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Dez/08
Ciberlinguagem e a Realidade
Resumo:
A linguagem como criadora de realidades assume um papel fundamental no contexto da cibercultura. É
a partir da língua que aprendemos a perceber a realidade que nos cerca. Ou as realidades. As novas
tecnologias e o desenvolvimento do ciberespaço têm provocado diversas mudanças sociais e nas formas
de comunicação. Portanto, a linguagem desenvolvida no ambiente do ciberespaço produz uma nova
realidade e é ao mesmo tempo criada por ela.
Palavras-chave:
Linguagem. Realidade. Ciberespaço. Ciberlinguagem.
De acordo com Vilém Flusser (2004), a língua é a nossa realidade, e também cria a realidade. É
por meio de nossos sentidos que recebemos e percebemos as palavras. E é através do que o autor
chamou de intelecto, que ocorre o entendimento, a percepção da realidade. “Ele (o intelecto) consiste
de palavras, as compreende, as modifica, as reorganiza e as transporta ao espírito, o qual possivelmente
as ultrapassa.” (FLUSSER, 2004, p.47). Portanto, o intelecto possui a função de apreender e interpretar,
através da língua, das palavras, o que vem a ser a realidade para cada um dos indivíduos. A partir daí,
“as palavras organizadas, as frases, os pensamentos, começam a ser expelidos, expressos pelo intelecto
na direção dos sentidos.” (Ibid., p.48). Percebe-se, portanto, um caminho de mão dupla que inicia e
termina nos sentidos.
Para Flusser a realidade é criada pela língua que falamos. Ou pelas línguas. Percebemos a
realidade através do intelecto, que recebe palavras ou dados brutos do ambiente e as interpreta, as
compreende. Assim sendo, a língua falada interfere na construção da realidade, o que nos dá a entender
que a tradução de uma mensagem não permite entender com total fidelidade a intenção do autor.
Dentro de cada língua é possível distinguir tipos de palavras, que podem ser classificados de
acordo com seu significado. A divisão clássica das palavras (substantivo, adjetivo, preposição, conjunção
e verbo) pressupõe a existência de uma verdade absoluta. Como se a realidade expressa em uma frase,
através desta hierarquia, fosse única, a verdadeira, e que o contrário seria considerado falso e ilusório.
“Que esta pressuposição é insustentável, provam-no as línguas como o chinês, cuja estrutura torna
impossível a distinção entre substantivos, verbos, etc.” (Ibid., p.42). Parece razoável concordar com
Flusser, que o fato desta distinção não ocorrer na língua chinesa não a torna irreal.
Este autor nos guia ao entendimento de que a verdade e a realidade só podem ser concebidas
dentro de uma relatividade. “A verdade relativa é, portanto, uma qualidade puramente formal e
lingüística das frases, resultado das regras da língua.”, e, sendo assim, não existe a verdade única: “A
verdade absoluta, se existe, não é articulável, portanto não é compreensível.” (Ibid., p.45).
É possível alegar que, quando expressamos nossos sentimentos, trata-se do nosso intelecto
interpretando dados e palavras a respeito de uma determinada situação, da forma mais adequada às
regras de nossa língua. Trata-se da correspondência correta entre frases e realidade, dentro da língua
falada. A nossa versão da realidade.
Se partirmos do princípio de que línguas criam realidades, podemos afirmar que o mundo é um
mosaico de realidades que se encontram e desencontram, se chocam e/ou se misturam, dentro de um
movimento contínuo: ora construindo, ora desconstruindo alguma realidade. De acordo com o
pensamento de Morin, nossa realização cultural, ou a realização dos intelectos de Flusser, contribui para
a formação da noosfera (originalmente elaborada por Theillard de Chardin), um ambiente onde valores,
crenças e normas “ganham vida” e tornam-se “entidades feitas de substância espiritual e dotadas de
certa existência”. (MORIN, 1991, p. 139). A partir de nossa cultura surge “*...+ um universo onde os
nossos espíritos habitam.” (Ibid., p. 140). Para Morin, estes “seres de espírito” possuem certa autonomia
e adquirem força própria, podendo perdurar durante séculos.
A idéia de noosfera nos remete ao globo, idealizado por Flusser, caracterizado por ele como o
estudo fisiológico da língua. Esta esfera está dividida em trópicos onde se localizam as zonas climáticas
da língua. Dividida ao meio pelo “equador da realidade”, acolhe no hemisfério norte o trópico da
conversação, evoluindo para o da poesia, o da oração e culmina no pólo do “nada” criador, já não mais
articulável. Na direção oposta, do centro para o sul, os trópicos que vão se interpondo são a “conversa
fiada”, a “salada de palavras”, o balbuciar até atingir o ponto mais negativo do globo, o “nada” que não
cria ou ainda não articulado.
Esta imagem de um globo envolto por uma “atmosfera da língua”, a noosfera, serve para
contemplar suas potencialidades e permite-nos perceber o poder criador da língua. A conversação e a
conversa fiada, separadas por uma tênue linha, têm finalidades opostas. A primeira com um sentido
criador progressivo, onde podemos tomar como exemplo a abstração científica. Já a segunda, tem como
objetivos seduzir e enganar, como é o caso da política, ou distrair e mascarar como é o caso da fofoca.
