distribuída pela Irmandade dos
Passos no ano de 2020.

1369
eco ao murmúrio desses olhares: “O que, pergunta-se ele,
piscando, terá acontecido dentro de mim? Ficamos surpresos:
“Sim, o que será tudo isso que aconteceu dentro de você?
replicamos em voz baixa” (BENJAMIN,2006, p.957)

A cidade, com suas memórias, construções, ruas e vielas, é o espaço do coletivo, e de seus
agentes que a constroem e também são “construídos” por ela, impossível, portanto, estudar o
ritual de Encomendação, sem observar seus agentes e sua importância nesse processo. A
pesquisa sobre a origem da Encomendação das Almas, já nos possibilita essa abertura, ao
compreender a importância da cultura popular para que existisse o culto as almas, e, por
consequência, o Ritual de Encomendação das Almas. Vemos também, que, por várias vezes, o
ritual se encontra num lugar em que a Igreja não o apoia completamente, e são as pessoas, que
se tornam responsáveis por manter esse ritual e o realizar. No caso de Portugal, segundo Jorge
e Margot Dias (1953), alguns o realizam por ser tradição de família, outros para pagar
penitências e ainda outros para que a tradição não acabe. No caso de São João del-Rei, vemos o
interesse de que o Ritual se mantenha por seus agentes, não apenas a Orquestra Lira
Sanjoanense, sua organizadora oficial junto com a Irmandade dos Passos, mas pelos seus
participantes que pedem que o ritual continue e pelo histórico, que nos conta que o ritual veio
trazido por pessoas que queriam manter essa tradição.

3 – A encruzilhada :o ritual, a cidade e a teatralidade


Ao iniciar minhas pesquisas, observei um ritual pouco documentado e que passava por
discussões sobre popularidade, conhecimento, e até mesmo um certo mal-entendido. Apesar
disso, também vislumbrei um ritual que sobrevive há séculos, reverbera memórias e
construções sociais, ressignifica espaços de ruas e vielas e que possui dois tipos distintos de
espectador: os vivos, que passam pelas ruas e assistem ao ritual; e os mortos. Nessa atmosfera,
o ritual mostra-se poético, espetacular/teatralidade5. Espetacular no sentido que Pavis (2010)
menciona, como sendo qualquer atividade, seja um esporte, culto, rito ou interação social, que
possua a aderência de um público. O espetacular se manifesta, então, na atração e manutenção
do espectador, utilizando dispositivos visuais que denotam espetacularidade “o teatro, o

5
Utilizamos as duas palavras em conjunto por sua semelhança em interpretação, PAVIS (2007) as utiliza
em conjunto também “A encenação não soube se desviar para uma etnoespetacularidade, permaneceu na
dramaticidade / espetacularidade / teatralidade ocidental” (PAVIS, 2007, p.279, tradução nossa.
“La mise en scène n’a pas su dévier vers une ethnospectacularité, elle en est restée à la
dramaticité/spectacularité/théâtralité occidentale.”

1370
cinema, a televisão, mas também o strip-tease, os espetáculos de rua, e por que não dizer ainda
as cenas cotidianas, desde que elas tenham um observador voluntário ou acidental” (PAVIS,
2010, p.137).
Em relação à essência poética do ritual, entendemos o poético como sendo poiesis, como
criação humana e imitação do real, isto é, o comportamento de criar algo espetacular para se
referir a alguma questão, em especial neste trabalho, à morte e sua passagem. A teatralidade,
por sua vez, ocorre quando entendemos que se refere a algo que vai além da relação ator x
público em um espaço cênico pré-definido (palco, sala específica, etc.). “Nesse sentido, tudo o
que está relacionado à teatralidade, a priori, diz respeito também a uma realidade cotidiana. Ao
definir o conceito de teatralidade em termos da ação, amplificando assim o seu sentido para
além do estatuto artístico”, conforme salienta Brügger (2005, p.62).
Quando falamos sobre teatralidade como algo além da relação supramencionada, recorremos
novamente a Pavis6 (2007, 2010), pois, segundo o autor, seriam experiências ou acontecimentos
da cena. Assim, a teatralidade pode ser uma forma cruel de demonstrar o real dentro de uma
cena, ou seja, a estetização do real, um discurso linear – ou não – de um narrador, uma mídia
utilizada para realizar um ritual, o uso da voz e de imagens para alterar o real. E, inclusive,
campos culturais, antropológicos e não considerados cênicos, como acontece nessa pesquisa,
“Teatralidade: capacidade de mudar a escala, sugerir e fabricar a realidade com voz, visão,
palavras, sons, imagens e outros pedaços de barbante. Teatralidade: palavra incorporada.”
(PAVIS, 2007, p.280, tradução nossa).7
Além dessa da relação da Encomendação com a teatralidade como hoje conhecemos podemos
fazer uma relação dela com o teatro medieval da Idade média e suas moralidades. Esse gênero
teatral eram representações de ensinamentos cristãos, e em vez de utilizar personagens da
Bíblia, ou passagens da vida de Cristo, serviam-se de personagens alegóricos como as virtudes,
acontecimentos, sentimentos e ações. As moralidades tinham sempre intenção didática,
pretendiam transmitir lições morais e religiosas, e até, por vezes, políticas. Não tinham a ideia
de causar polêmica ou serem satíricas, apesar de usarem a comicidade muitas vezes, mas trazer
conhecimentos edificantes, as vezes usando temores, como a morte, para mostrar que as

6
Foi utilizado o capitulo “A armadilha intercultural: ritualidade e encenação nos vídeos de Gomez-Peña”,
do livro “A encenação contemporânea” (2010), e uma tradução livre do texto La Théâtralité em Avignon,
que pertence ao livro “Vers une theorie de la pratique théâtrale” (2007), onde o autor retoma esses
conceitos.
7
Théâtralité: faculté de changer l’échelle, de suggérer et de fabriquer le réel avec la voix, la vue, les
vocables, les sonorités, les images et autres bouts de ficelle. Théâtralité: parole incarnée.

1371
pessoas deviam ser boas. Apesar do Ritual não ter nenhum “personagem” teatral, temos
elementos da moralidade medieval, como a modificação do espaço urbano ao transformar os
lugares de parada em lugares simbólicos e a re-interpretação de algo. Segundo
Guilarduci(1995):“Esse momentos de representação e vida que aparecem nos rituais e festas
podem ser experimentados e/ou compreendidos através de diferentes linguagens, como, por
exemplo, a teatral”(GUILARDUCCI,1995,p.54)

3 – Conclusão
Ao observar como a cidade e a cultura estão entrelaçadas, vemos que, a cultura se estrutura,
com seus moradores, memórias e construções. Em Passagens (2007), Walter Benjamin cita a
influência da arquitetura da cidade para mudanças artísticas e culturais, visto que o espaço
urbano influenciou escritores, como Charles Meryon, Breton, Balzac e Baudelaire.
Ao considerarmos a visão da cidade em sua completude, vemos a possibilidade de unir
narrações, lembranças e tradições inseridas no ritual de “Encomendação das Almas”.
Justamente por ser uma procissão, a relação do ritual com a cidade fica ainda mais clara.
Todavia, podemos observar que as mudanças nas cidades podem transformar o próprio ritual e
seu percurso, além da adesão das pessoas ao ritual. Dito isso, podemos concluir que o ritual de
Encomendação das Almas consegue estabelecer um vínculo, uma conexão, com o plano
artístico, social e religioso da cidade onde está inserido, acompanhando por lado as mudanças
e influências da cidade e sociedade onde está inserido, mas também, por outro lado,
influenciando e transformando os locais por onde passa, mesmo que temporariamente. Em uma
via de mão dupla.
Ao observar o ritual vemos que ele carrega consigo um peso histórico e cultural, tanto em sua
simbologia como em sua natureza, temos muito além do ritual quando vemos que existe um
folclore por trás de sua existência, existem lendas, existem mistérios. O ritual de Encomendação
das Almas não é um ritual de apenas uma camada ou esfera. É um ritual complexo que tem
várias camadas que o formam e fazem com que ele sobreviva até hoje no Brasil e principalmente
em São João del-Rei.
Realizo aqui a conclusão desse artigo que busca dissertar sobre a relação entre o ritual e o
espaço urbano, e deixo em aberto para o leitor a possibilidade de, talvez, sentir e ver um pouco
da Encomendação das Almas que eu sinto e vejo, e sua sintonia tão profunda com o espaço
urbano Saojoanense, que impossibilita falar de um sem falar de outro. Um ritual que demonstra
afetos e sensações maiores do que eu imaginava, quando iniciei a pesquisa e que se mostra um

1372
objeto de estudo de grande importância para observar o entrelaçamento entre cultura, espaço
urbano de São João e seus agentes. Um ritual que abre um espaço de teatralidade que se
transforma de acordo com as memórias e os agentes responsáveis por ele. Um ritual que fala
sobre a morte, e sobre as almas. Mas que respira e suspira alimentado pelos vivos.

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1374
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1375
SOLIDÃO E STIMMUNG. A PAISAGEM DE SOLITÁRIOS, DE WERTHER A ALBERTUS
Nó 4 - O silêncio dos silentes, dos mistérios.

Esdras Arraes
Arquiteto e Urbanista; Pesquisador de pós-doutorado do departamento de Filosofia da
Universidade de São Paulo (FFLCH-USP); Bolsista da FAPESP (processos nº 2017/12296-2);
esdras_arraes@yahoo.com.br

Resumo: propõe-se a articular o conceito de Stimmung (estado de ânimo; atmosfera) à solidão,


condição por vezes necessária à sintonia do ser com o mundo envolvente. As bases de
interpretação teórico-metodológicas se circunscrevem no âmbito da estética alemã, sobretudo
firmadas em discursos literários e na pintura de paisagem dos séculos XVIII e XIX. São convidados
à narrativa textos e imagens de solitários na paisagem, como o Werther de Goethe, quadros de
Caspar David Friedrich e as cartas do médico-pintor Carl Gustav Carus, criador do personagem
Albertus que dá título ao artigo. O elo que une os seres poéticos e seus criadores é, a título de
conjectura, o Stimmung, o trato recíproco entre a solidão (subjetividade) e a paisagem (arte,
objetividade). Privilegia-se a análise epistemológica de Stimmung e de paisagem segundo leitura
multidisciplinar, lançando luz na literatura, na filosofia (especialmente do Idealismo alemão), na
história (social e da arte) e na estética. O título define o recorte cronológico proposto: o início
se dá em 1774, quando Goethe publicou o seu Os sofrimentos do jovem Werther; o término
refere-se ao ano de 1841, data em que Carus reeditou o seu Briefe über Landschaftsmalerei
[“Cartas sobre pintura de paisagem”].

Palavras-chave: Estética; Literatura; Paisagem; Pintura; Stimmung.

Abstract: it proposes articulating the Stimmung concept (mood; atmosphere) to solitude, human
condition sometimes necessary to connecting soul with surrounding world. The methodological
basis circumscribes into German aesthetics, above all the literary discourses and landscape
painting of 18th and 19th centuries. Texts and images of lonely person on landscape are invited to
narrative, like Goethe´s Werther, Caspar David Friedrich´s paintings and Carl Gustav Carus´
letters, creator of Albertus, that entitles the present article. The link, which joins the poetical
beings with their creators, is Stimmung, the reciprocal tract between loneliness (subjectivity) and
landscape (art; objectivity). It privileges the epistemological analyses of Stimmung and landscape
according to interdisciplinary way, shedding light on Literature, Philosophy (mainly German
Idealism), Art History and Aesthetics. The article´s title defines the chronological cut proposed:
the beginning is 1774, when Goethe published his The sorrows of young Werther; the end refers
to 1841, year in which Carus reissued his Letters on Landscape painting.

Keywords: Aesthetics; Landscape; Literature; Painting; Stimmung.

1376
O solitário afasta-se do contato, da experiência direta, do que
é o trato cotidiano, mas unicamente para observar desde longe
os homens e as coisas, os ambientes; abarcá-los depois com a
mirada e reter sua imagem com mais força.
Massimo Cacciari

1 – Prólogo
As experiências de Francesco Petrarca obtidas na subida ao monte Ventoux, em 26 de abril de
1336, trouxeram questionamentos filosóficos com respeito à dimensão estética da natureza
apreendida do cimo de um promontório e ao significativo papel da paisagem no imaginário
social e artístico europeu. Joachim Ritter (1974), em seu artigo luminoso Landschaft. Zur
Funktionen des ästetischen in der modernen Gesellschatf [Paisagem. Sobre a função do estético
na sociedade moderna], atribuiu ao texto de Petrarca como o momento pregnante da paisagem
no ocidente. Os escritos do poeta seriam o início de uma progressiva cisão entre a natureza
considerada divina e mística (intepretação herdeira da Idade Média, pois, para Humberto Eco
(2010), Petrarca se situa no medievo) e a apreciação sensível desta natureza enquanto
paisagem, enquanto produto da subjetividade fruidora mediada pelo olhar (RITTER, 1974, p.
141). Embora a caminhada no Ventoux houvesse envolvido Petrarca, seu irmão frade e dois
empregados da família, foi o solitário poeta que descreveu como os objetos da natureza
contemplados haviam se convertido em instrumento de depuração espiritual.
O percurso de ascensão de seu corpo se converteu na alegoria da bem-aventurança, na ascensão
da alma, já alcançada pelo irmão, mas almejada por ele diante de sua decisão de abandonar os
vícios da preguiça, luxúria e vaidade. Em seus termos:
A vida que chamamos de bem-aventurada a encontramos no lugar alto, e
estreito é o caminho, nos contam, que ela conduz [...] ver-te-ás obrigado a
subir ao cume da vida bem-aventurada, ou a abandona covardemente no vale
de teus pecados [...] (PETRARCA, 2011, p. 45)

No topo, Petrarca admira o espetáculo da cadeia de montanhas dos Pireneus, evoca com
nostalgia a Itália e se emociona ao falar sobre a região de Lyon. Esses são relatos mínimos se
comparados aos rogos de perfectibilidade espiritual. O panorama que se descortina do alto é,
na realidade, a imagem da persistência da condição imperfeita do ser humano, corroborada na
leitura do livro X das Confissões de Santo Agostinho, que acentua a irrelevância de apreciar a
natureza física enquanto as naturezas moral e espiritual carecem de reparação. A ênfase da
reflexão de Petrarca sobre a apreciação do panorama privilegia o metafísico, embora para a
estética medieval o belo remete tanto à transcendência como a experiências concretas (ECO,
2010, p. 18). Afastando-se de seus companheiros de viagem e sozinho, ele conclui que o visto, a

1377
exterioridade, o material, é contingente. Por outro lado, a alma (subjetividade) deveria receber
redobrado zelo no intuito de direcioná-la à bem-aventurança que, em termos metafóricos,
significaria o caminho ao cimo da montanha (PETRARCA, 2011, p. 55).
Ritter, mais preocupado com as ponderações de Petrarca, não notou qualquer menção ao termo
“paisagem” na narrativa. O que levou o arquiteto e historiador de arte espanhol Javier
Maderuelo (2005) a contrapor o argumento do filósofo alemão, na medida em que o arquiteto,
na mesma linha de pensamento de Augustin Berque (2013), define a paisagem, dentre alguns
aspectos, como a representação da natureza contemplada por um espectador e celebrizada,
como origem, na pintura holandesa e nos escritos literários dos séculos XVII e XVIII. Na análise
eurocêntrica de Maderuelo, o teor narrativo do texto de Petrarca remete à semântica do
vocábulo italiano paesi, isto é, “região”, “território”, ao invés de vincular-se ao conceito de
paisagem autônoma circunscrita à dimensão da arte1. Embora com um conceito um tanto
enrijecido e que merece uma crítica maior que escapa o propósito do presente texto, o arquiteto
espanhol desvincula da paisagem a exclusividade da reunião de objetos da natureza física
(montanhas, rios, vales, árvores, entre outros), sobressaindo a projeção da interpretação
sensível, a interiorização pessoal que o ser humano faz daquilo admirado pelo olhar
(MADERUELO, 2005, p. 87).
Mas o que cabe frisar da percepção do poeta italiano é sua atenção à individualidade, categoria
tão cara aos humanistas do Renascimento como aos filósofos e cientistas do Século das Luzes.
Junto dos processos sócio-políticos e morais que culminaram no aparecimento do
individualismo da época moderna, há, numa outra perspectiva, o elogio da solidão como
maneira insurgente do ser priorizar a subjetividade em detrimento da razão matemática e
catalográfica iluminista. A paisagem recebe especial destaque, sobretudo a partir de meados do
século XVIII, justamente por ser o destino da expressão sensível da interioridade do solitário,
que a observa de longe ou simplesmente está nela submerso. Nesse caso, há três artistas
alemães que tomaram a paisagem como objeto estético significativo da inteligibilidade das
emoções e da aparência sensível da natureza.
O jovem poeta Johann Wolfgang von Goethe considerou a paisagem como um dos principais
motivos literários da criação artística de seu prestigiado romance epistolar Os sofrimentos do

1
O debate e a crítica sobre a origem da paisagem no ocidente têm conduzido estudiosos de diferentes
campos do saber. Gombrich (1991), Roger (2007) e Cauquelin (2007) atribuem ao Renascimento italiano
a mudança de perceção da natureza física em paisagem graças ao advento da perspectiva, enquanto
Maderuelo (2005) e Wood (1993) asseguram a invenção da paisagem aos pintores holandeses e alemães.

1378
jovem Werther. Nos quadros de Caspar David Friedrich, pintor romântico do círculo de Dresden,
visualiza-se o discurso da solidão do indivíduo que se dissolve em meio a natureza de efeitos
sublimes. Nas cartas sobre pintura de paisagem de Carl Gustav Carus se nota o paroxismo do
solitário. Diferentemente do Werther, no qual Goethe situa na obra argumentos de diferentes
personagens sobre a condição hipocondríaca do protagonista, nas epístolas de Albertus (Carus)
o solilóquio é implacável. Conhece-se algumas ponderações de Ernst - o destinatário - em
indicações vagas, especialmente nas cinco primeiras cartas escritas quando a estética de Carus
lançou luz na exaltação dos sentimentos não combinados com o mundo exterior.
O elo que liga as representações de paisagens e os seres solitários é o Stimmung, uma palavra
originária do verbo alemão stimmen [“afinar um instrumento”], porém de difícil atribuição
semântica, dado o uso corriqueiro atual nas sociedades de língua alemã que alteraram o
significado primeiro. De acordo com o sociólogo Georg Simmel (2013, p. 40), o vocábulo
Stimmung combina, como a música, aspectos objetivos e subjetivos, transformando-o em
“estado de ânimo”, “disposição”, “atmosfera” e “caráter” da relação do todo com suas partes
constitutivas. A dimensão do Stimmung abre um novo horizonte hermenêutico para se inferir
sobre a existência humana (GUMBRECHT, 2014, p. 14). Nesse sentido, o artigo procura, de forma
não peremptória, aproximar a solidão com o estado de ânimo e a atmosfera de paisagens
representadas num tom vigoroso e solitário por Goethe, Friedrich e Carus.

2 – Werther: o solilóquio na paisagem


Escrito dentro de um espaço temporal de quatro semanas, o romance epistolar Os sofrimentos
do jovem Werther de Goethe está dividido em duas partes significativas2. Na primeira, algumas
cartas de Werther transmitem a seu amigo interlocutor a alegria de viver em um pequeno

2
No décimo terceiro livro de Poesia e Verdade, Goethe esclarece quais foram os motivos reais e poéticos
que o inspiraram a escrever o romance. Em termos literários, há o aspecto morfológico da poética
goethiana que enfoca a compensação da “serenidade interior” com o “comprazimento exterior”,
libertando-se “qual um evangelho mundano, dos latros que a vida fez pesar sobre nós”. A poesia inglesa
trouxe outras inspirações, principalmente a ênfase na vida bucólica e a misantropia, atributo psicológico
de Werther: “algo que, para além disso tudo, também contribuiria para completar a fama de misantropos
dos poetas ingleses e para recobrir seus escritos com os ares desagradáveis da aversão generalizada a
tudo [...]”. Finalmente, Goethe “transformou realidade em poesia”, inserido os dramas pessoais do jovem
Karl Friedrich Jerusalem que o levaram ao suicídio. Diz o poeta alemão: “Foi então que tive a notícia da
morte de Jerusalem e, logo depois de terem chagado a mim os boatos sobre o que havia acontecido.
Nesse exato momento, deu-se por encontrado o plano para o Werther, tive de repente a sensação de que
as coisas todas se encaixavam com perfeição e davam forma a uma massa sólida, qual a água de um balde,
que, estando a ponto de congelar, transforma-se subitamente em gelo em menor movimento”. Cf.
GOETHE, 2017, p. 691-705.

1379
lugarejo de feições bucólicas, onde a contemplação da natureza e seu espírito solitário estão
afins e envoltos numa aura de felicidade incondicional. A segunda se dedica ao tema
“sociedade”, explorando o conflito entre o indivíduo sensível e os códigos morais e éticos
impostos pela vida citadina ou cortesã. Nessa ocasião, as emoções de Werther mudam
drasticamente, transfigurando seu amor por Lotte em paixão melancólica. A cidade, que
segundo as normas do Iluminismo consagra a liberdade e autonomia humanas, se torna, para o
protagonista, o corte entre o homem e a natureza, ela seria o sítio de privação da subjetividade
livre (ARRAES, 2018, p. 7). Walter Banejamin (2018, p. 131) afirma que Werther não é apenas o
amante infeliz que, na incompatibilidade social, recorre ao elogio da natureza (convertida em
paisagem) como mecanismo de reconhecimento de seu peculiar estado de ânimo.
A natureza no Werther diz respeito aos fenômenos físicos e biológicos aparentes capturados
sensivelmente em diferentes dimensões, da montanha, passando pelos rios, alcançando o
verme do solo. Em toda a obra perpassa uma natureza essencialmente polarizada: ela é ao
mesmo tempo a brisa suave como a agressiva tempestade. Para além da mera objetividade, na
natureza há uma força vital suprassensível velada aos sentidos humanos, e, desse modo,
incomensurável, atuante na produção dos fenômenos sensíveis. As emoções do jovem são
destinadas à essa natureza dual, material e imaterial. Sua representação epistolar, mediada por
Goethe com óbvio juízo de valor, transmuda o fenômeno natural em paisagem.
A solidão de Werther é criativa, alimenta a imaginação a compor paisagens. Não é difícil supor
que a paisagem, no Werther, bem como em outros escritos poéticos goethianos, é um assunto
central do romance. Pode soar determinista ou simplista tal prognose, mas há indícios no
interior da obra que a justificam. Há duas paisagens descritas que são referenciais à exposição
do estado de ânimo do protagonista e da atmosfera a que estava imerso. Uma percebida como
locus amoenus, alegre e graciosa, da qual Werther fala com nostalgia de um passado feliz e
perdido, nos moldes dos idílios cantados pelos poetas da antiguidade. A outra formula-se a
partir da contingência do presente experenciado na sociedade e de um futuro incerto e elegíaco
predito depois de tomar conhecimento do matrimônio de Lotte com Albert.
A primeira paisagem já aparece retratada na carta de 4 de maio de 1771, a que abre o romance.
Werther anuncia a decisão de partir da convivência mundana, buscando mitigar o presente
dando cabo das intempéries pretéritas. A solidão lhe parece a mais confiável forma de existência
em uma região de fisionomia paradisíaca, que estimula a apreciação da natureza e de seus
objetos constitutivos. Ele a contempla no sentido etimológico de contemplar, de preencher o
campo visual com imagens queridas e afins ao coração:

1380
Aliás, estou me sentindo muito bem aqui. Nestas terras paradisíacas, a
solidão é um bálsamo valioso para o meu coração, tão fortemente aquecido
pelo fervor juvenil. Cada árvore, cada arbusto é um ramalhete de flores, e dá
vontade de virar borboleta para poder flutuar neste mar de fragrâncias e
retirar dele todo o sustento (GOETHE, 2009, p. 14 – sem grifo no original).

A seguir, o jovem vivencia o jardim-paisagem3 da residência do conde M., cuja composição segue
como modelo a irregularidade da natureza visível. O desenho do jardim não lembra a pompa
cerimonial do “jardim de gosto francês” expoente da jardinagem do barroco europeu, pois não
foi projetado por arquiteto ou jardineiro de conhecimento científico [kein wissenschaftlicher
Gärtner], mas “por um coração sensível que queria desfrutar o prazer de estar consigo mesmo”
(GOETHE, 2009, p. 15). O efeito da paisagem na interioridade de Werther foi de depuração. Ao
contrário daquela operada em Petrarca, de teor religioso, em Werther a catarse é de matiz
psicológico. Ele tenta criar uma nova individualidade apagando da memória os resquícios de um
passado recente. Essa sensação de plenitude exprime a paisagem como representação do
Stimmung de um ser pacificado absorvido numa natureza análoga.
A carta de 10 de maio retrata a continuação do estado de tranquilidade da alma naquela região
idílica. Para Jeremy Adler (1998, p. 71), essa carta constitui o cerne do romance, na medida em
que vaticina as ações que ocorrerão no restante da obra. O ambiente indicado refere-se uma
vez mais a um locus amoenus no qual Werther vivencia os encantos da natureza, seus aromas e
cores, seus objetos orgânicos de dimensões microscópicas do pequeno mundo [kleine Welt], no
qual insetos, vermes e plantinhas o transportam a compreender a dimensão divina da natureza:
Deus reside tanto no firmamento quanto nas formigas que vitalizam o mundo sob seus pés.
O panegírico à paisagem ideal cede lugar às mais terríveis catástrofes naturais. Werther declara
a seu amigo Wilhelm:

Ah! As grandes e raras misérias do mundo: essas inundações que varrem suas
vilas, esses tremores de terra que engolem as suas cidades, não me
comovem; o que me corrói o coração é a força destrutiva, oculta no âmago
da natureza; ela não cria nada sem destruir a si mesma e ao seu próximo. E
assim aflito titubeio. O céu e a terra e as suas forças criadoras me rodeiam:
não passam de um monstro eternamente devorador e ruminante (GOETHE,
2009, p. 74).

A fim de minimizar as dores de seu espírito, Werther decide abandonar a região edênica e rural

3
Para maiores informações sobre a estética do jardim-paisagem na Europa do setecentos, recomenda-se
a leitura do artigo “A estética do jardim na literatura: Delille, Goethe e Poe” publicado nos Anais do Museu
Paulista. Cf. ARRAES, 2020.

1381
onde vivem Lotte, seus irmãos e o futuro marido. Sua inabilidade com os assuntos burocráticos
e com as relações sociais acentuam sua estranheza nos espaços nos quais os códigos éticos são
ditados por uma sociedade que vive de aparências. Isso é sintomático no jantar preparado pelo
conde D. Devido à sua vestimenta e postura muito sentimental, Werther foi convidado a
abandonar o jantar. Ele se refugia na leitura “do magnifico canto em que Ulisses é abrigado pelo
digno cuidador de porcos” (GOETHE, 2009, p. 99).

3 – Albertus: paisagem como Stimmung


O médico, filósofo e naturalista de Leipzig Carl Gustav Carus iniciou sua carreira artística, como
pintor de paisagens, graças ao incentivo dado por seu amigo, o pintor romântico Caspar David
Friedrich. De fato, Friedrich estimulou Carus a divulgar seus quadros em diferentes centros
artísticos da Alemanha de princípios do século XIX. Uma dessas pinturas - Tannenwald [floresta
de pinheiros] – impressionou o crítico de arte Johann Henrich Meyer (amigo de Goethe) a ponto
de escrever uma resenha publicada na revista Sobre arte e antiguidade, na qual compara o
quadro com as obras do pintor holandês Jakob Ruysdael:
A outra pintura (Tannenwald) mostra uma área de floresta abandonada
densamente povoada de pinheiros com um riacho atravessando as pedras.
Luz moderada com um céu muito nublado, o verde escuro da floresta, o solo
puro e musgoso e a água clara lembram as pinturas de Ruysdael, cujo espírito
ninguém poderia entender facilmente [...] a pintura atraía por seu caráter e
significado. (MEYER apud GROCHE, 2001, p. 140).

As produções artísticas de Carus e de Friedrich estavam envolvidas em dar novo significado à


pintura de paisagem, deslocando-a da simples mimese das formas naturais [Naturalabformung]
e introduzindo na imagem o Stimmung, a transmissão da percepção individual da natureza no
processo pictórico. O conceito de Stimmung atravessa os textos e as pinturas de Carus,
sobretudo no opúsculo Briefe über Landschaftsmalerei [Cartas sobre pintura de paisagem]. Por
ora, apresenta-se um esboço de reflexões iniciais, algumas delas publicadas em texto anterior
(Cf. ARRAES, 2020a).
Escrito de 1815 a 1824, mas publicado em 1831, o livro Briefe über Landschaftsmalerei
estabelece, via teoria, história e filosofia da arte, uma conexão profunda e apaixonada entre as
categorias “natureza”, “paisagem” e “pintura de paisagem”. A obra pode ser dividida em dois
grupos: as cinco primeiras cartas descrevem a natureza em termos poéticos e religiosos. Há uma
aproximação com a maneira de Friedrich representar a paisagem segundo a estética do
Romantismo. Nesse momento, Carus se distancia do pensamento goethiano, na medida em que

1382
o poeta acreditava que a pintura de paisagem deveria reproduzir com exatidão os objetos
naturais e seus fenômenos particulares, não cabendo ao pintor comunicar na tela unicamente a
expressão da subjetividade em si, mas unificar a empiria com as emoções. Friedrich, ao
contrário, expunha um certo estado de ânimo que desafiava as preceptivas da pintura de
princípios do século XIX. As últimas cartas, ao contrário das iniciais, indicam a interação favorável
entre ciência e sensibilidade, aproximando-se da heurística de Goethe e com os estudos da
natureza de Alexander von Humboldt. Ao invés de tratar a paisagem numa dimensão mística,
Carus a relaciona à vida, ou como ele chamou, a paisagem seria Erdlebenbildkunst, a forma da
arte que dá vida à Terra (MITCHELL, 1984, p. 455).
As cartas apareceram após a morte Ernst Albert, filho de Carus. Ele comemorou a memória do
filho nomeando o suposto remetente de "Albertus" e o destinatário de "Ernst". Durante o
período de redação da obra, o entendimento de Carus sobre a paisagem mudou
consideravelmente. Afinal, ao longo de um decênio “[...] as opiniões mudam sobre
determinadas coisas, que o campo da visão novamente se amplia, o ser humano sente, pensa,
age aparentemente de um modo diverso que antes [...]” (CARUS, 1972, p. 9). Com efeito, as
missivas dão a ver uma mudança de direcionamento: começam com um ponto de vista próximo
ao Friedrich, alcançando a ideia de paisagem na qual ciência e arte se combinam para produzir
uma imagem que visa a expressar a totalidade da natureza (BÄTSCHMANN, 2002, p. 6).
A terceira carta é especialmente importante ao abordar a categoria Stimmung. O conceito de
Stimmung se tornou essencial ao processo criativo da pintura de paisagem concebida a partir da
virada do seiscentos para o setecentos. A noção de Stimmungslandschaft foi desenvolvida de
acordo com as teorias estéticas do filósofo Christian Cay Lorenz Hirschfeld e redigidas em sua
monumental Theorie der Gartenkunst [Teoria da arte do jardim], que propunha a descrição de
diferentes caráteres da paisagem. As ponderações de Alexander von Humboldt se ajustam às
considerações de Hirschfeld. O naturalista prussiano reconheceu que as "vistas da natureza"
[Ansichten der Natur] eram fisionomias de caráter peculiar [eigentümlichen Charakter]
reconhecível na conformação do clima, na altitude das montanhas, nos vapores atmosféricos e
na obscuridade da floresta com a vida do homem (HUMBOLDT, 1849, p. 5).
Na sétima carta Carus expressa seu incômodo com o termo Landschaft [paisagem]. Paisagem
seria uma expressão inapropriada para expor a alma da natureza: mehr wenigstens von dem
Ideale, was ich hier aufstellen wollte, liegt gewiß in diesem Wort, als in der Landschaft [muito
pouco do ideal, que eu aqui queria elaborar, situa-se nessa palavra paisagem] (CARUS, 1972, p.

1383
57). O aspecto semântico de paisagem mantém, para ele, uma espécie de "mecanicidade" que
submete a natureza ao estritamente empírico, como imperativo dos sentidos.
Erdlebenbildkunt foi a palavra cunhada a fim de apresentar a vitalidade da natureza. A tradução
literal para o português - a arte de representar a vida da Terra – insere na semântica do vocábulo
aspectos físicos e metafísicos. Existe uma forma e, portanto, uma totalidade orgânica sistêmica,
comprometida em configurar a vida da Terra ao expectador, isto é, a natureza. O termo ainda
comunica uma unidade que assume a força de criação, permitindo a leitura de fenômenos
particulares não como frações ilhadas, mas como um todo interdependente.
Os comentários de Carus sobre Erdlebenbildkunst dizem respeito principalmente à pintura de
paisagem. No neologismo há uma exaltação oculta da estética de Friedrich, posicionada como a
redenção da mesmice e da insignificância que circulou na pintura alemã no início do oitocentos:
"Friedrich, com uma mente profunda e vigorosa, com uma originalidade total, mudou a
banalidade e tédio da paisagem, assumindo uma tendência poética radiante e distintiva"
(BÄTSCHMANN, 2002, p. 17). E numa carta a seu outro amigo, Johann Gottlob Regis, reforça:
“nosso tempo reclama de falta de caráter, e ainda, onde o caráter é encontrado apenas até certo
ponto, tenta-se suprimi-lo. A arte de Friedrich estava deliberadamente em contraste com a
pintura de salão da corte, que, como ele estabeleceu, era incapaz de cobrir tanto suas pobres
partes nuas quanto sua nudez intelectual” (apud GOLDSCHMIDT, 1935, p. 53).
Embora as cartas empreguem a paisagem como princípio interpretativo da natureza, isto é, da
vida da Terra, elas abrangem outras questões estéticas significativas. A segunda carta
esquematiza um sistema das artes e como elas são definidas de acordo com as determinações
do belo. A quarta hierarquiza o “estilo” em subcategorias - naturalista, fantástico, maneirado,
nebuloso e puro - e a articulação entre poesia, escultura, jardinagem, pintura e música no efeito
e na produção da beleza.

4 - Epílogo
A literatura e a pintura se tornaram instrumentos basilares à representação da paisagem, ao
menos no que diz respeito à estética dos séculos XVIII e XIX. Vimos, a propósito desse
esclarecimento, como a poética de Goethe nos solilóquios de Werther sensibilizou o leitor a
perceber a paisagem enquanto mediação estética da natureza, uma formulação realizada na
combinação entre o estado de ânimo (Stimmung, subjetividade) e o mundo das aparências
sensíveis (objetividade). Esse enfoque persistiu no curso da história da arte, ou melhor, no curso
da história da apreciação da natureza, como é sintomático nos escritos literários e pessoais do

1384
poeta Reiner Maria Rilke. No início do século XX, Rilke passou uma temporada na colônia
artística de Worpswede, um grupo referencial da estética do impressionismo alemão. Em suas
anotações, ele afirma a dificuldade de redigir a história da paisagem e de sua representação
pictórica, haja vista a tarefa hercúlea ainda sem norte e a originalidade temática.
Entretanto, há um momento no qual a reflexão de Rilke, acerca da pintura de paisagem
produzida em Worpswede, parece tributária dos conceitos de paisagem e de Stimmung
divulgados, indiretamente, por Goethe e, de maneira óbvia, por Friedrich e Carus. Em suas
palavras: “ela (paisagem) parece prender a respiração em silêncio e suspender os ventos por
uma decisão, com flores esvoaçantes, com borboletas tremulantes e ventos saltitantes – mas
isso apenas para [...] apartar-se e largar só aquele com quem parecia compartilhar tudo isso”
(RILKE, 1905, p. 25).
O aspecto vitalista da paisagem, poetizado por Werther e idealizado por Albertus em sua
Erdlebenbildkunst, é polarizado (harmonia versus distanciamento), além de circunscrever o
Stimmung como condição necessária do envolvimento do sujeito que observa os fenômenos da
natureza. Num outro horizonte hermenêutico, a paisagem em Rilke traduz a visão de mundo
subjacente ao impressionismo, ressaltando a subjetividade, a interioridade do pintor, como
princípio criativo da pintura de paisagem e da paisagem em si, pois ao invés de formas [Gestalt]
definidas pela mera mimese, a paisagem “não tem forma; estamos acostumados a tirar
conclusões sobre atos voluntários a partir de movimentos, e a paisagem não tem querer quando
se move” (RILKE, 1905, p. 4). E este é o momento de desvio de Rilke com relação às paisagens
de Goethe e Carus.

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1387
SUSSURROS DAS FRESTAS: a paisagem nos interstícios da cidade de São Paulo
Nó4 - O silêncio dos silentes, dos mistérios.

Arthur Simões Caetano Cabral


Doutor; Universidade Federal de Goiás; arthur.cabral@ufg.br.

O presente artigo propõe a discussão sobre o potencial paisagístico de espaços intersticiais de


cidades contemporâneas. Trata-se de espaços desfuncionalizados, que acolhem o que não é
tolerado no meio urbano ou o que se faz refratário à objetividade cotidiana. Apresentando
situações estudadas nas entrelinhas da cidade de São Paulo, assume-se como questões centrais
as possibilidades e os desafios à fruição e à representação da paisagem no meio urbano
contemporâneo. O natural que permeia silenciosamente a cidade, resistindo às mais diversas
tentativas de controle e apagamento, insinua-se nos interstícios em sua potência originária.
Intervenções artísticas recentemente realizadas nesses espaços, por sua vez, subvertendo os
limites do olhar prosaico e interrompendo o ruído urbano, potencializam tais sussurros na
emergência de imagens poéticas.
Palavras-chave: paisagem; silêncio; interstícios urbanos; experiência sensível; imaginação
poética.

This paper discusses the landscape potential of interstitial spaces in contemporary cities. They
are defunctionalized spaces, which welcome what is not tolerated in the urban environment or
what is refractory to the objectivity of everyday life. Presenting situations studied in the city of
São Paulo, the possibilities of fruition and representation of the landscape in the contemporary
urban environment are assumed as central issues. The natural that silently permeates the city,
resisting the most diverse attempts to control and erasure, insinuates itself in the interstices with
its originary power. Artistic interventions recently carried out in these spaces, in turn, subverting
the limits of prosaic gaze and interrupting urban noise, potentiate such whispers in the
emergence of poetic images.
Keywords: landscape; silence; urban interstices; sensitive experience; poetic imagination.

1388
1 – Sobre os interstícios urbanos
O barulho da cidade habita os ouvidos. Entre vozes anônimas e motores apressados, nenhum
respiro aos tímpanos. Palavras soltas, grunhidos. Eventualmente, uma frase ou outra se
desprende do rumor contínuo e se faz ouvir com algum sentido, enquanto outras tantas
permanecem cifradas no desencontro habitual dos alto-falantes. Entre sílabas entrecortadas e
sirenes, automóveis e passos obstinados, o cotidiano no meio urbano é preenchido pela
companhia, perturbadora ou alentadora, de sons incessantes. Aparentemente, não há espaço
deixado ao eco, ao largo, ao ermo, à paisagem. Cada palmo de chão é medido, representado e
desenhado em cidade; cada minuto é apreendido, quantificado e ocupado em ruído. Escuta-se
algo todo o tempo e em toda a parte, raramente o silêncio.
Os ouvidos habituaram-se aos modos pelos quais as cidades contemporâneas são produzidas e
habitadas. À primeira escuta, com efeito, parece não ter cabimento no meio urbano atual aquilo
que foge às funções estritas ou que interrompe o ruído ordinário, aquilo que silencia de modo
desconcertante e que não pode ser representado ou traduzido em termos objetivos – a
paisagem, por exemplo.
Entretanto, como condição de existência do som e como seu contraponto irrefutável,
pressupõe-se que o silêncio não seja inteiramente ausente no meio urbano. Uma escuta mais
atenta, que subverta o ruído habitual, talvez reconheça a existência de uma camada sussurrante,
que se manifesta por certos indícios ou balbucios, e que permeia os espaços intersticiais da
cidade. Referimo-nos a situações espaciais que, permanecendo alheias às funções e às intenções
próprias da vida urbana, permitem atestar a impossibilidade de controle pleno da base natural
sobre a qual se assentam as grandes cidades. Entre edifícios e espaços livres ordenados, faixas
de terreno sem qualquer destinação aparente se oferecem ao mato abundante, a poças
insistentes ou ao fôlego esporadicamente retomado por rios enterrados, por exemplo. Tais
manifestações corroboram o pressuposto de que, embora negado ao longo do desenvolvimento
das grandes cidades contemporâneas, o natural permeia silenciosamente o urbano. Sua
potência incessante se insinua em espaços residuais à margem de avenidas, tomados por toda
sorte de capins, leguminosas e flores rústicas em brotações casuais (figura 01); seus sussurros
podem se fazer ouvir no desemboque de galerias subterrâneas, na terra vaga sob linhas de
transmissão de energia ou nos terrenos que sobram entre alças viárias e que passam ao largo
do ronco das roçadeiras (ou que não tardam a demonstrar a ineficácia dos esforços dedicados
ao seu controle com o contínuo devir de novas brotações).

1389
Figura 01: Espaço intersticial nas imediações do Terminal Rodoviário da Barra Funda, em São Paulo.

Fonte: o autor. Acervo próprio (2019).

Ainda que esses espaços, em suas variadas formas e dimensões, sejam resultantes do desenho
das cidades, trata-se, especificamente, da parte residual que dele sobra sem nenhuma
destinação clara. Destituídos de programa de usos e funções, desprestigiados pelos interesses
de mercado, são espaços situados à margem da objetividade clara e do pragmatismo que
caracterizam o meio urbano – condição propícia à sobrevivência do silêncio e à escuta de vozes
sussurrantes.
Recorrentes nas mais diversas cidades contemporâneas e portadores de um potencial
paisagístico latente, os espaços intersticiais serão abordados neste artigo a partir de casos
específicos recentemente estudados na cidade de São Paulo. Decorrentes de imersões em
campo e da produção de imagens fotográficas, pictóricas e textuais, as presentes reflexões têm
como objetivo a detecção de paisagens frequentemente despercebidas ou negadas no cotidiano
urbano, mas que têm possibilidades de reconhecimento potencializadas por intervenções
artísticas realizadas nesses espaços.

2 – Interstícios urbanos e atmosferas silentes


Se, por um lado, o meio urbano contemporâneo resulta de processos de desenvolvimento
historicamente contrapostos à fruição paisagística1, há, por outro, certas situações em seus

1
Para Rosário Assunto, as cidades contemporâneas são o lugar da não-paisagem, isto é, da negação da
temporalidade imensurável característica da natureza e de sua sobreposição pela temporaneidade,
condição na qual o tempo é constantemente consumido no meio urbano (ASSUNTO in SERRÃO, 2011:
356).

1390
interstícios nas quais é possível reafirmar o estranhamento que o natural nos infunde em sua
condição silente. Se assumirmos, dentre acepções diversas, que a experiência sensível da
paisagem reivindica um sentimento originário enraizado nas relações entre homem e Terra e
que vem à tona nas ocasiões em que a “vontade da razão […] dá lugar à linguagem da revelação,
que não está em poder dos homens, mas, antes, dele se apodera” (CARCHIA, 2009: 218),
poderemos encontrar, em meio às cidades, certos lapsos ou lacunas nos quais as intenções que
produzem o urbano se retraiam a ponto de permitir o reconhecimento imaginal e estético de
manifestações da Terra, parte indispensável à constituição da paisagem.
Com efeito, os aspectos fisionômicos dos interstícios urbanos, quando impregnados das feições
dos elementos naturais que neles irrompem a despeito de qualquer projeto e a contrapelo de
qualquer tentativa de controle, podem se mostrar incontornavelmente estranhos à condição
humana e refratários ao pensamento lógico, oferecendo-se antes à experiência sensível da
paisagem e à emergência de imagens poéticas a ela associadas. Por vezes, a estreiteza extrema
de um beco e o balbucio de musgos enrustidos em frestas úmidas pode ser suficiente, a quem
se permitir a imersão nos interstícios, para evocar a imensidão silenciosa de uma floresta
sombria. Nesse sentido, cumpre considerá-los a partir de seus traços sensíveis e imaginais, que
se encontram aquém e além de questões formais ou dimensionais e que se manifestam na
vegetação que reveste o meio fio e na umidade da terra que recobre muros encardidos; nos
ramos altos, eriçados pela brisa entre beirais e cumeeiras, e nos capins acesos em brasa pelo sol
poente em amplos terrenos baldios, entre outras tantas manifestações do natural nos
entremeios das cidades (figura 02).

Figura 02: Escadaria povoada por plantas ruderais no bairro do Imirim, zona norte de São Paulo.

Fonte: o autor. Acervo próprio (2019).

1391
Ainda que não constituam paisagens, em sentido estrito, ou que elas ocorram
dissimuladamente, os aspectos sensíveis dos elementos naturais que permeiam a dimensão
intersticial das cidades podem constituir atmosferas (BÖHME, 2010) propriamente paisagísticas,
isto é, meios de coenvolvimento afetivo no qual nos encontramos em contato direto, em ato,
com a alteridade da natureza. Trata-se de atmosferas silentes, frequentemente veladas sob o
ruído de fundo que reverbera no urbano, mas que constituem gérmens de paisagens se
assumidas como o momento inaugural da experiência estética e de desvelamentos paisagísticos.
Nesse sentido, o silêncio e a relativa invisibilidade com que a natureza perfaz originariamente o
urbano – e que são muito distintos dos modos pelos quais ela é chamada a comparecer,
amansada, em parques e áreas verdes intencionalmente reservados a ela – não se constituem
como aspectos impeditivos ao seu reconhecimento estético. Ao contrário, sua condição
sussurrante pode ser compreendida como meio oportuno à descoberta de paisagens em
situações aparentemente improváveis, em espaços que, embora triviais e inseridos no cotidiano
urbano, acolhem oportunidades de subvertê-lo numa modalidade de experiência sensível e
imaginal cujo “sentido estético mina a familiaridade pragmático-cotidiana com as incertezas do
meio natural” (SEEL, 2011: 402).
Podemos cogitar que seriam também sussurros, inaudíveis a maior parte do tempo, as
manifestações da dimensão inumana que, segundo Jean-François Lyotard, nos é inata e
constitutiva da condição humana. Os seres humanos não nascem programados para serem
humanos, mas sim abertos ao porvir – e, portanto, eminentemente humanos. Há certa
indefinição inumana, nesse sentido, da qual nos originamos e que não poderia ser
completamente esquecida ao longo da vida. Para Lyotard, cumpre assumir as limitações da
razão comum e as ocasiões em que nos assombramos com o “rasto de uma indeterminação, de
uma infância, que persiste mesmo na idade adulta” (LYOTARD, 1990: 11) e que nos caracteriza
como seres entreabertos, indeterminados, livres, isto é, humanos. Em outros termos, seria
preciso prestar o testemunho do inumano que nos habita silenciosamente e que pode vir à tona
como um arrebatamento ou um escape em ocasiões específicas – a experiência da paisagem,
por exemplo.
Ainda segundo o pensamento de Lyotard, a paisagem pode ser compreendida como a
experiência sensível situada aquém de qualquer destinação humana, como o ato de partir sem
ter qualquer destino (LYOTARD, 1990). Se a paisagem é não destinada, os lugares em que ela
pode ocorrer não se confundem com o destino objetivo de qualquer deslocamento,
correspondendo, antes, a situações abertas à potência da indeterminação sobre o determinado.
Em outras palavras, a fruição paisagística pressupõe o contato sensível com aquilo que resiste a

1392
ser totalmente previsto ou equacionado e que se situa além do alcance da razão comum na
medida em que “a paisagem DESOLA o nosso espírito. Faz jorrar a linfa, a qual é a alma”
(LYOTARD, 1990: 186) ao expor o homem ao inumano que lhe é constitutivo.
Ainda que o homem permaneça inevitavelmente em dívida com o inumano, o testemunho de
seus sussurros intimamente persistentes corresponderia a uma tarefa a ser assumida pela
escrita, pelo pensamento, pela literatura e pelas artes (LYOTARD, 1990). Analogamente, a
possibilidade de representação do potencial paisagístico dos interstícios urbanos, por se mostrar
refratário aos esforços de síntese, de decifração em termos objetivos e à ideia de representação
como mimesis ou simulacro, oferece-se antes à imaginação profunda e às pulsações do
inconsciente que mobilizam o fazer poético. Admitindo, nesse sentido, a liberdade da poesia em
suas diversas expressões, por meio das quais as imagens são trazidas à superfície da linguagem
de modo aberto, autônomo e com a mobilidade que as caracteriza, a possibilidade de
representação das paisagens nos interstícios urbanos se relacionaria à “imanência do imaginário
no real, [ao] trajeto contínuo do real ao imaginário […] à lenta deformação imaginária que a
imaginação proporciona às percepções” se assumirmos “o objeto poético devidamente
dinamizado por um nome cheio de ecos [como] um bom condutor do psiquismo imaginante
[que produz e deforma imagens]” (BACHELARD, 2001: 5).
Considerando o instante inicial da percepção estética da natureza em termos de desvelamentos
inconclusos e de horizontes que permanecem velados, veremos que as atmosferas dos
interstícios urbanos podem ser compreendidas como realidades sensíveis e imagináveis. Entre
o que nos toca por meio dos sentidos e o que deles escapa, abrindo-se à imaginação, o meio em
que se dá a paisagem se oferece como um campo rico em existências insinuantes, cujos
sussurros instigam as “forças imaginantes” que “escavam o fundo do ser”, e que nele procuram
“o primitivo e o eterno”, que “na natureza, em nós e fora de nós, produzem germes”
(BACHELARD, 2013: 1). Para além dos aspectos objetivamente mensuráveis dos territórios, as
imagens poéticas permitem que a paisagem seja dita em sua vitalidade e na abertura de
significados com que acontece, em ato. Vejamos, a seguir, o caso de uma intervenção artística
realizada junto a um espaço intersticial da cidade de São Paulo, em 2015, a partir da qual é
possível detectar certas afinidades entre as imagens poéticas constituintes da obra e o
desvelamento de paisagens silentes nos interstícios urbanos.

3 – Imaginar o silêncio
No bairro da Barra Funda, região oeste da cidade de São Paulo, o córrego Anhanguera é
atravessado pela avenida Doutor Abrahão Ribeiro pouco antes de seu encontro com as águas

1393
do córrego Pacaembu e do deságue no rio Tietê. A montante da travessia, dificilmente
reconhecível como uma ponte na atualidade, o córrego verte tubulado em galerias de águas
pluviais desde suas nascentes, nas imediações da Vila Buarque; a jusante, suas águas escoam
abertas ao céu nos poucos metros restantes em direção à foz (figura 03). O olhar, entretanto, é
impedido de alcançá-las por um muro erguido rente ao passeio público.

Figura 03: Contexto urbano da intervenção artística realizada junto ao córrego Anhanguera (foto aérea).

Fonte: Imagem de Satélite - Google Earth (editada pelo autor). Acervo próprio (2020).

O desejo de contemplar as águas, ainda que por frestas estreitas, somado à dureza dos blocos
de concreto que impedem o olhar, instiga o desafio de vencer a resistência fria do muro. Os
anseios por desvelamentos e os devaneios de embate contra a resistência da matéria podem
ser associados às imagens poéticas presentes em uma intervenção artística realizada no ano de
2015 à beira do córrego Anhanguera. Proposta pelo cineasta Caio Ferraz no âmbito do seminário
Entre rios – a cidade e sua (não) relação com as águas, a obra teve como ponto de partida a
instalação de um lambe-lambe diretamente sobre o muro cego da avenida Doutor Abrahão
Ribeiro. Estampando uma fotografia de um rio tropical em sua configuração natural em meio a
uma mata densa e exuberante, o painel forrava uma parte considerável do muro. Em meio à
profusão de ramos entrelaçados, à superfície límpida das águas, às cores saturadas e à riqueza
de texturas dispostas no inusitado papel de parede, a imagem de uma esquadria de janela
impregnada de amarelo vivo interrompia o pôster, bem no centro, conservando aparentes os
blocos cinzas de concreto. Após a colagem do lambe-lambe, abriu-se a janela.
A resistência do concreto ressoava a cada golpe de marreta. A opacidade oferecida pelo muro
aos olhos era equivalente à dureza sentida pelas mãos que o golpeavam. No embate contra a
matéria, “os sonhos de pedra procuram forças íntimas” (BACHELARD, 2013: 9). Quanto mais os

1394
blocos resistem, mais incitam gestos que possam superá-los. Para a imaginação da matéria,
basta um passo para que o muro assuma a condição de um rochedo que resiste a ser escalado,
que concentra sua materialidade intransponível e incita o desejo de superá-la; como alpinistas
em sua avidez por horizontes, os participantes da intervenção fincam-lhe a talhadeira como se
fossem ganchos na rocha nua, ancoragens que lhe permitissem alçar vitória contra a resistência
do rochedo impávido. Suas mãos apetrechadas cumprem devaneios de trabalho junto à matéria
dura, ressentindo em marteladas certeiras os resmungos do muro cego.
Os blocos de concreto cedem aos cacos, gradativamente, soltando-se da argamassa que os
vedava. A janela é aberta, pouco a pouco, e a respiração posta em suspense. Até o instante em
que, finalmente, se descortina uma situação insólita ou propriamente inacreditável: o córrego
Anhanguera flui em meio a um bosque denso, aparentemente incompatível com o meio urbano
que o circunda, a pele de suas águas, tão trêmula quanto as mãos fatigadas pelo trabalho duro,
a refletir o sol poente. Recém-nascido, o horizonte conduz quem o contempla à sensação de ser
tragado pela janela a uma realidade distante, em silenciosa reticência (figura 04). O espaço
intersticial ao longo do qual escoam as águas do Anhanguera, ocultas pelo muro erguido sobre
a pequena ponte da avenida Doutor Abrahão Ribeiro, permanece alheio aos edifícios, ao ruído
das vias expressas e aos tantos dispositivos urbanos implantados nas várzeas do Tietê.
Indiferente às intenções de controle das águas e aos esforços de seu ocultamento, o espaço
intersticial assume, ele mesmo, a condição de uma janela metafórica entreaberta aos sussurros
da paisagem.

Figura 04: Janela inusitada às águas do córrego Anhanguera.

Fonte: o autor. Acervo próprio (2015).

1395
A intervenção artística realizada, por sua vez, assume o papel de conferir imagem poética a
camadas silentes da cidade. Mais do que revelar objetivamente aos olhos a existência do corpo
d’água oculto, a obra torna o muro inoperante à medida que a estrutura cede aos anseios do
olhar (figura 05). Nos devaneios de embate contra a matéria, na energia despendida na abertura
na rocha de uma janela inusitada, o muro continua a existir – a intervenção não previa sua
demolição –, mas deixa de atender às intencionalidades objetivas segundo as quais fora
construído. Aberta às águas até então escondidas do Anhanguera, a janela desativa o muro, que
passa a oferecer-se àquilo que não tem cabimento na objetividade plena, ao escape ao inumano,
à fruição sensível e imaginal da paisagem.

Figura 05: Intervenção artística na avenida Doutor Abrahão Ribeiro (São Paulo – SP).

Fonte: o autor. Acervo próprio (2015).

A desativação da parede cega, poeticamente proposta na intervenção artística, ofereceu a


possibilidade de reconhecimento do território intersticial por onde escoa o córrego Anhanguera.
Embora inacessível à visitação, o espaço convidava à imersão em atmosferas os olhos tateantes
que o espreitavam durante o período em que a inusitada janela permaneceu aberta. Na mesma
medida em que rompia com o pragmatismo cotidiano e interrompia seu ruído costumeiro, a
abertura no muro dispunha aos passantes a possibilidade de imersão estética em um bosque
improvável, encravado entre avenidas movimentadas de um bairro central, e fazia repousar o
olhar no fluir incessante das águas.
Conforme previa-se desde o início, a janela teve existência breve. Embora pouco justificáveis, os
esforços em censurar a vista do córrego logo voltaram a se afirmar. A intervenção, não
autorizada, foi revertida alguns dias após a sua realização mediante o preenchimento da janela

1396
com novos blocos de concreto. Durante muitas semanas, contudo, ainda era possível
reconhecer as marcas da cola empregada no lambe-lambe, assim como o remendo
grosseiramente empreendido no muro. Um fragmento ou outro do painel, removido às pressas,
também resistiu ao tempo e, por algumas semanas, folhas e galhos desconexos permaneciam
inexplicavelmente tatuados no muro cego, confidentes dos sussurros das frestas.

4 – Considerações finais
Há espaços nos interstícios das cidades contemporâneas que permanecem, com frequência,
alheios às intencionalidades e às demandas objetivas que caracterizam a produção do meio
urbano e a sua vivência cotidiana. Trata-se de espaços com características formais e
dimensionais variadas, mas que têm em comum o fato de se situarem à margem das funções
que formalizam as cidades – ou, especificamente, imiscuídos em seus interstícios –, razão pela
qual eles acolhem, em potência, manifestações ou indícios do princípio originário da natureza,
ou seja, expressões não amansadas ou propriamente inumanas dos elementos naturais que
permeiam silenciosamente o urbano.
Na condição de sussurros que reverberam nas frestas das cidades, as manifestações da
materialidade originária da Terra estabelecem relações de comunhão com as camadas
profundas do ser, inaudíveis ao pensamento lógico, mas francamente abertas à emergência de
imagens poéticas. Constituindo o que pode ser entendido como uma poética dos interstícios
urbanos, as imagens que dão corpo à pintura, à fotografia ou a intervenções artísticas in situ –
como a janela metaforicamente aberta junto ao córrego Anhanguera – contribuem ao
desvelamento de paisagens latentes em meio às cidades.

Referências
ASSUNTO, Rosário. A paisagem e a estética. In. Filosofia da Paisagem – uma antologia. Coord: Adriana
Serrão. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011.

BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios da vontade. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

_________________. O ar e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

BÖHME, Gernot. Atmosfere, estasi, messe in scena. L’estetica come teoria generale dela percezione.
Milano: Christian Marinotti Edizioni, 2010.

CARCHIA, Gianni. Per una filosofia del paesaggio. In. Estetica e paesaggio. Coord. Paolo D’Angelo.
Bolonha: Il Mulino, 2009.

LYOTARD, Jean-François. O inumano: considerações sobre o tempo. Trad. Ana Cristina Seabra e Elisabete
Alexadre. Lisboa: Editorial Estampa, 1990.

1397
Nó cego...
Outros silêncios...

... Aqueles que não se fazem


presentes nos nós anteriores.
A (DES)CONSTRUÇÃO DO CARTÃO POSTAL: Maceió, o bairro da Ponta Verde e os
marcos referenciais da sua imagem.
NóCego - Outros silêncios.

Igor Sousa Peixoto


Arquiteto e urbanista pela FAUD/UFAL; Mestrando DEHA/PPGAU/UFAL;
igorsou@hotmail.com.

Maceió, capital de Alagoas, vem passando por um processo de reconhecimento em todo país,
sendo “vendida midiaticamente” a partir de um retrato específico que a divulga enquanto um
local paradisíaco, com o intuito de a posicionar dentro do mercado turístico nacional. Com isso,
nota-se que os retratos divulgados de Maceió se restringem a uma pequena parcela da mesma,
sempre focados em sua orla marítima, especialmente no recorte geográfico do bairro da Ponta
Verde – cartão postal “oficial” da cidade. No entanto, nem sempre foi assim. Através do
mergulho em pesquisas históricas e análises fotográficas, este artigo busca entender como se
deu a construção dessa imagem, identificando os marcos referenciais que a compuseram e seu
impacto na identidade da cidade atual.
Palavras-chave: Maceió; Ponta Verde; Cartão Postal; Imagem; Marcos.

Maceió, capital of Alagoas, has been going through a process of recognition throughout the
country, being "sold on media" based on a specific portrait that discloses it as a paradisiacal
place, in order to position it within the national tourist market. With that, it is noted that the
portraits released of Maceió are restricted to a small portion of it, always focused on its seafront,
especially in the geographical section of the Ponta Verde neighborhood - the “official” postcard
of the city. However, it was not always like this. Through diving into historical research and
photographic analysis, this article seeks to understand how this image was constructed,
identifying the reference landmarks that composed it and its impact on the identity of the current
city.
Keywords: Maceió; Ponta Verde; Postcard; Image; Landmarks.

1399
1 – Introdução
Entende-se o cartão postal como um produto gráfico, físico ou virtual, através do qual uma
imagem de lugar é divulgada enquanto marco, uma forte referência que o identifica. Desde seu
surgimento, em 1891, os cartões foram muito bem recebidos na capital alagoana, ajudando a
divulgar fotografias da cidade para o mundo (CAMPELLO, 2009). Hoje, com a modernização
referente as revoluções tecnológicas, eles assumem diferentes formas, transpondo-se para o
plano virtual a fim de se adequar às demandas da sociedade atual, ao mesmo tempo em que
continuam cumprindo sua função original de instrumento de divulgação de um local.
É em cima dessas imagens da cidade de Maceió, do bairro da Ponta Verde e suas diferentes
versões, que esse trabalho elabora suas opiniões – analisando o “descobrimento” histórico do
bairro e os marcos imagéticos que ajudaram a construir e “emoldurar” sua paisagem; o papel
que tais retratos desempenham na formulação da identidade da cidade atual; e as imbricações
desse enfoque visual dentro da dinâmica urbana da cidade, assim como seu impacto no
imaginário popular do habitante de Maceió.

2 – O Retrato da Cidade
Maceió, capital do estado de Alagoas, vem passando por um processo de reconhecimento em
todo o país nas últimas décadas, e a cada ano recebe um número maior de visitantes em seu
território. Alcunhas próprias do marketing turístico nacional, como “Paraíso das águas” e “Caribe
brasileiro”, são disseminadas e associadas à cidade, com a intenção de vender a região para todo
o Brasil como um produto de irresistível “compra”, formulando um cenário idílico, atrativo a
uma clientela virtual estudada.
Principal referência nacional de Maceió, a imagem do bairro da Ponta Verde se tornou o símbolo
da cidade-produto que aqui se observa, sendo excessivamente divulgada nos meios midiáticos
e adentrando de forma idealizada o imaginário coletivo dos que vivem na cidade. Basta uma
rápida procura pela palavra “Maceió́” nos sites de busca da internet que a imagem do bairro
surge, quase como um retrato oficial, representante de toda a capital alagoana. Acredita-se que
tal percepção também recaia sobre o turista “comum”, que busca informações sobre a cidade
ao escolher seu destino final e se depara com esse cenário deslumbrante, de paisagem
arrebatadora e cores apelativas, onde as águas azuladas do mar e o verde dos coqueirais
encontram tão intimamente o cinza do concreto da intensa verticalização presente – revelando
através de fotografias aéreas a descoberta de um espaço refúgio, um lugar sagrado e
harmonioso (DANTAS, 2009), uma totalidade homogênea (MONTOYA URIARTE, 2013) coerente

1400
com as necessidades dessa clientela pretendida, que detém o capital do mercado turístico onde
a cidade-produto pretende se inserir (VAINER, 2007).
Ao olhar esses retratos, percebe-se suas mudanças ao longo das últimas décadas. A cidade se
divulga por outros ângulos, outros meios, se adequa a novas demandas e plataformas, insere
novas informações em sua paisagem e acompanha as mudanças físicas que seu espaço
apresenta, contudo não retira seus holofotes midiáticos da região do bairro. É por esse espaço
que a capital espalha sua narrativa, se divulga e se constrói nacionalmente, ao mesmo tempo
em que se restringe e se reduz.
Porém, é importante salientar que nem sempre foi assim. No processo que visa entender como
a imagem do bairro tomou tais proporções e relevância na representação da cidade, buscou-se
observar o que já foi importante e atrativo ao turismo local: que paisagem a cidade escolhia
divulgar ao mundo antes da Ponta Verde se tornar a protagonista que vemos hoje? E como se
deu a formação e consolidação da imagem desse bairro?

A imagem e sua história


Em meados da década de 1920, o cenário em que Maceió se encontrava era bastante diferente
dos dias atuais. O bairro da Ponta Verde ainda não existia oficialmente, portanto, era o cinza dos
prédios da cidade que estampavam os cartões postais dessa época. É interessante notar essa
mudança de panorama nesses retratos: o atual foco excessivo na paisagem natural da orla,
pouco aparecia até então; o centro histórico e seus prédios relevantes ganhavam notoriedade
nos meios de divulgação – região pouco valorizada pelo mercado turístico e pela dinâmica
urbana da Maceió de hoje.

1401
Figura 01: cartões postais em circulação na década de 1930.

Fonte: fotografias de Antenor pitanga. Edição: CAMPELLO (2009)

De certo modo, podemos entender essa mudança de foco na representação da cidade a partir
da modernização dos discursos e condutas sobre o espaço urbano que vai se desenvolvendo no
Brasil a partir da década de 1930, quando a cidade começa a ser percebida sob um prisma
moderno e a população enxerga novas prioridades e novos atrativos nesse território – o que
antes gerava comoção passa agora a ser visto como irrelevante ou indiferente. A sociedade
busca outros símbolos e referências para essa cidade que surge.
É dentro desse cenário de uma Maceió́ em transformação, que a Ponta Verde começa a se
destacar e ser percebida de forma independente. A região era um imenso sítio de coqueiros
pertencente ao perímetro do bairro da Ponta da Terra, um dos mais antigos da capital. Na
década de 1920, as famílias de classe alta da época começam a se interessar pelos terrenos da
orla marítima da cidade, onde foram construindo casas de veraneio no bairro da Pajuçara,
trazendo visibilidade à região e obrigando os pescadores que ocupavam o local a se transferirem
para a remota Ponta da Terra, fazendo surgir novas ruas, com modestas casas por ali (PEIXOTO,
2016).
Nessa época, antes do seu “surgimento oficial”, a Ponta Verde já começava a atrair os olhares
mais curiosos e sensíveis às mudanças de paradigma que se desenhavam nos espaços urbanos
naquele momento. Lúcio Costa, arquiteto e urbanista franco-brasileiro, ao desenvolver uma
tarefa enquanto secretário do atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, realiza
uma série de viagens pelas cidades do Brasil em busca do reconhecimento de sua identidade
paisagísticas. Ao chegar a Maceió, no ano de 1926, escreve uma carta onde descreve a cidade
como “pequena, feia, sem interesse – sem expressão” (COSTA,1995, p.102). Relata que ao

1402
passear pelo seu centro nada o chamou a atenção, tudo era apagado, suburbano. Contudo, ao
chegar ao trecho próximo ao desse estudo, escreve, com vislumbre, sua súbita admiração pelo
local:
[...] Felizmente tomei um bonde que me levou para fora – ‘Ponta da terra’
chamam o lugar. Gostei, gostei muito mesmo [...] um mar muito calmo, sem
arrebentação, sem ondas. [...] Paisagem de ilha abandonada, apesar dos
pescadores e das velas, calma, sonolenta. Paisagem de Aquarela
(COSTA,1995, p.102).

Um pouco depois, em 1937, o jornalista alagoano Moreno Brandão, descreve a cidade de


Maceió de forma que deixa clara a posição de ponto referencial e turístico para a cidade que o
bairro da Ponta Verde começava a ocupar naquela época:
Maceió, situada perto do mar, nas proximidades da Ponta Verde. Cidade com
ruas largas, praças espaçosas, casas muito bem construídas e de elegante
aspecto. (BRANDÃO, 1937, p.15)

Percebe-se pelas abordagens dos dois autores, o importante papel da natureza do local na
percepção da cidade e como sua paisagem já chamava a atenção. Costa, com seu olhar sensível
de urbanista, observa nos atributos naturais daquela região específica a beleza mais singular de
Maceió –e seu bem mais valioso. Já Brandão, com seu olhar documental de jornalista, faz de tal
paisagem um ponto referencial de uma cidade em crescimento. Dessa forma, podemos afirmar
que há, desde antes da ocupação efetiva do bairro, uma crescente atração por sua paisagem e
uma certa predisposição, ainda inocente, de o firmar como imagem turística da cidade.
Então, em meio a esse contexto histórico, a Ponta Verde ainda pouco povoada e habitada, viu-
se aos poucos ganhando notoriedade. O tronco em formato curioso de um dos inúmeros
coqueiros que ocupavam os extensos sítios do local, chama a atenção dos visitantes, e logo que
é descoberto vira sensação na cidade – atraindo as lentes fotográficas para aquele bairro em
construção e trazendo a população para a região, que recebia ali o primeiro de uma série de
marcos construtores de sua imagem1. Analisaremos alguns deles no tópico a seguir.

1
Entende-se como um marco aquilo que marca uma época, data ou local; um fato decisivo; ponto de
referência.

1403
3 – Identificando marcos

Figura 02: Cartão Postal do Gogó da Ema, final da década de 1930.

Fonte: Alberto Lopes Leiloeiro, [s.d].

Já no fim da década de 1920, com o início da ocupação da área litorânea de Maceió a partir do
bairro da Pajuçara – que faz vizinhança com os limites da Ponta Verde –, o coqueiro de tronco
sinuoso que antes reinava em silêncio dentro de terreno privado e de difícil acesso, passa a ser
descoberto, sendo apelidado de Gogó da Ema. Logo a notícia de sua existência corre pela capital,
direcionando pela primeira vez os olhares curiosos da cidade para aquela região reservada,
transformando o seu terreno em ponto de encontro da população (PEIXOTO, 2016).
O curioso traçado de seu tronco naturalmente despertou as lentes fotográficas da cidade, que
registravam apaixonadamente aquela novidade de inegável potencial imagético – onde um
coqueiro singular contemplava o mar esverdeado da região e, dessa forma, redesenhava a
paisagem do local. A fama do Gogó da Ema logo ultrapassou os limites do estado e alcançou
destaque internacional, sendo os seus retratos estampados em postais e gravuras que
percorreram o mundo, enviadas com orgulho pelos moradores da cidade. Sua imagem tornou-
se, assim, um dos cartões postais mais reconhecidos nacionalmente naquela época e foi através
dela que, pela primeira vez, a região da Ponta Verde representou simbolicamente a capital
(PEIXOTO, 2016).
Em 1930, após algumas perfurações de poços em busca de petróleo nos arredores do local, o
mar avançou um pouco mais e a estabilidade do famoso coqueiro ficou comprometida. Algumas
medidas foram reclamadas à prefeitura visando conter a ameaça da natureza que se
aproximava, e muros de alvenaria de tijolos e travas de madeira foram instaladas buscando
conservar aquele cenário especial. Porém, às 16h30 do dia 27 de julho de 1955, o tão querido e

1404
simbólico Gogó da Ema teve sua “proteção” invadida pela impetuosa água do mar e, sem mais
se conter em suas raízes, caiu, despedindo-se do pôr do sol da Ponta Verde que ele havia
tornado popular. Segundo relatos da época, após sua queda, o “corpo” do coqueiro permaneceu
exposto na areia daquela praia, que continuou recebendo a visita da população que observava
aquele amado marco desaparecer em silêncio, sendo consumido lentamente pela força da
natureza (JÚNIOR, 2014).
O Gogó-da-Ema se foi, mas seu legado perdura até hoje. Sua história e imagem sobrevivem às
gerações, fazendo parte do imaginário popular dos moradores da cidade. Ainda hoje, o coqueiro
continua representando a terra que o abrigou – estampa camisetas, inspira esculturas, nomeia
praça, bancas de revistas e cachaças feitas em sua homenagem –, e dessa forma torna-se, no
silêncio de sua inexistência física, um patrimônio cultural e imagético que ainda grita sua
dominante influência e presença por toda capital.
Um pouco depois, em meados da década de 1960, a área em formato de sítio pertencente ao
bairro – agora reconhecida pela herança que o coqueiro deixou –, começa a passar pelas
primeiras mudanças físicas que iriam viabilizar sua efetiva ocupação. Com a intensificação do
povoamento da parte litorânea da cidade, há um reconhecimento da extensão da Ponta Verde
como um espaço de grande potencial turístico e econômico em Maceió, e começa, então, o
processo de loteamento do seu terreno, que se prepara para receber suas primeiras residências
uni familiares pertencentes às famílias da classe alta da sociedade alagoana. Junto a isso, surgem
as primeiras construções de conjuntos populares e edifícios nos arredores do bairro que,
consequentemente, recebe os equipamentos urbanos e infraestrutura básica que permitem o
intenso processo de ocupação que ele iria sofrer nas décadas seguintes (ZACARIAS, 2004).
É dentro dessa etapa inicial que, no início da década de 60, um segundo símbolo histórico e
ícone imagético da Ponta Verde começa a surgir – um que iria sobreviver e influenciar
fisicamente a paisagem da cidade até os dias mais recentes, um segundo marco construtor de
sua imagem.

1405
Figura 03: “Alagoinhas”. Postal da década de 1990.

Fonte: Alberto Lopes Leiloeiro, [s.d].

O início das obras do Alagoas Iate Clube data de 1964, porém sua inauguração só se deu na
década seguinte, no ano de 1970. Para a construção do local foi realizado um concurso de
projetos e a proposta arquitetônica vencedora foi a de autoria das arquitetas Zélia Maia Nobre
e Edy Marreta. A obra refere-se a um complexo náutico, um clube de lazer de caráter privado
voltado para a elite maceioense, instalado de forma a dialogar delicadamente com a paisagem
em que estava sendo inserido. A edificação inicia-se ainda na faixa de areia e avança para dentro
do mar, tendo a ponta geográfica de terra, que dá nome ao bairro, como um aliado natural nessa
“invasão”. Já nas águas, o Alagoinhas, como foi carinhosamente apelidado, flutua sobre um
chão de arrecifes que, de acordo com a maré, se expõe ou se esconde, fazendo com que a
paisagem que entorna essa arquitetura sofra periódicas transformações a partir dos desejos da
natureza, promovendo um movimento dinâmico e poético à obra (SILVA, 1991).
Sobre o espaço geográfico onde o clube se instala, é interessante perceber que era exatamente
nessa região onde o famoso Gogó da Ema reinava anos antes, e assim iniciava a reconstrução
imagética do bairro e da cidade. Portanto, entende-se aqui que o local que passa a abrigar o
Alagoinhas, em 1970, já possuía um histórico turístico e simbólico que perpassa a camada
temporal da construção do clube. Pode-se considerar que há uma “natural” vocação icônica no
lugar, que independe da arquitetura, mas pode ser incrivelmente potencializada por ela. Após a
queda do coqueiro e a subsequente construção do Alagoas Iate Clube, o lugar adquiria uma nova

1406
conformação turística, consolidava sua influência na cidade e delineava mais um cartão postal
para a capital (ALMEIDA, 2014).
Enquanto ativo, o “Alagoinhas” representou uma das principais paisagens urbanas associadas a
Maceió. Sua imagem esteve estampada em cartões postais da cidade durante muitos anos,
atraindo os holofotes do turismo para a cidade e ajudando a construir e divulgar a identidade
que hoje se vende sobre a capital. Após o fechamento do clube, em 2005, a estrutura construída
continuou chamando atenção na paisagem retratada da cidade, que observava com curiosidade
aquele imponente prédio se transformar em ruínas ao sucumbir lentamente em meio às águas
que por tanto tempo o fizeram companhia.
Hoje o que existe é a lembrança da obra que, mesmo “desfigurada” dentro do retrato fotográfico
atual, resiste enquanto espaço de memórias. É também agora espaço de ressignificação de suas
relações, que assume novas versões e subversões, dialoga com novos públicos a partir do
silêncio que seus escombros carregam, espaço de usos e novas apropriações – espaço sempre
presente, constante, nunca esquecido.
Ao prosseguir o estudo das fotografias midiáticas do bairro e seus cartões postais, fica nítido um
foco específico em um ponto singular de sua geografia. O enquadramento, o ângulo, os meios e
épocas, monumentos e símbolos, se transformam, mudam. Porém, o cenário mais uma vez se
repete, permanece. E, por isso, faz com que o elejamos nosso terceiro marco construtor da
imagem da Ponta Verde.

Figura 04: Relicário turístico. Postal da década de 1980.

Fonte: Alberto Lopes Leiloeiro, [s.d].

1407
Foi por ali que, ao final da década de 1920, a população alagoana se encantou ao “descobrir” o
famoso coqueiro encurvado que contemplava um mar azul esverdeado, compondo a harmonia
daquela “paisagem de aquarela” (COSTA, 1995, p.102). Da novidade daquela descoberta,
nascem os primeiros cartões postais de uma nova Maceió que se revelava, uma cidade
representada por sua orla marítima, um lugar paradisíaco. É a partir desse local, então, que se
inicia a ocupação efetiva do bairro, com uma parcela da sociedade que agora enxerga naqueles
antigos sítios uma nova experiência de vida urbana. Em seguida, na década de 1970, foi de novo
ali que uma nova arquitetura se ergueu, o modernista Alagoas Iate Clube prosseguiu a trajetória
de ascensão da região na cidade e impulsionou a sua imagem como novo cartão postal alagoano,
dando visibilidade e popularidade aos terrenos da Ponta Verde, que começava a se estruturar
como bairro de fato. Foi nos arredores da ponta geográfica que batiza o local que a história aqui
contada aconteceu, foi lá onde os marcos que fundaram e confirmaram essa paisagem midiática
se ergueram e mudaram a percepção da cidade sobre si mesma. Portanto, nada mais justo do
que tratar este espaço, o pedaço de terra em si, como mais um símbolo construtor da imagem
atual da cidade (PEIXOTO, 2016).
Ao observamos as fotografias midiáticas, também é possível identificar alguns outros elementos
que ajudaram nessa construção imagética que vemos hoje. São elementos que sempre atuaram
como coadjuvantes dentro desse processo, e só vieram a receber uma atenção privilegiada nos
anos mais recentes. Porém, sem dúvidas, há muito deles na percepção formulada sobre o bairro,
além de que, interessantemente, também fazem parte dos arredores dessa região da ponta
geográfica e, portanto, contribuem para percebermos o status naturalmente icônico que o local
exala. São eles: O farol da Ponta Verde, inaugurado em 1949; a excessiva verticalização do
bairro, que se inicia a partir da década de 1970 também por aquelas redondezas; e o totem Eu
Amo Maceió, instalado em 2014 justamente naquela proximidade.
Naquele pedaço de terra que adentra o mar foi criada uma espécie de relicário turístico, onde
tudo que pode fomentar a imagem formulada do bairro e da cidade atual se encontra. Mesmo
que hoje só os restos das ruínas originais do “Alagoinhas” existam, e o gogó da ema há muito
não esteja ali, o local continua chamando atenção pelo seu formato natural, espontâneo, e essa
parece ser a maneira mais bela de se destacar. O espaço atrai sem se esforçar, conduzindo
magneticamente os olhares e a presença da população para suas curvas, desde o início do
“descobrimento” do local parece ter sido assim: há uma sensação nítida, ao observar os retratos
do bairro em diferentes épocas, que foi ali que de fato a Ponta Verde se iniciou. Olhamos a ponta
de terra e podemos sentir sua atração se propagando como raios para a civilização, que em

1408
pouco tempo iria ocupar seu território a fim de admirar de perto aquela peculiaridade
geográfica, observando tamanha beleza com mais intimidade – e misturando com o cinza do
concreto o que antes era coberto pelo verde dos coqueirais.
A ponta de terra se comporta como um marco anfitrião, um ícone que também construiu a
imagem e a história da cidade. Um marco que, assim como o Gogó da Ema, a natureza ofertou
e é, talvez, o mais atraente entre eles.

4 – Considerações Finais
Para formular uma conclusão acerca da construção da imagem cartão postal de Maceió, deve-
se também, perceber e contextualizar o comportamento da sociedade onde o bairro e a cidade
estão inseridos. Aqui retomamos ao pensamento de Vainer (2007), a fim de esclarecer alguns
fundamentos que incentivaram a utilização massiva da imagem da Ponta Verde como símbolo
turístico da cidade de Maceió. Entende-se que no capitalismo vigente, a cidade é uma
mercadoria a ser vendida dentro de um mercado extremamente competitivo, e por se tratar de
um produto de notável complexidade, deve estudar seus consumidores para direcionar seu
“estilo” de venda, feita a partir de atributos específicos que constituem insumos valorizados
pelo capital transnacional (VAINER, 2007).
Maceió não foge desse conceito, basta perceber a forma como ela é divulgada midiaticamente
para entender que há uma tentativa de oferecer a cidade para uma clientela específica,
interessada na ideia de “refúgio” e “paraíso urbano”, enfatizadas por suas imagens divulgadas.
Um local onde a civilização é cercada pela natureza e dialoga em perfeita sintonia com ela.
Em contrapartida, também podemos concluir que muito do foco que a Ponta Verde vem
recebendo desde seu “descobrimento”, se explica através da sua própria trajetória. A forma
como a história do bairro se desenvolveu favorece a construção, e consolidação, da sua
paisagem na constante presença imagética que vemos hoje. A desconstrução desse retrato, aqui
realizada, é indispensável na busca pela compreensão do significado que o mesmo possui.
Entende-se que o “aparecimento” de tais marcos nos domínios da Ponta Verde serve como um
ponto de partida crucial para a sua descoberta, e também funciona como instrumento propulsor
da atual excessiva ocupação da região litorânea da cidade. Analisando por esta perspectiva, há
de se achar curioso o fato de ter sido a natureza, pelos chamados do Gogó da Ema, quem iniciou
esse “avanço” na cidade e, consequentemente, sua reconstrução imagética. Mesmo quando o
marco que se destacava no local era a singularidade edificada do “Alagoinhas”, havia uma
interação charmosa com as águas do mar ali, quase como se a natureza permitisse que a obra

1409
humana a fizesse companhia, abrilhantando juntas aquela imagem poética que estava se
firmando. E, em todo momento, a peculiaridade natural da geografia do local se fez presente. A
ponta de terra sempre esteve ali, permitindo se revelar aos poucos, administrando de forma
paciente a paisagem que se formava e usando seu “poder de atração” para trazer a cidade para
aquele terreno.
Não há, portanto, como contar a história que nos leva a formação da Maceió atual sem trilhar
pelos caminhos da construção da imagem do bairro da Ponta Verde, sua importância é evidente.
É dentro dessa narrativa que os marcos construtores, aqui dissecados, concluem sua função.
Mesmo “silenciados” em sua presença física – seja por ações invasivas de empresas petroleiras,
interesses econômicos ou descuidos administrativos –, eles continuam espalhando suas “vozes”
pela cidade através da constante lembrança da população sobre suas histórias e, sobretudo,
suas imagens. E, se hoje, a identidade de Maceió está vinculada à praias e belezas naturais, como
Lúcio Costa (1995) havia previsto em seu olhar anterior, parece razoável que seja esse sedutor
retrato, desse icônico relicário, o cartão postal principal dessa “nova” cidade.

5 – Referências
ALMEIDA, Luísa Estanislau Soares de. Sobre Ruína e Fotografias: imersões em torno do Alagoinhas.
Maceio. Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) – Universidade Federal de Alagoas. Maceió, 2014.

BRANDÃO, Moreno. Vade-meccum do Turista Em Alagoas. Maceió: Imprensa Oficial Graciliano Ramos,
2013.

CAMPELLO, Maria de Fátima de Mello Barreto. A Construção da Imagem da Maceió Republicana nos
Cartões Postais Pioneiros. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2009.

COSTA, Lúcio, Registros de uma Vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995.

DANTAS, Pedrianne Barbosa de Souza. Destino da Ilha Sob a Mira do Éden: Fernando de Noronha no
percurso do tempo. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Alagoas. Maceió, 2009.

JUNIOR, Felix L. Maceió de outrora. Maceió: CEPAL - Companhia de Edição, Impressão e Publicação de
Alagoas, 2014.

MONTOYA URIARTE, U. “Olhar a cidade: Contribuições para a etnografia dos espaços urbanos”. Ponto
Urbe. São Paulo: NAU, Vol. 13, N. 13, pp. 1-15. Disponível em: <http:// pontourbe.revues.org/774>.
Acesso em: 11 mar. 2021.

PEIXOTO, Igor Sousa. Memórias sobre um cartão postal: um estudo sobre a formação da imagem do
bairro da Ponta Verde. Trabalho de conclusão de curso (graduação) – Universidade Federal de Alagoas.
Maceió, 2016.

1410
VAINER, Carlos B. Pátria, empresa e mercadoria. Notas sobre a estratégia discursiva do planejamento
estratégico urbano. In: ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. A cidade do pensamento único:
desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2007, pp. 75-105.

SILVA, Maria Angélica da. Arquitetura Moderna: A Atitude Alagoana. Maceió: Imprensa Oficial
Graciliano Ramos, 1991.

ZACARIAS, P. R. V. Verticalização e legislação urbanística: Estudo de caso para o bairro da Ponta Verde.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Alagoas. Maceió, 2004.

1411
A FORÇA DA CULTURA POPULAR E A VALORIZAÇÃO DA IDENTIDADE
CULTURAL NO VIVENCIAR O TERRITÓRIO COM AS CRIANÇAS
NóCego - Outros silêncios.

Jeane Costa Amaral


Doutora em Educação; Universidade Federal de Alagoas; jeane.amaral@cedu.ufal.br

Lenira Haddad
Pós-Doutora em Psicologia social; Universidade Federal de Alagoas;
lenira.haddad@cedu.ufal.br

Maria Assunção Folque


Doutora em Educação; Universidade de Évora; mafm@uevora.pt

O artigo apresenta um recorte de uma pesquisa de doutorado que buscou compreender as


dimensões teóricas e práticas que compõem a relação criança, a cidade e o patrimônio no
âmbito da educação infantil e abrangeu duas cidades históricas: Évora, PT e Penedo, Alagoas.
Foca na pesquisa colaborativa realizada em Penedo, envolvendo o acompanhamento das
crianças de duas escolas municipais em suas saídas às ruas, a partir de um plano realizado em
conjunto com a professora e a pesquisadora. Quatro episódios que dimensionam a força da
cultura local são descritos, considerados esteio para a participação, significação e/ou
ressignificação do patrimônio cultural pelas crianças. A distância que separa os saberes e fazeres
da cultura local da cultura escolar constitui-se um silenciamento a ser enfrentado.
Palavras-chave: Educação Infantil; cidade; infância; patrimônio.
The article presents an excerpt from a doctoral research that sought to understand the
theoretical and practical dimensions that make up the relationship between the child, the city
and the heritage in the context of early childhood education (ECE) and covered two historic cities:
Évora, PT and Penedo, Alagoas. It focuses on the collaborative research carried out in Penedo,
involving the children from two municipal schools on their outings in the streets, based on a plan
carried out jointly with the ECE teacher and the researcher. Four episodes highlight the strength
of local culture are described, considered the mainstay for the participation, significance and /
or re-signification of cultural heritage by children. The distance that separates the knowledge
and actions of the local culture from the school culture is a silence to be faced.
Keywords: Early Childhood Education; City; childhood; patrimony.

1412
1 – Introdução
O presente artigo apresenta os resultados parciais de uma pesquisa de doutorado intitulada A
Criança, a cidade e o Patrimônio no âmbito da educação infantil: identidade, pertencimento e
participação (AMARAL, 2021), defendida na Universidade Federal de Alagoas em 2020. A
pesquisa foi desenvolvida em duas cidades de relevantes patrimônios culturais, Évora, Portugal
e Penedo, Alagoas, Brasil e buscou compreender as dimensões teóricas e práticas que compõem
uma proposta que relaciona Criança, Cidade e Patrimônio, no âmbito da Educação Infantil
(CCP_EI). O estudo se insere em um Projeto de Pesquisa e Extensão: A criança, a cidade e o
patrimônio: diálogos entre os saberes e fazeres da comunidade penedense e eborense que tem
como campo de investigação e ação duas cidades históricas Évora, Portugal e Penedo, Alagoas,
Brasil (HADDAD et al.).
As aproximações ao objeto de estudo se deram na imersão nessas duas cidades. A aproximação
em Évora, Portugal, possibilitou conhecer e vivenciar experiências já existentes, no que tange à
relação criança e cidade no âmbito da educação infantil, a partir de iniciativas que envolvem a
Câmara Municipal, a Universidade de Évora e instituições de educação infantil. A aproximação
em Penedo, Alagoas, abarcou uma pesquisa colaborativa com uma professora do município e
envolveu o acompanhamento das crianças de 5 e 6 anos de duas escolas municipais em suas
saídas às ruas da cidade, a partir de um plano realizado em conjunto com a pesquisadora.
O estudo procurou responder à seguinte questão: como a educação infantil pode contribuir na
construção da ideia de pertencimento, favorecendo a identidade cultural e a participação no
território onde se vive?
Por meio da análise das experiências vividas nas aproximações nas duas cidades foram
elencadas oito dimensões que compõem uma proposta na relação CCP_EI. São elas: o papel das
instituições e dos potenciais atores envolvidos na relação CCP_EI; a relação das crianças com a
arquitetura da cidade e os espaços culturais; a participação e a consequente visibilidade das
crianças nos espaços públicos; a força da cultura popular e a valorização da cultura local; e as
imensas descobertas e possibilidades que as saídas nas/pelas cidades proporcionam às crianças,
em diálogo com seus pares e parceiros adultos no âmbito da educação infantil. Os resultados
apontaram que habitar a cidade por meio de experiências ricas de participação e ocupação
contribuem para a significação e/ou ressignificação do patrimônio cultural pelas crianças e,
consequentemente, a ampliação da sua identidade cultural e pertencimento local.
Neste artigo, trataremos de uma das dimensões que se destacou nas nossas saídas com as
crianças nas ruas cidade de Penedo, a força da cultura popular e a valorização da cultura local,

1413
como esteio para a participação, significação e/ou ressignificação do patrimônio cultural pelas
crianças.
O artigo está dividido em três momentos. O primeiro refere-se à introdução, o segundo aborda
o conceito de patrimônio cultural a partir da constituição de 1998 e a importância da
ressignificação desse conceito no espaço da educação infantil e o terceiro apresenta o recorte
da pesquisa, a partir dequatro encontros/episódios que potencializaram e revelaram a
percepção das crianças a respeito do patrimônio cultural do seu território.

2 – Patrimônio, território e educação infantil


Para o geógrafo Milton Santos (2007), a história do homem se realiza plenamente a partir das
manifestações existenciais no seu território, no seu lugar de origem. Segundo Nogueira e Filho
(2019), se faz necessário pensar os silêncios e ocultamentos, assim como o que deve ser
protegido, valorizado, dentro do que se considera patrimônio que sempre esteve presente, mas
que não era alçado como patrimônio a ser valorizado.
O conceito tradicionalmente difundido de patrimônio muitas vezes nos remete a bens materiais
tangíveis: edifícios, palácios, monumentos, obras de arte, enfim, algo palpável, visível e de
grande “vulto” e destaque histórico que nos foi deixado de herança. Nogueira e Filho (2019, p.
6) chamam atenção para o sentido etimológico da palavra patrimônio:
[...] advém de patrimonium, uma junção de “patri”, termo designador de
“pai”, com “monium”, que exprime “recebido”, para referir-se à “herança”.
Desde a noção mais antiga que manifesta o desejo de transmitir os bens da
família, até a noção mais contemporânea, que desenvolve a ideia de um
patrimônio a ser transmitido para as gerações futuras, nota-se como o
conceito é uma construção social.

Considerando essa perspectiva, patrimônio é uma herança que será transmitida pelas gerações,
pelo desejo de perpetuar a história, de garantir que os ensinamentos e as tradições do passado
se eternizem. Dessa maneira, podemos pensar que não existe apenas herança no campo do
tangível, mas do intangível; que todas as boas ou más memórias, vivências, práticas culturais,
saberes e fazeres também podem ser transmitidos e considerados um patrimônio.
O francês Hugues de Varine Bohan (apud DUARTE, 2019, p. 20) faz uma análise abrangente
acerca do patrimônio, apresentando-o em três categorias e definições: “[...] os elementos
pertencentes ao meio ambiente, que tornam o local viável para habitar; os saberes e fazeres
das comunidades que habitam esse meio ambiente; e os objetos construídos pela mão do
homem, desde uma colher até as edificações mais sofisticadas”.

1414
Nogueira e Filho (2019) destacam alguns momentos processuais que contribuíram para a
ampliação desse conceito no Brasil: 1) momento em que se privilegiaram o patrimônio material
e as memórias luso-coloniais até a década de 60; 2) incorporação do conceito de bem natural
para o patrimônio com a criação do Centro Nacional de Referência Cultural, em 1975; e 3)
reconhecimento e institucionalização das diferenças e do direito à memória da cidadania,
preconizadas no artigo n.º 216 da Constituição de 1988. O Patrimônio Cultural brasileiro é assim
definido no referido artigo (BRASIL, 1988):
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores
de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados
às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
§ 1º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e
protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários,
registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de
acautelamento e preservação.

Nesse elenco de patrimônios materiais, imateriais, arqueológicos, naturais etc., constantes


desse artigo da Constituição, pode-se visualizar a cidade como um lugar que,
independentemente de ser considerada um patrimônio instituído por algum órgão de proteção
patrimonial, se constitui num lugar de memória e de história a ser explorado por seus cidadãos
e ressignificado por eles.
Pereira (2016, p. 48), ao tratar das relações entre a experiência da infância e a cultura, afirma
que “a cultura é ao mesmo tempo o mundo que se apresenta para nós e a forma como esse
mundo nos diz quem somos nós”. Ampliar a presença e a participação da criança em todos os
espaços da cidade é também ampliar suas possibilidades de exploração desse mundo que se
apresenta.
Promover, junto às crianças, a interação com o entorno, valorizando as manifestações culturais
e promovendo a integração intrageracional em espaços públicos está implicado em um dos
artigos das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, (BRASIL, 2009)

Art. 3.º O currículo da Educação Infantil é concebido como um conjunto de


práticas que buscam articular as experiências e os saberes das crianças com
os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico,

1415
ambiental, científico e tecnológico, de modo a promover o desenvolvimento
integral de crianças de 0 a 5 anos de idade.

A partir dessa premissa trazida pelas DCNEI, oportunizar às diferentes infâncias experiências de
ocupação e participação na cidade, contribui para a compreensão, no âmbito da educação
infantil, de como é possível proporcionar o encontro entre a cidade e o patrimônio cultural, em
seus diferentes aspectos, com a cultura escolar, abrindo trilhas, em diálogo com diversos atores,
em busca de sentidos, ajudando na participação da criança com toda a sua “positividade”
(ABRAMOVICK, 2011), na construção da obra da cidade e na preservação e consequente
renovação do patrimônio cultural do seu território. Infelizmente, temos assistido ao
“afastamento de toda a instituição escolar da vida e da cultura, criando uma cultura própria que,
como nos disse Niza (1996), está em muitos aspetos totalmente afastada da herança social e
cultural e das atividades autênticas em que nos envolvemos na vida” (FOLQUE, 2014, p. 958).
O Estado de Alagoas, segundo o mapeamento do Patrimônio Cultural de Alagoas pelo IPHAN1,
embora seja o segundo menor estado do Brasil, detém “um rico patrimônio imaterial derivado
das suas vertentes étnicas: colonizadores europeus, indígenas e negros vindos da África”. Bumba
meu boi, Guerreiro, Coco de Roda, Pastoril, Fandango, Cavalhada, Chegança, Maracatu, Reisado,
dentre outros, são exemplos das 30 manifestações compondo o seu folclore.
Penedo, como um dos municípios mais antigos do estado, para além do patrimônio histórico,
traduzido no arcabouço arquitetônico ainda conservado, também possui uma vasta riqueza, no
que diz respeito ao patrimônio cultural. No Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC)
do IPHAN (IPHAN, 2015), do município de Penedo, foram identificadas as seguintes referências
culturais: cinco celebrações - Festa do Bom Jesus dos Navegantes, Festa da Padroeira Nossa
Senhora do Rosário, Festa de Santo Antônio, Lavagem do Beco e Corrida de Embarcações; duas
edificações - Casa de Axé do Pai de Santo Bobô e Casa de Farinha de Manoel Vieira (povoado
Tabuleiro dos Negros); cinco formas de expressão – Guerreiro, Pastoril, Coco de Roda, Banda de
Pífano e Lenda do túnel do Convento Nossa Senhora dos Anjos; dois lugares - Feira Livre e Várzea
da Marituba; e treze ofícios - Modos e saberes da pesca, Caça de jacaré, Modo de fazer culinário,
Moqueca de jacaré, Macasada e quebra-queixo, Modos e práticas da rizicultura, Artesanato com
palha de Ouricuri, Ofício de santeiro, Modo de fazer escultura em pedra, Artesanato de
miniatura em madeira, Modo de fazer bonecos de carnaval, Práticas e modos de construir em
taipa e Ofício de tirador de coco.

1
Disponível em:<http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/959/ > Acesso em 03/10/2020.

1416
Diante dessa diversidade de saberes e fazeres, que certamente há de ser muito mais, ainda
invisibilizados ou silenciados, em sua maioria oriundos de origem africana e indígena e que
resistem, ainda hoje, no município de Penedo, cabe perguntar: Esses saberes e fazeres estão
sendo acessados como patrimônios culturais nos currículos escolares, como componentes
importantes, valorizados como elementos que interligam gerações, conectam memórias e
ressignificam práticas sociais locais?

3 – Manifestações potencializadoras da cultura popular vivenciadas pelas crianças a partir dos


seus territórios
Conforme mencionado anteriormente, este artigo foca em uma etapa da pesquisa maior
referente à pesquisa colaborativa realizada com uma professora da rede municipal de Penedo,
envolvendo o acompanhamento das crianças de duas escolas municipais em suas saídas às ruas,
a partir de um plano realizado em conjunto com a pesquisadora. Nesse percurso, de cunho
etnográfico, fez-se uso de observação e participação no cotidiano das cidades e da comunidade
local; coletas de depoimentos e relatórios escritos, além de registros fotográficos e
videogravados.
Em diagnóstico realizado na cidade de Penedo antes da entrada em campo com 190
profissionais da educação infantil (Coordenadores, professores e auxiliares), por meio de um
questionário com 08 questões relacionadas a temática, criança, cidade e patrimônio, percebeu-
se que a aproximação das crianças dos saberes e fazeres locais via instituição ainda é incipiente.
Apenas 40% dos profissionais da educação infantil que responderam ao questionário afirmaram
já terem realizado algum trabalho com as crianças voltado para o patrimônio imaterial. E apenas
3,8% dos respondentes indicaram estabelecer algum vínculo com grupos culturais da cidade.
Para além desse diagnóstico foi realizada uma pesquisa de campo em colaboração com a
professora partícipe da pesquisa em Penedo através do desenvolvimento de um projeto de
correspondência entre as crianças e a professora de Penedo com um grupo de crianças de 3 a 6
anos e professoras de Évora, com a temática a minha cidade o que potencializou saídas das
crianças de Penedo na e pela cidade proporcionando vários encontros com todo o patrimônio
cultural de maneira interacional e genuína. Os acontecimentos e narrativas oriundos dessas
saídas foram analisados a partir das nossas apreensões dos sentidos e significados atribuídos
pelos partícipes: crianças e professora.

1417
Apresentaremos e analisaremos quatro momentos/episódios que foram vivenciados com as
crianças e professora, no acompanhamento dos percursos realizado com as crianças na cidade
de Penedo.
O primeiro encontro decorreu da nossa ida à Feira Livre2 da cidade. Nos deparamos com toda a
singularidade presente naquele espaço, no qual se misturam diversos tipos de mercadorias,
pessoas, trocas, saberes. As crianças apreciaram a barraca de artesanato de palha tradicional de
Dona Neide da Banana, puderam fazer compras de frutas, descobrir uma fruta desconhecida por
alguns (a graviola) ou que nunca tiveram a oportunidade de experimentar (o morango). Circular
livremente pela feira no meio das barracas com um grupo de crianças pequenas chamou a
atenção dos feirantes e transeuntes, que questionavam de que escola eram, porque estavam na
feira, interagiam oferecendo descontos e demostrando um estranhamento por perceberem
aqueles corpos que se encontram invisibilizados enquanto crianças institucionalizadas nos
espaços da educação infantil.
O segundo encontro ocorreu em uma saída a pé para uma loja de artesanato da cidade. No
caminho encontramo-nos fortuitamente com um músico amador cantando na porta da sua casa;
o som da cantoria advinda do violão chamou a atenção das crianças que pediram para parar.
Paramos e perguntamos se poderíamos sentar para ouvir à música; ele disse que sim, e
continuou a tocar a música que estava tocando. Logo em seguida solicitou que as crianças
cantassem algumas músicas do repertório delas para ele acompanhar. Elas cantaram algumas
músicas que costumavam cantar em sala: como “O sapo não lava o pé”, “Borboletinha”, dentre
outras. Ficamos um bom tempo cantarolando na calçada com o músico e depois seguimos o
nosso caminho. Foi um momento ímpar, genuíno e culturalmente significativo, por representar
um hábito cultural dos moradores de ficarem sentados à porta de suas casas, observando o
movimento das ruas.

2
A Feira Livre estabelecida no Centro Histórico do Penedo em Alagoas revalida um modo de expressão
consolidado pela historicidade da feira no lugar, com registros que remontam suas primeiras
manifestações ao início do século XIX (MORAES, 2013).

1418
Figura 1 – Crianças sentadas na calçada cantando com um músico popular

Fonte: Acervo das autoras (2019).

No terceiro encontro as crianças se depararam com a música e o teatro de uma vez só, por meio
de uma experiência imprevista, não programada. Ocorreu quando da nossa saída aos Correios
para enviarmos uma carta direcionada às crianças de Portugal. Em nossos planos estava prevista
a apreciação da exposição de fotos de animais da Mata Atlântica, no hall de entrada do Teatro
7 de setembro, do outro lado da calçada dos Correios. As crianças apreciavam as fotos, quando
um grupo começou a perceber uma movimentação que vinha de dentro da área interna do
teatro e, então, começaram a se amontoar debruçados na escadaria que dava entrada ao pórtico
do grande salão do teatro. No palco, estava ocorrendo o ensaio de uma peça teatral. Ficamos
ali abaixados, ouvindo os gracejos que saiam do palco, quando veio em nossa direção o diretor
do espetáculo que, gentilmente, perguntou se gostaríamos de adentrar o teatro e acompanhar
o ensaio. As crianças, de prontidão, aceitaram o convite e assim fomos apreciar o ensaio do
espetáculo. Tratava-se de uma peça teatral denominada O Território é um Livro, dirigida por Alê
Santos, diretor da Companhia de Teatro Lampejo, um dos grupos de teatro amador da cidade
de Penedo. O espetáculo retrata a feira livre Penedense, em sua essência, e homenageia Neide
da Banana, que é uma das feirantes mais antigas da região. O artista resumiu o espetáculo em
poucas palavras para as crianças, que naquela altura já estavam devidamente acomodadas nas
poltronas do teatro. Elas acompanharam absortas o ensaio e se empolgaram visivelmente
quando, uma das personagens entoou, ao som de um pandeiro, uma música em ritmo de Coco
de Roda, que trazia no refrão o chamamento que se faz na feira livre: “Quem quer comprar,
quem quer comprar!” Um refrão bem ritmado e que foi acompanhado pelas palmas das

1419
crianças. Ao término do ensaio, que se tratou apenas de um recorte para a apreciação, em
primeira mão, das crianças convidadas, agradecemos e seguimos caminho. Para a nossa
surpresa, a música ao ritmo de Coco de Roda foi cantada pelas crianças, espontaneamente, por
todo caminho no retorno à escola. Além do refrão da música ter sido cantado durante todo o
trajeto do retorno da escola, no compasso do coco de roda, a partir daquele dia tornou-se a
música mais cantada pelas crianças, nas rodas iniciais de contação de história, na fila do lanche,
em momentos de espera na sala, nas nossas saídas às ruas, sendo o ritmo batucado nas carteiras
da sala em vários momentos. Foi um momento ímpar, tanto pelo conteúdo do espetáculo, que
parecia traduzir nossa experiência recente na feira livre com as crianças, como também
contemplava os elementos referentes à importância da tradição, da cultura popular e da
vivência na cidade como fundantes na formação da identidade cultural e do pertencimento
local.

Figura 2 – Crianças observando o ensaio; Crianças adentrando o teatro; Diretor do espetáculo


conversando com as crianças;

Fonte: Acervo das autoras (2019).

O último momento aqui relatado denota a potência e necessidade das crianças de externarem
suas vivencias e suas histórias e pode ser resumido em uma das frases contidas no espetáculo
descrito acima: “Cada canto tem uma história e alguém para nos contar”.
Ao realizarmos uma roda de conversa com as crianças a respeito da resposta a enviar para as
crianças de Portugal, sobre o que tinha na cidade deles, as crianças voltaram-se para os lugares
do respectivo povoado de onde eram oriundas e os espaços da escola que queriam mostrar.
Sugeriram mostrar o campinho, onde tinha a jaqueira enorme e eles gostavam de estar; a horta
da escola; a frente e o muro da escola. Fora do âmbito escolar, sugeriram o balneário Santa
Amélia, ao qual já tínhamos visitado; a barragem da Usina Paisa, que fica no povoado vizinho de
Santa Amélia; e, por fim, Carlos Gabriel (6 anos) sugeriu irmos à Casa de Farinha. Foi retrucado
pelo Jhony (6 anos), que nesse momento fez o seguinte comentário: Não dá para ir lá não,
agora. Tá sem vida! A professora, percebendo o interesse das duas crianças, pergunta às demais

1420
se elas também gostariam de mostrar a Casa de Farinha para as crianças portuguesas; algumas
crianças acenaram positivamente. Carlos Gabriel disse: Vamos, sim! A professora, retomando a
fala de Jhony, disse que só poderíamos ir quando estivesse com vida, ou seja, funcionando, e
teríamos que solicitar o transporte à coordenadora da escola. Sugeriu que fôssemos em grupo
pedir o transporte à coordenadora, na Secretaria da escola. As crianças concordaram e Gabriel
se ofereceu para fazer o pedido. Já na Secretaria, transcorreu um longo diálogo que expressa
demostra seu conhecimento Gabriel sobre como fazer farinha de mandioca, como podemos
verificar a seguir:
Gabriel: Aí tem umas coisas lá, tem dois fogão, tem um fogão assim (fazendo
o gesto circular). E outro assim! (outro gesto circular).
Professora: E esse fogão faz o quê?
Jhony: Faz farinha.
Professora: Faz farinha nesse fogão?
Gabriel: Não, é assim...
Eva: O que cozinha para fazer a farinha?
Gabriel: Nós pega, nós pega mandioca, bota no coisa e vai fazendo assim, e a
mandioca vai descendo (começa a mexer o corpo para mostrar como amassa
a mandioca), depois nós pega, bota no caixão, aí nós vai fazendo a farinha,
vai botando no fogo, vai fazendo assim (fazendo gestos de quem está
mexendo uma panela), aí vai coisando.
Professora: E quando é que sabe que a farinha está pronta?
Gabriel ficou pensativo.
Professora: Hein, Alan, quando é que sabe que a farinha está pronta?
Allan: Não sei!
Professora: Quem é que sabe?
Sofia: Tira.
Professora: Tirar é provar, né?
Sofia balançou a cabeça que sim.
Allan: Tá muito quente.
Eva: Ah, gente, já estou curiosa!
Professora: E o cheiro é bom?
Gabriel: Não, é assim! Pega a mandioca, bota no saco, bota no coisa, baixa o
pau e começa a coisar (começou a remexer o corpo todo para demostrar
como mexia a mandioca).
Crianças: (Risos).
Professora: E vai mexendo (imitando o gesto do Gabriel).
Sofia: E começa a bater...
Gabriel: Não! É assim não... (Fez o gesto de apertar) E aí vai coisando
(mexendo o corpo novamente).
Eva: Ah, estou adorando!
Gabriel: Pega um coisa de um saco e vai coisando, tira de outro e bota no
outro (fazendo os gestos), aí chega desce o leite, aí tira, bota no coisa, aí tira
do saco, bota dentro, raspa, aí quando o leite sair, pega e bota no coisa, aí
bota mais outro saco, coisa, aí consegue descer, aí faz a farinha.
[...] (DIÁRIO DE CAMPO 05 – CT, 22/11/2019 – Transcrição de vídeo).

O episódio nos mostra a potência da cultura popular em relação ao modo de fazer, apresentado
na narrativa de Carlos Gabriel (6 anos), que busca na memória e externiza com os movimentos
do corpo, o modo de manipulação da mandioca e como fazer a farinha e o bolo enrolado na
casca da bananeira. Enquanto narrava, os colegas, que também compartilhavam desse saber, o

1421
apoiavam ou discordavam dele em algum ponto. Esse apoio também se manifestou na
interlocução da professora, instigando-o a falar mais e, como também era conhecedora desse
modo de fazer, contribuía com conectivos para ajudar aflorar a memória trazida por Gabriel. Por
outro lado, a escuta atenta da coordenadora pedagógica também ajudou Gabriel a verbalizar e
expressar o seu desejo legítimo de saída para visitar a Casa de Farinha.

4 – Conclusão
Conhecer as manifestações que traduzem a nossa existência, nossos modos de vida, de
subsistência e, mais do que isso, saber compartilhá-las é uma forma de garantir que nossa
identidade cultural se fortaleça e que nosso espaço de origem possa ser valorizado. Abrir espaço
na escola, desde a infância, escutando as histórias e memórias das crianças contribui para
fortalecer os saberes próprios de seus territórios próprios, como também suas identidades
culturais.
De maneira geral, os momentos/episódios nos mostram que para além da valorização do
patrimônio cultural, vivenciar a cidade e seus territórios, no âmbito da educação infantil,
depreende no investimento em dois elementos fundamentais. O primeiro diz respeito à força
da vivência de experiências reais que se reflete na compreensão de que estar nas ruas com as
crianças se constitui como uma perspectiva de interação e interlocução com a cultura presente
em qualquer território. O segundo é a escuta das crianças e seus interesses, considerando as
crianças como cidadãos que têm direitos e podem opinar sobre suas infâncias. Oportunizar que
as crianças vivam suas infâncias, com todas as possiblidades, constitui-se em uma perspectiva
intrínseca à educação infantil.
Os momentos/episódios demonstram que os interesses e percepções das crianças estão
atreladas às suas vivências reais e, portanto, perpassam pelas manifestações culturais que são
expressadas e vividas nos seus territórios. Dessa maneira, a cultura latente percebida e que faz
parte do “espaço banal” ou da “horizontalidade” (SANTOS, 1998) não pode ser silenciada nas
práticas pedagógicas da educação infantil. As culturas locais devem ser valorizadas e inseridas
como patrimônios a serem valorizados e ressignificados.

Referências
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Lúcia Goulart de; FINCO, Daniela. (Org.) Sociologia da infância no Brasil. Campinas: Autores Associados,
2011.

1422
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Educação, Programa de Pós Graduação em Educação, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2021.

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FOLQUE, Maria Assunção. “Reconstruindo a cultura em cooperação mediado pela pedagogia para a
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Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo: Dinâmicas do Espaço Habitado) – Faculdade de
Arquitetura, Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal de
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NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos; RAMOS FILHO, Vagner Silva. Afinal, o que é patrimônio? Conceitos
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1423
A PAISAGEM SONORA DE PORTO ALEGRE: A Esquina Democrática
Nó Cego - Outros silêncios.

Volnei Kuberneke
Mestrando em Arquitetura e Urbanismo, PPGAU UniRitter, arq.volneivkm@gmail.com

Celma Paese
Doutora em Arquitetura; UNIRITTER/PROPAR-UFRGS, celmapaese@gmail.com

Gabriela Ferreira Mariano


Mestra em Arquitetura e Urbanismo; PPGAU UniRitter/Mackenzie; gbmariano@gmail.com

O presente trabalho tem como objetivo estudar a paisagem sonora da Esquina Democrática,
situada em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. O espaço é famoso por ser ponto de
manifestações na cidade. O objetivo norteador desta pesquisa é o estudo das influências da
arquitetura do espaço estudado na sua paisagem sonora em toda a sua dimensão polifônica,
por meio da realização da cartografia sonora, que se dará por mapas confeccionados com dados
coletados in loco. Entendemos a sonoridade da cidade não somente como um ruído a ser
combatido, mas, sim como uma característica única de cada local, assim como seu clima ou
topografia por exemplo. Mesmo não sendo um assunto novo nos estudos urbanos, a produção
acadêmica sobre sonoridade ainda é modesta, assim como a sua relevância nos projetos
arquitetônicos e urbanísticos é pouco levada em consideração.

Palavras-chave: Paisagem sonora; som e cidade; sonoridade; Cartografia Sonora, Porto Alegre.

The present work aims to study the soundscape of the Esquina Democrática (Democratic Corner)
space, located in the city center of Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil. The space is famous
for being a point of demonstrations in the city. The guiding objective of this research is the study
of the influences of the architecture of the studied space in its sonic landscape in its all-polyphonic
dimension, through the realization of a sound cartography, which will be done by maps made
with data collected in loco. We understand the sound of the city not only as a noise to be
combated but, as a unique characteristic of each location, as well as its climate or topography
for example. Even though it is not a new subject in urban studies, academic production on sound
is still modest, as well as its relevance in architectural and urban projects is little taken into
consideration.

Keywords: Soundscape; sound and the city; sonority; sound cartography, Porto Alegre.

1424
1 – Introdução
Toda experiência comovente com o espaço é multissensorial, seja ela em relação a um objeto
ou no mergulho na arquitetura da cidade. Na experiência urbana, as relações sensoriais se
estabelecem quando os sentidos acariciam limites espaciais, criando sensações corpóreas de
conexão e solidariedade com a vivência do cotidiano. As percepções são traduzidas em
diferentes gestos, palavras e registros. Elas acontecem pela degustação da experiência corporal,
que relaciona os sentidos com a memória e os sucessivos acontecimentos. Em um jogo de
refinamento do sentir, ‘descobrem’ e acolhem os espaços para além do olhar, cheirando com a
pele; olhando com os ouvidos; escutando com os olhos, degustando com o faro. As experiências
nos levam a acolher espaços desenhando lugares em situações de encontro, que se
transformam em lembranças e lendas urbanas, incitando o imaginário individual e coletivo.
Esse trabalho parte da premissa que é possível estudar o lugar a partir de sua sonoridade. A
humanidade sempre modificou a paisagem para seu uso, criando inicialmente assentamentos e
aglomerações, embriões de futuras aldeias e cidades. Em nível de sonoridade, as modificações
da paisagem natural percebidas pelos sentidos, começaram pelos gritos de vitória dos primeiros
caçadores, que se confundiam com os gemidos das caças. Posteriormente, as ferramentas dos
ferreiros e artesões, começaram a fazer companhia ao canto dos pássaros, penetrando nos
bosques. Esses sons primitivos abriram caminhos para outros que a natureza não produzia, que
hoje compõem a paisagem sonora do cotidiano da urbe (KUBERNEKE, 2020). Enquanto a
sonoridade da paisagem muda continuamente, as pessoas percebem essas mudanças,
interagindo com seus sentidos.
A arquitetura potencializa a experiência existencial de pertencer ao mundo, que transmuta para
a sensação de pertencimento a um coletivo, quando ‘sensorializamos’ a cidade dos ‘outros’, que
se tornam presentes no nosso cotidiano através dos sons que produzem. Para o arquiteto
finlandês Juhani Pallasmaa, os olhos colaboram com o corpo e os demais sentidos em
aproximações que começam com a análise e o controle do olhar que investiga, enquanto aos
poucos, a experiência tátil avança: a percepção do mundo passa a ser uma experiência
existencial contínua (Pallasmaa, 2011, p.38). Enquanto o corpo se entrega à vivência da cidade,
passamos a sentir a paisagem sonora como parte da experiência.
O som, conceitualmente, refere-se a toda a vibração ou onda mecânica gerada por uma
vibração, que seja possível de ser detectada pelo ouvido humano. A partir de uma fonte sonora,
o som se propaga em todas as direções até chegar a um receptor (CARVALHO, 2010, p.25). Já o
ruído, segundo Carvalho (2010, p.41), se refere a qualquer tipo de som desagradável, mesmo

1425
que a conceituação do mesmo seja subjetiva. Fisicamente, não há distinção entre som e ruído.
Entretanto, o som refere-se a uma percepção sensorial evocada por processos fisiológicos no
cérebro a partir do sistema auditivo (WHO, 1999).
Deve se considerar ainda que, um espaço se torna único por singularidades nas características e
nas variáveis que se apresentam em sua composição sonora. Desta forma, o elemento norteador
para compreender o objeto de estudo será o som, a partir da identificação e da observação da
paisagem sonora da Esquina Democrática para realização de uma cartografia sonora.

2 – Objeto de Estudo
O objeto de análise deste estudo, como referido anteriormente, será a Esquina Democrática,
situada na cidade de Porto Alegre – Rio Grande do Sul, o local foi considerado patrimônio
cultural e obteve seu tombamento efetivado em setembro de 1997 (PMPA,). É um local
comumente usado para manifestações dos diversos tipos, principalmente de movimentos
políticos. É importante ponto do comércio formal e informal, motivo para um grande e contínuo
fluxo de pessoas.

Figura 01: Esquina Democrática vista de cima em dia de manifestação do aniversário do Golpe de 1964

Fonte: Acervo SUL21. Foto de Guilherme Santos

1426
Devido à pandemia do Sars-Cov19, o espaço está descaracterizado, visto que a cidade vive em
tempos de reclusão e momentos de Lockdown4.
Figura 02: Estátua Viva, uma das características do local.

Fonte: Acervo GZH. Foto de Félix Zucco

3 – Metodologia
O objetivo deste trabalho é a compreensão da paisagem sonora da Esquina Democrática, para
realização da descrição do fenômeno sonoro, para isso será realizado uma pesquisa exploratória
in loco por meio do passeio sonoro (soundwalk), onde os pesquisadores caminham pelo lugar
com intuito de fazer uma leitura do ambiente que estão inseridos não visualmente, mas
sonoramente (SCHAFER, 1997).
Entendendo os tempos de pandemia e para mitigar os riscos aos pesquisados, escolhemos um
dia da semana laboral na cidade Porto Alegre: quinta-feira, 18 de março de 2021, em torno das
16hs, horário em que a diversidade de apropriações espaciais coexiste com um intenso fluxo de
passantes.
Para os registros cartográficos in loco elegemos os seguintes dispositivos:
1 Mapa digital Google Street View para localização espacial e sonoramente durante a
errância;
2 Gravador profissional Sony para captação do som.

4
Lockdown é bloqueio total ou confinamento, é um protocolo de isolamento que geralmente impede o
movimento de pessoas ou cargas. Os lockdowns também podem ser usados para proteger pessoas ou,
por exemplo, um sistema de computação de uma ameaça ou outro evento externo

1427
Após a escuta atenta dos pesquisadores sobre o registro de áudio e a visita digital ao local, se
confeccionou mapas conceituais de influência, para a demonstração do entendimento de cada
pesquisador sobre o local com o foco na paisagem sonora. Os estudos apresentam mapas livres
dos moldes científicos, sinalizando caminhos poéticos para ler e representar diferentes modos
de sentir, ler e escrever a paisagem sonora da cidade.

4 – A Experiência /Resultados
A diversidade de expressões e representações nas cartografias representam os diferentes
olhares sobre o espaço explorado e sentido, abrindo novas possibilidades de entendimento do
modus vivendis daquele lugar. Portanto, o desafio aos paradigmas das representações dos
mapas convencionais está representado nas cartografias a seguir:
Por ser criada no contexto da pandemia. Optou-se por desenvolver esta cartografia por meio de
experiência através de recurso remoto. Foi então criada uma cartografia imagética-textual da
hospitalidade, que seguiu as seguintes instruções:
A partir dos dados coletados no local e disponibilizados via formato digital. Estes dados foram:
arquivo de áudio, mapa cartesiano apontando pontos da captação dos áudios.
Após situar-se no mapa cartesiano, utilizar-se do recurso do Google Street View, onde a
arquiteta-cartografa tomou fotografias digitais como referência, depois de ouvir repetidas vezes
o áudio do percurso. Definindo os sons e ruídos que deste itinerário que mais se destacavam,
pode-se então mapear cada ponto e apontar as características daquele local. A cartografia da
hospitalidade a seguir demonstra quais foram os pontos mais evidentes dessa cartografia
sonora:

1428
Figura 03: Cartografia Influencial Gabriela Mariano.

Cartografia influencial individuo 01. Fonte: autores (2021)

Na cartografia fica evidente a presença do ruído dos carros através do trânsito da cidade nas
extremidades do percurso, enquanto no interior do trajeto evento mais marcante é a presença
das vozes dos ambulantes, o “blá blá blá”. Essa rua, assim como seu ponto central já se declara,
é realmente uma Esquina Democrática: um lugar da cidade onde todos encontram seu lugar
(Figura 3).

Figura 04: Cartografia Influencial Volnei Kuberneke.

Cartografia influencia indivíduo 02. Fonte: autores (2021)

1429
Conforme já comentado, foi possível identificar uma forte intensidade sonoras nas
extremidades do percurso, ocasionando um mascaramento sonoro de alguns elementos nestes
locais, o que resulta em uma leitura não clara do ambiente. Nesses pontos, o elemento sonoro
claro é o som de locomoção de automóveis e buzinas. No meio do trajeto, onde não há grande
fluxo de automóveis, é possível de ouvir as vozes das pessoas que por ali passam, como os
feirantes de rua, e passantes. (Figura 4).
Entendemos que existem dois momentos destintos: um com uma fidelidade sonora perceptível
e de fácil entendimento e outra com uma ilegibilidade sonora (SCHAFER, 1997). Portanto, é
compreensível que os comerciantes de rua e as paradas para conversas estão no espaço mais
central, onde a paisagem sonora proporciona maior facilidade de comunicação.
Percebe-se, em muitos instantes, camadas de fundo de sons dos mais diversos, compondo um
fundo da paisagem: São sons vindos das ruas que cortam o local, do interior dos pequenos
comércios, das janelas abertas. Mesmo estando em uma época que se passa pela pandemia do
Sars-Cov2 (COVID19), verifica-se que a Esquina Democrática possui uma rica e plural paisagem
sonora.

4 - Conclusão
Após a análise e confecção dos mapas sensoriais, juntamente com os relatos dos arquitetos,
confirma-se a pluralidade dos acontecimentos sonoros da Esquina Democrática. Pretendemos
nos aprofundar no estudo do espaço descrito, pois é notório o potencial da sua paisagem
sonora. Enquanto aguardamos melhores condições sanitárias para propor-nos à mergulhos
mais ousados na sonoridade urbana, esperamos que o esboço apresentado cative a outros
pesquisadores para desbravarem o mundo sonoro nas suas diversas formas possíveis.

Referências
CARVALHO. Régio Piniago. Acústica Arquitetônica. Brasília. 2010;

GZH, Grupo Zero Hora. Disponível em https://gauchazh.clicrbs.com.br/porto-alegre/noticia/2017/09/a-


esquina-democratica-em-cinco-olhares-abraham-o-anjo-9901873.html Acessado em 20 de fev. 2021

KUBERNEKE, Volnei. Analise do nível de pressão sonora em postos de combustíveis em Porto Alegre.
Um estudo sobre a exposição ao ruído dos trabalhadores de postos de combustíveis. Monografia de
Especialização. Centro Universitário Leonardo da Vinci. UNIASSELVI. Indaial. 2020

PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele – a arquitetura e os sentidos. Porto Alegre: Bookman, 2011.

1430
PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE – PMPA. Memorial descritivo da Esquina Democrática –
Disponível em <
http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/smc/usu_doc/historico_esquina_democratica1.pdf >
Acessado em 20 de fev. 2021

SCHAFER, Murray. A afinação do mundo. 381. 1997. 2ª ed. São Paulo. Ed UNESP

SUL21. Disponível em https://www.sul21.com.br/areazero/2016/03/no-aniversario-do-golpe-de-64-ato-


pela-democracia-reune-milhares-em-porto-alegre/ Acessado em 10 de mar. 2021

WOLRD HEALTH ORGANIZATION, WHO. Guidelines for Community Noise. London. 1999

1431
A PERCEPÇÃO DA QUADRATURA NA LIDA COTIDIANA
Nó cego – outros nós

Marilene de Medeiros Aduque


Mestra em Filosofia; bacharel em Filosofia; graduanda em Filosofia Licenciatura; UFRN;
marilene.aduque@gmail.com.

Margarete de Medeiros Aduque


Mestranda em Filosofia (Bolsista – CAPES); bacharel em Filosofia; UFRN;
margarete_aduque@yahoo.com.br.

A perspectiva heideggeriana da habitação tem no habitar o traço fundamental humano e na


Quadratura o nó que propicia concretude à existência. Habita-se essencialmente guardando a
unidade constituída pelo nó que entrelaça terra, céu, divinos e mortais. Os mortais existem e
constroem morada sobre a terra, criam o mundo que habitam, pensam, relacionam-se com os
outros, com o espaço e com as coisas. Destarte, habitam o mundo e residem na paisagem que
elegem, evidenciam e convertem em lugar de convivência e de execução de atividades
cotidianas. Convivendo com os outros e executando tarefas, mostram a unidade. Intenta-se
investigar a percepção e guarda do nó da quadratura na lida cotidiana com as coisas, com a
paisagem habitada e com os outros.
Palavras-chave: Heidegger; Quadratura; lida cotidiana.

The Heideggerian perspective of inhabit has in dwelling the fundamental human trait and in
Geviert the knot that provides concreteness to existence. It inhabits essentially keeping the unity
constituted by the knot that intertwines earth, sky, divine and mortal. Mortals exist and build a
dwelling on the earth, they create the world they inhabit, they think, they relate to the others,
the space and the things. Thus, they inhabit the world and reside in the landscape they choose,
show and convert into a place for living and carrying out daily activities. Living with others and
performing tasks, they show unity. The intention is to investigate the perception and guard of
the Geviert knot in the daily dealings with things, with the inhabited landscape and with others.
Keywords: Heidegger; Geviert; Daily deals.

1432
1 – Heidegger e a habitação
À guisa de introdução, convencionou-se antes de tecer considerações respeito à percepção da
quadratura, explicitar sucintamente o pensamento heideggeriano relativo ao habitar. A visão
heideggeriana do habitar compreende o caráter ôntico e o ontológico da habitação, sobretudo,
evidenciando o seu caráter ontológico, asseverando a relevância do mesmo, bem como
defendendo a imprescindibilidade de seu reconhecimento. Em outras palavras, Heidegger nos
mostra que a habitação não se limita ao aspecto prático, o que significa o sentido ôntico do
habitar, ao qual estamos tão habituados a considerar. Podemos inferir não ser possível abarcar
a dimensão, a sua real envergadura, se somente for analisado o habitar a partir de técnicas
construtivas. Entretanto, isso também não quer dizer que pensarmos a habitação considerando
a construção de edificações e os planejamentos urbanísticos não seja importante.
Absolutamente. Heidegger (2012), atenta à praticidade e o conforto proporcionado pelas
edificações atuais e observa que possuir uma residência denota algo satisfatório e tranquilizador
em meio à crise habitacional. Todavia, o que o filósofo nos mostra é que a “crise habitacional
propriamente dita” é algo além da ausência de moradias suficientes para abrigar os habitantes
de um país devastado em consequência de uma guerra. Para Heidegger, a crise habitacional
trata-se de algo mais antigo que as guerras, a saber, o fato de que não se sabe mais habitar. Em
outras palavras, Heidegger defende que mostra-se urgente a necessidade de se reaprender a
habitar, do reconhecimento do habitar como o fundamental traço do ser-homem.
O pensamento heideggeriano relativo ao habitar nos mostra o habitar como traço fundamental
unicamente humano. O ser humano habita por ser capaz de habitar. Mas afirmar a capacidade
de habitar do homem não se trata de jogar com as palavras, antes, a ideia de habitação humana
não se fundamenta apenas nos escritos posteriores a 1940, senão que remontam à sua obra
magna escrita em 1927. Em Ser e Tempo, ao desenvolver sua analítica existencial, Heidegger
(2015), explica que o Dasein (ser-aí) é um ente existente como “ser-no-mundo”, um “ser-em” e
que é “junto a...”. O ser-aí existe, tem mundo, é construtor de mundo, ocupa-se com as coisas e
preocupa-se com outros seres-aí. Neste sentido, quando se pensa no homem, já de antemão, é
pensado no ente que tem seu habitar junto às coisas e com os outros. E o fato de o ser-aí existir
segundo tais modos revela que estes são os modos pelos quais ele habita o mundo.
A perspectiva heideggeriana respeito ao habitar tem como um de seus conceitos fundamentais
o Geviert, o qual é traduzido para a língua portuguesa como quadratura, quaternidade ou
quaterno. Em nosso texto, a tradução adotada é o termo “quadratura”:

1433
Unindo-se por si mesmo uns com os outros, céu e terra, mortais e imortais
pertencem, em conjunto, à simplicidade da quadratura de reunião. A seu
modo, cada um dos quatro reflete e espelha de volta a vigência essencial dos
outros. A seu modo, cada um reflete e espelha sua propriedade, dentro da
simplicidade dos quatro (HEIDEGGER, 2012, p. 156).

Como explicitado pelo filósofo, os quatro elementos vigoram em unidade que constitui a
simplicidade. Se um dos elementos é trazido ao pensamento, já de antemão se pensa os demais.
O homem, na condição de mortal, integra a quadratura. Desta feita, dos demais elementos não
nos apartamos, pois quando se pensa o homem, os demais elementos da quadratura são
trazidos a essa reflexão, assim como quando se pensa qualquer um dos demais elementos, os
outros são trazidos ao pensar e isso inclui os mortais. Heidegger (2012), nos lembra que, ainda
que estejamos voltados para nós mesmos, interiorizados, não estaremos apartados da
quadratura. Neste sentido, cabe ressaltar que o homem tem sua habitação sobre a terra, que
propicia a instauração de mundo, o surgimento e a permanência do homem e de todos os
demais entes. Porquanto, todos os entes têm origem telúrica. O humano tem origem telúrica,
habita sobre a terra e ao mesmo tempo sob o céu. E na sua condição de mortal recebe o aceno
das divindades.

2 – A Quadratura e a familiaridade
A simplicidade da quadratura guarda em si a sagração do mundo, considerando que a própria
quadratura constitui o sagrado. Não obstante, a quadratura como sagração do mundo, embora
constitua o mistério, não se trata de algo incompreensível ou inalcançável, como é possível
pensar-se, de forma equivocada. A quadratura deixa-se ver em nosso cotidiano a partir da terra,
uma vez que “a terra é o sustento de todo gesto de dedicação. A terra dá frutos ao florescer. A
terra concentra-se vasta nas pedras e nas águas, irrompe concentrada na flora e na fauna”
(HEIDEGGER, 2012, p. 129). Assim sendo, ainda que o humano habitualmente lance sobre a terra
um olhar que não a percebe enquanto o que ela é, ou seja, a mirada sobre a terra,
habitualmente, enxerga o homem, como a existir fora dela, como a observá-la à distância ao
mesmo tempo em que a percebe como um planeta habitado ou como natureza enquanto fonte
de reserva e fornecimento de recursos naturais inesgotável, a terra é tudo o que se apresenta e
se vela. A terra é o que propicia o arrimo à nossa existência.
O céu, embora também inserido na ordem do sagrado, do mistério, também participa de nosso
cotidiano, posto que:

1434
O céu é o percurso em abóbodas do sol, o curso em transformação da lua, o
brilho peregrino das estrelas, as estações dos anos e suas viradas, luz e
crepúsculo do dia, escuridão e claridade da noite, a suavidade e o rigor dos
climas, rasgo de nuvens e profundidade azul do éter (HEIDEGGER, 2012, p.
129).

O céu é mais elevado do que se costuma entender cotidianamente como o espaço sobrevoado
por aeronaves. O céu guarda o aceno de mistério, do sagrado, de um horizonte inalcançável,
mas que ao mesmo tempo participa da existência humana e que está a uma proximidade de
todos nós. O humano habita entre céu e terra e, no seu habitar, ele recebe e destina-se a guardar
a dádiva celeste, ao passo que a percebe como presente em seu cotidiano. O céu é um dos
elementos que compõe o sagrado e gentilmente o seu desvelar do sagrado se dá a ver em nossa
cotidianidade por meio da beleza conferida pela luz do sol a tudo o que ela cobre ao amanhecer,
ao que ela põe em relevo e o seu intenso calor ao meio-dia, de sua suavidade e particular beleza
ao entardecer. O mistério celestial também se deixa desvelar na cotidianidade através da
claridade e beleza que acompanha a lua em suas distintas fases e no brilho das estrelas. Os
climas trazendo o recolhimento e o rigor do inverno; o recomeço do florescer, a abundância de
cores, aromas, perfumes e o renascer inerentes à primavera; a luz, o calor do verão; e a espera
de renovação e calmaria do outono também indicam o elemento sagrado vigorando em nosso
cotidiano. Entretanto, tudo o que foi aqui mencionado nos é tão familiar que parece nos resultar
desnecessário pensar a respeito, o que termina por cair no esquecimento. Podemos entender
que isso ocorre em razão da nossa ocupação com as coisas levar-nos a conhecê-las de tal modo
que se nos tornam familiares de forma a assegurar o nosso habitar. A familiaridade com as coisas
não somente assegura o nosso habitar por nos tornar o mundo familiar, mas por tornar o nosso
mundo concreto:
E, no entanto, há homem e mundo, há um habitar do mundo e as coisas que
asseguram esse mundo. Podemos ver a consistência do mundano que acolhe
nosso existir, as coisas perduram, elas estão aí e habitam o nosso mundo, dão
concretude e repousam em nossa proximidade, o mundo nos é familiar
(BAUCHWITZ, 2015, p. 338).

Consoante o que foi comentado até aqui e o supracitado, as coisas fazem parte de nosso mundo
e asseguram o nosso mundo por meio da segurança, mas também asseguram, dão consistência
a esse mundo quando a elas atribuímos sentidos. Atribuindo sentidos a esses entes percebemos
e deixamos que repousem em nossa proximidade. O mundo se nos torna familiar. Mas familiar
de modo singular, dotado de sentidos.

1435
A familiaridade nos concede segurança e ao mesmo tempo proporciona o nosso
“esquecimento” de que há mistério, quando tomadas somente pelo âmbito público da
ocupação, quando nós nos entregamos à ocupação e à familiaridade de modo que seja possível
à “presença perder-se e ser absorvida pelo entre intramundano que vem ao seu encontro”
(HEIDEGGER, 2015, p. 125).
A familiaridade, enquanto fomentadora da sensação de se estar habituado a algo, reflete que é
deste modo que habitamos. Ao mesmo tempo que a familiaridade nos permite habitar, a partir
dela esquecemos o sentido de habitar como estar habituado. Por conseguinte, o sentido
ontológico do habitar se perde de vista e a percepção do mesmo limita-se à perspectiva ôntica.
A perspectiva ôntica do habitar vincula-se à visão técnica, prática da habitação.
Questionamos: enquanto nos albergamos na familiaridade, a quadratura nos é despercebida?
Habitualmente, sim. Entretanto, há momentos em que somos tomados pelo espanto, por certo
estranhamento que promove o desvelamento da força do quaterno diante de nós. Poder-se-ia
afirmar que a presença da insistência humana no habitar, o qual põe em evidência o nó que
amarra a quadratura e tece a nossa existência, assim como a luz que ilumina esse enlace
revelam-se para nós no que há de mais habitual e cotidiano: o “fazer” humano, ou dito de outro
modo, as nossas atividades laborais. Não obstante, isto não significa que todas as atividades
executadas pelo homem tenham sido tomadas segundo essa compreensão para serem trazidas
a este trabalho. Ao parecer, isto soaria como fruto de uma interpretação errônea, apressada e
talvez ingênua. Aqui nos dedicaremos a analisar sucintamente uma atividade, a saber, o ato de
esculpir. A atividade de esculpir, sobre a qual nós debruçaremos o nosso pensar, centrar-se-á
na singular obra do escultor basco Eduardo Chillida.

3 – A Quadratura e a lida cotidiana: a habitação, a ocupação e a sacralidade


A escultura, essencialmente, não é criada a partir de uma finalidade, portanto, ela é envolta no
modo de ser autêntico que encontra respaldo no pensamento destoante do pensar calculador.
Qual seja, um modo de pensar e estar no mundo autêntico. Pensar a escultura como algo da
ordem do inútil traz á luz o pensamento que a arte, em especial, a escultórica, pode promover
o desvelamento, tendo não a utilidade que reveste de objetivos e fins uma criação, mas o
sentido de revelar o que está oculto, acolhendo os quatro elementos e resultando em algo da
ordem do livre.
Para que possamos sucintamente refletir sobre a escultura como uma obra que promove a
habitação da quadratura, se faz necessário escrevermos algumas linhas à respeito do

1436
pensamento de Martin Heidegger sobre a arte para em seguida, exemplificarmos esse modo de
habitar através da plástica pela descrição da arte de Eduardo Chillida.
O filósofo alemão que norteia essa terceira parte do trabalho em tela, em seus escritos,
notadamente, Arte e Espaço, A Origem da Obra de Arte e Observações sobre Arte-Escultura-
Espaço, pensou a arte como um modo de criação desvinculado da Estética. Na sua compreensão,
“a arte é uma sagração e um refúgio em que, cada vez de maneira nova, o real presenteia o
homem com o esplendor, até então encoberto encoberto de seu brilho a fim de que, nesta
claridade, possa ver, com mais pureza, e escutar, com maior transparência, o apelo de sua
essência “(HEIDEGGER, 2012, p.39). O pensamento heideggeriano sobre a arte a apresenta
como da ordem do que nos causa estranhamento, nos desperta para o mistério encoberto nessa
era da técnica em que a lida cotidiana com os utensílios e instrumentos se faz de modo
calculador.
Esse modo de pensar a arte em sua essência, distanciada do modo subjetivo de apreciação, em
muito se assemelha á forma com que o escultor basco criou suas esculturas, particularmente as
obras monumentais. Ademais, a sua plástica remete ao habitar, à quadratura, a esse modo
poético de retorno à essência das coisas, ao encontro das coisas mesmas.
Caracterizado como o “escultor do espaço”, Eduardo Chillida lidou com os instrumentos e
utensílios de maneira serena, no sentido de deixar ser a coisa. O artista basco preenchia o vazio
e assim criava a sua arte, não encarando o vazio como um nada, promovendo uma arte não
representativa e voltada para a demora.
Especialmente na união de escultura de grandes proporções com a natureza presente no local
em que a obra do artista é construída ou depositada, ocorre abertura de um lugar. A Escultura
abre um espaço à quadratura e na abertura desse espaço, os homens habitam cuidando o
mundo nessa união dos quatro, céu, terra, mortais e divinos. Nesta paragem recém-aberta pelo
lugar que encarna a obra escultórica se criam diversos espaços para a conversação infinita entre
arte e natureza, o distante e o próximo presentes neste espaço intermediário, como expõe
Berna Rivera (2017). Uma escultura que é viva, que nos convida a adentrar em seu vazio e nele
habitar compondo a união dos quatro, o que corrobora plasticamente as palavras de Heidegger:
“a arte plástica seria a incorporação de lugares, os quais, preservando e abrindo um canto, têm
reunidos ao redor deles algo de livre, que assenta a todas as coisas permanência e aos homens
uma morada no ser das coisas”. (HEIDEGGER, 1969, p.5)

Considerações Finais

1437
Este trabalho pretendeu sucintamente expor a perspectiva heideggeriana da habitação, in
ntentando-se investigar a percepção e guarda do nó da quadratura na lida cotidiana com as
coisas, com a paisagem habitada e com os outros. Foi explanado que os mortais existem e
constroem morada sobre a terra, criam o mundo que habitam, pensam, relacionam-se com os
outros, com o espaço e com as coisas, numa perspectiva do pensamento heideggeriano.
Ademais, esse modo de habitar poético se realiza através da arte enquanto desocultamento, da
habitação da quadratura, o que foi exemplificado pela obra do escultor basco Eduardo Chillida.

Referências
BAUCHWITZ, Oscar Federico. Solidão, Liberdade, Concretude. In: BAUCHWITZ, Oscar Federico;
FERNANDES, Edrisi; BEZERRA, Cícero. (Org.) Seminários do Seridó: Solidão e Liberdade. Natal: Edufrn,
2015, p. 389-404.

BAUCHWITZ, Oscar Federico. Uma igreja, uma cabana, uma montanha: reflexões sobre as possibilidades
do construir. In: BAUCHWITZ, Oscar; MORAES, Dax; FERNANDES, Edrisi. (Orgs.). O Homem e o Espaço.
Natal: PPGFIL/UFRN, Caule de Papiro, 2017, v.1, p.391-407.

BEAINI, Thais Curi. Heidegger: arte como cultivo do inaparente. São Paulo: Nova Stella; Editora da
Universidade de São Pulo, 1986. (Coleção Belas Artes).

BERNAL RIVERA, Beatriz. El arte: un paraje de decisión a propósito de Heidegger. Antioquia: Universida
de Antioquia, 2017.

HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências. Traduções Emmanuel Carneiro Leão; Gilvan Fogel, Márcia
Sá Cavalcante Schuback. 8. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco,
2012 (Coleção Pensamento Humano).

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Tradução revisada e apresentação Márcia Sá Cavalcante Schuback;
posfácio de Emmanuel Carneiro Leão. 10. ed. Petrópolis: Vozes; 2015 (Coleção Pensamento Humano).

1438
AS COSTURAS E CICATRIZES DE CUIABÁ: Construção da imagem da Copa no Pantanal.
NóCego - Outros silêncios.

Kellen Melo Dorileo Louzich


Mestranda; Universidade Federal de Santa Catarina; kellendorileo@gmail.com.

Evandro Fiorin
Professor Doutor; Universidade Federal de Santa Catarina; evandrofiorin@gmail.com.

A cidade é um palimpsesto, sua paisagem é cheia de camadas fragmentadas, todas costuradas


pelo tempo e pela sobreposição de novas intervenções. As camadas demarcam os desejos dos
corpos que habitam a cidade. Desejo de habitar um lugar, de deixar sua marca no espaço, de
transformar a imagem da cidade e seus imaginários. Lendo a cidade, ela deixará de ser vista
como um espaço abstrato, como uma cidade que poderia estar em qualquer lugar. Mas a cidade
é plural, por causa dos movimentos dos corpos. Neste artigo pretende-se identificar e analisar
o impacto das transformações realizadas na cidade de Cuiabá-MT. Para isso, será utilizado como
método a percepção da paisagem e a cartografia, como uma forma de produzir subjetividade.

Palavras-chave: Intervenções Urbanas; Camadas Fragmentadas; Transurbanogramas; Cuiabá;


Brasil.

The city is a palimpsest, its landscape is full of fragmented layers, all sewn together by time and
the overlap of new interventions. The layers demarcate the desires of the bodies that inhabit the
city. I want to live in a place, to leave my mark on space, to transform the image of the city and
its imaginary. Reading the city, it will no longer be seen as an abstract space, like a city that could
be anywhere. But the city is plural, because of the movements of the bodies. This article intends
to identify and analyze the impact of the transformations carried out in the city of Cuiabá-MT.
For that, landscape perception and cartography will be used as a method to produce subjectivity.
Keywords: Urban Interventions; Fragmented Layers; Transurbanograms; Cuiabá; Brazil.

1439
1 – Introdução
As cidades são compostas de vários tempos. Tempos que podem ser identificados por camadas
fragmentadas nos espaços. Cada intervenção realizada num lugar, num espaço, num território,
ou na cidade, compõem uma camada. A palavra intervenção pode ser entendida como
revitalização, requalificação, restauro, renovação, redesenho, mas, também, ações
transgressoras, que resignificam o espaço de forma a criticar algo.
Cada uma dessas ações representam um desejo: desejo de constituir um lugar, de habitar um
lugar, de deixar sua marca no espaço, de transformar a imagem da cidade. Toda ação de
transformar é realizada por um corpo, que tem um desejo. Sua ação deixa marcas, buracos,
rachaduras, as vezes até cicatrizes. Mas após o ato, o espaço nunca mais será o mesmo. O espaço
antes da ação, ficou no passado, agora a transformação faz parte do presente, e amanhã será
materializado outro desejo.
Cada desejo-camada sobreposta transforma o espaço em outro espaço, de forma que nunca
conseguirá ser igual ao anterior, muito menos igual ao “original”. Assim, a cidade é composta
por múltiplos desejos fragmentados. Todos costurados pelo tempo ou pela sobreposição de
intervenções-desejos-camadas.
Para identificarmos essas intervenções-desejos-camadas precisamos ler a cidade e, só assim, ela
deixará de ser vista como um espaço abstrato, como uma cidade que poderia estar em qualquer
parte do mundo, como uma cidade sem identidade.
Esta leitura só é possível se for feita na microescala, caminhando por suas ruas, lendo a
paisagem, a arquitetura, a urbanização, a publicidade, a relação do indivíduo com o espaço e
etc., mudando, assim, a nossa capacidade de perceber e de registrar os espaços da cidade. “É
esse registro que transforma os textos não-verbais em marcos referenciais da cidade; signos da
cidade, esses marcos aglutinam objetos e signos urbanos” (FERRARA, 1997, p.20). Mas, as
leituras destes espaços devem ser entendidas como pedaços urbanos, como uma parte da
cidade e não como o todo, pois é apenas um fragmento comparado com o todo.
Cada cidade, ou parte dela, é representada e construída pela comunidade que habita,
produzindo assim os significados simbólicos de suas imagens.
“[...] cada cidade concebe a sua estilística. E também que em cada cidade,
vários tipos de cenários sociais e estéticos, serão feitos segundo os seus
habitantes; segundo as suas condições econômicas, segundo a sua etnia,
segundo a sua educação, a imagem, tão permeável quanto o enunciado,
acomoda-se à retorica de seus usuários” (SILVA, 2001, p. 29).

1440
Cuiabá é uma cidade de 302 anos, colonizada por bandeirantes que nela chegaram em 1719, à
procura de ouro e índios para escravizar. Iniciando a sua formação nas proximidades do Córrego
da Prainha em 1722. Mas, somente em 1727, que Cuiabá tornou-se a Vila Real. As características
desta ocupação ainda estão presentes no Centro Histórico da cidade, as edificações, o
arruamento, os jardins e largos que compõem a paisagem urbana são resultantes do tipo de
ocupação ocorrida na época.
A partir da década de 60, deu-se início a um processo de fortes transformações arquitetônicas
e urbanísticas, e à demolição da Igreja Matriz em 1968, que funcionou como um alerta a
determinados grupos, que passaram a lutar contra as demolições e foram em busca da proteção
da história e da memória presente no espaço construído. Como grande parte da composição da
paisagem urbana ter permanecido até a década de 80, foi suscetível à elaboração do
tombamento provisório e, por conseguinte, do tombamento do Conjunto, homologado no ano
de 1992, integrando os aspectos Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico.
Devido a Copa do Mundo (em 2014), Cuiabá passou por novas transformações. A cidade virou
um grande canteiro de obras! Viadutos, trincheiras e pontes foram construídas; o Estádio foi
destruído para construir um novo; muitos equipamentos foram idealizados para atender a Copa,
com “falsa ideia” de que todos esses equipamentos seriam utilizados pela população após este
evento.
Neste artigo, pretende-se identificar e analisar o impacto das transformações para Copa do
Mundo de 2014, realizadas na cidade de Cuiabá-MT. Para isso, será utilizado como método a
percepção da paisagem e a cartografia, como uma forma de produzir subjetividade; para
entender a relação do indivíduo e seus desejos com o espaço; como as intervenções-desejos-
camada fragmentam o espaço; e quais as consequências dessa fragmentação.

2 – A transformação que fragmenta o espaço.


Cada camada corresponde a um tempo, seja os tempos na cidade, demarcados pelos vestígios
do passado, que seriam, por exemplo, as ruínas, as edificações dos centros históricos; ou os
tempos da cidade, inscritos através das transgressões, dos dissensos presentes, por exemplo,
em uma ação crítica à política vigente.
Para entendermos essas camadas e até analisá-las precisamos mergulhar no território,
precisamos nos tornar parte do território e este tornar-se parte de nós. Só assim iremos revelar
o desconhecido; estranhar não só o diferente, mas também, o habitual; surpreendermos com o
inesperado.

1441
Caminhando pelo território, saímos em busca de novas descobertas, de forma a identificar as
camadas, que Careri (2017) trata como “ilhas de um arquipélago, cujo mar é um grande vazio
informe”. Mas, como poderíamos conhecer cada detalhe, cada meandro desta ilha, e até mesmo
deste arquipélago, se não, nos perdêssemos nesses espaços, pois “quem perde tempo, ganha
espaço” (CARERI, 2017, p.106.).
As caminhadas, ou errância urbanas como é denominado por Jacques (2012, p. 20), são
experiências de apreensão e investigação do espaço, transmitidas através das narrativas dos
errantes. Estas
“ [...] enfatizam as questões da experiência, do corpo e da alteridade na
cidade e, assim, reafirmam a enorme potência da vida coletiva, uma
complexidade e multiplicidade de sentidos que conforta qualquer
pensamento único ou consensual, como o promovido hoje por imagens
midiáticas luminosas e espetaculares das cidades” (JACQUES, 2012, p. 20 e
21).

“Os habitantes da cidade deslocam-se e situam-se no espaço urbano. Nesse espaço comum, que
é cotidianamente trilhado, vão sendo construídas coletivamente as fronteiras simbólicas que
separam, aproximam, nivelam, hierarquizam [...]” (ARANTES, 2000). Mas, somente o errante,
através do caminhar, do andar a esmo, identificar e problematizar essas fronteiras simbólicas e,
também, as imagens e imaginários presentes no espaço.
O caminhar, mesmo não sendo a construção física de um espaço, implica uma
transformação do lugar e de seus significados. A presença física do homem
num espaço não mapeado – e o variar das percepções que daí ele recebe ao
atravessa-lo – é uma forma de transformação da paisagem que, embora não
deixe sinais tangíveis, modifica culturalmente o significado do espaço e,
consequentemente, o espaço em si, transformando-o em lugar. O caminhar
produz lugares. (CARERI, 2013, p.51)

O corpo é o hospedeiro do desejo, das fantasias, dos imaginários e dependendo do corpo que o
habita, aqueles serão completamente diferentes. O que torna as cidades tão plurais, não são os
espaços, mas sim, os seus habitantes. São eles que criam e transformam as cidades, são seus
desejos que são materializados nos espaços. O desejo habita a essência do indivíduo, é
ferramenta de criação, é fabricação de mundos. Um desejo pode construir imaginários, fantasias
individuais ou coletivas. “[...] a produção do desejo, produção de realidade, é ao mesmo tempo
(e indissociavelmente) material, semiótica e social” (ROLNIK, 2016, p. 46), ou seja, nossos
desejos, individuais ou coletivos, se tornam matéria, quando o materializamos.

1442
Os corpos são aqueles que de acordo com seu gênero e sua “classe procura utilizar e modificar
o espaço a seu favor” (VELLOSO, 2017b, p. 50). O errante, que cartografa o espaço, é um corpo,
que sente, ouve, cheira, anda e habita um lugar.
É primeiramente o corpo que experimenta – corpo como primeira realidade,
como vivido imediato da consciência, sem distancia ou objetivação. Como
realidade física, o corpo está, desde sempre, situado no mundo, localizado
espacialmente; assim, atua como estrutura de subjetividade constantemente
operante no relacionamento com o mundo. É o corpo quem dá a medida da
relação do indivíduo com o mundo a que se pode chamar estética (VELLOSO,
2017a, p. 159).

As imagens são construídas e estimuladas a “uma maior produção de simulacros, onde produzir
imagens é parte de qualquer estratégia política” (SILVA, 2001, p. 49), que tem a intensão de
construir imagens da cidade como uma mercadoria, uma empresa e uma pátria, que Arantes et.
al. (2013) trata em seus estudos. Nestas cidades tudo é vendido, é gerido e é uma “marca com
a qual devem se identificar seus usuários” (ARANTES et. al., 2013, p. 8), ou seja, tudo é produto,
tudo tem um valor, tudo tem que ser transformado conforme a última tendência, conforme os
desejos dos corpos.
As cidades possuem “um processo dinâmico em um constante construir e destruir, cuja
linguagem básica ou discurso é fragmentado, mistura de tempos e estilo” (COELHO, 1996). Essa
transformação constante torna impossível ter apenas uma memória, um único uso, pois a
construção da memória é constante. A consolidação do passado concretiza-se no presente. A
memória dos espaços é coletiva; sua história é temporária; sua aparência é cheia de camadas
fragmentadas em suas paredes, em suas ruas e travessas, nos meandros da cidade.
Essas transformações urbanas são uma forma de combater a decadência das cidades. Os
fantasmas da decadência rondam os espaços, os lugares se transformam, a cidade vive o
processo de urbanização. “Com o tempo as ruas mais importantes mudam o uso e a mentalidade
cidadã, e isso está associado à aparição de novos imaginários, como os da modernidade ou do
passado ou da incerteza de um monumento” (SILVA, 2001, p. 59).
Estas transformações são vistas, e propagadas, como o novo combustível que a cidade precisa.
Mas este combustível é na verdade, “[...] uma máquina ideológica acionada pelos que
administram tanto a construção física quanto a ideacional dos recursos capazes de impulsionar
o desenvolvimento dentro e através dos “lugares” da cidade” (ARANTES; VAINER; MARICATO,
2013, p. 29).

1443
Muda-se os hábitos da população; os lugares antigos, que contam a história da cidade, são
transformados em museu, ou seja, a história da cidade é mitologizada, “[...] é fabricada nas
imagens do passado, como missões revivalistas [...] e vendidas a ávidos consumidores visuais”
(ZUKIN, 1996, p. 210); renova-se os lugares. Tudo para transforma a imagem da cidade, para
“produzir uma identidade cultural, que muitas vezes [...] pode ser um estratagema político que
se torna estratégico” (SILVA, 2001, p. 61). Mas se esta produção cultural
[...] estabelecer um “cenário” limiar entre mercado e lugar, o sucesso do
cenário opera como veículo de valorização econômica. O sentido de lugar que
é seu produto material sucumbe no tempo, frente aos altos rendimentos das
forças de mercado. (ZUKIN, 1996, p. 211)

A cidade sucumbe a máquina ideológica, vende seus espaços como se fossem produtos no
supermercado, fazem propagandas desses espaços, a população, criando imaginários de um
espaço, que nem se concretizou, para serem transformados em lugares fantasmas. O resultado
destas transformações são cicatrizes costuradas pelo tempo.

3 – As Transformações de Cuiabá
A partir de fevereiro de 2009, os cuiabanos sonhavam (ou sonharam) com a melhoria dos
espaços urbanos, com uma cidade mais moderna, com “projeto grandioso e atrevido” (SANTOS,
2013, p. 23) e, principalmente, com mais uma vitória no futebol, uma estrela conquistada em
casa. Era o momento perfeito para transformar Cuiabá, resolver muitos problemas urbanos que
já haviam sido identificados a mais de uma década, pela equipe do Instituto de Planejamento e
Desenvolvimento Urbanos (IPDU) da Prefeitura de Cuiabá, desde os anos 90.
Quarto meses depois veio a notícia de que Cuiabá seria uma das subsedes da copa, a subsede
do Pantanal. “O valor desta vitória ultrapassa em muito a luta por um projeto de imenso valor
urbano, e marca uma importante mudança de postura na vida de uma cidade quase
tricentenária” (SANTOS, 2013, p. 25). E mais uma vez a cidade e sua população “apreendeu que
o novo, o bonito, o que devia ser obedecido, sempre vinha de fora, e que seu destino fosse
sempre o de seguir atrás, aproveitando as quimeras que sobravam da corte” (SANTOS, 2013, p.
25).
Assim, o discurso ia se propagando, uma transformação que deveria ser feita não só nos
espaços, mas também na rotina, nos hábitos, na relação do indivíduo com os espaços. Estes que
não apresentavam uma “qualidade aceitável” ou que não eram utilizados por uma parte da
população, passaram a ser descritos como, por exemplo, muquifo. Sendo apresentados como

1444
os lugares que deveriam ser transformados. Já os espaços que apresentavam uma qualidade
modernista, que eram utilizados e reconhecidos, pela elite cuiabana, como patrimônio
arquitetônico, foram exaltados e classificados como desnecessária a alteração de seus
“monumentos”.
Mas, hoje, depois de sete anos após a Copa do Mundo (2014), as transformações foram as
melhorias na infraestrutura viárias (aquelas idealizadas pelo IPDU dos anos 90), a Arena Pantanal
(figura 1) e alguns centros de treinamentos (terminados depois da copa).

Figura 1: Arena Pantanal

Fonte: Autora, fotografia (2019) e bordado (2020).

A Arena Pantanal foi palco de uma discussão muito calorosa, pois os amantes do futebol
cuiabano não viam necessidade de demolir o antigo estádio, que comportava cerda de 200
pessoas. Mas o argumento foi que o Verdão (nome do antigo estádio) impossibilita a
implementação do “novo estádio e o Ginásio Aesim Tocantins”, que totalizavam em uma grande
“praça de esportes com três arenas” (SANTOS, 2013, p. 63).
Mas, era preciso criar a imagem da Copa do Mundo em Cuiabá, era preciso construir a imagem
de uma cidade moderna com seu transporte urbano de massa, era preciso deixar sua marca no
espaço. Era preciso criar a vitrine da Copa no Pantanal.

1445
A vitrine é uma janela. Nela construímos um espaço para que os outros nos
olhem, mas também para olharmos através dela. Mais ainda, pela maneira
como nos olham podemos compreender como nós projetamos e, pela forma
como a vitrine é projetada, podemos entender como ela quer ser vista. Assim,
a vitrine constitui-se num jogo de olhares (SILVA, 2001, p. 27).

Mas foi a cidade e a população que pagaram o preço de toda essa fantasia, pois elas não tiveram
nem opção de escolha, entre o Bus Rapid Transit (BRT) ou o VLT, por exemplo. As discussões
ficaram só no meio político. Não havia tempo para estudos, o tempo corria e tudo tinha que
estar pronto em menos de cinco anos. Uma decisão que precisava ser tomada com base em
estudos, dados e, só assim, avaliada pelos técnicos e pela população. “[...] passamos a acredita
que os nossos problemas de circulação urbana serão resolvidos com a escolha e a implantação
de alternativas apresentadas nos belíssimos folders e power-points” (SANTOS, 2013, p. 39). O
problema do transporte coletivo que é de gestão foi (ou deveria ter sido) resolvido com
tecnologia. O VLT ganhou a briga, ou melhor, um grupo político ganhou a imagem de seus rostos
nas vitrines dos noticiários, por conta do escândalo de corrupção.
As linhas do VLT (figura 2), em Cuiabá, só foram demarcados nas trincheiras e nos viadutos. As
ligações, entre estes pontos, não foram sequer construídas. Os trechos ficaram durante anos,
alguns ainda permanecem, igual a um canteiro de obras.
As duas linhas do VLT que ligavam centralidades e até mesmo regiões muito distantes e que
poderiam atender a maioria da população, principalmente, com os deslocamentos das periferias
ao centro. A linha 1, interligariam o Aeroporto que fica em Várzea Grande-MT a até o outro
extremo de Cuiabá, passando pelo centro histórico e o Centro Político Administrativo. A linha 2
interligariam o centro histórico a região do Coxipó, fazendo conexão com a linha 1, no terminal
do VLT (a ilha da banana), e passaria pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e todos
os demais bairro depois da Ponte do Rio Coxipó.

1446
Figura 2: Linhas do VLT.

Fonte: Autora, fotografia (2019) e bordado (2020).

A população que utilizavam a Ilha da Banana (figura 2 – (2)), seja com suas residências e com o
conjunto habitacional; comércios; serviços, foram expulsas, sem nenhum apoio, nem
indenização pela desapropriação. O local que deveria funcionar como um terminal de conexão
entre as duas linhas do VLT, fora destruído para não abrigar os indesejáveis. O que resta da Ilha
da Banana é a ruína do patrimônio arquitetônico, que um dia compôs o espaço de produção1 da
Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá. O que resta do córrego, que um dia tornou esta cidade
em uma da mais ricas Vilas fundada pela Coroa Portuguesa no século XVIII, é corpo d´dejetos.

4 – Considerações Finais

1
Localizado a margem direita do Córrego da Prainha (hoje canalizado e localizado sob a Av. Tenente
Coronel Duarte). Essa região se dava a mineração de jazidas auríferas aluvionais e, também, onde foi
instalada a Igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Esta construída pelos escravos, de invocação
negra e, também, representação dos valores dessa população. Neste espaço eram realizados os batuques,
a capoeira, o Cururu e o Siriri (dança regional), a congada, o boi-de-serra e outros cultos de origem
Africana.

1447
Cuiabá é uma cidade que “[...] vivem-se os signos de uma cidade apocalíptica [...] estourada e
decomposta, incapaz de encontrar uma saída para o seu gigantismo monstruoso (SILVA, 2001,
p. 65), incapaz de enfrentar seu fantasma (a decadência) e, com isso produz mais
fantasmagorias2. Transforma lugares, renova-se os espaços, mas silencia sua história, sua
memória, segrega sua população, determinando que pode circular pela cidade e onde podem
viver.
As transformações que são/foram usadas como “vitrine” transforma a imagem da cidade e os
imaginários urbanos em mercadoria. Com isso, regata-se, ou melhor dizendo desenterra, a
cultura, os hábitos, o dialeto, que antes eram tachados como desqualificados, muquifo, feio,
dentre outros, para vendê-los com uma mercadoria.
A cidade que é plural, torna-se imagens fragmentadas para ser estrategicamente vendida. Mas
“[...] o passado de uma cidade não é algo embalsamado” (VELLOSO, 2017a, p. 170). Por mais
que as cidades sucumbem a máquina ideológica, nenhuma cidade será igual a outra, porque a
cidade não é só matéria, é movimento de corpos dentro dela. E é esse movimento que tora as
cidades únicas, pois os corpos são desviantes, e nem todos desviam da mesma forma.

Agradecimentos
Agradecemos ao Programa de Pós-graduação de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de
Santa Catarina e a CAPES pelo apoio financeiro.

Referências
ARANTES, Antonio. Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. Ed. Unicamp, 2000.

ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando
consensos. Petrópolis, RJ: Vozes, 8°ed, 2013. 192 p.

CARERI, Francesco. Caminhar e parar. Tradução de Aurora Fornoni Bernardini. São Paulo: Gustavo Gili,
2017. 128 p.

CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. Prefácio de Paola Berenstein
Jacques. Tradução de Frederico Bonaldo. São Paulo: Editora G. Gili, 1.ed., 2013. 188 p.

COELHO, Márcio César. Ruínas urbanas. Revista Esboços, v. 4, n. 4, Jun./dez. 1996. 39-45 p.

2
É fantasmática a imagem que a sociedade urbana produz de si e pela qual costuma designar sua própria
cultura. Imagem enganosa, que mascara as relações de produção e as estruturas de dominação, as
fantasmagorias na cidade correspondem a desejos de consumo e delineiam o campo da experiência
alienada. In.: VELLOSO, 2017a, p. 150.

1448
FERRARA, Lucrecia D`Alessio. Leitura sem palavra. São Paulo: Ática, 1997. 72 p.

JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador: EDUFBA, 2012. 331 p.

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VELLOSO, Rita. Modos de des-ver: post-scriptum à fantasmagoria. 13° Congresso Internacional de


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ZUKIN, Sharon. Paisagens urbanas pós-modernas: mapeando cultura e poder. In. Revista do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. N°24, 1996. 205-219 p.

1449
AS VOZES DA COMUNIDADE E SILENCIAMENTOS NO TRATO COM O PATRIMÔNIO DE
PATROCÍNIO PAULISTA
NóCego - Outros silêncios.

Beatriz Alves Goulart Rocha


Mestra em Arquitetura e Urbanismo; Universidade Federal de Uberlândia; biagr@ufu.br.

Claudia dos Reis e Cunha


Doutora em História e Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo;
Universidade Federal de Uberlândia; claudiareis@ufu.br.

A despeito da diversidade de vozes no campo do patrimônio, deve-se reconhecer que aquelas


baseadas nos princípios de “excepcionalidade” foram hegemônicas ao longo do tempo.
Nacionalmente, a “construção da memória” teve início privilegiando a arquitetura de matriz lusa
como expressão artística autêntica e original da Nação, criando o padrão de preservação
reafirmado durante décadas. Esse entendimento ainda é percebido pela maior parte dos
brasileiros, mesmo com o aparecimento de novos discursos e vozes dissonantes. Este artigo
objetiva discutir, frente aos estudos feitos em Patrocínio Paulista, em que medida os novos
valores, objetos e instrumentos de preservação são compreendidos e podem estimular políticas
mais assertivas para a preservação das memórias locais, construindo diálogos e dando voz a
patrimônios muitas vezes silenciados.
Palavras-chave: patrimônio; memória; diálogos.

Despite the diversity of voices in the field of heritage, it must be recognized that those based on
the principles of “exceptionality” have been hegemonic over time. Nationally, the “construction
of memory” started by privileging Portuguese architecture as an authentic and original artistic
expression of the Nation, creating the preservation pattern reaffirmed for decades. This
understanding is still perceived by most Brazilians, even with the appearance of new discourses
and dissonant voices. This article aims to discuss, in light of the studies carried out in Patrocínio
Paulista, to what extent the new values, objects and instruments of preservation are understood
and can stimulate more assertive policies for the preservation of local memories, building
dialogues and giving voice to often silenced heritage.
Keywords: heritage; memory; dialogues.

1450
1 – Introdução
Este artigo parte de discussões apresentadas na dissertação de mestrado intitulada “A
preservação do patrimônio em cidades de pequeno porte: proposta de articulação entre a
comunidade e o governo local em Patrocínio Paulista”1 que visa, de modo geral, ressaltar a
importância do envolvimento da população no processo de preservação do patrimônio cultural,
sobretudo em cidades de pequeno porte (considerando as que possuem menos de 20.000
habitantes), com fundação recente, usualmente compostas por elementos arquitetônicos de
características modestas e, muitas vezes, à margem da preservação de forma institucionalizada.
Diante da observação de que no campo do patrimônio há uma diversidade de vozes que se
articulam, deve-se reconhecer que ao longo da história das políticas preservacionistas, aquelas
vozes baseadas nos princípios de “excepcionalidade” foram hegemônicas.
Tratando-se do contexto nacional, o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional), surgiu em um cenário que privilegiou as narrativas ligadas ao conceito de civilização
material, dessa forma, se expressou pela “construção da memória” a partir da arquitetura
colonial de matriz lusa como a representação do patrimônio nacional, expressão artística
autêntica e original da Nação brasileira (CHUVA, 2017).
Considerando os bens de características excepcionais, e criando o padrão de preservação
reafirmado durante décadas, esse entendimento ainda é percebido pela maior parte dos
brasileiros, mesmo com o aparecimento de novos discursos e vozes dissonantes.
Deve-se ressaltar que não há aqui um desmerecimento das práticas voltadas aos bens
excepcionais, mas sim, a afirmação da importância de outros bens, de características modestas
e fatura recente, que podem ser representativos de várias memórias e, portanto, dependem
diretamente do envolvimento e da participação popular em todo processo de patrimonialização.
Esse é o caso de muitas cidades de pequeno porte e fundação recente, como Patrocínio Paulista
-SP, local de estudo deste trabalho.

2 – Local de estudo: Patrocínio Paulista.


O município de Patrocínio Paulista situa-se no nordeste do Estado de São Paulo, mais
especificamente, na Microrregião de Franca – SP e, segundo a estimativa do IBGE (2020), conta

1
ROCHA, Beatriz Alves Goulart. A preservação do patrimônio em cidades de pequeno porte: proposta
de articulação entre a comunidade e o governo local em Patrocínio Paulista. 2020. 227 f. Dissertação
(Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2020.
Disponível em: http://doi.org/10.14393/ufu.di.2020.811. Acesso em: 19 de mar. 2021.

1451
com aproximadamente 14 mil habitantes, caracterizando-se como uma cidade de pequeno
porte. Elevada à Vila em 1885, possui uma fundação relativamente recente e, por conta de sua
origem se relacionar às atividades de garimpo na região, sua ocupação urbana se vincula,
principalmente, aos os rios Sapucaizinho e Santa Bárbara. (MATOS, 1986)
Apesar de seus elementos urbanos portarem características modestas, reconhece-se a
importância de políticas de preservação do patrimônio local, especialmente, se tratando da
percepção da cidade pela comunidade a partir de suas vivências e memórias. A demanda por
políticas de salvaguarda na cidade torna-se ainda mais explícita por conta da criação de um
órgão de preservação municipal em 2009, denominado CONDEPHAA (Conselho de Patrimônio
Histórico, Artístico e Arquitetônico) de Patrocínio Paulista.
Ao longo das pesquisas sobre o Conselho, tendo como referências as atas das reuniões e
entrevistas com seus ex-integrantes2, é possível perceber as dificuldades encontradas para a
efetividade das ações propostas, principalmente se tratando das solicitações de tombamento.
Na ata de uma reunião realizada em 2012, encontra-se uma listagem de bens a serem tombados,
como os “túmulos históricos do Cemitério Municipal”, a “fachada do antigo “Cinema””, o prédio
da atual Delegacia, ou “antiga “Cadeia””, e algumas residências, como a conhecida na cidade
por “Casa do Barão”, “casa da família do Sr. Cincinato” (conhecida também por “Casa do Gigô”),
dentre outras (PATROCÍNIO PAULISTA, 2012), mas nenhuma ata de reuniões posteriores
documenta a efetivação do tombamento de tais elementos.
Percebe-se que as inconclusões das ações podem ser atreladas à diversas dificuldades, mas
acredita-se que, para além do (ainda) incipiente conhecimento por parte da população em
relação ao instrumento do tombamento, muitas vezes associado equivocadamente à restrição
da propriedade privada e à limitação do desenvolvimento urbano - o que acaba gerando
“silenciamentos”- há também uma busca por bens que se aproximem o máximo possível da ideia
de patrimônio cultural tão consolidada e vinculada à monumentalidade.
Dessa forma, o Conselho Municipal funcionou por sete anos, mas sem ações concretas de
salvaguarda do patrimônio que pretendia preservar, e encontra-se atualmente inativo. Apesar
disso, reconhece-se a importância do órgão de preservação local, especialmente por conta da

2
Estudos mais detalhados sobre o funcionamento do órgão de preservação municipal podem ser
encontrados no texto: ROCHA, B. A. G.; CUNHA, C. dos R. e. A ampliação dos modelos de gestão do
patrimônio: a importância da participação comunitária para as cidades de pequeno porte e com
exemplares arquitetônicos modestos. Revista CPC, [S. l.], v. 14, n. 28, p. 8-36, 2019. DOI:
10.11606/issn.1980-4466.v14i28p8-36. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/cpc/article/view/156189. Acesso em: 22 mar. 2021.

1452
participação de representantes da comunidade em conjunto com técnicos para o
estabelecimento de políticas de salvaguarda em escala municipal.