Da conversação evolui-se para a poesia e sua força criadora, mágica. A oração ultrapassa a poesia
utilizando-se de instrumentos mais fervorosos, podendo então alcançar o topo, o sublime, o não
alcançável, o logos de Heráclito. Neste cenário, é possível entender que a evolução da língua permite
sua liberdade, pois a poesia se liberta das regras e cria matéria prima para a conversação.
É importante ponderar que, ao difundir-se para o futuro, a língua passa por processos de
modificação, no sentido de adequar-se às formas presentes de comunicação. Neste sentido, o
ciberespaço, “*...+ novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores”
(LÉVY, 2000, p.17), pode ser considerado um locus característico da pós-modernidade. É neste ambiente
que se desenvolvem, mais do que nunca (dentro do período em que se tem registro), as potencialidades
da língua.
4. Ciberespaço.
Após o surgimento dos primeiros computadores, em 1945, ainda não era possível prever a
quantidade e a qualidade das mudanças sociais que ocorreriam nos próximos anos. Para Lévy (Ibid.,
p.31), o movimento geral da virtualização da informação e da comunicação iniciou-se a partir da década
de 70, com o desenvolvimento e a comercialização do microprocessador. No início dos anos 90, as redes
de computadores já existentes uniram-se, formando uma grande rede através de uma “*...+ corrente
cultural espontânea e imprevisível *...+” (Ibid., p.32). Surge, então, o ciberespaço: “*...+ novo espaço de
comunicação, sociabilidade, de organização e de transação, mas também, novo mercado da informação
e do conhecimento.” (Ibid., p.32).
Ainda de acordo com este autor, vale argumentar que virtual é um estado “que existe apenas
em potência, não em ato” (2000, p.47). O oposto de virtual não seria então o real. Para Lévy, a realidade
pode se apresentar de duas formas: a virtual, que pode se concretizar, e a atual, que já se concretizou.
Ao transformar a informação em formato digital (através da codificação binária), pode-se armazená-la,
transmiti-la e reconstituí-la integralmente, em qualquer lugar do planeta, até mesmo, anos depois de
seu armazenamento inicial. Com o avanço tecnológico e o desenvolvimento da internet (principal
ferramenta disseminadora da cibercultura), é possível manter uma quantidade muito grande de
informações em seu estado virtual, até que um usuário da rede selecione aquela desejada, permitindo,
assim, sua atualização.
Dentro deste cenário, o comportamento do homem contemporâneo tem sido influenciado por
este novo espaço de comunicação. A ação de transmissão e recepção de informações conta, agora, com
uma nova instância: o poder de interferência em qualquer etapa do processo, desde a criação, produção
e envio dos dados até a alteração ou seleção dos mesmos por parte de diferentes receptores. Estes, por
sua vez, também podem contribuir com a criação, produção e envio desses dados, transformando o
ciberespaço e um ambiente criador e transformador de realidades.
5. Construção da identidade pela (ciber) linguagem.
Qualquer meio de comunicação, inclusive a mídia primária (nosso corpo) e a língua que
falamos, é capaz de moldar e alterar a forma como percebemos a realidade. E não apenas o aspecto
exterior da realidade, mas também a forma como nos percebemos. A internet oferece aos seus usuários
uma gama de possibilidades de comunicação, que parece dar origem a uma nova forma de expressão,
de concepção da realidade. A oportunidade de compartilhar opiniões e pensamentos na rede, de forma
tão abrangente, parece ter dado vazão à eterna procura do ser humano de se entender. É neste
ambiente que o homem tem tentado encontrar espaço para se compreender, encontrar semelhantes,
compartilhar, questionar, buscar respostas. Através da linguagem do ciberespaço, ou da ciberlinguagem,
o homem busca a construção de sua identidade, mesmo que fragmentada ou em mosaico, reflexo da
perda de referências na sociedade contemporânea.
O livre arbítrio do autor, ao construir sua autobiografia dentro da sua versão de realidade,
imprime uma sensação de inconsistência. Ele utiliza uma série de características e qualidades, que até
pouco tempo, eram consideradas contraditórias. Hoje, porém, parecem não lhe tirar o crédito, nem
alterar seu caráter original.
FeRnAnDo BaRbOsA... oN tHe RoAd
Percebe-se, nos textos, a busca do ser humano por um “lugar” melhor e o uso da linguagem
para atingi-lo. Flusser (2004) afirmou que o “espírito”, a “intuição” dão sentido aos processos da língua.
O ciberespaço surge, destarte, como o ambiente propício à procura deste sentido, sua morada ideal.
BERTOLDI, Mª Tereza. Pós Modernidade: uma questão em aberto. Revista FAMECOS. Porto Alegre. nº
15, agosto 2001,quadrimestral. Disponível em:
<http://www.pucrs.br/famecos/pos/revfamecos/15/a14v1n15.pdf > Acessado em: 30/11/2008.