3 – Os olhares da comunidade em relação ao patrimônio de Patrocínio Paulista


Reconhecendo a importância da participação da comunidade em todo o processo de
patrimonialização, e como forma de dar lugar às suas vozes, fica clara a necessidade de
compreender a cidade a partir dos olhares dos moradores, de diferentes épocas, gerações e
relações com o lugar que vivenciam.
A primeira maneira encontrada foi a análise das duas publicações de Almanaques Históricos de
Patrocínio Paulista3, principais fontes de consulta sobre a cidade. As versões, datadas de 1986
(como comemoração do centenário da cidade) e de 2012 (celebrando seus 127 anos), foram
escritas por moradores ou pessoas que tivessem forte vínculo com o município, e por isso são
tão importantes para exemplificar o que determinados atores consideravam fundamental
destacar em relação à história e às características contemporâneas do local.
Deve-se reconhecer a importância dessas publicações como forma de documentar o município
ao longo do tempo a partir de diversos aspectos, como a sua economia, a forma urbana, as
características geográficas e demográficas, as principais expressões culturais, dentre outras
abordagens. Entretanto, a partir de uma análise crítica, brevemente discutida ao longo deste
trabalho, percebe-se como estes documentos se tornam meios de consolidação, ou mesmo
construção, da história e memória local a partir de olhares de moradores específicos.
A segunda maneira de compreender os olhares dos moradores locais se deu de forma muito
mais prática, buscando, principalmente a partir de atividades de Educação Patrimonial, um
contato com as diferentes formas de vivenciar a cidade de acordo com as três principais
gerações: jovens, adultos e idosos. Ressalta-se, porém, que não havia uma preocupação
estatística (de buscar uma amostragem representativa de toda cidade) na realização das
atividades, mas de contemplar uma variedade de segmentos da comunidade, como uma
primeira aproximação.

3
Uma análise mais específica sobre os Almanaques Históricos de Patrocínio Paulista pode ser encontrada
no artigo desenvolvido pelas autoras, intitulado “O TERRITÓRIO (E SUA MEMÓRIA) PELO OLHAR DOS
MORADORES A PARTIR DE DOCUMENTOS CONSTRUÍDOS POR ELES: OS ALMANAQUES DE PATROCÍNIO
PAULISTA.”. Disponível em: <http://enanparq2020.com.br/wp-content/uploads/2021/03/VI-
ENANPARQ_ANAIS-EIXO-4_05MAR21-1.pdf>

1453
As atividades iniciais foram realizadas nos primeiros meses de 2019 com a faixa etária dos
jovens, sendo eles estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental da Escola Estadual Jorge
Faleiros, por meio de oficinas artísticas vinculadas à disciplina de Arte. As oficinas foram
divididas em quatro momentos: um primeiro diálogo com os alunos, uma visita à campo, o
desenvolvimento de análises gráficas e comparações com documentos e fotografias antigas,
principalmente os Almanaques Históricos e, no final, uma exposição dos trabalhos.
Posteriormente, a “troca de saberes” se deu com o grupo dos idosos a partir do
desenvolvimento de oficinas de mapas mentais, realizadas no início de 2020. Em sua maioria, os
participantes eram integrantes do programa “Jovens Vividos”, desenvolvido pelo Fundo Social
da Prefeitura Municipal de Patrocínio Paulista, e em partes por pessoas conhecidas e familiares.4
Finalmente, diante do contexto da pandemia do coronavírus durante a etapa de
desenvolvimento das pesquisas, a consulta com a faixa etária dos adultos (e também jovens e
idosos, em menor proporção), pôde ser realizada através do desenvolvimento de um
questionário online.

Ressalta-se que por conta de as atividades com as três faixas etárias acontecerem de maneira
diversificada entre si, a comparação entre as respostas se mostra muito mais como uma
estimativa. Como a atividade com os jovens não se deu sob a forma de um questionário, não há
uma quantificação exata das respostas, diferentemente do que aconteceu no caso dos idosos
com os mapas mentais em que cada desenho representa uma resposta e, principalmente, do
questionário online, respondido, em sua maioria, pelos adultos.

Porém, analisando os resultados obtidos na aproximação com as três gerações, encontra-se


unanimidade na citação de alguns elementos: a Igreja Matriz (Figura 1), a Praça Central, bem
como sua fonte (atualmente sem funcionamento) e as edificações antigas (“casarões”) no seu
entorno, a E.M.E.B. (Escola Municipal de Ensino Básico Irmãos Matos), a “Praça do garimpeiro”
e sua estátua (Figura 2), e alguns elementos da Zona Rural.5

4
Ressalta-se que tanto as oficinas com os jovens, quanto a com os idosos, foram melhor relatadas em
outros textos. Neste artigo, porém, busca-se uma análise geral dos olhares e vozes da população
encontrados nas três principais faixas etárias.

5
A análise detalhada dos resultados pode ser encontrada na Dissertação citada na Introdução, disponível
em: http://doi.org/10.14393/ufu.di.2020.811

1454
Figura 01: Igreja Matriz e Praça do Garimpeiro e sua estátua.

Fonte: Fotografias por Beatriz Alves Goulart Rocha, 2020.

É importante ressaltar que esses elementos não representam os mais citados por cada geração,
mas os que foram citados por unanimidade entre elas. Sendo assim, foi elaborado um gráfico
que reúne os dez pontos mais citados de cada grupo etário, sendo que, quando correspondem
entre si, aparecem apenas uma vez (Figura 3). Ressalta-se novamente que, como não há
quantificação das citações feitas pelos jovens, nesse gráfico é considerado o fato de que os
elementos citados por esse grupo são muito parecidos com os apontados pelo grupo dos
adultos.

1455
Figura 3: Comparação entre os dez mais citados de cada geração (Considerando idosos e adultos)6

Fonte: Autoras, 2020.

Como o gráfico foi organizado em ordem dos mais citados aos menos, calculando as
porcentagens dos grupos juntas, reconhece-se que a Igreja Matriz é considerada como o mais
significativo patrimônio de Patrocínio Paulista. Porém, apesar de as respostas apresentarem
muitas recorrências no que consideram patrimônio local, apresentam também dissonâncias de
acordo com suas vivências pessoais e, o que fica mais claro com a divisão de acordo com as
faixas etárias.
Claramente, isso se deve ao fato de que a cidade passa por um processo constante de
transformações, sendo que os edifícios se modificam, assim como seus usos, ou mesmo
desaparecem. Sendo assim, é muito provável que elementos que marcaram as vivências de
pessoas idosas, naturalmente não façam parte das vidas dos mais jovens, ou até mesmo que
alguns elementos passaram a ser incorporados como parte das lembranças dos jovens, por
conta do que foi vivido e transmitido pelas gerações anteriores, através da história oral.

6
O gráfico foi organizado a partir da proporção entre o número de citações de acordo com o número de
participantes de cada grupo etário, pois buscou-se, dessa forma, amenizar as diferenças das abordagens
entre os grupos.

1456
Porém, a partir das pesquisas feitas sobre os principais documentos históricos utilizados para
consultas sobre a cidade, ou seja, os Almanaques, é possível estabelecer uma forte relação entre
os elementos mais destacados como representantes da cidade e de sua população, com as datas
de lançamentos dos livros, seus principais conteúdos e a possível construção de uma memória
local.
As visões sobre o passado local são criadas e reafirmadas nesses escritos, principalmente
quando se trata da origem da cidade, com vários textos sobre as atividades do garimpo na região
e, mais ainda, trazendo a figura do garimpeiro como herói fundador da cidade, tal qual a figura
do bandeirante: “heróis, destemidos, desbravadores – sonhadores, por quê não? Garimpeiros...
“bandeirantes, de ontem e de hoje”: imagem reafirmada com a ereção do monumento,
alimentando assim o mito fundador.” (LOPES, 2002, p. 81).
A estátua do garimpeiro erigida na década de 1980 em comemoração ao centenário da cidade
(assim como a publicação do primeiro Almanaque Histórico), localizada na praça conhecida
como “do garimpeiro”, se apresenta no Almanaque de 2012 como parte dos “locais históricos”
com uma breve descrição de quando ela foi erguida e considerando-a “cartão-postal da cidade”,
o que de alguma forma traz uma relação da praça como um “lugar de memória”, além de todo
histórico sobre a fundação da cidade pelos garimpeiros, assim como no primeiro exemplar.
Compreende-se, então, o quanto esses documentos, que são as principais fontes de consulta da
população em relação à história da cidade, podem ser responsáveis por construírem a memória
local e, até mesmo, elencar o que mais representa o município, juntamente com os seus “marcos
comemoracionistas”.
Esta questão se torna clara quando as atividades com os moradores e suas repostas a elas são
separadas de acordo com as faixas etárias. Analisando os resultados dos idosos, não há
representação da estátua do garimpeiro em nenhum mapa mental e, por mais que apareçam
nas respostas do questionário como patrimônio local, há uma relação maior com a praça,
mesmo que ainda sendo uma resposta menos expressiva. Como a estátua e o próprio
almanaque surgiram há pouco mais de três décadas, é possível perceber que esse não é o
principal elemento citado por essa geração, apesar de as atividades do garimpo estarem muito
mais próximas cronologicamente a ela.
Talvez, também por conta do estímulo diferente pelos mapas mentais, suas respostas estão
muito mais vinculadas às suas memórias mais distantes, muitas vezes com o sentimento de
perda, mas principalmente suas vivências através dos trajetos de suas casas a pontos como a
Igreja Matriz.

1457
Na faixa etária dos adultos, muito mais ampla, que compreende tanto uma parte da população
que acompanhou a implantação do monumento quanto uma parcela que chegou a estudar a
história da cidade através dos almanaques, percebe-se que há uma quantidade maior de
citações da estátua do garimpeiro como patrimônio e representação da cidade.
Já relativo aos jovens e crianças, observa-se que o garimpeiro se torna realmente a maior
referência da cidade, um “cartão-postal”. Acredita-se que a “história registrada” da cidade,
tanto na construção do monumento quanto nos documentos escritos, consolida essa “imagem
da cidade” para a geração mais nova. A “cidade do diamante”, como é conhecida Patrocínio
Paulista, atualiza essa história de sua fundação, mesmo que, como se percebe pelas respostas,
a relação com o rio que corta a área urbana tenha se tornado cada vez mais apenas visual.
Considerando ainda essa afirmação - apresentada no Almanaque mais atual - da estátua como
um “cartão-postal” da cidade, a Igreja Matriz aparece como o outro “local histórico” e, mais
especificamente, aparece como a “Igreja do município de Patrocínio Paulista”, referindo-se à
Paróquia de Nossa Senhora do Patrocínio. Nesse sentido, mesmo que outras páginas do
almanaque abordem algumas outras igrejas presentes na cidade, se comparado com as
respostas de todas as gerações, percebe-se que há um reflexo do que a população considera
como patrimônio na própria publicação. Ou seria o contrário?
Reconhece-se também que, tradicionalmente, assim como em muitas cidades brasileiras, a área
urbana se consolidou próxima aos elementos do rio e da igreja, especificamente católica. Além
disso, o posicionamento do edifício, bem como seu gabarito, possibilita que ele seja visto em
vários ângulos pela cidade, principalmente nos bairros centrais, se tornando um marco na
paisagem.
Dessa forma, é possível compreender a grande quantidade de respostas relacionadas à Igreja
Matriz entre todas as gerações, mas principalmente pelos idosos. Além do mais, percebe-se que
há uma ideia ainda muito vinculada a um “patrimônio monumental”, mesmo que se tratando
do município ainda seja mais modesto. E isso pode ser uma das causas da edificação ser indicada
como patrimônio local.
Ainda falando sobre as capas dos almanaques, assim como já abordado, percebe-se que a versão
mais recente tem como última capa (ou quarta-capa) uma fotografia da cachoeira do Esmeril,
muito mais citada pelos adultos e pelos jovens do que pelos idosos. Além do maior estímulo ao
turismo e, com isso, mais visitações pelos jovens, é possível que essa imagem da cidade tenha
sido ainda mais valorizada com a publicação. Apesar disso, quando analisamos a tabela de

1458
consonâncias, observa-se a relação com a Zona Rural citada por todas as gerações, o que
demonstra também uma relação bastante comum nas cidades de pequeno porte.
Voltando para a região central, especialmente nas proximidades da Igreja Matriz, percebe-se
que estão localizados os outros pontos mais citados pelas três gerações. Além da praça e da
fonte que marcou muitas histórias no passado, mas que hoje não se encontra em
funcionamento, as edificações mais antigas se mostram bastante significativas para a população
local.
Principalmente a partir destas consonâncias entre os elementos considerados pelas três faixas
etárias, abre-se o caminho para um olhar mais direcionado aos bens patrimoniais indicados
pelas vozes da própria população, para, com isso, buscar formas de incluí-la no processo de
preservação do patrimônio local.
Compreende-se que cada bem é composto por um conjunto de valores relacionados aos seus
atributos e aos vínculos da comunidade com ele, e não apenas por um valor isolado, no entanto,
na maioria das vezes, um valor se destaca na consagração de cada bem. A partir dos resultados
das atividades, percebe-se que o valor predominante dentre os pontos mais citados nas
atividades é o afetivo, principalmente quando a abordagem foi realizada a partir de mapas
mentais, o que mostra a relação da comunidade com os bens destacados.
Apesar disso, quando se avalia a pergunta específica do questionário sobre o que se considera
patrimônio local e a partir das atas do órgão de preservação municipal em seu período de
funcionamento, reconhece-se a presença de valores sociais, como o afetivo, mas percebe-se nos
diálogos a predominância de valores vinculados à materialidade dos bens, exemplificados no
estilo eclético do prédio da Delegacia, ou “antiga Cadeia”, na fachada do “antigo Cinema”, nos
“túmulos históricos”, e na própria Igreja Matriz (uma das maiores edificações na escala da
cidade).
Sendo assim, tratando-se do entendimento sobre o que se considera patrimônio, reconhece-se
uma “imagem pública” ainda muito voltada aos bens isolados, de caráter predominantemente
“monumental”, reiterando uma visão arraigada à “construção da memória” tão consolidada
nacionalmente.
Além disso, percebe-se que há uma associação muito grande de preservação do patrimônio com
o instrumento de tombamento– que no Brasil é entendido quase como um sinônimo de
preservação – como se ele fosse o único possível, fato que dificulta as práticas e efetividades
das ações em um contexto tão particular quanto o da cidade de pequeno porte.

1459
Isso também fica claro quando se analisa as respostas de uma pergunta do questionário online,
que visava colher sugestões para a preservação do patrimônio local. Além do tombamento, a
criação de um museu em uma das casas antigas da cidade, se mostra como uma ideia
significativamente presente nas respostas, mais uma vez exibindo a visão isolada do bem, e de
certa forma, desvinculado das modificações da cidade ao longo do tempo.
Entretanto, dentre as sugestões indicadas, aparece também as atividades de Educação
Patrimonial, entendidas nessa pesquisa, em conjunto com novos instrumentos de preservação,
como estímulos positivos para políticas de preservação que, a partir da participação da
população, consigam contemplar os bens predominantemente envolvidos por valor afetivo.

4 – Considerações Finais
[...] o indivíduo e a comunidade, com uma educação apropriada e a
participação nos processos de patrimonialização, são capazes de conhecer e
reconhecer o patrimônio que existe em função deles e conservá-lo. Significa
ir além do registro do discurso da “monumentalidade” definido pela tradição
e vinculado à ideia de Nação. Se o patrimônio pode ser um instrumento de
constituição de subjetividades individuais e coletivas, um recurso para o
reconhecimento social e político no espaço público, há de se buscar esse
espaço para sua manifestação. Isso implica “registro do cotidiano”, no plano
da “experiência” individual e coletiva dos bens culturais, um espaço para sua
constituição. (LIMA, 2017, p. 114)

Mais uma vez, ressalta-se que os instrumentos tradicionais e mais amplamente conhecidos,
como o tombamento, são extremamente relevantes e indispensáveis para determinados bens.
Porém, reconhece-se que em algumas situações, como as apresentadas em Patrocínio Paulista,
ele se mostra de difícil aplicação, principalmente ao observar os valores envolvidos, muito
menos associados aos bens em sua materialidade, e mais relacionados às vivências da população
na cidade.
Dessa maneira, acredita-se ser fundamental olhar para a cidade de maneira integrada, visto que
as edificações isoladas podem não se expressar de forma excepcional (ou mesmo monumental),
mas possuem uma relação muito forte com o desenvolvimento urbano, com sua consolidação
territorial, e principalmente vinculam-se à memória da população, explicitada pelo valor afetivo.
Sendo assim, pode-se considerar que a limitação da ideia de patrimônio ao que é monumental,
e das possibilidades de preservação muito vinculadas aos instrumentos mais tradicionais, resulta
em um silenciamento no trato do patrimônio de cidades como Patrocínio Paulista, que acabam
não implementando políticas efetivas de salvaguarda.

1460
Acredita-se que dar evidência às vozes dos moradores, considerando os valores sociais
relacionados às suas vivências, a partir de instrumentos de participação e, principalmente,
estimulando atividades de Educação Patrimonial, seja fundamental para a construção de
políticas mais assertivas para a preservação das memórias locais, construindo diálogos e dando
voz a patrimônios muitas vezes silenciados.
Conclui-se que ainda que de forma breve, esse trabalho buscou discutir esse tema complexo,
analisando também a construção da memória local narrada por documentos importantes, como
os Almanaques Históricos, reconhecendo vozes envolvidas nesse processo. E, mais do que isso,
acredita-se no seu potencial em evidenciar os olhares da população para com a cidade.

Referências
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do patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). 2o ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2017.

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2017. 441 f, Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) —Universidade de Brasília, Brasília, 2017.
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MATOS, Carlos Alberto Bastos de; COSTA, Alfredo Henrique (org.). Almanaque Histórico de Patrocínio
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ROCHA, Beatriz Alves Goulart. A preservação do patrimônio em cidades de pequeno porte: proposta
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(Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2020.
Disponível em: http://doi.org/10.14393/ufu.di.2020.811. Acesso em: 19 de mar. 2021.

1461
BANGALÔS: Calados pelas mordaças do desconhecimento
Nó Cego - Outros silêncios.

Karla Di Giacomo Dias Oliveira dos Santos


Arquiteta e Urbanista; Profª Ms. na Universidade Paulista; digiacomokarla@gmail.com

Ao se contemplar a paisagem da cidade observam-se diversas peças que a compõem, dentre


elas o patrimônio arquitetônico que reflete: arquitetura, história e cultura de um povo. Neste
viés a tipologia bangalô, ilustra esse cenário em diversas cidades brasileiras, inclusive no interior
paulista, como, por exemplo, Bauru. Por ter caráter despojado, vários países aderiram a essa
nova tipologia, que se espalhou até chegar ao Brasil. O intuito deste trabalho é evidenciar esta
tipologia, pouco estudada, a fim de torná-la cada vez mais conhecida para que saia do abismo
do esquecimento e seja revelada como parte do patrimônio arquitetônico representando a
história de uma cidade ainda com as marcas instauradas pela ferrovia, sendo uma destas marcas
evidenciadas pelo sobrevivente bangalô.
Palavras-chave: Bangalô; Patrimônio; Esquecimento.

When contemplating the landscape of the city, it is possible to observe several pieces that
compose it, among them the architectural heritage that reflects: architecture, history and
culture of a people. In this perspective, the bungalow typology illustrates this scenario in several
Brazilian cities, including in the interior of São Paulo state, such as, for example, Bauru city. For
having a stripped character, several countries adhered to this new typology, which has spread
worldwide until reaching Brazil. The aim of this work is to highlight this typology, narrow studied,
in order to make it more and more known thus it emerges from the oblivion and become
revealed as part of the architectural heritage representing the history of a city, still marked by
the railway, and the surviving bungalows are proof of this.
Keywords: Bungalow; Patrimony; Forgetfulness.

1462
1 – Introdução
Em meados do século XX Bauru encantou-se com a tipologia do bangalô, já que esta se
enquadrava aos moldes de uma cidade sem muitas tradições e raízes, mas em processo de
desenvolvimento devido à presença das ferrovias Sorocabana, Noroeste e Paulista. Deste modo,
os bangalôs, ainda hoje, estão em meio à malha urbana, e que mesmo com cicatrizes do tempo
e com o passar dos anos, retratam uma contemporaneidade nos dias atuais, mostram uma
maneira de morar mais simplificada, apresentam características dignas e peculiares, e que
trouxe à cidade um caráter contemporâneo à época dos famosos palacetes ecléticos, porém é
pouco valorizado como patrimônio. Portanto, esses bangalôs são fontes merecedoras de estudo
e conservação.
Este trabalho discorrerá sobre essa diferente forma de morar do Brasil durante o início do século
XX que é resultado do diálogo entre a arquitetura vernacular indiana e a modificação desta pelos
seus colonizadores britânicos, ressaltando algumas das suas características tipológicas, a fim de
valorizá-los como parte do patrimônio arquitetônico resultante do período da ferrovia.

2 – Bangalôs: chegando a Bauru


A figura do bangalô esteve presente em diversos países. Com naturalidade indiana, funcionou
como uma solução para os colonizadores britânicos, que, na Índia, não conseguiam adaptar seu
tipo de moradia fechada ao clima tropical. Tamanha foi a sua aceitação, que o bangalô emerge
a um mundo desconhecido, chegando à Inglaterra e suas demais colônias, como por exemplo,
os Estados Unidos. (SANTOS, GHIRARDELLO, 2018). No Brasil ingressa desde o início do século
XX, através de Revistas da época. Neste tempo, coloca Saia (2005), que a aquisição de revistas1
e o cinema norte-americano tornavam-se mais comuns, trazendo para a cidade de São Paulo
verdadeiros arranjos californianos expressados pelo estilo missões. Deste modo, são
encontrados no Brasil, bangalôs com caráter mais californiano do que europeu, embora,
segundo Veríssimo (1999), ele fosse tido como uma das vertentes europeias que ainda
perduravam.
Neste momento começavam a vigorar no país novos conceitos de implantação de residências
no lote, elas podiam conter recuos frontais e de ambos os lados. Entretanto, esses afastamentos
só eram viabilizados para novas construções, distantes do centro, destinadas à classe abastada.

1
Revistas de decoração chegam ao país devido ao grande interesse das mulheres em informações e
conselhos para suas casas. (JANJULIO, 2009).

1463
O bangalô se enquadrou perfeitamente a esta condição e, além disso, estava cada vez mais
ligado ao espírito de se morar distante da cidade, em maior contato com a natureza. Essa
construção não era tida como algo sistemático e preso à uniformidade, mas sim como uma
edificação que libertaria o proprietário do caos da cidade e também da pretensiosa
suntuosidade das casas ecléticas. Assim, as pessoas referiam-se ao bangalô como casa de férias,
casa de campo. Aqui, devido ao clima, apresentam varanda, mesmo que pequena.
Diante destes fatores citados, estava dado o start da tipologia no Brasil. Com isso, em diversas
regiões do interior do estado de São Paulo e até mesmo do país, o bangalô faz parte da
arquitetura.
Em Bauru, interior do estado de São Paulo, ele se faz presente em meio à malha urbana até a
atualidade. Bauru, por não conter uma forte economia voltada para o café e contar com uma
forte classe média urbana, não apresentou grandiosos palacetes ecléticos e sim inúmeros
bangalôs que atenderam tanto a esse grupo social como aos mais abastados, além dos operários
mais qualificados e funcionários da ferrovia. Aqui ele serviu como uma nova forma de morar à
cidade, trazendo salubridade, natureza – em virtude de seus recuos ajardinados – facilidade,
simplicidade, imbuído de beleza e um caráter compacto bem peculiar a uma região urbana da
cidade, como se apresenta até hoje.
A posição estratégica de Bauru, no centro do interior paulista, favoreceu o entroncamento
ferroviário que ali se instalou, entretanto, ainda no final do século XIX, apenas começavam os
rumores da implantação das ferrovias, assim,
O número de casas na área urbana da cidade cresce bastante, porém, de
forma precária e improvisada, como uma espécie de “acampamento”, que
teria sua fixação definitiva se a vinda das ferrovias se concretizasse.
(GHIRARDELLO, 1992, p.67)

No início do século XX, a cidade Bauru foi marcada pela vinda das ferrovias Sorocabana,
Noroeste e Paulista, estabelecidas respectivamente no período de 1905 a 1911, seguindo a
lógica histórica da inserção das ferrovias no Estado de São Paulo. A Sorocabana se instala
paralela ao Córrego Água da Ressaca. A ferrovia mais importante implantada e nascida em Bauru
foi a Companhia Noroeste, por ser a única a conduzir, nos anos seguintes, imensas quantidades
de café que eram deslocadas até a cidade para depois serem transportadas pela Sorocabana ou
Paulista.
O ponto de chegada da Paulista tornou-se o local de sua futura estação no início da Rua Agenor
Meira, onde se ligava à Noroeste e Sorocabana. Conforme Ghirardello (1992, p.93) “das três

1464
ferrovias aqui instaladas, é a Paulista que ocupa áreas mais densas e nobres, completando a
cisão da cidade em duas partes principais: norte/oeste, sul/leste”. “O entroncamento ferroviário
possibilitou o fortalecimento do município e revelou sua vocação como polo regional de
desenvolvimento.” (OLIVEIRA, 2008, p.100).
Os três trechos ferroviários tornaram-se um dos maiores do interior do país. Neste período, mais
uma vez, muitos migrantes chegam a Bauru, atraídos pela ferrovia. Além disso, muitos
imigrantes, como italianos, espanhóis e japoneses, chegaram às fazendas bauruenses para
trabalhar na agricultura, enquanto os portugueses e libaneses destinavam-se ao comércio.
AZEVEDO (1950). A ferrovia trouxe um “espírito burguês” à cidade de Bauru, no qual a tipologia
do bangalô adaptou-se muito bem, inclusive por destinar-se aos engenheiros da ferrovia,
através da criação de vilas e novos bairros. (SANTOS, GHIRARDELLO, 2018).
Foi a vinda da ferrovia que abriu novas possibilidades e avanços à arquitetura
bauruense, ela estimulou o desenvolvimento e trouxe, de certo modo,
mesmo que indiretamente, o bangalô à cidade, afinal, foi através dela que o
antigo vilarejo abriu suas portas para o mundo, enxergando novas tipologias
na arquitetura, inclusive a do bangalô, que se adaptou e se adequou às
características de uma cidade marcada pelos trilhos do trem.
Essa arquitetura se fez presente na vida do operário da ferrovia, e como era
utilizada como solução à moradia operária na capital paulistana, ela cumpriu
o mesmo papel, em Bauru, assumindo um modelo predominante como parte
do cenário e da vida das pessoas de diferentes classes sociais. (SANTOS,
GHIRARDELLO, 2018, p.858).

A volumetria do bangalô segue, em grande parte dos edifícios analisados, os parâmetros da


imagem a seguir (figura1). Telhado com várias águas, recuo frontal de três metros, recuos
laterais, presença de jardins. Essa seria a “casa tipo” mencionada anteriormente, contudo, em
meio a sua simplicidade, era possível adorná-lo de maneira agradável e condizente com o
período em que seria construído e com o gosto do construtor ou proprietário, ou com a moda.

1465
Figura 1: Volumetria de um “bangalô tipo”.

Fonte: Volumetria elaborada pela autora, 2014.

Esses bangalôs, por mais que sejam despojados, possuem “roupagens”2 arquitetônicas, ou seja,
eles se revestiam com certa delicadeza e singeleza do mesmo ecletismo do momento, só que de
maneira sutil; de art nouveau com arranjos florais e sinuosos, especialmente nas grades e
portões; de neocolonial simplificado; de art déco com novas formas urbanas geometrizadas, que
adotou uma tipologia de fachada futurista, menos rebuscada, com linhas estilizadas e
geométricas, utilizado principalmente para mostrar modernidade à cidade; e de estilo missões
de caráter nacionalista, que procura resgatar as origens, diferente dos estilos eclético e art déco
que tiveram sua origem na Europa.
Os bangalôs mais compactos tornaram-se, em Bauru, frequentemente utilizados pelos operários
qualificados e isto se pode observar através de um bairro ainda existente, a Vila de Santa Izabel
(Figura2). Esses bangalôs sobrevivem no cenário de Bauru, e merecem ser reconhecidos como
parte de sua história e arquitetura de um passado não tão distante, já que estas habitações
ainda se mantém vivas devido a sua contemporaneidade desde a época de sua construção.

2
As roupagens dos bangalôs foram identificadas em cada projeto analisado, porém, as fotografias dos
bangalôs ainda existentes e pouco descaracterizados retratam de maneira fiel a questão abordada.

1466
Figura 2: Vila Santa Izabel, antes e depois. Ainda existem alguns bangalôs.

Fonte: NUPHIS, 2015; foto da autora, 2015.

3 – As memórias do esquecimento
Observou-se que os bangalôs sobreviveram ao longo do tempo devido a sua centralidade no
terreno, que permitiria a incorporação de outras construções ao fundo como edículas e
garagem, bem como ampliações nas laterais. Outro aspecto relevante é que seu espaço interno
é "utilizável" até nos dias atuais, seja em relação à circulação, ao número de ambientes, à
iluminação e ventilação naturais, pé direito, etc.
Por esse motivo, tal arquitetura reflete a entrada do homem médio urbano em uma nova forma
de morar contemporânea ao seu período, um passo adiante do ecletismo, contudo, distante dos
valores técnicos e formais da linguagem modernista preconizada pelos arquitetos de vanguarda
do período. (SANTOS, GHIRARDELLO, 2018)
Mas, não há valorização desta tipologia, ela vem sendo degradada, descaracterizada (Figura3),
antes de ser reconhecida e valorizada como uma arquitetura que conta a história de Bauru.
Deste modo, o intuito deste trabalho é demonstrar a importância arquitetônica de uma

1467
habitação vernacular indiana, que transitou até o interior de São Paulo e trouxe consigo história,
soluções e nova maneira de morar ao século XX.

Figura 3: A descaracterização trazendo o esquecimento, Rua Padre João.

Fonte: Foto da autora, 2014.

O bangalô compõe um rol de magnitudes, entre os quais, o de retratar o contexto histórico e a


arquitetura predominante na cidade. É importante ressaltar o valor do patrimônio arquitetônico
e histórico atrelado aos bangalôs no cenário de Bauru, afinal, segundo Boito (1884), em seu livro
“Os Restauradores”, que séculos souberam amar e entender as belezas do passado? E nós, hoje,
o quanto sabemos amá-las e respeitá-las? Este sempre foi um problema recorrente do passado
e ainda é vigente (Figura 4). É necessário compreender que não se pode preservar e desenvolver
sua identidade senão pela duração da memória. (CHOAY, 2001)
Quando se fala em identidade, é notória a questão do patrimônio imaterial também vinculada
ao bangalô, uma vez que este, [...] é transmitido de geração a geração, constantemente recriado
pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de
sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo para promover
o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. (IPHAN, 2014)

1468
Figura 4: A deterioração trazendo o sumiço, Vila Falcão.

Fonte: Foto da autora, 2014.

Ao abordar especialmente o assunto residência como um patrimônio imaterial, é preciso


compreender que é essencial deixar de lado o fato de, simplesmente, “morar nela”, pois uma
habitação compreende, além da função de abrigo, aspectos culturais, sociológicos e abrange
diversas atividades que nela são desenvolvidas (LEMOS,1996).
As características no cunho arquitetônico elevam o bangalô ao merecimento de sua preservação
como um patrimônio histórico e construtivo que marca a cidade de Bauru, e ainda porque, em
seu interior, estava a vida de um burguês, de um abastado e de um operário, onde desenvolviam
seus afazeres cotidianos, rotinas do dia de trabalho, os lazeres, o observar a rua da varanda, a
brincadeira das crianças no quintal, os animais, o colher das frutas e da horta, as conversas no
portão. Todos esses fatores relacionam o bangalô a um patrimônio imaterial que envolve
arquitetura, história, vivência e a paisagem em que se insere, afinal, o bangalô, por não estar no
alinhamento da rua, modifica a paisagem de Bauru e assim a percepção do “olhar a cidade”.
(Figura 5).

1469
Figura 5: Ainda sobrevive, Rua Antônio Alves

Fonte: Foto da autora,2015

Referências

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viação nacional. São Paulo: Livraria Martins, 1950.

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Beatriz Mugayar Kühl e Paulo Mugayar Kühl. 1ª Ed. São Paulo, Ateliê Editorial,2002.

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1470
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WOLFF, Silvia Ferreira Santos. Jardim América: O primeiro bairro de São Paulo e sua Arquitetura. São
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1471
CIDADE-MONTAGEM:
Uma reflexão metodológica sobre uma rede de significações possíveis
NóCego - Outros silêncios.

Larissa Ferraz Rios


Mestranda; Universidade Federal de Santa Catarina; lari.rferraz@gmail.com

Milton Luz da Conceição


Professor Doutor; Universidade Federal de Santa Catarina; miltonluzdaconceicao@gmail.com

A ideia de cidade-montagem parte do pressuposto de cidades complexas, palcos da coexistência


de tempos e de espaços díspares e heterogêneos. A cidade-montagem, metaforicamente, se
manifesta na forma de “nós” (nós cotidianos, nós de silêncio, nós do imaginário) – incorporados
sob a forma de imagens. O processo de montagem de tais imagens conecta e transforma os nós
ao mesmo tempo que os rompe, os desmonta e os emaranha novamente. Este artigo visa a uma
reflexão sobre o modo de pensar por montagens, apresentando o Atlas Mnemosyne do
historiador alemão Aby Warburg, que trabalhou a montagem como um sistema de diálogo entre
tempos, latências e anacronismos, consonâncias e dissonâncias, cujo trabalho se relaciona com
a montagem literária de Walter Benjamin.
Palavras-chave: Montagem; Imagem; Cidade; Atlas Mnemosyne.

The idea of a city-montage starts from the assumption of complex cities, stages of the
coexistence of different and heterogeneous times and spaces. The city-montage, metaphorically,
manifests itself in the form of “knots” (everyday knots, knots of silence, knots of the imaginary)
- incorporated in the form of images. The process of assembling such images connects and
transforms the knots, at the same time that it breaks, dismantles them, and entangles them
again. This article aims at reflecting on the way of thinking through montages, presenting Atlas
Mnemosyne by the German historian Aby Warburg, who worked on montage as a system of
dialogue between times, latencies and anachronisms, consonances and dissonances, and whose
work is related to Walter Benjamin's literary editing.
Keywords: Montage; Image; City; Atlas Mnemosyne.

1472
1 – A cidade-montagem
Vive-se no mundo das cidades contemporâneas. Trata-se de cidades plurais, descentralizadas e
fragmentadas, que podem ser compreendidas como verdadeiros mosaicos de culturas. A ideia
de mosaico, quando tomada de forma figurada, pode ser definida como um conjunto de
elementos, fragmentos e pedaços justapostos; algo semelhante a um quebra-cabeças, ou a uma
montagem; perspectiva que alguns teóricos, como Walter Benjamin e Aby Warburg, refletiam
já nas primeiras décadas do século XX.
Para o primeiro, por exemplo, a ideia da montagem também é proveniente de uma composição
ou justaposição, pelo modo como as peças, os fragmentos se articulam, “cruzando-se em todas
as combinações possíveis, de modo a revelar analogias e relações de significado” (BENJAMIN,
2006). Seria possível então, metaforicamente, conceber a cidade enquanto uma grande
montagem?
É neste contexto que se pode compreender o que Paola Jacques (2015) definiu como cidade-
montagem: cidades complexas, palco da coexistência de tempos e de espaços díspares e
heterogêneos, passíveis de revelarem relações de analogias e de significações múltiplas. É a este
pressuposto e às definições da autora que se amarra este artigo. Em seu texto Montagem
Urbana: Uma forma de conhecimento das cidades e do urbanismo, a autora discute como se
pode pensar o conhecimento de ambos – cidade e urbano – a partir do pressuposto da
montagem, pressuposto este que se explicará a seguir.
O historiador, filósofo e crítico da arte Didi-Huberman (2013) defende que a montagem, além
de um procedimento formal, é um método de conhecimento. No primeiro destes casos, estaria
diretamente associada ao olhar, à apreensão da realidade: algo semelhante a uma visão
expandida, panóptica, caleidoscópica, que incita a colisão de diferentes pontos de vista em uma
mesma imagem, sugerindo um “desdobramento do tempo” (TEITALBAUM, 1992, apud.
JACQUES, 2015).
Já a montagem como método de conhecimento se apresenta como um “método de criação,
problematização ou exposição de ideias” (JACQUES, 2015, p. 48). Neste caso, amarra-se uma
série de teóricos do início do século XX, a exemplo daqueles citados no início deste texto, Walter
Benjamin e Aby Warburg. O primeiro deles trabalha a teoria da “montagem literária”: um
conjunto de escritas, recortes de palavras, fotografias, citações, referências, tipografias,

1473
inspiradas em suas deambulações, em seu flaneurismo1 pela cidade de Paris em seus tempos
modernos.
Neste sentido, o contexto das montagens literárias de Benjamin é o contexto dos grandes
projetos modernizadores das cidades europeias e, neste caso específico, o contexto das
passagens parisienses, as galerias provenientes das reformas do barão Haussmann2, muito
estudadas pelas disciplinas de urbanismo. Benjamin trabalhou suas montagens literárias a partir
de materiais recolhidos por ele durante tais deambulações, conforme explica Jacques (2015),
sob a postura de um colecionador: um trapeiro, catador de fragmentos, que colecionava
diversos materiais, textos de distintos tempos e distintos campos do conhecimento.
Também é por entre os fragmentos que ele desenvolve e que monta sua escrita. Trabalhando a
partir da montagem de tais fragmentos, assume-se uma “lógica fragmentária, da incompletude
e da efemeridade” (JACQUES, 2015, p. 51). Quebra-se, portanto, a linearidade da narrativa
literária, o estilo argumentativo padrão, e passa-se a uma nova forma de narração sob o
princípio da montagem: estes fragmentos, os pequenos recortes, montados em associações
improváveis. Não deixa de ser, portanto, uma forma diferente de narração da experiência das
cidades modernas, porém sob o viés de suas transformações a partir de seus fragmentos –
passagens – e não sob o viés de sua narrativa linear dominante, o status quo.
É importante comentar também que, a partir destes fragmentos, Benjamin concebe o que se
podem chamar de “imagens de pensamento”. Para ele,
a imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo,
formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na
imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é
puramente temporal, a do ocorrido com o agora é dialética – não de natureza
temporal, mas imagética” (BENJAMIN, 2006, p. 504).

Pode-se afirmar que Benjamin não exclui a ideia de montagem enquanto procedimento formal;
pelo contrário, assume sua dualidade, a ambivalência entre aquilo que seria o procedimento
formal e a montagem como método de conhecimento.

1
O termo flaneurismo deriva do substantivo francês “flanêur”, que significa andarilho, passeador. A figura
do Flanêur foi criada por Charles Baudelaire (1821-1867) e se refere àquele que caminha pela cidade.

2
Georges Eugène Haussmann foi o responsável pela reforma urbana de “embelezamento estratégico” da
cidade de Paris entre os anos 1853 e 1870, muito discutida nas disciplinas de urbanismo e de história das
cidades.

1474
Dito isto, a primeira etapa da montagem é, portanto, a seleção de seus fragmentos. Jacques
(2015) observou dois principais aspectos para estes fragmentos. Primeiramente, seu aspecto
microbiano; e em segundo lugar, sua incompletude. O aspecto microbiano também pode ser
definido como um aspecto micrológico: são as miniaturas urbanas, as pequenas partes de um
algo maior, que não pretendem formar uma totalidade. São instantâneos de situações urbanas
cotidianas. De acordo com o próprio Benjamin (2006, p. 198),
nunca a medida do ‘muito pequeno’ teve tanta importância quanto agora.
Inclui-se também o muito pequeno em quantidade, o ‘mínimo’. Trata-se de
medidas que adquiriram significado para as construções da técnica e da
arquitetura muito antes da literatura se dignar de adaptar-se a elas.
Basicamente é a primeira manifestação do princípio da montagem.

Já o segundo aspecto, a incompletude, trata da ausência de uma totalidade, fator que incita
explorações e descobertas e, também, serve de convite à imaginação. Esta incompletude, aliada
à despretensão pelo alcance de tal totalidade e unidade incita uma outra reflexão importante:
na relação entre estes fragmentos, existe o espaço do entre. São os espaços vazios, os intervalos,
que separam os fragmentos na montagem. “O intervalo entre os fragmentos é determinante,
pois é precisamente nesses intervalos que surgem campos de possibilidades para novos nexos
de compreensão” (JACQUES, 2015, p. 51).
Sob este mesmo viés, é importante comentar ainda que a montagem como forma de
conhecimento não se define apenas pelo processo do montar – mas também pela desmontagem
e pela remontagem. O desmontar impõe uma certa mudança no posicionamento específico das
coisas – e, à medida que estas coisas são trocadas de lugar, deslocadas, o próprio entendimento
sobre elas passa a acontecer de outra forma. A dizer, a alteração das posições permite que se
criem novas compreensões. Neste contexto,
o processo de montagem seria assim uma forma de utilização daquilo que
sobrou, que já parece obsoleto, uma forma de usar os restos, farrapos e
resíduos da história, através de uma remontagem de antigos fragmentos.
Seria assim um processo de mistura temporal (...) de tempos e narrações
heterogêneas, um processo de montagem que formaria também uma série
de anacronias e de polifanias. Um método crítico a partir da justaposição de
fragmentos a partir de suas diferenças (JACQUES, 2015, p. 47).

A esta altura já é possível compreender o que pode vir a ser estudar as cidades a partir da
concepção de cidades-montagens. Tomando como exemplo a própria temática deste congresso,
pode-se incitar a analogia aos nós. É possível associar, metaforicamente, uma montagem a um
nó. Os nós podem ser amarrados (montagem), rompidos (desmontagem) e emaranhados

1475
novamente (remontagem). Esses nós se manifestam no cotidiano da cidade; nos silêncios das
tensões e das limiaridades; e até mesmo no imaginário; e são incorporados pelas pessoas, pelos
corpos que circulam na cidade, sob a forma de imagens.
Neste caso, os fragmentos são para as montagens o equivalente ao que as imagens da cidade
são para os nós. O processo de montagem destes fragmentos, destas imagens, conecta e
transforma os nós ao mesmo tempo que os rompe, os desmonta e os emaranha novamente.
Seria possível, ainda, a compreensão da cidade-montagem como uma grande rede: no
entrelaçar dos fragmentos surgem os nós, enquanto os fios que os unem funcionam como
rastros, trilhas ou traços e, no fluxo destes fios, também se estabelecem relações de sentido.
Com base no exposto, pretende-se, a seguir, introduzir uma reflexão metodológica em que o
questionamento das imagens destes nós se dê a partir de seu processo de montagem. Isto
permite ao pesquisador que se teçam vínculos inesperados, que se construam hipóteses, sem
objetivar uma descrição fenomenológica, mas sim a criação de uma rede de significações
possíveis. Como modo de pensar e de estabelecer tais relações entre imagens, será apresentado
a seguir o Atlas Mnemosyne do historiador alemão Aby Warburg, que trabalhou a montagem
como um sistema de diálogo entre tempos, latências e anacronismos, consonâncias e
dissonâncias, cujo processo de montagem se conecta diretamente com as imagens dialéticas de
Walter Benjamin.

2 – Atlas Mnemosyne
Na mitologia grega, Mnemosyne é a deusa da memória, mãe das artes; Atlas, o titã que
carregava o mundo em suas costas. Não haveria título mais assertivo para a obra inacabada do
pesquisador alemão Aby Warburg, o Atlas Mnemosyne (Der Bilderatlas Mnemosyne), um modo
de pensar e de estabelecer conexões através de imagens. É uma obra, segundo Didi-Huberman
(2013), capaz de “oferecer e de abrir balizas visuais não de uma História da Arte, mas de uma
memória impensada da história”.
O Atlas Mnemosyne advém de uma transversalidade, seja epistemologicamente falando, seja
em relação ao próprio tempo das imagens. Em um período em que as produções acadêmicas
buscavam incessantemente a categorização dos tempos e da história sob uma perspectiva de
linearidade (aqui entram as vanguardas, por exemplo), o Atlas Mnemosyne, criado entre os anos
24 e 29 do século XX, surgia como a representação das impurezas recalcadas pela modernidade
(MACIEL, 2018).

1476
Dito isto, discorrer-se-á um pouco sobre o Atlas que surgiu enquanto o pesquisador, por entre
estudos sobre a forma pela qual os homens renascentistas significavam a Antiguidade e por ela
eram influenciados a ponto de representarem seus resquícios artisticamente em sua própria
cultura, depara-se com aquilo que viria a se chamar “vida póstuma da imagem”. A Nachleben,
ou seja, este pós-vida da imagem, como denominou Warburg, que se refere à maneira como as
imagens podem assombrar o tempo posterior à sua criação. Já a Pathosformel, também
conhecida como fórmula de páthos, outro conceito sugerido pelo autor, seria a materialização
da Nachleben na forma de imagem.
São, portanto, conceitos que se relacionam à já citada transversalidade do tempo, ou melhor,
aos seus anacronismos, aos diferentes tempos. Nas palavras de Didi-Huberman (2013, p. 55), a
forma sobrevivente, no sentido de Warburg, “desaparece num certo ponto da história,
reaparece muito mais tarde, num momento que talvez não fosse esperada, tendo sobrevivido,
por conseguinte, no limbo ainda mal definido de uma memória coletiva”.
Neste contexto, o Atlas Mnemosyne (Figuras 01 e 02) compunha-se de um conjunto de 79
painéis cobertos de tecidos pretos, em que se apresentavam, em sua superfície,
aproximadamente 970 fotografias diferentes, monocromáticas, que convidam o observador a
mergulhar em uma “história da arte sem palavras”, como diria o próprio Warburg, ou ainda, em
uma “história de fantasmas para adultos”, como diria Didi-Huberman. Segundo este último, “o
meio escuro deve ser entendido (...) como um oceano em que destroços vindos de tempos
múltiplos se juntassem no fundo de águas tenebrosas (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 416).

Figuras 01 e 02: Pranchas 39 e 46 do Atlas Mnemosyne.

Fonte: The Warburg Institute. Warburg.sas.ac.uk.

1477
Associam-se, assim, às imagens como lampejos e às constelações de Benjamin:
Em um primeiro momento, a prancha não passa de um enigma, de um
autêntico quebra-cabeça. Ela é ao mesmo tempo uma única imagem e, no
entanto, um mosaico de imagens, um grande quadro-negro que cerca um
conjunto de manchas luminosas. Imagens que cintilam como vaga-lumes na
noite. (...) Misterioso caderno de constelações que os homens, desde a noite
dos tempos, procuram desvendar e decifrar (SAMAIN, 2011, p. 39).

É importante comentar que as fotografias, ou seja, as imagens que compõem as pranchas, não
são presas a estas pranchas de forma fixa, mas sim são fixadas através de um sistema dinâmico
que permite que as imagens sejam reorganizadas, realocadas. Esta possibilidade de dispor as
imagens em diferentes configurações indica que Warburg não visualizava tais imagens de forma
fixa, mas sim de forma dinâmica: montando, desmontando, remontando e encontrando, em
cada nova constelação, uma nova possibilidade de significado. Warburg “havia compreendido
que devia renunciar a fixar as imagens, assim como um filósofo precisa saber renunciar a fixar
suas opiniões. Desse modo, o pensamento é uma questão de plasticidade, de mobilidade, de
metamorfose” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 389).
Neste ponto, começam a se tornar claros tanto o que se define como maneira de pensar por
montagens, quanto as conexões do modo de pensar benjaminiano e warburguiano. Segundo
Michaud (2013), para ambos os autores, as imagens são formas de pensamento: o primeiro,
parte de textos para produzir imagens, enquanto o segundo parte de imagens para produzir
conceitos. O próprio método de conhecimento de Warburg, hoje conhecido como a “Ciência
sem Nome”, foi elaborado a partir de um modo de produção de saber em que são as próprias
imagens, quando relacionadas entre si, que produzem os sentidos: a mesma lógica de
pensamento fragmentária da montagem literária.
No entrelaçar das imagens, ou melhor, no espaço do entre, nos entremeios das fotografias, traz-
se novamente a metáfora dos nós: estes entremeios funcionam como fios, como traços, rastros
que conectam as imagens. Através deles se processa também o conhecimento por meio das
associações entre as imagens. No Atlas, é a posição da imagem na prancha, o modo como as
imagens se relacionam entre si e com os espaços pretos do entre imagens, que ativam as forças
contidas nestas imagens.
Trata-se, assim, da “iconologia do intervalo”, proposta pelo pesquisador. Pode-se afirmar que a
própria distância entre as imagens, o espaço dos rastros, faz surgir relações inesperadas entre
elas e diferentes possibilidades de cognição, uma vez que “os painéis que lhe dão sustentação
são entendidos como campos de força atravessados por tensões” (OLIVEIRA, 2017, p. 49). Dessa

1478
forma, fica claro que o trabalho de Warburg não visa decifrar imagens, mas sim articular, como
explica Oliveira (2017), as imagens junto de seus rastros, para compreender como elas
sobrevivem e como elas se transformam de acordo com as diferentes formas de montagem e
suas significações possíveis.

3 – Algumas considerações
Imagens e pensamentos isolados possuem potencial latente. Assim como na cidade e no
urbanismo, estudar certos temas de forma isolada, ou ainda unicamente sob a perspectiva da
narrativa dominante, reprimem potenciais latentes: como as relações cotidianas, o diferente, o
periférico, o excluído, o lugar do outro. O mesmo se pode dizer sobre os espaços de tensão, as
forças do entre; que não deixam de se relacionar com as zonas limítrofes, com as limiaridades
da cidade, com os espaços de poder. A dizer, montagens são conflitos: assim como o espaço
público é conflito, assim como a cidade é conflito.
Além disto, tendo em vista o contexto urbano enquanto uma sobreposição de tempos, uma
sobreposição de camadas históricas, é possível compreender como o pressuposto e a teoria da
montagem podem ser aplicados às cidades contemporâneas.
Um tipo de conhecimento transversal que atravessa campos distintos,
explora seus limiares e explode seus limites ou fronteiras. Uma forma de
conhecimento processual que se constrói durante a própria prática, na ação
mesmo de montar/desmontar/remontar, (...) um tipo de pensamento em
movimento, que expõe a complexidade, a “desordem” das coisas (do mundo
e das cidades), que atua por suas heterogeneidades, pelas multiplicidades,
um pensamento em transformação permanente, que recusa qualquer síntese
conclusiva final e que assume a incompletude como princípio (JACQUES,
2015, p. 78).

Para finalizar, constata-se que a montagem permite que diferentes tempos e diferentes fontes
se relacionem entre si, pois, quando associados, produzem conhecimento, e é isto que se visou
ilustrar com a metáfora dos nós da cidade: colocando lado a lado e em diálogo imagens de
períodos distintos, como são as próprias imagens da cidade, por exemplo, tratando destes
anacronismos e das impurezas do tempo, das formas que se metamorfoseiam e perduram, é
possível compreender e reconhecer o potencial epistemológico das cidades-montagem.

Agradecimentos
Agradecemos ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Federal de Santa Catarina e à CAPES pelo apoio financeiro.

1479
Referências
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo horizonte: Editora UFMG/Imprensa Oficial, 2006.

DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo
Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

JACQUES, Paola B. “Montagem Urbana: Uma forma de conhecimento das cidades e do urbanismo”. In:
[BRITTO, Fabiana D.; JACQUES, Paola B]. Memória, Narração, História: Experiências metodológicas para
compreensão da complexidade da cidade contemporânea. Salvador: EDUFBA, 2015. 47-94 p.

MACIEL, Jane C. D. S. “Atlas Mnemosyne e saber visual: atualidade de Aby Warburg diante das imagens,
mídias e redes”. Revista Ícone. Recife: Vol. 16, N. 2, Set. 2018. 191-209 p. Disponível em <
https://periodicos.ufpe.br/revistas/icone/article/view/238041>. Acesso em 21/02/2021.

MICHAUD, Philippe-Alain. Aby Warburg e a imagem em movimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.

OLIVEIRA, Tatiana. Caminhar, fotografar, fabular: Entre a cidade e a fotografia. Tese de Doutorado
(Doutorado em Comunicação e Semiótica) – Pontíficia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo,
2017.

SAMAIN, Etienne. “As Mnemosyne(s) de Aby Warburg: Entre antropologia, Imagens e Arte”. Revista
Poiésis. Rio de Janeiro: Vol. 12, N. 17, Jan./jul. 2011. 28-51 p. Disponível em <
https://periodicos.uff.br/poiesis/article/view/27032>. Acesso em 15/02/2021.

1480
EM VÃOS
NóCego - Outros silêncios.

Vladimir Bartalini
Arquiteto-Urbanista / Faculdade de Arquitetura e Urbanismo USP/ bartalini@usp.br

O artigo refere-se aos rios da bacia do Verde, situada na região noroeste da cidade de São Paulo,
ocultados e silenciados por uma urbanização indiferente ou mesmo hostil à sua presença. Busca
explorar suas falas e silêncios propondo um paralelo entre a precariedade dos vestígios
remanescentes e o fenômeno da linguagem, com a intenção de alimentar a discussão sobre
intervenções na paisagem.
Palavras-chave: córregos ocultos; linguagem; paisagem

This paper refers to the rivers of the Verde basin, located in the northwest region of the city of
São Paulo, hidden and silenced by an indifferent or even hostile urbanization. It seeks to explore
the speeches and silences of these rivers by proposing a parallel between the precariousness of
their remaining vestiges and the phenomenon of language, in order to feed the discussion about
interventions in the landscape.
Keywords: hidden streams; language; landscape

1481
[...] temos de considerar a palavra antes de ser pronunciada,
o fundo de silêncio que não cessa de rodeá-la, sem o qual ela nada diria [...]

M. Merleau-Ponty, A linguagem indireta e as vozes do silêncio

1 – No contra fluxo
A montanha é inseparável do vale; um pressupõe o outro, assim como o silêncio pressupõe o
ruído, diz Eugenio Turri (2010). Nas planícies fluviais ou litorâneas florescem e se expandem as
cidades, pastagens e plantações; delas partem e a elas chegam os caminhos; nelas se dá a
efervescência e o burburinho das ruas, dos portos e aeroportos; nelas as redes de estradas se
adensam, as trocas e os meios de comunicação se intensificam e diversificam ao extremo; elas
são o palco principal dos movimentos de integração e de desintegração do mundo humano. A
montanha, ao contrário, é o espaço não operoso, o território do silêncio que as mais diferentes
culturas elegeram como lugar sagrado voltado ao recolhimento, à contemplação, à integração
com a ordem cósmica; o lugar por excelência das experiências místicas, sem palavras, sem fala.
Mesmo que a vida moderna tenha profanado as montanhas (Petrarca terá sido o primeiro,
afirmam os historiadores), a sua força simbólica subsiste. Que a mineração tenha esvaziado seus
corpos e só deixado a carcaça; que hordas de turistas ruidosos as vasculhem no inverno e no
verão; que, perfuradas por túneis, já não se imponham como obstáculos; que estejam cravadas
de torres de transmissão, nada vem abalar o poder desse arquétipo da ascensão e da firmeza.
Caminhar a montante, subir os vales até as nascentes dos rios é passar do miúdo ruído mundano
ao silêncio grandioso. Assim, nosso percurso começa na foz.

2 – Piratininga
Os rios andam de frente, mas respiram de lado. Ao expirarem largamente expelem seus peixes;
os que não voltam quando a água reflui morrem na terra sem emitir um som sequer (os peixes
não piscam nem falam, ao menos para nós). Os caingangues de São Paulo diziam piratininga
para se referirem aos peixes que jaziam secos após as cheias dos rios. Está no nome da cidade:
São Paulo dos Campos de Piratininga.
Os rios são também escultores natos de landart: já nascem escavando montanhas. Cinzelam a
terra, transportam os detritos e os deitam fora em seus movimentos respiratórios. Os rios
trazem partes das montanhas para o vale e as reorganizam em novas formas. A bacia sedimentar
de São Paulo é uma teia de rios com vestígios de montanhas nos interflúvios.

1482
Os rios são ruidosos, mas exalam silêncios de peixes e de montanhas nas suas várzeas. Caminhar
a montante é sempre ir à montanha, é passar do ruído ao silêncio, mesmo em relevos
considerados suaves, como o de São Paulo.
Partimos da margem direita do Tietê, do ponto onde um dentre tantos corpos d’água chamados
Verde, esquivando-se dos automóveis, ônibus e caminhões, se atira no rio principal. No seu
baixo curso, o Verde é um rio de planície, acomodado num vale largo, ocupado por pistas de
rolagem em ambas as margens e por várias lojas de revenda de veículos e de peças para
automóveis que, junto com supermercados e estacionamentos, e a despeito do movimento do
comércio e de alguns condomínios de apartamentos, inundam o espaço com a solidão das
grandes extensões úmidas. Essa atmosfera melancólica acompanha boa parte dos vales dos
formadores do Verde, os ribeirões Congo e Guaimi, também cobertos por avenidas até onde vai
a planície que antecede os contrafortes da Serra da Cantareira. Mesmo nos dias úteis de verão,
quando o próprio ar e as cores vibram mais, paira uma quietude que evoca os tempos não tão
distantes em que aquelas várzeas estariam pontuadas por casas modestas e ruas mal
consolidadas nos loteamentos incipientes; por restos de hortas e capinzais; por animais
pastando ou ciscando livres como as águas dos córregos, e atravessadas pelas estradas estreitas
e sinuosas, que ligavam São Paulo aos municípios a noroeste.
Essa placidez silenciosa, que chega a ser perturbadora porque guarda ameaças latentes, pode
desaguar de repente num espetáculo formidável, ainda mais assustador por não se reconhecer
nele qualquer som articulado que se aproxime de uma fala, apenas o bramido impassível de
uma matéria híbrida, composta de terra e água.

Figura 01: Transbordamento do Verde inunda a avenida General Edgard Facó

Fonte:
<https://www.google.com/search?q=av+general+edgar+fac%C3%B3&rlz=1C1CAFB_enBR805BR805&sou
rce=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=2ahUKEwjUgsXFkeXuAhXmHLkGHfSPA7wQ_AUoAnoECAMQBA&biw=1
164&bih=597#imgrc=oQICL1ZRc46H8M>, acesso em 12/02/2021

1483
3 – Dendrítico
Diz-se que o padrão da drenagem da bacia do Alto Tietê, onde se situa a cidade de São Paulo, é
do tipo dendrítico, de dendron, árvore. De fato, vistos do alto, os rios, seus afluentes e
subafluentes lembram copas engalhadas, uma densa floresta líquida. No entanto, nessas
árvores-rios o transporte da seiva bruta é invertido: ele se faz de cima para baixo. Suas raízes-
nascentes se fincam no alto, nas montanhas, e quanto mais capilares, melhor captam as
mensagens cifradas do centro da Terra, que mantêm em sigilo na sua mudez de raízes. Mas elas
carregam uma ambivalência: como copas, estão mais próximas do céu e conhecem o cantar dos
pássaros, embora elas mesmas não falem. Enquanto raízes, guardam o silêncio, são mortos-
vivos (BACHELARD, 2003), enterram-se com tenacidade, resistem à erradicação e, se atingidas,
escapam e se esgueiram em outros vãos; enquanto extremidades mais finas dos ramos, estão
sempre prestes a voar, a evaporar, evanescer. A sua linguagem é, portanto, mista, composta de
água, terra, ar e silêncios.
A imagem dendrítica admite antípodas: se as raízes são a árvore ao revés, a água-seiva desce
para os vales, que se ramificam e se abrem em copas sonoras, até ruidosas, culminando em
frutos civilizatórios, como se deu no mito sumério da árvore sagrada de Hulupu, que Inana
plantou em seu jardim, na cidade de Huruk. Vendo ameaçada por invasores a árvore que ela
salvara da correnteza do
Eufrates, Inana apelou a seu irmão, o guerreiro Gilgamesh. Este e “os filhos da cidade, que o
acompanharam, cortaram os galhos da árvore sagrada” e, assim, espantaram os intrusos que
foram banidos para as montanhas, para “um local selvagem e desabitado”1 (KRAMER e NOAH,
1983).

4 – Piracema
Assim que termina a planície, os cursos do Congo e do Guaimi abandonam as retas e as curvas
de grande raio e se convertem em zigue-zagues que se enfiam pelos quarteirões, e até mesmo
sob as construções; camuflam-se em becos e vielas estreitas até desaparecerem de vista. Não
se deixam então mais ver, nem ouvir.

1
Em oposição às teses culturalistas, tanto a reivindicação da paisagem como “o espaço mítico da distância
[...], ou seja, do estranhamento [...]” (CARCHIA, 2009, p. 216), quanto a abordagem da paisagem enquanto
experiência da perda de referências (LYOTARD, 2018), redimem o banimento do selvático para fora do
jardim, conforme expresso no mito de Inana. E o fazem não por meios simbólicos (a árvore no jardim
como representante domesticado da natureza), mas incorporam efetivamente o selvático assumindo-o
como constitutivo da paisagem e propiciador de aberturas nas malhas da razão.

1484
Seus corpos não cabem à risca na descrição que Dardel faz do espaço aquático, animado pelas
águas que ora deslizam com lentidão e frescor entre os arbustos, ora murmuram, ora modulam
cantos fascinadores. Tampouco remetem ao recolhimento da água calma dos lagos que
“aguarda o sopro que a fará ondular”, menos ainda às ondas do mar, “revelação material das
profundezas [...], apelo do abismo [...], encantamento sedutor que sobe do reino das sombras”
(DARDEL, 1990, p. 28).
Num esforço penoso, as águas desses rios deixam os vales para trás. Contra a correnteza
empreendem, caladas, a volta ao lugar onde nasceram, e por ser esta uma “autêntica quête
[busca]”, ela “não consiste em reencontrar o próprio objeto, mas em garantir as condições da
sua inacessibilidade” (AGAMBEN, 2012, p. 11).
As águas dos altos cursos já não se mostram, nem dizem nada de modo direto e inteligível,
sequer audível. Ocupadas em sua busca, são ciosas do seu mistério.
O que deixam são rastros vaporosos, atmosféricos, impalpáveis, mas nem por isso menos
pregnantes. Respira-se umidade, névoa, neblina, difusas ausências quando se sobe o Congo e o
Guaimi, apesar de imersos no urbano.
Vez ou outra, essa falta se condensa em sinais tão indiretos a ponto de impedir sua decifração,
ou tão desconexos que nem chegam a integrar uma escrita ou uma fala.
A oclusão do Congo e do Guaimi gera enigmas que se aproximam das dificuldades sofridas pelos
lingüistas diante do problema colocado pela unidade de um significante e de um significado, ou
da não relação dos símbolos com aquilo que eles deveriam designar.
Que sentido se poderia dar àquele prisma insolitamente interposto no eixo da avenida Brasilina
Vieira Simões (Figura 2)? Como é possível para um corpo humano, situado no espaço, interpretá-
lo como um estertor do Congo? Quem atenderia ao convite para debruçar-se no guarda-corpo,
dirigir o olhar para baixo e vê-lo escoar uns poucos metros, sujo e agonizante?

1485
Figura 2: Prisma no meio da avenida sinaliza o córrego do Congo

Fonte: o autor
Como esse mesmo corpo humano situado poderia saber que a régua vertical, fincada no
labirinto de passagens sem nome nos arredores da travessa Michihisa Murata (Figura 3), mede
as cheias, o pulso do Guaimi, tubulado sob o chão? É o mesmo que tentar adivinhar a pessoa
pelo eletrocardiograma ou pelos índices de glicemia registrados num exame de laboratório.

Figura 3: Dispositivo para medição de enchente sinaliza o córrego Guaimi

Fonte: o autor

5 – Lacunar
Apesar de tudo, os rios estão ali. Caso os índices da sua presença, mesmo que indiretos, fossem
mais numerosos e próximos uns aos outros, seria possível supor fonemas que valessem como
palavras, ou mesmo como frases, de modo a permitir apontá-los com o dedo, reconduzi-los, de
algum modo, para diante de nós. Mas, ao contrário do que nos lembra Merleau-Ponty sobre a
criança (infans, o não falante), para a qual “a palavra [...] funciona de início como frase, e talvez

1486
até certos fonemas como palavras” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 68), os rastros-fonemas
deixados pela ocultação dos rios não conseguem sustentar uma cadeia verbal.
Por outro lado, há de se considerar, ainda com Merleau-Ponty, que “é porque o signo é de
imediato diacrítico, é porque ele se compõe e se organiza consigo mesmo, que ele tem um
interior e acaba por reclamar um sentido” (Idem, p. 69). Por se oporem ao fundo de silêncio, e
por serem “realmente [...] lacunares”, pode-se apostar no “sentido nascente na borda dos
signos”, na “imanência do todo nas partes” (Idem, p. 69).
E se esse “todo” for o silêncio? Seria então o silêncio sobre o silêncio, como o branco sobre o
branco ou a água sobre a água. Mas, do mesmo modo que os olhos de um experto podem captar
nuances de branco, e que os dos pescadores perspicazes percebem variações na superfície,
uniforme para o leigo, do vasto mar, assim também seria possível distinguir silêncios.
Há o silêncio assimilável às trevas, ao nada; mas esse nada é também gerador do ser. Assim,
“mais do que contradição entre o nada e o ser, deve-se dizer que um nasce do outro, razão pela
qual o silêncio significa ir às fontes do ser, aproximar-se ao Princípio, ao mistério onde bebe o
ser” (TURRI, 2010, p. 22).
Há também o silêncio percebido “como suspensão, como distanciamento em relação ao evento
em ato” (Idem, p. 23), ou seja, o silêncio que advém da distância sentida pelo ser humano diante
de processos de longa duração, que estão sujeitos a ritmos mais lentos, bem diversos da
sucessão frenética de eventos que caracteriza a vida contemporânea. Daí a pouca atenção
dispensada às chamadas “coisas naturais”, às paisagens que se desenvolvem em tempos longos.
A omissão diante destas paisagens, diz Turri, se deveria ao fato de as considerarmos estáticas
por não produzirem o ruído a que o nosso agitado modo de vida nos acostumou. Elas seriam
meros panos de fundo imóveis e indiferenciados, contra os quais se desenrolam nossos atos
ruidosos. Quando estes cessam, o silêncio da paisagem pode se tornar insuportável.
E há, ainda, o “silêncio falante”, aquele fundo de silêncio que rodeia a palavra, e “sem o qual ela
nada diria” (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 75). Deste nasce a “palavra expressiva”. Em expressões
já consolidadas, diz Merleau-Ponty, parece não haver lacunas, nenhum silêncio falante; o seu
sentido é direto, e “corresponde ponto por ponto a torneios, formas, palavras instituídas. [...]
Mas o sentido das expressões que se estão realizando não pode ser desse tipo: é um sentido
lateral ou oblíquo, que se insinua entre as palavras”. Para beber na fonte, para alcançar o frescor
das origens, Merleau-Ponty incita a “fingir nunca ter falado”, a olhar a linguagem “como os
surdos olham aqueles que estão falando” (Idem, p. 76).

1487
Porém, às promessas de tal abertura expressiva contrapõe-se a possibilidade do silêncio que
ronda essas paisagens ser um silêncio espectral.

6 - Elementar
A certa altura do ensaio dedicado aos espectros de Veneza, Giorgio Agamben remete a uma
metáfora criada por Ingeborg Bachmann, em que a escritora propõe a comparação entre a
língua e uma cidade. Habitar Veneza seria então como estudar o latim, uma língua morta –
ressalvando “que de uma língua nunca se deve dizer que está morta, uma vez que ela, de algum
modo, ainda fala e é lida” (AGAMBEN, 2013, p. 63). A língua morta é uma língua espectral, “mas
que a seu modo vibra e acena e sussurra e que, com esforço e com a ajuda do dicionário,
podemos entender e decifrar” (Idem, p. 64). A quem se dirige o espectro da língua?, pergunta-
se Agamben. Não a nós, nem àqueles a quem outrora ela se dirigia. Não somos nós que a
falamos, nem ninguém; é ela que se fala. Assim também é com a cidade ou, generalizando, com
os fatos espaciais – e os rios são, de algum modo, fatos espaciais – que, após a morte, entram
no estágio de espectro: “o de um morto que aparece subitamente, de preferência nas horas
noturnas, range e emite sinais, às vezes até fala, embora de um modo nem sempre inteligível”
(Idem, p. 60).
Os espectros são feitos de marcas, diz Agamben, de cifras riscadas sobre as coisas, que “as más
obras de restauro apagam” e tornam ilegíveis (Idem, p. 61). Assim, continua ele,
na cidade, tudo o que aconteceu naquele caminho, naquela praça, naquela
rua, naquele cais [...], de repente se condensa e cristaliza numa figura, ao
mesmo tempo lábil e exigente, muda e provocadora, ressentida e distante.
Essa figura é o espectro, ou o gênio do lugar (Idem, p. 61).

Agamben identifica dois tipos de espectralidade: aquela que é uma forma de vida, “que começa
apenas quando tudo acabou e que tem, por isso, no que concerne à vida, a graça e a astúcia
incomparável daquilo que está consumado [...]” (Idem, p. 62); e aquela larvar, que não aceita
sua condição de espectro e finge ter um peso, uma carne, um futuro.
A que tipo de espectralidade pertencem esses rios envenenados e enterrados? Há todo um
sortimento de artigos cosméticos para maquilar rios-cadáveres e convertê-los em espectros
larvares. É melhor que o paisagista tome distância deles. Restaria então ao paisagista apenas a
alternativa de assumi-los em sua espectralidade consumada, mas digna?
Talvez ainda caiba argumentar que um rio nunca morre, embora para o rio, na poesia cabralina,
“viver vale suicidar-se, todo o tempo” (MELLO NETO, 1966, p. 68).

1488
O germe responsável pelo seu renascer contínuo estaria na experiência elementar que a água,
que é o seu corpo, proporciona. É o que autoriza Jean Giono, no conto “O homem que plantava
árvores”, a ligar a água à vida, quando diz que “ao mesmo tempo que a água reaparecem os
salgueiros, os vimeiros, os prados, os jardins, as flores e uma certa razão de viver [grifo nosso]”
(GIONO, 2008, p. 16), segundo a interpretação de Jean-Philippe Pierron (2012).
É nesta direção que a poética dos elementos de Gaston Bachelard aponta. O fogo, a terra, o ar,
a água “são também os conectores imaginais que permitem provar, no instante, uma ligação
elementar [grifo nosso] a montante de todas as rupturas ulteriores (tecnociência) ou de todo
anseio de reatamento futuro (ecologismo)” (PIERRON, 2012, p. 15). Não se trata nem da
objetividade de uma natureza naturalizada, nem da projeção subjetiva de estados de alma sobre
a natureza, mas do entrelaçamento inextricável que caracteriza “a experiência que une o nosso
ser ao ser da Terra” (a água aqui subentendida) (Idem, p. 16).
Não é o caso, enfim, de optar entre o canto da vida entoado pela poética dos elementos e “a
elegância e a precisão de quem não tem mais nada diante de si”, próprios da espectralidade
consumada (AGAMBEN, 2013, p. 62), até porque o próprio Agamben, se transpusermos o final
do seu ensaio sobre Veneza para os nossos rios, oferece uma abertura, pois se os rios
sobrevivem agora como fantasmas,
só a quem tiver sabido fazer-se íntimo e familiar a eles, ressoletrado e
memorizado suas palavras descarnadas e as pedras, poderá talvez um dia
reabrir-se aquela brecha, na qual bruscamente a história – a vida – cumpre as
suas promessas (Idem, p. 65).

Referências
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Trad. Silvino José Assmann.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.

AGAMBEN, Giorgio. Dell’ utilità e degli inconvenienti del vivere fra spettri. Nudità. Roma: Nottetempo,
2013 (1a edição 2009), pp. 59-65.

BACHELARD, Gaston. A Terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade. Trad.
Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2003 (1a edição 1990).

CARCHIA, Gianni. Per uma filosofia del paesaggio. In: D’ANGELO, Paolo (Ed.). Estetica e paesaggio.
Bologna: Il Mulino, 2009, pp. 207-218.

DARDEL, Eric. L’homme et la terre: nature de la réalité géographique. Paris: Éditions du CTHS, 1990 (1a
publicação Paris: PUF, 1952).

GIONO, Jean. L'homme qui plantait des arbres. Paris: Gallimard, 2008 (1a edição 1953).

1489
LYOTARD, Jean-François. Scapeland. L’inhumain: causeries sur le temps. Langres: Klincksieck, 2018, pp.
173-180 (1a publicação in Revue des sciences Humaines, I, 1988).

MELO NETO, João Cabral de. A educação pela pedra. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1966.

MERLEAU-PONTY, Maurice. A linguagem indireta e as vozes do silêncio. In O olho e o espírito. São


Paulo: Cosac & Naify, 2004, pp. 67-119.

PIERRON, Jean-Philippe. “Poétique de l’arbre et de la forêt: une lecture bachelardienne de l’oeuvre de


Jean Giono”. Altre modernità: Rivista di studi letterari e culturale. Milano: Università degli Studi di
Milano, Facoltà di Lettere e Filosofia, 2012, Número extraordinário 2, pp. 11-23, disponível em
<https://dialnet.unirioja.es/ejemplar/386382>, acesso em 23/02/2021.

TURRI, Eugenio. Il paesaggio e ilsilenzio. Venezia: Marsilio Editori, 2010 (1a edição 2004).

WOLKSTEIN, Diane e KRAMER, Samuel Noah. Inanna: Queen of Heaven and Earth - her stories and
hymns from Sumer. New York: Harper and Row, 1983. Disponível em
<https://www.angelfire.com/me/babiloniabrasil/hulupu1.html>, acesso em 19/02/2021.

1490
ESPAÇOS LIVRES PÚBLICOS NO BAIRRO MORADA DA SERRA EM CUIABÁ/MT: Nós
(silenciados) de articulação de lugares e integração da diversidade
NóCego - Outros silêncios.

Lucianna Oliveira e Souza


Arquiteta e Urbanista; Pesquisadora Associada ÉPURA/UFMT; arq.lucianna@hotmail.com

Doriane Azevedo
Arquiteta e Urbanista; Docente UFMT; doriane.azevedo@gmail.com

Os Espaços Livres Públicos (ELPs) podem contribuir na estruturação da paisagem, conectar


lugares, imprimir movimento e também a pausa necessária, lugares (nós) da vivência cotidiana
e memória coletiva. Buscamos desvelar os ELPs do Bairro Morada da Serra (Cuiabá/MT),
território habitacional do Centro Político Administrativo (CPAs I, II, III e IV), o conjunto
urbanístico com características modernistas, implantado pelo governo estadual entre 1977 e
1985. Na atualidade, analisamos as características físicas e formas de apropriação dos ELPs
nessas localidades, à luz dos dados oficiais (composição demográfica) que indicou uma
(tendência à) homogeneidade de tipologias dos ELPs, restringindo as apropriações pelos
diferentes grupos sociais que habitam os CPAs, silenciando esses nós de articulação de lugares
e de integração da diversidade.
Palavras-chave: Sistema de Espaços Livres; Morada da Serra; Cuiabá/MT; CPA; Modernismo

The Public Open Spaces (POS’s) can contribute to a landscape structuring, connecting places,
creating movement and the necessary rest, places (nodes) of the daily experience and collective
memory. We examine the POS’s in the neighbourhood of Morada do Ouro (Cuiabá/MT),
residential sector of the seat of the government (CPAs I, II, III and IV), a complex of buildings with
modernist features, built by the state between 1977 and 1985. We analyze the physical
characteristics and the appropriation of these POS’s in the light of official data (demographic
composition) that indicated a (tendency to) homogeneity of POS’s typologies, restricting
appropriations by the different social groups that inhabit the CPAs, silencing these nodes of
articulation of places and integration of diversity.
Keywords: Public Open Spaces; Morada da Serra; Cuiabá/MT; CPA; Modernism

1491
1 – Espaços livres públicos: nós de vivência e memória coletiva
As práticas de lazer configuram espaços públicos, cotidiana e espacialmente, tornando-os nós
da (con)vivência coletiva e individual do espaço urbano, (re)produzindo, (re)constituindo e
(re)ssignificando territórios, lugares e paisagens.
Em uma conjuntura na qual atribui-se aos espaços (livres) públicos da cidade um caráter
inerentemente violento, e o lazer e a fruição do tempo livre só se justificam como uma vantagem
socioeconômica (ROLNIK, 2000), criar nós de (con)vivência cotidiana do espaço é como um
movimento de resistência e defesa da dimensão pública e comunitária do espaço urbano,
especialmente em territórios periféricos e populares.
Para nós, a dimensão pública diz respeito tanto à natureza do domínio — aquilo que é comum
a todos — quanto à natureza do acesso — aquilo que não faz distinção e atende a todos
(LAVALLE, 2005). Sendo assim, os espaços públicos expressam a própria natureza da cidade
enquanto ambiente da esfera de vida pública e coletiva, lugar do encontro, de trocas e conflitos
(QUEIROGA, 2012).
Dentre os espaços públicos, os espaços livres (ELPs) demandam olhar atento, por sua natureza
potencialmente acessível. Espaços livres são, em um sentido amplo, espaços livres de edificação
— na escala intraurbana — ou, espaços livres de urbanização — na escala urbana e regional
(MAGNOLI, 1982). Enquanto públicos, são representados, no cotidiano, pelas ruas, calçadas,
praças, parques, por exemplo. Esses espaços comuns, se distribuem nas proximidades das
moradias, proporcionam a conexão entre os diferentes lugares da cidade, dão ritmo, movimento
e possibilitam a pausa necessária à vivência cotidiana do espaço.
Buscamos investigar os ELPs no Bairro Morada da Serra (Cuiabá/MT), especialmente na(s)
localidade(s) CPA I, II, III e IV, a “cidade” dentro da cidade, território habitacional do Centro
Político Administrativo (CPA), o conjunto urbanístico projetado e implantado pelo governo
estadual entre 1977 e 1985, como estudo de caso para apurar e fundamentar nossa percepção.

2 – A “cidade” dentro da cidade: território habitacional do Centro Político Administrativo


(CPA)
O CPA foi projetado com base nos fundamentos da Cidade Jardim, como proposto por Ebenezer
Howard (2002) - área delimitada por “cinturão verde”, interpretado como a borda constituída
por espaço livre vegetado, que configura as Áreas de Proteção Permanente – APP, já que o CPA
habitacional foi implantado entre córregos. Assim como a Cidade-Jardim, o CPA também teria a

1492
população limitada, ao considerar que o conjunto urbanístico foi estruturado por uma maioria
de lotes com espaços livres para jardim frontal e quintal, que circundavam a moradia unifamiliar.
Soma-se, ainda, os princípios do urbanismo modernista (Le Corbusier, 1993), na forma, do
traçado geométrico, na separação dos usos, e também nos ideais, sendo apresentado como o
caminho para democratizar o acesso aos bens sociais como a moradia (áreas residenciais),
equipamentos urbanos e comunitários, e ao lazer (tendo como suporte o conjunto dos espaços
livres públicos previsto).
O Centro Político Administrativo de Cuiabá (CPA) é concebido em um contexto de aumento
populacional e crescimento urbano acelerado, decorrente do fluxo migratório promovido pela
política desenvolvimentista de interiorização do Governo Federal durante a década de 1960.
Nesse período ganha força no estado de Mato Grosso e, especialmente em sua capital, Cuiabá,
o discurso preservacionista, a partir da crescente tensão entro o novo e o antigo, calcado na
defesa do patrimônio histórico material, como reação às ações iniciadas na capital nesse
período, que substituíam os elementos de características coloniais (FREIRE, 1997; BRANDÃO,
1997; CASTOR, 2013).
Esse processo possui desdobramentos evidentes nas décadas seguintes, culminando, por
exemplo, na decisão de deslocamento da administração pública estadual, da região central
(histórica) para a região norte (expansão) de Cuiabá na década de 1970, configurando o conjunto
arquitetônico e urbanístico do CPA da capital. Outra face desse movimento é o tombamento
provisório do Conjunto Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico do Centro Histórico, pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 1987 (BRANDÃO, 1997;
CASTOR, 2013).
Espaço livre não urbanizado até o início da década de 1970, a Região Norte de Cuiabá teve sua
ocupação impulsionada pela abertura da Av. Historiador Rubens de Mendonça (conhecida
popularmente como Av. do CPA). A avenida se consolidou como um importante eixo de
prolongamento de avenida que estrutura o Centro Histórico (Av. Ten. Coronel Duarte, ou Av.
Prainha), e vetor de crescimento da cidade (FREIRE 1997; AZEVEDO, 2006), conduzindo a
ampliação da rede de infraestrutura básica para todo o trecho entre o Centro e a Região Norte
de Cuiabá, viabilizando a criação do novo Centro Político Administrativo, formado pelos
conjuntos institucional (o CPA propriamente dito) e a série de conjuntos habitacionais populares
(CPA I, II, III e IV), ver Figura 1.

1493
Figura 1: Cuiabá e o Centro Político Administrativo (CPA)

Fonte: Elaborado pelas autoras.

A implantação desses conjuntos habitacionais, representou uma reformulação conceitual do


espaço de poder em Cuiabá naquele momento, já que possibilitou, através de políticas públicas
e seus investimentos, uma ocupação popular da área que, inevitavelmente, apresentaria
tendência à valorização e conformação de uma nova centralidade (FREIRE, 1997).
Entre 1977 e 1978 foi implantado o conjunto habitacional CPA I, com 944 unidades
habitacionais, entre 1980 e 1985 foram implantados os conjuntos habitacionais CPA II com 2.654
unidades habitacionais e o CPA III com 4.600 unidades habitacionais composto por 5 setores e,
por último, o CPA IV, com 3.912 unidades habitacionais implantadas no ano de 1987
(CANAVARROS, 2016), o que resultaria em aproximadamente 40mil habitantes.
Os conjuntos integram o território do bairro Morada da Serra, constituído, ainda, por outras seis
localidades que surgiram a partir da ocupação informal dos espaços livres de preservação (APP)
e utilidade específica, que delimitavam o conjunto residencial do CPA.
Diferente do contexto setecentista do núcleo original, e dos fundamentos do urbanismo da
cidade tradicional que imperou até meados do século XX em Cuiabá, e como mencionamos, o
conjunto habitacional do CPA é projetado com parâmetros urbanísticos que dialogavam com as

1494
ideias da “Cidade Jardim” e da “Cidade Modernista” (era marcada pela extensa área do seu
território, com infraestrutura urbana privilegiada, outras características como o traçado rígido e
ortogonal, suas vias e lotes de dimensões generosas e previsão de espaços livres públicos, alguns
a serem integrados à equipamentos públicos comunitários.
Em Cuiabá e no CPA, também se observam os problemas decorrentes do entendimento limitado
de que projeto arquitetônico e urbanístico dispensa política de planejamento e gestão, em todas
as escalas – do território ao cotidiano. Ao longo das décadas de consolidação dos CPAs, hoje
com uma população total aproximada de 58 mil habitantes, destacamos a presença de idosos
(8,8%), crianças (18,7%) e adolescentes (10%), sendo a maioria mulheres (52%), conforme dados
do IBGE (2010), e ilustrados na Figura 2. Esses grupos não são considerados nas políticas públicas
pretéritas e em cursos, pois se verifica que não se potencializou a apropriação e dinâmica da
vida cotidiana no bairro como um todo, incorporando as diferenças de gênero e faixa etária.

Figura 2: Composição da população do bairro por faixa etária e gênero

Fonte: Elaborado pelas autoras.

3 – Escala cotidiana e os ELPs: os Nós da apropriação cotidiana


Entendemos que a escala deve ser discutida e utilizada como uma estratégia de apreensão da
realidade (CASTRO, 2003). Para a leitura de um recorte territorial de caráter local (bairro),
adotamos a escala cotidiana do espaço como estratégia de apreensão dos processos
socioespaciais que contribuem com a configuração e apropriação dos espaços livres públicos.
A escala cotidiana, em sua dimensão espacial, corresponde ao que Queiroga denomina como
espaço percebido - a partir das práticas sociais e espaciais corriqueiras, pelo lazer, pelo lúdico,

1495
pelo ócio, pelo trabalho, ou seja, pela vivência cotidiana do espaço (QUEIROGA, 2012). Em sua
dimensão temporal, a escala do cotidiano se relaciona ao desempenho de atividades diárias e
rotineiras. A abordagem a partir da escala cotidiana do espaço possibilita aproximar o olhar
técnico de uma escala normalmente não alcançada por políticas públicas de planejamento
territorial, necessitando, no mínimo, de ações de planejamento na escala do bairro, que para
nós, pode representar os nós da apropriação cotidiana do espaço.
Nossa pesquisa documental sobre os espaços livres públicos de lazer da capital, mostrou-nos
que uma das principais lacunas na política de planejamento e gestão territorial do município,
reside na ausência de informações e domínio sobre o próprio território em suas diferentes
escalas. Ao buscar dados oficiais sobre a disponibilidade de espaços públicos, constatamos que
a Prefeitura de Cuiabá, a partir da publicação do último Perfil Socioeconômico (CUIABÁ, 2012),
reconhece pouquíssimos espaços livres de lazer na Região Norte e em toda a Cuiabá. À exceção
das praças localizadas no interior do anel conformado pela Av. Miguel Sutil, (que até meados da
década de 1980, era o limite do perímetro urbano, da região central de Cuiabá), sobre as quais
se tem informações mais detalhadas, o restante do território possui somente o reconhecimento
e indicação de miniestádios, grandes parques e praças (SOUZA, 2019).
Em contraposição, o simples reconhecimento desses lugares - nós do cotidiano, não representa
a garantia de intervenções que qualifiquem suas características. Como exemplo, Azevedo,
Miranda e Santos (2018), em estudo sobre as intervenções do poder público nas praças do
Centro Antigo de Cuiabá, mas que é uma realidade em todo o território, apontam que existe
uma tendência a intervenções aleatórias, que desconsideram a qualificação desses espaços
livres de importância histórica, que tem sido tratados apenas como “veículos de propaganda das
gestões municipais” (AZEVEDO, MIRANDA, SANTOS, 2018, p. 79).
Nosso levantamento de campo dos espaços livres públicos do bairro Morada da Serra que, do
total de, aproximadamente, 750 ha, 78% são constituídos pelo conjunto dos CPA I, II, III e IV,
indicou a existência de 26 ELPs distribuídos por essas localidades, dos quais 21 são configurados
- formal ou informalmente. Dos 21 ELPs configurados, 6 são reconhecidos como oficiais -
notadamente aqueles integrados à miniestádios e ginásio poliesportivo. O restante dos 20 ELPs
não constam nos registros municipais. Essa situação vai de encontro à nossa afirmação sobre o
silenciamento dos nós cotidianos de convívio do bairro, considerando que o mesmo
levantamento de campo indicou a apropriação desses espaços não reconhecidos oficialmente,
e de outros ainda mais invisibilizados, como vias, calçadas e canteiros, lugares por excelência da
dinâmica cotidiana de lazer do bairro (Figura 3).

1496
Figura 3: Apropriações cotidianas nos espaços livres públicos dos CPAs

Fonte: Fotos Acervo Pessoal Lucianna Oliveira e Souza.

Foi o que nos evidenciou os percursos realizados entre 2018 e 2019, para o levantamento dos
espaços livres públicos do bairro, revelando uma diversidade de formas de apropriação
cotidiana dos espaços públicos, especialmente dos informalmente configurados. Essa
diversidade varia de intervenções para qualificar (minimamente) as áreas, até a diversidade
(gênero/faixa etária) dos grupos que as utilizam. Em oposição, as áreas constantemente
mantidas (e ou reformadas) pelo poder público, revelaram tipologias e usuários padrão: ELPs
integrados a miniestádios e ou ginásios poliesportivos, frequentados, em sua maioria, por jovens
e adultos do sexo masculino (Figura 4).

1497
Figura 4: Espaços livres públicos oficiais (e não oficiais) do bairro Morada da Serra

Fonte: Fotos Acervo Pessoal Lucianna Oliveira e Souza. Organização pelas autoras.

4 – À guise de conclusão: caminhos para o reconhecimento dos nós (silenciados)


Nas portas das casas, nas vias e espaços livres públicos esquecidos, são cotidianamente
(re)estruturados os nós da vivência cotidiana do espaço, que abraçam a diversidade de gênero
e idade presente no bairro. Reuniões de famílias e vizinhos, para conversa no fim de tarde, festas
(privadas e públicas) ou jogos e brincadeiras das crianças sob o olhar atento de seus
responsáveis, atividades que ocupam as ruas e calçadas; manifestações religiosas e cívicas nas
principais vias do bairro; feiras livres e o comércio informal animando lugares temporários na
dinâmica cotidiana; indicam que, mais que recorrentes obras de reforma dos ELPS oficiais, e
construção de miniestádios (para propaganda de gestão), são necessárias a qualificação de
calçadas, canteiros e das pequenas praças de vizinhança.
Entendemos que, quando os ELPSs são incorporados na formulação de políticas públicas, para
além da escala do ordenamento do território e do planejamento da paisagem, mas também do
planejamento do bairro, de projetos de lugar, em processos participativos dialógicos com os
moradores, na perspectiva de garantia do direito à cidade, à qualidade de vida e ao lazer, podem
ser construídos caminhos para “dar vez” aos nós (silenciados) de articulação de lugares, de
integração da diversidade.

1498
Referências
AZEVEDO, Doriane. Rede Urbana Mato-grossense: intervenções políticas e econômicas, ações de
planejamento e configurações espaciais. Dissertação – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.

AZEVEDO, Doriane; MIRANDA, Cláudio Santos de; SANTOS, Lucas Luan dos. A (des)caracterização dos
espaços livres e suas temporalidades na política municipal: as praças do Centro Antigo de Cuiabá/MT.
In: XIII Colóquio Quapá SEL. Anais. São Paulo, 2018, p. 67-93.

BRANDÃO, L. A Catedral e a Cidade: uma abordagem da educação como prática social. Cuiabá: EdUFMT,
1997.

CANAVARROS, Andréa Figueiredo Arruda. A consolidação de um tipo urbano e arquitetônico de


moradia para os pobres: velho modelo, novas periferias no espaço urbano Mato Grossense. Tese –
Faculdade de Arquitetura, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2016.

CASTOR, Ricardo Silveira. Arquitetura moderna em mato grosso: diálogos, contrastes e conflitos. Tese –
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.

CUIABÁ. Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano - SMDU. Perfil socioeconômico de Cuiabá.


Vol V. Cuiabá, 2012.

FREIRE, Julio De Lamonica. Por uma poética popular da arquitetura. Cuiabá: EdUFMT, 1997.

HOWARD, Ebenezer. Cidades-jardins de amanhã. São Paulo:Annablume, 2002.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Documentação do Censo 2000. Rio de Janeiro:
IBGE, 2002.

JACOBS, Jane. Morte e Vida de Grandes Cidades. São Paulo, Ed Martins Fontes, 2000.

LAVALLE, Adrian Gurza. As dimensões constitutivas do espaço público: uma abordagem pré-teórica
para lidar com a teoria. Espaço e Debates, v.25, p. 33-44, 2005.

LE CORBUSIER (versão). A Carta de Atenas. Tradução Rebeca Scherer. Ucitec: Edusp: São Paulo, 1993.

MAGNOLI, Miranda. Espaços Livres e Urbanização: uma introdução a aspectos da paisagem


metropolitana (Tese de Livre Docência). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 1982.

QUEIROGA, Eugenio Fernandes. Dimensões Públicas do Espaço Contemporâneo: resistências e


transformações de territórios, paisagens e lugares urbanos brasileiros. Tese de livre docência –
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.

ROLNIK, Raquel. O lazer humaniza o espaço urbano. In: SESC SP. (Org.). Lazer numa sociedade
globalizada. São Paulo: SESC São Paulo/World Leisure, 2000. Disponível em <
https://raquelrolnik.files.wordpress.com/2009/08/lazerhumanizaespacourbano.pdf>. Acesso em 22 fev.
2018.

SOUZA, Lucianna Oliveira e. Entre Escalas: estudo dos espaços livres públicos do Bairro Morada da Serra
em Cuiabá/MT. Trabalho final de graduação. Faculdade de Arquitetura, Engenharia e Tecnologia.
Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2019.

1499
FAROFA DE IÇÁ COMO PROPOSTA DE BEM IMATERIAL DO ESTADO DE SÃO PAULO
NóCego - Outros silêncios.

Fabíola Ventura Traficante


Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Instituto Federal de São Paulo-IFSP campus São
Paulo; f.ventura@aluno.ifsp.edu.br

Karla Aparecida Albuquerque dos Santos


Graduanda de licenciatura em Geografia do Instituto Federal de São Paulo- IFSP campus São
Paulo; karla.albuquerque.1996@hotmail.com

Thais Cristina Silva de Souza


Prof.ª Dr.ª Arquitetura e Urbanismo; Instituto Federal São Paulo-IFSP campus São Paulo;
thais.souza@ifsp.edu.br

Este artigo apresenta a pesquisa de iniciação científica sobre a culinária local do Vale do Paraíba.
A região abarca riquezas sociais e econômicas com valores históricos, o que estabelece as raízes
culturais e folclóricas distintas da região. Sendo assim, este trabalho busca compreender a
importância do patrimônio de bens imateriais na gastronomia local, em especial, a Farofa de içá.
A pesquisa apresenta o levantamento histórico que expõe uma influência cultural sendo
transmitida por gerações na sua forma de preparo e conexão com a natureza, permitindo uma
identidade cultural. Por fim, o intuito deste artigo é evidenciar a importância da criação de um
inventário, posteriormente um dossiê, e o registro desse bem como patrimônio imaterial do
Estado de São Paulo.
Palavras-chave: patrimônio imaterial; farofa de içá; culinária.
This article presents scientific research on local cuisine in the Paraíba Valley. The region embraces
social and economic wealth with historical values, which establishes the region's distinct cultural
and folk roots. Thus, this article seeks to understand the importance of the heritage of immaterial
goods in local gastronomy, in particular, Farofa de içá. The research presents the historical survey
that exposes a cultural influence, being transmitted by generations in its form of preparation and
the connection with nature, allowing a cultural identity. Finally, the purpose of this article is to
highlight the importance of creating an inventory, subsequently a dossier and registering it as an
intangible heritage of the State of São Paulo.

Keywords: intangible heritage; manioc flour; cooking.

1500
1 – Autenticidade dos bens imateriais e a Farofa de içá
O que é autenticidade? Esse conceito pode ser aplicado para os bens imateriais? Como trazer
essas reflexões para o patrimônio cultural ligado à culinária e à gastronomia? Segundo a Carta
de Brasília, 1995, (Iphan, 2004), o tema autenticidade perpassa o da identidade, que é mutável
e dinâmica, e que pode se adaptar, valorizar, desvalorizar e revalorizar os aspectos formais e
conteúdos simbólicos dos nossos patrimônios.
De acordo com a Carta de Brasília de 1995, “a palavra autenticidade está intimamente ligada à
ideia de verdade: autêntico é o que é verdadeiro, o que é dado como certo, sobre o qual não há
dúvidas" (IPHAN, 2004, p.325). A referida carta expõe que o meio para a conservação da
autenticidade é a identificação das tradições culturais locais, seu reconhecimento e valorização,
e o estudo de sua preservação.
Mas pensando em algo intangível, cultural e gastronômico, como salvaguardar algo que está
ligado diretamente à cultura popular? A Recomendação de Paris em 1989, conhecida como a
Conferência Geral da Unesco, define qual o conceito de cultura tradicional e popular:
A cultura tradicional e popular é o conjunto de criações que emanam de uma
comunidade cultural fundadas na tradição, expressas por um grupo ou por
indivíduos e que reconhecidamente respondem às expectativas da
comunidade enquanto expressão de sua identidade cultural e social; as
normas e os valores se transmite oralmente, por imitação ou de outras
maneiras. Suas formas compreendem, entre outras, a língua, a literatura, a
música, a dança, os jogos, a mitologia, os rituais, os costumes, o artesanato,
a arquitetura e outras artes. (IPHAN, 2004, p. 294)

A conservação da cultura tradicional e popular tem como parte necessária a documentação,


meio pelo qual é possível analisar a alteração da tradição em decorrência do seu caráter
evolutivo e a ineficácia de sua proteção direta. Nessa vertente, a salvaguarda é importante para
a proteção das tradições, em decorrência da constante mutação a que estão suscetíveis devido
à influência de outras culturas.
A alimentação popular abarca riquezas compostas por sua construção histórica e social, que
serão refletidas no folclore regional. O consumo dos pratos, principalmente em dias festivos,
como forma de celebração, também funciona como um dos papéis fundamentais nos ciclos
religiosos. Sendo assim é enfatizado o entrelaço da "comida antiga" como uma espécie de
testemunho transcrito em livros de receitas familiares ou passado oralmente entre gerações.
O sentimento de partilha nas lembranças de momentos em torno do alimento promoverá um
efeito de “cimentar”, ao longo das décadas, a permanência da gastronomia e das bebidas por
meio das técnicas, recursos e temperos. Já as modificações das receitas ocorridas com o passar

1501
do tempo serão apenas rearranjos de opções para a sua produção, mas a sua essência, já
solidificada na construção, não será abandonada, pois tal alimentação estará ligada aos fatores
espirituais de sua tradição.
Dessa forma os alimentos que são ingeridos diariamente sofrem influência direta da geografia
cultural, sendo necessários processos longos e complexos para modificar um hábito alimentar
local ou até mesmo promover um certo abandono, já que, com os processos de migrações, as
receitas, com o tempo, são difundidas, não havendo assim fronteiras de território. Um exemplo
nacional é o cardápio indígena, que é constante e permanente na vida dos brasileiros.
O autor Câmara Cascudo, folclorista, historiador, professor, uma das pessoas mais importantes
para o estudo das manifestações culturais brasileiras, teve como obras: Antologia do Folclore
Brasileiro (1943); Antologia da Alimentação no Brasil (1977), entre outras. Dedicou-se em seu
livro “História da alimentação do Brasil” a falar sobre as referências alimentares, principalmente
sobre o cardápio indígena, demonstrando como a farinha de mandioca é um alimento que
representa a fartura e a abundância e uniria qualquer povo independentemente de sua origem.
O alimento foi usado como símbolo de combate à fome, principalmente na marcha para o Oeste
de São Paulo, como uma refeição diária dos sertanejos.
Tal permanência simbólica é refletida na alimentação típica do Vale do Paraíba, na região de
Silveiras, com a Farofa de içá. Esta seria uma iguaria saborosa, nutritiva e teria como um dos
principais ingredientes a farinha, compondo uma confiança identitária e de permanência na
história, sendo um prato indígena que foi passado para a culinária caipira utilizada pelos
tropeiros.
A formiga tanajura, fêmea da saúva (Atta sp), torrada, é prato histórico desde
o século XVI, tradicional no Brasil indígena, mestiço, branco e mesmo alguns
sábios estrangeiros Iião desdenharam gabos ao seu capitoso paladar. Havia
entre os indígenas do Maranhão cantigas especiais para caçar as tanajuras.
Vendidas no mercado público de São Paulo, segundo Saint-Hilaire. E em São
Luís do Maranhão. O venerável José de Anchieta elogia: - "Quão deleitável é
esta comida e como é saudável, sabemo-lo nós, que aprovamos." (CASCUDO,
1967, p.58)

1502
Figura 01: Farofa de Içá

Fonte: Acervo pessoal dos autores, 2019

2 – Mário de Andrade, o patrimônio e as suas receitas de família


Além de Câmara Cascudo, o folclorista e historiador Mário de Andrade foi um personagem
importante para a pesquisa e a elaboração de inventário sobre a cultura brasileira. Ele redigiu o
anteprojeto de criação do SPHAN – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, atual
IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; colaborou com pesquisas de sítios
e logradouros e de reconstituição histórica. Dentre elas, a pesquisa sobre Jesuíno do Monte
Carmelo, o restauro do Convento de Embu e da igrejinha de São Miguel Paulista.
Como um grande escritor, Mário de Andrade tinha, em sua residência, uma biblioteca pessoal
com mais de 17 mil itens. Após sua morte, ocorreu o tombamento da sua coleção de obras de
arte, manuscritos e livros, em 1946. Em 1975 sua casa foi tombada pelo Condephaat.
Para além da cultura material histórica, Mário de Andrade tinha uma forte ligação com a
culinária. As receitas preparadas pela família foram datilografadas e são citadas em contos,
como “O peru de Natal”, no qual relata os doces preparados pela mãe, tia e irmã. O historiador
também expõe a gastronomia brasileira em cartas de viagens, como a redigida a Paulo Prado
contando suas refeições na viagem entre Parintins e Manaus. Para além do vínculo familiar, a
gastronomia propiciava a Mário um laço com os amigos, para os quais cozinhava e com quem
trocava receitas. Desta maneira, o vínculo afetivo por meio da gastronomia tornou-se presente
em seus manuscritos.
No fichário analítico de Mário, um tipo de enciclopédia pessoal, ele reuniu 22 receitas que foram
cedidas pela sua tia Nhanhã, Dona Mariquinha e Dona Balbina Leite Ferreira de Melo. Algumas
das receitas arquivadas são: bom-bocado, bolo inglês, bolo de noiva, creme angélico, toucinho

1503
do céu, entre outras. Além das citadas, havia uma receita que era a favorita do autor, o
amanteigado.
Mas como tornar toda essa cultura inerente à gastronomia um bem intangível tombado?
O tombamento é um ato administrativo, realizado pelo poder público, com o objetivo de
preservar, para a população futura, os bens de valor histórico, cultural, arquitetônico, ambiental,
paisagístico e afetivo. O intuito é impedir que esses bens venham a ser destruídos ou
descaracterizados, garantindo assim, a preservação e a salvaguarda dos bens culturais materiais
e imateriais. Os bens imateriais possuem cinco categorias: celebrações, ofícios, modos de fazer,
lugares e formas de expressão. A realização do inventário compreende processos de produção
de conhecimentos e diagnósticos.
De acordo com o IPHAN (2021), todas as etapas e os processos do inventário devem contar com
o envolvimento e anuência das comunidades, que participam ativamente desde a identificação
do seu patrimônio cultural até a validação dos dados de pesquisa e a elaboração de indicativos
para outras ações de salvaguarda. O processo de inventário se divide em três etapas:
levantamento preliminar para identificação e mapeamento dos bens culturais; reunião de
informações como pesquisas de campo e documentos, registros audiovisuais; por fim, a
sistematização e tratamento dos dados e materiais produzidos para divulgação e o registro.
Entretanto, os bens imateriais relacionados, registrados pelo IPHAN — a culinária, a gastronomia
e as tradições — estão na categoria “modo de saber fazer”. Elas são definidas pelos sentidos e
significados que o próprio grupo, que compartilha uma história coletiva e um modo de viver,
atribui a determinadas práticas sociais, constituindo-as como referenciais para sua cultura.
No Estado de Minas Gerais temos o Queijo Artesanal de Minas Gerais. A pesquisa percorreu as
regiões de Serro, Serra da Canastra e Serra do Salitre (Alto do Paranaíba), que compreendem
aproximadamente 35 municípios mineiros. Lá predominam fazendas que mantêm a tradição de
fazer um queijo reconhecido mundialmente como “artesanal tipo Minas”. O modo de fazer o
queijo está expresso na forma de manipulação do leite, dos coalhos e das massas, na prensagem,
na cura e até no comércio.
Outro bem imaterial ligado à preservação das tradições, à memória e à gastronomia é o registro
da produção dos doces tradicionais pelotenses. Uma articulação com o IPHAN, o Programa
Monumenta e a Universidade Federal de Pelotas-UFPel tornaram possível a realização de um
inventário que buscou documentar a trajetória do bem cultural. O Inventário Nacional de
Referências Culturais — INRC Produção de Doces Tradicionais Pelotenses foi realizado pelo
Laboratório de Ensino e Pesquisa em Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal de

1504
Pelotas – UFPel, e o produto dessa extensa pesquisa foi a ampliação do conhecimento sobre a
dinâmica sociocultural em que as tradições doceiras se construíram, se transmitem e se
ressignificam na região de Pelotas.

Figura 02: Queijo nas regiões do Serro, da Serra da Canastra e do Salitre, em Minas Gerais

Fonte: Acervo do IPHAN

Figura 03: Doces tradicionais pelotenses

Fonte: Acervo do IPHAN

Em relação aos bens imateriais do Estado de São Paulo, o Iphan os tem registrados dentro da
categoria celebrações — como a celebração Tooro Nagashi; lugares — o bairro do Bom Retiro,
as comunidades Afrodescendentes em Mogi das Cruzes, entre outros. Mas nenhum ligado ao
saber fazer entrelaçado à gastronomia e à preservação da memória culinária.
O Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico — Condephaat
é o órgão estadual, subordinado à Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, responsável
pela análise, aprovação e publicação do patrimônio cultural do Estado de São Paulo, desde os
anos 1970. Todo e qualquer cidadão, organização pública, civil ou privada, têm o direito de
solicitar aos órgãos a proteção de bens culturais que considerem importantes para a memória e

1505
para a preservação ambiental. Essa proteção se inicia com a abertura do processo de
tombamento pelo Colegiado do órgão e se completa com a homologação do Secretário da
Cultura e a publicação da Resolução de Tombamento no Diário Oficial do Estado (Condephaat,
2021).
O Condephaat, contudo, possui poucos bens imateriais, sobretudo, ligados à gastronomia; tem
apenas o registro do Virado à paulista. Este representa e expressa caraterística marcante na
história de São Paulo, a integração de culturas de diversas procedências, ainda que
historicamente marcadas por confrontos, dominações e resistências (Condephaat, 2021). A
iguaria leva em sua composição: couve, ovo, feijão, arroz, linguiça, bistecas e farinha de milho.
É uma demonstração da diversidade cultural característica do Estado de São Paulo.

3 – A Farofa de Içá
O estudo iniciou-se com uma pesquisa sobre a história da Farofa de içá e a abrangência dessa
culinária na região, que compreende as cidades do caminho dos tropeiros: Silveiras, Areias, São
José do Barreiro e Bananal. Buscou-se fazer um levantamento do processo cultural e social da
colheita das formigas, as receitas originais, a investigação da sua origem e suas adaptações
contemporâneas ao modo de fazer a farofa.
A metodologia aplicada na pesquisa se caracteriza como um estudo quantitativo e as
abordagens utilizadas foram exploratórias no intuito de levantar informações com elementos
de fotos, de conversas, além da investigação em jornais antigos, meios eletrônicos e órgãos de
preservação. A investigação também estabeleceu contato sobre o tema junto aos órgãos de
preservação municipal e estadual, a coleta de material para o inventário e o estudo da geografia
cultural local.
Devido à pandemia de COVID-19, a pesquisa foi aplicada e desenvolvida por meio de um
questionário sobre a valorização do patrimônio cultural e bens imateriais realizado via internet
pela plataforma Google Forms. A pesquisa foi divulgada por e-mail e redes sociais, aprovada
pelo comitê de Ética de Biossegurança do Instituto Federal de São Paulo (IFSP) e pelo Comitê de
Ética em pesquisa (CEP). O número do certificado da apresentação para Apreciação Ética (CAAE)
é 33908920.0.0000.5473, o parecer tem como o número 4.141.300. O formulário on-line contou
com 201 participações, com perguntas dissertativas e outras alternativas relacionadas ao
patrimônio cultural. Os resultados apresentam que 83% afirmaram conhecer o significado de
bens imateriais; 51,7% não conhecem o artigo 216 da Constituição Federal que reconhece e
garante a proteção do patrimônio imaterial. Quanto à questão gastronômica, 100% consideram

1506
a culinária local um atrativo turístico e 98% entendem que receitas culinárias se tornam um
vínculo afetivo transmitido por gerações.
Deve-se ressaltar que uma pesquisa on-line acessa apenas um recorte minoritário da população,
devido ao perfil de acesso à internet no Brasil (segundo IBGE a cada quatro pessoas, uma não
possui acesso à internet), porém foi o recurso encontrado para contornar a pandemia de COVID-
19 que ocorreu em 2020.
Adicionalmente, a investigação bibliográfica sobre a “Farofa de içá” mostra que é uma tradição
que se perpetua por gerações, abarcando memórias, costumes, expressões e técnicas de
colheita, sendo uma construção cultural de vínculo afetivo da comunidade na região da cidade
de Silveiras, no Estado de São Paulo.
Faz-se necessário, para o aprofundamento do estudo, a construção de um inventário
participativo, partindo das fichas de inventário que devem consistir em informações que
identificam e estabelecem as particularidades simbólicas, históricas e os valores em conjunto
com a comunidade local.
A partir desse contexto é possível verificar uma identidade cultural, evidenciada por Bourdieu
(2007), a começar pela sua representação, que possui um sentido de poder simbólico estrutural
na perpetuação da tradição.
O patrimônio cultural de um povo é formado pelo conjunto dos saberes, dos fazeres, das
expressões, das práticas e seus produtos, que remetem à história, à memória e à identidade
desse povo (IPHAN, 2012). Sobre essa perspectiva, foi analisada a “Farofa de içá” como um
possível patrimônio cultural imaterial, já que a receita abrange as características culturais que
proporcionam a identidade da comunidade da região de Silveiras, no Vale do Paraíba,
transcendendo gerações, mantendo as lendas e as cantigas populares vivas até o presente.
Mesmo com as adaptações de preparo ou ingredientes de acordo com os costumes das famílias
e baseadas em suas tradições, relaciona-se assim, de forma afetiva, à culinária regional com a
população local, tendo a gastronomia como um simbolismo baseado nas memórias e sensações
que o prato proporciona às pessoas, seja a partir da ingestão do alimento ou por meio do ensino
da sua a receita.
Nesse entendimento, portanto, é possível compreender a importância de registros que
salvaguardam o patrimônio, sendo necessário um inventário participativo como um
instrumento para proteger o conhecimento e o reconhecimento do bem cultural de natureza
imaterial como, por exemplo, o inventário da cultura alimentar relacionada às farinhas de milho

1507
e mandioca em Minas Gerais (IEPHA, 2019). Pode-se considerar uma relação de trocas
simbólicas, a partir do reconhecimento dos bens culturais do nosso país.
Bourdieu (2007) explicita que as funções sociais são cumpridas pelos sistemas simbólicos, as
quais tendem, no limite, a se transformarem em funções políticas. Tais funções são
representadas na Constituição Federal Brasileira (1988) pelos artigos:
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e
acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a
difusão das manifestações culturais.
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores
de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira. (BRASIL, 1988, art. 215-216).

Autêntico ou não, o nosso objeto, a Farofa de içá, é um prato típico da região do Vale do Paraíba
que entendemos como importante para a preservação da história e da memória do estado de
São Paulo. Com esse entendimento, concluímos que a Farofa de içá deveria se tornar um
patrimônio imaterial do Estado de São Paulo, para salvaguardar e preservar a memória dessa
iguaria, dos seus colhedores, a maneira de prepará-la e cozê-la.

Considerações finais
Concluímos que a participação da comunidade é fundamental para destinar a salvaguarda de
um patrimônio cultural, estabelecendo assim a identidade e a manutenção da representação do
bem imaterial como a “Farofa de içá” para a comunidade da região do Vale do Paraíba. Para
isso, são necessários um diagnóstico da opinião da população nessas localidades; a construção
de mapas conceituais vinculados ao bem; a identificação do patrimônio cultural, o contexto
formal em que essas tradições estão inseridas, como, por exemplo, leis municipais. Além disso,
é importante a criação de departamentos de cultura e turismo, uma equipe qualificada e
multidisciplinar, e canais de comunicação com a sociedade para que as transformações
aconteçam e consigamos realizar a preservação e a salvaguarda dos bens imateriais.

Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Disponível
em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.html>. Acesso em: 25/09/20.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.

CASA MÁRIO DE ANDRADE. Morada do Coração Perdido. Casa Mário de Andrade. Disponível em: <
http://casamariodeandrade.org.br/morada-coracao-perdido>. Acesso em: 16/02/2021.

1508
CASCUDO, Câmara. História da alimentação do Brasil. Companhia editora nacional, primeiro volume,
1967.

CONDEPHAAT- Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico. A UPPH


/ Secretaria de Estado da Cultura disponibiliza base atualizada de bens tombados, bens em estudo de
tombamento e áreas envoltórias de bens tombados. Disponível em: <http://condephaat.sp.gov.br/site-
idesp/#>. Acesso em: 15/02/2021.

IEPHA - Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais. IEPHA-MG inicia cadastro
para inventário relacionado às farinhas de milho e mandioca em Minas Gerais. IEPHA, 11/10/2019.
Disponível em: < http://www.iepha.mg.gov.br/index.php/noticias-menu/464-iepha-mg-inicia-cadastro-
para-inventario-relacionado-as-farinhas-de-milho-e-mandioca-em-minas-gerais> . Acesso em:
14/10/2020.

IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Cartas patrimoniais. Brasília: Ed. 3,
IPHAN, 2004.

______ . Patrimônio cultural imaterial. Para saber mais. Brasília: Ed. 3, IPHAN, 2012.

______. Projetos Realizados de Identificação de Bens Culturais Imateriais. Disponível em: <
https://sicg.iphan.gov.br/sicg/bemImaterial/acao/225 /> Acesso em: 19/02/2021.

TONI, Flávia Camargo. Doces para uma festa de 110 anos. Casa Mário de Andrade, 2003. Disponível em:
< http://casamariodeandrade.org.br/morada-coracao-perdido/nichos/os_doces/doces.pdf>. Acesso em:
19/02/2021.

1509
HISTÓRIAS DA SILENTE INFÂMIA DE DOIS CORPOS NA CIDADE
Nó Cego – Outros silêncios

Elton Silva Ribeiro


Doutorando em Psicologia; UFF; elton_rb@yahoo.com.br

Lázaro Batista
Doutor em Psicologia; Professor do Curso de Psicologia e do
Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRR;
lazaro.batista@ufrr.br

Luis Antonio dos Santos Baptista


Professor titular do Instituto de Psicologia da UFF e do Programa de Pós-
Graduação em Psicologia da UFES; baptista509@gmail.com

As cidades de hoje apresentam, a despeito das retilíneas linhas de seus projetos iniciais, espaços
opacos e formas de experienciá-las que colocam em xeque seus anseios normativos. Entre
fronteiras delimitadas e tentativas de forjar outros modos de experimentação, atravessam
forças que sobrecarregam vidas comuns de um peso por vezes insustentável. O presente artigo
ensaia um encontro inusitado entre personagens infames de distintas cidades brasileiras. Ao
fabularmos tal encontro não pretendemos incidir mais luz sobre estes corpos, apostamos aqui
em intensificar o silêncio trazido por eles. Sustentamos que em espaços inconclusos onde o
silêncio habita torna-se possível ouvir o murmúrio da vida que se politiza sem recorrer ao alarde,
questionando a eficácia do planejamento de cidades que se querem modelos.
Palavras-chave: cidades; vidas infames; silêncio.

Contemporary cities present, despite the straight lines of their initial projects, opaque spaces and
ways of experiencing them that bring their normative aspirations into question. Between
delimited borders and attempts to forge other ways of experimentation, cross forces that,
sometimes, subject ordinary lives to an unbearable burden. This article intends to promote an
unusual encounter between infamous characters from different Brazilian cities. In making such
an encounter, we do not intend to cast more light on these bodies, since our intention is to
intensify the silence presented by them. We maintain that in unfinished spaces where silence
dwells, it turns possible to hear the murmur of life that becomes politicized without resorting to
splurge, questioning the effectiveness of planning cities that are meant to be models.
Keywords: cities; infamous lives; silence.

1510
Pouco frequento a Biblioteca Nacional, sobretudo depois que se mudou para
a avenida e ocupou um palácio americano. A minha alma é de bandido tímido,
quando vejo desses monumentos, olho-os, talvez, um pouco, como um burro,
mas, por cima de tudo, como uma pessoa que se estarrece de admiração
diante de suntuosidades desnecessárias (...) como é que o Estado quer que
os mal vestidos, os tristes, os que não têm livros caros, os maltrapilhos
“fazedores de diamantes” avancem por escadarias suntuosas, para consultar
uma obra rara, com cujo manuseio, num dizer, aí das ruas, têm a sensação de
estar pregando à mulher do seu amor? A velha biblioteca era melhor, mais
acessível, mais acolhedora, e não tinha a empáfia da atual. Mas, assim
mesmo, amo a biblioteca e, se não vou lá, leio-lhe sempre as notícias (LIMA
BARRETO, Correio da Noite, Rio, 13-1-1915).

A suntuosidade da Biblioteca Nacional, segundo Lima Barreto na epígrafe citada, realizava a


utopia da cidade iluminada pela razão. A mudança para a Avenida Central, atual Avenida Rio
Branco, permitiu ao citadino carioca vislumbrar a arquitetura que diz à cidade o que seria o
Saber e a Civilização. As intervenções urbanísticas realizadas no Rio de Janeiro por Pereira Passos
no início do século vinte, inspiradas na Cidade Luz projetada pelo barão arquiteto Hausmann em
Paris, afastava da urbe as sombras dos indesejáveis. A urbe projetada pelo racionalismo
arquitetônico tornava desprezíveis os rumores que contrastavam com a voz solene emitida das
suas linhas. Pretende-se nesta escrita ressaltar a tensão entre luz e sombra, discursos e silêncios
ensejados pelos paradoxos e contradições da cidade que se pretende monumento. Deseja-se
explorar esboços de uma aposta ética nas entrelinhas dos rumores quase silenciosos dos
“malvestidos, dos tristes, dos bandidos tímidos” citados por Barreto. Qual ética, e qual silêncio?

1 – Um encontro
Algo como uma névoa espessa preenche e dá ao lugar imprecisão. Opaca indefinição que parece
anunciar um fim de tarde. Turvado pela pouca luz, a noite parece prestes a cair. Ou seria o dia
que está prestes a raiar. Não há como ter certezas. Se observado com maior atenção, nota-se
que o tempo naquele espaço aparenta não se diferenciar. Ali, ele não é regido por Khronos e
nem sucumbe à pressa. Do pouco que se distingue, veem-se caminhos que se cruzam, mas que
não se sabe onde vão dar. Entre eles, em meio ao ambiente opaco, vislumbra-se o contorno de
dois corpos enrijecidos. Naquele lugar em que quase nenhuma luz penetra, as silhuetas dos
corpos anunciam o improvável: um encontro se dá.
Dela, um guarda-chuva e uma bolsa plástica carregada em suas mãos se deixa entrever. Dele,
recortes e impressos também trazidos às mãos, além de uma sacola plástica com alguns
pertences e uma pequena anotação amarrada em um dos dedões do pé descalço. Dela, destaca-

1511
se a maquiagem de cor branca que lhe cobre a pele escura. Dele, a pele escura não esconde os
dizeres do papel amarrado ao dedão: “indigente”. Silentes, eles se entreolham. No lusco-fusco
daquele espaço limiar, marcas parecem carregar aqueles corpos de um peso desmedido, rastros
de vidas uma vez identificadas, iluminadas, desimpedidas de dizer eu. No tempo intensivo de
um olhar, um diálogo mudo se ensaia...
Maria, o nome dela. Mas, ficou conhecida como “velha do shopping”. Foi mais velha do shopping
do que Maria. Assim, carregava um pedaço da cidade consigo. O nome dele, disseram ser José.
Mas era conhecido como Bob. Foi muito mais Bob do que José, graças aos longos dreads que
sempre carregou. Era conhecido pela semelhança com o músico jamaicano, embora nunca
tenha sido visto cantando.
Dela, dizem que gostava de frequentar os dois shoppings de uma cidade que já foi considerada
a capital nordestina da qualidade de vida. Andava quase que diariamente, quando não em um,
no outro. Caminhava com muitas sacolas de compras nas mãos, mas nem sempre era
consumidora. Óculos escuros, muitas roupas e bastante base no rosto para proteger a sua pele.
Para proteger a pele, mas também evitar assaltos. Dizem que foi assaltada e, depois disso,
chegou à conclusão que se apresentando dessa forma corria um menor risco de ser abordada.
Maquiava-se para se sentir mais segura, mas também contava com as espiritualidades para
ajudá-la. Elas diziam quando e por onde andar. Guiavam-na e a protegiam.
Dele, sabe-se que, do mesmo modo, vem de uma cidade que se gaba de ser muito boa de ser
viver. Também costumava perambular por suas extensas e largas avenidas, feitas no esquadro
perfeito que traça o plano idealizado daquele lugar. Mas, sabe-se muito mais de sua imobilidade.
Na cidade feita para circular, aquele homem costumava ficar horas sob o sol escaldante, apenas
sentado, olhar petrificado, cotovelos sobre os joelhos. Aparentemente absorto do fluxo da
cidade, a ela se ligava por outras vias. Uma presença ausente, tal qual coisa de espíritos.
Conta-se que ela gostava de ir ao cinema e de comer em algumas lanchonetes dos dois centros
comerciais. Mas, o que se sabe mesmo é que muitas pessoas a olhavam com estranheza. Suas
roupas, maquiagem e maneirismos pareciam incomodar. Seu visual “extravagante” a fez ganhar
aquele nome que não o do batismo.
Coisa parecida costumava acontecer com ele. Não a parte das lanchonetes. Comia do pouco que
lhe ofereciam nas ruas. Donos de restaurantes, algum ou outro passante que lhe oferecesse a
refeição do dia. Mas, os cabelos, o suor, o cheiro e suas roupas gastas desagradavam alguns
moradores. Tinha quem lhe negasse acesso aos lugares em virtude disso. Incomodava os
fregueses. Ele e ela.

1512
Ela não gostava muito de falar sobre si. Embora houvesse quem sempre lhe fizesse perguntas,
querendo saber mais de sua vida. Para essas ocasiões, recorria a uns bilhetes prontos, que
entregava quando nada queria dizer. Negava-se a dar conta da sua vida aos outros. Mas, tinha
até quem pedisse para tirar foto com ela.
Ele também não era dado a falatório. Em virtude disso, havia quem achasse que era mudo.
Outros, diziam que aquilo era coisa de voto de silêncio. Eram muitas as histórias sobre sua
procedência e os supostos desatinos que o conduziram à sua solitária vida errante. Nenhuma
delas contada por ele.
Ela vem de uma capital, mas que tem ares de cidade pequena. Diz-se que foi a primeira capital
planejada do país – o mesmo que se diz de outras cidades Brasil à fora. Como outras, não nasceu
cidade, mas povoado. Povoado que carrega no nome a mistura de santo português com um
termo tupi. Rodeado por manguezais tornou-se cidade, desenhada no traçado de um tabuleiro
de xadrez. Cidade planejada de onde retilíneas ruas davam os bons ares da nascente capital da
antiga província. História de tempos remotos, muito anteriores à vida dela. Mas, ainda presentes
na vontade e políticas direcionadas às peças estranhas a esse tabuleiro disciplinado.
A cidade dele é quase igual, mas diferente. É planejada, mas não como um tabuleiro. Seu
desenho também tem inspiração europeia, mas em formato de leque. Cidade-leque que, no
desenho de suas largas avenidas que conduzem ao centro, faz lembrar em seus monumentos a
história recente de extermínio e exploração no Norte brasileiro. Também parece cidade do
interior. E, como a dela, nem sempre quer parecer: recusa o encontro com o inusitado, acha
indigna a presença de quem mancha seu desenho arquitetônico.
Sobre ela saíram diversas matérias nos jornais. Numa rede social, hoje obsoleta, perguntavam:
“vocês já viram a velha do shopping?” Assim, muitos dizeres foram produzidos acerca de sua
vida. Aos poucos, nome completo, histórias e explicações a rodeavam. Jornais, outros, também
se interessaram por ele. Também fizeram reportagens, também tentaram remontar a sua
história. Também tentaram alinhavar narrativas e explicações para sua condição mundana. Por
causa delas, apareceram pessoas querendo ajudá-lo. Inclusive, profissionais de saúde. Foi por
meio das palavras dispersas por esses equipamentos midiáticos que o burburinho em torno
daqueles velhos corpos começou a ganhar outros contornos. Foi nas palavras dos jornais que,
gradativamente, luzes das cidades passaram a incidir sobre ele e ela.
Dela, alguns disseram que precisava de cuidado. Outros pensaram que cuidado seria esse e
problematizaram o tal pedido. Mas, o pedido vindo da família, via Ministério Público, teria que
ser atendido. Muito trabalho se deu por aqueles que problematizaram tal pedido, porém sobre

1513
isso pouco se disse. Tempos depois, através de outro jornal, falaram mais dela: “velha do
shopping muda de vida”. Agora, a velha do shopping não era só Maria, era Maria José Menezes
Santos, teóloga e enfermeira, 59 anos de idade. Abrira mão dos arrepiados cabelos crespos e do
excesso de base no rosto. Contaram até uma história sobre o porquê de ela ter se tornado essa
personagem citadina. Não ela que contou, mas sua tia, autorizada por ela. Diziam que estava
frequentando a igreja. Vozes da tia misturadas às do jornal contavam que ela estava
transformada.
Ele também precisava de cuidados, diziam os jornais. Adjetivando como abjeto o modo como
ele vivia, diziam ser aquilo indicativo da falência do poder público em gerir a cidade. Moradores
vociferavam a solução: “A gente queria que alguém tirasse ele daqui”. Assim se fez, resgataram-
no da rua. Levaram-no ao hospital geral. Jogaram fora seus trajes maltrapilhos. Cortaram seus
longos dreads. Deram-lhe um endereço - “maca nº 05”. O paciente ao lado rebatizou-o: saiu o
Bob, habitante da cidade, entrou o José, paciente depositado sob a maca do hospital, despido
de tudo. Restou-lhe apenas uma sacola plástica, depositada do lado do leito. Tudo isso, no
silêncio do homem que fala. Ele era “um homem invisível”, mas agora também estava
transformado, desde que “os dias internado no hospital deram-lhe nome e cuidados que, talvez,
tenha tido pela última vez no dia de seu nascimento”, disse o jornal.
Tempos depois, quando dela já não se ouvia mais falar, uma notícia chamou a atenção da cidade-
tabuleiro: um corpo imóvel fora encontrado sob o viaduto de uma de suas principais avenidas.
Leitores da versão on-line do jornal que trazia a notícia comentaram que já seria a segunda
pessoa em pouco tempo encontrada na mesma situação naquele lugar. Falaram da necessidade
de uma grade de proteção cercando o viaduto para impedir que tais fatos acontecessem.
Alguém disse ter visto uma mulher se debruçar sobre a “cabeceira” do viaduto feito somente
para carros. Outro leitor, após saber de quem era o corpo ali encontrado, confirmou o seu
diagnóstico. Colava-se mais identidade agora ao corpo imóvel. Aquele corpo sobre o qual se
falava, logo se ficou sabendo, era o dela. Maria voltava a aparecer às luzes da cidade como
aquela que ficara conhecida. Deixara-se cair com seus silêncios, porém, o barulho de seu corpo
ao encontrar com o chão fora ouvido como confissão de sua loucura. Mais uma vez fora
impedida de silenciar. A notícia, que estampava a imagem de um corpo coberto por um grande
plástico preto, ao lado de uma bolsa e um guarda-chuva, dizia: “velha do shopping cai de viaduto
e morre”.
Ele, a ribalta midiática também fez morrer. Depois de cortados seus cabelos, asseadas suas
roupas, ultrajado seu silêncio contumaz, o homem tornou-se visível. Uma visibilidade que o fez

1514
entrar na história do presente de sua cidade-leque como indicativo de uma capital que cresce e
se modifica. Mas, também uma visibilidade que retirou dele tudo que abrigasse algum valor
histórico, singular, seu. Despossuído, limpo e em silêncio, José calou-se definitivamente alguns
meses depois. A causa de sua morte tornou-se tão incerta quanto o seu modo de vida: morreu
de tristeza, de problemas no coração, de complicações gastrointestinais? Morreu por ter
coração de mais para a cidade que parece não querer mais sentir o sangue da vida correndo em
suas longas avenidas ou por não ter mais estômago para tolerar sua miséria vendida como
notícia sensacionalista? De certeza, fica apenas a pequena papeleta amarrado ao dedão do pé:
“indigente”. A sanha de lhe conferir uma identidade, todavia, ainda o persegue, mesmo a sete
palmos: arranjam-lhe um nome fictício, data de nascimento, atestado de óbito. Parentes não
reclamaram o corpo. Quase ninguém compareceu ao sepultamento. Na “quadra 15, lote 7, fila
2, jazigo 32”, com o nome escrito, data de nascimento e morte que lhe arranjaram, “nenhuma
cruz - nem de madeira ou ferro”, a produção de infâmia faz-se completa. O homem qualquer,
tornado invisível ganha sua última identidade: “Zé Ninguém”. Sem choro, nem vela.

2 – Silenciosas heterotopias
O texto que aqui se apresenta, ensaia um encontro inusitado entre uma mulher e um homem
de duas cidades brasileiras separadas por alguns milhares de quilômetros, Aracaju e Boa Vista.
Um fortuito encontro que não pretende ilustrar uma ação em comum ou se ater a tomá-lo como
exemplar para digressões conceituais. A despeito disso, também ele não aparece aqui por
simples acaso, de modo que há algo com o que se quer operar com as imagens que ele evoca.
Deseja-se discutir como se operam políticas direcionadas ao abafamento, ordenamento e
normalização de modos de ser no contemporâneo.
Paradoxalmente, o faremos recorrendo a toda verborragia, dizeres e enunciados dirigidos aos
dois personagens, ao mesmo tempo em que pomos em relevo que essa profusão, se não fez
silenciá-los, tampouco constitui-se modo de fazê-los ouvidos. Assim fazendo, queremos pontuar
como tais existências passam a ser moduladas em torno daquilo que delas é dito, em franco
detrimento de sua recusa a essas identidades, adjetivações ou personalidades. Insustentável
peso do viver atribuído a homens e mulheres comuns, sem nenhuma glória, tornando-os
impossibilitados de recusar um “eu”.
Dialogamos, deste modo, com Michel Foucault (1992) quando ele nos chama atenção para o fato
de que muito mais do que reprimir o poder faz agir e falar. Os mecanismos de regulação da vida
atuam engendrando histórias com início, meio e fim, atribuindo nome, sobrenome e solicitando

1515
confissões às vidas tornadas infames. São vidas de algumas breves linhas ou páginas achadas a
esmo em livros e documentos e que “nos apresentam a dramaticidade existencial de corpos e
comportamentos que, por uma razão ou outra, não cabem na cartografia da normatização”
(NAIDIN, 2016, p. 1036).
Portanto, existências que passariam ao lado de todo o discurso e desapareceriam sem que nunca
tivéssemos sabido delas, se não fosse o fato de em algum instante terem entrado em contato
com o poder. Desde aí, dirá Foucault (1992), esses viventes passam a ser definidos por algumas
poucas palavras que os tornam indignos para sempre.
Disso, decorre a opção por captar suas histórias a partir do seu encontro na soleira de algo entre
sua vida e morte. Um encontro silencioso em um espaço inominável, informe, tal qual um limiar
de duração e tamanho imprecisos (BENJAMIN, 2009). Zona de sombras onde os contornos não
se delimitam e a vida, mesmo que parcialmente, escapa. Espaço no qual irrompe a presença
dessas estranhas criaturas inacabadas, tais quais os “ajudantes” presentes nas narrativas de
Franz Kafka. Já que, segundo Walter Benjamin: "Para eles e seus semelhantes, os inábeis e os
inacabados, ainda existe esperança” (BENJAMIN, 1994, p. 142). Portanto, trata-se também de
fazer ressoar tais vozes e formas de vida para além do que delas se disse. Fazê-las acontecimento
que desmancha as certezas, linhas e uniformidade dos desenhos de duas cidades planejadas,
feitas contra essas vidas (LISPECTOR, 1998).
Em Aracaju, cidade planejada em meados do século XIX e que durante alguns anos foi
considerada a capital nordestina da qualidade de vida, os contornos retilíneos de seu projeto há
muito foram ultrapassados. As gerências biopolíticas se atualizam e se querem normativas sobre
os modos de estar na urbe, porém não impedem que corpos e práticas façam coexistir distintas
cidades invisíveis, colocando em cena movimentos, estratégias e lutas antes impensadas para o
tabuleiro.
Em Boa Vista, capital de Roraima, constata-se um cenário de mudança da cidade, pela conjunção
entre lógicas disciplinares e dispositivos biopolíticos. Cidade planejada na década de 1940,
segundo o modelo de capital concêntrica (VERAS, 2009; FOUCAULT, 2008), seu desenho original
em leque sofre progressiva transformação a partir do crescimento urbano das últimas décadas,
remodelando seu traçado e fazendo aparecerem novas estratégias de intervenção.
Falamos, assim, de cidades utopicamente pensadas com ações, funções e lugares muito bem
definidos pelos mecanismos de regulação da vida, os quais nos fazem crer que pessoas como os
personagens desse texto são produzidas como existências inferiores, aos quais não resta
nenhuma possibilidade, nenhuma expressividade, nenhum valor. Se, por um lado, suas

1516
existências na cidade não implicam – a princípio – na necessidade de intervenção, acreditamos
que a repercussão midiática sobre suas vidas quebra com esse equilíbrio homeostático imposto
pela regulação biopolítica (FOUCAULT, 2008). Ou seja, é da espetacularização de suas vidas que
decorre, também, a espetacularização de ações públicas sobre eles.
Mas, também se aposta aqui nas funções e táticas políticas que a presença, as histórias e os
silêncios desses corpos fazem alcançar. Elas dizem respeito às formas com que os personagens
se relacionam com aquelas cidade-tabuleiro ou cidade-leque, produzindo no seu bojo outros
modos de experienciá-las, senti-las, compô-las. Contra aquela utopia, que, no fim das contas,
produz a morte daqueles que desafiam sua quimera, ressaltamos tais existências como
signatárias de um plano constituinte de outros modos, lugares e jeitos como os quais a vida pode
se relacionar e/ou se constituir na cidade.
Modos de vida forçosamente heterotópicos, especialmente sustentados na negação de qualquer
ranço identitário. Ou, de outra forma posta, existências firmadas em certa ética da recusa: recusa
à identidade, recusa às explicações apriorísticas afeitas a desvendar a “falta”, recusa à “ausência
de”, sediciosa recusa às explicações ou justificativas. Em seu lugar, no seu silêncio, firmam
passagens pelos espaços daquelas cidades, por meio de comportamento ambíguo,
incompreensível, louco. E assim fazendo, produzem desvios, instauram sentidos, usos e
possibilidades de experimentação diferentes para aqueles lugares, funcional e historicamente
estabelecidos contrários à sua presença.
As histórias da produção de infâmia desses personagens nos põem a pensar acerca de uma ética
do silêncio por eles praticada, em meio a todo o burburinho disciplinador dirigido às suas vidas.
Ética que, dentre as muitas oposições que firma em relação aos modos de existir em voga,
descarta alinhavar-se a um tempo caracterizado pelo excesso de falas (sobre si e o mundo).
Tempo no qual o excesso de informações e de imagens a nos bombardear constantemente
dificulta a constituição da memória e de alguma experiência que desloque.
Foucault expôs a emaranhada rede que se criou atrelando discurso, poder e cotidiano, retirando
deste aquilo que seria uma de suas forças constituintes: sua possibilidade de surpreender.
Intensa discursificação da vida, escrita das mínimas práticas do dia-a-dia. O antigo mecanismo
da confissão, caro ao cristianismo, foi se difundindo e se conectando a fazeres outros que não
apenas o religioso e assim alcançou outros tons nas áreas da administração, justiça, pedagogia,
psiquiatria, entre outras.
Investimento sobre a vida que se faz ativo pelo registro minucioso de tudo que lhe diga respeito,
dirá o filósofo francês. Construção de uma rede de dizibilidade da vida que pretende conectar

1517
passado, presente e futuro. O insignificante, assim, vai deixando de pertencer ao silêncio e as
vidas infames passam a ser arrancadas da noite a qual pertenciam, atingidas pelas luzes
escrutinadoras da razão. Homens, mulheres, crianças, passam a adquirir formas engessadas e
são convocadas a compor biografias.
Acreditamos que as relações de poder são também violentas ao impedir que se fale, ao produzir
espaços de abandono e de exclusão e ao escrever a história dos grandes acontecimentos,
legando ao homem comum um silêncio estéril. Mas, o que se vê é que, mais do que isso, o poder
opera positivamente, incitando o dizer, o mostrar-se, produzindo “eus” plenos de si, edificando
fronteiras. Ele extrai a potência do silêncio de um corpo ao retirá-lo da noite e impedir que este
possa recusar um nome. Corpo atravessado pela confissão religiosa, pela confissão jurídica,
pelos apelos midiáticos, pela injunção a falar para poder se libertar de seus complexos, pelo
mostrar-se para assegurar o não desaparecimento de sua identidade, pelo falar para não se
estar sozinho.
Walter Benjamin (1994) nos alertou sobre a dificuldade, cada vez mais acentuada, da capacidade
de se intercambiar experiências frente ao crescente domínio da informação. Haveria um
empobrecimento da experiência em meio à enxurrada de fatos e imagens que já nos chegam
acompanhados de explicações, não deixando, assim, espaço algum para a fabulação. Hoje, o
domínio da informação adquiriu uma espessura antes imaginável. As sociedades atuais, as quais
Deleuze (1992) denominou de sociedades de controle, funcionam por “controle contínuo e
comunicação instantânea”. Seu diagnóstico devastador sobre as formas sutis e transversais com
que se exerce tal controle, todavia, não deixa de indicar possibilidades de resistência a isso. Em
entrevista a Toni Negri, o filósofo francês afirma: “É preciso um desvio da fala. Criar foi sempre
coisa distinta de comunicar. O importante talvez venha a ser criar vacúolos de não-comunicação,
interruptores, para escapar ao controle” (DELEUZE, 1992, p. 221).
Desse modo, atravessados por esse controle, por esse constante falar de si e do mundo, onde
impera o domínio da comunicação, o que as histórias de dois infames urbanos teriam a nos dizer
é da possibilidade de experimentação da vida noutros registros. Exercício que não é cálido ou
tranquilo, quando vemos os desdobramentos decorrentes da ação de poderes sobre aqueles
corpos silentes. Mas, ainda assim, anúncio de possibilidade de fazer brotar espaços de silêncios
que incitem escapatórias a tais capturas.
O silêncio, como exercício ético-político dessas vidas, amplifica a resistência a um tempo no qual
mínguam as possibilidades de interrupção dos sentidos pré-concebidos, de composição de
histórias abertas, de produção de fissuras onde o inusitado possa se dar. Silêncio que coloca em

1518
cena a possibilidade de recusa às identidades, por isso perigoso. Semelhante ao silêncio das
sereias do qual nos fala Kafka, ao fabular como o herói Ulisses teria escapado das perigosas
sereias na ilha de Capri, não por não ter ouvido o seu canto, mas por não ter ouvido o seu
silêncio, este sim “uma arma ainda mais terrível que o canto” (KAFKA, 2002, p. 104).
Em espaços inconclusos onde o silêncio habite talvez seja possível ouvir o murmúrio da vida que
se politiza sem recorrer ao alarde; daquilo que permanece no lugar onde foi destinado a
desaparecer; do que se reinventa; da política travestida de saco de lixo, de existência-relâmpago
que se põe a questionar, com a invisibilidade que lhe foi produzida, a eficácia do planejamento
de uma cidade modelo. Histórias de lixos urbanos (BAPTISTA, 1999), que, nesse seu proceder
minúsculo, burlam um poder que editava suas histórias com um fim previsível. E, assim fazendo,
“diziam à cidade entranhada em seus corpos que ainda existiam amorosamente vivos; um
amoroso fedido por misturas de afetos que atravessava os corpos cariados por embates do agora
e do passado...” (BAPTISTA, 2013, p. 156).
Os fatos são sonoros: a frágil imobilidade de duas vidas miseráveis que se tornam invisíveis aos
olhos, mas que sussurram uma existência contingente. Como nos faz lembrar Clarice Lispector,
novamente ela, é o sussurro que (deveria) impressiona (r).

3 – Referências
BAPTISTA, L. A. A cidade dos sábios. São Paulo: Summus, 1999.

BAPTISTA, L. A. Epifania urbana sobre corpos imóveis. Redobras [Online]. n. 12, ano 4, 2013, p.154-157.

BENJAMIN, W. Experiência e Pobreza. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 114-119. (Obras Escolhidas v. 1).

BENJAMIN, W. Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte. In: BENJAMIN, W. Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense,
1994. p. 137-164. (Obras Escolhidas v. 1).

BENJAMIN, W. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: BENJAMIN, W. Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense,
1994. p. 197-221. (Obras Escolhidas v. 1).

BENJAMIN, W. Passagens. (Org. Willi Bolle; tradução Irene Aron, et. al.). Belo Horizonte/São Paulo:
Editora UFMG/Imprensa Oficial, 2006.

DELEUZE, G. Controle e Devir. In: Conversações. São Paulo: Ed. 34, 1992. p. 213-222.

FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1977.

FOUCAULT, M. A vida dos homens infames. In: FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa:
Passagens, 1992. p. 89-128.

1519
FOUCAULT, M. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

KAFKA, F. O silêncio das sereias. In: KAFKA, Franz. Narrativas do espólio. Tradução e posfácio: Modesto
Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 104-106.

LISPECTOR, C. A Hora da Estrela. 12 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1998

NAIDIN, J. Vidas Heterotópicas, Vidas Infames, Vidas Outras: um percurso antropológico no pensamento
de Foucault. Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 28, n. 45, p. 1027-1048, set./dez. 2016

SANTOS, A. C. M. O Rio de Janeiro de Lima Barreto por Affonso Carlos Marques dos Santos, Francisco de
Assis Barbosa e Paula Beiguelman. Rio de Janeiro: RIOARTE, 1983, p. 103-104.

VERAS, A.T.R. A produção do espaço urbano de Boa Vista – Roraima. 2009. 235f. Tese (Doutorado em
Geografia Humana) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2009.

1520
MAPEAMENTO DE UMA HISTÓRIA SILENCIADA: Os engenhos de açúcar de Maceió
NóCego - Outros silêncios.

Ana Clara Guimarães Dias da Silva


Graduanda; UNIT; clara2014.0@outlook.com

Beatriz Cristina Correia de Sá


Graduanda; UNIT; biahsa@hotmail.com

Bianca Machado Muniz


Mestre; UNIT/UFAL; bianca602@outlook.com

Em Alagoas, vários núcleos populacionais nasceram e cresceram em decorrência dos engenhos


e não foi diferente em sua capital, Maceió, que tem sua história ligada intimamente à cultura do
açúcar. Esses complexos produtores de açúcar permitiram o desenvolvimento da cidade, não
apenas no núcleo social, econômico e cultural, mas também influenciaram na paisagem. Com o
passar do tempo, os antigos engenhos foram desativados e dessa forma, as memórias dessas
propriedades foram esquecidas e silenciadas. Assim, este artigo se propõe a apresentar o
mapeamento e a localização de possíveis remanescentes desses complexos no município de
Maceió, a fim de recuperar a memória e a história dessas propriedades de importância histórica
inegável.
Palavras-chave: Alagoas; Açúcar; História.

In Alagoas, several population centers were made and grown as a result of the sugar mills and it
was no different in its capital, Maceió, which has its history closely linked to the culture of sugar.
These sugar producer complex allowed for the development of the city, not only in the social,
economic and cultural core, but it also had influence in the landscape. Over time, the old mills
were out of use and in this way, the memories of these properties were forgotten and silenced.
Thus, this article proposes to present the mapping and the localization of possible remnants of
these complexes in the city of Maceió, in order to recover the memory and history of these
properties of undeniable historical importance.
Keywords: Alagoas; Sugar; History

1521
1 – As molduras do passado: o engenho, a paisagem e sua memória
O estado de Alagoas teve sua ocupação inicial marcada pela implantação dos engenhos, antigos
complexos rurais voltados para a produção de açúcar e que representaram nós de convergência
na paisagem e na história do estado. Nos primeiros séculos, foi nos engenhos onde se expressou
de forma mais significativa as dinâmicas sociais, culturais, políticas e econômicas deste
território.
“... As articulações sociais, a composição étnica, os padrões culturais, as
relações de trabalho e de poder, forjaram-se em torno dos engenhos e das
lavouras de cana.”. (FERLINI, 1994, p.08)

Do ponto de vista arquitetônico, o engenho geralmente é caracterizado pelo conjunto de suas


principais edificações: a casa grande, a capela, a fábrica e a senzala. Porém na prática, o engenho
se constituía num complexo que podia agregar muitas outras edificações, como a casa dos
trabalhadores e moradores, a carpintaria, a casa de farinha, entre outros. Estas construções
estavam geralmente ambientadas em um cenário rural, emoldurado pela vegetação, inclusive o
verde da cana, e muito frequentemente a água dos rios, e a própria terra, base para as
construções, plantações e para todas as atividades ali realizadas. E é a partir dessa configuração
que o engenho constrói sua paisagem.
Através da apresentação de suas edificações principais, podemos também compreender um
pouco de seu funcionamento.
A começar pela casa grande, que era a residência do proprietário - também conhecido como
senhor de engenho - e de toda a sua família. Traduzia a função social do estabelecimento e
representava o centro da vida da sociedade (JÚNIOR, 1992). Representava também o poder
patriarcal do senhor sobre engenho. Era quase sempre construída em um ponto mais alto, ou
em uma elevação existente, estando em uma posição como que de dominância, permitindo
inclusive, ao senhor do engenho, a observação – e controle – de tudo que se passava em sua
propriedade.
Já a capela, quase sempre pequena e modesta, era erguida na vizinhança da casa grande. Nela
se realizavam os batizados, os casamentos e enterros, testemunhando o nascimento, a vida e a
morte. Representava não apenas o acesso aos sacramentos e aos rituais católicos, mas também
a presença da igreja como instituição, e a importância que teve no Brasil colonial.
A fábrica, também chamada de casa do engenho, era onde acontecia o fabrico do açúcar. Era na
proximidade da casa grande, de preferência perto de um rio, e em um plano mais baixo, onde

1522
estava localizada essa edificação (JÚNIOR, 1992). Era ali onde se concentrava o trabalho dos
escravos, e onde se realizavam as várias etapas de produção do açúcar.
Por fim, a senzala era uma construção vital desse conjunto. Abrigava, em péssimas condições de
salubridade e higiene, dezenas de escravos, os quais eram a chave principal para o crescimento
e funcionamento do engenho. Nada se fazia sem os escravos (FERLINI, 1994).
Em Alagoas, várias cidades tiveram um engenho como sua primeira forma de ocupação. Entre
elas podemos citar Rio Largo, Satuba, Pilar, São Miguel dos Campos, entre outras. O engenho
também foi significativo para o surgimento da capital do Estado, Maceió, que tem sua trajetória
intimamente ligada à cultura do açúcar. Depois da restauração após as invasões holandesas no
povoado de Santa Luzia do Norte, é que deve ter tido início o povoado da atual capital de
Alagoas, através de um engenho de açúcar que existiu no local onde hoje está localizada a praça
D. Pedro II, onde podemos analisar seu progresso na Figura 01, (COSTA, 1981).

Figura 01: Pintura da praça Dom Pedro II, com a Capela de São Gonçalo e o primeiro núcleo urbano de
Maceió vs. Catedral Metropolitana de Maceió, atual praça D. Pedro II

Fonte: https://www.historiadealagoas.com.br/a-catedral-de-maceio.html (2018) e


http://holidayinnexpressmaceio.blogspot.com/2012/08/catedral-de-maceio.html (2021).

1523
Porém o engenho que deu origem à cidade não foi o único existente no município. Alguns
almanaques mostram a existência, em diversas épocas, desses complexos produtores de açúcar.
Antigas listas do século XIX mostram que Maceió chegou a ter 55 engenhos no ano de 1849.
Porém, de maneira contraditória, a memória da existência dessas propriedades silencia, e já não
se fala de engenho no município: essas memórias foram se perdendo, restando apenas alguns
resquícios nas lembranças de moradores mais antigos, documentos e algumas referências
bibliográficas.
(...)a formação de vilas e cidades, a defesa do território, a repartição de terras,
o trato com os indígenas, as relações entre várias categorias sociais, enfim,
todas as instâncias da vida colonial delinearam-se, desde o século XVI, a partir
do complexo produtor do açúcar. (FERLINI, 1994, p. 27).

Desta forma, este artigo se propõe a apresentar o mapeamento e a localização de possíveis nós
de permanência desses engenhos no município de Maceió, a fim de resgatar a memória e a
história destas propriedades.

2 – Estudo, mapeamento e localização dos remanescentes.


Para fazer um levantamento dos engenhos existentes no município de Maceió ao longo do
século XIX, foram utilizadas várias listas de engenhos como as provenientes do livro de Moacir
Medeiros de Santana “Contribuição à história do açúcar em Alagoas”, referentes aos anos de
1849 e 1859. Foram usadas também as disponíveis nos “Almanak da Província das Alagoas”
referentes aos anos de 1873, 1880, e 1894.
A análise destas listas permitiu traçar um universo dos engenhos maceioenses através do
levantamento dos nomes das propriedades citadas em cada ano. Foi possível, por exemplo,
verificar o quantitativo de engenhos existentes em Maceió em cada um dos anos citados. Foram
listados 54 engenhos no ano de 1849, 55 em 1859, 44 no ano de 1873, 50 engenhos em 1880 e
34 em 1894.

Tabela 01. Quantidade de engenhos e seus respectivos anos

ANO 1849 1859 1873 1880 1894

NÚMERO DE 54 55 44 50 34
ENGENHOS
CITADOS

Fonte: Criado pelas autoras segundo informações do Almanak da Província das Alagoas e Moacir
Medeiros de Santana(2021)

1524
Embora o número de unidades tenha variado ao longo da segunda metade do século XIX,
percebe-se que alcançou um maior número de unidades em 1859 chegando a 55 engenhos, e
o menor número no ano de 1894, apresentando apenas 34 engenhos, indicando um decréscimo
na quantidade destas propriedades. É possível traçar uma média de 47 engenhos existentes em
Maceió entre 1849 e 1894.
Percebe-se também um maior enfraquecimento no número de engenhos existentes na cidade
no final do século, sendo essa diminuição acentuada provavelmente resultante pela crise
atravessada por essas propriedades, decorrentes de várias dificuldades enfrentadas como, a
abolição da escravatura, questões ligadas aos transportes, e o surgimento das primeiras usinas.
Esse panorama histórico influenciou o desaparecimento de muitos engenhos, onde alguns
originaram usinas e outros se tornaram fazendas produtoras de cana de açúcar.
O processo que influenciou a queda no número dos engenhos, não se estabilizou no fim do
século XIX. No início do XX os engenhos continuaram em dificuldades, de modo que aos poucos
a produção de açúcar foi dominada pelas usinas. Alguns se tornaram meros produtores de cana,
mas muitas propriedades mantiveram seu nome original, ainda que se dedicando a outras
atividades. Contudo, muitas destas propriedades parecem simplesmente ter deixado de existir,
visto que já não é possível localizar seus vestígios.
As listas de engenhos também permitiram fazer um levantamento individual de cada complexo
de açúcar. A situação é muito diversa, podendo levar a várias interpretações. Alguns engenhos
aparecem em todas as listas analisadas entre os anos de 1849 e 1894, como é o caso do engenho
“Cantinho”. Já outros, como o “Cachoeira do Meirim”, aparece em apenas 4 listas, e outros são
citados apenas em uma ou duas listas.
As razões para isso acontecer podem ser várias, e nos limitamos a traçar algumas hipóteses.
Para os engenhos que aparecem em várias listas, pode-se concluir que continuaram existindo, e
funcionando. É possível que um engenho que aparece em uma lista e nas outras não, tenha sido
desativado, ou mesmo tenha sido vendido e mudado de nome, aparecendo em uma lista
seguinte com outro topônimo.
Já os engenhos que aparecem nas primeiras listas, e depois de se encontrarem ausentes por
alguns anos voltam a aparecer em outras listas, podem ter tido um período de fogo morto, onde
não moeram, e por esse motivo não terem sido considerados. De qualquer forma, para afirmar
com precisão o motivo da inconstância da presença de vários engenhos nas listas citadas seria
necessário um estudo individual caso a caso.

1525
Assim, a análise das listas de engenhos permitiu realizar um mapeamento de propriedades com
potencial de terem sido engenhos no passado. Através de um mapa do IBGE do ano de 2014,
onde aparecem nomes de fazendas existentes no Município de Maceió, foram localizadas dez
(10) com nomes semelhantes aos das listas de engenhos as quais podem ser vistas na figura 02,
sendo elas, São Francisco (01), Cachoeira do Meirim (02), Jenipapo (03), Ponte Grande (04),
Riachão (05), Fazenda (06), Bamburral (07), Duas Bocas (08), Gameleira (09), e Engenho Velho
(10). Na figura 02, é possível perceber a localização dessas fazendas, que podem ser
remanescentes de engenhos em Maceió.

Figura 02: Mapa de localização de engenhos em Maceió.

Fonte: IBGE (2014), modificado pelas autoras, 2020.

1526
Através do mapa de localização de engenhos, podemos perceber como eles se distribuíram no
território: geralmente com alguma proximidade entre eles, e predominante a margem dos rios
que cortam o território.
3 – Os engenhos localizados e suas memórias
Tão importante quanto constatar a existência de tantos engenhos no passado do território
maceioense, e especular sobre suas possíveis localizações, é conhecer suas histórias. São poucas
as informações disponíveis, e a história do engenho, muitas vezes, acaba se confundindo com a
de seus proprietários, mas trazemos as informações que foram obtidas, também considerando
que, por serem escassas, mesmo o mais humilde dado histórico se torna valioso.
Começando com um dos mais conhecidos, o “Cachoeira do Meirim”, hoje nome da principal
avenida de acesso ao Benedito Bentes, um dos bairros mais populosos de Maceió. A lista de
1859, traz o nome do proprietário do antigo engenho, José Miguel de Vasconcellos. Há, também,
documentos que apontam que nos anos de 1960, esse antigo engenho tornou-se uma usina, a
“Usina Cachoeira do Meirim”, ainda existente.
Informações acerca de outros dois antigos engenhos foram encontradas no Almanak Laemmert,
de 1901. Através desse documento, foi possível identificar Manoel Pereira da Costa como
proprietário dos engenhos “Bamburral” e “Duas Bocas”, ambos localizados no município de
Maceió. Segundo a mesma fonte, Manoel Pereira da Costa era proprietário também do
engenho de nome “Incendiado”.

Figura 03: Almanak Laemmert, 1901

Fonte: Almanak Laemmert (1901), modificado pelas autoras

1527
No mapa elaborado por Mornay em 1862, é possível localizar o engenho “Bamburral” perto do
Rio Meirim. Em um mapa do IBGE de 2014, a "Fazenda Bamburral”, aparece em situação muito
semelhante, nas proximidades do Rio Meirim, na área atualmente conhecida como bairro
Pescaria, em Maceió. A comparação da localização do engenho Bamburral nos dois mapas, pode
vir a confirmar a localização deste engenho, e reforça a possibilidade de a atual fazenda
Bamburral conter algum remanescente do antigo engenho Bamburral.

Figura 03: Comparação da localização do engenho “Bamburral”, mapa de 1862 e mapa de 2014.

Fonte: Mornay (1862); IBGE (2014). Modificado pelas autoras

O engenho “Ponte Grande” foi outro dos localizados no mapa do IBGE. A história desse engenho
estaria ligada à infância de Floriano Vieira Peixoto (1839-1895), primeiro vice-presidente e
segundo presidente do Brasil, e a outro engenho, o “Riacho Grande”, que apesar de não ter sido
localizado no mapa do IBGE, tem grande importância para o nosso estudo.
O Riacho Grande foi o engenho onde nasceu, no dia 30 de Abril de 1830, o futuro Marechal
Floriano Peixoto, filho de Manoel Vieira de Araújo Peixoto (MACYEL, 1928). Além de uma
imagem no que diz respeito a casa grande desse engenho (Figura 04). Foram encontradas
também algumas citações no livro “O bangüê nas Alagoas”.

1528
“Foi ainda de Engenho Alagoano - do Riacho Grande, onde nasceu, e do
Itamaracá, onde se criou - que surgiu para importante papel na vida brasileira
o mais tarde chamado Marechal de Ferro: Floriano Peixoto. (JÚNIOR, 2006
p.278)”

Figura 04: Casa Grande do Engenho Riacho Grande.

Fonte: https://www.historiadealagoas.com.br/floriano-menino.html (2020)

Aos 12 dias de nascido, o tio e padrinho de Floriano, José Vieira de Araújo Peixoto, e sua esposa
levaram-no para viver com eles em seu engenho, o “Ponte Grande” (MACYEL, 1928). O engenho
Ponte Grande aparece ainda em diversos trechos do livro “O bangüê nas Alagoas”, de Diégues
Júnior, além de algumas citações em documentos históricos do século XIX.

4 – Nó Cego
A dificuldade de levantamento do histórico desses engenhos são sintomas da impiedosa ação
do tempo, que desgasta não apenas seus vestígios materiais, mas que encobre e esconde
também seus vestígios históricos, dificultando seu acesso.
Por serem propriedades familiares e particulares, grande parte da história desses engenhos
nunca foi documentada, sendo portanto em grande parte sepultada com aqueles que ali
viveram.
Sendo este um estudo que se desenvolveu em meio à pandemia do coronavírus, não foi possível
nenhuma incursão a estas localidades, o que, acredita-se, traria novas e valiosas informações,
inclusive permitiria apreender estas paisagens na atualidade. Espera-se num futuro próximo,
poder realizá-las.

1529
Espera-se também que este estudo contribua para resgatar as memórias dos engenhos de
Maceió, não apenas como passado romantizado, mas de forma crítica, como espaço de
contradições que, em muito contribuiu para a construção não apenas de Maceió mas de todo o
estado de Alagoas.

Referências
ALMANAK Administrativo da província as Alagoas: para o anno de 1880. Maceió: Typopraphia Social de
Amintas & Filho, 1880. Nono anno.

ALMANAK da província as Alagoas: para o anno de 1873. Maceió: Typ. Social de Amintas & Soares, 1873.
Anno segundo.

ALMANAK do estado as Alagoas: para 1894. Maceió: Typopraphia da Empreza Gutenberg, 1894. Anno XXI.

ALMANAK Laemmert: Administrativo, Mercantil e Industrial (RJ) - 1891 a 1940. Rio de Janeiro, 1901.

BIBLIOTECA. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE. Disponível em:


https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/alagoas/maceio.pdf. Acesso em 20 de Fevereiro de 2021.

COSTA, Craveiro. Maceió. 2. ed. Maceió: Serviços Gráficos de Alagoas S/A - SERGASA, 1981.

DIÉGUES JÚNIOR, Manuel. O engenho de açúcar no Nordeste. Rio de Janeiro: Ministério da Agricultura,
1952.

DIÉGUES JÚNIOR, Manuel. O banguê nas Alagoas. Maceió: EDUFAL, 2006.

FERLINI, Vera Lúcia Amaral. A civilização do açúcar. 11. ed. São Paulo, 1994.

MORNAY, Carlos. Carta topográfica da Província das Alagoas, que de ordem do Exm. Sr. Dr. Antônio Alves
de Souza Carvalho, D. Presidente da Prov. Maceió, 1862.

Sá, B. C. C. de, & Silva, A. C. G. D. da. (2020). A cidade e os banguês: mapeamente e estudo de
remanescentes no município de Maceió. Caderno De Graduação - Ciências Humanas E Sociais - UNIT -
ALAGOAS, 6(2), 149. disponível em: <https://periodicos.set.edu.br/fitshumanas/article/view/9130>
Acesso em 24 de Março de 2020.

SANTANA, Moacir Medeiros de. Contribuição à história do açúcar em Alagoas. Recife: Museu do açúcar,
1970

DUQUE, M., & MUNIZ, B. M. (2020). ENGENHOS ALAGOANOS E SUA ESPACIALIZAÇÃO. Caderno De
Graduação - Ciências Humanas E Sociais - UNIT - ALAGOAS, 6(2), 161. Disponível em
<https://periodicos.set.edu.br/fitshumanas/article/view/9004> Acesso em 20 de Fevereiro de 2021

MACYEL, Aurino. Floriano Menino. Disponível em <https://www.historiadealagoas.com.br/floriano-


menino.html> Acesso em 24 de Fevereiro de 2020.

1530
ORGANICIDADE: laboratório corpo-urbano
Nó Cego - Outros silêncios.

Elaine Mirelly de Almeida Carvalho


Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da
Bahia; mirelly-carvalho@hotmail.com.

Erivan de Jesus Santos Junior


Graduando em Arquitetura e Urbanismo; Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da
Bahia; sannarchi@gmail.com.

Fayola Caucaia (Franklin Pereira da Silva)


Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da
Bahia; fayolacaucaia@gmail.com.

Janayna Victória Araújo dos Santos Silva


Bacharel em Humanidades com Área de Concentração em Estudos das Cidades; Instituto de
Humanidades, Artes e Ciências Prof. Milton Santos da Universidade Federal da Bahia
Graduanda em Arquitetura e Urbanismo; Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da
Bahia; janav.araujo@hotmail.com.

Este é um projeto experimental de expografia artística, desenvolvido pelo coletivo


OrganiCIDADE. A exposição surge da necessidade de experienciar a cidade no momento em que
manter-se em casa é recomendado. Nesse sentido, a exposição virtual "OrganiCIDADE:
Laboratório Corpo-Urbano” busca alcançar as pessoas em suas casas, levar reflexões sobre a
cidade existente e as possibilidades urbanas no futuro. A partir da estimulação de um imaginário
utópico de cidade, por meio de fotomontagens que intercruzam com sons que faltam ao meio
urbano.
Palavras-chave: intervenção artística; urbanismo; errâncias; expografia.

This is an experimental project of artistic expography, developed by the collective OrganiCIDADE.


The exhibition arises from the need to experience the city at the moment when staying at home
is recommended. In this sense, the virtual exhibition "OrganiciDADE: Corpo-Urbano Laboratorio"
seeks to reach people in their homes, take reflections on the existing city and the urban
possibilities in the future. From the stimulation of a utopian imaginary of the city, through
photomontages that intersect with sounds that are lacking in the urban environment.
Keywords: artistic intervention; urbanism; wanderings; expograph.

1531
A OrganiCIDADE é um coletivo soteropolitano de intervenção urbana composto por quatro
estudantes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA)
que ao preambular um ideal de cidade, onde as relações de mutualismo protagonizam todos os
espaços, chegam à proposições artísticas que buscam excitar o imaginário utópico das pessoas.
A tentativa de responder como seria esse ideal de cidade leva para caminhos que perpassam a
compressão dos limites do que é cidade, corpo e natureza.
Esses entendimentos, dados a partir das narrativas que surgem da junção desses três ou do
discorrer de cada um individualmente, desencadearam na construção de uma exposição virtual,
sob a orientação da Profª. Dra. Ines Karin Linke Ferreira, intitulada “OrganiCIDADE: Laboratório
Corpo-Urbano”1. Seu intuito é fazer com que os espectadores, confinados em suas casas devido
à pandemia do COVID-19, tenham a possibilidade de experienciar sensações que surgem no
caminhar errante pela cidade (JACQUES, 2012). Através da navegação em uma plataforma
composta por imagens, intervenções sonoras, hiperlinks e páginas que conformam trajetos
múltiplos, cada visitante possui a chance de experienciar a exposição de forma única.

1 – Que tipo de cidade queremos?


Ousar responder essa pergunta implica em antes sabermos que tipos de cidade possuímos. A
cidade desejada pode ser tanto aquela que contraria os moldes no qual a atual foi construída,
quanto uma moldada por sonhos e desejos, talvez impossíveis de se conquistar a curto prazo,
mas realizáveis no imaginário e nas proposições artísticas. Seja de uma forma ou de outra, só ao
conhecer o modelo urbano vigente é possível responder que tipo de cidade se quer.
Se o desejo de cidade parte de um ideal pessoal, ele pode mudar de cidade para outra. Isso
porque as cidades possuem conformações diferentes, sendo perceptível essa contraposição de
realidade nos interiores de cada estado brasileiro, onde as cidades não são apenas concreto e
rodovias, mas, muitas vezes, interconexões entre contexto urbano e rural, urbano e ribeirinho,
e etc. Se a ideia é fazer com que a urbanidade caminhe numa lógica onde o concreto é cada vez
menos aparente, contrapondo ao ideal modernista de cidades, então o que se quer não é um
contrariar do modelo urbano vigente, mas uma mudança na perspectiva das grandes cidades
onde impera uma hegemonia neocolonial com a perda da vegetação e o aumento das camadas
impermeáveis e inférteis.

1
Fomentado pelo edital Pibexa Tessituras 2020 da Pró-Reitoria de Extensão da UFBA. Disponível para
visitação através do link https://labcorpourbano.hotglue.me

1532
O ponto chave da questão está em saber o que é cidade. Existem inúmeras discussões sobre a
sua definição, mas geralmente é compreendida como a centralidade político-administrativa de
um município. Rolnik (1988) afirma que “a cidade é uma obra coletiva que desafia a natureza”
(ROLNIK, 1998). Ela pode ser compreendida como a zona desenvolvida, avançada e evoluída;
onde as relações díspares do ser humano versus natureza encontram-se em contraste. Natureza
é entendida por essa autora, tal como entendem os antropocentristas, como algo desvinculado
do ser humano, resultado de algo primordial, que perde a naturalidade quando tocada por ele.
O ponto da questão está em entender a natureza e a humanidade como assuntos distintos.
É verdade que os seres humanos podem causar desequilíbrios na natureza, o antropoceno é
uma grande prova disso. Contudo, assim como as cosmologias de muitos povos tradicionais das
américas entendem, a humanidade é tão natural quanto a própria natureza, uma vez que é
produto desta (DIEGUES, 2008). O que falta é pensar sobre como o egoísmo humano, que torna
a terra abjeto de compra e venda, resulta na redução de espaço para outros seres e para as
populações não-hegemônicas.
Com isso em vista é possível responder que tipo de cidade se quer. O coletivo OrganiCIDADE,
entende as cidades assim como Rolnik (1988), mas contrapõe o sentido de natureza trazido por
ela, uma vez que compreende que a natureza intocada é um mito (DIEGUES, 2008). E acredita
que na coletividade e na interconexão com as outras espécies há a possibilidade de revisão do
modelo de cidade que desafia a natureza para um modelo de cidade que caminha com a
natureza. Este é o tipo de cidade desejada.

2 – O Corpo-Urbano
Com essa resposta em mãos, caminha-se pela cidade em busca da adoção de espaços onde
sejam possíveis intervenções que dialoguem com o tipo de cidade que se quer. A visão surge no
primeiro momento como ferramenta de questionar, pois, com ela se observa as fachadas vazias,
propícias para vegetação; as pessoas caminhando na cidade, confusas entre o espaço do
pedestre e o espaço do automóvel; e as inúmeras faixas impermeáveis e inférteis que cortam a
cidade inteira, como rodovias e viadutos; além de outras imprecisões. No segundo momento, o
corpo também torna-se ferramenta para investigação dos espaços visitados, por levantar
espontaneamente reflexões sobre os mesmos. E faz isso ao evocar sensações que são
consequentes do desconforto ambiental e das necessidades fisiológicas.
É possível perceber, a partir disso, por exemplo, que os banheiros de uso público, e com
adaptação para Pessoas Com Deficiência (PCD), dificilmente são encontrados, e quando são

1533
estão em estado de conservação questionável. Ademais, escadas e rampas mal-projetadas com
poucos ou nenhum patamar, baixa existência de espaços sombreados e com bancos para
descanso, entre outros déficits. Tudo é registrado nas fotografias e no caderno de notas.
As imagens registradas, disponíveis na exposição, refletem as sensações emanadas por esse
corpo falante, a quem o grupo chama de laboratório corpo-urbano, e substanciam narrativas
errantes de onde é possível “apreender o espaço urbano de outra forma, partindo do princípio
de que os errantes questionam o planejamento e a construção dos espaços urbanos de forma
crítica” (JACQUES, 2012).

3 – Novas narrativas dos espaços coletivos


A cidade contemporânea atende uma demanda moderna de velocidade e progresso (SANTOS,
2006). Como se dá essa relação natureza versus concreto dentro da cidade? Como fatores sociais
de raça, classe, gênero e sexualidade atravessam esta relação? Para quem a cidade é construída?
Consumir é o ponto central que organiza uma sociedade capitalista, sendo também o que rege
a produção e transformação do espaço.
O espaço urbano capitalista - fragmentado, articulado, reflexo, condicionante social, cheio de
símbolos e campo de lutas - é um produto social, resultado de ações acumuladas através do
tempo, e engendradas por agentes que produzem e consomem espaço. São agentes sociais
concretos, e não um mercado invisível ou processos aleatórios atuando sobre um espaço
abstrato. (CORRÊA, 2004, p.11)
Todas as narrativas contadas na exposição virtual, direta ou indiretamente, trazem como ponto
central pensar a construção de espaços coletivos dentro da cidade, superando o pensamento
eurocêntrico e o modelo capitalista hegemônico. A rua pode ser mais que apenas um ponto de
passagem mecânica (de carros, de ônibus e de transeuntes apressados) e um território regido
pela Carrocracia2, na utopia assumida ela se torna um espaço de experiências intercambiáveis,
onde o anonimato dos indivíduos é momentâneo e a relação com seus pares (AUGÉ, 1994) dita
os novos uso do meio ambiente-urbano, trazendo para a discussão a contribuição de povos pré-
coloniais, suas soluções construtivas, o uso do espaço e seus modos de relacionamento com o
meio ambiente ao longo da história.

2
"[...] regime que produz diferenciações radicais nos sujeitos da cidade, na própria cidade enquanto
sujeito, nos territórios, nos automobilistas, em nosso inconsciente e subjetividades." (TRÓI, 2017, p.274),
a Carrocracia é fruto da naturalização do automóvel enquanto paisagem urbana, a cidade nesse sentido
é expandida em função das aberturas de ruas e avenidas como zona exclusiva de passagem automobilista,
a presença do corpo nessas zonas torna-se inapta, pois o fluxo de passagem é rápida e efêmera.

1534
4 – A expografia da OrganiCIDADE: Laboratório Corpo-Urbano

Figura 01: página Salvador

Fonte: https://labcorpourbano.hotglue.me/?Salvador

A exposição virtual “OrganiCIDADE: Laboratório Corpo-Urbano”, realizada numa plataforma de


hospedagem gratuita, teve sua inauguração no dia 22 de fevereiro de 2021 e se configura como
uma exposição de duração indeterminada. A partir da perspectiva do corpo como um
laboratório que embasa as propostas visuais expostas, a expografia foi desenvolvida de forma a
compartilhar com o observador uma experiência cartográfica, de busca e apreensão do espaço.
Para estabelecer o máximo de paralelos possíveis com o método criativo, o projeto expográfico
se deu, então, como um entroncamento entre cartografia e rizoma.
[...] o Rizoma não é simétrico, é heterogêneo, visto que as conexões se fazem
por acaso, na desordem. Os pontos de um rizoma não são fixos, deslocam-se,
formando linhas, “linhas de fuga” ou de “desterritorialização”. O Rizoma
funciona por descentralizações em diferentes dimensões. Ao contrário da
árvore, não se preocupa com origens (ou raízes), é “antigenealógico”.
(JACQUES, 2011, p. 136)

É importante ressaltar que a plataforma escolhida para hospedar o site, além de ser de fácil
manuseio, permitia uma grande liberdade com relação aos limites de horizontalidade e
verticalidade, e tendo isso em vista, a exposição procurou explorar as especificidades do meio
virtual, promovendo uma vivência diferente daquela que poderia acontecer no espaço físico
(JAHN, 2016) e fugindo do modelo de Viewing Room que vem sendo desenvolvido por outros
espaços artísticos que consistem num site galeria de imagens.
A forma do Laboratório Corpo-Urbano não segue qualquer linearidade ou lógica fixa e
preestabelecida, confabulando um sistema de múltiplas narrativas possíveis. Isto posto, a
exposição conta com um total de 8 ambientes virtuais - a saber: 1. Página de abertura; 2. pág.

1535
Salvador [Figura 01]; 3. pág. Brotas; 4. pág. Avenida Centenário [Figura 02 e 03]; 5. pág. Calabar;
6. pág. Federação; 7. pág. da Biblioteca; 8. pág. Quem Somos - interconectados por meio de
hiperlinks. Em concomitância com a ideia de rizomas, é possível sair de um bairro e chegar a
outros espaços virtuais da exposição, sem necessariamente precisar voltar à página inicial,
através dos hiperlinks simbolizados por miniaturas de setas ou ônibus, que se localizam em
pontos de um bairro onde é possível estabelecer diálogo com outro.
Por meio desses ícones, e da quebra da espacialidade tradicional de um website, o objetivo da
expografia é promover um percurso livre e autônomo, no sentido de que o visitante, na condição
de “transeunte virtual”, possa criar sua própria trajetória dentro do site, estabelecendo uma
experiência singular de alteridade. Como parte das escolhas curatoriais que buscam alcançar
essa relação, lança-se mão de intervenções sonoras que aguçam os sentidos e promovem uma
interação com as territorialidades apresentadas. Essas intervenções, que consistem em uma
mistura de sonidos da cidade de Salvador (trânsito, construção e melodias) e da natureza
(pessoas, pássaros, rio e mar), buscam ser representantes da utopia proposta em cada
localidade, ao ressaltar as características dos espaços e as mudanças almejadas pelas
fotomontagens.

5 – Ressalta-se o verde (re)existente

Figura 02: fragmento da página Avenida Centenário, parte da série Natureza X Concreto

Fonte: https://labcorpourbano.hotglue.me/?Viewingroom-centenario

A exposição se constrói com o total de quatro séries intituladas “Natureza X Concreto”, “Que
Tipo de Cidade Queremos”, “Afetividades”, “Se a Gente é Capaz de Imaginar a Gente é Capaz de
Construir”, além de uma obra independente intitulada "Percurso Saída das Abelhas". As obras

1536
propõe a imersão numa realidade utópica, iniciando essa narrativa crítica ao modelo vigente de
cidade.
Neste sentido, a série fotográfica “Natureza X Concreto” [Figura 02] propõe olhar a cidade de
forma crítica evidenciando a relação de disputa entre o verde existente no espaço urbano e o
concreto que domina a construção deste espaço. Com o objetivo de questionar os
atravessamentos sociais que se materializam na paisagem e levantar o debate em torno da
discussão da cidade contemporânea, em especial da cidade de Salvador.
A partir do andar errante, da troca com o espaço e observando os bairros, suas paisagens e a
mudança desta ao longo do caminhar, pôde-se percber como se distribuia a malha vegetativa
em cada localidade, passando de bairros periféricos e predominantemente negros, com uma
arquitetura popular e autoconstruida, a bairros de classe média com uma população branca, na
sua maioria, com uma arquitetura padronizada, funcionalista, pasteurizada e ordenada em
prédios verticalizados.
A natureza dentro da cidade existe numa lógica de uso e de relação antropocêntrica, sendo
sempre uma natureza controlada, dominada e servil ao ser humano. O verde sempre está ali
com uma finalidade mercantil e de consumo, ele é um produto que agrega valor para a cidade
capitalista. E como produto, o acesso a ele não se dá de forma igualitária a todos os corpos
sociais.

6 – A construção imagética de um espaço utópico

Figura 03: fragmento da página Avenida Centenário, obra Rio que transborda vida

Fonte: https://labcorpourbano.hotglue.me/?Viewingroom-centenario

Na série “Se a Gente é Capaz de Imaginar a Gente é Capaz de Construir” [Figura 03] a construção
imagética tem o intuito de despertar nas pessoas possibilidades de pertencimento harmônico

1537
entre os espaços público e privado. Nesse sentido, tornar o habitar propício para o exercício do
direito à cidade (LEFEBVRE, 2008), com um olhar criativo para as possibilidades construtivas
integradas com a preservação do meio ambiente.
Segundo Lefebvre (2008) a cidade deve ser um espaço habitável, vivido e animado3 - apropriado,
construído e desconstruído pelos transeuntes - como forma de evidenciar suas subjetividades
socioculturais, transformando o espaço a partir de suas necessidades elementares, relacionadas
à alimentação, moradia, troca/comércio, etc. Na cidade contemporânea é refletida uma
ideologia contrária, sendo extremamente opressiva aos corpos que ocupam os espaços públicos,
a necropolítica (MBEMBE, 2018) torna os corpos que sobrevivem além das engrenagens do
capitalismo e que reivindicam seu direito de aparecer (BUTLER, 2019) - através do comércio
informal ou carência de moradia, por exemplo - em corpos descartáveis (Idem), seguindo a
lógica do controle urbano higienista que invalida a ideia de coletividade.
Essa utopia desafia a ideologia da Carrocracia (TRÓI, 2017), pois é necessário que se abram
fissuras nos concretos e asfaltos da cidade contemporânea, para que a natureza possa emergir
e alterar a paisagem urbana que é pensada exclusivamente para o automóvel e assim os
transeuntes possam ter outras possibilidades de vivência coletiva no antropoceno. A utopia
experimenta o teleférico como transporte coletivo e objeto de equidade no dispare social, o
espaço aéreo é ensaiado como solução para o trânsito de massas, sendo também uma
alternativa de transporte ecológico que não agrida a Terra, possibilitando outras vivências.

7 – Direito a janela e dever com a natureza

Figura 04: fragmento da página Calabar, obra Arquitetura Quilombola, resistência e natureza

Fonte: https://labcorpourbano.hotglue.me/?Viewingroom-Calabar

3
Função da vida social no espaço projetado (LEFEBVRE, 2008).

1538
A partir do corpo como laboratório, é percebido que a cidade contemporânea abriga uma
multiplicidade étnico racial, que reflete nas subjetividades construtivas do espaço, sendo estes
funcionalistas e padronizados ou de morfologia orgânica derivada da autoconstrução. Na cidade
de Salvador, as intervenções imagéticas realizadas na comunidade Calabar [Figura 04] e na
avenida Centenário revelam essa multiplicidade territorial, pois embora pertençam a uma
mesma zona da cidade, quando comparadas possuem características sociais e morfológicas
distintas.
No caminhar pela Avenida Centenário a paisagem urbana é composta por prédios modernistas;
com média de 20 andares; conjunto disposto de forma ordenada e padronizada; janelas
funcionalista que não aproveitam as possibilidades de aberturas com a utilização das fachadas
cegas; e compondo a malha vegetativa, há focos de vegetação com canteiros arborizados
cercados por duas vias arteriais da cidade. A intervenção reapropria as fachadas cegas e as
coberturas, com o objetivo de ocupar e reparar a perda da vegetação nativa. Na cidade utópica,
a rua ganha outras representações para além do uso do automóvel, o espaço urbano torna-se
possível de ser vivido de forma equilibrada.
Através da observação do Calabar, é perceptível que a paisagem urbana se equipara a de uma
arquitetura que é perpassada por um aquilombamento4, a partir do que se percebe da
coletividade, afeto, relações culturais, ancestralidade, territorialidade, manejo de terras, etc.
Localizado em um terreno acidentado, as casas são coladas umas às outras, com ocupação densa
em um mesmo local, de crescimento vertical, pouco espaço de circulação e becos como área de
passagem coletiva; as coberturas são de telhado fibrocimento, telha cerâmica e laje, da maior à
menor predominância, respectivamente; e as fachadas sem acabamento em alvenaria, expostas
ao intemperismo, aumentam a temperatura interna das residências. Os habitantes são
descendentes de populações que foram escravizadas, e dão vida à resistência por meio do
aquilombamento (NASCIMENTO, 1980).
As intervenções urbanas presentes na exposição são possibilidades de soluções arquitetônicas
que, ao integrar-se ao meio ambiente, propõem a reapropriação de espaços subutilizados com
características identitárias que dialogam com as resistências políticas. Elas apresentam também
a potência do uso de paredes e coberturas verdes, que quando bem utilizadas colaboram na

4
A ação de se aquilombar é derivada do fortalecimento das lutas através da coletividade dos corpos
(NASCIMENTO, 1980).

1539
solução do conforto térmico, valorizando a paisagem urbana e similarmente incentivando a
independência e autonomia alimentar.

8 – Conclusão
Corpos que caminham pelo espaço percebem possibilidades, sensações e situações; percebem
também outros corpos ao mesmo tempo em que são percebidos por estes; reconhecem a
própria individualidade a partir das suas dificuldades, facilidades e memórias. Cada um, diante
das suas subjetividades, constroem as próprias narrativas sobre seus corpos ou sobre os corpos
de outros e sobre a cidade. Em sequência, a história encarrega-se de criar as tramas que
alimentam a riqueza da experiência deste caminhar.
Neste trabalho, a pergunta inicial é o primeiro passo. Não foi dada de início a compreensão do
corpo como laboratório, nem da errância como uma forma de cartografar, nem da tela virtual
como os muros da cidade. Definido, mesmo, só a inquietação “que tipo de cidade queremos?”
As respostas vão surgindo, tal como surgem as histórias numa caminhada errante. A cada novo
passo, uma nova concepção, um afinamento da concepção anterior, uma ideia que caminha.
A proposição de uma exposição, em uma plataforma virtual, onde a premissa é o deixar-se fluir
pela navegação sem roteiros, busca abarcar as sensações sentidas pelas artistas na experiência
do desenvolvimento deste trabalho; causar no público visitante o choque ou fascínio com o que
é novo, incomum, absurdo, incompreensível ou familiar. É uma aventura, onde a descoberta é
também a redescoberta, pois, os entendimentos preconcebidos sobre determinados espaços ou
sobre o seu uso, são repensados a partir das reflexões suscitadas nas narrativas individuais.
As contradições apontadas ao longo do texto, de uma cidade capitalista contemporânea, onde
a natureza se torna mercadoria e a predominância do carro se torna naturalizado na paisagem
urbana, tornam-se guias para a busca de possibilidades utópicas, provocações sobre o tema e
um convite ao olhar sensível para o entorno e compreensão da materialidade como extensão
das relações sociais de quem a constrói.

Referências
AUGÉ, Marc. Não lugares: Introdução a uma Antropologia da Supermodernidade. Campinas: Papirus,
1994.

BUTLER, Judith. Corpos em Aliança e a Política das Ruas: Nota Para uma Teoria Performativa de
Assembléia. 4ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

CORRÊA, R. L. O espaço urbano. São Paulo: Editora Ática, 2004.

1540
DIEGUES, Antonio Carlos Sant’Ana. O Mito Moderno da Natureza Intocada. 6ª edição. São Paulo:
Editora Hucitec NUPAUB-USP/CEC, 2008.

LEFEBVRE, Henri. O Direito à cidade. 5ª edição. São Paulo: Centauro, 2008.

JACQUES, Paola B. Estética da Ginga: A Arquitetura das Favelas Através da Obra de Hélio Oiticica. 4ª
edição. Salvador: Casa da palavra, 2011.

JACQUES, Paola B. Elogio aos Errantes. Salvador: EDUFBA, 2012.

JAHN, A.R.M. O museu que nunca fecha: A Exposição Virtual Digital Como um Programa de Ação
Educativa. Tese (Doutorado em Artes Visuais) - Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2016.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3ª edição. Bahia: N-1, 2018.

NASCIMENTO, Abdias do. O Quilombismo: documento de uma militância pan-africanista. Petrópolis:


Editora Vozes, 1980.

ROLNIK, Raquel. O que é Cidade. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.

SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4ª edição. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

TRÓI, Marcelo de. Carrocracia: Fluxo, Desejo e Diferenciação na Cidade. Periódicus. Salvador: EDUFBA,
Vol.1, N.8, p. 270-298.

1541
O SER QUE SE DESENHA NO ESPAÇO
NóCego - Outros silêncios.

Mateus Espínola de Carvalho Maia


Mestrando em Desenvolvimento Urbano; MDU - UFPE; mateusecmaia@gmail.com.

Buscando uma compreensão do ambiente e seu papel na construção da subjetividade e da


identidade humana, navegamos por uma interdisciplinaridade, passando por teóricos como
Norberg-Schulz, Winnicott, Leitão e van Eyck, tecendo reflexões acerca do significado do
ambiente dentro de uma visão própria da infância. Encontramos pontos de convergência nesses
pensamentos em termos como apropriação, transicionalidade, espaço entre, significância e
identidade, de modo a fomentar a discussão acerca da face subjetiva da arquitetura.
Palavras-chave: Infância; subjetividade; espaço transicional; fenomenologia da arquitetura.

Towards an understanding of the environment and its role in the construction of subjectivity and
human identity, we navigate an interdisciplinarity, passing through theorists such as Norberg-
Schulz, Winnicott, Leitão and van Eyck, weaving reflections about the meaning of the
environment within the grasp of childhood. We found points of convergence in these thoughts
through terms such as appropriation, transitionality, space in between, significance and identity,
in order to promote the discussion about the subjective face of architecture.
Keywords: Enter 3 to 5, separated by semicolons.

1542
1 – Introdução
Há uma carência progressivamente menos silenciosa de uma visão arquitetônica voltada
“para as pessoas”, mas neste movimento ainda é pouco discutida a experiência do indivíduo
enquanto sujeito, ou seja, este ser dotado de necessidades que transcendem a função e a forma,
e que é movido por tudo aquilo que é mergulhado no silêncio do intraduzível. Árdua é a tarefa
de tentar lançar luz aos processos do cerne humano, e em uma área da academia tão
acostumada com o pensamento de traços retos da arquitetura, nos deparamos com um nó cego.
Há de haver, no entanto, o esforço e a tentativa de compreensão, de, se não cortar, afrouxar o
nó górdio. Dito isto, esclareço que as indagações trazidas são parte de uma pesquisa mais longa,
um esforço coletivo que atravessa muitas outras questões. Assim, buscamos aqui levantar
alguns pontos de reflexão que servem para estimular o pensamento sobre arquitetura e
identidade, tendo o tema da infância como um importante vetor. Sem a ambição de chegar a
respostas, buscaremos caminhos para o pensar que devem contribuir para as discussões que
circundam o espaço construído sob a ótica da subjetividade, tecendo ideias extraídas de autores
com corpos teóricos aparentemente distintos, a fim de fazer caminhar o pensamento rumo a
uma visão mais humana do que significa habitar e construir, visão essa tão necessária para a
construção digna que buscamos.
O brincar da criança preenche os silêncios do mundo. De tantas formas essa afirmação se mostra
verdadeira. Uma criança que brinca solta gritos de alegria que atravessam as casas. Em uma
praça, o coro das crianças nos escorregos, balanços e gangorras lembra um som de revoada.
Não se passa indiferente a tal som. A criança possui o hábito de dizer o não dito, de destruir
barulhentamente, mas também de remendar com afeto e sem muita pretensão. Mas o brincar
das crianças também detém a chave do preenchimento de um silêncio mais primordial. O
brincar preenche silêncios quando faz conversar o que está dentro com o que está fora da
maneira mais direta que os humanos podem encontrar.
No espaço potencial ou transicional, a fronteira entre o que é real e o que é fantasia se dilui, e a
criança se encontra dentro de um silêncio privado, onde tudo é modelável. Aliás, tudo: o mundo
e ele mesmo, ali serão modelados. Esse silêncio não é o silêncio do som, mas do significado. O
encontro com um mundo ainda não designado, ou do qual não se abstrai o desígnio
imediatamente nos confronta com a tarefa de dar sentido, de propor abduções. O silêncio, nesse
caso, é um convite à fala. Tal conceito é chave dentro da psicanálise winnicottiana, e é aqui
utilizado como ponto de apoio, em diálogo com a fenomenologia da arquitetura de Norberg-

1543
Schulz e outros estudos sobre arquitetura e subjetividade a fim de explorarmos algumas facetas
do que pode ser este encontro com um mundo construído na tenra idade.

2 – Nome, identidade e lugar


O mundo da criança possui uma certa distância da racionalização e abstração, de modo que a
apreensão infantil está mais fortemente conectada à sensorialidade e ao contato direto com os
fenômenos do mundo, assim como à elaboração imaginativa destes fenômenos dentro do
mundo subjetivo. Para nos aproximarmos deste modo de ser no mundo ao discutir o espaço
sem nos desligarmos de um corpo teórico, a abordagem da arquitetura por meio da
fenomenologia apresentada por Norberg-Schulz parece ser de bom uso, por nos aproximar do
problema da relação entre espaço e identidade. “Quem sabe, não estamos aqui para dizer: casa,
ponte, fonte, portão, jarra, árvore frutífera, janela, — no máximo, pilar, torre” (RILKE, 1972 apud
NORBERG-SCHULZ, 1975 in NESBITT (Org.), 2006, p. 444). A citação de Rilke no texto “O
fenômeno do lugar” coloca o ser humano na posição daquele do gênesis bíblico: nomeador dos
fenômenos do mundo. A capacidade de nomear, nascida na emergência da linguagem, revela
uma natureza tão propriamente humana que resolvemos demarcar a partir dela a existência de
um mundo à parte do natural, o qual chamamos de mundo de Cultura. É bem verdade que a
partir do momento em que damos um nome a um fenômeno este passa a existir em um plano
a mais, pois com o nome vem o desígnio, e o significado — aquilo que recebe nome próprio
aparta-se do ambiente para tornar-se unidade identificável, é o surgimento da identidade. Não
é de se espantar, então, que a primeira coisa que recebemos ao nascer é nosso nome. Na
verdade, nosso nome muitas vezes precede até mesmo nossa concepção no ventre: a mãe ou
pai já confabula em seu imaginário a existência de um ser com nome e características próprias,
e de certa forma a identidade de um indivíduo já vem sendo formada antes dele. Nossa
identidade dentro da sociedade em que vivemos também é documento: no pedaço de papel
está registrado nome, sobrenome, filiação, data e lugar de nascimento. Eis o necessário para
identificar o sujeito: seu nome, sua origem biológica, e seu onde e quando. É inquestionável que
se sabe de alguém pela sua família e idade, mas por que mesmo sabemos algo de alguém pela
sua terra natal? Aqui partimos do mesmo ponto de Norberg-Schulz, pois nos chamamos
brasileiros, ou congoleses, ou japoneses, ou até olindenses, candeianos, zona leste, afirmando
que a identidade humana pressupõe a identidade do lugar.
A ideia da identidade de um lugar como essencial para a constituição da identidade do sujeito
nos remete imediatamente a um senso de cultura local, à ideia de um povo e seus costumes,

1544
aos quais os indivíduos são introduzidos paulatinamente desde o início da vida. A noção posta
em Norberg-Schulz, no entanto, fala de um espírito do lugar pré-cultural, com o qual um povo
dialoga a fim de garantir sua sobrevivência — para habitar uma localidade, haveriam de estar
de bom acordo com o genius que lá habitava primeiro. A beleza desta ideia é a de colocar, dentro
de um conceito que data desde a Roma antiga, uma base de interpretação da relação do mundo
natural com o mundo construído, de modo que este último pode ser visto como resultante do
primeiro a partir do exercício incipiente de uma humanidade que começa a emergir e criar seu
próprio lugar dentro da natureza. Aqui percebemos uma valorização da arquitetura vernacular,
que parece brotar do solo como uma árvore nativa, adaptada ao seu ambiente — ao genius loci.
Longe da idealização do “bom selvagem”, o que buscamos aqui é nada mais do que uma
compreensão deste senso de identidade que universalmente se atrela ao lugar.
A criança cresce em espaços verdes, marrons ou brancos; passeia ou brinca
na areia, na terra, na pedra ou no musgo, sob um céu nublado ou sereno;
agarra e levanta coisas duras e macias; ouve ruídos, como o som do vento
balançando as folhas de uma certa espécie da árvore; tem experiências do
calor e do frio. É assim que a criança toma conhecimento do ambiente e
elabora esquemas perceptuais que determinam todas as suas futuras
experiencias. (NORBERG-SCHULZ, 1976 in NESBITT, 2006, p. 457)

A atmosfera do ambiente natural em que crescemos é um registro permanente em nosso


espírito — é o genius da terra natal, vagarosamente, ao longo dos anos iniciais, se instalando no
corpo. A citação de Schulz, no entanto, não contempla um fenômeno presente neste mesmo
processo: a presença paralela — e cada vez mais predominante — de um ambiente edilício, que
nos insere em um mundo propriamente humano.
Leitão (2021) lança luz a este tema, através de uma reflexão sobre a ideia de significância
utilizada no campo da conservação arquitetônica, aproximando a figura do monumento com a
instância psíquica freudiana do superego, responsável pela delimitação do ser social, daquilo
que é visto como aceitável pela comunidade e se constitui no sujeito como uma consciência
moral. O monumento, nesta visão, é dotado de significância não por um valor construtivo ou
estético da edificação, mas por estar fundido a um discurso que estabelece a identidade coletiva
de um lugar. Se essa identidade coletiva é aceite unanimemente, não se sabe, nem é o caso da
discussão, mas o fato é que, através do monumento e sua conservação através de gerações, o
discurso se impõe, e com ele, o senso de identidade.
O fato do elemento arquitetônico ser uma construção humana sobre a terra que ultrapassa do
tempo de vida de seu construtor também transmite um senso de continuidade e permanência

1545
humana que diz ao sujeito: pertences a uma linha que te precede e que sobreviverá à tua
presença no mundo. A identificação com o artefato construído, então, posiciona também o
indivíduo num tempo e num espaço, numa linhagem que o transcende. Este fato que apequena
o indivíduo também o protege de sua própria finitude, e explica por que a destruição do
patrimônio construído é também a destruição de um suporte existencial do povo que com ele
se identifica, assim como pode representar também a libertação de uma imposição indesejada,
um ato de rompimento com a figura paterna.
Assim como as características naturais do ambiente estão presentes nos esquemas perceptuais
elaborados na infância, podemos afirmar também que a inserção da criança no mundo de
cultura se dá, além da via da vivência doméstica, e depois pela educação formal, pela experiência
do elemento construído como uma representação da coletividade que a precede — isso, quando
falamos de monumentos. Mais à frente veremos a importância da relação individual com esse
ambiente construído.

3 – Desenhar a si mesmo no espaço: nem dentro, nem fora


Primeiro, agimos. O primeiro verbo é o choro acompanhado do esperneio. Estes se repetem
insistentemente a partir do nascimento, intercalados com o dormir, que é a não-ação, a volta
para o estado negativo. Aos poucos vamos vendo e ouvindo, verbos sensoriais, que nos indicam
a presença de alguma coisa. Sentimos as presenças sempre que estamos acordados, e nos
acostumamos a isso: há alguma constância nas presenças, e há também alguns ciclos no que é
sentido. Logo logo gesticulamos, sorrimos, expressamos alguns sons além do berro — os verbos
ramificam-se. Será que já pensamos? Olhar, ouvir, sentir — berrar, espernear, sorrir — sugar,
excretar, digerir — perceber ao mundo e a nós mesmos, interpretar e expressar, agir sobre.
Tudo o que se faz em uma longa vida, por mais sofisticado que seja, se origina desses verbos —
neles estão as chaves que abrem as portas do dentro com o fora, por onde a vida entra e sai:
respiramos. Dizem que por isso berramos ao nascer: a primeira respiração abre o oco do interior,
o mundo invade nossos pulmões e não temos mais escolha se não ingeri-lo e pô-lo para fora a
cada segundo, sendo a respiração o verbo primordial a partir do qual se ramificam todos os
outros: o ciclo dentro-fora estará em tudo quanto for vivido a partir do nascimento, antes do
qual tudo o que se conhece é dentro — o interior uterino. É a partir dessa presença primária da
relação dentro-fora na experiência humana que nos parece digno pensar a relação entre a
arquitetura e o arquitetar — a criação e vivência dos espaços internos (ZEVI, 2017) — e os
processos iniciais da vida humana, estudados pelo psicanalista inglês D. W. Winnicott, que falam

1546
da experiência de passagem de um mundo completamente interno e subjetivo para a introdução
de um ambiente externo, através da elaboração do conceito de transicionalidade.
Para o leitor não familiarizado com a psicanálise winnicottiana, explicito aqui alguns pontos base
de sua teorização sobre a natureza humana, necessários para o prosseguimento do texto. Sua
teoria do amadurecimento pessoal baseia-se numa ideia do humano como este ser que, embora
saído do ventre da mãe, não se configura automaticamente como sujeito, indivíduo, mas
depende da figura materna para ser. A formação do ego é uma conquista do amadurecimento,
que se dá passo a passo nos primeiros meses de vida, e é construído completando as primeiras
tarefas, chamadas fundamentais (DIAS, 2003): a integração no tempo e no espaço, através das
repetidas experiências da amamentação; o ancoramento da psique no corpo; e a criação de uma
primeira área da experiência, sentido de uma realidade ainda apenas subjetiva. Até aí, e ainda
depois disso, não há diferenciação entre o eu e o ambiente, do ponto de vista do lactente de
modo que o mundo é experienciado, inicialmente, como uma criação própria: o incômodo
causado pela fome causa o choro, e é o próprio ato de chorar que faz surgir o peito. Deste modo,
é da natureza da experiência humana no mundo iniciar-se dentro de um universo puramente
subjetivo, e a partir daí desenvolver-se para o surgimento de novas áreas da experiência, como
chama Winnicott (1990). A passagem deste estado de não-separação com o ambiente, para um
que começa a apreender a existência de um mundo que precede o eu, e onde existe o outro, se
dá pelo fenômeno da transicionalidade.
Pode-se dizer que a grande linha central de Winnicott no desenvolvimento do conceito dos
fenômenos transicionais se dá pela impossibilidade, na experiência humana, de se passar de um
mundo subjetivamente concebido para um objetivamente percebido, como quem abre a porta
de casa e está em um país desconhecido. O bebê só é capaz de experienciar a realidade a partir
do ponto em que se encontra das fases iniciais do amadurecimento, e como em toda a obra de
Winnicott, é o ambiente (compreendido como o conjunto de cuidados que cerca o infante) que
permite esse gradual encontro do bebê com fragmentos do mundo. Por exemplo, a tolerância
que temos apenas com infantes, de não chamá-los loucos e repreendê-los se murmuram
sozinhos ou chupam o dedo ou gritam sem razão para ninguém, é senão uma permissão que
damos ao bebê para conhecer o mundo em seus próprios termos. Com o tempo, surge a
compreensão de que se é num mundo, mas não o somos ou o detemos em pertencimento:
Winnicott (1990, p. 127) dá o exemplo de uma criança que recebe um objeto de sua tia, por
exemplo, e responde com um "tá!", demonstrando seu reconhecimento de que aquele objeto o
foi dado por um outro, e não criado por ela própria. Esta passagem nos dá uma visão do

1547
surgimento da noção de uma realidade compartilhada com o outro. Talvez nos deparamos,
então, com o surgimento da noção de "em" — tanto espacial quanto temporal — , de inserção
em nível teórico, de saber que, para além de "ser", há um "estar sendo" que toma um onde e
quando — claro, falamos aqui de uma noção primária que ainda não envolve os
desdobramentos da percepção espaço-temporal, como a capacidade de navegação e
planejamento. A definição de um 'espaço potencial' ou 'terceira área da experiência', por fim, é
um desenrolar do destrinchamento dos processos transicionais na fase inicial, de quebra da
ilusão de onipotência e, no prolongamento da vida adulta, pela experiência cultural, artística e
religiosa. É pela permanência desse espaço transicional ao longo da vida que se faz possível ao
ser humano viver uma vida dotada de sentido. Isso porque a própria ideia de “sentido” é algo
que só pode ser de fato percebido como real se é conferido pessoalmente e subjetivamente —
capacidade própria do ser humano enquanto ser dotado de linguagem e cultura. Reafirmo: o
mundo de cultura, compartilhado por mim e pelo outro, só pode surgir dentro da
transicionalidade, já que aquilo que é subjetivo é totalmente meu, e aquilo que é objetivo é
totalmente externo a mim.
Nesta área [do espaço potencial], o que parece ser a criação mais pessoal do
indivíduo, aquilo que foi subjetivamente concebido (como, por ex., o objeto
transicional), pertence a e depende do ambiente, da realidade externa, do
outro. O ambiente e o outro tem, assim, uma participação constituinte do que
se supõe a vida mental privada (LEITÃO, 2016, p. 55)

4 – Transicionalidade e apropriação
Como é natural da pesquisa interdisciplinar, se faz necessário sempre reavaliar o caminho do
pensamento para que não se perca do alvo. Quando, partindo do campo da arquitetura e do
urbanismo, ou mais claramente, da pesquisa sobre a dimensão espacial humana, nos
direcionamos para um estudo de teóricos da psicologia, sempre há neles a preocupação com a
clínica. Tão sofisticadas e amplas quanto forem suas observações sobre a natureza humana, que
é ponto de interesse de todos os campos disciplinares que se encaixam dentro da denominação
de “ciências humanas”, há que se ter o cuidado de não tocar os pontos próprios das disciplinas
auxiliares de uma pesquisa. Dito isso, vale reafirmar que nosso alvo aqui é elevar a compreensão
do papel do ambiente construído na vida humana, por intermédio da ideia de transicionalidade
introduzida por Winnicott. Portanto, se faz necessário esse movimento de aproximação e
delimitação: não nos importa aqui destrinchar os objetos transicionais, mas apenas, sabendo
que eles existem e cumprem um objetivo fundamental na relação do ser humano com seu
ambiente, transbordar o conceito de seu vaso original — há de se entender que é assim mesmo

1548
que surgem ideias novas. E assim como se abduz o conceito de "cavalo de fogo" para saber do
trem, nos permitamos abduzir aqui o conceito de "espaço potencial" ou “transicionalidade” para
sabermos do que chamamos espaço construído, ou arquitetura, para fins de levantar a discussão
sobre espaço e subjetividade, e a construção desta no período que reconhecemos como
infância.
Dentro da psicologia winnicottiana, é fundamental para o paulatino desenvolvimento humano
desde o nascimento a construção da familiaridade, que vai sendo criada por uma consistente
repetição dos fenômenos. Não é preciso muita explicação para se fazer entender que aquilo que
não nos é familiar, em qualquer ponto da vida, tende a nos levar para um lugar de medo, a uma
posição de fechamento, retração, de receio da aproximação. A familiarização com o mundo e
seus objetos está presente em um nível tão basilar do desenvolvimento humano que nem ao
menos falamos ainda de mundo ou objetos, mas das próprias sensações internas, corpóreas,
que um recém-nascido sente, e são matéria da elaboração imaginativa responsável pelas tarefas
fundamentais mencionadas anteriormente. É essa capacidade de elaboração imaginativa que
nos possibilita juntar as peças iniciais para a formação do eu e, aliado a um ambiente facilitador,
continua o processo de integração. Se nos é possível esse domínio mágico do objeto no início da
vida, aprendemos que é possível ir em direção ao mundo em busca daquilo que irá satisfazer
uma demanda interna, dado que há a possibilidade de familiarização, de relação amistosa e
pessoal com os fenômenos externos. No sentido contrário, se o mundo for inicialmente
percebido como um intruso, que interrompe nossos processos internos, o que aprendemos é
que este deve ser evitado — cria-se uma identidade apartada do ambiente, e que sente que dele
deve se proteger. Pensemos como isso repercute na nossa relação com a urbanidade: na maioria
das metrópoles brasileiras há uma forte atmosfera de medo em relação ao espaço público. Este
medo é aprendido desde o início da vida, sendo a rua sempre vista como a terra de ninguém,
onde o indivíduo encontra-se vulnerável. “Em outras palavras, os brasileiros não se reconhecem
nesse espaço, não se veem nele, não se sentem parte dele, como sugere o modo como se
comportam na rua, na praça[...]” (LEITÃO, 2009). Esse não se reconhecer no espaço de que fala
Leitão demonstra exatamente a situação da externalidade pura, onde não há lugar para o sujeito
— é um ambiente que não se permite ser transicional, lugar compartilhado, nosso. Como criar
familiaridade com um lugar onde não se está, mas apenas se passa o mais rápido possível? É
difícil aprender como um lugar pode ser usado, significado, se nunca tivemos a oportunidade de
nele permanecermos em paz, livres do constante medo da intrusão de um real que nos é
impessoal, e por nós não demonstra nenhum concernimento.

1549
Dessa forma, além de termos a compreensão de que a identidade de um lugar se torna a
identidade de seus habitantes em escala social, também devemos perceber que a identidade do
sujeito e as ferramentas de que dispõe para criar seu lugar no mundo também são construídas
na sua interação com o ambiente, ou seja, com o outro que se encontra no espaço
compartilhado — e somente se há este espaço possível de ser compartilhado.
Porquanto a ideia de significância fala de uma apropriação coletiva, de uma “dação” de
significado que transcende o indivíduo e até mesmo a geração, a apropriação é individual, e está
ligada com a significação pessoal. O monumento, portanto, é dotado de um significado cultural,
de um discurso sobre o coletivo que se impõe ao indivíduo (LEITÃO, 2021) — à criança, no
entanto, pode ser dada, mais do que ao adulto, a oportunidade de elaborar seu próprio
significado para este mesmo objeto, seja alheio ou em conversação com o discurso estabelecido.
Daqui, me vem à mente um exemplo de minha própria infância, idiossincrático, mas
provavelmente familiar ao leitor. Quando no Forte Orange, na ilha de Itamaracá, me fascinava
a imponência das muralhas de pedra e o peso dos canhões, símbolos de um passado colonial
que lia nos livros de história, mas que simultaneamente, e me lembro bem do sentimento, me
transmitiam um sentido de aventura, de querer explorar, descobrir fragmentos de peças antigas
em meio às pedras, imaginar batalhas e caravelas no horizonte. A História escrita se misturava
às figuras de minha imaginação e eu criava histórias ali dentro, que pouco importavam se eram
fiéis à realidade, mas que me afeiçoavam ao lugar. Por um momento, ficavam suspensas as
diferenciações entre o real e o imaginário, e pela via lúdica, eu e as outras crianças nos víamos
habitantes de um tempo que em muito nos precedia enquanto corríamos pelas ruínas.
Eu diria, então, que é a partir da familiaridade e da transicionalidade que surge a apropriação.
Chegamos, assim, a um termo comum na discussão da arquitetura, e que é pivô para as soluções
dos problemas do patrimônio. A apropriação, como sugere sua etimologia — ad proprius, de si
mesmo —, trata do senso de pertencimento, que pode ser de um objeto em relação a um
sujeito, como eu digo que minhas roupas me pertencem, mas que, se tratando do lugar, sugere
uma via de mão dupla: minha cidade é minha, pois, de certa maneira, há em mim tanto o senso
de que ela me pertence, como de que eu pertenço a ela — em menor escala, minha casa é
minha, pois, por direito, ela me pertence, mas mais precisamente a chamo minha casa porque
nela habito. E para que seja possível habitar um lugar, e nele sentir-se seguro, é necessária a
sensação de pertencimento: há de existir uma familiaridade, um conhecimento íntimo,
construído pelo tempo, e deve haver o conferimento de significado pessoal — ora, e este não é,
em todas as instâncias, nascido da transicionalidade?

1550
5 – O espaço-entre de Aldo van Eyck
Uma arquitetura que busca ser humana, deve consequentemente devotar
uma atenção especial ao entre; especificamente às formas arquitetônicas e
lugares transicionais através dos quais as pessoas se encontram, e que as
convidam a permanecer. (FARHADY & NAM, 2009, p. 19, tradução do autor)

Do mosaico que até agora viemos montando, trago como peça final neste texto o exemplo do
arquiteto holandês expoente do estruturalismo, Aldo van Eyck (1918—1999). Há, em seu
pensamento e em sua obra construída, um aparente entendimento das questões que
procuramos levantar. Apesar de não haver registro de que van Eyck fosse, em algum momento,
leitor de Winnicott, há em seu discurso uma ideia que muito se aproxima da noção de espaço
transicional, emprestada do pensamento de Martin Buber (1878-1965): o chamado realm of in
between, que se traduz aproximadamente como “domínio do entre”. A partir de uma visão de
que o ser humano, fundamentalmente, é o que é porque é um ser relacional, que reconhece,
quer e necessita se comunicar com o outro, este domínio seria uma esfera que é comum aos
dois e que transcende o espaço individual de cada (FARHADY & NAM, 2009), e que existe não
como uma zona neutra, mas como algo que acontece apenas em uma dimensão acessível a estes
(van Eyck, 1962/2008, p. 54 apud WITTHAGEN & CALJOUW, 2017). Buber e Winnicott, de fato,
não são autores de pensamentos muito distantes, e não é de se espantar a proximidade do
conceito de in between e de espaço transicional, como visto na citação acima, já que ambos
buscam traduzir a experiência humana a partir de uma visão fundamentalmente relacional. O
desenvolvimento dado por van Eyck, no entanto, os coloca um passo mais próximo um do outro:
em sua obra construída encontramos estes conceitos materializados em espaços voltados para
a infância.
A busca de van Eyck surge de uma inquietude em relação à postura moderna vigente na época,
que toma a reconstrução das cidades europeias com grande força a partir da Carta de Atenas.
Para ele, os conceitos a serem trabalhados deveriam ser próximos da vida cotidiana das pessoas:
espaço e tempo não representariam dimensões inclusivas ao homem tanto quanto “lugar” e
“ocasião” (WITTHAGEN & CALJOUW, 2017). Em discordância com a visão promovida nos CIAMs,
van Eyck opta por um tipo de intervenção no existente, costurando a malha urbana através da
implantação de espaços lúdicos em seus lotes vazios, não-cercados, verdadeiros espaços de
encontro que inserem a criança no urbano. Este não-isolamento dos espaços infantis promove
seu uso simultâneo pelas outras faixas etárias, também para estarem alí cuidando dos filhos.
São os olhos da rua de que fala Jacobs — cria-se um espaço de comunidade e vida urbana, a rua

1551
aqui não é residual, mas lugar de encontro, lazer e crescimento. Nestes espaços haviam
equipamentos como iglus de escalada, caixas de areia, pedras de salto, barras e balanços de
tamanhos variados. O que todos estes equipamentos têm em comum é o fato de não serem
unidimensionais, ou seja, podem ser utilizados de mais de uma forma.

Figura 01: Playground em Van Boetzelaerstraat, Amsterdam.

Fonte: Amsterdam City Archive.

A borda da caixa de areia é usada pelas crianças para subir, pular, correr, e
também fornece uma superfície de trabalho enquanto brincam com a areia.
Além disso, muitos pais usam-na para sentar enquanto cuidam das crianças.
Outro exemplo é a cúpula “escalável”. [...] Crianças sobem nesta cúpula, mas
também sentam em cima dela, pulam dela e usam-na como uma casinha para
habitar e reunir-se. Van Lingen e Kollarova (2016) mencionaram que algumas
mulheres também usavam essas cúpulas para bater seus tapetes.
(WITHAGEN e CALJOUW, 2017, p. 6, tradução do autor)

“Seu papel [da arquitetura] é proporcionar este domínio do entre por meio da construção”. (van
Eyck, 1962/2008, p. 54 apud WITTHAGEN & CALJOUW, 2017, p. 2, tradução do autor). O que
vemos em sua obra é, de fato, um esforço bem sucedido nessa direção. Os parques de
Amsterdam nos mostram que o espaço lúdico pode cumprir o papel de aproximar o sujeito de
sua urbanidade, e como não enxergar que isso se dá dentro de uma dimensão transicional? De
apropriação do espaço através de uma forma de se relacionar que privilegia o encontro, a
criatividade e, principalmente, o mundo compartilhado.

1552
6 – Construir para o brincar
Ao fim das reflexões aqui trazidas, nos fica claro que a busca por uma arquitetura mais
conectada àquilo que é propriamente humano tem muito a aproveitar de um mergulho nas
ideias que se desenvolvem acerca do espaço transicional, e do entendimento do ambiente
humano como essencialmente compartilhado, que é o onde da constituição do sujeito e sua
identidade através do encontro com o outro. Este estudo nos mostra que a natureza da
apropriação do espaço passa necessariamente por uma esfera lúdica, pois o modo como a
criança, o ser humano em período de construção de suas fundações psiquicas, se relaciona com
o mundo em sua construção pessoal se dá senão pelo brincar e pela atividade imaginativa.
Construir para o brincar parece, então, uma afirmativa poderosa que nos leva a uma nova
perspectiva de como e por que construímos, e indica um caminho de potencialidades do pensar
o ambiente construído.

Referências
NORBERG-SCHULZ, C. O fenômeno do lugar. In: [NESBITT]. Uma nova agenda para a arquitetura:
Antologia teórica 1965-1995. São Paulo: Cosac Naify, 2006. pp. 444-461.

NORBERG-SCHULZ, C. O pensamento de Heidegger sobre arquitetura. In: [NESBITT]. Uma nova agenda
para a arquitetura: Antologia teórica 1965-1995. São Paulo: Cosac Naify, 2006. pp. 462-481.

LEITÃO, Lúcia. “Arquitetura, uma expressão fantasística do desejo”. Oculum Ensaios. Campinas: POSURB
PUC-Campinas, Vol. 18, 2021. Disponível em
<http://periodicos.puc-campinas.edu.br/seer/index.php/oculum/article/view/4803/3187>. Acesso em
01/03/2021.

___________. “A cidade diz tudo o que você deve pensar: Notas para uma discussão teórica sobre a
noção de significância”. Vitruvius. 249.01, 2021. Disponível em
<https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/21.249/8005>. Acesso em 05/03/2021.

___________. Quando o ambiente é hostil: Uma leitura urbanística da violência à luz de Sobrados e
Mucambos. Recife: EDUFPE, 2009.

DIAS, Elza O. A teoria do amadurecimento pessoal de D. W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago, 2003.

WINNICOTT, D. W. Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

LEITÃO, Heliane. “O self no espaço compartilhado: a subjetividade relacional em Winnicott”. ECOS.


Cidade: Editora, Vol. 7, N. 1, 2016. pp. 48-58.

1553
FARHADY, Maryam; NAM, Jeehyun. “Comparison of In-between Concepts by Aldo Van Eyck and Kisho
Kurokawa – Through Theories of ‘Twin Phenomena’ and ‘Symbiosis’”. Journal of Asian Architecture and
Building Engineering. Vol. 8, N. 1, 2009. pp. 17-23.

WITHAGEN, Rob; CALJOUW, Simone. “Aldo van Eyck’s Playgrounds: Aesthetics, Affordances and
Creativity”. Frontiers in Psychology. 8:1130. doi: 10.3389/fpsyg.2017.01130. Disponível em
<https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fpsyg.2017.01130/full>. Acesso em 24/02/2021.

1554
O SILÊNCIO DA PAISAGEM URBANA TRANSMUTADA DE BAURU/SP
NóCego - Outros silêncios.

Maria Fernanda Serrano Sartori


Graduação em Arquitetura e Urbanismo e mestranda em Arquitetura e Urbanismo;
Universidade Estadual Paulista – UNESP; fernandassartori@gmail.com.

Fernanda Moço Foloni


Graduação e mestrado em Arquitetura e Urbanismo; Universidade Estadual Paulista – UNESP;
fe_foloni@hotmail.com.

Norma Regina Truppel Constantino


Graduação em Arquitetura e Urbanismo, mestrado em Planejamento Urbano e Regional
Assentamentos Humanos e doutorado em Arquitetura e Urbanismo; Universidade Estadual
Paulista – UNESP; norma.rt.constantino@unesp.br.

A paisagem relaciona-se com a natureza, as pessoas e o meio que habitam. Sua transformação
nem sempre é evidente, sendo fundamental olhar para a memória do lugar para perceber como
a intervenção humana e processos naturais vêm silenciosamente acompanhando as mudanças.
Assim, objetiva-se por ilustrar tal situação a partir de Bauru/SP como estudo de caso, analisando,
através de levantamentos bibliográficos, fotográficos e documentais, os processos de ocupação,
obras de infraestrutura e o comportamento da população, destacando a região central,
patrimônio inicial, cada vez menos vivenciada. Busca-se apontar, em um âmbito ambiental e de
salvaguarda patrimonial, a importância de proteger, conservar e valorizar a paisagem, não como
uma imagem imutável e silenciosa, mas como uma interação constante entre seus elementos.
Palavras-chave: Paisagem; memória; espaço público; infraestrutura urbana; Bauru/SP.

The landscape is related to nature, people and the environment they inhabit. Its transformation
is not always evident, and it is essential to look at the memory of the place to comprehend how
human intervention and natural processes have been silently following the changes. Thus, this
article aims to illustrate this situation from Bauru/SP as a case study, analyzing, through
bibliographic, photographic and documentary surveys, the occupation processes, infrastructure
projects and the behavior of the population, highlighting the central region, historic patrimony,
less and less experienced by their inhabitants. The aim is to point out, in a heritage safeguarding
and environmental scope, the importance of protecting, conserving and enhancing the
landscape, not as an unchanging and silent Picture, but as a constant interaction between its
elements.
Keywords: Landscape; memory; public space; urban infrastructure; Bauru/SP.

1555
1 – Introdução
As complexas e inegáveis transformações que um espaço urbano sofre englobam a história do
lugar, as práticas, as tradições e as relações entre natureza e espaço construído. No entanto,
esses elementos aparentemente fragmentados de uma cidade, na verdade, podem ser
estudados de forma interdependente, aproximando os seus aspectos históricos, sociais e
formais. O conceito da paisagem introduz “as camadas” da cidade e as transformações urbanas
não como “objetos isolados”, mas sim como parte de um contexto mais abrangente. Nesse
sentido, Leite (1982) aponta que a paisagem nunca pode ser definida por um único elemento, e
seus componentes não são constantes: estão sempre em processo de transformação, assim
como as experiências humanas no espaço também se encontram em permanente evolução.
Nessa mesma linha de raciocínio, a autora afirma que “a paisagem é construída pelo homem e
compreende a reunião de objetos pertencentes a várias escalas de apreensão, objetos que tanto
revelam os significados inerentes à vida cotidiana dos lugares” (LEITE, 1998, p.3).
Complementando esse conceito, Besse (2018) indica que a paisagem é o que constitui as
relações, é o espaço das metamorfoses e o meio vivo das composições instáveis das quais somos
parte, traindo a passagem do tempo ao carregar marcas, traços, impressões de eventos,
construções e decisões passadas, das quais transmitem o legado.
Sob a ótica das alterações urbanas e, consequentemente, da paisagem, a memória aparece
como elemento importante na construção do sentido urbano, pois é por meio delas que se
exprimem as entidades da cidade, em ligação com a sua inscrição nos territórios e a afirmação
da cidadania, decorrente da união dialética entre o passado, o presente e o futuro,
estabelecendo formas de vida sem uma ruptura brusca e conferindo significado aos espaços
onde se vive (JODELET, 2002). Da mesma forma, para Le Goff (1990, p.476), “a memória não é
somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder, na medida em que,
pela dominação da recordação e da tradição, o grupo se afirma e se reconhece”. Sendo assim,
percebe-se a necessidade de se buscar a memória ao olhar para espaços transformados,
destruídos, desgastados e renovados pelo tempo (PESAVENTO, 2007).
Ainda neste contexto, Aldo Rossi (1995) enfatiza que a própria cidade é a memória coletiva dos
povos, sendo que a relação entre a mesma e seus cidadãos torna-se, pois, a imagem
predominante, a arquitetura, a paisagem. A imagem, por sua vez, é o resultado de um processo
bilateral entre o observador e o meio (LYNCH, 1997). Desse modo, a apreensão dessa imagem
está diretamente ligada ao uso dos espaços, na experiência direta, a qual acontece quando um
local é compreendido por seus usuários. Leite (1998) confirma essa ideia ao escrever que a
transformação da visibilidade que nos cerca em um sistema de referências culturais permite a

1556
conservação e reconstrução de um lugar ou a manutenção da sua memória de origem, sendo
que a partir do uso do território é possível transmitir às futuras gerações sentido e profundidade
à ocupação, decorrente da interpretação de significados nele presentes. No entanto, na
mutabilidade das cidades contemporâneas, os espaços, públicos em sua grande maioria, antes
importantes e utilizados por seus habitantes, passam a ser menos vivenciados.
Como consequência dessa realidade, constata-se uma perda de sentido do espaço urbano em
decorrência do desenvolvimento moderno das cidades, desatrelado dos efeitos da memória
(JODELET, 2002). Nessa perspectiva, esquece-se ou ignora-se que a cidade carrega sempre
vestígios do passado, cuja importância vai justamente residir nos significados que eles
transmitem e que vem garantir a estabilidade do tempo (JODELET, 2002, p.39).
Revela-se, então, a importância da memória no contexto da cidade, assim como seu papel como
elemento atribuidor de valor às mais diversas alterações que uma paisagem sofre, conferindo
significado e colaborando com uma boa apropriação dos espaços transmutados. Partindo dessa
fundamentação, o trabalho busca trazer essas reflexões para o contexto de Bauru, cidade de
médio porte da região centro-oeste do estado de São Paulo, fazendo, com base em documentos,
fotografias e bibliografias relacionadas, uma breve análise sobre a transformações -
despercebidas - de suas paisagens naturais e construídas ao longo do século XX. Aborda-se, do
ponto de vista da memória, a importância de proteger o patrimônio em perspectivas além do
tombamento de edificações, com a valorização da paisagem em toda sua complexidade, mas
não como imagem imutável e silenciosa, mas como uma interação constante entre história,
práticas, tradições, natureza e construído.

2 – Transformação dos espaços públicos da região central de Bauru


Um aspecto da transmutação gradual e silenciosa da paisagem bauruense diz respeito à região
central, núcleo inicial do município. A gênese de Bauru está ligada ao café e ao transporte sobre
trilhos, pois representou um importante entroncamento das ferrovias Noroeste do Brasil,
Sorocabana e Paulista no período de 1905 a 1911 (GHIRARDELLO, 1992). Segundo Boni e
Salcedo (2017), o encontro das três ferrovias colocava a cidade em contato direto com outras
diversas regiões, transformando Bauru em um polo regional, instalando e favorecendo as bases
para o comércio e a prestação de serviços, que se estabeleceram em importantes vias da região
central. No entanto, como uma das primeiras transformações na paisagem dessa região
envolvendo seus espaços públicos, pode-se apontar a alteração de importância ou hierarquia de
suas ruas.

1557
A respeito das alterações, no decorrer das décadas, em relação às vias centrais, Ghirardello
(2020) destaca a mudança de usos das edificações, passando de local de negócios, em meados
do século XX, a ocupação de hotéis e pousadas, reflexo da decadência resultante da mudança
de localização dos trilhos e da estação Sorocabana. Aos poucos, ruas próximas àquelas que antes
eram o centro comercial se desenvolveram de forma a abrigar residências da elite dos anos 1930
aos anos 1940 e consolidar-se como forte centro de compras nos anos 1950 (PELEGRINA;
ZANLOCHI, 1991).
É possível constatar que o atual centro da cidade de Bauru era, até então, uma região essencial
dentro das dinâmicas de locomoção e uso do espaço urbano, por ser o local onde se
concentravam as moradias, o comércio e a prestação de serviços. Também pode-se destacar a
vida cultural do centro em geral, palco de festas em suas vias ou no salão do Automóvel Clube,
além de ter abrigado pelo menos cinco cinemas, dos oito que o município teve até os dias atuais.
Atualmente, só podem ser encontrados em espaços fechados de consumo espalhados pela
cidade, não havendo nenhum cinema de rua, assim como outros espaços voltados ao lazer são
praticamente inexistentes na área.
Algumas dinâmicas na evolução da cidade também tiveram impacto direto nas transformações
do centro e influenciaram na vivência da região. Dentre esses aspectos, pode-se citar
primeiramente que, desde 1930, já havia se iniciado um processo de dispersão urbana, uma vez
que as redes de infraestrutura e outros serviços trouxeram valorização para o centro da cidade,
o que levou a população menos favorecida a buscar regiões onde o preço da terra era menor e
com menos infraestrutura (GHIRARDELLO, 1992).
Além disso, Ghirardello (2020) aponta que a popularização do automóvel nos anos 1960
contribuiu para uma migração da população para regiões mais residenciais, iniciando a um
esvaziamento habitacional das camadas de alta renda do centro da cidade em direção à zona
sul nos anos 1980. Também pode-se destacar a inauguração do Bauru Shopping nesse mesmo
período, que ameaçou o comércio da região central (GHIRARDELLO, 2020).
Falcão e Rafacho (2006) comentam que após solicitação dos comerciantes do centro, o poder
público foi chamado a intervir diante do deslocamento urbano para a região sul, culminando em
obras de revitalização para a Rua Batista de Carvalho e para a Praça Rui Barbosa - primeira praça
da cidade, inaugurada em 1914, conforme Ghirardello (1992). Foi nesse contexto que os
quarteirões de 1 a 7 transformaram-se no Calçadão da Batista de Carvalho em 1992, sendo o
primeiro Calçadão para pedestres do interior do Estado de São Paulo (BONI; SALCEDO, 2017),
enquanto na praça Rui Barbosa, foi realizada uma reforma, na qual recebeu extensas áreas de
pavimentação.

1558
Para Ghirardello (2020), faltaram diretrizes que abordassem o centro e seus problemas como
conjunto, assim como a memória afetiva de toda uma comunidade e seu passado foram
desconsiderados, substituídos sem qualquer justificativa mais razoável, por algo de desenho
contemporâneo. Assim, tais obras, que supostamente tinham o intuito de atrair as pessoas de
volta para a região central, serviram de aval e incentivo para a destruição de diversas
construções privadas centrais de interesse histórico. Nem sempre essas obras são apropriadas
pelos seus destinatários por não envolverem valores práticos e simbólicos, porque os
significados não são percebidos como relevantes ou ainda por outras razões (BRANDÃO, 2008).
Então, a conservação e a restauração concreta, efetiva, exige a conjunção de uma forte
motivação de ordem afetiva (CHOAY, 2001).
Outro motivo para alterações em espaços do centro da cidade e seu uso foi a concessão privada
da ferrovia, que se voltou apenas ao transporte de cargas em 1996, trazendo abandono para
suas edificações principais além de diminuir a relevância em relação à proximidade das
atividades da cidade com o centro, consequentemente. As estruturas da ferrovia tornaram-se
terrenos vagos e seus prédios ficaram sem uso planejado, aproximando-se ao conceito de
terrain vagues de Solà Morales (2002): lugares obsoletos onde apenas certos valores residuais
parecem se manter, apesar do completo desafeto por parte das atividades urbanas (SOLÀ
MORALES, 2002). Atualmente, o uso da região central, com atividades baseadas no comércio,
colabora para ruas desertas fora do horário comercial, criando e acentuando a sensação de
insegurança. Também pode-se constatar que as vias públicas do centro apresentam construções
arcaicas (e não históricas), demonstrando o baixo grau de renovação urbana na região
(GHIRARDELLO, 2020).
Mais um importante fenômeno que contribuiu para a situação atual do centro foi o surgimento
de condomínios horizontais fechados especialmente na região sul no final do século XX. Foi
criada, então, uma paisagem composta de muros nessa área, completamente desconectada do
espaço público. Pelo fato de geralmente se concentram fora do perímetro urbano pré-existente,
representam uma expansão também de novas áreas comerciais e de serviços próximas aos
espaços de moradia de padrão médio e alto, para atender às suas necessidades (LANDIM, 2004),
o que torna ainda menos atrativa a região central, área que representou a gênese da cidade.
Pode-se observar que a identidade do centro de Bauru, intimamente ligada à memória coletiva,
está cada vez mais desaparecendo, pois está ligada ao conceito de interatividade, pouco
frequente nos espaços da região central, além de depender da continuidade do uso, do
‘afeiçoamento’ dos usuários a um lugar e reciprocamente, a boa adaptação do espaço ao uso
(BRANDÃO, 2008).

1559
Nesse sentido, necessita-se de algumas medidas para que a história da cidade possa continuar
a ser contada por suas construções arquitetônicas. Bauru abriga edificações ecléticas, art déco,
modernas e contemporâneas e, apesar de muitas destas se encontrarem em regular estado de
conservação, algumas foram descaracterizadas (SALCEDO, 2011). Diante disso, o tombamento
no município se dá por ações do poder público municipal em conjunto com a sociedade civil, por
meio do Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural – CODEPAC (LOSNAK; LOPES, 2014, p.645).
Assim, muitos dos prédios responsáveis por contar a história da cidade foram tombados para a
sua preservação e classificados como patrimônio municipal, incluindo a Estação Ferroviária.
Salcedo (2011) aponta que pela relevância histórica, arquitetônica e cultural, representativos da
arquitetura moderna, o CODEPAC também tombou edificações como o Paço Municipal, Igreja
de Nossa Senhora de Fátima, Edifício Brasil Portugal, Instituto Nacional de Serviço Social (INSS)
e Bauru Tênis Clube, grande parte localizados no centro da cidade.
As edificações tombadas pelo CODEPAC estão localizadas de forma dispersa
na cidade. No Plano Diretor de Bauru constam como Áreas de Interesse
Histórico, Cultural e Esportivo destinadas à preservação, recuperação e
manutenção do patrimônio. Por outro lado, a maioria desses bens tombados
está localizada na Zona Central, pelo Plano Diretor esta zona pode ser
requalificada, obter incentivos para recuperação e valorização dos prédios,
utilização da operação urbana consorciada, Outorga Onerosa e a
transferência do Direito de construir, entre outros. (SALCEDO, 2011, p.9)

No entanto, mesmo após o tombamento, pode-se encontrar algumas construções antigas da


região central em situação de descaso e depredação. Logo, garantir a preservação das
características originais não é tarefa fácil. Salcedo (2011) apresenta algumas propostas de
diretrizes para a preservação do patrimônio arquitetônico na cidade de Bauru. Entre as medidas
complementares, indica regulamentação específica para cada um dos bens tombados, de forma
que as restaurações e reabilitações conservem e revelem os valores estéticos e históricos do
monumento.
A leitura dos processos relacionados a transformações no centro da cidade e em novas áreas de
expansão, a partir de um olhar paisagístico, revela-se fundamental para compreender as
relações entre as novas morfologias, próprias da cidade contemporânea, e da prevalência dos
espaços privados em detrimento dos públicos. Uma combinação entre medidas para
salvaguarda de edifícios significativos e a proteção, conservação e valorização da paisagem,
aparece como uma maneira de preservar a história do município.

1560
3 – Obras de infraestrutura urbana do século XX e o resgate da paisagem
Neste contexto de valorização da paisagem, é impossível fazer um planejamento urbano
adequado sem considerar os aspectos físicos do lugar. Em Bauru, os fundos de vale, os córregos,
o solo arenoso e a vegetação de transição entre cerrado e mata atlântica já foram temas de
várias pesquisas, mas nem sempre esses fatores foram abordados como um complexo sistêmico
que estudos sobre arquitetura da paisagem e planejamento integrado apontam atualmente.
Como consequência disso, a cidade vem apresentando, há muitas décadas, sérias dificuldades
como enchente, erosão, assoreamento, congestionamento, entre outros, problemas estes que
podem ser observados em várias cidades brasileiras que passaram pelo mesmo processo de
crescimento e urbanização de meados do século XX. Partindo de uma leitura do centro de Bauru
do ponto de vista de seus cursos d’água, são dois os principais que podemos citar nesse
contexto: o Rio Bauru, corpo de água de maior volume que percorre canalizado a céu aberto a
área urbana, e o Córrego das Flores, um de seus afluentes com grande importância para
formação e desenvolvimento da cidade, canalizado sob a Avenida Nações Unidas.
O Rio Bauru possui doze principais tributários, todos originados dentro do perímetro urbano.
Percorre o território no sentido leste-oeste até unir-se, na região de Pederneiras, ao Ribeirão
Grande (originado no município de Agudos), para então desaguar no Rio Tietê. A canalização de
seu primeiro trecho ocorreu em 1974, fazendo parte de uma grande movimentação de obras
infraestruturais do período, envolvendo ainda alargamento e construção de vias, viadutos,
loteamentos e incentivo à industrialização, apoiados sobre o projeto do sistema viário do Plano
Diretor do Centro de Pesquisas e Estudos Urbanísticos (CPEU) de 1967.
Os loteamentos que surgiram na margem oposta ao Rio Bauru fomentaram as discussões sobre
a transposição dos cursos d’água. O título de uma reportagem no jornal Diário de Bauru, em
1947 de Oswaldo Gasper, “é preciso canalizar o ribeirão Bauru e o das Flores”, nada mais é que
um reflexo da realidade dos principais centros urbanos da época, a necessidade de retificar e
esconder os córregos (CONSTANTINO, 2005, p.55). Para as pessoas, a canalização do Córrego
das Flores não só facilitaria o acesso ao Cemitério da Saudade, localizado na margem oeste como
pode ser observado na Figura 01, como uma nova e larga avenida possibilitaria o acesso a lugares
ainda pouco explorados pelo mercado imobiliário, atendendo assim “ às camadas mais
abastadas” (LOSNAK, 2004, p.159).
A necessidade de transposição do rio Bauru irá atender à acessibilidade, um
direito dos moradores do outro lado do rio. Ao mesmo tempo, perdeu-se a
oportunidade de inseri-lo na paisagem da cidade, atribuindo-lhe um valor
estético ao valorizar a forma e a individualidade do lugar. A visibilidade
proporcionada ao caminhar pela ponte ou viaduto, tornaria mais legível a
paisagem de fundo de vale, possibilitando a compreensão dos ritmos naturais

1561
das águas, que deveria reforçar os valores ambientais – o que não aconteceu.
(CONSTANTINO, 2005, p.56-57)

O Córrego das Flores delimitava, junto com o Rio Bauru, o perímetro do patrimônio inicial,
(fundado oficialmente em 1896) sendo utilizado para captação e abastecimento de água até a
década de 1920, quando o aumento populacional resultante da transferência da sede da
Companhia Noroeste (1919) e ausência de tratamento de água, levaram a procurar por outro
manancial mais distante do centro para retirada de água (GULINELLI, 2016).
A canalização sob uma das principais avenidas de acesso norte-sul, a Nações Unidas, veio
algumas décadas depois, agravando os alagamentos no centro da cidade em períodos de chuva
intensa. O processo se deu ao longo da segunda metade do século XX, envolvendo várias
administrações.
Desse modo, é possível entender como esse tipo de completa transformação da paisagem era
assimilada e consentida pela população. Como Foloni (2018, p.153) aponta a partir da análise
de um trecho da “Crônica do Leitor” do Bauru Ilustrado de 1997 e do contexto histórico do
período, “esse posicionamento retrata uma conformidade das pessoas com a desfiguração da
paisagem urbana; há trinta ou quarenta anos, quanto mais transformado o lugar, mais a cidade
era associada com o desenvolvimento”.
Além da crônica citada, Foloni (2018) apresenta ainda poemas feitos pelos moradores da cidade,
e fotografias de um período no qual a paisagem encontrava-se em um estado intermediário
dessa transição entre o espaço natural e urbanizado. Além desses documentos, existem relatos
sobre algumas lagoas (Gerson França, do Quaggio e do Ministro), de origem diversa mas todas
usadas para lazer, que desapareceram do espaço e se perderam na memória. A Figura 01
apresenta o mapa do patrimônio inicial de Bauru de 1919, indicando o Rio Bauru, Córrego das
Flores e o Cemitério da Saudade, além da localização e fotografias das três lagoas citadas.

Figura 01: Localização da Lagoa do Gerson França, Lagoa do Quaggio e Lagoa do Ministro, no mapa do
patrimônio inicial de Bauru (1919), delimitado pelo Rio Bauru e Córrego das Flores.

Fonte: Elaborado pelas autoras. Mapa base de GHIRARDELLO, 1992 e imagens do NUPHIS/USC.

1562
A Lagoa do Gerson França localizava-se alguns quilômetros acima da foz do Córrego da Grama.
Em 1917, o local foi drenado com a justificativa de ser foco de pernilongos e malária. A Lagoa do
Quaggio ficava numa região mais central, na foz do Córrego da Grama, sendo a favorita pelos
jovens para natação e brincadeiras. Os relatos apontam que secou naturalmente. A Lagoa do
Ministro era a mais popular, formada na congruência do Rio Bauru, Córrego das Flores e Ribeirão
das Flores. O dono criava jacarés, capivaras e lontras, além de alugar barcos para o público que
visitava o local para fazer piqueniques ou participar das competições de regata. Em 1930, a
sequência de chuvas acabou por soterrar o local (FOLONI, 2018).
Assim, todos os traços remanescentes das lagoas desapareceram, dando lugar a novas vias de
trânsito. Apenas as fotografias e relatos da época preservam a imagem do imaginário do que foi
um popular espaço de convívio. As transformações urbanas, do ponto de vista do geógrafo
Milton Santos, são muitas vezes responsáveis por uma artificialização da paisagem,
prejudicando gradualmente o bem-estar da população.
As mudanças são quantitativas, mas também qualitativas. Se até mesmo nos
inícios dos tempos modernos as cidades ainda contavam com jardins, isso vai
tornando-se mais raro: o meio urbano é cada vez mais um meio artificial,
fabricado com restos da natureza primitiva crescentemente encobertos pelas
obras dos homens [...]. Os transportes se modernizam, encurtando as
distâncias entre as cidades e dentro delas. E o urbanismo subterrâneo se
transforma em um suporte indispensável às formas de vida e às atividades
econômicas contemporâneas. Tudo isso se dá em um quadro de vida onde as
condições ambientais são ultrajadas, com agravos à saúde física e mental das
populações. Deixamos de entreter a natureza amiga e criamos a natureza
hostil. (SANTOS, 1988, p.16)

Sejam às ferrovias, aos cursos d’água, ou às edificações mais antigas do centro, a qualidade de
identidade urbana lhes foram atribuídas. Ainda que gradualmente desaparecendo do dia a dia
das pessoas, fisicamente ou por uma questão de “visibilidade”, seguem carregando um
significado por lembranças e experiências. Sua qualidade de formar espaços, intervir no
desenvolvimento da cidade, conectar lugares, estimular as pessoas e transformar a natureza,
possibilita a leitura dessa paisagem como um território produzido pelas sociedades, uma
representação cultural, um complexo sistêmico articulando os elementos naturais e sociais
numa totalidade objetiva (BESSE, 2014).
A questão da apreciação estética pode ser historicamente ligada à preservação, como Carlson
(2009) comenta que em pleno século XIX, nos Estados Unidos, começaram a ser criados Parques
Nacionais (sendo o Yellowstone o mais antigo), suportados pela ideia de necessidade de
proteção de paisagens consideradas “belas” pelo padrão de estética do momento, condenando

1563
a destruição para exploração de recursos. Posteriormente, esse tipo de preservação chegou a
ser contestado por ambientalistas pela ambiguidade do procedimento, mas o fato é que essas
discussões foram fundamentais para a integração da paisagem a projetos arquitetônicos,
urbanísticos e paisagísticos.

4 – Considerações Finais
Não podemos negar que o tempo é o maior responsável pelas transmutações da paisagem,
sendo as ações antrópicas as catalisadoras de um processo natural. Muitas dessas
transformações ocorrem, em meio ao caos e barulho das cidades, de forma despercebida para
as pessoas, em um silêncio interiorizado e de uma percepção muitas vezes cega e surda diante
dos problemas do dia a dia, um reflexo do hábito. Uma paisagem dá lugar a outra, e a memória
daquela anterior se esvai.
Não se trata de uma questão de imortalizar um lugar, e sim preservar a sua memória, para que,
mesmo que adaptado ou substituído por outro elemento, a importância que aquele espaço teve
para outras gerações seja mantida viva, dando lugar para novas memórias. Não devemos
esquecer que o espaço urbano é para aqueles que o habitam, sendo muito mais que números,
gráficos e estatísticas.
O estudo de caso nos faz refletir sobre essa recorrência de realidades: falamos sobre Bauru, uma
cidade de médio porte no centro-oeste paulista, mas poderíamos estar falando de tantas outras
cidades que, da mesma forma, são únicas por suas memórias e identidade, constantemente
resgatadas pelas pessoas que buscam registar suas histórias, resguardar seus patrimônios e
relembrar seus momentos de alegrias e tristezas, conquistas e desilusões, neste palco onde o
imaginário e real se interpõem.

Referências
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1566
O TIETÊ COMO PATRIMÔNIO DO OESTE PAULISTA
NóCego - Outros silêncios.

Gabriela Rosa Graviola


Mestre em Arquitetura e Urbanismo; UNESP; gabriela.rosa@unesp.br.

Norma Regina Truppel Constantino


Professora aposentada e doutora em Arquitetura e Urbanismo; UNESP;
norma.rt.constantino@unesp.br.
.
A água sempre acompanhou a evolução da paisagem urbana ao longo de sua história e o Rio
Tietê teve papel central na história na colonização do interior paulista. Diante desse contexto,
esse artigo se propõe a discutir o Rio Tietê como um patrimônio natural, histórico e cultural na
paisagem do Oeste Paulista. Primeiramente foram definidos os conceitos de história e memória;
em seguida, foi realizado um levantamento histórico do uso e ocupação do Rio Tietê no Oeste
Paulista. Os resultados mostraram que o Tietê é um elemento muito importante na paisagem,
considerando todos os sentidos: histórico, econômico e turístico. Assim, pôde-se concluir que o
Tietê é palco de acontecimentos históricos, fonte de energia, meio de transporte e opção de
lazer.
Palavras-chave: rios urbanos, história, memória, formação urbana, paisagem

Rivers have always structured the territory for the urban landscape and Tietê River has played a
central role in the colonization of São Paulo State. In this context, this article proposes to discuss
the Tietê River as a natural, historical and cultural heritage in the landscape of the West of São
Paulo. First, the concepts of history and memory were defined; then then we carried out a
historical research survey of Tietê and its relation to Western São Paulo region. The results
showed that Tietê is a very important element in the landscape, considering all the senses:
historical, economic and touristic aspects. Thus, it was concluded that Tietê River is the scene of
historical events, energy source, transportation and leisure.
Keywords: urban rivers, history, memory, urban formation, landscape

1567
1 – Introdução
Ao analisar a história da relação entre homem, água e território, é possível constatar como, até
um passado recente, o papel e a importância do elemento água eram indiscutivelmente
considerados elementos essenciais na formação de cidades (FERRARI, 2005). “Não é de se
estranhar, assim, que os homens primitivos em sua imaginosa sacralidade tributassem culto ao
rio, como à floresta e ao monte. Ninfas e náiades povoavam-lhe águas e margens [...] Rios
sagrados, havia-os por toda parte” (NÓBREGA, 1978, p. 11). No Brasil, a formação urbana
também seguiu a mesma lógica: muitas das principais cidades brasileiras foram fundadas
próximas a corpos d’água (MELLO, 2008). No Estado de São Paulo, não foi diferente: o Rio Tietê
teve papel central na história da ocupação e colonização do interior paulista, uma vez que este
atravessa o estado de leste a oeste (CORREA, 2008).
As águas do Tietê abrigaram as grandes expedições que adentraram o sertão paulista e também
foram cenário de muitos acontecimentos históricos e guerras entre indígenas e colonizadores.
O Tietê foi enredo de poesias, histórias e fábulas, algumas românticas, outras assustadoras.
Também foi fonte de matéria-prima: dele se extraíram recurso para produção de cerâmicas,
vidros, telhas e outros tipos de material para a construção civil de muitas cidades em todo o
estado (SANT’ANNA, 2007). A partir do século XX, o rio ganhou um papel diferente: passou a ser
fonte energética a ser explorada por meio de da construção de hidrelétricas, o que propiciou a
construção da Hidrovia Tietê-Paraná, responsável por escoar a produção de muitos estados e
por ter atraído muitas empresas para o interior paulista. Nesse contexto, esse artigo se propõe
a discutir o Rio Tietê como um patrimônio natural, histórico e cultural na paisagem urbana do
Oeste Paulista.

2 – Método
No presente estudo, o método de abordagem utilizado foi o dialético. Nele, “as coisas não são
analisadas na qualidade de objetos fixos, mas em movimento: nenhuma coisa está ‘acabada’,
encontrando-se sempre em vias de se transformar, desenvolver; o fim de um processo é sempre
o começo de outro” (MARCONI; LAKATOS, 2003, p.101). Quanto ao procedimento foram
utilizados os métodos histórico (investiga acontecimentos e processos e do passado para
verificar a sua influência na sociedade de hoje). Assim, para atingir o objetivo foram percorridas
2 etapas importantes: 1) conceituação, onde foram analisados os principais conceitos
fundamentais que permeiam esse artigo como: história, memória; e 2) levantamento histórico
da relação rio-cidades, no contexto do Oeste paulista;

1568
Para compreender o conceito de história e memória, foram utilizados livros do filósofo Walter
Benjamin e do historiador Jacques Le Goff. A análise foi feita contrapondo e comparando cada
um desses autores entre si. Para o levantamento histórico, foram utilizadas fontes textuais,
iconográficas e cartográficas, de caráter primário (documentos, plantas, mapas, projetos, cartas,
fotos originais) e secundário (livros, teses, dissertações).

3 – Os conceitos de História e memória


A palavra história (em todas as línguas românicas e em inglês) vem do grego histor “testemunha”
no sentido de “aquele que vê”; assim como historein em grego antigo é “procurar saber”,
“informar-se”; historie significa, portanto "procurar" (LE GOFF, 1990). Le Goff (1990) divide a
História em duas: 1) a da memória: que reflete as recordações de um indivíduo ou um grupo,
podendo representar tanto fatos, como a visão particular a respeito dos fatos e 2) a dos
historiadores: que analisam o passado com base em muitas evidências (inclusive a da memória),
mas sempre buscando uma análise crítica, por meio de verificações e revisões incessantes do
trabalho histórico e acumulação de verdades parciais.
Mas o que seria a memória? A memória tem como propriedade conservar certas informações e
recordações e “remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às
quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa
como passadas” (LE GOFF, 1990, p.423). A História tem relação com a memória, sob uma
dimensão ética muito importante, pois consiste em preservá-la, em salvar o desaparecido, o
passado, em resgatar tradições, vidas, falas e imagens (ROSA, 2016). O ato de recuperar a
História não consiste em somente conhecer o passado, mas é um agir no presente pensando no
futuro (BENJAMIN, 2012). De forma semelhante, “a memória, onde cresce a história, que por
sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro” (LE GOFF, 1990,
p.477).

4 – Tietê como patrimônio natural


O Rio Tietê nasce em Salesópolis, na Serra do Mar, no estado de São Paulo a 1120 metros de
altitude e a 22 km do Oceano Atlântico e diferentemente dos demais rios, corre no sentido
inverso ao mar, percorrendo boa parte do interior paulista, onde deságua no rio Paraná, no
município de Três Lagoas, Mato Grosso do Sul (SANTIAGO, 2017). Ao todo o rio tem 1150 km
de extensão, percorre 62 municípios, tem 12 milhões de anos e corre em solo de 350 milhões
de anos (BORGES, 2017).

1569
Situado nos biomas Mata Atlântica e Cerrado, o Rio Tietê sempre apresentou uma exuberante
fauna e flora que sempre foi relatada com detalhes por seus viajantes. (NÓBREGA, 1978). A flora
era muito abundante e densa, formada principalmente pela mata ciliar, apresentando uma
diversidade grande de espécies vegetais. Havia árvores de diferentes portes, bromélias de
variados tipos e lianas de extensas grossuras que envolviam toda a floresta numa rede. Em
relação às árvores havia uma abundância de figueiras, palmeiras, jequitibás, jabuticabeiras,
guarirobas, aroeiras, cedros, perobas, cabreúvas, ingazeiros, imbaúbas, jenipapeiros e
jataizeiros (CGG, 1905).
A flora do Rio Tietê está dividida em 4 sub-formações vegetais principais: 1) Florestas
latifoliadas compostas por pau-marfim, peroba, jequitibá-branco e frutíferas silvestres; 2)
Matas de várzea com formações arbustivo-arbóreas como pimenta-do-brejo e capororoca; 3)
Formações herbáceas com a abundância de plantas como banana-do-brejo, aguapé-de-rama,
ninfeia, erva-de-santa-luzia e 4) Mata ciliar com abundância de ingá, figueira-preta, jenipapeiros
e jatobás (OHTAKE, 1991). Atualmente, porém, muito pouco da vegetação nativa ainda existe.
Segundo dados do SOS Mata Atlântica, seu trecho mais preservado é aquele do Alto Tietê que
apresenta 21% do território coberto com remanescentes florestais da Mata Atlântica no
território (HIROTA; RIBEIRO, 2016). Apesar de ser uma região altamente adensada e a mais
próxima da capital, a região do Alto Tietê está inserida em dois parques estaduais que protegem
suas florestas: o Parque Nascentes do Rio Tietê e Parque Ecológico do Rio Tietê (OHTAKE, 1991).

Figura 01: Mata ciliar ás margens do Rio Tietê, no município de Barra Bonita (São Paulo, Brasil)

Fonte: autoria própria, 2018

1570
5 – Tietê: um patrimônio histórico
O Tietê foi encarado como via de penetração no interior do continente, tornando-se base de
fixação dos povoamentos e limites políticos brasileiros (CORREA, 2008). Antes do início das
navegações, o território paulista era povoado por indígenas de várias etnias. Alguns desses
indígenas após escravizados eram usados pelos colonizadores e exploradores como guias: “para
as bandeiras, e depois, para as monções que partiam pelo Tietê, os primeiros guias foram
indígenas apaziguados. Deles era a técnica de navegação, e deles se adquiriu o conhecimento
de ervas medicinais que acalmavam as dores do homem branco” (OHTAKE, 1991, p. 81).
A conquista do território paulista é marcada pelas inúmeras expedições fluviais que ocorreram
ao longo de seu leito. Tais expedições eram repletas de desafios pela própria dificuldade de
navegação num rio muito encachoeirado, mas também devido a existência de muitas fábulas a
respeito dos animais extraordinários que viviam nas margens do rio, além de histórias sobre
fantasmas e almas penadas de canoeiros mortos que vinham assombrar as pessoas
(SANT’ANNA, 2006). A mais antiga expedição ao Rio Tietê que se tem registro ocorreu em 1628,
durando 19 dias, liderada pelo capitão general governador do Paraguai, o espanhol Don Luís de
Céspedes Xeria, responsável por desenhar o primeiro mapa do Rio (XERIA, 1628).

Figura 02: Mapa do Rio Tietê, desenhado por Teotônio José Juzarte na expedição de 1769.

Fonte: CÉSPEDES, 1628

O século XVIII foi marcado pelo início das monções, que eram expedições fluviais, periódicas e
sistematizadas com objetivos comerciais e povoadoras que partiam do porto de Porto Feliz,
antigo porto de Araritaguaba (na língua guainás, significa pedra onde as araras cantam) rumo

1571
ao rio Cuiabá (OHTAKE, 1991). Entre 1767 e 1773, muitas expedições foram enviadas ao Rio
Tietê, por ordem da capitania de São Paulo, que já dava instruções, desde 1765, para o
povoamento do interior e a criação dos presídios de Nossa Senhora dos Prazeres e São Francisco
de Paula do Iguatemi, na região do extremo sul do Mato Grosso do Sul, próximo à fronteira com
o Paraguai com o objetivo de impedir o avanço espanhol nas terras portuguesas (SOUZA;
MAKINO, 2000).
Com a descoberta do ouro na região de Cuiabá, essas expedições se tornaram mais frequentes.
Nelas, iam exploradores, aventureiros, enviados pelo Rei para descobrir novas riquezas,
naturalistas brasileiros e estrangeiros com o objetivo de descrever fauna e flora locais e
moradores com suas famílias que iam se estabelecer no interior até Cuiabá (NÓBREGA, 1978).
Porém, com a abertura das comunicações terrestres, o Rio Tietê foi aos poucos deixando de ser
o veículo ideal do sistema de comércio no interior (ARROYO, 1978). Em 1836 encerrou-se
também o tráfego para Cuiabá, devido às febres que dizimavam as tripulações e a abertura de
comunicações mais fáceis e/ou rápidas pelo Rio da Prata. Com o ouro cuiabano se escasseando
e a política de expansão colonial diminuindo, reduziu-se também o tráfego do rio Tietê, que
passou a ser usado majoritariamente pelas frotas oficiais e algumas poucas expedições turísticas
ou científicas (NÓBREGA, 1978).

Tietê: um patrimônio energético


Durante todo o século XX, o Rio Tietê ganhou um papel diferente de todos aqueles que tivera
anteriormente: o de fabricar energia e trazer a modernidade para o interior paulista. Em 1901,
a companhia canadense Light and Power, aproveitando a cachoeira do Tietê a 33km da capital,
inaugurou em Santana de Parnaíba, a Usina Edgard de Souza, a primeira hidrelétrica do estado.
Nesse mesmo ano criaram a Represa Billings no sul da capital que represava parte das águas do
Tietê e do Rio Pinheiros para o aproveitamento nas usinas da Serra do Mar (OHTAKE, 1991). Em
1905, foi feito o primeiro levantamento geográfico e geológico oficial do Rio Tietê com o objetivo
de fazer um levantamento dos aspectos geológicos e geomorfológicos para conhecer os
recursos minerais e descobrir possibilidades para a produção de energia (CINTRA, 2017).
Em 1957, foi executado o primeiro projeto de aproveitamento múltiplo, a partir da construção
da Usina Hidrelétrica de Barra Bonita. Posteriormente, também foram implantadas 6 Usinas
Hidrelétricas e 8 eclusas: UHE Barra Bonita, UHE Álvaro de Souza Lima (Bariri), UHE Ibitinga, UHE
Mário Lopes Leão (Promissão), UHE Nova Avanhandava (2 eclusas) e UHE Três Irmãos (2 eclusas).
No Paraná, foram implantadas 3 hidroelétricas e 2 eclusas: UHE Ilha Solteira (sem eclusa), UHE

1572
Souza Dias (Jupiá) e UHE Sérgio Motta (Porto Primavera). Entre as UHEs Três Irmãos e Ilha
Solteira, foi construído o canal Pereira Barreto, interligando-as (FARRENBERG, 1998).
A construção de usinas hidrelétricas gerou duas consequências no aspecto do desenvolvimento.
Por um lado, contribuiu com desenvolvimento energético e econômico do Estado e construiu os
chamados “melhoramentos urbanos”, com novos prédios e equipamentos para as cidades do
interior paulista, transformando a paisagem urbana (NOGUEIRA; FERRÃO, 2015). Por outro lado,
causou impactos irreparáveis ao meio ambiente e à população local atingida pela formação dos
grandes lagos (MULLER, 1995) que, além de afetarem a flora e a fauna, causando grandes perdas
na biodiversidade, alagou cidades e povoados rurais e tradicionais, expulsando a população local
e desintegrando costumes e tradições históricas (MENDES, 2005). Em decorrência desses
acontecimentos históricos, a paisagem do Rio Tietê se modificou profundamente: de um rio
encachoeirado e cheio de meandros, se tornou um curso d’agua com leito semi-parado,
completamente domesticado pelo homem.

Figura 03: Mapa mostrando a Hidrovia Tietê-Paraná e suas eclusas, São Paulo, Brasil

Fonte: DINIT (2015)

A Hidrovia
A ideia de tornar o Tietê navegável para o transporte hidroviária já existia há muito tempo, mas
foi em 1913 que iniciaram obras para o melhoramento das condições de navegabilidade do Rio
Tietê, como desobstrução do leito, escavação e retificação. Tais feitos elevaram o tráfego no rio
de 350 embarcações licenciadas, em 1919, a 458 em 1958. Em 1940, chegou-se ao número de
2.500 embarcações em alguns trechos do rio (NÓBREGA, 1978). Ao final da década de 50
começou a construção do o sistema hidroviário Tietê-Paraná, capaz de transportar 55 milhões

1573
de toneladas anuais (20 milhões no trecho Tietê e 35 milhões no trecho Paraná) e teve início de
suas atividades em 1973 (FARRENBERG, 1998). Entre 1980 e 1986, o governo do Estado de São
Paulo alocou recursos para a mecanização das eclusas e em 1981, iniciou-se o transporte de
cana-de-açúcar, material de construção e calcário. Em 1991, houve a instalação das eclusas Nova
Avanhandava e Três Irmãos, viabilizando a navegação comercial à longa distância. De 1990 a
1997, o volume de carga transportada passou de 1 milhão de tonelada para 6 milhões de
toneladas por ano (FARRENBERG, 1998).
Em 1998, houve a integração do sistema Hidroviário Tietê ao Paraná com a eclusa UHE Souza
Dias, permitindo que a Hidrovia Tietê-Paraná passasse a ser interligada completamente do trono
norte ao sul (FARRENBERG, 1998). Atualmente, a Hidrovia Tietê-Paraná consiste em uma das
principais vias hidroviárias em funcionamento no país, interligando territórios de 286 municípios
dentro de cinco estados. Com 2400 km navegáveis (1.600 km no rio Paraná e 800 km no rio
Tietê) formam, junto com o Rio Paraguai, um corredor multimodal do Mercosul (MOREIRA,
2019). Mesmo com todas essas novas hidrovias e leis e decretos de incentivo do século XX, não
foi possível restabelecer o tráfego fluvial como nos tempos das monções. O uso do sistema
hidroviário ainda é muito incipiente no Brasil, representando apenas 13,86% do transporte de
cargas no Brasil, enquanto o transporte rodoviário tem sua maior participação (61,1% das
cargas), seguido do ferroviário com 20,7% (CNT, 2013).

Porto Intermodal de Pederneiras


A ideia de instalação do Porto Fluvial em Pederneiras surgiu oficialmente na década de 80, e se
concretizou em forma de plano em 19 de novembro de 1983, quando dirigentes municipais e
representantes dos diversos Estados envolvidos na construção da Hidrovia, se reuniram com o
então prefeito de Pederneiras para traçar metas e enviar a solicitação de implantação ao
Governo Federal (PENTEADO, 1988). A partir de então foram realizados vários estudos, os quais
indicaram que que as áreas na margem esquerda do município de Pederneiras eram mais
favoráveis a implantação do Terminal (MATTOS, 1984).
O Terminal foi concebido por meio de acordos entre a iniciativa pública e privada. Seria de
responsabilidade da iniciativa privada providenciar a construção de suas respectivas empresas
na vila industrial. Ao setor público caberia gerenciar o porto, desapropriar as terras necessárias,
fornecer energia, fazer as obras de terraplenagem e melhorar as rodovias no entorno (ROSA,
2020). Em suma, a abertura do Terminal foi um marco histórico que trouxe grandes mudanças

1574
ao município. A chegada do Porto alavancou o processo de urbanização, atraindo muitas
indústrias e gerando muitos empregos na região do Oeste Paulista (FARRENBERG, 1998).

Tietê como matéria-prima para o setor oleiro-ceramista


A matéria-prima para a construção vertical e em solo firme das cidades do oeste e da capital
paulista saiu em grande parte do Tietê (SANT’ANNA, 2007). Em todo estado Paulista, as rochas
mais resistentes foram usadas para a criação de brita e o revestimento de ruas e calçadas. Os
depósitos de argila nas margens do Rio foram muito importantes para fornecer matéria-prima
para a confecção de tijolos, telhas e cerâmicas, muito usadas em olarias em todo estado e
fábricas de vidro e cerâmica do bairro de Barra Funda na capital (SANT’ANNA, 2007). Na capital,
muito da construção vertical e em solo firme veio do Tietê.
Também em muitos municípios do Oeste Paulista, como Pederneiras, o setor oleiro-ceramista
chegou a ser considerado a maior riqueza depois do café, na primeira metade do século XX
(RAZUK, 2019). Nas margens do rio, havia muito barro e argila, o que propiciou a instalação de
muitas olarias e cerâmicas (RAZUK, 2019). Eram dezenas os estabelecimentos que forneciam
tijolos, manilhas e telhas para a Companhia Paulista e também para todo o Estado de São Paulo,
empregando centenas de trabalhadores (PENTEADO, 1988).
Além disso, os depósitos de areia, cascalho e argila foram as matérias-primas para a construção
civil. Os basaltos, por sua vez, permitiram que existisse a terra roxa, responsável pela fertilidade
do solo paulista e a consequente produção de café, que por muitos anos foi a responsável por
alavancar a economia do Estado. Por último, a bacia com as rochas relativamente impermeáveis
permitiu o confinamento das águas no lençol freático, útil para o abastecimento de águas das
cidades do interior paulista, por meio de poços artesianos durante muitas décadas (OHTAKE,
1991).

Rio Tiete e o lazer


O Rio Tietê sempre teve papel de destaque no lazer e na vida cotidiana dos habitantes do Oeste
Paulista. Ele foi palco de muitos acontecimentos na cidade por meio da recreação, do lazer e da
pescaria. Muitas pessoas costumavam frequentar as margens do Rio Tietê para realizar
piqueniques em família e levar as crianças para brincarem.

1575
Figura 04: Formas de lazer nas margens do Tiete: à esquerda, Benção dos barcos às margens do Tiete,
com o padre, madrinhas, padrinhos e os donos dos barcos, em Pederneiras (São Paulo, Brasil). À direita
Pesca no rio Tietê no município de Pederneiras (São Paulo, Brasil), na década de 20/30, antes da
chegada da Usina Bariri que alagou suas margens

Fonte: Acervo Maria Teresa Garcez

Dentre os municípios do Oeste Paulista, Barra Bonita é conhecida pelo seu pioneirismo e sucesso
da navegação fluvial no Tiete, o que levou outras cidades a pensarem em estratégias na
implantação de um turismo fluvial. Em 28 de junho Barra Bonita foi integrada ao roteiro turístico
do Estado de São Paulo (SAFFI et al.,1999). O enquadramento oficial de Barra Bonita na categoria
turística representou um grande avanço no progresso desse setor, o que passou a atrair cada
vez mais e mais visitantes. Também começaram a surgir outras infraestruturas como
restaurantes, lanchonetes, bares e hotéis, próximos às praças e a orla.
Em 1973, é inaugurada a Eclusa Dr. José Bonifácio de Andrada e Silva Jardim que permitiu que
surgisse um dos primeiros barcos a navegar turisticamente, o Crepúsculo Romântico, da
empresa Navegação Fluvial Médio Tietê, criada em 1968 por Raphael Palmesan como pioneira
no turismo fluvial. Essa embarcação impulsionou o turismo e a eclusa tornou-se a primeira da
América do Sul a ser explorada turisticamente (SAFFI et al.,1999). Desde então, milhões de
pessoas passaram a navegar turisticamente no Tietê: nos diários de bordo Raphael Palmesan, é
possível observar que ao longo de 5 anos, mais de dez milhões de pessoas estiveram a bordo de
seus navios (PDT, 2017).
Em 1989, nasceu o Consórcio Intermunicipal Tietê-Paraná (CITP), que abrangia 69 municípios do
vale do Rio Tietê, com o objetivo de desenvolver atividades econômicas da hidrovia, comércio,
indústria e turismo. Em 2006, outra iniciativa nasceu, a chamada Região Turística Caminhos do
Tietê, que englobava muitos municípios da região, com o objetivo de estudar todas as cidades
com potencial de desenvolver turismo em diversos segmentos: náutico, religioso, ecológico e
gastronômicos. Durante essa década, as ações se concentraram na divulgação e planejamento

1576
do roteiro. A retomada efetiva da Região Turística Caminhos do Tietê aconteceu 10 anos depois,
em 2016 (PDT, 2017).
Atualmente, destaca-se a Hidrovia Tietê-Paraná (HTP) como principal fomentadora do turismo
na cidade no Oeste Paulista, através do transporte de passageiros. A área que margeia o rio
continua a receber grandes investimentos do governo com o objetivo de se tornar um atrativo
turístico. Entre 2021, está prevista a entrega do barco Homero Krähenbuhl, com 50 metros de
comprimento e capacidade para 500 passageiros, de propriedade da empresa Transtietê
Navegação e Transporte. Trata-se uma nova opção turística de navegação, com previsão de píer
de atracação na recém-inaugurada Prainha Municipal (JORNAL DA CIDADE, 2020).

5 – Conclusão
Assim, esse trabalho contribuiu para a discussão sobre como Rio Tietê pode ser considerado um
patrimônio em seus múltiplos sentidos: foi palco de toda a história do Oeste Paulista e seu uso
foi frequentemente transformado ao longo da história, sendo meio de navegação, fonte
energética, matéria-prima e fonte de lazer. Também é um patrimônio natural uma vez que o rio
é um ecossistema em si. E também é lugar, uma construção concreta e simbólica do espaço, que
tem identidade e história. Nesse sentido, é fundamental discutir a multiplicidade de patrimônio,
a qual o Tiete pode ser enquadrado de modo a evitar que o nó cego do esquecimento retire ou
ignore sua importância para a formação do Sudeste brasileiro.

Referências
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São Paulo, 1978

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HIROTA, M. & RIBEIRO, M. Bacia do Tietê tem apenas 7% de Mata Atlântica preservada. Fundação SOS
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MATTOS, E. Navegando pelo Tietê. Jornal O Estado de São Paulo, São Paulo, no 5.671, ano 19, 28 maio
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RAZUK, Rinaldo Toufik. Entrevista sobre Tietê em Pederneiras. [Entrevista concedida a] Gabriela Rosa.
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https://www.jcnet.com.br/noticias/regional/2020/01/712318-novo-barco-pelas-aguas-do-tiete.html>
Acesso em 10 de agosto de 2020

PREFEITURA DA ESTÂNCIA TURÍSTICA DE BARRA BONITA. Plano Diretor de Turismo de Barra Bonita.
Elaborado pela Prefeitura da Estância Turística de Barra Bonita em parceria com o SENAC (Jaú), 2017.
Documento disponível em: < https://www.legislacaodigital.com.br/BarraBonita-
SP/LeisOrdinarias/3262/Arquivos/2 >

1579
O VESTUÁRIO COMO PATRIMÔNIO FAMILIAR:
a transmissão de objetos entre as gerações1
NóCego - Outros silêncios.

Laiana Pereira da Silveira


Mestranda em Memória Social e Patrimônio Cultural; Universidade Federal de Pelotas;
laianasilveira@gmail.com

Francisca Ferreira Michelon


Doutora em História; Universidade Federal de Pelotas; fmichelon.ufpel@gmail.com

Frantieska Huszar Schneid


Doutora em Memória Social e Patrimônio Cultural; Universidade Federal de Pelotas;
frantieskahs@gmail.com

O artigo desenvolvido busca compreender a relação existente entre o vestuário no campo do


tangível e do intangível. Para isto, elencou-se um repertório de conceitos basilares à
compreensão do vínculo existente e como ele é realizado. A construção da análise dar-se-á, por
meio do estudo dentro da categoria do patrimônio familiar, que será a transmissão de objetos
entre as gerações familiares. Argumentando com base nos conceitos a serem debatidos, a
relação do vestuário na evocação de memórias, considerando-o um espaço de recordação
potencialmente investido de afetividade, materialidade e simbolismo.
Palavras-chave: Vestuário; patrimônio familiar; valor simbólico.

The article developed seeks to understand the relationship between clothing in the field of the
tangible and the intangible. For this, a repertoire of basic concepts was listed for the
understanding of the existing bond and how it is accomplished. The construction of the analysis
will take place, through the study within the category of family heritage, which will be the
transmission of objects between family generations. Arguing on the basis of the concepts to be
debated, the relationship of clothing in evoking memories, considering it a space of
remembrance potentially invested in affection, materiality and symbolism.
Keywords: Clothing; family patrimony; symbolic value.

1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

1580
1 – Considerações iniciais
Inicialmente, consideramos o vestuário parte do valor tangível, pela materialidade que ele
expressa através de suas texturas, formas, modelagens, cores, volumes e tudo que engloba a
construção da roupa na sua forma literal, mas é quando essa categoria de objeto transcende
para o valor intangível que podemos identificar o seu valor simbólico e afetivo. Percebe-se
também que é através do vestuário, enquanto cobre nossos corpos, que temos o contato direto
com um objeto, sendo ele a nossa segunda pele, consequentemente, podemos pensá-lo como
uma extensão de nós (DOHMANN, 2013; MENESES, 1996).
Nem sempre dedicamos tempo suficiente para refletir sobre os objetos que atuam como
extensão dos nossos corpos, isso ocorre muitas vezes devido a quantidade e frequente
circulação de objetos que nos rodeiam. Levando em consideração, que vivemos em uma
sociedade imersa em objetos das mais diversas classificações compreendidas pela cultura
material, o José Reginaldo Gonçalves (2007) ressalta que estamos:
Expostos cotidianamente a essa extensa e diversificada teia de objetos, sua relevância social e simbólica,
assim como sua repercussão subjetiva em cada um de nós, termina por nos passar desapercebida em
razão mesmo da proximidade, do aspecto familiar e do caráter de obviedade que assume (GONÇALVES,
2007, p. 14, grifo nosso).
Corroborando com a ideia de Gonçalves e a teia de objetos, o antropólogo britânico Tim Ingold
(2012) nos faz imaginar a relação existente com o indivíduo-objeto, bem como, o que seria de
uma sociedade num ambiente vazio, “uma sala sem objetos, poderíamos concluir, é
praticamente inabitável” (INGOLD, 2012, p. 27), pensando além, de forma extrema, vinculando
a reflexão do autor com o objeto aqui estudado, o vestuário, o que seria de uma sociedade –
baseada no pudor – sem roupas? Uma sociedade despudorada.
Envolvidos pelo sistema econômico capitalista da moda, desejamos, adquirimos, usamos,
desgastamos, aposentamos e descartamos nossas roupas. Ao longo dos processos de seleções
feitos durante a vida, algumas peças que não são descartas acabam por serem doadas e outras
passam do guarda-roupa para uma mala, uma caixa, um limbo como forma de guardar vestígios
de um passado vivido compartilhadamente com a peça em questão. Bem como apontam Nery
et al (2015), "nem todos os objetos possuem o mesmo caráter funcional, memorial e identitário;
alguns deles são utilizados de acordo com suas funções originais e, depois que perdem o seu
valor de uso, são descartados” (NERY et al, 2015, p. 43).
Entretanto, algumas dessas roupas perdem sua função utilitária, mas seus portadores não
conseguem desfazer-se delas, pelo contrário, sentem a necessidade de preservá-las. E é quando

1581
preservamos, quando buscamos acondicioná-las da melhor forma possível, que notamos o valor
simbólico e afetivo nela depositado. Nery et al (2015) explicam que, diferente dos objetos sem
valor afetivo e simbólico, estes “outros possuem grande valor sentimental e memorial, podem
contar muito sobre os indivíduos, suas características, grupos social e econômico e podem servir
como fonte de análise para compreender a maneira como eles veem o mundo” (NERY et al,
2015, p. 43).
Tendo em vista a reflexão levantada, este estudo busca visibilizar alguns apontamentos que
apresentem a interação existente entre o vestuário e o indivíduo, considerando o vestuário uma
categoria da materialidade potencialmente sujeita a mediação na relação sujeito-memória,
fornecendo instrumentos teórico-conceitual para que seja realizada uma discussão acerca do
tema estudado. Iniciando com a conceituação do antropólogo francês Joel Candau (2019) no
que ele denominou de sociotransmissores, este conceito pode ser atribuído a praticamente tudo
de acordo com o autor, favorecendo a comunicação e permitindo a conexão nas relações sociais.
Neste caso, o uso do vestuário como sociotransmissor para realizar o entrelaçamento entre os
indivíduos pode ser realizado por meio de doações, nas vivências em datas comemorativas ou
de luto, através de presentes, empréstimos, herança ou até mesmo o compartilhamento do
saber fazer, são possibilidades que viabilizam a interação entre os indivíduos considerando o
vestuário o conector em comum. Quanto ao ato de herdar objetos familiares, Nery et al (2015)
afirmam que, “pode-se observar que é comum o repasse de objetos pertencentes à família em
forma de herança entre gerações” (NERY et al, 2015, p. 43). Stallybrass (2016) complementa
“Elaine Hedges observa o quanto era generalizado nos Estados Unidos do século XIX o costume
de se transferir roupas entre membros da família” (STALLYBRASS, 2016, p. 28).
Dessa forma, será investigado através de uma revisão bibliográfica, a ligação de um fator
característico que possa ser complementar aos sociotransmissores, a utilização do conceito de
patrimônio familiar (GUTERRES, 2013). A conexão entre indivíduos de uma mesma família ou
indivíduos próximos devido a alguma relação, por meio do ato de transmitir a roupa entre as
gerações, observando o impacto construído nas redes de relações familiares, os sentimentos e
sensações que podem ser evocadas através da interação sujeito-objeto, e o valor simbólico e
afetivo que as “coisas” adquirem por meio dessas heranças familiares.

2 - O vestuário como patrimônio familiar


Para conseguirmos entender as reflexões que serão desenvolvidas posteriormente, precisamos
compreender alguns conceitos basilares à pesquisa, como as definições de patrimonialização e

1582
patrimonialidade apresentadas pelo pensamento do historiador francês Dominique Poulot
(2009) e o conceito de patrimônio familiar usado pela pesquisadora brasileira Anelise Guterres
(2013). Poulot (2009) evidencia que:
Na nossa vida cultural, raros são os termos que possuem um poder de
evocação tão grande quanto “patrimônio”. [...] O acúmulo de vestígios e
restos revelados, conservados e aclimatados segundo práticas diversas,
parece responder ao fluxo da produção contemporânea de artefatos”
(POULOT, 2009, p. 9).

Existem certos bens materiais que possuem valor afetivo, compreendido pelo campo do
simbólico e do intangível, que muitas vezes não possui mais utilidade funcional, nem valor
monetário, mas representam tanto dentro do ambiente familiar e acabam sendo vistos como
parte da família, que passam a ser considerados como patrimônio. Chamam-nos de patrimônio
porque atribuir essa classificação ao bem, atribui também significado de raridade, importância,
que exige cuidado, que requer atenção, que possui valor passa esse grupo, e bem como aponta
Poulot (2009), essa terminologia possui poder. Corroborando com a ideia de Poulot (2009), José
Reginaldo Gonçalves (2009) complementa:
“Patrimônio” está entre as palavras que usamos com mais frequência no
cotidiano. Falamos dos patrimônios econômicos e financeiros, dos
patrimônios imobiliários; referimo-nos ao patrimônio econômico e financeiro
de uma empresa, de um país, de uma família, de um indivíduo; usamos
também a noção de patrimônios culturais, arquitetônicos, históricos,
artísticos, etnográficos, ecológicos, genéticos; sem falar nos chamados
patrimônios intangíveis, de recente e oportuna formulação no Brasil. Parece
não haver limite para o processo de qualificação dessa palavra (GONÇALVES,
2009, p. 25, grifo do autor).

Como neste estudo, que será utilizado o conceito de “patrimônio familiar”. A relação existente
entre o vestuário e o patrimônio evidentemente é uma relação de poder, visto que, para além
do que fala Poulot (2009), Stallybrass (2016) deduz que “pensar sobre roupa, sobre as roupas,
significa pensar sobre a memória, mas também sobre o poder e a posse” (STALLYBRASS, 2016,
p. 16). Logo, assim a palavra patrimônio remete a poder – e também a posse, posse e cuidado
do Estado, apesar de ser patrimônio à sociedade – o vestuário também remete ao poder e a
posse, sejam eles privados ou públicos, esteja o vestuário num acervo museológico
representando uma sociedade ou num ambiente privado, guardado por um indivíduo apenas.
Poulot (2009) também conceitua as diferenças entre patrimonialidade e patrimonialização,
sendo este primeiro termo:
Para designar a modalidade sensível de uma experiência do passado,
articulada com uma organização do saber – identificação, atribuição – capaz

1583
de autentificá-lo. Uma primeira patrimonialidade encontra-se na relação
íntima ou secreta de um proprietário ou de usufrutuários em diferentes
níveis, de especialistas ou de iniciados, em nome de afinidades e convicções,
assim como racionalização eruditas e de condutas políticas, com
determinados objetos, lugares ou monumentos (POULOT, 2009, p. 28).

Já a patrimonialização, seria o reconhecimento pelo Estado de que tal bem merece o título de
patrimônio, e merece os investimentos de conservação e preservação que são atribuídos aos
bens já patrimonializados (POULOT, 2009). Quanto ao conceito de patrimônio familiar,
apresentado por Guterres, traz a relevância existente na mediação que as guardiãs da memória
familiar exercem sobre os objetos deixados por seus familiares, que ao longo de uma seleção,
estipulam o que deverá ser preservado e o que será descartado.
Aqui neste estudo, o conceito de “patrimônio familiar” (GUTERRES, 2013) será estendido para
além dos laços de sangue, englobando qualquer ente querido que venha a deixar objetos
carregados de significado como herança para alguém. No caso da pesquisa de Guterres (2013),
o patrimônio familiar está relacionado a mudança de casa de duas senhoras, e estas foram
incumbidas de selecionar quais objetos iriam para a nova habitação e quais seriam descartados,
logo, elas selecionariam quais suportes memórias seriam preservados no presente com o intuito
de conservar as histórias familiares para as futuras gerações, e quais vestígios do passado
cairiam no esquecimento.
Barcelos apresenta no seu estudo (2009) que estas seleções são nada mais do que lidar com
fragmentos da sua própria história. Evidencia também que essa tarefa pode ser mais complexa,
reflexiva e demorada para algumas pessoas do que para outras. O ato de guardar algo que foi
de um familiar, faz parte de conservar a integridade daquela família, mantendo seguro o fio da
memória específico dessa trajetória familiar. Nery et al (2015) apontam que, “objetos antigos
compõem a história de cada família” (NERY et al, 2015, p. 45).
Para Candau (2019) “a memória familiar é uma memória curta: ela não remonta além de duas
ou três gerações” (CANDAU, 2019, p. 139), devido a esse período de curta duração da memória,
pode-se considerar que a utilização do vestuário para a preservação das histórias dessa
linhagem, seja uma opção válida. O vestuário conservado e passado de geração para geração,
possibilita aumentar a duração das lembranças familiares, pois o vestuário, como objeto
material, é um espaço de recordação, e quando as narrativas que surgem ativam a mediação,
proporcionam a perpetuação das memórias familiares. Nery et al (2015) observam:
Ao longo da vida, os indivíduos apegam-se a objetos que acabam sendo uma
conexão entre membros de uma mesma rede familiar, repassados numa

1584
espécie de sucessão entre gerações da família. Estes objetos, relacionados à
memória e que acompanham a trajetória de quem os possui, são chamados
de biográficos. [...] O hábito de colecionar objetos é uma prática das pessoas
que enxergam valor atribuído nas peças e não apenas monetário. Não é um
apego material, mas simbólico, de objetos com fortes cargas memoriais que
serviram, e ainda servem, de lugares de memória dentro das famílias às quais
pertencem, fazendo parte da identidade de seus membros que têm a prática
de salvaguardar tais peças (NERY et al, 2015, p. 44).

Quando pensamos no ato de herdar roupas de pessoas próximas, familiares e/ou amigos, é
como se recebêssemos um pedaço da pessoa, e ao usar as roupas herdadas, estaremos
carregando a pessoa conosco, para elucidar esta afirmação é o apresentado o exemplo usado
por Stallybrass (2016), que ao ter herdado a jaqueta de seu amigo falecido, sente a presença
dele toda vez que a veste, sente a presença do amigo principalmente no cheiro impregnado na
roupa, e atribuí a cada elemento presente na jaqueta, a função de suportes para recordar do
amigo (STALLYBRASS, 2016).
Stallybrass (2016) conta também a história de uma colcha de retalhos, presente de casamento
de uma irmã à outra, feita com restos de tecidos das pessoas da família, sobras de vestidos,
retalhos da avó, o autor fala “a colcha é feita de retalhos de tecido que carregam os vestígios de
sua história e, ao ser usada, ela passa a carregar os vestígios de outras pessoas, da irmã, da
morte. [...] Uma rede feita de roupas pode seguir as conexões do amor ao longo das fronteiras
da ausência, da morte, pois a roupa carrega, além do valor material em si, o corpo ausente, a
memória, a genealogia” (STALLYBRASS, 2016, p. 28).
Assim como Stallybrass (2016) traz os relatos da poetisa Nina Payne, que relata sobre as roupas
de seu marido que havia falecido, mencionando que elas estavam todas guardadas num armário
em sua casa, Nina relata que, “se enfiasse a cabeça no meio das roupas, eu podia cheirá-lo”
(PAYNE apud STALLYBRASS, 2016, p. 18), obviamente compreende-se esse exemplo como uma
forma de transcender o significado do vestuário do material para o imaterial – do tangível para
o intangível, enquanto um objeto ativador de sensações, através do olfato em contato com as
roupas do marido, a poetisa sentiu a presença daquele que já estava ausente. Nina ainda
complementa, “jaquetas e calças que Eric e Adam poderiam ainda usar” (PAYNE apud
STALLYBRASS, 2016, p. 18), filhos do casal que ficaram com o guarda-roupa do pai de herança.
Nina relata que dois anos após a perda, algumas roupas de seu falecido marido voltaram a
circulação, pois, suas filhas começaram a usá-las. A poetisa conta, “minhas filhas, utilizando uma
ampla variedade de roupas, faziam combinações originais nas quais as camisas do pai viraram
um emblema e um signo” (PAYNE apud STALLYBRASS, 2016, p. 23). Entretanto, o filho mais velho

1585
do casal sentia-se incomodado com o uso das roupas do pai pelas irmãs, visto que ele planejara
usar as roupas quando as servissem, porém, temia que elas tivessem gastas demais quando
viessem a servir nele, ocasionando assim, desentendimentos entre os irmãos, que a mãe tentou
apaziguar, visto que as filhas – também no direito delas – não deixariam de usar as roupas do
pai por causa do aborrecimento do irmão.
Enquanto Stallybrass havia sentido a presença do amigo ao vestir a jaqueta, Nina sentiu a
presença do marido através do cheiro, evidenciando que o vestuário pode auxiliar nas
reminiscências trabalhando juntamente com os sentidos humanos, pois para além da sensação
de tocar ou de cheirar, pode-se considerar também que o contato visual com a peça é
extremamente importante, enxergar a peça de vestuário pode trazer instantaneamente
memórias de acontecimentos vivenciados junto ao vestuário visto. Quanto ao que Candau
chama de lembrança olfativa e a relação com o conceito de sociotransmissor, ele fala em
entrevista para Bezerra e Serres (2015) que:
Por exemplo, uma pessoa que revisita uma casa; ela se aproxima do alpendre
e abre as janelas, ela descobre um lençol e ela vai sentir o cheiro desse lençol
e imediatamente a imagem da pessoa ausente aparece e se passa nessa
imagem toda uma noção de emoção e evoca um dia, o afeto de um momento
difícil, ao sentir o cheiro do lençol da pessoa desaparecida. Vai sentir o cheiro
da pessoa ausente. Acontece que o cheiro ativa toda uma região do cérebro,
que é o sistema límbico, o córtex frontal, do hipotálamo, sobretudo o sistema
límbico que é a região que gera as emoções, a região que controla as
emoções. Essa associação muito forte que põe em prática a lembrança
olfativa, entre o odor e a emoção, faz com que se considerem os odores
sociotransmissores potenciais. Ele vincula todo um conjunto de informações
de maneira muito eficaz. [...] Por exemplo, alguém sente o cheiro de uma
roupa e recorda dos amigos (BEZERRA e SERRES, 2015, p. 15).

Para além da explicação voltada ao sistema neuronal, refletir sobre a relação das sensações
entre o indivíduo e o vestuário – assim como com outros objetos – nos faz pensar também nas
ausências de tais sensações na interação indivíduo-vestuário, fator contribuinte para ocorrer o
esquecimento de tais lembranças.
Para tanto, percebe-se que usar uma peça de vestuário herdada pode evocar a presença de
alguém que não está entre nós, guardar essa peça de roupa como um bem valioso pode ser
considerado uma forma de preservar esta pessoa na memória da família, pois por representar
alguém ausente entende-se que sem esse objeto específico, memórias se apagariam. Resquícios
existentes vinculados ao objeto, o indivíduo e as experiências vividas, estariam em risco de cair
no esquecimento, e conexões não seriam criadas. Para compreender o que está sendo
apresentado, vale analisar o que Barcelos (2009) apresenta quando se refere a sua mãe:

1586
A casa simples, de apenas quatro cômodos, era todo o universo material
daquela mulher, que, embora sendo minha mãe, ainda me era uma incógnita
em certos aspectos. [...] Revirando, não sem constrangimento, seu roupeiro,
encontrei uma camiseta que eu mesmo havia dado a ela, em 1992. Estava em
ótimo estado, embora se pudesse perceber que ela fazia uso frequente
daquela peça de roupa. Ainda sem razão em especial, vesti aquela camiseta
e, antes de adormecer, pensei muito sobre o curioso daquele momento, cujo
principal elemento que me unia a minha mãe não era sua enfermidade ou a
preocupação com sua condição, mas aquela camiseta, que fora minha,
pertencia agora a minha mãe e voltava ao meu corpo, 18 anos depois, em
uma situação tão inesperada e adversa (BARCELOS, 2009, p. 28).

Através do relato de Barcelos (2009), é possível identificar o desconforto gerado ao autor


enquanto invade o espaço privado da própria mãe, pois, é no roupeiro onde guardamos os
objetos que mais nos são íntimos, roupas que usamos em ocasiões especiais, roupas que nos
acompanham em momentos de lazer e descanso, roupas que nos proporcionam conforto, como
o caso do pijama, que é idealizado para nos acompanhar nos finais dos dias, passar a noite juntos
e acordarmos para mais um dia, continuando nosso ciclo de vida. Pensemos no pijama, como o
vestuário que acompanha nosso sono e nossos sonhos, suporte memorial do final e do início
dos nossos dias.
Apesar da invasão no ambiente privado de sua mãe, Barcelos (2009) vestiu a camiseta antes de
adormecer e refletiu sobre aquele objeto material, ser o que unia sua mãe a ele naquele
momento. Consequentemente, seria possível sentir a presença de sua mãe através daquela
interação. Posteriormente a esta ação, a mãe do autor veio a falecer e este comenta, “mesmo
invisível aos meus olhos, minha mãe estava ali, em todos os cantos e recantos daquele
apartamento” (BARCELOS, 2009, p. 30) inclusive na camiseta que ele acabara de reencontrar
depois de tanto tempo.
A camiseta fez o papel de ligação entre a mãe ausente e o autor, possibilitando que ele sentisse
a presença dela. Através dos apontamentos levantados, entende-se que nem todas as camisetas
em guarda-roupa possuem esse poder de evocação memorial, não há como lembrarmos da
história de todas as camisetas que possuímos, nem todas elas fariam a conexão com alguém
próximo a nós, mas existem aquelas peças em especial, que devido a algum fator externo,
tornaram-se excepcionais, tornaram-se valiosas.
Corroborando com a ideia apresentada, compreendendo a importância das seleções realizadas
ao longo da vida, Nery et al (2015) afirmam que “todos os objetos, em especial aqueles que
possuem uma relação mais afetiva com o seu dono e representam algo mais simbólico do que
simplesmente peças, podem ser entendidos como documentos, objetos biográficos, narradores

1587
e suportes de memória” (NERY et al, 2015, p. 44), entende-se então, que o vestuário pode ser
considerado suporte de memória, bem como foi colocado pelas autoras, as definições sobre os
objetos que possuem uma relação afetiva com seus portadores, assim como, tornam-se
auxiliadores para a construção das narrativas.

Considerações finais
Através deste estudo, pode-se concluir que, os objetos de vestuário podem auxiliar na
preservação das histórias familiares, estes objetos podem ser perpetuados dentro de uma
família ou círculo de amigos através do repasse, conservando-o como um espaço de recordação.
É possível observar que o vestuário pode ser classificado como um sociotransmissor, visto que,
o vestuário corporifica as relações sociais, sendo uma ponte na interação entre os indivíduos, e
também devido a ele próprio interagir com seus portadores.
Compreende-se que é através das seleções, que se pode identificar quais peças de vestuário
adquiriram valor simbólico e afetivo ao longo do tempo, pois, enquanto algumas peças que já
estão em desuso, são descartadas, outras peças são cuidadosamente guardadas, evidenciando
assim, representarem um momento que seus portadores desejam preservar. Essas foram
ressignificadas e agora são vistas “com outros olhos”.
Pode-se notar também que, considerando o ato de transmitir objetos entre as gerações
familiares algo que acontece de forma natural e não raro, algumas destas famílias,
compreendem seus objetos como patrimônio familiar, apesar de não passarem pela
patrimonialização e reconhecimento do Estado, há valor no bem e motivos privados para que
ele seja preservado para futuras gerações, considerando então que há patrimonialidade.

Referências
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cultura. v. 8, n. 16, pp. 27-42, 2009. Disponível em:
<http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/metis/article/view/948>. Acesso em: 05 de fev. de 2021.

BEZERRA, Daniele Borges; SERRES, Juliane Conceição Primon. O museu das coisas banais entrevista o
antropólogo Joel Candau. Expressa Extensão. Pelotas, v. 20, n. 1, pp. 13-16, 2015.

CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2019.

DOHMANN, Marcus. A experiência material: a cultura do objeto. In: DOHMANN, Marcus et al. A
experiência material: a cultura do objeto. Rio de Janeiro: Rio Books, 2013. pp. 31-48.

GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios. Rio de
janeiro: [s. n.], 2007.

1588
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. O patrimônio como categoria de pensamento. In: ABREU, Regina;
CHAGAS, Mário (orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: Lamparina,
2009.

GUTERRES, Anelise dos Santos. A morada e a casa: materialidade e memória no processo de construção
do patrimônio familiar. In: GONÇALVES, José Reginaldo Gonçalves. A alma das coisas: patrimônio,
materialidade e ressonância. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2013. pp. 267-292.

INGOLD, Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais.
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<https://www.scielo.br/pdf/ha/v18n37/a02v18n37.pdf>. Acesso em: 05 de fev. de 2021.

MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A psicologia social no campo da cultura material. Anais do Museu
Paulista. São Paulo, v. 4, pp. 283-290, 1996. Disponível em:
<https://www.revistas.usp.br/anaismp/article/view/5344>. Acesso em: 05 de fev. de 2021.

NERY, Olivia Silva et al. Caixas de memórias: a relação entre objetos, fotografias, memória e identidade
ilustradas em cenas de ficção. Ciências Sociais Unisinos. São Leopoldo, v. 51, n. 1, pp. 42-51, 2015.
Disponível em:
<http://revistas.unisinos.br/index.php/ciencias_sociais/article/view/csu.2015.51.1.05/4598>. Acesso
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POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no Ocidente, séculos XVIII-XXI: do monumento aos
valores. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx: roupa, memória, dor. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

1589
PAISAGEM SERTANEJA: um patrimônio esquecido do Nordeste brasileiro
NóCego - Outros silêncios.

Mariana Santos da Trindade


Arquiteta e Urbanista pela Universidade Federal de Sergipe (UFS, 2019) e mestranda desde
2020 pela mesma instituição no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Culturas
Populares (PPGCULT/UFS).
marianastrindade1@gmail.com

Fernando José Ferreira Aguiar


Doutor em Educação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS, 2012); Professor Adjunto do
Departamento de Museologia (DMS/UFS), Professor Permanente do Programa de Pós-
Graduação em Arqueologia na Universidade Federal de Sergipe (PROARQ/UFS) e do Programa
de Pós-Graduação Interdisciplinar em Culturas Populares (PPGCULT/UFS).
historaguiar@gmail.com

A imagem do sertão nordestino é fortemente associada a suas questões geográficas e sua


paisagem de seca, uma criação histórica e estratégica promovida pelas elites, segundo
Albuquerque Jr (2011). Essas percepções ainda hoje são presentes e exercem influência nos
olhares voltados para essa região, como é o caso da arquitetura patrimonial. Nota-se que nesse
campo os espaços destinados a construções vernáculas, especialmente aquelas feitas com terra
são mínimas ou até inexistentes. A partir disso, busca-se promover novos olhares sobre a
paisagem sertaneja, esta que é rica não só em seu sentido patrimonial como também em sua
cultura popular, tendo como plano de fundo moradias localizadas no interior da cidade de
Fátima-BA, dando voz aqueles que muitas vezes foram silenciados.
Palavras-chave: Paisagem sertaneja; Patrimônio esquecido; Culturas populares.

The image of the northeastern hinterland is strongly associated with geographical issues and its
drought landscape, a historical and strategic creation promoted by the elites, as stated by
Albuquerque Jr. (2011). These perceptions are even present currently, and they interfere with the
vision for this region, as is the case with heritage architecture. Note that in this field the general
spaces of vernacular constructions, especially those made with earth are minimal or even non-
existent. Based on that, the aim is to promote new perspectives on the backcountry landscape,
which is rich not only in its heritage sense but also in its popular culture, having as background
houses of the city of Fátima-BA’s interior, giving a voice those who have often been silenced.
Keywords: Backcountry landscape; Forgotten heritage; Popular cultures.

1590
Introdução
O Nordeste brasileiro é extremamente rico em expressões, cultura, belezas naturais, além de
obras arquitetônicas, tendo muito destaque os grandes centros históricos esses que lutam pela
resistência aos avanços das cidades com o apoio dos órgãos de preservação patrimonial. Não
podemos esquecer também do sertão, que além de suas particularidades climáticas e
memoráveis histórias do cangaço, possui uma grande marca em suas construções: o uso da terra
como matéria-prima.
No entanto, essa região é historicamente vítima de preconceitos advindos de uma criação
histórica e estratégica da classe burguesa dominante afim de obter benefícios sobre as
condições climáticas da região que, consequentemente, estimularam uma propagação de uma
imagem de pobreza, miséria e sofrimento (ALBUQUERQUE JR, 2011; VILLA, 2000). O reflexo
disso é perceptível inclusive na maneira como a casa sertaneja é enxergada, isso quando é vista,
já que os espaços para debates da mesma são quase inexistentes no campo da arquitetura, que
em sua maioria volta-se para tendências importadas da Europa.
Questões como essa acabam gerando uma série de fatores prejudiciais ao reconhecimento
dessa paisagem sertaneja, desde suas casas até as maneiras de habitá-las, como patrimônio
cultural brasileiro. Dessa maneira, esse trabalho tem como intuito principal o de valorizar esse
patrimônio esquecido, a partir da percepção da autora sobre os cenários encontrados na zona
rural da cidade de Fátima, localizada no semiárido baiano, bem como pelas próprias vozes
sertanejas, que muitas vezes são silenciadas.

1 - Construção do imaginário cultural nordestino: um projeto


A princípio pode parecer estranho imaginar que a imagem que possuímos de algo foi uma
construção que nem sempre parte dos nossos próprios conceitos, mas isso, infelizmente, é mais
comum do que pensamos, e muitas vezes ela antecede nossa própria existência. É o que ocorre
com o Brasil, em que “Temos uma geografia da exclusão e do medo”, segundo Albuquerque Jr
(2012, p. 88), que é o caso do imaginário nordestino, onde a região é historicamente esquecida,
ou pior, é invisibilizada (Ibid., 2011).
muitas das coisas que pensamos, a maneira como imaginamos, vemos e
dizemos certos povos e nações foram produto de todo um processo histórico
marcado pela colonização, pela produção de sentido para o outro a partir de
uma metrópole hegemônica, não apenas econômica e politicamente falando,
mas inclusive que detinha o monopólio sobre a escrita e sobre o poder de
produzir sentido, de escrever e falar sobre o outro. Muitos dos nossos

1591
conceitos e preconceitos foram produzidos pelos colonizadores europeus
(ALBUQUERQUE JR, 2012, p. 26).

Isso nada mais é do que um projeto. A imagem do Nordeste brasileiro sempre foi associada ao
que não deveria ser seguido, ao mesmo tempo que buscava-se o charme europeu, seja em seus
trajes, alimentação, arquitetura e até em seus próprios comportamentos (ALBUQUERQUE JR,
2011, 2012). Esses conceitos fizeram com que tudo que esteja fora desse eixo passasse a ser
visto como desqualificado e sem nenhum tipo de valor a oferecer. E o pior é saber que ainda
hoje esses estereótipos e desejo de se igualar a essa cultura europeia não foi superado.
Essa valorização da cultura eurocêntrica é notável também na formação universitária de
profissionais. É o caso das escolas de arquitetura que possuem uma abordagem escassa sobre
construções nacionais, quão pouco as de caráter regional ou local (WEIMER, 2012). Possuem
grades curriculares em sua maioria voltadas para as contribuições europeias que mesmo
possuindo todo seu valor arquitetônico indiscutível, fazem parte de uma realidade totalmente
diferente da brasileira, seja pelo clima, disponibilidade de materiais e, principalmente, pela
própria cultura. Um reflexo claro dos frutos do processo de colonização.
Porém isso nunca foi uma questão para a elite brasileira, visto que ela via as manifestações
culturais populares do país com olhares depreciadores, segundo Albuquerque Jr (2012),
especialmente as produzidas pelos nordestinos. Os mesmos, de acordo com o autor (2011,
p.54), tinham seus costumes considerados como estranhos, atrasados, sem raízes e arcaicos,
tendo sempre cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Recife como principais referências a
serem seguidas.
O regionalismo paulista se configura, pois, como um “regionalismo de
superioridade”, que se sustenta no desprezo pelos outros nacionais e no
orgulho de sua ascendência européia e branca. São Paulo seria, para esse
discurso regionalista, o berço de uma nação “civilizada, progressista e
desenvolvimentista” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p.57)

Nesse ponto, é importante ressaltar que as condições geralmente só tendem a piorar quanto
mais interiorana for a cidade nordestina, é o caso das pertencentes ao semiárido. Já que suas
condições de infraestrutura são ainda menores ou inexistentes, bem como os níveis sociais da
população tendem a serem mais baixos, o que, para as classes mais abastadas e detentoras do
poder, não seria visto com bons olhos ter essa imagem junto com as demais que são
representadas pelas grandes cidades, na disseminação da paisagem cultural brasileira.

1592
É válido destacar também que muitas vezes essa discriminação ocorre dentro da própria cidade,
com as distinções de zona urbana versus rural, inclusive desde o período escolar. “Outra coisa
foi o preconceito dos colegas da escola na cidade. Achavam que por morarmos na zona rural,
éramos um bando de cafonas, limitados e sem conhecimento” (SANTOS, 2014, p. 162). Esse tipo
de tratamento pode gerar nesses agentes sociais feridas muito profundas, uma vez que mexem
com suas realidades e identidades. Ao mesmo tempo, pode estimular uma auto sabotagem, em
função do desejo de se enquadrarem em uma sociedade que possa lhes valorizar, ainda que isso
não signifique que serão aceitos como de fato são, mas por meio de uma negação dessa origem
em busca de uma mudança para como “deveriam” ser.
Isso só demonstra como essas questões estão enraizadas em nosso meio, estimulando a uma
tentativa de se encaixar em um determinado grupo, simplesmente para ser aceito socialmente.
Essa mudança pode acarretar em uma descaracterização profunda não só no ritmo de suas
vidas, mas de toda comunidade que os cercam, e consequentemente de sua paisagem enquanto
representação dessa região, matando o que de fato era mais valioso: sua maneira única de ser
no mundo.
Falar de regiões é falar de realidades sociais já existentes. Falar de lugares e
de territórios é falar da significação do espaço para cada indivíduo e da
maneira de construir objetos sociais a partir das experiências pessoais. Daí a
atenção dada ao corpo como fonte de todas as experiências espaciais dos
indivíduos. (CLAVAL, 2002, p. 23)

Quando consideramos esses conceitos que referem-se a nossa estadia mundana,


compreendemos que é tudo isso que forma nossa paisagem, que somos os principais agentes
de suas transformações bem como de sua conservação. Com isso, se levarmos em conta que,
segundo Dennys Cuche (2012), a cultura está diretamente ligada ao nosso comportamento,
notamos que está tudo entrelaçado. Estamos em constante evolução, não somos iguais a ontem,
tão pouco a quando nascemos, somos seres individuais, com nossas particularidades, mas ao
mesmo tempo somos também coletivos, e isso se deve aos lugares que pertencemos, as pessoas
que convivemos, as condições que somos submetidos, e diariamente vamos nos moldando, e,
consequentemente, transformando ou preservando as coisas ao nosso redor.
Nossas paisagens seguem nossos ritmos, e o grande guia dessas ações nada mais é do que a
cultura. “Nada é puramente natural no homem. Mesmo as funções humanas que correspondem
a necessidades fisiológicas, como a fome, o sono, o desejo sexual, etc, são informados pela
cultura: as sociedades não dão exatamente as mesmas respostas a estas necessidades” (CUCHE,
2012, p. 11). A partir do momento que tomamos conhecimento disso, passamos a compreender

1593
que a cultura não só é, mas ela também está. E ela está presente em tudo. Seja em uma grande
metrópole ou numa comunidade tradicional, na refeição de uma família ou na construção de
uma casa de taipa. Todos esses detalhes formam o ser cultural, constituem a identidade de um
grupo, e é isso que os difere dos demais. Que cria paisagens distintas e representativas.
Entretanto, o que se nota é que as imagens a respeito do sertão nordestino ainda hoje são
utilizadas como ferramentas de marketing que visa apenas o lucro e atrair turistas, ou pior,
continuar a ser vendida a imagem de “pobres coitados” a fim de promover campanhas de
promoção de empresas como preocupadas com o bem-estar social, as “boas samaritanas”. Além
disso, continuam a atrelar essa paisagem a um estereótipo negativo que deveria ser combatido,
a exemplo das casas de barro que já foram alvos de uma crise sanitarista no século XX (RAMOS;
CUNHA JR, 2006), que não apenas leva construções ao chão, como também suas histórias, vidas
de famílias, e descaracteriza sua paisagem, essa que parece não ter espaço no imaginário
cultural criado para representar o Brasil.

2 - Vozes que contam o sertão


Sabe-se que somos seres culturais que estamos em constante evolução e consequentemente
vamos afetando a paisagem ao nosso redor no decorrer de nossa trajetória, de acordo com
nossa maneira de ser, e principalmente, como habitamos. Habitar diz muito mais do que morar
em uma determinada construção. Trata-se de uma conexão única entre morador, a casa e sua
região, uma relação construída diariamente, de companheirismo e pautada no afeto e
acolhimento.
É isso que veremos agora, com pequenos retratos da íntima relação de sertanejos do semiárido
baiano com suas moradias e seu meio. Bem como as percepções adquiridas pela autora durante
sua vivência na cidade de Fátima-BA desde sua trajetória pessoal enquanto filha do sertão, sua
formação em Arquitetura e Urbanismo onde defendeu a monografia intitulada O habitar
sertanejo: uma visão do semiárido através da habitação social (TRINDADE, 2019), até o presente
momento em que continua as pesquisas sobre a temática como discente do Programa de Pós-
Graduação Interdisciplinar em Culturas Populares, ambos pela Universidade Federal de Sergipe,
com a orientação do professor Dr. Fernando José Ferreira Aguiar.
Ao falar sobre o habitar pode parecer que nos restringimos ao interior das habitações, porém
vai muito além do que as paredes são capazes de guardar. Essa relação transcende o que a
construção civil ou as normas de técnicas de restauro são capazes de explicar, pois apenas é
sentido e vivenciado. No caso da casa sertaneja, a edificação em si já é uma extensão de sua

1594
paisagem a partir do momento em que sua trama de madeira é recolhida em matagais próximos
da mesma, e a terra que se transforma em suas estruturas de sustentação é inteiramente ligado
com aquele chão, desde o instante em que se escolhe o local de construção, prepara o barro e,
por fim, a transforma em parede por meio dos sopapos, criando um entrelaçamento que jamais
poderá ser reproduzido da mesma maneira em outro lugar.
Por trás de tudo isso, estão pés que pisoteiam a terra molhada, mãos que trançam a madeira e
a preenchem de barro que em breve será uma das paredes da sala, cozinha ou do quarto. Esses
rituais que envolvem a construção dessas habitações de terra, demonstram como é intensa e
extremamente íntima a ligação entre morador, moradia e o seu lugar. Afinal é aquele chão que
lhe proporciona a matéria-prima de sua habitação, é ele também que é o local de encontro das
crianças, da criação dos animais e do florescimento de suas plantações. Ele é um pedaço de sua
vida.
Com uma série de pés de algarobas antecedendo a delimitação habitacional,
a moradia nos acolhe antes mesmo de chegarmos nela. O terreiro é grande,
tem cerca de madeira em todo seu entorno e uma cancela que nunca está
fechada; plantações de palma que anualmente são renovadas para não faltar
o alimento dos animais; grandes juazeiros e memorosas barrigudas que fazem
parte da história dessa família. (TRINDADE, 2019, p. 87)

Figura 01: A casa velha, residência localizada na zona rural de Fátima-BA.

Fonte: Mariana Santos da Trindade, 2018.

A imagem acima é de uma das moradias estudadas por Trindade (2019), bem como a citação
refere-se a mesma. Chamada de “casa velha”, a centenária moradia de taipa de mão e adobe

1595
foi construída em 1916 por seu primeiro morador, e é um marco na vida dessa família (Ibid.,
2019). Nesse processo construtivo, o morador consegue sentir sua moradia antes mesmo dela
existir por completo, em cada parte dela ele também está ali. “Para sua família, esta moradia
não só representa a resistência do sertanejo, mas é também uma conexão com seus
antepassados e, principalmente, a preservação de suas origens” (Ibid, 2019, p.87).
Assim como ocorre na “casa velha”, a maioria dessas moradias possuem histórias que vão se
acumulando entre o ciclo familiar, se tornando o lar dos seus filhos, e posteriormente acolherá
netos, bisnetos e todas as outras gerações que por ali viverem irão encontrar seus descendentes
nesse ambiente, bem como poderão aprender e propagar esses conhecimentos adquiridos.
Porém essa relação diz mais sobre zelo e respeito do que propriamente sobre uma técnica
arquitetônica.
O cuidado não é apenas com a moradia, mas todo o seu entorno. Na estrada
em frente, Dete sempre tem a atenção de catar as bages que caem das
algarobeiras e varrê-la com sua vassoura de mato, pois além de ser a chegada,
para ela este espaço faz parte da casa. Sentada no banco que há nessa
estrada, ela lembra que ali ela e seu pai, assim como seus irmãos, gostavam
de conversar com as pessoas que passavam ou que iam visitá-los. (TRINDADE,
2019, p. 72)

Figura 02: Estrada em frente “A casa de pai”, localizada na zona rural de Fátima-BA.

Fonte: Mariana Santos da Trindade, 2019.

O cuidado que Dete, proprietária da “casa de pai” e uma das interlocutoras que contribuiu com
as narrações sobre o habitar sertanejo, é lindo e extremamente representativo da ligação
profunda existente entre o sertão e seus habitantes. A moradora que assim como grande parte

1596
de outras pessoas que residem nos interiores foi obrigada a deixar a resistência por medo do
alto índice de violência, porém isso não a impede de estar frequentemente nessa casa que faz
parte da sua história (TRINDADE, 2019).
Além da técnica passada de pai para filho, aprende-se também sobre a organização do lar, o
respeito para com a religião, as receitas familiares, as crianças aprendem a soltar a imaginação
e desfrutar o melhor possível de tudo, sem precisar ter muito. E tudo isso é único, são sensações
particulares e cheias de sentimento, que juntas formam a identidade da paisagem sertaneja.
Nossa experiência espacial aparece inicialmente como visual. [...] Entretanto,
os cheiros dão aos lugares parte de suas especificidades. A lembrança dos
lugares é também ligada aos sabores das comidas locais, da vegetação
queimada e da terra úmida depois da chuva. Outrossim, a experiência
corporal muda com a idade e com o sexo, apresentando-se a necessidade de
explorar as geografias dos meninos, das mulheres e dos velhos. (CLAVAL,
2002, p. 23)

Sabemos que hoje, essa modalidade construtiva não é mais tão corriqueira, ainda que tenha
inúmeros benefícios, tanto para qualidade ambiental do usuário como para com a natureza. Isso
faz com que essa técnica venha se perdendo e cada vez mais, menos pessoas tem o
conhecimento suficiente para executa-la, e não só isso, mas também são modificadas as
relações desenvolvidas nesse processo, sejam os almoços para os ajudantes ou os sentimentos
de pertencimento com a construção. E consequentemente, a paisagem sertaneja vai se
modificando, se perdendo, porém não é aceitável que a mesma continue esquecida.
Os lugares e as paisagens fazem parte da memória coletiva. A lembrança do
que aconteceu no passado dá forte valor sentimental a certos lugares. Os
mitos religiosos e políticos mudam a natureza de parcelas do espaço: existem
fontes, florestas, árvores e serras que viram sagradas, enquanto os seus
arredores permanecem profanos. As identidades individuais e coletivas são
fortemente ligadas ao desenvolvimento da consciência territorial. Num
tempo em que a globalização ameaça muitas identidades, a luz que a
abordagem cultural põe nas relações entre identidades e território indica
interessantes perspectivas de ação. (CLAVAL, 2002, p. 24)

A casa é todo esse grande palco para a vida, e a sertaneja não só para isso, mas também para a
resistência do seu povo que insiste em lutar por seu devido reconhecimento, mesmo com tanta
discriminação sofrida. É nesse espaço onde o povo do sertão se reencontra e se conecta com
seus ancestrais e assim permite manter viva esse patrimônio cultural tão valioso.

Considerações Finais

1597
O Nordeste mais do que repleto de carga cultural, é também a resistência viva de um povo que
mesmo diante das dificuldades escolhe estar ali e propagar suas tradições reafirmadas
diariamente, é também representatividade nacional. Essa carga de valores é expressada em suas
casas, desde sua construção feita entre pés que caminham em busca de sua matéria-prima e
que juntos a pisoteiam, até as mãos amigas que dão os sopapos e ajudam o sonho do lar se
tornar real. E isso é tão cultura quanto as demais. É a representação da paisagem sertaneja.
Diante disso, é necessário cada vez mais trazer essas expressões para espaços mais amplos de
discussão e também divulgação, principalmente no campo da arquitetura patrimonial, não no
sentido de se apropriar dessa imagem, mas de fortalecimento para que as mesmas não se
percam diante de tantas pressões sofridas pelo processo de globalização. E que, dessa forma
possamos sair da bolha eurocêntrica e observar que não precisamos ir tão longe para notarmos
quão rico somos em nossas culturas, conhecimentos e identidades, essas que, infelizmente, são
tão esquecidas. E assim, seja possível que o que ainda se vive hoje possa ser preservado até as
futuras gerações, principalmente o orgulho de sua identidade sertaneja.

Referências
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes, 5. ed. São Paulo:
Cortez, 2011.

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: as
fronteiras da discórdia, 2. ed. São Paulo: Cortez, 2012. (Preconceitos; v. 3)

CLAVAL, Paul. “A volta do cultural” na geografia, 1 ed. Mercator: Revista de Geografia da UFC, n 01,
2002

CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru, Edusc, 2012.

RAMOS, Maria Estela R; CUNHA JR, Henrique. Taipa como processo construtivo: o ensino cooperativo
entre comunidades, arquitetos e engenheiros. Anais do XXXIV COBENGE. Passo Fundo: Ed.
Universidade de Passo Fundo, 2006, p. 11.28 – 11.42.

SANTOS, José Douglas Alves dos. Leituras de Nossa Vida: As Vozes do Sertão. 1. ed. Aracaju. 2014.

TRINDADE, Mariana Santos da. O habitar sertanejo: uma visão do semiárido através da habitação
social. 2019. 107 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Arquitetura e Urbanismo) -
Universidade Federal de Sergipe, Laranjeiras, 2019. Disponível em <
http://ri.ufs.br/jspui/handle/riufs/11447> Acessado em: 27/12/2020.

VILLA, Marco Antônio. Vida e morte no sertão. 1. ed. São Paulo. Editora Ática. 2000.

WEIMER, Gunter. Arquitetura popular brasileira. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. (Raízes).

1598
PAISAGEM CULTURAL BRASILEIRA: o silêncio na perspectiva de revisão da chancela
Nó Cego - Outros silêncios.

Márcio Zanella
Arquiteto e urbanista; mestrando do PROGRAU - Programa de Pós-Graduação em Arquitetura
e Urbanismo da Universidade Federal de Pelotas; e-mail: marciozanella.arq@gmail.com.

Aline Montagna da Silveira


Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo; pesquisadora e
professora do PROGRAU/UFPel; e-mail: alinemontagna@yahoo.com.br.

Ana Lúcia Costa de Oliveira


Doutora em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul;
pesquisadora e professora do PROGRAU/UFPel; e-mail: lucostoli@gmail.com.

Natália Naoumova
Doutora em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul;
pesquisadora e professora do PROGRAU/UFPel; e-mail: naoumova@gmail.com.

Este estudo traz como tema a política de preservação da paisagem cultural no Brasil. A Portaria
nº127/2009 do IPHAN instituiu a Chancela da Paisagem Cultural Brasileira como instrumento de
preservação. O esmorecimento posterior ao reconhecimento do Rio de Janeiro pela UNESCO
expôs as dificuldades que essa categoria patrimonial enfrenta no cenário nacional. Diante da
eliminação da chancela em 2015 e da abertura do processo de revisão, quais as perspectivas
para preservação de paisagens culturais no Brasil? O objetivo é analisar as recomendações feitas
pelo grupo designado para revisão da portaria. Através de revisão bibliográfica e documental,
contextualiza e discute a revisão da chancela brasileira. Conclui sobre a necessidade do
ordenamento relacionar instrumentos de proteção complementares ao Plano de Gestão.
Palavras-chave: paisagem cultural; patrimônio cultural; política de preservação; Brasil.

This study focuses on the policy of preserving the cultural landscape in Brazil. The IPHAN
ordinance nº127/2009 established the Brazilian Cultural Landscape Seal as an instrument of
preservation. The fading after the recognition of Rio de Janeiro by UNESCO exposed the
difficulties that this heritage category faces on the national scene. Given the elimination of the
seal in 2015 and the opening of the review process, what are the prospects for preserving cultural
landscapes in Brazil? The objective is to analyze the recommendations made by the group
designated to review the ordinance. Through bibliographic and documentary review,
contextualizes and discusses the revision of the Brazilian seal. It concludes about the need for
planning to relate protection instruments complementary to the Management Plan.
Keywords: cultural landscape; cultural heritage; preservation policy; Brazil.

1599
INTRODUÇÃO
Durante todo o século XX os conceitos de paisagem e patrimônio foram objeto das discussões
sobre preservação, até convergirem como resposta à crescente relevância da cultura nos
processos identitários da sociedade no final do século. Desde 1992 adotada como categoria de
preservação do patrimônio mundial pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência
e Cultura - UNESCO, a paisagem cultural é hoje definida como resultado do processo de
interação entre o sujeito e o meio natural e, por suas peculiaridades, pode ser eleita como bem
representativo da cultura de um povo.
As paisagens resultam, em sua maioria, de processos culturais. No entanto, quando a
consideramos sob a ótica preservacionista e da representatividade social, é preciso
compreender que seu estudo enseja outro objetivo, que é o de salvaguardá-la. Reconhecer uma
paisagem como peculiar ou especial em relação a outras paisagens é parte de um processo
cultural da mesma ordem que seleciona para tombamento ou registro outros bens de uma
cultura, sejam estes materiais ou imateriais.
O que difere esta instância patrimonial com relação ao tombamento é que sua preservação
considera, sobretudo, o aspecto dinâmico da cultura que a contextualiza. Ou seja, a paisagem
cultural se aproxima muito mais da conduta feita aos bens imateriais da cultura do que qualquer
outro bem material, por sua complexa teia de relações e significados. Por esta razão sua
abordagem é necessariamente multidisciplinar, e sua gestão parte das relações humanas e
ambientais que a sustentam.
Na esteira da valorização e do reconhecimento mundial desses bens complexos, a Portaria nº
127/2009 do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN - estabelece a
Chancela de Paisagem Cultural como instrumento de preservação no Brasil (IPHAN, 2009). No
entanto o esmorecimento observado no período posterior ao reconhecimento do Rio de Janeiro
como paisagem cultural urbana da humanidade expôs as dificuldades que esta categoria
patrimonial enfrenta no cenário brasileiro, culminando com a eliminação da chancela em 2015
e a abertura de um processo de revisão do documento que não se consolidou até o presente
momento (ZANIRATTO, 2020).
Apesar da chancela estar incluída na Política do Patrimônio Cultural Material do estado brasileiro
desde 2018 através da Portaria nº 375 do IPHAN (IPHAN, 2018), permanece o silêncio sobre o
ordenamento de salvaguarda da paisagem cultural brasileira. Neste sentido, quais as
perspectivas para a proteção de paisagens culturais no Brasil, diante da revisão da Portaria nº
127/2009 do IPHAN?

1600
O presente estudo tem como objetivo analisar as principais recomendações feitas pelo grupo
de trabalho designado pelo IPHAN para revisão da portaria e colocá-las na perspectiva de futuro
da política de preservação da paisagem cultural brasileira. Para tanto é realizada uma revisão
bibliográfica apontando momentos significativos de convergência entre paisagem e patrimônio
até a implementação do conceito de paisagem cultural no plano mundial e brasileiro. Em seguida
contextualiza o instrumento da chancela no cenário nacional até sua suspensão em 2015. Por
fim, o estudo procede com uma revisão crítica dos documentos da nova proposta para Portaria
nº 127/2009 do IPHAN, disponibilizados para consulta pública na página eletrônica do órgão, a
fim de responder ao objetivo da pesquisa.

1 – A CONVERGÊNCIA ENTRE PAISAGEM E PATRIMÔNIO


Apesar do conceito de paisagem encontrar grande teorização desde o final do século XIX,
quando passou a ter uma abordagem efetivamente científica dentro da geografia, o conceito
patrimonial sobre paisagem é ainda um tema recente e em construção. Parte da dificuldade em
categorizar o tema da paisagem no âmbito da preservação cultural se deve à própria polissemia
da palavra paisagem, como cita Ulpiano Bezerra de Meneses, e que por esta razão abarca uma
diversidade de usos e derivações (MENESES, 2002).
A definição comum de paisagem remete à extensão do território que se abrange num lance de
vista, derivada do francês paysage. No entanto, apesar da coerência etimológica, é uma
definição simplista e redutiva, distante do conceito científico construído ao longo do século XX,
quando foi entendida como produto cultural e teorizada por Carl Sauer em 1925,
transformando-a em tema central da geografia cultural no início do século (RIBEIRO, 2007).
O método morfológico de análise preconizado por Sauer encontrou dificuldades ao renegar os
fatores simbólicos e subjetivos da paisagem, permanecendo restrito às formas e aos aspectos
visíveis nela contidos. A partir de uma visão mais humanista sobre tema, geógrafos do final da
década de 1960 como Denis Cosgrove, trataram de considerá-la como representação dos valores
humanos, carregada de sentidos e significados que extrapolam a materialidade. “Nessa visão, a
estética da paisagem é uma criação simbólica, desenhada com cuidado, onde as formas refletem
um conjunto de atitudes humanas” (RIBEIRO, 2007, pág. 24).
Progressivamente, o conceito de paisagem aproximou-se muito mais do conceito de lugar que
do conceito de espaço, justamente pelo vínculo com o aspecto humano compreendido. Para
Tuan (1983) a medida que um espaço adquire definição e significado, transforma-se em lugar,
tornando-se cada vez mais familiar. Para Reis-Alves (2007) a paisagem transforma-se em lugar

1601
pela simples presença do homem que a modifica e qualifica a partir da interação com os
elementos físicos do espaço.
De fato, o caminho conceitual construído pela geografia ao longo do século XX tratou de expor
visões complementares daquilo que define cientificamente o estudo da paisagem, que é a
análise integrada de fatores morfológicos e subjetivos. Este papel integrador da paisagem é
destacado por Meneses (2002) devido a capacidade de articular os saberes da natureza com os
saberes do ser humano. No entanto o autor distingue que paisagem e lugar não são sinônimos,
corroborando com Santos (2006) que define de tal forma:
A paisagem é o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as
heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e
natureza. O espaço são essas formas mais a vida que as anima. (SANTOS,
2006, p.66)

Foi assumindo o caráter amplo e integrador do conceito de paisagem que se permitiram avanços
no seu estudo no início do século XXI, destacando-se as ciências sociais como campo de atuação
multidisciplinar e ponto de interatividade científica. A geografia, à medida que aprofundou seus
estudos, também reconheceu seus limites de interpretação, abrindo caminho para outras áreas
do conhecimento. De fato, esse potencial multidisciplinar reside na subjetividade da relação
objeto x sujeito, que como descreve Ribeiro (2007, p.30), “não se reduz ao mundo em nossa
volta”. Citando o geógrafo francês Augustin Berque, lembra que o estudo da paisagem vai além
de uma simples morfologia do ambiente ou de um reflexo sobre o estado de espírito da
contemplação. Apesar de referida a objetos concretos existentes à nossa volta, seu estudo “não
reside somente no objeto nem somente no sujeito, mas da interação complexa entre os dois”
(RIBEIRO, 2007, p. 30).
Paulatinamente, durante o século XX, a concepção de patrimônio também absorve a paisagem
como elemento de proteção. O que se percebe é que com a relevância crescente das áreas de
entorno e das ligações imateriais no papel de salvaguarda dos bens, a instância patrimonial
acaba indo ao encontro do conceito de paisagem a fim de compreender bens cada vez mais
complexos.
Já em 1931, a Carta de Atenas decorre sobre as relações de ambiência e de experiência visual a
partir dos monumentos para os quais é atribuído um valor cultural. De início esta preocupação
busca resguardar a dimensão estética do monumento e seu entorno imediato, mas
posteriormente avança com a discussão internacional sobre meio ambiente no pós-guerra, que

1602
amplia a valorização do aspecto natural dos lugares, passando a considerar sítios cada vez mais
abrangentes.
Desde 1972, a UNESCO, através da Convenção para Proteção do Patrimônio Cultural e Natural,
aprovada em Paris, estabeleceu os critérios para inscrição dos bens na Lista de Patrimônio
Mundial. Esta classificação encontrava dificuldades ao separar bens naturais e bens culturais,
não havendo espaço para bens de caráter misto. Somente em 1992 adota a categoria de
Paisagem Cultural, “visando à valorização das relações entre o homem e meio ambiente, entre
o natural e o cultural” (RIBEIRO, 2007, pág. 41), definindo-a como “obras conjugadas do homem
e da natureza” que “ilustram a evolução da sociedade humana e sua consolidação ao longo do
tempo” (UNESCO, 2011, p.11).
Mais do que uma forma de classificação, ao adotar essa nova categoria, a UNESCO avança sobre
um antigo problema da sociedade, que é a preservação integrada de bens materiais e imateriais.
Meneses coloca que: “pelas vinculações com os processos identitários e a construção imaginária
de nação (ou parcelas suas), a paisagem fatalmente viria a se incluir entre os componentes do
patrimônio cultural” (MENESES, 2002, p.49).

2 – A CHANCELA BRASILEIRA E O CENÁRIO PÓS-RECONHECIMENTO DO RIO DE JANEIRO COMO


PAISAGEM CULTURAL PELA UNESCO
No Brasil, os tombamentos realizados até a década de 1960 pelo Serviço do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional – SPHAN – denotavam uma supervalorização dos bens arquitetônicos sob o
critério estético. No entanto, desde 1937 o Decreto-lei nº 25 instituía o Livro do Tombo
Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico (BRASIL, 1937). Até os anos 1960, apenas seis bens
estavam inscritos sob essa classificação. A partir da Carta de Veneza de 1964, houve maior
valorização dos conjuntos urbanos, refletindo o aumento de inscrições neste livro do tombo a
partir da década de 1970.
Somente após a acepção do conceito de paisagem cultural pela UNESCO, em 1992, que a
paisagem ganha reconhecimento efetivo como bem cultural e passa a ser incorporada e
valorizada pelos órgãos de preservação do Brasil. Em 2007, a fim de aprofundar as discussões
sobre essa questão patrimonial, o IPHAN promoveu a Jornada Paisagens Culturais: novos
conceitos, novos desafios, realizado em Bagé, Rio Grande do Sul. Neste encontro foi elaborada
a Carta de Bagé, documento que consolida os conceitos discutidos em nível nacional sobre o
tema da paisagem, e inaugura uma nova fase acerca do patrimônio cultural no país. No artigo 2

1603
o documento define a paisagem cultural como “o meio natural ao qual o ser humano imprimiu
as marcas de suas ações e formas de expressão” (IPHAN, 2007, p.1).
À luz da Carta de Bagé, o IPHAN articulou os primeiros estudos com enfoque efetivo na paisagem
em diversos lugares do território brasileiro, a fim de avançar sobre esta nova categoria de
preservação.
Em 2009, através da portaria nº 127, o IPHAN instituiu a Chancela de Paisagem Cultural Brasileira
como novo instrumento de preservação do patrimônio cultural, definindo-a como “uma porção
peculiar do território nacional representativa do processo de interação entre homem com o
meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores”
(IPHAN, 2009, p.17). Acerca da qualificação dada pelo termo “peculiar”, a técnica Maria Regina
Weissheimer esclarece que a diferenciação se faz necessária “para que não se caia no
generalismo de que tudo é paisagem cultural e, portanto, passível de chancela pelo Iphan”
(WEISSHEIMER, 2012.p. 3).
Distante do conceito de tombamento, a portaria definiu o título de “Paisagem Cultural
Brasileira” a partir de uma chancela, ou seja, um selo emitido e monitorado pelo órgão de
preservação nacional, passível de destituição caso sua manutenção não seja contínua, sendo
revista a cada decênio. No entanto, não é estabelecida nenhuma metodologia ou estratégia
detalhada para avaliar a manutenção do bem no conteúdo da portaria. Sobre o caráter flexível
do novo instrumento de preservação, a Coordenadoria de paisagem cultural do IPHAN justificou
que sendo esse um conceito tão amplo “foi preciso pensar em um instrumento igualmente
abrangente, suficientemente flexível para adaptar-se a contextos tão variados e distintos”
(IPHAN, 2011a, p. 9).
Cabe ressaltar que os movimentos feitos pelo órgão nacional neste período se devem, em
grande parte, aos esforços para indicação do Rio de Janeiro para compor a lista do patrimônio
mundial da UNESCO. Conforme destacam Figueiredo (2014) e Pereira (2020), foi nesse contexto
de valorização da categoria para inscrição da paisagem cultural urbana do Rio de Janeiro que o
IPHAN produziu reflexões teóricas sobre o tema, e que acarretaram em desdobramentos nas
políticas nacionais do patrimônio. A inscrição da paisagem carioca na lista da UNESCO ocorreu
em 2012 e apenas os elementos naturais vinculados aos monumentos foram relacionados
(FIGUEIREDO, 2014). Sobrou para o órgão nacional e o instrumento da chancela a discussão e a
gestão sobre os assentamentos urbanos. Nesse sentido, cabe salientar o esforço do IPHAN em
discorrer sobre um caminho próprio.

1604
Após os esforços para conquista da inscrição do Rio de Janeiro como a primeira paisagem
cultural urbana patrimônio mundial, a expectativa frente ao desenvolvimento de uma política
nacional de preservação em relação a esta categoria esbarrou nas deficiências da gestão
compartilhada.
Tais limitações foram explicitadas, sobretudo, por meio de dois projetos de
inventários temáticos gestados no âmbito da Superintendência do Iphan em
Santa Catarina: os Roteiros Nacionais de Imigração e os Barcos do Brasil.
(PEREIRA, 2020, pág. 179)

O projeto Roteiros Nacionais de Imigração pode ser entendido como a primeira experiência na
tentativa de uma proteção da paisagem cultural brasileira, proposta pelo IPHAN, mas que
esbarrou nas indefinições metodológicas para chancela e gestão como paisagem cultural, sendo
desde o princípio conduzido como um processo de tombamento. O próprio dossiê de
tombamento (IPHAN, 2011b) trata este inventário temático sob o conceito de paisagem cultural.
Sobre as pretensões do projeto, que resultou no tombamento de 61 bens, Pereira (2020) resume
que “pretendia não apenas inventariar e tombar bens, mas estabelecer linhas de promoção e
fomento do patrimônio que possibilitasse a preservação das paisagens rurais” (PEREIRA, 2020;
pág. 179).
O mesmo processo recomendou para tombamento os núcleos rurais de Testo Alto (Pomerode)
e de Rio da Luz (Jaraguá do Sul) na qualidade de paisagem cultural, sendo ainda escassos os
procedimentos sobre o tema dentro da instituição. De certa forma o encaminhamento dado
pelo parecer do conselho acreditava na efetividade da Portaria nº 127/ 2009, recém
promulgada. No entanto, mais tarde, estes dois núcleos tiveram sua proteção efetivada pelo
instrumento de tombamento e não pela chancela de paisagem. Mesmo assim, foram propostas
algumas estratégias de gestão integrada com o estado e os municípios, objetivando a concepção
inicial do projeto. Porém, o que decorreu no período seguinte ao tombamento foram alguns
pedidos de impugnação dos bens tombados, liberação de novos loteamentos em áreas
protegidas pelos municípios, abandono das ações de educação patrimonial e ausência de
implementação das ações de fomento ao turismo, previstos como pacto de gestão integrada
(WEISSHEIMER, 2012).
Outros estudos no escopo da paisagem cultural foram desenvolvidos paralelamente, como o
projeto Barcos do Brasil proposto pelo IPHAN, bem como inventários provenientes da demanda
social como o Inventário de Conhecimento do Vale do Ribeira de Iguape (SP) e o Inventário de
Conhecimento do Rio São Francisco (MG, BA, PE, AL e SE) foram produzidos. Durante a vigência

1605
da Portaria nº 127/2009 até o presente estudo, nenhuma paisagem cultural brasileira recebeu
a chancela protetiva do IPHAN.
Coincidentemente, foram indicativos desse período os tombamentos e registros no âmbito
federal caracterizados pela relevância crescente da paisagem cultural, relacionando aspectos
materiais e imateriais dos bens passíveis de salvaguarda, como é o caso do Núcleo Urbano de
Santa Tereza (2010) e do Conjunto Histórico de Pelotas (2018) e das Tradições Doceiras da
Região de Pelotas e Antiga Pelotas (Arroio do Padre, Capão do Leão, Morro Redondo, Turuçu),
ambos no Rio Grande do Sul.
Zaniratto (2020) destaca que foi justamente a dificuldade de implementação das ações de
ordenamento e de gestão um dos fatores preponderantes a levar o IPHAN a suspender a
portaria, encaminhando-a para revisão.

A ampliação do reconhecimento da complexidade protetiva fez com que, em


junho de 2015, seis anos após o estabelecimento da chancela da Paisagem
Cultural, o Iphan elaborasse o Memorando nº 384, orientando quanto à
eliminação da proposta de chancela da paisagem. (ZANIRATTO, 2020, p. 23)

Em 2017 um grupo de trabalho interdisciplinar foi designado pelo IPHAN para revisão da
portaria. A nova proposta bem como o relatório técnico resultante foram encaminhados à
consulta pública no ano de 2019, mas a definição dos termos finais segue em aberto até a
conclusão deste artigo, apesar de a Portaria nº 375 de agosto de 2018, que institui a Política do
Patrimônio Cultural Material - PPCM - determinar o prazo de três meses para publicação da
revisão da chancela (IPHAN, 2018).

3 – A REVISÃO DA CHANCELA EM DISCUSSÃO


Diante do silêncio imposto desde 2015 sobre o ordenamento de preservação da paisagem
cultural no Brasil, a fim de compreender quais as perspectivas para o futuro da política
envolvendo esta categoria, o estudo procede com uma revisão crítica documental sobre
elementos do Relatório Técnico (IPHAN, 2019a), do Quadro Comparativo (IPHAN, 2019b) e da
Minuta (IPHAN, 2019c) para nova portaria, disponibilizados para consulta pública na página
eletrônica do IPHAN, a fim de analisar as principais recomendações feitas pelo Grupo de
Trabalho – GT.
O relatório técnico apresentado, composto de 38 páginas, faz uma revisão sobre os conceitos
chave e a aplicabilidade da chancela, apresentando consensos e divergências existentes no
próprio grupo de trabalho, o que de certa forma auxilia a compreender os pontos de conflito.

1606
Exemplo disso é a própria revisão na definição de “paisagem cultural brasileira”. No relatório
opta-se por apresentar duas definições consideradas válidas para revisão: a primeira opção
(presente no artigo 1º da portaria nº 127/2009), mais ampla e generalista com enfoque sobre o
território; a segunda proposta (redação formulada pelo GT), mais focada na relação dos grupos
sociais ligadas ao território:
Art. 1º (Opção 2 – Redação formulada pelo GT) Paisagem cultural brasileira é
o resultado da interação entre grupos sociais e natureza, expresso por meio
de práticas culturais em curso, associadas a um território específico,
compondo um sistema de relações que se refere à identidade, memória e
ação dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (Relatório
Técnico IPHAN, 2019, p. 6)

Sobre a manutenção da primeira opção pesa a crítica de ser uma definição muito abrangente, e
pouco seletiva. Por outro lado, sobre uma eventual mudança, recai a avaliação positiva feita por
trabalhos acadêmicos e parceiros internacionais à definição original (Opção 1), devido à
qualidade abrangente compatível com o caráter integrador do conceito de paisagem cultural.
Porém, quando avaliado o relatório em sua totalidade, a opção 2 demonstra maior coerência
em razão do destaque dado aos grupos sociais para a nova versão da portaria, assumindo papel
determinante para concessão e manutenção da chancela.
A revisão também propõe uma definição mais apurada dos instrumentos operacionais para
gestão do título, separando principalmente o Pacto do Plano de Gestão, anteriormente
entendidos como um único instrumento. O Pacto (capítulo V) passa a ser peça inicial do
processo, que deve ser firmado entre os agentes que atuam na paisagem cultural antes da
concessão da chancela. Posteriormente à concessão do título, segue o Plano de Gestão e
Monitoramento (capítulo VI) que complementa o Pacto para coordenar as ações de preservação
em curto, médio e longo prazo, gerido por um Comitê de Acompanhamento formado no âmbito
local, que relata ao IPHAN suas implementações. Cabe ao órgão federal, avaliar, revisar e ainda
cancelar o título, em caso de perda irremediável de valores e características do bem.
Do ponto de vista administrativo, a revisão propõe a segmentação do processo preliminar em
duas etapas: análise documental e análise de pertinência. A análise documental verifica a
existência da documentação mínima para embasamento da proposta, enquanto que a análise
de pertinência é feita pela Comissão Interdepartamental acerca do prosseguimento para
elaboração do Pacto ou para o encerramento do processo. Há ainda expresso no relatório e na
minuta opções propostas pelo GT para os trâmites internos após o parecer favorável de

1607
concessão da chancela (artigo 13º) e para cancelamento da chancela (artigo 20º), envolvendo
ou não o Conselho Consultivo em tais decisões.
De modo geral, o protagonismo dos grupos sociais é a mudança fundamental da proposta,
requerida desde a fase inicial de instauração do processo. Ou seja, a nova proposta torna a
chancela uma demanda obrigatoriamente resultante dos grupos sociais, que deve manifestar
seu interesse na instauração do processo administrativo (conforme artigo 6º). A nova portaria
também propõe a constituição de uma “Comissão Interdepartamental da Paisagem Cultural”
pelo Iphan, responsável por analisar a documentação e dar continuidade ao processo.
Cabe aqui questionar se, delegando apenas à demanda social, o órgão federal não assume uma
postura demasiado passiva na sua função de identificar esses bens dentro do território nacional,
com base no próprio instituto da PPCM que rege as ações de preservação de bens materiais, do
qual a paisagem cultural é um dos escopos. Nesse sentido, parece perpassar nesta revisão o
peso das experiências frustradas de gestão compartilhada da paisagem cultural, como
observado no caso dos Roteiros Nacionais de Imigração. No entanto, é inegável o valor cultural
documentado sobre aquela paisagem cultural, resultante do longo trabalho do IPHAN. Assim,
delegar apenas à vontade popular o fomento da chancela, pode ser um descaminho, uma vez
que é sabido na realidade brasileira que os instrumentos e órgãos de preservação geralmente
são acionados em decorrência da degradação ou risco de perda dos bens.
Apesar das mudanças propostas, paira sobre o instrumento revisado a dúvida sobre a sua
efetividade como caminho à salvaguarda e proteção da paisagem cultural, uma vez que a
Chancela pode ser entendida como apenas um instrumento de reconhecimento (IPHAN, 2018,
p.12), sem obrigações legais ao IPHAN sobre a proteção desses bens, a fim de resguardar a
instituição e o Estado de qualquer penalização sobre a ingerência destes patrimônios.
Neste sentido, ao citar o documento Reflexões sobre a Chancela da Paisagem Cultural Brasileira
(IPHAN, 2011a), Zaniratto (2020) recorda que
o próprio Iphan reconheceu que a chancela não é, na verdade, o instrumento
mais adequado e não tem a mesma ação de proteção que o tombamento,
pois não consegue impedir por meio de sanções ou restrições administrativas
e/ou jurídicas a transformação da paisagem. (ZANIRATO, 2020, pág. 27)

Um caminho possível seria mencionar e colocar à disposição junto ao ato da Chancela a


possibilidade de implementar outros instrumentos para proteção legal do patrimônio, como o
tombamento e o registro, que juntamente com o Plano de Gestão, constituiriam uma rede de
ações para salvaguarda. Os instrumentos de proteção das esferas estaduais e municipais

1608
também poderiam ser relacionados como recurso protetivo, haja vista a necessidade do pacto
permear os diversos níveis da federação.
Em última análise, a proposta de revisão da chancela corrige as ausências de definição dos
instrumentos de gestão e dos trâmites processuais, mas não avança sobre as consequências em
caso de perda da Chancela, interpretado aqui como único ato penal dado à má
gestão/manutenção da paisagem cultural por seus agentes. Neste caso, a penalidade maior é a
perda cultural do próprio bem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Evidencia-se, portanto, que a proposta de redação da portaria corrige algumas omissões da
versão anterior, mas de modo geral, não contribui para clarificar a compreensão social sobre o
instrumento. Entendimentos importantes descritos pelo relatório não foram totalmente
expressos pela redação dada à minuta, podendo gerar entraves na difusão e no entendimento
sobre os objetivos da Chancela. Considera-se oportuno que algumas das definições não ficassem
restritas apenas ao relatório, mas que pudessem compor a normativa de forma a dirimir os
pontos de subjetividade.
Haja vista a convergência indissociável dos aspectos materiais e imateriais sobre a paisagem, a
revisão deveria enfrentar estas duas dimensões da salvaguarda. Mencionar instrumentos de
proteção como complemento ao Plano de Gestão seria um caminho para transformar a Portaria
nº 127/2009 do IPHAN em um instrumento de preservação, e não apenas de reconhecimento.
Quanto mais o ordenamento da paisagem se afastar deste caráter dual que a define, mais
distante estaremos de um instrumento comprometido com a sua preservação. É preciso evitar
o caminho preguiçoso que polariza materialidades e imaterialidades desta problemática, como
observa Ulpiano Bezerra de Meneses. Pior do que não enfrentá-la, é permanecer no silêncio e
na ausência da política brasileira sobre o tema.

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1611
PAISAGENS EM ESTADO DE PERFORMANCE: notas introdutórias a performatividade
das paisagens psicossociais em Rubiane Maia
NóCego - Outros silêncios.

Lindomberto Ferreira Alves


Mestre em Artes – PPGA/UFES
lindombertofa@gmail.com

Este texto situa em perspectiva a figura conceitual performatividade das paisagens psicossociais,
a qual delineia uma das linhas de força que perfazem os processos criativos da artista multimídia
Rubiane Maia (Caratinga/MG, 1979). Tendo como aporte teórico as noções de
performatividade, de Richard Schechner (2013), e de paisagens psicossociais, de Suely Rolnik
(2011) e, tomando, ainda, como gatilho imagético a performance “Ensaio de casamento
(vermelho-mulher)” (2011), aborda-se, aqui, a tendência desta linha de força em haver-se
eticamente com a cartografia dos fluxos de intensidades que escapam, desorientam e
desestabilizam as representações atreladas às paisagens psicossociais vigentes. Perseguimos,
portanto, a hipótese de que, em Rubiane Maia, ela opera em favor da construção de
perspectivas mais expansivas de relações entre arte e vida.
Palavras-chave: Rubiane Maia; paisagens psicossociais; performatividade; arte e vida; arte
contemporânea brasileira.

This text puts into perspective the conceptual figure performativity of psychosocial landscapes,
which outlines one of the lines of force that make up the creative processes of the multimedia
artist Rubiane Maia (Caratinga/MG, 1979). Taking the notions of performativity, by Richard
Schechner (2013), and of psychosocial landscapes, by Suely Rolnik (2011), as theoretical support,
and also taking the performance "Wedding Rehearsal (Red-Woman)" (2011) as an imagetic
trigger, we address here the tendency of this line of force in dealing ethically with the
cartography of the flows of intensities that escape, disorient and destabilize the representations
linked to the psychosocial landscapes in force. We pursue, therefore, the hypothesis that, in
Rubiane Maia, it operates in favor of the construction of more expansive perspectives of relations
between art and life.
Keywords: Rubiane Maia; psychosocial landscap; performativity; art and life; contemporary
brazilian art.

1612
1 – Introdução
Partimos, aqui, do pressuposto de que os mundos que habitamos são paisagens fugazes em
constante movimento, denominadas por Suely Rolnik (2011) como paisagens psicossociais –
forjadas a partir do encontro entre corpos, agenciamentos e cristalizações de desejo. Inspirados
neste pressuposto, bem como na premissa de que estas “paisagens psicossociais são
cartografáveis” (ROLNIK, 2011, p. 23), artistas contemporâneos de diferentes contextos
nacionais vêm vislumbrando, muito seriamente, na contestação dos modos históricos de
delineamento das paisagens psicossociais, a conjugação, via práticas artísticas, de um
pensamento crítico acerca dos modos de subjetivação que incidem sobre a construção de si pelo
outro e por nós mesmos. Práticas que cotejam a efetividade de um tipo de simbolização e de
cognição não alienada entre arte, vida e obra, que nos aproxima de uma batalha que, não por
acaso, diz respeito à célebre questão foucaultiana1, reformulada por Leila Domingues (2010, p.
19) da seguinte maneira: o “que estamos ajudando a fazer do que vem sendo feito de nós?”.
Em face deste campo de problematização, há no Brasil e, mais especificamente, no Espírito
Santo – entre várias trajetórias artísticas que realizaram e/ou realizam trabalhos vigorosos nessa
direção – um caso exemplar, o da artista multimídia Rubiane Maia (Caratinga/MG, 1979). Mais
do que um dos importantes nomes da geração de performers brasileiros e estrangeiros, à qual
pertence – bem como um dos nomes centrais da produção contemporânea em Artes Visuais, no
Espírito Santo, surgidos no começo do século XXI – trata-se de uma artista que traça linhas de
fuga às paisagens psicossociais historicamente normalizadas. Artista cujo tempo da criação ativa
uma certa “micropolítica da delicadeza” (SILVA, 2011, p. 113), com o objetivo de propor
questões sobre os usos do corpo na arte e no cotidiano que incitem o desencarceramento dos
modos de funcionamento vigentes da vida, a fim de que esta “seja vivida através de um corpo
intensamente afetado” (Idem).
Nesses termos, o presente texto aborda a tendência no âmbito do projeto poético dessa artista,
em haver-se eticamente com a cartografia dos fluxos de intensidades que escapam,
desorientam e desestabilizam as representações atreladas às paisagens psicossociais
hegemônicas. Tendo como aporte teórico as noções de performatividade, de Richard Schechner
(2013), e de paisagens psicossociais, de Suely Rolnik (2011) e, tomando, ainda, como gatilho
imagético a performance “Ensaio de casamento (vermelho-mulher)” (2011), busca-se, aqui,
situar em perspectiva o que proponho chamar de performatividade das paisagens psicossociais.

1
Ver (FOUCAULT, 2005).

1613
Figura conceitual que delineia uma das linhas de força que perfazem os processos criativos dessa
artista, a saber: a instauração de mundos mais complexos, afeitos à potência ética, estética e
política dos atos performativos que agenciam as dimensões socioculturais e simbólicas da vida
cotidiana.
Perseguimos, portanto, a hipótese de que a noção de performatividade das paisagens
psicossociais inocula uma matriz de pensamento e ação em relação ao projeto poético da artista,
que poria em evidência esta dimensão ético-estético-política constitutiva ao modo singular
como Rubiane Maia vale-se da cartografia das paisagens psicossociais vigentes para evocar um
éthos e uma atitude crítica que inauguram novos mundos, modos inéditos de trabalhos sobre
si, metamorfoses e experimentações de sua corporeidade em seus respectivos espaços-tempos
de existência, em favor de uma perspectiva mais expansiva de relações entre arte e vida.

2 – Performatividade das paisagens psicossociais


É Richard Schechner quem, no contexto de expansão da noção de performance, na década de
1970, evoca e insere o termo ‘performatividade’ no cerne da elaboração de sua teoria da
perfomance – consubstanciando o campo dos estudos da performance e dos estudos culturais.
O transbordamento que sua teoria suscita visa o interesse pela investigação do comportamento
humano – seja ele ritualístico, artístico, cotidiano, esportivo, dentre outros – e isso se deve por
ele partir da premissa de que “todos fazemos mais performances do que percebemos”
(SCHECHNER, 2013, p. 34). A performance seria “um modo operante que Schechner chama de
performatividade e pode ser tomado como modelo por diversas áreas” (VILLEGAS, 2018, p. 76),
promovendo, assim, uma tendência à complementariedade entre os estudos da arte da
performance – até então circunscritos no âmbito do universo artístico – e aqueles das outras
áreas do conhecimento.
O que estaria em disputa é a performance como ação, como experiência e competência comum
– isto é, a noção de performance sugeriria, aí, um sentido de ‘execução’ e de ‘desempenho’ –
de performatividade – mais abrangentes e não restritos à dimensão estética da arte, e, portanto,
intimamente ligado às dimensões socioculturais e simbólicas do agir humano. Cumpre destacar
que na base da abordagem de Schechner sobre o termo ‘performatividade’ estão as pesquisas
relacionadas ao desenvolvimento da noção de ‘performativo’, cunhada por John Langshaw
Austin, em meados da década de 1950, a partir da ‘Teoria dos Atos de Fala’2. Se para Austin

2 Ver (AUSTIN, 1990).

1614
(1990) a linguagem é performativa, ou seja, tem o poder de agir – assumindo seu caráter
autorreferente e constitutivo de realidades sociais – ela assim o é pelo fato do termo
‘performativo’ ser tomado como “uma abstração dos aspectos gerais e que promove a
concentração da atenção na ação do sujeito, sua força e suas consequências no mundo”
(VILLEGAS, 2018, p. 48). A esse respeito, note-se que a tese de Austin sobre o caráter
performativo da linguagem implica o entendimento de que a “realidade do sujeito que diz, do
corpo que fala e age, é performativamente produzida in situ pelo que é dito e feito” (BORBA,
2014, p. 448). Seguindo as pistas de Austin no campo linguístico, Richard Schechner encontrou
subsídios para pensar e abordar o caráter performativo intrínseco às dimensões socioculturais
e simbólicas do agir humano. Com isso, ele não só alarga a noção de ‘performance’ – uma vez
que, ao transpor as considerações de Austin a respeito do termo ‘performativo’ para o campo
dos estudos da performance, a noção de ‘performance’ difundida por ele passa a considerar que
tudo pode ser estudado “como se fosse” performance – mas, também, alude para o quanto que,
sob essa distensão, as noções de ‘performance’ e ‘performatividade’ se complementam,
precisamente por estarem em movimentos de pressuposições recíprocas.
Sem adentrar nas sinuosidades do debate teórico estabelecido por Schechner, importa frisar
que tal entendimento – intimamente vinculado à discussão sobre o caráter performativo da
linguagem – leva-o a pensar no caráter performativo das diferentes escalas de performance3
que perfazem as gestualidades cotidianas – aparentemente espontâneas, únicas e originais –
inseridas em uma rede de citações e repetições atreladas ao universo simbólico e
representacional do agir humano. Essas reiterações mobilizam inúmeras formas de recuperação
e de trabalho sobre o comportamento. E, portanto, para Schechner, a investigação dos
processos envoltos na restauração dos comportamentos – na multiplicidade de modos de
representações dos sujeitos no mundo – possibilitaria traçar um caminho capaz de perscrutar a
intricada relação entre performance e performatividade. Assim, ao se fixar a atenção nos
processos de reiterações que agenciam os acontecimentos em nossas vidas, Schechner
reconhece neles um espaço de aprendizagem e de representação similar ao do universo artístico
e, dessa forma, passível de ser abordado sob o signo da performance.
Aliás, segundo Richard Schechner, ainda que haja distinções entre as diversas escalas de
performance – entre as diversas formas de performance – o fenômeno da performance em si
explicita e expõe muito bem os mecanismos performativos da própria vida. Schechner evoca,

3 Ver (SCHECHNER, 2013).

1615
portanto, a noção de ‘performatividade’ “como um conceito operativo de abordagem ao
comportamento” (VILLEGAS, 2018, p. 31), ligado, também, às dimensões socioculturais e
simbólicas do agir humano. Nele, ao mesmo tempo em que a performatividade coloca em
evidência as reiterações performativas que atravessam as ações – das mais simples e
corriqueiras, passando pelos rituais e pelas artes – chama a atenção, também, “para o caráter
irrepetível, transitório e, por isso, irreprodutível dos acontecimentos” (CROCHIK & CORTI, 2018,
p. 2), uma vez que “a repetição implica uma transformação e a transformação advém de um
longo processo de repetições” (Idem) que colocam, em jogo, “formas não previstas de atuação
[que] podem vir à tona e representar, pela sua simples aparição, um questionamento e uma
ameaça a certa estrutura estratificada de relações” (Idem) do agir humano.
Entretanto, ao contrário do que se pode imaginar, as noções de ‘performance’ e de
‘performatividade’ propostas por Richard Schechner, ao invés de instaurar uma contraposição
entre estudos da performance e a performance art, possibilitou, na verdade, “uma abertura para
maior reciprocidade entre os estudos da arte da performance e aqueles das outras áreas do
conhecimento” (VILLEGAS, 2018, p. 30). Isso porque, apesar do lastro multifacetado de campos
de significações em que essas noções estão implicadas, um dos campos que tensiona a
confluência entre os estudos da performance e da performance art – a partir do modo como
Schechner aborda as noções de ‘performance’ e ‘performatividade’ – diz respeito, justamente,
à indiscernibilidade entre arte, vida e obra. Os próprios exemplos utilizados por Richard
Schechner ao longo do desenvolvimento de sua teoria da performance nos dão indícios dessa
confluência. Indícios esses que encontram eco e explicitação histórica, por exemplo, nas
proposições do artista norte-americano Allan Kaprow – criador dos happenings e considerado
como um dos precursores da performance art – tendo em vista que este, refletindo sobre a
“indefinição em que seu trabalho teria sido colocado, como ‘não sendo nenhuma forma de arte’,
aproveitou o ensejo para falar de uma ‘arte-como-vida’, diferentemente de uma ‘arte-como-
arte’” (ACÁCIO, 2011, p. 22).
Segundo a leitura realizada por Schechner, ao disporem o fazer artístico em relação direta com
as ações cotidianas da vida, os artistas vinculados aos happenings e à performance art lançaram
uma lente de aumento sobre o próprio caráter performativo da vida – consubstanciando seu
argumento sobre a ampliação do escopo de análise sobre os estudos da performance. Nesse
domínio, ao mesmo tempo em que o termo ‘performatividade’ torna-se difícil de ser definido –
em virtude da abrangência evocada pela teoria da performance de Richard Schechner – essa sua
“indefinição”, desencadeada de modo especial pela interpenetração dos limiares entre arte,

1616
vida e obra, possibilitou que o termo excedesse os desígnios do universo essencialmente
artístico. Disso resulta o entendimento, por exemplo, de que não apenas os atos performativos
engendrados a partir do campo artístico sejam capazes de tensionar novas realidades sociais –
como evocam aqueles que seguem o rigor da “arte-como-arte” – mas os atos performativos que
caracterizam o comportamento humano em geral também emulariam essa potência.
Note-se que a teoria da performance schechneriana, naquilo que nela diz respeito à premissa
de que “todos nós temos a capacidade (como performers) de transformar nossas ações
cotidianas em performances” (Ibidem, p. 23) – ou seja, de que a performatividade perpassa,
também, as dimensões socioculturais e simbólicas do agir humano – não enfraquece os
parâmetros de análise da performance art. Ao contrário, reverbera e corrobora com as
discussões que a indiscernibilidade entre arte, vida e obra impõe ao campo de estudos da arte
da performance. Afinal de contas, como lembra Renato Cohen:
[...] tomando como ponto de estudo a expressão artística performance, como
uma arte de fronteira, no seu contínuo movimento de ruptura com o que
pode ser denominado ‘arte-estabelecida’, a performance acaba penetrando
por caminhos e situações antes não valorizadas como arte. Da mesma forma,
acaba tocando nos tênues limites que separam arte e vida. (COHEN, 1989, p.
38)

Aí, os atos artísticos operados no enredamento entre arte e vida não diz apenas da incorporação
aos processos de criação de “elementos inspirados no cotidiano, que possibilitam um aumento
de seus potenciais criativos” (ACÁCIO, 2011, p. 24). Pois ao “colocar[em] em diálogo fragmentos
de sua vida e o processo de criação da obra” (Idem, p. 25), lançando “mão de materiais de seu
cotidiano e de sua própria vida” (Idem), os artistas fazem de seus territórios de existência, dos
seus próprios modos de vida, uma obra de arte continuamente em processo. Assim, a
performatividade que quer unir arte e vida – aquela cujo ato criativo expõe como intenção a
instauração de poéticas a partir do cotidiano, dos atos comuns de vida – não diria respeito
apenas ao “eu do artista [que] passa ser, simultaneamente, sujeito e matéria-prima de sua obra”
(Idem). Indo além, diria respeito ao cenário de todo um modo de existência, no qual estão
implicadas as dimensões socioculturais e simbólicas da vida, e que Suely Rolnik (2011, p. 23)
denomina de “paisagens psicossociais”. E isso porque, no âmbito dessa natureza de intenção,
“não é apenas um perfil subjetivo que se delineia, mas também e indissociavelmente, um perfil
cultural” (ROLNIK, 1997, p. 28). Aliás, conforme nos lembra Suely Rolnik (Idem), “não há
subjetividade sem uma cartografia cultural que lhe sirva de guia; e, reciprocamente, não há

1617
cultura sem um certo modo de subjetivação que funcione segundo seu perfil. A rigor, é
impossível dissociar estas paisagens”.
Segundo essas considerações, a performatividade que teria por intenção a indiscernibilidade
entre arte, vida e obra, eticamente teria a ver com o que proponho chamar, aqui, de
performatividade das paisagens psicossociais, pois ao forjar poéticas a partir dos atos comuns
da vida, o performer, a cada ato criativo, inauguraria um ethos e, junto com ele, mundos
possíveis que dariam a ver realidades sociais ainda inexploradas. A performatividade das
paisagens psicossociais consistiria, portanto, numa espécie de abertura ao finito ilimitado dos
possíveis da existência humana, que nos levaria a circular por desconhecidos territórios de
existência, à medida que experimentamos “situar circunstâncias capazes de dispor novas
paisagens” (SILVA, 2011, p. 25). Afinal, como pontua Rubiane Maia (Idem, p. 95), “nessas
paisagens múltiplas, variadas, somos desafiados em tantas cores, nuances, enfim, emaranhados
de possíveis”.
Quanto mais o perfomer investe na produção de obras urdidas a partir de poéticas
autorreferentes e coadunadas com a noção de work in progress (trabalho em progresso ou obra
inacabada), maior será a sua capacidade de empreender um mergulho na malha de processos e
devires que percorrem os agenciamentos dessas paisagens psicossociais – à disposição não só
do performer, mas de todo o corpus coletivo afetado por elas. O que equivaleria a dizer que, aí,
a performance estaria ligada a “toda uma coordenada semiótica, ética, estética e política da
existência humana e inumana” (PERONILIO, 2015, p. 2), cujo processo criativo – que tenderia a
ser realizado como uma espécie de cartografia das paisagens psicossociais – daria a ver a
performatividade “como poética que nos desvia do mesmo, e contamina, via forças
micropolíticas, na invenção de novos mundos neste mundo” (SILVA, 2011, p. 8). Equivaleria a
dizer, também, que a prática de um performer, aí, assemelharia-se ao modo como Suely Rolnik
(2011, p. 23) vê a prática de um cartógrafo, pois deste se “espera basicamente que esteja
mergulhado nas intensidades de seu tempo e que, atento às linguagens que encontra, devore
as que lhe parecerem elementos possíveis para a composição das cartografias que se fazem
necessárias”. Equivaleria a dizer, ainda, que a performatividade das paisagens psicossociais diria
respeito a espaços-tempos em que as referências que cotejam as dimensões socioculturais e
simbólicas da vida seriam todas desterritorializadas e embaralhadas, intensificando e
potencializando a formação de mundos mais complexos, afeitos à potência poética dos atos
performativos em suas instâncias ética, estética e política.

1618
Os signos experimentariam, assim, um pluralismo surpreendente (PERONILIO, 2015), com os
quais o ethos se dobraria, desdobraria e redobraria, tonificando a abertura de fendas,
passagens, brechas, desvios, bifurcações, por onde percorreriam ilimitadas formações
provisórias de potência de possíveis. Atenta à escuta da força instituinte “que o desejo imprime
na condição humana desejante” (ROLNIK, 2011, p. 68), a performatividade das paisagens
psicossociais assumiria, então, o caráter catártico, transgressor e subversivo da própria vida
como “espaço de emergência de intensidades sem nome; espaço de incubação de novas
sensibilidades e de novas línguas ao longo do tempo” (Idem, p. 69).

3 – Notas introdutórias a performatividade das paisagens psicossociais em Rubiane Maia


No caso das performances de Rubiane Maia, o que podemos observar é que a artista parece
dispor os atos performativos como âmbito propício à reflexão “[d]os modos de vida que estão
se constituindo, [d]as subjetividades que estão se produzindo” (SILVA, 2011, p. 8), em meio aos
regimes reguladores e normativos das paisagens psicossociais vigentes, que requisitam a
repetição de formas e padrões pré-estabelecidos de comportamento. Parece percorrer, em suas
ações performativas, uma espécie de compromisso com uma atitude fundamentalmente
política e ética, que opera seu saber-fazer artístico em favor da composição de cartografias que
dêem passagem à “tensão fecunda entre fluxo e representação” (ROLNIK, 2011, p. 67) – motor
da criação de sentidos e da produção de realidade.
Cada ação performativa empreendida pela artista parece falar de um uso bastante consciente
da performatividade como via por onde proliferam linhas de fuga que fazem choque com as
dimensões socioculturais e simbólicas privilegiadas hegemonicamente. O que implica dizer que,
a cada ação, Rubiane Maia agencia a performatividade para o exercício ativo e constante de um
tipo de sensibilidade liminar, capaz, não só, de colocá-la “na adjacência das mutações das
cartografias, posição que lhe permite acolher o caráter finito ilimitado do processo de produção
de realidade, que é o desejo” (Idem); mas, também, de apreender os movimentos que disparam
a invenção de “novos modos, outros possíveis, intensas relações espácio-temporais, [...] que em
sua constituição embaralha[m] os códigos, aciona[m] ritmos e experimentações, que
provoca[m] certas aberturas e misturas entre corpos” (SILVA, 2011, p. 8).
Ora, se é na direção do acompanhamento desse campo extremamente dinâmico, efêmero e
transitório – que é o da perscrutação e o da produção de realidades psicossociais – que Rubiane
Maia caminha, a performatividade das paisagens psicossociais que a artista engendra em seus
trabalhos parece ter como mote a emergência de cartografias, cujas corporeidades e visões de

1619
mundo, que aí se insinuam, permitam a “ampliação do alcance do desejo” (ROLNIK, 2011, p. 70).
E isso por uma razão muito simples: o desejo, conforme destaca Suely Rolnik, “em seu caráter
de produtor de artifício, ou seja, de produtor de sociedade” (Idem), é, precisamente, aquilo que
sustentaria “a vida em seu movimento de expansão” (Idem).
Desse modo, no universo artístico de Rubiane Maia, também é possível vislumbrar essa linha de
força percorrendo as diferentes “fases” que correspondem às diferentes sequências de sua
obra. Envolvidos por essa linha de força, os trabalhos da artista expõem o interesse confesso em
inquirir e dar expressão às intensidades que percorrem seu corpo no encontro com as paisagens
psicossocais, cuja formação ela acompanha e flexiona por meio de seus atos performativos.
Neles, testemunhamos uma corporeidade em duplo. Ao passo que uma embarca na cartografia
dos fluxos de intensidades que escapam, desorientam e desestabilizam as representações
atreladas às paisagens psicossociais vigentes; a outra expressa a constituição fugaz de territórios
de existência e de realidades onde os movimentos do desejo convocam “outros odores,
rumores, palavras, imagens, cores, texturas, gestos, danças, cheiros, olhares...” (SILVA, 2011, p.
8).
É o caso, por exemplo, dos processos que levam à produção do trabalho “Ensaio de casamento
(Vermelho-Mulher)” (2011) (Figura 01). Neste trabalho, o que definitivamente não passa ileso à
performatividade de Rubiane Maia é o campo do imaginário simbólico, cujas práticas perfazem
o cenário de todo um modo de existência que agencia a experiência feminina no mundo. Em
especial, as problemáticas vividas pelo corpo feminino frente às representações que inoculam a
repetição ritualizada de formas particulares de comportamento e que orbitam, por exemplo, o
rito do casamento e a mitologia do amor romântico. O que impele e sustenta a
performatividade, nesse trabalho, parece ser o desafio à percepção do senso comum de que o
comportamento implica a expressão de um “eu” essencial. Este, que supostamente deveria se
expressar no âmbito do rito do casamento e na mitologia do amor romântico, estaria a serviço
dos códigos de significação que subjazem aos processos de regulação e normalização que
impõem, aos corpos das mulheres, todo tipo de constrangimento e de violência simbólica e real.

1620
Figura 01: Rubiane Maia, Ensaio de casamento (Vermelho-Mulher), 2011. Performance. Vitória/ES.

Fonte: Acervo pessoal da artista. Fotografia Joana Quiroga.

Assim, Rubiane lança mão do uso de elementos que corroboram com a naturalização desses
códigos de significação – o vestido de noiva, as cartas de amor, os grãos de arroz, a naftalina –
operando com eles a composição de uma cartografia via repetição subversiva4 dos atos
performativos que eles evocam. Afinal, como lembram tanto Judith Butler (2003) quanto Homi
Bhabha (2019), se as repetições reiteram as convenções que produzem corpos genéricos, elas,
simultaneamente, as desestabilizam, as deslocam e as dissimulam, questionando sua prática
reguladora, a fim de fazer emergir uma nova realidade social. Nesta performance, as aparentes
representações naturalizadas que demarcam a posição da mulher, nesse contexto, entram em
suspensão, e outros sentidos críticos proliferam. Aliás, é pelo compromisso com a conversão
possível no agora que a artista opera essa repetição em seu próprio corpo, evidenciando tanto
o horror íntimo e silencioso, que percorrem tantos outros corpos nesse território de existência;
quanto as linhas de fuga por onde tudo isso pode potencialmente se desmanchar.

4 Ver (BUTLER, 2003).

1621
Referências
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2011. 93 f. Dissertação (Mestrado em Artes/Teatro) – Programa de Pós-Graduação em Artes, Escola de
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<https://repositorio.ufmg.br/bitstream/1843/JSSS-8PAPRT/1/disserta__o_leandro_ac_cio.pdf>. Acesso
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BHABHA, Homi K.. O local da cultura. Tradução Myriam Ávila [et al.]. Belo Horizonte: UFMG, 2019.

BORBA, Rodrigo. A linguagem importa? Sobre performance, performatividade e peregrinações


conceituais. In: Cadernos Pagu, Campinas, n. 43, p. 441-473, jul.-dez. 2014. Disponível em:
<https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-83332014000200441>. Acesso em: 16
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DOMINGUES, Leila. À flor da pele: subjetividade, clínica e cinema no contemporâneo. Porto Alegre:
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1622
Institucional, Departamento de Psicologia, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2011.
Disponível em:
<http://repositorio.ufes.br/bitstream/10/6730/1/Rubiane%20Vanessa%20Maia%20da%20Silva.pdf>.
Acesso em: 29 jan. 2019.

1623
PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE E AS REDES DE NÓS CEGOS: a indústria do turismo,
gentrificação e turismos alternativos
NóCego - Outros silêncios.

Pasqualino Romano Magnavita


Doutor em Arquitetura e Urbanismo; professor UFBA; pasqualinomagnavita@gmail.com.

Helena Tuler Creston


Doutora em Arquitetura e Urbanismo; UFBA; helenatuler@hotmail.com.

Este artigo aborda o exponencial desenvolvimento da Indústria do Turismo, relacionada ao que


se denominou “Patrimônio da Humanidade”, especialmente no âmbito do patrimônio edificado.
Com a emergência do Capitalismo pós-industrial das Sociedades de Controle e do Planejamento
Estratégico, a Indústria do Turismo ocupou, rapidamente, uma posição relevante no marketing,
através de sua expansão global em multiplicidade e heterogeneidade de redes: agências de
turismo, modalidades de transportes, hierarquização de hotéis e restaurantes, entre outras
exigências afins. Considerando, então, tal desenvolvimento do turismo, atendendo aos
processos de gentrificação do planejamento estratégico, emergiu o “turismo de massa” –
fenômeno recente de aglomeração em espaços patrimoniais de multidões. Diante desse
apontamento, consideramos possíveis outras modalidades de turismo alternativo e vamos
adentrar essas possibilidades no artigo.
Palavras-chave: Patrimônio Cultural; Turismo; Gentrificação; Sociedades de Controle.

This article is about the exponential development of the Tourism Industry related to what was
called “World Heritage”, especially within the scope of the built heritage. From the emergence
of post-industrial Capitalism of the Societies of Control and the Strategic Planning, the Tourism
Industry quickly occupied a relevant position in marketing through its global expansion in
multiplicity and heterogeneity of networks: Tourism agencies, transport modals, hierarchical
hotel and restaurants, among other related requirements. Therefore, the “mass tourism”
emerged considering such tourism development meeting gentrification processes of the strategic
planning – a recent phenomenon of agglomeration in cultural heritage spaces of crowds. In view
of this, we consider other alternative tourism modalities and we’ll explore these possibilities in
the article.
Keywords: Cultural Heritage; Tourism; Gentrification; Society of Control .

1624
1 – O turismo nas Sociedades de Controle
A emergência do Capitalismo pós-industrial das Sociedades de Controle e do Planejamento
Estratégico substituiu o Capitalismo industrial das Sociedades Disciplinares e do Planejamento
Integrado. Nesse novo contexto, a Indústria do Turismo ocupou, em pouco tempo, uma posição
relevante. Abordaremos, então, o exponencial desenvolvimento da Indústria do Turismo
relacionada ao que se denominou “Patrimônio da Humanidade”, especialmente no âmbito do
patrimônio edificado, incluindo a paisagem.
Vale lembrar que as “sociedades disciplinares” foram definidas por Foucault (1987) e estão hoje
em fase de extinção, embora ainda coexistam com as atuais “sociedades de controle”, estudadas
por Deleuze (1992). Nas sociedades disciplinares, entre os séculos XVIII e XX, os corpos e as
mentes eram “modelados” nos espaços confinados dos dispositivos de poder do Aparelho de
Estado do “Bem-Estar Social”, desde a família até os diferentes níveis de escolaridade e trabalho.
Era o tempo do “planejamento integrado” e, inclusive, das disciplinas de Conservação e
Restauro, relacionadas com edificações consideradas bens patrimoniais.
Encontramo-nos na fase do Capitalismo pós-industrial, com as chamadas “sociedades de
controle”. Diferente das sociedades disciplinares, os corpos e mentes não são “modelados” em
espaços confinados (espaços de lugares), mas são “modulados permanentemente” em espaços
abertos, espaços de fluxos em tempo real, com base nas tecnologias avançadas (digitais) da
comunicação e da informação. Nas palavras de Deleuze (1992), é a sociedade das cifras, das
trocas flutuantes, nas quais o marketing se constitui enquanto instrumento desse controle
social, lidando, exatamente, com valores constantemente produzidos e reproduzidos. O
“planejamento estratégico” passa a estimular a economia e a “cidade criativa” e sustentável,
apelo voltado para o desenvolvimento do capital.
Também segundo Vainer (2000), o planejamento estratégico é um dos modelos de
planejamento urbano que vem sendo difundido no Brasil e na América Latina pela ação
combinada de diferentes agências multilaterais (tais como B1RD e Habitat) e de consultores
internacionais. Esse modelo é inspirado em conceitos e técnicas oriundos do planejamento
empresarial, originalmente sistematizados na Harvard Business School. Portanto, nessa
perspectiva, a cidade é tida como uma empresa e, como consequência, trabalha-se sua imagem
pelo marketing, em processos de competição urbana mundial, sem qualquer preocupação
marcante em relação às populações excluídas; pelo contrário, o planejamento estratégico vem
estimulando o processo de gentrificação.

1625
Assim, o Capitalismo pós-industrial valoriza os “bens imateriais” e simbólicos, considerados
agora a “mina de ouro” desse modo de produção, impondo ao mundo a expressão “Economia
Criativa”, que, todavia, não explicita onde e como ocorre a Criatividade. Tal fato nos obriga a
evidenciar os dispositivos da Sociedade de Controle, considerando a modulação e
endividamento permanente de corpos e cérebros dos seres humanos. Na chamada
Micropolítica, definida na filosofia rizomática de Deleuze e Guattari (2011), esses agenciamentos
atuam na construção de subjetividades, são dobras do “Fora” no “Dentro; portanto, uma
micropolítica da subjetivação, tida como lugar da criatividade. No pensamento foucaultiano, os
poderes correspondem a esses agenciamentos, exercendo-se na invisibilidade, em uma relação
indissociável com os saberes na formação de subjetividades.
Assim, não há neutralidade nas práticas sociais no atual modo de produção. Existe sempre uma
orientação hegemônica em relação ao que se diz, os chamados agenciamentos coletivos de
enunciação, e ao que se faz, os agenciamentos maquínicos. Tanto a relação Saber/Poder
(Foucault) quanto os Agenciamentos (Deleuze/Guattari) pertencem à Macropolítica, o universo
molar (macro) do “real e do possível”, do corpo/cérebro objetivável, do “Fora”, considerados
pelo pensamento dialético: saber/poder/hegemônico e contra/saber/poder de resistência.
Neste sentido, torna-se possível admitir, analogicamente, que o Poder hegemônico do capital,
em seu exercício invisível, coloca no cidadão consumidor uma virtual “coleira eletrônica”,
conduzindo-o ao marketing do turismo, instrumento de controle social. Portanto, pode-se
afirmar: a Indústria do Turismo é uma rede fechada de nós cegos.

2 – “Patrimônio da Humanidade” e a emergência do “turismo de massa”


Os chamados “Patrimônio da Humanidade” estão associados à mencionada Indústria do
turismo, na medida em que constituem chamativos dessa atividade. São sítios reconhecidos pela
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) como de
grande importância histórica, cultural e natural para a humanidade. Um título que confere a
estes bens um status para lhes assegurar maior conservação. Um status, todavia, que atua
diretamente no marketing turístico direcionado a esses locais, sendo a Unesco um dos
elementos que compõem a “máquina abstrata” no campo social do patrimônio cultural, ou seja,
regula as relações, ideologias e políticas.
O adjetivo “abstrata” caracteriza, exatamente, essa superestrutura que não é somente o próprio
Estado ou suas instituições, mas também “... os enunciados dominantes e a ordem estabelecida
de uma sociedade, as línguas e os saberes dominantes, as ações e os sentimentos conformes,

1626
os segmentos que prevalecem sobre os outros” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 151) – os
agenciamentos, como mencionamos anteriormente, os quais são pouco evidenciados em suas
relações de Saber/Poder.
Considerando, então, o exponencial desenvolvimento do turismo, particularmente para
diversos setores interessados que podem pagar, atendendo aos processos de gentrificação do
planejamento estratégico, emergiu o “turismo de massa”. Essa forma do turismo é um
fenômeno recente de aglomeração em espaços patrimoniais de multidões vindas das mais
distantes localidades, que cria condições de desconforto: filas incomensuráveis, prolongada
espera e tempo reduzido de fruição, afetando, assim, a percepção e a afetividade, situação
agravada, inclusive, por alienantes narrativas transmitidas pelos guias, com mensagens, por
vezes, distorcidas em relação ao contexto histórico, político e cultural. Tal fenômeno afeta
também a dinâmica e cultura local, as quais, estimuladas pelas atividades turísticas, passam a
ser planejadas com vistas a essa finalidade.

Figura 01: Centro Histórico de Salvador/BA, o “Pelourinho”.

Fonte: Correio24horas, 2014.

Nesse novo contexto, a Indústria do Turismo, com sua posição relevante no marketing, atuou
através de sua expansão global em multiplicidade e heterogeneidade de redes: agências de
turismo, modalidades de transportes, hierarquização de hotéis e restaurantes, entre outras
exigências afins pelo mundo afora. Seguindo princípios organizacionais e aplicação de

1627
dispositivos diversos, às agências de turismo destinou-se a função de vender “pacotes de
viagens”, através de variada programação de ofertas e escolhas de roteiros e custos, em função
do poder aquisitivo do comprador, cujo valor é rateado em prestações, desde que haja um
efetivo retorno (lucro).

Figura 02: Exemplo de pacotes turísticos em Salvador/BA

Fonte: Salvador receptivo, 2021.

Por essa via, entendemos que, no atual modo de produção, nada tem escapado ao valor
mercadológico, inclusive, a própria cidade, que vende sua “marca” (city brand) no paradigma da
competição com outras cidades do mundo globalizado. A meta, no axioma contemporâneo, cujo
capital domina a urbe, é a atração de investimentos, em competições intra e interurbanas. Abre-
se mão da regulação, em prol de tornar áreas urbanas patrimoniais polos de atração. A própria
cidade, torna-se, assim, um negócio, conforme problematiza Harvey (2011).
Nesse sentido, questionamos os limites das medidas usualmente tomadas, muitas vezes devido
às concepções guiadas pelo Capital e pelo marketing a seu serviço. Não é possível, por exemplo,

1628
quantificar em termos monetários mudanças de modos de vida, perdas de símbolos ou locais
históricos, destruição do patrimônio, que são parâmetros muito mais de ordem qualitativa do
que quantitativa.
... na medida em que o dinheiro contrapesa uniformemente toda a
pluralidade das coisas, exprime todas as distinções qualitativas entre elas
mediante as diferenças do quanto; na medida em que o dinheiro, com sua
ausência de cor e a sua indiferença se eleva a denominador comum de todos
os valores, torna-se o mais terrível nivelador, corrói irremediavelmente o
cerne das coisas, a sua peculiaridade, o seu valor específico, a sua
incomparabilidade. (SIMMEL, 2009, p. 9)

3 – Turismo alternativo, uma emancipação do controle social?


Diante do quadro apresentado, observamos o surgimento de formas alternativas de turismo no
contexto atual, nas quais há certa preocupação em como as diversas atividades econômicas têm
afetado de forma significativa a qualidade de vida das comunidades locais e a preservação dos
bens naturais, contrapondo-se ao turismo massificado, comumente conhecido e praticado,
gerador, muitas vezes, de uma série se conflitos internos.
Assim, frente à orientação hegemônica, existem os contradizeres e contrafazeres de resistência,
que caracterizam a oposição dialética na Macropolítica. Consideramos possíveis, então, outras
modalidades de turismo alternativo: cartografias (mapas abertos), formas singulares de viajar e
conhecer lugares.
O Turismo de Base Comunitária (TBC) é um exemplo nesse sentido. Constitui um turismo situado
com interesse na diversidade, sendo a proximidade comunidade-visitante sua condição
essencial, a qual pressupõe experiências de convívio e trocas interculturais. A fim de permitir
essa relação dialogal e interativa entre visitantes e visitados, tornam-se necessários espaços de
encontro que favoreçam a oportunidade de experiência compartilhada, tais como espaços livres
e comunitários, em oposição aos espaços segregados que o turismo convencional por vezes
produz. No TBC prevalecem, assim, os empreendimentos de pequeno porte, geralmente
administrados por uma família ou associação, reforçando o fator hospitalidade como elemento-
chave dessa prática (BURSZTYN; SANSOLO, 2009).
Não podemos falar em modelos, visto que a Diferença faz de cada uma das iniciativas únicas,
mas seguimos exigindo uma atitude ética no âmbito da micropolítica da subjetivação, que vise
à emancipação do controle social existente.

1629
4 – Evidenciando o silêncio: os dois axiomas do modo de produção nas Sociedades de Controle
Sem dúvida a indústria do turismo, lugar onde o “tempo É Dinheiro”, como ocorre em todas as
atividades do atual modo de produção, igualmente se silencia em relação aos dois axiomas
considerados verdades e que não necessitam de comprovação. O primeiro axioma é a
Propriedade privada, todavia, não apenas de bens materiais, mas também de bens imateriais e
simbólicos, inclusive, a propriedade intelectual, enquanto exaltação e distinção do Eu
(individualismo, narcisismo), afirmação do nome e/ou da autoria. O segundo axioma diz respeito
à Competição, tanto entre empresas quanto entre indivíduos, considerada uma atitude
“natural”.
Basicamente, são consideradas três modalidades de turismo no atual mundo globalizado:
Cultural, Ecológico e Religioso. Os custos dos “pacotes” turísticos são proporcionais, tanto em
relação aos dias utilizados quanto ao valor hierárquico das opções oferecidas (número de
“estrelas” atribuídas aos hotéis, restaurantes, “classe” nos meios de transporte e eventuais
ocorrência não programadas).
Em um turista de padrão médio, o natural desejo de viajar, considerando sua condição
econômica e cultural, é tida como uma justa e natural oportunidade, visando conhecer países e
localidades e suas específicas expressões culturais/artísticas, belezas naturais ou no
cumprimento de devoção religiosa. Esse conhecimento torna-se um saber/poder do turista, e
isso, enquanto custo de um pacote turístico que favorece sua distinção social (uma exaltação
íntima do Eu) em relação aos que não podem fazer turismo. Neste sentido, o turista se diferencia
e cumpre o primeiro axioma.
Ao mesmo tempo, essa primeira condição gera uma segunda, mesmo que não percebida: ele, o
turista, está competindo com os que podem fazer turismo, tanto na escolha de pacotes com
roteiros mais longos, atrativos ou sofisticados, quanto em relação à destinação programada de
hotéis, restaurante e “classe” de transporte. Portanto, ocorre o segundo axioma: a competição,
configurando uma aceitação “natural” inconsciente ou consciente dos dois axiomas de sua
submissão ao sistema. Equivalente situação ocorre com as empresas de turismo, as quais
procuram exaltar e obter a máxima distinção em sua expansão, através de todos os processos
midiáticos (propaganda e realizações de novos roteiros, os mais rendáveis possíveis), em ritmo
de competição.
Não seria o caso aqui neste texto caracterizar a prática das empresas de turismo, evidenciando
como são realizadas as visitas às localidades programadas, e isso, pela rapidez como são feitas
e até mesmo pelas curtas e fantasiosas informações dos guias, os quais são orientados a levar

1630
os grupos para determinadas lojas ou zonas comerciais para compras de produtos típicos das
localidades ou de souvenires. Sobre o signo da competição no comércio local, as empresas de
turismos, através de acordos preestabelecidos com determinadas lojas, ainda usufruem de um
percentual sobre o montante das compras feitas pelos turistas – prática essa competitiva e que
não deixa de ser, em escala menor, uma prática de corrupção. E isto ocorre também na indicação
de hotéis, restaurantes e transportes previstos nos pacotes realizados.
Tal axiomática perpassa também as instituições de preservação do patrimônio cultural em seus
diferentes níveis: internacional, nacional, estadual e municipal, através das quais as práticas de
preservação acabam sendo configuradas em diferentes eventos (congressos, seminários,
encontros, mesas, cursos, publicações), onde ocorrem a exaltação e a individualização de certas
realizações e de seus realizadores, silenciando-se sobre outras coisas que poderiam executar.
Vale salientar que, mesmo no turismo alternativo, afirmando apenas o valor de uso e não
propriamente o valor de troca monetária, mas de afinidade e afetividade entre pessoas ou
grupos, os dois axiomas estão presentes, mesmo que diluídos. Esses dois axiomas aqui expostos
afetam não somente a indústria do turismo, mas o ilimitado universo das práticas sociais, sob a
égide do atual modo de produção. Trata-se, de fato, de um forte “nó cego” que condensa poder.
Justamente por isso, lembrando Michel Foucault, o Poder desses axiomas nas sociedades
disciplinares, hoje em pleno declínio, se caracteriza por sua “invisibilidade”. Ou então,
parafraseando Gilles Deleuze, poderíamos caracterizar esses dois axiomas, nas atuais
Sociedades de Controle do capitalismo pós-industrial, como um “nó cego virtual” da “coleira
eletrônica” colocada em cada turista, permitindo a sua “cegueira” do Real.
O silêncio sobre esses dois axiomas caracteriza, então, a “surdez” do turista e das empresas de
turismo. Por fim, pode-se afirmar que a cegueira do que não se pode ver e o silêncio do que não
se pode escutar caracterizam os indivíduos e empresas nas atuais sociedades de controle, onde
a prática dos dois axiomas continua sendo sustentada.

Referências
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brasileiro. In: BARTHOLO, Roberto; BURSZTYN, Ivan; SANSOLO, Davis G. (Org.). Turismo de base
comunitária: diversidade de olhares e experiências brasileiras. Rio de Janeiro: Letra e Imagem, 2009. pp.
142-161.

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de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. Vol.1. Tradução Ana Lúcia de
Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011.

1631
_______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 5. Tradução Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São
Paulo: Editora 34, 1997.

DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Tradução Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução Luiz Felipe Baeta Neves. 3. ed. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária, 1987.

HARVEY, David. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011.

PACHECO, Clarissa; LOBO, Monique. Lotado de turistas e baianos, comerciantes do Centro Histórico
comemoram lucros. Correio24horas. 07 jul. 2014. Disponível em:
<https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/lotado-de-turistas-e-baianos-comerciantes-do-centro-
historico-comemoram-lucros/> . Acesso em: 20 jan. 2021.

PASSEIOS. Salvador receptivo. Disponível em: <http://salvadorreceptivo.com.br/> . Acesso em: 20 jan.


2021.

SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito. Tradução de Artur Morão. Covilhã: Lusofia,
2009.

1632
QUINTAIS AGROFLORESTAIS: Raízes invisíveis na hinterlândia amazônica
NóCego - Outros silêncios.

Silas Garcia Aquino de Sousa


Doutor; Embrapa; silas.garcia@embrapa.br.

Maria Isabel de Araújo


Mestra; UNIFAVENI; mbelaraujo@gmail.com.

O processo civilizador que se processa na paisagem dos quintais agroflorestais da hinterlândia


amazônica, elenca uma perspectiva de construção identitária dos indivíduos à medida em que,
pela natureza interpela é interpelado, pelo desejo da autorrealização na relação de
interdependência social. Objetiva o presente refletir na análise do processo civilizador na
paisagem construída, nas práticas e costumes, dos agricultores familiares. Pauta-se o presente
em duas metodologias: a pesquisa bibliográfica e a pesquisa-ação etnográfica, nas comunidades
de agricultores da Região Metropolitana de Manaus. Os resultados revelam práxis culturais,
evidenciando a autorreferencialidade do homem com a floresta, na configuração do habitus no
saber ecológico e social presentes na paisagem dos quintais agroflorestais das áreas de várzeas
e terra firme da hinterlândia amazônica.
Palavras-chave: Amazônia; Agricultura familiar; Paisagem.

The civilizing process that takes place in the landscape of agroforestry yards in the Amazon
hinterland, lists a perspective of identity construction of individuals as, through nature, it is
questioned, by the desire for self-realization in the relationship of social interdependence. The
present objective is to reflect on the analysis of the civilizing process in the built landscape, in the
practices and customs, of family farmers. The present is guided by two methodologies:
bibliographic research and ethnographic action research, in the farming communities of the
Metropolitan Region of Manaus. The results reveal cultural praxis, evidencing the self-
referentiality of man with the forest, in the construction of ecological knowledge and in the social
habitus present in the landscape of agroforestry backyards in the lowland and upland areas of
the Amazonian hinterland.
Keywords: Amazon; Family farming; Landscape.

1633
1 – Introdução
O processo civilizador no espaço amazônico remonta ao período de colonização nos primórdios
do século XVI, construídos em práticas de dominação cultural no espaço amazônico, sob os
auspícios da evangelização dos gentios a servos de Deus sob a exploração da mão de obra da
riqueza extrativista da região e dominação da cosmogonia indígena com doações a Tupã das
drogas do sertão que, em nome da Coroa, abasteciam os cofres das missões evangélicas e da
coroa portuguesa.
Nesse contexto, considerando a sociologia figuracional de Norbert Elias (2006, p. 25-26) de que
não existe atitude natural no homem, as configurações (relação com os objetos simbólicos, com
a transmissão da cultura e com o aprendizado de um patrimônio simbólico social) e medições
do tempo cumprem funções de orientação do homem essencial no desenvolvimento dos modos
de conduta e de regulação da convivência humana, oferecem padrão, uniformidade e repetição
a organização de rotinas diárias.
Desse modo, Elias (1989, p. 84, grifo do autor) expõe que "... o que chamamos tempo é, [...] um
marco de referência que serve aos membros de um certo grupo [...] para instituir ritos
reconhecíveis dentro de uma série contínua de transformações do respectivo grupo de
referência ou também, de comparar uma certa fase de um fluxo de acontecimentos...". Assim,
o tempo cumpre funções de orientação do homem diante do mundo e de regulação da
convivência humana.
Nesse viés, o processo de desenvolvimento social do homem no espaço amazônico esta
associado à história de antes da colonização nos primórdios do século XVI, nas diversas
comunidades no modo de viver e conviver na paisagem amazônica.
Assim, ao longo dos séculos a paisagem amazônica vai se construindo aos auspícios do processo
civilizador, caracterizado nas estruturas emocionais e comportamentais, modificando as
mudanças sociais que acontecem nas interrelações sociais, integradas no cotidiano dos
indivíduos, são referências que mudam de acordo com o significado temporal nível das
experiências individuais com o movimento do espaço amazônico (Figura 1), enchente, cheia,
vazante e seca dos rios ao longo das áreas de várzeas, na mata fechada, os animais, as doenças
tropicais, os caminhos de acesso as áreas da terra firme, as alterações climáticas do inverno e
verão amazônico, o verão escaldante a media de 40o a sombra, a chuva intermitente por dias...
São práticas socioespaciais de um modo de vida, reminiscências da memoria biocultural de cada
indivíduo com o lugar, enquanto espaço de habitação, lazer e garantia de soberania e segurança
alimentar.

1634
Com efeito, a exploração ou dominação da natureza pelo homem gera uma verdadeira
contradição da Humanas conditio, conforme escreve Elias (1985, p. 14) que o destino do homem
[...] é como ponto de referência, [...] fazem parte do destino, das condições de vida [...] sem que
o homem as possa controlar, pois homem não pode mudar a natureza, sem mudar a si mesmo.
Segundo Araújo et al (2018, p. 3), é preciso sapiência, autóctone, de saberes adquiridos ao longo
do processo histórico de dominação da natureza e todas estas praticas, tradições crenças,
costumes, experiências, habitus e ações no curso do processo civilizador, gerador de alterações
ambientais.
Se por um lado a humanas conditio marca uma relação de interdependência do individuo com
o mundo social, que estrutura a percepção e a ação prática no campo social, a prática social do
agricultor familiar é uma relação dialética entre a situação concreta e o habitus, entendido este
como um conjunto de pré-disposições historicamente estruturadas a partir da trajetória
particular de cada agente, uma herança da memória biocultural, eivada de costumes e práticas
alimentares. (ARAÚJO et al, 2015, p. 5).

Figura 1: Espaço amazônico

Fonte: Acervo de ARAÚJO, M.I. & SOUSA, S.G.A. (2021).

Assim as práticas e ações que os agricultores familiares produzem na paisagem do espaço


amazônico contribuem e estimulam o convívio social como processo de dominação e exploração
da natureza, fortalecendo a relação no tempo e espaço do eu-individual e do nós- social,

1635
acentuada nas estruturas sociais vivenciadas nos quintais agroflorestais. O resultado dessa
interação eu-nós, formada nas teias de interdependência reveladas no habitus do saber
ecológico, presentes nas práticas agrícolas dos quais estão ligados ao uso e manejo do solo, nas
emoções individuais que se afirma e firma no tempo de Kayrós (momento certo de plantar) e de
Chronos (tempo de colheita) no lugar-espaço de interdependência humana, saberes ancestrais
que convergem da experiência de cada um com o lugar, a convivência obrigatória com as
intempéries do clima, o nível da água (enchente, cheia, vazante e seca) dos rios amazônico, da
densa floresta..., formando nova paisagem (Figura 2).

2 – Metodologia
A partir das contribuições da teoria Eliasiana fundamenta-se em dois métodos o presente
trabalho: a pesquisa bibliográfica com aporte do método da pesquisa-ação etnográfica proposto
por Thiollent, que permite investigar espaços coletivos de uma determinada realidade social, tal
retorno visa promover uma visão do conjunto dessa realidade social que de forma
interdisciplinar são inseridas as ferramentas dos métodos da pesquisa etnográfica, que a define
a como uma pesquisa social, objeto de análise, deliberação e avaliação com base empírica,
concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou a resolução de um problema
coletivo, no qual pesquisadores e participantes estão envolvidos de modo cooperativo,
participativo e etnográfico (THIOLLENT, 2004 p. 14).
A proposta do método de pesquisa foi aplicada dada as relações que se estabelecem entre os
saberes tradicionais e o espaço agroprodutivo, no caso dessa pesquisa a metodologia foi
aplicada nos quintais agroflorestais dos agricultores familiares da hinterlândia amazônica.
A escolha do método permitiu a intermediação em visitas in loco nas comunidades de
agricultores familiares (coordenadas geográficas: 03º01'33''S 59º53'37”W (Akakía); S
03º13’48,1”S 59º56’57,8”W (Victoria amazonica); 03º24’92, 18”S 59º16’17,55’’W (Brachiaria);
02º47’43,7’’S 60º02’18,3’’W (Aniba); 02º56’37,4’’S 59º51’52,98’’W (Pourouma), no 2º semestre
de 2019, da Região Metropolitana de Manaus – RMM, em face da diversidade multicultural
presente no contexto da paisagem dos quintais agroflorestais das comunidades que apresentam
características singulares.

1636
Figura 2: Nova paisagem no espaço amazônico

Fonte: Acervo de ARAÚJO, M.I. & SOUSA, S.G.A. (2021).

3 – Resultados
A Região Metropolitana de Manaus – RMM, criada em 30 de maio de 2007 pela Lei N. 52/2007.
A RMM compreende 12 municípios do Estado do Amazonas Autazes, Careiro, Careiro da Várzea,
Iranduba, Itacoatiara, Itapiranga, Manaquiri, Manacapuru, Novo Airão, Presidente Figueiredo,
Rio Preto da Eva e Silves em processo de conturbação, também conhecida como Grande
Manaus.
Os núcleos urbanos das comunidades da RMM estão atrelados à dinâmica sazonal dos rios
(enchente, cheia, vazante e seca), classificadas em três categorias de acordo com sua localização
geográfica segundo Cavalcante et al (2014):
Comunidade Insulares - localizadas nas ilhas de várzea sem acesso direto a
terra firme; Comunidade de Margem - localizadas entre os solos de várzea e
terra firme com acesso aos dois ecossistemas; - Comunidades de Terra firme
- localizadas em áreas mais altas. (CAVALCANTE et al, 2014, p.9).

Assim os agricultores familiares desfrutam dos recursos dos dois ecossistemas, entretanto, a
natureza impõe certas limitações ao homem amazônico, de um lado, a população ribeirinha
desfruta da abundância de proteína animal (peixes e fauna aquática), do solo fértil da várzea,

1637
propício à agricultura, entretanto esta sujeita à sazonalidade dos rios, com restrição de
componentes arbóreos, bem como, do curto espaço de tempo de solo fértil para plantar e
colher.
Por outro lado, na terra firme há abundância de produtos florestais madeireiros e não
madeireiros, limitações de recursos hídricos, solos férteis e dependência de proteína animal da
fauna da floresta, nesse sentido, as configurações estabelecidas entre o homem, o espaço e o
tempo (natureza) são previstas, planejadas, programadas, construídas e redimensionadas o
tempo todo. Neste processo, as populações sincronizam no tempo e no espaço a produção
agroalimentar no predominante sistema agroextrativista amazônico.
Um aparte aqui merece destaque com relação à questão do tempo nas reflexões eliasianas. Elias
contrapõe-se as diferentes áreas do conhecimento científico (filosóficas, históricas,
naturalistas...) ao abordar o tempo nos diferentes modos como às civilizações determinam e
estabelecem funções universais que coordenam as experiências humana entre natureza e
sociedade.
O tempo, na perspectiva do "processo civilizador", é uma rede de configuração que permeiam
as relações humanas, o social (nós) e a individualidade (eu) em sociedade, desenvolvida pela
civilização (Elias, 1994a, p. 207). Segundo Elias (2001, p. 215), entender o passado também como
uma rede de interdependências é compreendermo-nos a nós próprios, indivíduo e sociedade
não são dissociáveis. Considerando Elias (1994a, p. 228) que o tempo deve ser compreendido
no contexto social onde é produzido e em interação com outros elementos da vida social e da
natureza. Isso demanda articulação de aspectos interdisciplinares e intersubjetivos.
Com efeito, percebe-se que as teias de interdependência que permeiam as relações sociais dos
agricultores familiares da hinterlândia amazônica revelam na paisagem amazônica figurações
formada por avanços e recuos que, no caso do tempo, está fundamentada no saber tradicional,
desenvolvidas da memória biocultural com representações simbólica no espaço- tempo como
produto da evolução social do indivíduo.
Resultando dessa interação a apropriação da multiculturalidade, do ideário agroecológico pelos
agricultores familiares, a partir das experiências vividas e adquiridas com o tempo na
configuração do habitus social amazônico.
Podemos identificar dentre as figurações dos agricultores familiares na mudança de paisagem
promovidas pelos diferentes agroecossistemas pesquisados três ações/práticas relacionadas ao
habitus :

1638
a) o preparo do solo no plantio (Figura 3) da Manihot esculenta (mandioca) em uma área
de capoeira: broca, derruba, rebaixamento, coivara, destoca (com queima e sem
queima), construção de leiras, plantio (preparo da área, da maniva, espaçamento,
abertura das covas, enterra) e tratos culturais (capina e controle de pragas).
b) Após a colheita, a mandioca é transportada para a casa de farinha (Figura 4),
historicamente o mesmo processo de fabricação é descrito por João Daniel (1976) no
século XVI até os dias de hoje.
Após a colheita, raspavam a mandioca leve e rapidamente com uma faca ou
haste de cana taboca e depois lavavam-na. Eram raladas [...] ou em ralos, que
são uma pequena tábua com bicos embutidos, como usam os tapuias, ou
umas rodas ligeiras forradas por fora com ralos de cobre, puxadas com
engenho, ou com as mãos, e forças de dous homens cada um em sua asa;
entretanto uma índia lhe vai ministrando, e dando a comer pelo buraco de
uma tábua a mandioca, sentada no mesmo escabelo que segura a roda, e com
um paiol à ilharga provido de raízes. Embaixo uma canoa, vai c[urt]indo a
farinha ralada. (DANIEL, 1976, v. 1, p. 415).

Figura 3: Plantio da Manihot esculenta (mandioca).

Fonte: Acervo de ARAÚJO, M.I. (2019).

Araújo (2018, p. 9) relata o processo de produção dos subprodutos derivados da mandioca


(Figura 4) nas seguintes etapas: raspagem (retirada da casca); lavagem; banco de cevar no
caititu; prensagem (extrair a manipueira ou tucupi) para formação da massa (goma), a partir da
produção da massa, diferentes subprodutos são preparados no forno de torração além dos
diversos tipos de farinha (seca, d´água, grossa, mista, branca e amarela) e outros subprodutos

1639
como beijus cica, pé-de-moleque, tapioca, tarubá, crueira, massa de carimã, bebidas (caiçuma,
tarubá), farinha para frituras (carnes, peixes), goma, mingau, caribé, pirão, chibé (mistura de
farinha água e açúcar), polvilho, bolo de macaxeira, bolo podre, tapioquinha, biscoito...

Figura 4: Produção dos (sub)produtos Manihot esculenta (mandioca).

Fonte: Acervo de ARAÚJO, M.I. (2021).

Dessa forma os agricultores desenvolveram uma relação de pertencimento com o lugar, como
modo de vida, realidade e destino. Em outras palavras, o lugar se constitui em valor de
apropriação, carregado de significado simbólico que exibe a ligação íntima entre espaço- tempo-
pessoa-natureza.
Um outro componente do habitus na paisagem reflete no espaço dos quintais (Figura 5), além
do plantio de espécies ao redor das habitações, a terra e a água são os elemento de definição
das relações familiares na trajetória de vida e estratégias de sobrevivência, constituindo-se
também num elemento simbólico de interação humana com o ambiente.

1640
Figura 5: Paisagem dos quintais.

Fonte: Acervo de ARAÚJO, M.I. (2021).

A partir dos primeiros contatos no século XVI com os colonizadores europeus a paisagem na
região recebe novas influências na arquitetura, desencadeando modificações nos modos de vida
e relações com a natureza, novas técnicas são estabelecidas com uso dos recursos naturais
retirados da floresta amazônica.
Assim, intensas modificações ocorreram desde o processo de colonização na paisagem
amazônica, segundo Lui (2008) a mentalidade europeia inauguraria três marcos de dominação
nas formas de atuação humana na floresta até hoje:
(1) a supressão da floresta para introdução de espécies exóticas, trazendo
como conseqüência a simplificação da paisagem; (2) a exploração localizada,
mas intensiva, de produtos de interesse comercial para a metrópole e (3) a
exportação dos recursos naturais para fora do sistema delimitado pela
floresta. (LUI, 2008, p. 218).

Dessa forma, os elementos constituintes da paisagem amazônica compreendidos aqui como


cultura material (modificações realizadas pelo ser humano no seu entorno) expressam
sentimentos, emoções, ideias, em seus aspectos construtivos, sociais e econômicos, adequados
ao atendimento das necessidades e expectativas da dimensão humana dos agricultores
familiares. No entanto, é possível ir, além disso, esses locais podem informar sobre a situação

1641
econômica, vida social, ideias, cultura, política, dentre outros, de uma determinada época e local
(ROSSI, 2001, p. 140).
Outra característica que reforça a paisagem amazônica são os cultivos agrícolas, as fruteiras, o
manejo dos recursos florestais madeireiros e não madeireiros, uma hierarquia social
dependente e definida no espaço florestal da hinterlândia amazônica, como um nó cego em
termos de transformação da paisagem, (re)estabelecendo uma dinâmica configuracional de
relações sociais, ecológicas e econômicas no ambiente natural, como um continuum em
permanente mudança e conservação.
Pode-se inferir nesse ponto, a análise de Elias (1989) que a experiência do devir em função de
sua relação com o continuum evolutivo representado pelos grupos humanos
que vivem essa experiência, conclui-se que tais conceitos integrariam
efetivamente essa quinta dimensão simbólica, formada por tempo, espaço,
linguagem, pensamento, conhecimento, memória, consciência etc. (ELIAS,
1989, p. 66).

Em síntese, os agricultores familiares humanos, percebem as dimensões homem, espaço,


tempo, conscientes do caráter simbólico expresso na paisagem que habitam, uma síntese
conscientemente aprendidas no tempo continuum de viver e conviver na hinterlândia
amazônica.
Assim, a continuidade de saberes, experiência de fazeres e práticas alimentares, revela-se na
presença da feitura da mandioca e derivados, dentre outras práticas de cultivo e manejo do solo
e da floresta, a manutenção do modo de fazer culinário expressam a história coletiva e individual
dos sujeitos, expressas de significado, presentes na memória biocultural, configurada como
prática tradicional, que identifica o modo de vida dos agricultores familiares na hinterlândia
Amazônica.

Conclusão
Os resultados revelaram práxis culturais, evidenciando a autorreferencialidade do homem com
a floresta, em configurações concretas de si mesmo, da identidade eu-nós na construção do
saber ecológico, nas emoções, no habitus social e nas transformações econômicas presentes na
exuberância da paisagem dos diferentes agroecossistemas. Revelando diferentes nós nas
formas e conteúdos da paisagem silenciosa, espaços de relações humanas, sentida, vivida,
construídas e em construção, expresso nos quintais agroflorestais, lugar-espaço de
interdependência humana que se afirma e firma no tempo de Kayrós e de Chronos na paisagem
da hinterlândia amazônica, conforme os pressupostos elisianos.

1642
O processo civilizador nesse sentido, imbuído da racionalidade humana, legitima os costumes,
práticas e hábitos do indivíduo nas relações recomendadas, prescritas, existentes, desejadas e
estabelecidas na sociedade, reveladas na substituição da floresta pela paisagem antropizada
como predileção histórica, das aprendizagens passadas, as aplicações presentes e perspectivas
futuras como garantia da sustentabilidade social, econômica e ambiental.
Assim, a nova paisagem vai ocupando o espaço amazônico, como nó cego, numa convivência
silenciosa, que se estabelecem nas relações de interdependência na tríade, homem, espaço,
tempo que, na mesma situação, dividem a paisagem no espaço tempo das várzeas e terra firme
da hinterlândia amazônica.

Referências
ARAÚJO, Maria Isabel de; SOUSA, Silas Garcia Aquino de; RAMOS, Evandro de Morais. Ajuri no plantio
de corte sem queima da Manihot esculenta Crantz. In: Anais. III Seminário Internacional em Sociedade
e Cultura na Pan-Amazônia - Manaus, 2018. Disponível em:
<https://www.doity.com.br/anais/iiisiscultura/trabalho/80480>. Acesso em: 09/01/2021.

ARAÚJO, Maria Isabel; SOUSA, Silas Garcia Aquino; RAMOS, Evandro de Morais. Memórias e saberes nos
quintais agroflorestais amazônicos. Cadernos de Agroecologia – Anais. VI CLAA, X CBA e V SEMDF – Vol.
13, N° 1, Jul. 2018.

ARAÚJO, Maria Isabel; SOUSA, Silas Garcia Aquino. Aspectos sócio-históricos da estrutura produtiva da
agricultura familiar amazônica. Anais. II Seminário de Experiências Agroecológicas no Contexto
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DANIEL, João. Thesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de
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ELIAS, Norbert. A Sociedade da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

____________. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

____________. Escritos & Ensaios: 1 – Estado, processo, opinião pública, Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
2006.

____________. O Processo Civilizador. Uma história dos costumes. Vol. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1994a.

____________. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989.

LUI, Gabriel Henrique. Ocupação humana e transformação da paisagem na Amazônia brasileira.


Dissertação de Mestrado. Interunidades em Ecologia Aplicada, Universidade de São Paulo, Brasil. 2008.

ROSSI, Aldo. A Arquitetura da Cidade. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

1643
RENATO SOEIRO E O IPHAN: uma trajetória silenciada
NóCego - Outros silêncios.

Carolina Martins Saporetti


Doutoranda em História; UFJF; carolinamartinssaporetti@gmail.com.

Este artigo busca refletir sobre a direção do Renato de Azevedo Duarte Soeiro no Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) entre 1967 e 1979, salientando o
silenciamento deste nas referências relacionadas à temática do patrimônio cultural e nas
publicações da própria instituição. Soeiro atuou por 12 anos na diretoria deste órgão e teve
uma participação perspicaz no desenvolvimento das políticas de preservação do patrimônio
cultural no Brasil e o estreitamento das relações com órgãos internacionais.
Palavras-chave: Renato Soeiro, IPHAN, patrimônio cultural, silenciamento.

Abstract this article seeks to reflect on the direction of Renato de Azevedo Duarte Soeiro at the
National Historical and Artistic Heritage Institute (IPHAN) between 1967 and 1979, highlighting
the silencing of these references in references to the theme of cultural heritage and in the
publications of the institution itself.
Soeiro served for 12 years on the board of this body and had an insightful participation in the
development of policies for the preservation of cultural heritage in Brazil and the strengthening
of relacion with international bodies.
Keywords: Renato Soeiro, IPHAN, cultural heritage, silenciamento.

1644
1 – Um breve histórico sobre a trajetória de Renato Soeiro no IPHAN
Renato de Azevedo Duarte Soeiro nasceu em 23 de dezembro de 1911, em Belém – Pará, filho
de Benedito Duarte Soeiro e Angélica de Azevedo Soeiro. Estudou Arquitetura na Escola
Nacional de Belas Artes da Universidade do Brasil, onde se formou em 1937. No ano seguinte,
ele começou a trabalhar no Serviço do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional (SPHAN) como
assistente técnico de 3ª classe. Em 1940, Soeiro foi contratado como arquiteto do SPHAN. Em
1946, ele assumiu o cargo de diretor da Divisão de Conservação e Restauração (DCR) da então
Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN)1. Renato Soeiro permaneceu
neste cargo até se tornar diretor da DPHAN, em 1967.
Durante a sua atuação como diretor da DCR, Renato Soeiro trabalhou com a avaliação dos
pedidos de restauração e de obras que seriam enviados a Rodrigo Melo Franco de Andrade,
então diretor da DPHAN. Soeiro também era responsável pela distribuição dos recursos
destinados as ações de conservação e restauro, e pelo pagamento de alguns funcionários
(SAPORETTI, 2017, p. 21) Além destas funções, Soeiro era o principal representante
internacional da instituição, e diretor substituto na ausência de Rodrigo M. F. de Andrade. Para
mais, o próprio de Andrade reconhecia a presteza dos serviços prestados por Soeiro e enviou
uma carta para o então Ministro da Educação e Cultura, Tarso Dutra, pedindo a nomeação de
Renato Soeiro para diretor do DPHAN.
...peço permissão para reiterar/ a V. Exa. o apêlo que lhe dirigi, no sentido de
conceder seu prestigioso patrocínio à nomeação do Arquiteto Renato Soeiro,
ocupante desde janeiro de 1946 do cargo de Diretor da Divisão de
Conservação e Restauração do órgão interessado.
Tal como tomei a liberdade de encarecer a V. Exa, na ocasião em que lhe
apresentei meu requerimento de aposentadoria, ele não é somente um
arquiteto de talento e um técnico de conservação de monumentos da maior/
proficiência, mas também um administrador exímio, chefe de serviço
incomparável serenidade e circunspeção perfeita. Além dessas
circunstâncias, desde muitos/ anos Diretor Substituto da DPHAN, o Dr. Soeiro
está/ habilitado melhor que ninguém pelo conhecimento completo
e minucioso dos problemas de repartição, a assumir em caráter permanente
a respectiva direção (ANDRADE, 1967, p.1 e 2).

1
No decorrer texto será possível observar que no perpassar da trajetória da instituição esta passou por
algumas mudanças, inclusive na forma como era denominada. Em 1937 foi criada como Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Em 1946, o SPHAN tem o seu nome alterado para
Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN). Em 1970, a DPHAN é transformada em
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Já em 1979, o IPHAN foi dividido em SPHAN
(Secretaria), na condição de órgão normativo, e na Fundação Nacional Pró-Memória (FNPM), como órgão
executivo. No ano de 1990, a SPHAN e a FNPM foram extintas e substituídas pelo Instituto Brasileiro do
Patrimônio Cultural (IBPC). Em 1994, o IBPC é transformado em Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional.

1645
Em 1967, Renato Soeiro assumiu a direção da DPHAN, onde permaneceu até o ano de 1979.
Durante este período, Soeiro atuou buscando conciliar o desenvolvimento econômico, industrial
e urbano do país com a preservação do patrimônio cultural. Entre suas realizações se destacam
a vinculação da DPHAN com a UNESCO e a OEA, a descentralização das atividades da instituição,
criação do Programa Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas do Nordeste (PCH). A
partir disso Soeiro teve participação atuante em diversos eventos internacionais, como, por
exemplo: a Reunião do Quito (1967) e a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial
Cultural e Natural (1972). Além disso, a partir da aproximação com esses órgãos participou do
Plano do Incentivo ao chamado Turismo Cultural e conseguiu a vinda de consultores da UNESCO
para auxiliar na implantação deste plano.
Como desdobramento destas ações, foi implantado o PCH, em 1973, a partir de uma parceria
do IPHAN com o Ministério da Educação e Cultura e a Secretaria do Planejamento e
Coordenação Geral da Presidência da República. Este foi um programa que visou o
desenvolvimento econômico do Nordeste através da atividade turística, tendo como notável
capital o patrimônio cultural. Desta forma, buscou-se gerar recursos para também conservar,
preservar os patrimônios culturais.
Durante a década de 1970, Soeiro se preocupou em ampliar o corpo administrativo do IPHAN e
em unir estados e municípios2 na preservação do patrimônio cultural. Em 1976, através da
Portaria MEC nº. 230, de 30 de março, a instituição teve publicado um novo regimento interno.
Foram criadas quatro novas representações, denominadas Diretorias Regionais, que permitiram
a presença institucional nas regiões Norte, Sul e Centro-Oeste, somando-se às anteriores nas
regiões Sudeste e Nordeste; desta última passou a fazer parte também o território de Fernando
de Noronha3.
Apesar da sua importante atuação, no dia 27 de março de 1979, foi publicado no Diário Oficial
da União a exoneração de Renato Soeiro pelo ministro Eduardo Portela. Foi a primeira
interferência política sofrida pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 43
anos (AZEVEDO, 2013, p.47).

2
Ver I Encontro de Governadores de Estado, Secretários Estaduais da Área Cultural, Prefeitos de
Municípios Interessados e Presidentes e Representantes de Instituições Culturais e II Encontro de
Governadores para a Preservação do Patrimônio Histórico, Artístico e Arqueológico e Natural do Brasil
em portal.iphan.gov.br

3
Para mais informações sobre a trajetória de Renato Soeiro no IPHAN ver SAPORETTI, Carolina Martins.
A gestão de Renato Soeiro na direção da DPHAN (Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional)
(1967-1979). Dissertação (mestrado acadêmico) - Universidade Federal de Juiz de Fora, Instituto de
Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em História, 2017. 134 fl.

1646
2 – Reflexões sobre o silenciamento da gestão de Renato Soeiro
Apesar da importância de Renato Soeiro no IPHAN, alguns autores desqualificam sua atuação,
dissertando apenas sobre os diretores Rodrigo M. F. De Andrade (primeiro diretor (1937-1967))
e de Aloísio Magalhães (sucessor de Soeiro(1979-1982)). Apesar das críticas, não foi realizada
uma análise minuciosa sobre o trabalho do Soeiro no IPHAN nas obras citadas4. Neste texto
destaco dois autores, que dissertaram sobre o IPHAN e inferiorizaram a atuação de Soeiro, José
Gonçalves e Maria Cecília Londres Fonseca.
Gonçalves em sua obra "A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural no Brasil"
concorda que houve um segundo período na história do IPHAN, administrado por Renato Soeiro,
porém relata que esta fase "não foi marcada por quaisquer mudanças significativas em termos
da política oficial de patrimônio" (1996, p. 51). Fonseca se refere a direção de Renato Soeiro
atribuída a "fase heroica". Segundo a autora, independente dele ter sido o legítimo sucessor de
Rodrigo M. F. de Andrade, "não gozou, como ele, do mesmo prestígio, não teve o mesmo
trânsito junto a autoridades e personalidades nem foi ungido com a mesma aura". Para Fonseca,
quando o “herói” do patrimônio se aposentou, o caráter fraco da autonomia da instituição foi
revelado, "na medida em que dependia de líderes para conduzi-lo e torná-lo visível, tanto no
interior da burocracia quanto junto à sociedade". De acordo com a autora, no final dos anos 70
o patrimônio volta a ter prestígio no cenário político devido a relação com outra figura
carismática, o designer Aloísio Magalhães (2005, p. 141).
Com suporte da pesquisa e escrita da dissertação de mestrado de minha autoria5, onde pude
dissertar sobre a trajetória do Renato Soeiro no IPHAN, após realizar um levantamento das ações
realizadas por ele na instituição, pude constatar a importância deste para o desenvolvimento da
política de preservação do patrimônio no Brasil, principalmente nas décadas de 1960 e 1970.
Apesar disso, ainda me questiono o porquê do apagamento da figura de Soeiro no IPHAN. Por
isso trouxe esta questão para refletir neste artigo. Por que Soeiro foi considerado mero sucessor
de Rodrigo M. F. De Andrade? Por que sua gestão foi vista como sem mudanças significativas na
política oficial do patrimônio? Por que Aloísio Magalhães tem mais prestígio que Soeiro, sendo
que governou somente por três anos o IPHAN?

4
Poucos autores pesquisam mais intensamente sobre o Renato Soeiro. Além dos textos publicados por
mim, têm-se os trabalhos desenvolvidos pelo prof. Dr. Paulo Ormindo David de Azevedo.

5
Ver SAPORETTI, Carolina Martins. A gestão de Renato Soeiro na direção da DPHAN (Diretoria do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) (1967-1979). Dissertação (mestrado acadêmico) - Universidade
Federal de Juiz de Fora, Instituto de Ciências Humanas. Programa de Pós Graduação em História, 2017.
134 fl.

1647
Análise sobre o silenciamento
Segundo Orlandi (2007, p.73), a política do silêncio ou o silenciamento, se explica pelo feito de
que ao proferir algo apaga-se necessariamente outros significados possíveis, porém
indesejáveis, em uma determinada conjuntura discursiva. Desta forma, é feito uma delimitação
entre o que se diz e o que não se diz. Desta forma, o silenciamento é visto como consequência
de um discurso que introduz o inexplícito. “Se diz ”x” para não dizer “y”, este sendo o sentido a
se descartar do dito”. O não dito é inevitavelmente excluído. Assim, são apagados os sentidos
que se quer distanciar-se, que poderiam implantar o significado de uma “outra” forma
discursiva, abrangendo outros sentidos. O silêncio contribui com os limites das construções
discursivas, demarcando os limites do dizer (ORLANDI, 2007, p. 73 e 74).
De acordo com Orlandi, o silêncio é o que foi apagado, excluído. A reprodução de um discurso,
que escreve uma negação da conexão histórica, particulariza a memória e perde a aptidão de,
ao retomar, deslocar. Portanto, a repetição não possibilita entender o dizer do outro, não o
situa, deixando a oportunidade de trabalhar o seu próprio gesto de interpretação, o que
ocasionaria ir mais longe e o faria exprimir de outra maneira, diferenciando-se realmente da sua
formulação. Deste modo, o que seria uma nova contribuição fica comprometido por esse modo
de dizer, uma vez que, a repetição é um comentário que se nega como tal (2007, p. 144). Assim,
o silenciamento pode ocasionar o esquecimento. Nesses casos, está relacionado aos silêncios
que dispõem seus sentidos carregados de ideologia e historicidade. Já o esquecimento possui
estratégias que inserem-se diretamente na discussão proposta por este trabalho: pode-se narrar
de outra maneira, suprimindo, desviando as ênfases, refigurando diferentemente os
protagonistas da ação assim como as imediações desta (RICOEUR, 2007, p. 455).
A narrativa possui uma natureza seletiva que faz com que memórias sejam criadas,
gradualmente, com base em combinações entre o lembrar e o esquecer, que recordam e
expõem alguns acontecimentos e contextos em função de muitos outros que serão silenciados
e esquecidos. Assim, as camadas de configuração e refiguração da narrativa desde a construção
da memória individual e/ou coletiva que estruturam os elos de pertencimento, e no final do
percurso, um perigo maior, está no manuseio da história autorizada, celebrada, vista como a
história oficial.
A adversidade da história oficial é a sua credibilidade, sua aceitação e sua organização. Para que
os discursos políticos elevem-se a um fundo comum de referências que consigam estabelecer
uma história nacional, um grande trabalho de organização é imprescindível para superar a
construção ideológica, “precária e frágil” (POLLACK, 1989, p. 10) Por consequência, o

1648
esquecimento fruto da política do silêncio, pode se dar a partir do conjunto de disputas
discursivas que, em marcado tempo histórico, silencia certos elementos em razão de outros,
que doutrinam esse silêncio a partir daquilo que é narrado. Isto posto, pode-se dizer que o
esquecimento que se consolida a partir do não-dito.
Em qualquer narrativa o silêncio não deve ser considerado um complemento da linguagem, ou
algo que está implícito, nem sequer um nada ou um vazio. O silêncio é um “elemento fundante”,
logo este já existe quando se forma narrativa. Nessa concepção, proveniente dos princípios para
análise de discurso, a linguagem teria sido criada para reter e disciplinar o silêncio, por si só
composto de sentidos, já que está inserido em um contexto socio-histórico. O silêncio está
sempre a irromper os limites do dizer de modo a fazer com que o não-dito signifique. O dizer e
o silenciamento são, portanto, inseparáveis (ORLANDI, 2007, p. 29).
Trabalhar com o silêncio pode ser considerado “histórico”, no sentido de discursivo, pois é
possibilita investigar a interdiscursividade e observar os efeitos de sentido, as direções da
construção dos sentidos. Segundo a autora, se os jogos da memória entre o lembrar e o
esquecer, tanto no contexto individual quanto no coletivo, podem ser questionados quando
analisados com base nos silêncios, abarcando-se aqueles que integram as narrativas históricas,
pode-se reiterar que alguns modos específicas de silêncio estariam mais aproximados da
formação de esquecimento (ORLANDI, 2007, p. 29). Logo, a ligação entre silêncio e memória
propicia compreender, que a memória é feita de esquecimentos e silenciamentos. Observa-se
que as memórias coletivas determinadas e amparadas por um trabalho especializado de
delimitação, sem serem o único fator de junção, são certamente um componente importante
para a durabilidade do tecido social e das organizações institucionais de uma sociedade
(POLLACK, 1989, p. 7).

3 – O desligamento de Soeiro
Como foi citado, Renato Soeiro, foi exonerado do seu cargo de diretor do IPHAN em 1979. Após
41 anos de serviços prestados a instituição e a preservação do patrimônio cultura, e sem
nenhum aviso prévio, sem possibilidade escolha, ele foi retirado do seu posto. Para além disso,
ele caiu no esquecimento por muitos anos. Após este acontecimento, coube a Carlos
Drummond de Andrade, inconformado com este acontecimento, prestar uma homenagem a
Soeiro:
Modesto até o silêncio, dedicado até o limite da resistência física, sereno e
compreensivo, Soeiro identificou-se com o que Clarival do Prado Valadares
chamou de escola de filosofia do IPHAN, uma escolha de conceituação dos

1649
bens culturais inseridos no processo dinâmico da vida nacional, como fator
de dignificação do homem, a alegria de ter bem cumprido a missão sem
embargo daquilo que não pode fazer, por deficiências insanáveis do
aparelho administrativo brasileiro, há de pousar na casa de Renato Soeiro
como recompensa melhor, senão única, do seu trabalho (ANDRADE, 1979).

Apesar de ter sido ofuscado pela história oficial que disserta sobre a preservação do patrimônio
cultural nacional, nos últimos anos, além dos trabalhos de minha autoria, alguns autores como
Paulo Ormindo de Azevedo, Márcia Sant’anna e Júlia Wagner6 têm elevado o debate e
dissertado em seus respectivos trabalhos sobre as ações de Renato Soeiro, reconhecendo-o
como um grande gestor e o fundador da “fase moderna” do IPHAN.
Ainda que, haja produção sobre a gestão de Soeiro, não se tem uma justificativa, uma análise
sobre este silenciamento da sua figura. A fim de realizar uma retratação, Azevedo, como então
conselheiro do IPHAN publicou uma homenagem a Renato Soeiro, em 2005, em nome do
conselho do órgão, destacando esta como dívida deste conselho, e defendendo de forma breve
a importância de Renato Soeiro para a instituição.
Creio que é um ato de justiça deste Conselho recuperar a imagem de Renato
Soeiro, cuja “energia mansa, tranquila, eficiente” e a “modéstia mais
genuína” foi, durante os últimos 26 anos, injustamente confundida com
inação e falta de brilho (AZEVEDO, 2005, p. 2).

Ao analisar a gestão de Renato Soeiro, observa-se que esta foi fundamental para modernização
do sistema estatal de preservação do patrimônio. Ele conseguiu desenvolver e expandir o espaço
de atuação do IPHAN e adequar as práticas da instituição as demandas internacionais e
nacionais, algo que ainda não tinha sido visto na história da política de preservação do
patrimônio nacional.

6
Ver SANT’ANA, Márcia. Da cidade-monumento à cidade-documento: a trajetória da norma de
preservação de áreas urbanas no Brasil (1937-1990). Salvador: 1995. Dissertação (Mestrado) – Programa
de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia; PEREIRA, Julia Wagner.
Nem heróico nem moderno - A constituição do “Patrimônio Histórico e Artístico Nacional” na gestão de
Renato Soeiro no IPHAN (1967-1979). In: Programa de Especialização em Patrimônio - Artigos (2005 e
2006) / Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Brasil). Coordenação-Geral de Pesquisa e
Documentação. Rio de Janeiro: IPHAN/Copedoc, 2009. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/MesProfPat_PraticasReflexoes_3.pdf Data de acesso: 04
de julho de 2016 as 14 horas e 15 minutos.

1650
4 – Considerações Finais
A partir do que foi dissertado neste artigo e da análise sobre o silenciamento é possível observar
que o esquecimento, o ofuscamento de Renato Soeiro é consequência de um discurso que
ocultou sua gestão, suas ações, sua trajetória no IPHAN.
Baseado em Orlandi (2007), foi constatado que o não dito é excluído, apagado da narrativa que
se quer contar. No caso estudado a repetição do discurso que Soeiro foi um simples sucessor de
Rodrigo M. F. de Andrade, sem grandes realizações, fez com que esta negação histórica fosse
oficializada e que se perdesse a idoneidade de pesquisar e procurar compreender outras versões
da história, comprometendo outros entendimentos, outros modos de dizer. Desta forma,
constata-se que uma narrativa possui natureza seletiva, podendo suprimir e desviar a atenção
dos protagonistas da história e a partir das escolhas de fatos que se quer disseminar e de um
trabalho de organização constrói-se uma história oficial, que transmite uma “verdade” e se
torna inviável questioná-la e desconstruí-la.
Portanto, trabalhar o silêncio é questionar a narrativa imposta e poder descobrir o que foi
ocultado, quais os fatores não dito. No caso da história do IPHAN, o empenho em valorizar o
Renato Soeiro, se iniciou com o pesquisador Paulo Ormindo de Azevedo, e fundamentando
neste, outros investigadores se empenharam em averiguar as ações de Soeiro e trazê-lo para a
história da instituição, com o prestígio que este merece. Apesar das pesquisas sobre Renato
Soeiro serem importantes contribuições para a historiografia sobre a preservação do patrimônio
cultural no Brasil e para a história do IPHAN, ainda não se sabe o motivo de tê-lo silenciado.
Segue-se na busca por respostas, por aqui ficam as reflexões e questionamentos trazidos neste
texto.

Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. A recompensa de Soeiro. In: Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, quinta
feira, 22 de março de 1979.

ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. Carta. 06/03/1967, Rio de Janeiro - RJ, para Tarso de Morais Dutra,
Rio de Janeiro. Série: PERSONALIDADES/ AA01/M036/P02?CX0129/P0417. Arquivo Central/IPHAN.

AZEVEDO, Paulo Ormindo David de. Homenagem do Conselho Consultivo do Iphan a Renato Soeiro. Rio
de Janeiro, 11 de agosto de 2005, p. 1. Disponível em:
<portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=363>. Acesso em: 27/01/2021 às 18 horas e 43
minutos.

AZEVEDO, Paulo Ormindo David de. Renato Soeiro e a institucionalização do setor cultural no Brasil. In:
AZEVEDO, Paulo Ormindo David de; CORRÊA, Elyane Lins (org). Estado e sociedade na preservação do
patrimônio. Salvador: Edufba; IAB, 2013, p. 19-53.

1651
ORLANDI, Eli Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6ª ed. - Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2007.

POLLACK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n.
3, 1989, p. 3-15.

RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain Franções [et al.] - Campinas,
SP: Editora da Unicamp, 2007.

SAPORETTI, Carolina Martins. A gestão de Renato Soeiro na direção da DPHAN (Diretoria do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional) (1967-1979). Dissertação (mestrado acadêmico) - Universidade Federal de
Juiz de Fora, Instituto de Ciências Humanas. Programa de Pós Graduação em História, 2017. 134 fl.

1652
RUÍDOS E RASTROS DO SERTÃO: anotações sobre os nós entre a casa, o sertanejo e o
lugar-sertão à luz do desamparo de Freud
NóCego - Outros silêncios.

Jadson Eugenio da Silva


Arquiteto e urbanista mestrando em Desenvolvimento Urbano; Universidade Federal de
Pernambuco, Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-graduação em
Desenvolvimento Urbano, Recife, Pernambuco, Brasil; jadson.eugenio@ufpe.br.

Lúcia Leitão dos Santos


Docente no PPG Desenvolvimento Urbano; Universidade Federal de Pernambuco,
Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento
Urbano, Recife, Pernambuco, Brasil; lucia.leitao@pq.cnpq.br.

Estas anotações propõem uma articulação sobre conceitos que permeiam entre a arquitetura e
subjetividade, através de interpretações da literatura, música e na psicanálise. Propondo-se
pensar a casa do sertão e o lugar-sertão como um constante “estar dentro”. Com isso, o objetivo
principal é investigar como as casas tratadas nas músicas escolhidas, em dois contextos
distintos, apresentam-se como refúgio para o ser[tanejo] retirante, projetando-se no
inconsciente como abrigo ideal capaz não só de enfrentar a condição do desamparo freudiano,
mas também, como reduto que salvaguarda sonhos, memórias e o imaginário do lugar-sertão.
O que permite, assim, ouvir os ruídos e perceber os rastros que silenciosamente contornam essa
morada capaz de abrigar o homem, como também abriga o tempo e a paisagem.
Palavras-chave: casa; lugar-sertão; sertanejo; desamparo; imaginário.

These notes propose an articulation about concepts that permeate between architecture and
subjectivity, through interpretations of literature, music and psychoanalysis. It proposes to think
of the sertão house and the sertão place as a constant “being inside”. Thus, the main objective
is to investigate how the houses treated in the chosen songs, in two different contexts, present
themselves as a refuge for the outgoing [tanejo] being, projecting themselves into the
unconscious as an ideal shelter capable not only of facing the condition of the Freudian
helplessness, but also, as a stronghold that safeguards dreams, memories and the imaginary of
the sertão place. This allows, therefore, to hear the noises and perceive the tracks that silently
go around this address capable of sheltering man, as well as sheltering time and the landscape.
Keywords: home; sertão place; countryside; helplessness; imaginary.

1653
1 – Anotações Iniciais
Partindo para uma breve compreensão do termo Sertão, ele “que é do tamanho do Mundo”
como narrou Guimarães Rosa em sua obra sublime Grande Sertão: Veredas, é definido como o
objeto de estudo. Ele que é investigado massivamente por vários campos disciplinares, como
literatura e geografia, mas que ainda não se consolidou inteiramente dentro das discussões da
Arquitetura e do Urbanismo. Sendo assim, o presente ensaio busca sinalizar, através destas
interlocuções, nós que aproximem o sertão narrado nas artes, que instituem e compõe o
imaginário do lugar, com a casa típica do sertão, uma vez que é válido pensar sobre uma possível
relação poética entre a casa e o sertanejo, tendo como aporte para analise os conceitos de
desamparo e identificação, de Freud, e guiado pelas compreensões das análises poéticas e
subjetivas composta pelas compreensões dos autores.
Pontuando, ainda, os caminhos que este ensaio busca galgar, dentro desses campos de estudos
citados incialmente, a literatura será responsável por narrar o Sertão do ponto de vista da
experiência, inteiramente fenomenológica, vivenciada pelos sertanejos, protagonistas das suas
próprias histórias e responsáveis por compor a identidade real do Brasil, como cita Eldorfe
Moreira, em Sertão: a palavra e a imagem: “Pelo litoral somos universais; pelo sertão somos
nós mesmos” para elucidar a importância do Sertão para a história do Brasil.
Por fim, as articulações entre o lugar–sertão, a casa e o sertanejo com o conceito de desamparo
serão através de uma análise das músicas: “Casinha Branca” de Gilson Vieira e “Sertão: Um Show
da Vida” de Estrela Sobrinho, dois compositores, que tiveram que deixar suas terras natal, mas
que possuem marcas identitárias do sertão impressas inconscientemente nas suas músicas.
Sendo assim, tem-se finalmente como objetivo principal investigar como as casas tratadas nas
músicas, em dois contextos distintos, apresentam-se como refúgio para o ser[tanejo] retirante
projetando-se no inconsciente como abrigo ideal capaz não só de enfrentar a condição de
desamparo freudiano que é carregado na psique, mas, também, como reduto que salvaguarda
sonhos, memórias e o imaginário do Sertão.

2 – Entre Ruídos e Rastros do sertão: Leitura das Músicas “Casinha Branca” e “Sertão: Um
Show De Vida” a luz do Desamparo de Freud
A Música é, indubitavelmente, uma das melhores formas que os artistas encontraram para
ilustrar e relatar suas vivências e experiências. Não obstante encontramos uma gama de
exemplares que narram sonhos, desejos ou memorias do compositor. A música Casinha branca,
Composição de Gilson Vieira, em 1979, é claramente um exemplo destes, pois consiste em uma

1654
anotação de desejos que marcam a memória afetiva do compositor que está longe de sua terra
natal. A música Sertão: Um Show de Vida, composta por Estrela Sobrinho, no ano de 2004, e
interpretada por Santanna, O Cantador, é, por sua vez, a realização do retorno a este lugar
primeiro registrado na memória que Gilson narra, o retorno a casa dos pais e ao sertão. Por este
motivo, nesta tentativa de análise buscou-se colocar uma música como complementar da outra,
possibilitando a visualização completa do desejo de todo retirante sertanejo: retornar ao seu
lugar originário.
Gilson inicia sua composição narrando o ápice do desamparo freudiano. Ele que nasceu no
Interior do RN, mas foi embora para São Paulo, compôs a música que é popular em todo o país,
em um momento de solidão e nostalgia. Por isso, os versos contam sua experiência em se
conformar com a realidade que lhe é estabelecida, como alguém incompleto, sozinho ou, ainda,
desamparado.
Eu tenho andado tão sozinho ultimamente
Que nem vejo à minha frente
Nada que me dê prazer
Sinto cada vez mais longe a felicidade
Vendo em minha mocidade
Tanto sonho perecer

Com isto, definindo o que é desamparo, Freud constata: para experimentar o desamparo, basta
nascer. Em um recém-nascido, este é um estado inicial, marcado pela dependência total e
involuntária do infante para suprir suas necessidades básicas e outras tensões. “O organismo
humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação específica. Ela se efetua por ajuda alheia”
(FREUD, 1969, p. 431 apud LIMA 2018). Esta experiência do desamparo é algo indissociável da
condição humana. Zeferino Rocha (1999) afirma que é uma dependência biológica, mas é,
inclusive, uma dependência de amor e desejo. É uma busca incessante, e inconsciente, por algo
que nos falta. “E por condição humana, entendo o nosso modo de ser situado no espaço e
limitado pelo tempo, nosso modo de ser no incessante irreversível fluir da existência” (ROCHA,
2016, p. 143).
Guiado pela incerteza, sozinho e com a felicidade cada vez mais distante, logo desamparado.
Um ser desejante, marcado pela incompletude, como narra a música. Um retirante buscando
institivamente o que lhe falta - um amparo - e os versos seguintes expressam com clareza a
função da casa como esta alternativa ao desamparo.
Eu queria ter na vida simplesmente
Um lugar de mato verde
Pra plantar e pra colher

1655
Ter uma casinha branca de varanda
Um quintal e uma janela
Para ver o sol nascer

Seria a casa, de fato, o abrigo ideal para nos amparar? A casa da música seria a sua casa da
infância, no sertão, marcada na memória afetiva do compositor? Ou um lugar primeiro, que
antecede a casa física, inscrita no inconsciente dele? O “lugar de mato verde” seria a descrição
da paisagem do sertão onde ele viveu, o mesmo que em um dos seus significados etimológicos
se apresenta como mato longe da costa? A “janela para ver o sol nascer” é a mais significativa
marca desta condição da casa enquanto abrigo e amparo, acessada por ser um espaço interno,
para entrar e morar – um constante “estar dentro”?
Certamente, o desejo de ter uma casinha branca demonstra como a música confirma que “a
casa é o nosso canto no mundo”, e como ela está diretamente conectada inconscientemente
com o lugar que está inserida. Ou ainda, como afirma Leitão (2007): é “um espaço do entrar, do
estar dentro, a experiência arquitetural por excelência”. Um espaço onde frequentamos,
fisicamente e inconscientemente, como na música, mas mais que isso, um lugar marcado pelo
à construção simbólica e cultural que o sertão imprime sobre o lugar e as pessoas. Com isso, nos
é pertinente indagar como Leitão (2012):
“Será que não se tem nessa associação um indício de que o espaço [...] é na
verdade a representação onírica de uma falta inescapável, de uma busca
incessante? Aquela mesma que nos persegue indefinidamente vida afora em
busca de nós mesmos? A experiência espacial, anterior à palavra, nos faz
reféns psíquicos dessa experiência? Estaria nessa experiência uma explicação
para o desejo de espacejar? Um desejo que extrapola, e muito, a simples
necessidade de abrigo? Um desejo que para além de fincar marcos e estacas,
constitui a subjetividade? ” (LEITÃO, 2012)

Existe, então, uma casa dos sonhos? E para o Retirante sertanejo, a casa dos sonhos
seria a casa que foi obrigado a deixar e anseia em retornar? Ou a casa dos sonhos é uma pulsão
inconsciente de um abrigo originário e que jamais o habitaremos de novo? Freud (2010, p. 18
apud Lima, 2018) fala que “a casa para moradia constituiu um substituto do útero materno, o
primeiro alojamento, pelo qual, com toda probabilidade, o homem ainda anseia, e no qual se
achava seguro e se sentia à vontade”. A casa seria, então, uma proposição humana (arkhê)
originária ou mais uma das invenções do homem no mundo “como se fosse um recém-nascido
desamparado”? (FREUD, 2010, p. 18 apud LIMA, 2018).
Com isso, a última estrofe da música confirma tudo que aqui foi exposto. Desta vez,
tendo a experiência do retirante sertanejo desamparado na cidade grande, através do não

1656
reconhecimento do seu espaço originário, inscrito nas expressões das pessoas, e da falta de
identificação simbólica e imagética do seu lugar de origem, “um lugar de mato verde”, o lócus
onde a casinha branca está inserida. Tudo isso contribui para afirmar que o desamparo na
música se manifestaria como, em uma realidade existencial, um desejo reprimido de retorno,
no inconsciente do compositor.
Às vezes saio a caminhar pela cidade
À procura de amizades
Vou seguindo a multidão
Mas eu me retraio olhando
Em cada rosto
Cada um tem seu mistério
Seu sofrer, sua ilusão

Nesta passagem, observamos a experiência de caminhar pela cidade, em busca de algo que o
falta e o inquieta, colocando-o em movimento. E a cidade como um vazio que implica em
transitividade, em não permanência; que faz caminhar. Por outro lado, a cidade tida aqui não
apenas a partir do ponto de vista de um espaço da arquitetura, mas como lugar resultante e que
recebe, mas não necessariamente acolhe, o retirante sertanejo, e que se apresenta também
como cenário, no qual o compositor retrata esta necessidade de buscar no outro ser um amparo.
Uma identificação malsucedida expressa no ato de retração.
Ao fim da música, o personagem retirante que a narra, afirma que cada um possui “seu
mistério”. Seria, então, este mistério, intrínseco a cada ser, a sua construção subjetiva,
amparada pelo imaginário apreendido ao longo da vida? Ou pelos desejos, sonhos e memorias,
que, assim como o compositor que anseia o encontro com a casinha branca, possuímos no mais
íntimo da psique e norteiam o desamparo?
Afim de especular sobre estas questões, pensar o desejo de se retrair para olhar o outro, infere-
se que o compositor exprime, na verdade, um auto reconhecimento da sua condição como
sujeito, como categoriza Leitão (2005): “É pela experiência de existir que o ser humano tem a
oportunidade de tornar-se sujeito. É nesse sentido que o outro se oferece como modelo e como
espelho. ‘Incapaz de ver seu próprio rosto’”. Isto por que é através do outro que enxergamos a
nós mesmos, em um processo de identificação. Sobre este conceito, ainda, Freud desenvolveu
a ideia de que cada sujeito se constitui a partir de uma relação singular – quanto à natureza –
com o outro. (FREUD 1920-21 apud LEITÃO, 2005). Mas poderíamos então reconhecermo-nos
na imagem da nossa casa? E a casa, como citou Azevedo (2018), pode espelhar a nós e nossa
forma de habitar?

1657
Seguindo a tentativa de ler de forma poética e subjetiva as composições e detectar traços
característicos que indiquem que a casa do sertão pode ser este abrigo ideal de amparo e
conexão com as memórias e desejos, chegamos a música “Sertão: Um Show de Vida”, de Estrela
Sobrinho, a qual objetiva-se trazer à tona a apreensão do sertanejo retirante, de Gilson, que vive
o desamparo na “cidade grande”, considerando a partir daqui o retorno deste retirante
sertanejo ao seu lugar de origem, o Sertão. Estrela, por sua vez, assim como Gilson, deixou sua
casa da infância para retirar-se para outros destinos, porém, possui uma relação afetiva e de
conexão com a casa da mãe, outrora abandonada, a qual visita esporadicamente a edificação,
que por está abandonada é marcada pelos ruídos e rastros deixados pelas vivências, mas
também pelo tempo e pelas intemperes.
Enfim, retornando para compreensão entre conceitos e versos, a ideia de identificação,
considera que cada sujeito se forma a partir de uma relação intrapessoal, a qual visivelmente
constatamos que o sertanejo se constitui sertanejo, de fato, através desta apreensão com a
paisagem, a natureza e com o conjunto de símbolos que constitui seu imaginário.
Depois de muitas madrugadas
Tendo que encarar o medo
E o frio das ruas
Sempre na mesma jornada
Uma vida crua
É tão bom saber
Que pra casa estou voltando

Este trecho inicial marca não somente o desamparo do retirante sertanejo, expresso nos versos
iniciais, e constantemente notado na música Casinha Branca, mas também se observa uma
variação de sentimentos, ao compositor afirmar que é bom saber que ‘pra casa’ está voltando.
Este sentimento que precede o de se amparar na sua casa, se dá também pela identificação do
objeto enquanto um lugar de abrigo.
Cheiro de terra molhada
No alpendre a rede armada
Menino de pé no chão
Um abraço na natureza
Um riacho em correnteza
É show de vida:
É o Sertão

Nesta passagem, marca-se a chegada ao sertão, e com isto, os primeiros traços do


reconhecimento da paisagem que outrora era constante na sua vivência, uma vez que, segundo
Azevedo (2018) antes do sertanejo habitar a casa ele habita a paisagem. Paisagem esta não se

1658
altera apenas pela substituição dos elementos edificados da cidade, e os elementos naturais
narrados nos versos, mas sim, como cenário de memórias e sonhos. Lugar-sertão que ultrapassa
o viés geográfico e que a partir desta compreensão começa a se apresentar dentro do que lhe
define a etimologia, como lugar interno, central - e por que não, uterino.
É nesta paisagem que se edifica a casa, reduto que acolhe o filho que retorna, mas também que
se coloca como espelho dele, determinando, por conseguinte, elementos fundamentais para a
constituição da sua psique. Sendo assim, A casa da Infância de Estrela Sobrinho (ver figura 1), é
tipicamente uma casa das áreas rurais do sertão, com telhado de duas águas, padrão porta e
janela, texturas e cores mnemônicas, sem apelo estético, produzida por técnicas construtivas
locais pelas mãos do sertanejo. – Imageticamente similar as características da casinha branca,
com “um quintal e uma janela, para ver o sol nascer”, como narra a música. Porém, que cumpre
o seu papel fundamental de proteger, “não apenas das hostilidades ambientais, sua face mais
visível, mas também em sua dimensão simbólica do desamparo que marca o humano frente à
experiência de existir” (LEITÃO, 2007, p. 56).

Figura 1: Casa da infância onde viveu o Compositor Estrela Sobrinho em São João do Rio do Peixe, no
Sertão da Paraíba.1

Fonte: Estrela Sobrinho, 2010.

1
A foto foi postada por Estrela Sobrinho em 15/11/2010. E possui a seguinte legenda: “Esta é a foto da
casa, da antiga fazenda são Joaquim. Localizada no Sítio Pereiros, Município de São João do Rio do Peixe,
Pb. HOJE, ENCONTRA-SE ABANDONADA. Más é lá que está plantada a maior saudade que eu sinto da
minha Mãe! Porque foi lá que eu vivi a minha infância! Francisco Estrela Sobrinho. João Pessoa, PB”
Disponível em:
<https://www.facebook.com/photo?fbid=131840510205284&set=ecnf.100001380062741>

1659
Continua a música, então, e na sua construção é chegado o momento de acessar o íntimo - o
espaço interno – da casa, ou por identificação, do próprio compositor:

Um bule num fogão de lenha


Ô de casa! É a senha
Para uma prosa então

Eis que este entrar, caracteriza a definição da casa do sertão como este constate “estar dentro”,
uma vez que cabe a arquitetura a função de se ofertar como espaço-mãe, que, de acordo com
Lima (2018), seria capaz de acolher esse vazio do Eu com o vazio próprio da sua matéria: o
Espaço – objeto de realização de desejos; o Interior – lugar de memória e cavidade desde muito
cedo apreendida; onde bem se deseja estar. Memória esta que está inserida na vivência do
sertanejo, como definiu Menezes (2012), que ao tratar da inspiração de Ariano Suassuna,
constatou que estas construções simbólicas na memória e imaginário dos sertanejos são
“marcas indeléveis guardadas de uma infância sertaneja na região do semiárido” (MENEZES,
2012).
Com isso, seria revisitando o passado, repleto de marcas do imaginário sertanejo, da apreensão
da paisagem, e do espaço interno da casa como abrigo que conseguimos suprir uma falta que
nos é imposta e marcada pelo desamparo desde o nascimento? A partir desta indagação
trazemos para complementar está análise os últimos versos da música, um poema incidental –
como propõe o compositor, que mais se assemelha com o mergulho na memória afetiva acerca
do sertão, e da sua casa:
A imagem que eu divisei
Em tarde de sol bem quente
Fez meu passado surgir
De relance em minha mente
Em sujinhos pés descalços
Que corriam alegremente
Sem sequer se importar
Com o que virá pela frente
E sem notar que o futuro
Faz-se hoje, no presente

A Imagem que o compositor enxerga seria como um sonho que traria à tona seu inconsciente?
Ou a esta imagem atribuiria, nesta análise, seu significado dentro do conceito de imaginário,
articulado com questões eminentemente das suas vivências sertanejas? O passado que ressurge
em sua mente, seria a forma de trazer à consciência as memórias da infância, sem registros de

1660
desamparo e solidão? E os pés descalços que corriam pelo lugar seria o conectar-se na forma
mais pratica possível com suas raízes, fincadas no solo sertanejo?
Embora todas estas indagações nos ofereçam condições de pensar através de um olhar mais
poético, esta experiência do compositor ao revisitar a sua casa da infância, os versos que mais
inquietam são: “Sem se quer se importar com o que virá pela frente”. Seriam estes o ápice do
sentimento de amparo e proteção, mesmo que momentâneo, mas que marca o espaço da
arquitetura como, definitivamente, o sucedâneo do útero? Seria este sonho, em um olhar
psicanalítico, a conexão mais genuína com o sertão – pelos pés descalços – e com a mãe - pelo
espirito do lugar – tendo sua imagem materna espelhada na imagem da casa?
Caberia aqui, então, a um psicanalista acessar o inconsciente do compositor e desvendar junto
a ele a maioria destas questões. Porém, para a nossa articulação epistemológica, tudo que se
inferiu já é suficiente para nos fazer pensar sobre o papel da arquitetura para além da sua
condição material e tectônica, e isso porque “o espaço da arquitetura é também ele uma
articulação de sentidos e significados. ” (LEITÃO, 2012).

3 – Anotações Finais
A casa do sertão tem na sua essência as marcas de um imaginário instaurado. A literatura e as
artes são responsáveis por acessá-lo, reconhecer as raízes do povo sertanejo e lhes apresentar
como algo que é essencialmente seu. Este sertão como objeto cultural, se apresentou sempre
como um lugar que acolhe e abriga essa construção simbólica e cultural. E é por ser,
fundamentalmente, o “coração das terras” como propõe seus significados, que ele se manifesta,
além da territorialidade.
Reconhecer a casa como o abrigo que nos ampara em meio a condição humana de viver em
desamparo, é afirmar a genuína capacidade dela de também ser um espaço-mãe, para filhos
órfãos das terras secas. É entender que para o sertanejo, por mais que o amor pela natureza
transcenda a fome, a seca e as injustiças sociais, recolhido em seu lar, podem se “desarmar”,
bem como fazia os cangaceiros ao chegarem nas casas de familiares, ou como fazem os
vaqueiros, ao retornar do interior das matas. Diferente deles, claro, é um desarmamento de
espirito, uma vez que o interior da casa se coloca como lugar sagrado, silencioso e intocável pelo
mundo e elevado ao sentido espiritual de proteção, e por que não, amparo.
É nela onde abriga-se a felicidade, em detrimento a dor dos seus. Onde reside a coragem, mas
também a mansidão. É uma fonte de recarga da força que nunca seca. É a dualidade ora oposta,
ora complementar em perfeita simbiose entre o bem e o mal. São as fraturas nas paredes, os

1661
rastros que marcam o fluxo no seu interior, o ápice da cumeeira que marca o limite do espaço
que resguarda, o fogo e a intensidade da cozinha e o aconchego de uma rede para deitar. É o
encolher-se para rezar, e o esticar-se para despertar. É a perfeita harmonia do som dos pássaros
céu a fora, comunicando-se como a mãe que canta para o filho no útero, é o encanto do luar
que prateia e ilumina a escuridão a fora e o brilho do sol que não hesita em voltar e marcar o
ciclo vital do sertão, enfim, são os entrelaçados, os nós entre morada, sujeito e lugar.
A casa é o sertão. É um involucro do corpo, mas também da alma, um encontro fiel com a nossa
individualidade. É, sem dúvidas, a tentativa mais próxima do retorno ao abrigo ideal, para o
sertanejo. É como narrou Guimarães Rosa: o “Sertão é isto: o senhor empurra para trás / mas
de repente ele volta a rodear / o senhor dos lados. / Sertão é quando menos se espera”. “O
Sertão é por todo lado”, mas é também por lado nenhum para quem vive o ensurdecedor
silencio que a saudade e o desamparado propiciam, como na música de Gilson. É a alegria de
retornar como na música de Estrela, e o retorno é festa, por que o “Sertão foi feito para ser
sempre assim: Alegrias”. É, finalmente, a casa que abriga a paisagem e o tempo num constante
estar-dentro, mesmo “sem porta nem janela”. “O Sertão é dentro da gente”.

Referências
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FREUD. Sigmund. (1927). O Futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 1969.

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Letras, 2010

GARCIA-ROZA, Luiz A. Freud e o Inconsciente. 24.ed. Jorge Zahar Ed. Rio de Janeiro. 2009

LEITÃO, Lúcia. Aula da disciplina de Teoria da arquitetura e do urbanismo dia 25 de agosto de


2020. MDU: 2020.

LEITÃO, Lúcia. Dora, uma arquitetura para sonhar. Revista Arq.Urb, v. 8, p. 8-14, 2012.

_______. “Entra na tua casa: Anotações sobre arquitetura, espaço e subjetividade”. In Lúcia
Leitão e Luiz Amorim (Org.). A casa nossa de cada dia. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2007

_______. Quando um muro separa e nenhuma ponte une. Cadernos Metrópole, N. 13, pp.
229-253, 1º sem. 2005

LIMA. Humberto. Espaço e desamparo em A obscena Senhora D – uma reflexão interdisciplinar


por meio da arquitetura e da psicanálise a partir da novela de Hilda Hilst. Revista Investigações
Vol. 31. 2018

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MENEZES. Eduardo D. B. de. Ariano Suassuna e o imaginário popular do sertão. Revista do
Instituto do Ceará. 2012

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(8 vols.). Belém: CEJUP, 1959

ROCHA, Zeferino. Desamparo e metapsicologia: para situar o conceito de Desamparo no


contexto da metapsicologia freudiana. In: SÍNTESE REVISTA DE FILOSOFIA. Síntese: Belo
Horizonte, v.26, n.86, pp. 331- 346, 1999

ROSA, J.G. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

ZEVI, Bruno. Saber ver a arquitectura. Lisboa: Editorial Minerva, 1977.

1663
SILÊNCIO SOBRE A FERROVIA: a estrada de ferro do Porto do Rio Grande
NóCego - Outros silêncios

Gladis Rejane Moran Ferreira


Doutoranda, Universidade Federal de Pelotas
gladisbiblio@gmail.com

Carla Rodrigues Gastaud


Doutora, Universidade Federal de Pelotas
crgastaud@gmail.com

Este trabalho objetiva buscar as memórias da estrada de ferro do Porto do Rio Grande que são
importantes para a história e a identidade de quatro cidades: Capão do Leão, de onde eram
extraídas as pedras que partiam de trem e atravessava Pelotas, até cruzar o Canal São Gonçalo;
Rio Grande, onde a linha se dividia nos caminhos para ambos os molhes, e São José do Norte,
para o molhe leste. Esta linha operou por aproximadamente um século, levando pedras,
equipamentos e trabalhadores. Apesar de sua importância para a memória do porto e das
cidades, esta ferrovia, não consta na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário Brasileiro1.
Palavras-Chave: Estrada de ferro do Porto do Rio Grande; Memória; Identidade; Patrimônio
Ferroviário

This work aims to seek the memories of the railroad of Porto do Rio Grande, which is important
for the history and identity of four cities: Capão do Leão, from where the stones that left by train
and crossed Pelotas were extracted, until crossing the Canal Sao Goncalo; Rio Grande, where
the line split on the paths to both jetties, and São José do Norte, to the east jetty. This line
operated for approximately a century, carrying stones, equipment and workers. Despite its
importance for the memory of the port and the cities, this railroad is not included in the Brazilian
Railway Cultural Heritage List.
Keywords: Porto do Rio Grande Railway. Memory. Identity. Railway Heritage

1
Segundo documento oficial, endereçado ao Porto do Rio Grande, (Ofício n.2338/2016/IPHAN-RS e
proc.16/0443-0000756-5.

1664
1 – Entre a memória e o esquecimento
A cidade do Rio Grande se estabeleceu junto com o Porto do Rio Grande a partir de 1737, em
meio a disputas militares para proteger as terras da Coroa Portuguesa. Após dez anos de sua
formação o lugar passou a chamar-se Vila de São Pedro e de 1752 em diante o porto passou a
ser cenário da chegada de imigrantes para ocupar a região sul do Brasil. O ancoradouro natural
recebe em seu cais de madeira os produtos necessários para manter as fortificações2, tais como;
mantimentos, utensílios e munições, indispensáveis para o crescimento da Vila (TONERA;
OLIVEIRA. 2011).
No século XIX, os produtos comercializados eram o trigo, o couro e o charque, que além de
abastecerem a região sul tinham como destino outros estados do Brasil. Com destaque para o
couro que também era exportado para a Europa (QUEIROZ, 1987). Em contrapartida o porto
recebia produtos que abasteciam o Rio Grande do Sul; entre eles o sal, que chegava para as
charqueadas; além de metais, têxteis e escravos. Os produtos eram diversificados e o comércio
intensificado o que levou a Coroa Portuguesa, em 1804, a criar a Alfândega e, no ano de 1808,
através de Carta Régia, os portos brasileiros foram oficialmente abertos às nações amigas de
Portugal.
No final século XVIII e início do século XIX, devido a invenção do barco à vapor e ao tamanho das
embarcações o porto teve que se adequar às necessidades da época, para a navegação. Estas
técnicas modernas criaram uma conexão mundial entre diferentes regiões e contextos globais
(GIDDENS, 1991). Assim, a cidade passou a receber influências sociais diversificadas e a ser a
principal entrada e saída de pessoas e produtos do sul do Brasil. Nesta dinâmica chegaram
trabalhadores com diferentes técnicas que buscavam trabalho na orla marítima/portuária,
criando gradativamente sua identidade, de cidade portuária (FERREIRA, 2016).
A cidade desenvolvia-se, porém, era necessário conter a fúria da “Barra Diabólica” que por sua
configuração geográfica apresentava perigo de acesso ao Porto, imposto pelos fortes ventos e
mudanças nas marés, causando assoreamento na entrada do canal de acesso ao Porto do Rio
Grande. Para tentar sanar este problema, no ano de 1846, o Governo Imperial criou
oficialmente a Inspetoria da Praticagem da Barra para ajudar as embarcações, na transposição
das águas no canal. A partir de 1869 aparelhou-se o porto e, em 1871, iniciaram as obras do Cais
de Pedra da Alfândega, concluídas em 1872 (FERREIRA, 2016).

2
Várias fortificações foram construídas na margem da Lagoa dos Patos com o intuito de proteger o
extenso território do extremo sul do Brasil (FERREIRA, 2016).

1665
Neste século, no ano de 1854, foram inaugurados os primeiros quilômetros de estrada de ferro
no Brasil, ligando a Capital do Império a Minas Gerais e boa parte do capital investido na
construção da estrada foi estrangeiro. Segundo Lanna (2005, p.8),
as linhas construídas ao longo das duas primeiras décadas de investimentos
ferroviários no Brasil (1850/1860) eram, em sua maioria, de capital inglês e
localizaram-se na Bahia, em Pernambuco, no Rio de Janeiro e em São Paulo,
consolidando uma visão de ocupação e desenvolvimento do território, que
articulava povoamento [...] a porto exportador.

Além da participação inglesa na construção das ferrovias de todo o mundo, no Brasil a Inglaterra
também era responsável pela montagem do material de ferro, das máquinas, das estações e da
mão de obra qualificada.
Nos anos seguintes a construção do Cais de Pedra da Alfândega, em Rio Grande, estudos foram
feitos para aumentar a extensão do cais e dragar o canal de acesso, engenheiros foram
contratados e comissões formadas, com destaque para a Comissão de Melhoramento do Porto
e Barra do Rio Grande do Sul, criada em 1883 e presidida pelo engenheiro Honório Bicalho. Esta
comissão foi a que apresentou o projeto para construção de dois molhes convergentes na
entrada da “Barra Diabólica”3.
Nesta época o Rio Grande do Sul abastecia de charque a região central do Brasil, indústrias
chegavam ao estado do Rio Grande do Sul através do porto, razões pelas quais ferrovias
necessitavam ser construídas para o escoamento da produção e para o deslocamento dos
imigrantes chegados ao porto, a fim de povoar o estado do Rio Grande do Sul.
Inicialmente a estrada de ferro Porto Alegre-Novo Hamburgo atendia aquela zona colonial, mas
havia a necessidade de estender as linhas até a fronteira sul do estado e, em 1884 chegaram até
Bagé, Cachoeira do Sul e Santa Maria.
No último ano do Império, 1889, o governo central autorizava a concorrência
para a extensão da linha sul de Bagé até Cacequi e, no mesmo ano, o tronco
central tinha como meta atingir a segunda cidade para fazer a ligação com a
estrada de ferro Rio Grande-Bagé (RANSOLIN, 1999, p.20).

Nesse ínterim o Porto do Rio Grande tinha que se adequar a aspirações comerciais dos
investidores da estrada de ferro brasileira da época, que também se interessaram em investir
no Porto do Rio Grande, assim, no ano de 1908, o Governo Federal, representando o Porto do

3
A origem da denominação “Barra Diabólica” não é clara, mas aparece em termos análogos usados por
Silva Paes e pelo governados Gomes Freire de Andrade, ainda na primeira metade do século XVIII (TORRES,
2015).

1666
Rio Grande, contratou a Compagnie Française du Port do Rio Grande do Sul para executar o
projeto do engenheiro Honório Bicalho e sua Comissão.
Um dos molhes fica do lado oeste, na cidade do Rio Grande, e o outro, do lado leste, na cidade
de São José do Norte. O contrato também contemplava a construção de um novo porto, tendo
em vista que o porto natural da cidade do Rio Grande já não atendia as necessidades e interesses
comerciais da época. Terras foram compradas e duas pedreiras adquiridas para a extração de
pedras necessárias à construção dos molhes. Para a ligação das pedreiras às cidades de Pelotas
e Rio Grande, até a Barra e ao Porto, uma estrada de ferro foi construída.

A estrada de ferro portuária


Os trechos da estrada de ferro portuária iam das pedreiras ao Porto Novo; do Porto Novo à raiz
do futuro Molhe Oeste; do local chamado Cocuruto, em São José do Norte, à raiz do futuro
Molhe Leste; e, por fim da estação de Pelotas até a Pedreira do Capão do Leão (PRADEL, 1979).
Caminhos foram abertos na mata e lugares foram criados, haja vista a necessidade de alocar
trabalhadores ao longo da estrada os quais auxiliaram no transporte e mantiveram o estado da
estrada até o final do século XIX e início do século XX. Alguns desses locais são conhecidos até
hoje, outros desapareceram por completo e caíram no esquecimento, alguns permanecem
apenas nas lembranças.

Figura 1 Chegada das pedras na localidade de Cocuruto em São José do Norte, para serem levadas até a
raiz do Molhe Leste

Fonte: Acervo do Século XX. Porto Novo. Pedreira do Capão do Leão. Base de fotos digitais. S. XX.PN.006
Biblioteca do Porto do Rio Grande

Criou-se a famosa “GARE”, como ficaram conhecidas as estações da estrada de ferro do Porto
do Rio Grande, lugares ainda citados em rodas de conversas entre os trabalhadores aposentados

1667
que se ocupavam de conduzir as locomotivas a vapor, chamadas de Maria Fumaça, que depois
foram substituídas por outras locomotivas, e de trabalhadores que se ocupavam da manutenção
e segurança da estrada.
No documento de inventário dos bens deixados pela Compagnie Française du Port do Rio
Grande do Sul, em 1919, que fazem parte do acervo da Biblioteca do porto, consta o material
rodante, incluindo trilhos, locomotivas, plataformas, caixas para transporte de pedras, vagões
de carga, vagões para transporte de operários, vagões salão, para inspeção do trabalho,
vagonetas para aterro necessário para a construção da estrada, vagonetas para o transporte dos
operários. Também deixou em inventário os trilhos novos e a própria estrada de ferro.
As áreas desapropriadas e adquiridas para a construção da estrada de ferro também foram
inventariadas, por elas passavam pontes e pontilhões. Estas áreas estão descritas nas matrículas
notariais, estudadas no momento, para possibilitar, juntamente com plantas, projetos e
fotografias, que a linha férrea seja definida. Entre as pontes se destaca a que passa pelo Canal
São Gonçalo, que liga Pelotas a Rio Grande, e a Ponte dos Franceses4, antiga ponte de ferro,
construída para ligar a cidade do Rio Grande à faixa de terra do Saco da Mangueira e a Barra.

Figura 2 Transporte das pedras na Ponte dos Franceses

Fonte: Acervo do Século XX. Porto Novo. Pedreira do Capão do Leão. Base de fotos digitais. S. XX.PN. 07
Biblioteca do Porto do Rio Grande

4
Atualmente, ao lado da antiga ponte existe uma ponde de concreto que recebeu o mesmo nome, porém,
ainda existe resquícios da ponte de ferro.

1668
As obras de construção dos molhes da barra e do novo porto foram concluídas no ano de 1915
passando a operar na cidade dois portos. O mais antigo passou a ser chamado de Porto Velho,
por oposição ao novo porto que recebe o nome de Porto Novo.
No início do século XXI, durante as obras de modernização do cais do Porto Novo do Rio Grande
foram retirados os antigos trilhos trazidos pela Compagnie Française du Port do Rio Grande do
Sul durante o processo de construção deste porto.
Estes trilhos, fizeram parte da operação portuária por aproximadamente cem anos, e serviram
de linha por onde rodaram locomotivas, guindastes e outros equipamentos portuários. O
material sucateado e retirado das obras é de aproximadamente 800 toneladas e será licitado,
vendido e reaproveitados ou até mesmo derretido por indústria siderúrgica.
Alguns lugares e técnicas portuárias ficaram para trás, no passado, devido às fases de
modernidade que a globalização e o capitalismo exigem do mercado de transportes, mas alguns
equipamentos portuários/ferroviários ainda fazem parte do rol de bens permanentes do porto.
Alguns, ainda preservados, outros nem tanto, mas a grande maioria se perdeu, assim como
grande parte da linha.
Neste contexto, a estrada de ferro da Compagnie Française du Port do Rio Grande do Sul, e o
que ela representa para a história do porto está esquecida, ainda sem proteção, em meio a mata
e seus caminhos desfeitos. Os lugares criados por ela estão alterados pelo tempo, que consome
e desfaz os rastros de memória do passado (RICOEUR,2007), apesar de serem testemunho
histórico5 do porto.
A maioria dos seus trilhos ao longo do percurso foi retirado, com exceção dos afastados do cais
do porto, durante as obras de modernização, os demais, possivelmente, foram arrancados por
vândalos ou para a modernização dos caminhos, dando lugar às estradas asfaltadas. Esta
ferrovia está relegada ao esquecimento, mas a memória dos lugares, da trilha e dos fazeres que
a envolvem permanece em rastros e restos, sinais e lembranças.
O esquecimento faz com que fatos importantes da história e da trajetória do Porto deixem de
ser lembrados. Além disso, e sua história não se limita ao porto uma vez que cidades foram
cortadas por esta estrada de ferro e fazem parte do contexto de Patrimônio Industrial da cidade
do Rio Grande, Pelotas, Capão do Leão e São Jose do Norte. “O patrimônio industrial se compõe
dos restos da cultura industrial que possuem um valor histórico, tecnológico, social,
arquitetônico ou científico” (Carta de Nizhny 2003).

5
Artigo 3° da Carta de Veneza. Instituto Histórico e Artístico Nacional. IPHAN.

1669
O passado da estrada de ferro, o que se lembra ou o que se esquece, deve ser ativado no
presente através dos rastros deixados. Estas ativações “dependem criticamente da herança dos
poderes políticos” (PRATS, 2005, p.20), e das recordações dos operários e moradores das
localidades criadas por esta ferrovia e pelos sinais deixados em documentos e fotografias. A
lembrança da estrada e dos fazeres, pode ser sentida ou herdada pelo contato social e pelo
pertencimento. Para Gonçalves (2005, p. 19),
um patrimônio não depende apenas da vontade e decisão política de uma
agência de Estrado. Nem depende exclusivamente de uma atividade
consciente e deliberada de indivíduos ou grupos. Os objetos que compõem
um patrimônio precisam encontrar “ressonância” junto a seu público.

No entanto, ainda “esquecemos mais do que lembramos” (CANDAU, 2012, p.16) e apesar dos
processos de ativação da memória para este patrimônio, que integra o patrimônio cultural,
material e imaterial do Porto do Rio Grande parte desta ferrovia continuará esquecida.

Referências
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CARTA DE NIZHNY. Disponível em: <https://ticcihbrasil.com.br/cartas/carta-de-nizhny-tagil-sobre-o-


patrimonio-industrial/>. Acesso em 18/03/2021.

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GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991.

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RANSOLIN. Antonio Francisco. As ferrovias no Rio Grande do sul e no Uruguai (1870-1920): um estudo
comparativo. São Leopoldo. UNISINOS, 1999. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em
História. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Disponível em:
<https://www.ufsm.br/grupos/nefers/publicacoes>. Acesso em 10/03/2021.

1670
RICOEUR, Paul. A Memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. da Unicamp, 2007.

TONERA, Roberto; OLIVEIRA, Mario Mendonça (Orgs). As defesas da ilha de Santa Catarina e do Rio
Grande de São Pedro em 1786: de José Correia Rangel. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2011.

TORRES, Luiz Henrique. A Barra Diabólica: centenário da inauguração dos Molhes da Barra e do Porto
Novo do Rio Grande. Rio Grande: Pluscom, 2015.

1671
SILENTE PATRIMÔNIO
NóCego - Outros silêncios.

Luciano Mouassab Chalita


Arquiteto e urbanista graduado pela UNITAU, mestre em ciências ambientais pela UNITAU e
doutorando em arquitetura e urbanismo na área de paisagem e ambiente pela FAU-USP;
Universidade de São Paulo; luciano.chalita@usp.br.

Patrimônio, paisagem e silêncio estabelecem entre si uma infinidade de diálogos possíveis, do efetivo
silêncio da paisagem enquanto patrimônio, ou do patrimônio enquanto paisagem, ao silenciar que não
raramente se impõe a ambos. Partindo de um olhar para o silêncio como propiciador, facilitador, ou
até mesmo condicionador da paisagem experenciada, o artigo se propõe a lançar uma reflexão: o
silêncio como patrimônio, especialmente, da paisagem. Olhar para o silêncio como patrimônio
essencial às manifestações que dele emergem se coloca, então, no foco da reflexão proposta, se
debruçando sobre as transformações vivenciadas pelo núcleo urbano inicial da cidade de Taubaté, no
interior de São Paulo.
Palavras-chave: paisagem; patrimônio; silêncio.

Heritage, landscape, and silence establish among each other a multitude of possible dialogues, from
the actual silence of the landscape as heritage, or of the heritage as landscape, to the silencing that
not rarely is imposed on both. Starting from a glance at the silence as a propitiator, facilitator, or even
as a conditioner of the experienced landscape, this article aims at launching a reflection: silence as a
heritage, especially as a landscape heritage. Looking at silence as an essential heritage for the
manifestations that arise from it are then at the focus of the reflection proposed, dealing with the
subject of the transformations undergone by the initial urban core of the city of Taubaté, an inland city
of the State of São Paulo.
Keywords: landscape, heritage; silence.

1672
1 – Paisagem, patrimônio e silêncio
Estabelecer diálogos entre patrimônio, paisagem e silêncio abre uma infinidade de interações
possíveis. O patrimônio na paisagem, a paisagem como patrimônio, e o silenciar comumente
vivenciado por ambos são algumas delas. Propõe-se abordar o silêncio que se apresenta pela
ausência de ruídos, tomando o ruído como a interferência humana que rompe com a harmonia
sonora do ambiente natural, tido, então, como ente que propicia a experimentação da
paisagem, colocado aqui como patrimônio que pode abrir possibilidades e discussões acerca dos
espaços e seus ruídos, sejam eles visuais, olfativos, táteis ou mesmo sonoros. Observador e
espaço se encontram na paisagem possível que se estabelece numa experiência sensível
propiciada por um conjunto de elementos e fatores que os envolvem. Experiência única e
pessoal que tem, entre outros possíveis condicionantes, o silêncio em suas infinitas
possibilidades, da sua plenitude à sua incompletude. Escalas de silêncio e de silêncios. O silêncio
que transcende a audição, perpassando pelos demais sentidos, na sinestesia que culmina na
fruição de uma experiência sensível da paisagem. Propicia o silenciar e a conexão interior para
uma relação que se estabelece entre observador e espaço, conectando horizontes. O silêncio na
paisagem como a pausa na música ou a ausência de pigmentos na pintura. O respiro necessário
à cadência, à percepção, à perspectiva. Respiro dado pela ausência de ruídos, também em suas
variadas escalas e manifestações possíveis.
Traz-se então um olhar para o silêncio como patrimônio inerente à possibilidade da paisagem,
não encerando de forma a encerrar a discussão acerca do tema, mas a ampliando, identificando
olhares e abordagens frente às diversas relações entre os entes envolvidos: paisagem, silêncio
e patrimônio.
O termo patrimônio em seu entendimento mais simples e literal, como um conjunto de bens,
conforme apontam os dicionários, nos leva a observar como os entes abordados se
enquadrariam como tal, trazendo inicialmente uma abordagem da paisagem enquanto
patrimônio. O olhar para a paisagem como um patrimônio nos leva então a reconhecê-la como
um bem, sem incialmente restringi-la a apenas um conceito. Os diversos entendimentos e
definições que permeiam a paisagem podem remeter a distintos contextos e composições,
propondo-se aqui o direcionamento do olhar para a possibilidade da paisagem no ambiente
urbano. Antes de se adentrar ao urbano, cabem distinções entre ambiente e paisagem como
forma de contribuir à análise a ser desenvolvida. O ambiente como conceito físico-biológico e a
paisagem como conceito relacional, como aborda Paolo D’Angelo (D’ANGELO, 2010) ao analisar
diferentes experiências estéticas no contato com a natureza, que não necessariamente se

1673
excluem ou divergem. A paisagem como experiência única, onde a fruição se coloca de forma
particular na orientação e organização do sensível, resultante de uma percepção enquanto
sinestesia, envolvendo os diversos sentidos do observador, do qual é indissociável. D’Angelo
aponta que a percepção enquanto sinestesia, afasta a experiência de uma relação com coisas e
a aproxima de atmosferas, da percepção estética da natureza da forma que se apresenta à
individualidade. Toma-se aqui então o uso do termo ambiente como agregador da atmosfera
que envolve o meramente físico e biológico que o compõem. Não se propõe, contudo, a adoção
de um modelo, mas de possibilidades norteadoras do olhar proposto, agregando ainda outros
recortes, especialmente pela abordagem urbana.
O espaço urbano pode por muitas vezes excluir ou ocultar elementos da natureza, evidenciá-los
ou não, atribuindo maior ou menor valor qualitativo a uma paisagem, a depender do conceito
adotado. Propõe-se direcionar o olhar para a presença desses elementos, sejam físicos ou
biológicos, no ambiente estudado, o que não excluiria, porém, a validade do estabelecimento
da relação do silêncio com a paisagem em ambientes totalmente edificados. Também a
paisagem estritamente urbana se estabelece em uma relação que se dá pela sinestesia,
envolvendo os sentidos, seus ruídos e silêncios.
À presença ou evidência de elementos naturais na paisagem soma-se outro importante
elemento, o horizonte, que se estabelece pela possibilidade de conexão visual entre o céu e a
terra, aspecto abordado por Michel Corajoud (CORAJOUD, 2001), não necessariamente pelo
contato direto de ambos, mas por elementos que os integram, estabelecendo essa ponte. O
olhar para o horizonte ganha maior expressão quando expandido seu entendimento, como
coloca Michel Collot ao abordar percepções do que é visível e invisível, resultando em
manifestações de paisagens que corresponderiam a horizontes externos e horizontes internos,
evidenciando o ponto de vista do observador (COLLOT, 1995). A parte de um todo que tem sua
particularidade não apenas como parte, mas enquanto relação, estabelecida por referenciais e
experiências pessoais e intermediada por sistemas simbólicos. A estruturação da paisagem se
dá sobre a leitura de signos e significações de seus elementos e linguagens (MERLEAU-PONTY,
2004). A possibilidade da paisagem demanda uma conexão do observador com o ambiente
experenciado, acionando e ativando seus sentidos. O silêncio como propiciador da fruição da
experiência sensível que torna a paisagem possível, ao reduzir ruídos que interfiram nessa
conexão, torna mais efetiva essa possibilidade. Eugênio Turri reforça essa relação já no início de
sua obra “Il paesaggio e il silenzio”:

1674
O tempo da paisagem não é o tempo do homem. O tempo da paisagem é o
tempo do silêncio, o tempo do homem é o tempo do ruído. (TURRI, 2010,
p.21)

A contraposição entre os tempos do homem e da paisagem, especialmente por suas correlações


com o silêncio e o ruído, remetem a uma paisagem ligada à ideia de natureza. Turri aponta o
período da Revolução Industrial como aquele em que as mudanças produtivas e suas
decorrentes transformações sociais nos colocam efetivamente diante do ruído resultante da
ação antrópica (TURRI, 2010). O período também é destacado pelo geógrafo Milton Santos como
a transição entre a predominância da ação antrópica sobre o ambiente natural, períodos que
classifica como meio natural e meio técnico, antes e após a revolução industrial,
respectivamente (SANTOS,2002). Turri e Santos reforçam o século XIX como momento de
transformações que alteraram as paisagens de nossas cidades, especialmente os sentidos
explorados nessa abordagem, a visão e a audição.

2 – Silêncio: sons e ruídos


O silêncio na filosofia remete ao inefável e à transcendência (ABBAGNANO, 2020). Usualmente
é entendido com clareza por qualquer um que ouça a palavra, embora nem sempre seja
percebido, e talvez sequer vivenciado de forma efetiva. O silêncio se faz pela ausência de sons
e ruídos, com harmonias e dissonâncias. Toma-se aqui o ruído como os sons decorrentes da
presença e ação do homem no ambiente numa distinção daqueles presentes no ambiente
natural, desde o vento que toca as matas, às águas correntes e à fauna a ele associado. Embora
sons harmônicos possam ser produzidos pelo homem, como na música, não serão considerados
para efeito desta análise.
A paisagem como resultante de uma relação do observador com o ambiente, envolve não
apenas um dos sentidos humanos, e sim uma sinestesia entre todos, que tem sua percepção
predominantemente pelo campo visual. É pela percepção visual, e predominantemente pela
expressão visual, que representamos habitualmente a paisagem.
Observar a relação estabelecida entre paisagem e silêncio nos põe, inevitavelmente, diante de
ao menos dois sentidos, visão e audição. É certo que os demais sentidos estão presentes na
experiência da paisagem, com memórias afetivas ou mera interação perceptiva podendo ser por
eles despertadas. Olfato, tato e paladar compõem a sinestesia que envolve a percepção, mas
por ora não serão objetos de aprofundamento. Uma ressalva particular ao olfato, que para além
de sua participação na experiência da paisagem, historicamente esteve presente nas

1675
transformações do ambiente, especialmente com intervenções que buscavam afastar da
sociedade a presença de odores indesejáveis. Os odores estariam para o aroma como o ruído
está para o silêncio.
Tão necessário quanto distinguir o silêncio do ruído como elemento que o dilui, deve se
distinguir o silêncio do silenciar. O silenciar pode remeter ao calar ou ao aquietar. O silenciar
que cala um patrimônio e o silenciamento que aquieta o observador. O silenciar que cala a
expressão pode mudar conforme o ente: silenciar a natureza, silenciar a possibilidade de
paisagem, silenciar a arquitetura. Todos podem estar conectados com o silenciar interno do
observador, que é aquele que permite a experiência da sinestesia que transcende, que almeja o
inefável.

3 – Patrimônios
Se temos a paisagem como um bem a ser preservado, temos outros patrimônios a serem
considerados. O ambiente natural e seus elementos, dos aspectos geográficos aos biológicos,
coloca-se como o primeiro desses patrimônios, recorrendo-se à ideia do ambiente não
antropizado. Por consequência, tomamos o ambiente construído como correspondente àquele
modificado pelo homem, não necessariamente apenas àquele edificado.
A paisagem em suas diferentes concepções pode se valer de distintas configurações de
ambientes, mas sempre tida como “um recorte de um todo”, que se estabelece pela experiência
sensível do observador frente ao ambiente vivenciado. Sob este olhar muitas composições são
possíveis, da paisagem que para muitos refere-se total ou predominantemente ao ambiente
natural, àquelas em que prevalece o ambiente construído, mas sempre em uma relação
estabelecida com observador.
Em áreas urbanas a predominância do ambiente construído não raramente se impõe, restando
muitas vezes apenas uma paisagem velada, através de intervenções que subtraem elementos
da natureza do campo visual e de qualquer outra possibilidade de interação com o homem. A
busca por desvelar paisagens na cidade traz a possibilidade de resgate de elementos naturais
subtraídos do ambiente, podendo reconduzir a uma conexão com a natureza, almejando uma
aproximação com sua essência.
Se a cidade se coloca como cenário de potenciais paisagens, o patrimônio inerente ao ambiente
urbano está ligado ao seu conjunto, mas também aos seus elementos construídos de forma
isolada: sua arquitetura, as intervenções urbanas e paisagísticas, suas construções e seus
espaços livres.

1676
A paisagem como percepção do ambiente decorrente da sinestesia propiciada pelo tempo do
silêncio, onde os ruídos são decorrentes da manifestação do homem, nos levaria a enxergar o
ambiente totalmente construído como uma expressão apenas de ruídos. Se no aspecto sonoro
podemos pensar na possibilidade de níveis distintos de ruídos, também no aspecto visual
podemos transpor essa analogia, onde o volume edificado se impõe como ruído que interfere
na percepção do ambiente.
A cidade abarca elementos referenciais que emergem na fruição da paisagem pelo aspecto
visível através do sensível não visível. Espessuras temporais resultam no ambiente vivenciado,
através do qual camadas de um processo histórico se sobrepõem (RITTER, 1997). As espessuras
podem ser experenciadas tanto por suas características físicas quanto por referenciais
simbólicos presentes em suas camadas, aspecto que se soma aos demais delimitados como
inerentes à paisagem, do horizonte aos elementos naturais, à harmonia e equilíbrio com os
ruídos possíveis.
O silêncio como ente propiciador da experiência da paisagem é trazido à discussão como um
bem que transpassa todos os demais, colocando-se como um patrimônio da paisagem. Tomar o
silêncio como facilitador da experiência da paisagem, por uma conexão que se estabelece
interna e externamente, nos permite voltar o olhar em sua direção. O silêncio pode ser visto
como ente a ser considerado e trabalhado nos espaços urbanos, abarcando os diversos sentidos
da percepção humana e ampliando as possibilidades de interação com o ambiente. Considera-
se, então, que a relação entre observador e ambiente pode ser propiciada pelo silêncio,
trazendo a possibilidade de acesso ao Stimmung, a “alma do lugar”. A conexão do indivíduo à
essência do ambiente pode instaurar uma paisagem única conforme seu momento e referenciais
pessoais (SIMMEL, 2009).
O silêncio, por sua característica, pode promover um esvaziamento do pensamento,
desconectando o observador de leituras, racionais ou não, propiciando e potencializando uma
fruição na dimensão sensível da paisagem, características que permitem apontá-lo como um
bem a ser observado, um patrimônio da paisagem possível. Pensar o silêncio na cidade pode
ampliar a discussão de paisagens potenciais no ambiente urbano.

4 – Silêncios e paisagens na cidade de Taubaté


Assentado originalmente entre as margens de dois córregos, do Convento Velho e Saguirú, o
povoado que dá origem à cidade de Taubaté, no interior de São Paulo, é elevado a Vila em 1645.
A exemplo de muitos municípios brasileiros, assistiu a um processo gradual de subtração da

1677
natureza de seu contexto urbano. Seu núcleo tinha inicialmente poucas quadras, que se
aproximavam dos rios e ambientes naturais subjacentes. Seu território faz parte do vale do rio
Paraíba do Sul, delineado pelas Serras do Mar e da Mantiqueira, que compõem o ambiente
regional e suas possíveis paisagens locais. O Saguirú, hoje possivelmente suprimido, era então
afluente do Convento Velho, que por sua vez deságua no rio Paraíba do Sul. Situado sobre um
platô entre os córregos, o sítio escolhido beneficiava-se da água abundante, contava com três
grandes lagoas, e amplos horizontes que permitiam ao povoado maior domínio sobre o
território. Não à toa nas proximidades da área, havia uma aldeia de índios guaianás que há
tempos estava ali assentada usufruindo das condições favoráveis do local. Nesse contexto,
mesmo já elevada a vila, o núcleo urbano mantém proximidade à natureza, emoldurada por
montanhas e cortada por rios.
A condição geográfica do núcleo e a proximidade com as serras lhe conferiam não apenas uma
potencial paisagem a partir da cidade como também a partir dos morros que a cercavam, o que
pode ser observado em pintura do artista francês Jean-Batiste Debret, que a retratou em uma
expedição pelo interior do país, em 1827. A pintura representa a cidade vista do topo de uma
montanha, possivelmente do mar de morros da Serra do Mar, retratando elementos do cenário
presente, da malha urbana a encostas da Mantiqueira, emoldurando a paisagem com elementos
do ambiente natural, que predominavam.
A cidade, com pequenas dimensões, propiciava um contato visual com o ambiente natural do
entorno, pouco mudando sua configuração desde sua condição de vila no século XVII até
meados do XIX. A partir desse período ocorrem as primeiras modificações significativas em seu
ambiente urbano, acompanhando transformações desencadeadas pela revolução Industrial. No
aspecto físico, novas estruturas e demandas agregaram elementos construídos e suprimiram
elementos originais do território, expressando aspectos da transição entre os meios natural e
técnico apontada por Milton Santos ao abordar a natureza do espaço. Na segunda metade do
século XIX, Taubaté vê sua população triplicar e seu espaço urbano tornar-se três vezes maior
(CHALITA, 2017). Nesse momento, já contava com uma linha férrea e estação ferroviária,
sistemas de iluminação, captação de água e outros avanços, além da primeira indústria da
região, a Companhia Taubaté Industrial – CTI.
Como aponta Turri, este é um período tido como determinante na ruptura do silêncio, em que
as tecnologias gradualmente impuseram novos ruídos ao ambiente. O homem e o sistema
produtivo trouxeram transformações não apenas físicas como sonoras, em especial o ruído,
conforme delimitado anteriormente. Fábricas, máquinas, veículos e movimentações são alguns

1678
elementos que contribuíram com níveis cada vez menores de silêncio nas cidades: o apito e as
engrenagens dos trens, a sirene da fábrica e seu maquinário operante, os fluxos de operários, o
aumento na circulação de pessoas e os bondes. Esses e um conjunto de novos ruídos passam a
compor o ambiente urbano, inserindo elementos que gradualmente foram distanciando o
observador de uma harmonia sonora que favoreceria um silenciar interno. O silenciar e a
experiência de paisagem pela sinestesia foram gradualmente comprometidos por outros ruídos
que se impuseram aos demais sentidos, de edificações e estruturas no campo visual a odores
indesejáveis decorrentes da poluição de suas lagoas e córregos que aos poucos deixaram de
compor o ambiente da cidade.
Na década de 1850, a cidade assistiu à supressão de duas de suas lagoas, o Tanque da Aguada e
a Lagoa do Rafael, já em função da contaminação de suas águas. Também o córrego do Convento
Velho tem seu primeiro trecho enterrado nesse período, aquele localizado junto ao Tanque da
Aguada. O local tinha grande fluxo de pessoas para uso das águas da lagoa, razão pela qual se
estabeleceu ali forte atividade de trocas de mercadorias, consolidando a atividade comercial no
local. No local foi implantada a Casa do Comércio e posteriormente o Mercado Municipal,
mantendo forte atividade comercial em seu entorno até os dias atuais. As águas foram
gradualmente eliminadas do contexto urbano, escondidas por aterramentos e canalizações, e
com isso referências do ambiente natural foram subtraídas. No caso do Convento Velho, o
aterramento manteve espaços livres com circulação sobre seu leito, ao longo de seu vale, ao
contrário do que foi observado em seu afluente. O Saguirú foi aos poucos sendo suprimido,
inicialmente pela ferrovia e a implantação de uma estação de passageiros na cidade. Em relação
ao núcleo urbano, a estação estava na margem oposta do córrego, que foi canalizado,
permitindo a criação de uma via ligando a praça da Matriz à estação, resultando em uma extensa
quadra para vencer o vale do curso d’água enterrado, diferindo-a da regularidade do desenho
do núcleo central, com simetria e quadras menores. A intervenção que atendia também a
demandas e imobiliárias, não apenas escondeu o rio como também maquiou o relevo de seu
vale, que foi cortado de maneira transversal pelas longas quadras, rompendo a continuidade
física e visual. Nos dias de hoje, apenas olhares mais atentos ou apurados desvelam o vale
escondido em meio às quadras.
Se por um lado a canalização do Saguirú e as extensas quadras sobre seu vale ocultaram traços
originais do território, por outro, deu lugar a uma das primeiras intervenções paisagísticas da
cidade, com a implantação do Jardim da Estação, um parque em frente ao terminal de
passageiros, fazendo a ligação com a praça da Matriz através da via que ficou conhecida como

1679
rua das Palmeiras, pela presença de palmeiras imperiais configurando a entrada da cidade. No
entanto, embora tenha agregado elementos naturais à paisagem, representaram uma
adequação ao uso urbano que se consolidava. Transformações foram então silenciando as
águas, ocultando elementos do ambiente natural e impondo ruídos de um novo ritmo de vida,
ocultando a natureza e criando elementos construídos.
Ao longo do século XX todas as águas remanescentes deixaram de compor o ambiente do núcleo
original da cidade, com a total canalização dos dois córregos em área urbana, além do
aterramento da última lagoa remanescente, que abrigava uma das nascentes do Saguirú. Outras
estruturas urbanas transformaram o ambiente, e os rios deram lugar a rodovias, torres de alta
tensão e a ferrovia cortando a cidade. A maioria dos córregos em área urbana foi canalizada, o
processo de verticalização acentuou-se e o perfil industrial consolidou-se. Todo o ambiente foi
transformado, eliminando elementos naturais por subtrações, ocultações e barreiras visuais,
com destaque para a verticalização que hoje compromete a visualização das Serras que dão
contorno ao vale ocupado pela cidade. Na área central, correspondente ao assentamento inicial
da cidade, a poluição visual e sonora é evidenciada por letreiros, murais e painéis luminosos,
que competem com postes, semáforos, fiações e um grande volume e fluxo de veículos, inclusive
com carros de sons publicitários que percorrem o centro. Na região do Mercado Municipal e do
calçadão central, antiga praça da Matriz, o ambiente construído tem como fundo sonoro uma
rádio pública que emana de alto-falantes espalhados por seus espaços livres, eliminando
qualquer possibilidade de silêncio.
Por outro lado, a ferrovia e a estação mantêm referências do processo vivenciado, e por si
trazem a memória do território. A estação ferroviária encontra-se abandonada, mas compõe um
cenário ainda mantido pelo Jardim da Estação, por antigos galpões, pelas plataformas de
embarque e pelo leito ferroviário que hoje opera apenas com cargas. A antiga rua das Palmeiras
mantém esparsos e jovens exemplares da vegetação que a batizou, porém sem manter a
composição originalmente proposta. Há, também, remanescentes do processo inicial de
industrialização. A desativação da antiga indústria têxtil ocorreu ao final do século XX, sendo
preservadas algumas quadras e um edifício vertical que foi sua sede administrativa, conhecida
como torre do relógio. A manutenção da sirene da fábrica preserva ainda hoje uma possível
memória afetiva sonora, mas que também pode ser considerada uma referência a paisagens de
sua história. A sirene hoje traz a lembrança literal da quebra do silêncio, como um grito que
irrompe e ecoa por toda a cidade, lhe tomando e devolvendo o silencio em questão de minutos.
Como na música a pausa evidencia o som, o cessar do som da sirene evidencia o “silencio”

1680
pretérito. Embora represente o período que mais significativamente trouxe o ruído, é também
a referência ao silêncio perdido, não deixando de expressar essa memória.
Nos dias atuais, o leito da ferrovia que corta a cidade se configura como um dos poucos
remanescentes de silêncio no núcleo urbano original, ainda que rompido de tempos em tempos
pela passagem de trens de carga que ainda circulam. Se em outros momentos a ferrovia e todas
as transformações do século XIX representaram a chegada do ruído que aos poucos ocupou
nosso ambiente, agora talvez possa representar um resquício de silêncio em meio ao ambiente
urbano. A ferrovia ao cruzar a cidade recebe diferentes tratamentos, predominando áreas de
pouco uso e apropriação pela população, muitas vezes confinada entre fundos de lotes. Hoje o
silêncio da ferrovia permite um desligamento momentâneo do ambiente da cidade, além de
trazer espacialmente perspectivas e possibilidades de horizontes que se tornaram raros ao
contexto. A movimentação urbana suprimiu os possíveis silêncios, restando à ferrovia o papel
dessa preservação. Hoje o leito ferroviário é uma pausa, um silêncio na cidade, um rasgo que
propicia um respiro. Caminhar em seu leito ou às suas margens, especialmente onde não foram
implantados sistemas viários, traz essa possibilidade então, com graus de silêncio não mais
presentes em outros espaços, o que se soma a perspectivas e horizontes também distantes da
realidade urbana do entorno.
A ferrovia que antes foi um símbolo da inovação tecnológica que trazia consigo o ruído, hoje
pode ser vista como um registro dessa mudança, e ainda ironicamente se coloca como espaço
que traz possibilidades de silêncio. A desvalorização de seu entorno, formado prioritariamente
por áreas industriais e vilas operárias, lhe rendeu a preservação de um silêncio em sua extensão.
O mesmo não se pode dizer dos córregos e lagoas, antes presentes como expressão da natureza
e seu tempo de silêncio no território, e hoje suprimidos ou ocultados, e que têm sua maior
manifestação representada pelo vale do Convento Velho, sufocado sob um sistema viário que
cruza a cidade acompanhando seu leito e com suas encostas totalmente ocupadas, ocultando
seu relevo e privada de vegetação. Em seu percurso uma antiga bica de água, tradicionalmente
utilizada pela população, foi suprimida. Sob a intenção de se manter uma memória do local, foi
realizada uma intervenção com elementos construtivos, gradil de proteção e com água
canalizada e tratada, distribuída pela companhia de abastecimento. A água da bica do Bugre não
mais está presente, exceto a alegoria que referencia sua existência. Assim, a construção do
espaço urbano e o velar gradual do ambiente natural resultaram num distanciamento do silêncio
e seu tempo, por consequência, de dimensões sensíveis e de paisagens possíveis, que embora
ocultadas, expressam potencialidades de revelação.

1681
O silêncio, por sua própria natureza, se cala. Pela essência de sua ausência, é um patrimônio em
silêncio, propiciando conexões pessoais e, não raramente, incomunicáveis, mas que ganham
voz, vida e expressão por manifestações exteriores, artísticas. Ou simplesmente mantem-se
calado na experimentação e percepção única do observador. O silêncio que se faz ponte entre
observador e ambiente é também aquele que codifica, que explicita, que cadencia, que dá
expressão, que dá voz.

Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2020.

CHALITA, Luciano Mouassab. Urbanização, paisagem e ambiente construido: ocupação e produção do


espaço sobre as bacias hidrográficas em Taubaté, SP. Dissertação (Mestrado em Ciências Ambientais) –
Universidade de Taubaté. Taubaté, 2017.

COLLOT, Michel. Points de vue sur la perception des paysages, In: [ROGER, Alain]. Théorie du paysage
em France (1974-1994). Seyssel: Éditions Champ Vallon, 1995, pp.210-223.

CORAJOUD, Michel. A paisagem é o lugar onde o céu e a terra se tocam. In: [SERRÃO, Adriana
Veríssimo]. Filosofia da paisagem: uma ontologia. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa,
2011. pp. 215-225.

D’ÂNGELO, Paolo. Filosofia del paisaggio. Roma: Quodlibet, 2010.

MERLEAU-PONTY, Maurice. A linguagem indireta e as vozes do silêncio. In: O olho e o espírito: seguido
de A linguagem indireta e as vozes do silêncio e A dúvida de Cézane. São Paulo: Cosac & Naif, 2004.
pp.67-119.

RITTER, Joachim. Paysage, fonction de l'esthétique dans la société moderne. Besançon: Les Éditions de
L’Imprimeur, 1997.

SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2002.

SIMMEL, Georg. A Filosofia da Paisagem. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2009.

TURRI, Eugenio. Il paesaggio e il silenzio. Venezia: Marsilio Editori, 2010.

1682
UMA ROSA NUNCA MAIS DESABROCHOU
O machismo invisível que no chão do sertão dorme
NóCego - Outros silêncios.

Aurora Almeida de Miranda Leão


Doutoranda em Comunicação; PPGCom/UFJF; auroraleao@hotmail.com

“Tira o verde desses ói de riba deu”dizia um homem, segundo canção popularizada por Caetano
Veloso. Até hoje não sabemos o que diria a mulher, simbolizando tantas outras. Então
descalçamos os pés e partimos para iluminar zonas femininas, a partir de imaginários, afetos e
simplicidades junto à série Onde nascem os fortes, na qual viceja o machismo invisível
(CASTAÑEDA, 2019), entranhado no sertão nordestino. Guia-nos o porquê de tão pouco se falar
no silêncio secular impingido às mulheres que ali vivem. Partimos de conceitos de Mikhail
Bakhtin, Marina Castañeda e Durval Muniz, em diálogo com metodologia híbrida que une Luiz
Carlos Maciel e Juremir Machado, para entender as razões da mudez quanto à afetividade das
mulheres que habitam esse sertão.
Palavras-chave: Onde nascem os fortes; Teledramaturgia; Sertão; Feminismo; Nordeste.

Take the green these eyes off me said a man, from song popularized by Caetano Veloso. We still
don't know what the woman would say, symbolizing so many others. So we take off our feet and
we set out to light up female areas from imaginary, affections and simplicities of serie Where the
strong are born, in which invisible machismo thrives (CASTAÑEDA, 2019), ingrained in the
northeastern hinterland. Guide us why so little in the silence of centuries imposed on the women
who live there. We start from Bakhtin's concepts, Marina Castañeda and Durval Albuquerque in
dialogue with methodologies of Luiz Carlos Maciel and Juremir Machado tounderstand the
reasons of silence regarding the affection of women living in the hinterland.
Keywords: Where the strong are born; Teledramaturgy; Hinterland; Feminism; North East.

1683
1 – Introdução
Este artigo analisa o patriarcado que viceja fortemente no subtexto da narrativa da série Onde
nascem os fortes (ONF), produzida e exibida pela TV Globo em 2018, focando sobretudo nas
duas principais personagens femininas, Maria (Alice Wegmann) e Cássia (Patrícia Pillar). Essa
estrutura patriarcal, naturalizada por toda uma teia de discursos que remonta aos fins do século
XIX é, em grande parte, responsável pelo emudecimento imposto às mulheres, de qualquer
região do país, sendo que no sertão nordestino1 isso é mais evidente.
Com roteiro original de George Moura e Sérgio Goldenberg, direção de fotografia de Walter
Carvalho e direção artística de José Luiz Villamarim, na série há ainda as personagens Rosinete
(Déborah Bloch), Joana (Maeve Jinkings), Aldina (Camila Márdila), Aurora (Lara Tremouroux) e
Valquíria (Carla Salle). Cada uma tem função diferente na diegese e sofre diferente tipo de
opressão. Elas espelham algumas das configurações femininas comuns na sociedade brasileira:
duas são mães; uma atua como “a outra” na vida de um empresário bem sucedido; a outra é a
moça vítima de assédio sexual e, em resposta à violência sofrida, assume um lado violento que
pouco conectamos ao feminino; há ainda a seguidora de um beato, que dele recebe, ao final, o
posto de liderança na comunidade espiritualizada; uma jovem tímida que sofre de lúpus2, e uma
outra que vem a rivalizar com Maria pelo amor do bom moço Hermano (Gabriel Leone).
Destarte, o que queremos perscrutar é o modo como o feminino é elaborado pela
teledramaturgia. Entendemos que as personagens trazem sinais fortes de um passado calcado
em afogo, coerção, arbitrariedade, submissão, ou seja, o feminino construído pela teleficção
não ignora nem contradiz uma realidade de forte matriz patriarcal, na qual o machismo
protagoniza e causa enormes danos, favorecendo a percepção de uma ancestralidade calcada
em truculência e tirania por parte dos homens, e apagamento e invisibilidade como condições
impostas às mulheres. A estas, só era possível algum tipo de manifestação no espaço doméstico
e o subtexto da teleficção traz isso de forma muito contundente, o que faz de ONF obra de
bastante proeminência na discussão de questões de gênero.

1
Ver matéria “Pesquisa indica que 27% das mulheres nordestinas já sofreram violência doméstica”.
Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/573997-pesquisa-indica-que-27-das-mulheres-
nordestinas-ja-sofreram-violencia-domestica. Acesso em 30 mar 2021.

2
2 Lúpus é uma doença inflamatória e autoimune que pode afetar múltiplos órgãos e tecidos. Ver em
https://www.minhavida.com.br/saude/temas/lupus#:~:text=L%C3%BApus%20(CID%2010%20%2D%20
M32),l%C3%BApus%20eritematoso%20sist%C3%AAmico%20(LES). Acesso em 30 mar 2021.

1684
Ressaltamos que a autoria e direção da obra fazem inferências no sentido de apontar que há
novas configurações nessa estrutura machista: as coisas mudaram e vão continuar mudando,
em franca oposição ao que foi naturalizado por tanto tempo. Nesse viés, o enredo dialoga
fortemente com discursos, como o regionalista, o político e o tradicionalista, que o antecedem,
apresentando contribuições importantes para fomentar questionamentos e reflexões acerca de
novas conformações para o feminino e o masculino, as quais, se já são por demais conhecidas
nas grandes cidades, tampouco deixam de estar presentes no sertão nordestino.

2 – Um silenciamento secular
Quando objetivamos destacar a mudez e sufocamento preconizado às mulheres é porque esta
é a causa de grandes aviltamentos, opressões, abusos e vilanias de gênero cometidos contra as
mulheres ao longo dos séculos:
El machismo esta tan profundamente em las costumbres y en el discurso que
se ha vuelto casi invisible cuando no despliega sus formas más flagrantes,
como el maltrato físico o el abuso verbal. No obstante, sigue presente em casi
todos los aspectos de la vida cotidiana de hombres y mujeres. (CASTAÑEDA,
2019, p 33).

Felizmente, há registros de mudança mas o machismo continua presente de modo muito


intenso, muitas vezes mascarado em formas mais sutis e sofisticadas de violência e
arbitrariedade porque “constituye toda una constelación de valores y patrones de conducta que
afecta todas las relaciones interpersonales, el amor y el sexo, la amistad e y el trabajo, el tiempo
libre y la política” (CASTAÑEDA, 2019, p. 32). É essa radiografia semântica elaborada pela
terapeuta mexicana que fundamenta um edifício patriarcal, violento, injusto e ignóbil, do qual
ainda hoje não conseguimos nos livrar. E é ele que está espelhado de forma muito proeminente
e oportuna na narrativa em estudo.
Como o locus de Onde nascem os fortes é o sertão nordestino (as filmagens aconteceram no
cariri paraibano), mais ainda essa violência que tem no machismo seu fiel estuário, é potente e
tem fortes implicações na diegese3.

3
Diegese é um conceito da Narratologia que diz respeito à dimensão ficcional de uma narrativa. Ver em
https://cinemarte.wordpress.com/2016/05/12/o-que-e-diegese/ Acesso em 30 mar 2021.

1685
Figura 1: O delegado venal da série, vivido por Enrique Diaz.

Fonte: acervo TV Globo.

Daí porque dizemos estar em concordância com o professor Durval Muniz de Albuquerque Jr.
(1999) quando afirma que a masculinidade no Nordeste está intrinsecamente associada à ideia
de violência. E ONF espelha isso com muita abrangência: há uma violência física, simbólica, social
e cultural muito acentuada. Todo o traçado do enredo está estruturado em pilares
fundamentadores de uma violência que parece intrínseca à formação brasileira, como afirma
Antonio Soares (2015):
É importante afirmar que desde o processo de colonização, que instituiu
práticas de poder autoritário, em que o colonizador subjugou povos nativos
e escravizados, a violência se fez presente. (SOARES, 2015, p. 2).

Isso aparece desde os primeiros minutos da narrativa, quando Maria chega à cidade fictícia de
Sertão, cai da bicicleta e vai para a beira da estrada em busca de ajuda. Não demora a passar
um caminhão com dois homens, os quais rapidamente exercem seu machismo contra ela. Aí
surge Hermano na estrada, sentado no banco do carona de um carro dirigido por uma
funcionária da empresa de seu pai, o empresário Pedro Gouveia (Alexandre Nero), e vai até ela
perguntar se precisa de ajuda. Maria aceita a carona e vai até a cidade encontrar o irmão.
Nessa cena, uma das primeiras, evidenciam-se duas quebras no padrão hegemônico secular
introjetado como coisa natural no perfil do nordestino: a do jovem que não parte com
insinuações sexistas para a moça que ele não conhece, e uma mulher ao volante enquanto no
lugar do carona vai um homem. Significativo detalhe diegético, que já indica a opção da narrativa

1686
pela quebra de paradigmas. Portanto, desde o início, os criadores de ONF dão mostras dos
rumos que a trama seguirá, sugerindo mudanças oportunas e cruciais para a ruptura de um
estereótipo que muitos danos vem causando ao longo dos séculos.

Figura 02: Será Maria uma versão atualizada de Maria Bonita ?

Fonte: acervo TV Globo

3 – Veja você, arco-íris já mudou de cor


Aprendemos com o professor Juremir Machado (2010) que “Pesquisar é fazer emergir algo que
não aparece à primeira vista”. Para ele,
O imaginário surge da relação entre memória, aprendizado, história pessoal
e inserção no mundo dos outros. Nesse sentido, o imaginário é sempre uma
biografia, uma história de vida. Trata-se de uma memória afetiva somada a
um capital cultural. [...] O imaginário é um reservatório afetivo de imagens,
de onde cada um retira o combustível para as suas motivações e um motor.
Ele está sempre por trás dos discursos. (MACHADO, 2010, p.57, 67 e p. 97).

O imaginário perpassa toda a diegese de Onde nascem os fortes, enriquecendo a narrativa e


convocando uma dialogia constante com a realidade. Para este artigo, escolhemos priorizar as
personagens de Maria (Alice Wegmann) e Cássia (Patrícia Pillar) por serem as protagonistas e
terem personalidades complexas e diversas. Mesmo sendo mãe e filha, uma reage à violência
sofrida com destemor, arma e agressividade, enquanto Cássia, a mãe, reage com a força da

1687
palavra, a altivez do exemplo, a singeleza da ponderação, munida de uma ansiedade que vai-se
transformando numa revolta interna mas equilibrada, prospectiva e pacificadora.
Esse contraste entre duas mulheres de gerações diferentes e unidas por laços de sangue forma
uma dialogia (BAKHTIN, 2003) bonita, instigante, com ampla produção de sentidos. Maria tem
no irmão seu grande parceiro, não sabe de quem é filha e isso tem implicações em sua maneira
de ver o mundo. Cássia é natural de Sertão, a cidade fictícia do interior pernambucano de onde
saíra ainda jovem e para onde nunca mais voltara. É o sumiço do filho Nonato (Marco Pigossi),
gêmeo de Maria, que a faz retornar à terra natal.
A série tem tempo discursivo de quatro meses, enquanto seu tempo diegético alcança por volta
de um mês ou pouco mais. Ao longo desse tempo, o telespectador vai conhecendo melhor as
duas: Maria sofre um assédio e quase é estuprada. Por conta disso, revide de um dos capangas
ao tiro que a secretária-amante do patrão levou, Maria resolve embrenhar-se no sertão, fugindo
dos pistoleiros do empresário, e avisa à mãe que só vai sossegar quando encontrar o irmão. Daí
em diante, ela passa por inúmeras agruras, problemas e dificuldades imensas – chega a levar
um tiro e é operada, com uma faca e sem anestesia, por um dos colegas que a acompanham na
fuga. Muito do tempo que passa escondida, distante da mãe, está a fugir de ser presa pelo
delegado, embora chegue a encurralar Pedro Gouveia e consiga prender num cativeiro o outrora
namorado, Hermano. É, portanto, uma anti-heroína que vive uma trajetória cheia de altos e
baixos, que assume, de arma em punho, o comando de um bando, no qual passa a funcionar
como uma espécie de “Maria Bonita do Sertão”. Mais uma opção da autoria a reluzir uma
mudança paradigmática nas arraigadas configurações de gênero no ambiente da sertanidade.
Outrossim, a proposta metodológica a nos conduzir é a que propõe o professor Juremir
Machado (2010), conhecida como Análise Discursiva de Imaginários (ADI) ou Tecnologias do
Imaginário (TI), e consiste de três etapas: Estranhamento, Entranhamento e Desentranhamento:
Por imaginário, deve-se entender uma narrativa inconsciente ou uma ficção
subjetiva vivida como realidade objetiva cuja formação ou cristalização
permanece encoberta exigindo um desencobrimento. [...] É uma visão de
mundo que se esconde por trás de um discurso explícito e passível de análise.
(MACHADO, 2010, p. 97 e 103).

Assim, a primeira coisa que a obra nos causou foi mesmo um estranhamento. Afinal, ambientada
no sertão nordestino, começa com uma mulher dirigindo uma mountain bike4, o que provoca

4
Mountain Bike, ou Bicicleta de Montanha, é um tipo de bicicleta usado no Mountain Biking, uma
modalidade de ciclismo na qual o objetivo é transpor percursos com diversas irregularidades e

1688
dois sobressaltos iniciais: primeiro, a roda que se vê, veloz por sobre um chão esturricado, é de
uma bicicleta, de esporte radical e pilotada por uma mulher. Esta é Maria, a filha de Cássia, que
vai ao interior de Pernambuco com o irmão gêmeo em busca de aventuras. Em dado momento,
os dois se desligam porque Maria aceita convite de Hermano e sai com ele para conhecer um
lugar bem recôndito da cidade. Nonato acaba indo para uma festa no bar mais frequentado do
lugar. Ali, interessa-se por uma moça, que vem a ser amante de Pedro Gouveia (Alexandre Nero),
o empresário truculento e temido. Depois do embate que travam nessa mesma noite, Nonato
desaparece. Dia seguinte, Maria começa a se desesperar pelo sumiço dele e inicia uma busca
aguerrida pelo irmão, que se vai transformar numa incansável jornada ao encontro do
desaparecido.
Partimos em seguida para a etapa do entranhamento, através da qual começamos a mergulhar
na construção televisual. Por fim, o desentranhamento ou desvelamento, etapa em que se
alcança percepção maior sobre o estudo em produção. No nosso caso, o desvelamento se dará
por inteiro ao chegarmos à conclusão de nossa tese de doutorado. Por ora, para definir o que
nos propomos nesta análise, chegamos à conclusão de que ONF prima por assinalar um
machismo abjeto que povoa o imaginário nacional ligado ao sertão nordestino, ancorada em
obras que a antecederam em termos textuais, como Os sertões (Euclides da Cunha, 1902), bem
como em filmes que também tematizam o sertão, sobretudo clássicos do Cinema Novo, como
Deus e o diabo na terra do sol e O dragão da maldade contra o santo guerreiro, de Gláuber
Rocha.
Seguindo, achamos interessante realçar o aprendizado com Luiz Carlos Maciel (2017), roteirista
e professor de cinema, defensor da soberania do clímax da história. Depois de entendido esse
ponto, a estrutura do roteiro fica muito mais fácil de ser percebida. Vejamos:
O clímax é o destino final do roteiro, o ponto de chegada de sua trajetória. Ele
determina o caminho que deve ser percorrido para alcançá-lo. Por isso, o
roteiro deve ser construído para chegar ao clímax. O que acontece no clímax
revela a solução encontrada para o conflito dramático e envolve, por isso,
uma interpretação da realidade. O clímax determina a forma e o conteúdo,
pois tem o poder de introjetá-lo no espectador (MACIEL, 2017, p. 46).

No caso de ONF, a definição do clímax aparece já no primeiro capítulo, a partir do


desaparecimento de Nonato. É em sua procura e na busca de descobrir como e porquê morreu
que toda a história se desenvolve: Maria e Cássia passam a trama inteira envolvidas no

obstáculos. Ver em http://ciclofemini.com.br/mountain-bike/o-que-e-mountain-bike/. Acesso em 30


mar 2021.

1689
desvelamento desse inexplicável decesso. E acreditamos, conforme aponta MACIEL (2017), que
é a precisa definição desse clímax logo no primeiro capítulo o que torna a narrativa atraente até
o final. Porque “se o clímax carece de força ou inevitabilidade, a progressão fica fraca e confusa,
porque não tem objetivo; não há o teste final que traz o conflito para uma decisão”, como
esclarece John Howard Lawson (apud MACIEL, p. 53).

Figura 03: Patrícia Pillar vive a mãe sofrida que é uma fortaleza moral

Fonte: acervo TV Globo

4 – Considerações finais
No cronotopo5 de ONF, quase todos os homens tem condutas machistas e opressoras, sendo
Hermano (filho adotivo e rejeitado pela mulher por quem se apaixona) a principal exceção.
Quase todos eles correspondem claramente à configuração nordestina cristalizada pelo discurso
hegemônico. Entretanto, se olharmos o contexto, todos escondem, submersa na máscara e nas
atitudes violentas, viris e agressivas, uma tremenda fragilidade. Dentre todos esses, somente
Nonato (o que não nasceu de novo), o jovem pelo qual procuram Cássia e Maria, foi homem
criado com o colo do aconchego materno, acalentado pelo afeto feminino.

5
Termo cunhado por Mikhail Bakhtin que diz respeito à relação entre categorias de espaço e tempo. Ver
em http://ernaldina.blogspot.com/2013/06/cronotopo-algumas-reflexoes.html. Acesso em 30 mar
2021.

1690
Ao final da trama, quando a história de Cássia vem inteira à tona, descobrimos que ele e Maria
são filhos adotivos. E nesse ponto fica ainda mais claro o vigor da estrutura patriarcal
sustentando o arcabouço discursivo.
Referimo-nos ao feminino aqui como ânima, força que vem da matriz definida por Jung, o
subjetivo que habita o feminino de homens e mulheres, e não apenas relativo ao sexo da mulher.
Desse modo, acreditamos que, assim como o patriarcado sustenta-se por diversos discursos
flagrados no cotidiano social - sejam políticos, familiares, escolares e/ou religiosos – e isso
transparece na diegese de ONF, há nela também um manancial de outros modos de ser
mulher e de ser homem, que referenda os gêneros como construção social, portanto, passível
de mudanças e longe de ortodoxias.
É a personagem de Patrícia Pillar que simboliza a chama anímica de vida que é o feminino, que
representa a mãe, a mulher, terra, afeto e aconchego. Cássia é o arquétipo de destemor,
ascendência, domínio, altruísmo, disponibilidade, disposição e humanismo. Ela, a mulher que se
exilou do rincão de onde o amor fugiu a galope, carrega em si o lume da transformação. É através
dela e de seus valores - expressos por uma conduta na qual pontificam ética, honestidade, amor,
fraternidade, decência -, que a narrativa finca seu esteio identitário.
Ademais, ao instigar a percepção de novos sentidos para padrões arcaicos e de convocar a
atenção para diferentes protagonismos de gênero, a autoria de ONF contribui para lançar
inovadores olhares para arquiteturas corroídas que há muito estão a erodir, uma vez que o
avançar da história e o renovar-se das temporalidades já demonstraram que carecem de trocar
suas velhas roupas surradas e seus ultrapassados ternos de linho branco. Cabe ao telespectador
o desafio de aderir à saudável proposta de reflexão sobre formas outras de possibilidades de
existência do feminino e de perpetuação do humano.

Referências
Albuquerque, J. D. M. Nordestino: uma invenção do falo; uma História do gênero masculino. Maceió:
Editora Catavento, 2003.

_______________ . A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo, Brasil: Cortez, 2001.
DISSERTAÇÃO 1994 http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/280137?mode=full BAKHTIN,
Mikhail. Estética da criação verbal. 4.ed. Trad. P. Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BALOGH, Anna Maria. O discurso ficcional na TV: sedução e sonhos em doses homeopáticas. São Paulo:
EdUSP, 2002.

CASTAÑEDA, Marina. El machismo invisible. México: Debolsillo, 2019.

1691
ESPINAL, Luis. Cinema e seu processo psicológico. São Paulo: LIC Editores, 1976.GIKOVATE, Flávio.
Homem: o sexo frágil ? São Paulo: MG Editores, 1989.

JOLY, Martine – A imagem e a sua interpretação. Lisboa: edições 70, 2002.

MACHADO, Juremir. Tecnologias do imaginário. Porto Alegre: Editora Sulina, 3ª edição, 2003.

_______________ . O que pesquisar quer dizer: como fazer textos acadêmicos sem medo da ABNT eda
CAPES – Análise Discursiva de Imaginários (ADI). Porto Alegre: Editora Sulina, 4ª edição. 2010.

MOTTA, Luiz Gonzaga. A análise crítica da narrativa. Brasília: UNB, 2013.

Scott, J. (1995). Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e realidade, julho/dezembro
71-99.

SOARES, Antonio. Violência como fenômeno intrínseco à cultura política brasileira. Vitória: Sinais n. 18
Jul-Dez 2015. Disponível em file:///C:/Users/Aurora/Downloads/13254-Texto%20do%20artigo-36900-1-
10-20160802.pdf Acesso em 30 mar 2021.

TÁVOLA, Artur da. A liberdade do ver. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

THOMÉ, Cláudia de Albuquerque. Jornalismo e ficção: a telenovela pautando a imprensa. Dissertação de


mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005. Disponível em
http://www.pos.eco.ufrj.br/site/teses_dissertacoes_interna.php?dissertacao=12. Acesso em 23 set
2018.

1692
Estuda recortes paisagísticos considerando seus elementos, dinâmicas,
pessoas e temporalidades. Registrado no CNPq desde 1998, insere-se na
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de
Alagoas e é um dos suportes do seu Programa de Pós-Graduação,
composto de um curso de mestrado (em Dinâmicas do Espaço Habitado)
e de doutorado (em Cidades), ambos reconhecidos pela Capes em 2002 e
2012 respectivamente.

Nas investigações produzidas pelo Grupo, consideram-se os elementos


materiais e intangíveis da cultura paisagística, tendo como ferramentas
prioritárias a iconografia, os relatos de época e a observação sensorial
e afetiva dos espaços. Viagens e registros de imagens, a captação de
depoimentos e de sons, servem de base não só para a investigação mas
são formatados em produtos culturais.
As viagens iniciais do Grupo Estudos da Paisagem, percorrendo cidades,
foram ao encontro, dentre outras coisas, de um elemento singular: o
convento franciscano.

Como seu inspirador, trata-se de uma arquitetura que se faz descalça,


no contato com o mundo, com as pessoas, com a cidade, com a terra.
Sendo múltiplo, é um ponto que se fecha em sim chamando à
convergência e ao recolhimento, mas que também se abre e se conecta
em rede com outros quando os pés se colocam em caminho (”in via”).

A figura de Francisco, atualizada para o presente surge como convite a


nós conectores que buscam entrelaçar lugares, culturas e países
diversos em torno de uma experiência de vida compromissada com os
valores da simplicidade.

O núcleo Saberes em Movimento - Nós, encontra no espaço e na


paisagem suas forças motrizes e pontos diferenciais de partida de
interlocução, desde as parcerias acadêmicas até o contato com a
sociedade nos seus mais diversos níveis de organização e diversidade.
O Laboratório de Criação Taba-êtê funciona como um desdobramento
do Grupo voltado para o design de produtos. O nome, pequeno poema
visual, significa “grande taba”, e era como os indígenas denominavam as
cidades erigidas pelos colonizadores.

As propostas gráficas e artísticas buscam transformar as ferramentas


de trabalho de pesquisa científica do Grupo - viagens e imagens - em
criações que visam a socialização do conhecimento.

Aproximando corpo e mídias, dentre essas criações situam-se


exposições de cunho interativo, objetos ludo-didáticos, livros. vídeos e
instalações, cuja produção tem recebido o apoio do CNPq, Capes,
Fapeal, Iphan, Banco do Nordeste do Brasil e Petrobrás.
APOIO:

Centro
Universitário
Tiradentes

Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional

Escola Técnica de Artes


UFAL

Instituto de Arquitetura do Brasil


Departamento de Alagoas
9 786556 240947

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