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27/11/2020 Lugares de Memória dos Trabalhadores #61: Fábrica Todos os Santos, Valença (BA) – Silvana Andrade dos Santos

PAULO FONTES LUGARES

Lugares de Memória dos Trabalhadores #61:


Fábrica Todos os Santos, Valença (BA) – Silvana
Andrade dos Santos

Silvana Andrade dos Santos


Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense
“A mais bela fábrica do Brasil – e talvez da América do Sul”. Assim os missionários estadunidenses
Daniel Kidder e James Fletcher descreveram a Todos os Santos, em meados da década de 1850.
Edificada na vila de Valença, na Bahia, entre os anos de 1845 e 1847, ela foi o maior estabelecimento
têxtil do Brasil até a década de 1870, e chegou a empregar 300 indivíduos, de ambos os sexos, livres e
escravizados.

O crescimento econômico da região, entre as décadas de 1830 e 1840, em virtude dos desembarques
do tráfico transatlântico ilegal de escravizados foi essencial para a escolha de Valença como local da
edificação da Todos os Santos. Além disso, a vila tinha grande potencial para a geração de energia
hidráulica e era parte das rotas de navegação marítimas e fluviais.

A fábrica foi fundada pela sociedade Lacerda e Cia, empresa privada, formada por três negociantes
que atuavam na Bahia: o português, naturalizado brasileiro, Antonio Francisco de Lacerda; o
estadunidense John Smith Gillmer; e o brasileiro Antonio Pedrozo de Albuquerque. Além da sua
projeção econômica naquela província, eles tinham em comum a participação no contrabando
negreiro para o Brasil, e devem ter visto na criação do empreendimento a possibilidade de reinvestir
os capitais provenientes de sua atuação no crime e de abrir nova frente de obtenção de lucros.

A Bahia já contava com outras duas fábricas têxteis, ambas em Salvador: a Santo Antônio do
Queimado, fundada em 1834, e a Nossa Senhora da Conceição, em 1835. Além de ser a primeira
instalada no interior da província, a Todos os Santos teria dimensões muito maiores.

As obras de edificação da fábrica de Valença tiveram início em 1845, com um projeto, de


responsabilidade do engenheiro estadunidense John Monteiro Carson, fortemente influenciado pelos
padrões arquitetônicos e técnicos da indústria têxtil da Inglaterra e dos Estados Unidos. Todo o
maquinário foi importado daqueles países e a fábrica foi instalada em um edifício de quatro andares,
seguindo a tendência de verticalização então vigente. Também foram trazidos dos Estados Unidos
operárias e operários têxteis para atuar como mestras e mestres dos trabalhadores arregimentados no
Brasil.

A Todos os Santos foi inaugurada em novembro de 1847 e permaneceu em atividade até agosto de
1876. Inicialmente, a fábrica contava com 80 operários, de ambos os sexos. Em 1861, no entanto, o
estabelecimento já possuía 250 trabalhadoras e trabalhadores ditos livres e 50 escravizadas e
escravizados. A utilização conjunta de mão de obra livre e escravizada era uma prática relativamente
comum na produção fabril no Brasil durante o século XIX, e também foi verificada, por exemplo, na
Fábrica de Ferro Ipanema na província da São Paulo
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Fábrica de Ferro Ipanema, na província da São Paulo.

Embora o número de indivíduos legalmente livres empregados na Todos os Santos tenha se mantido sempre
superior ao de escravizados, a forma como a mão de obra era alistada, assim como a rotina imposta àqueles,
se assemelhavam às práticas vigentes no sistema escravista.

A maioria das trabalhadoras e dos trabalhadores ditos livres era órfã, com idades a partir de 10 anos,
muitos deles provenientes da Casa Pia e Colégio de Órfãos de São Joaquim. Os órfãos eram adotados
por Antonio Francisco de Lacerda e deveriam trabalhar na fábrica como aprendizes por cinco anos.
Neste ínterim, não recebiam qualquer pagamento, apenas vestimenta e assistência médica. Só
posteriormente eram admitidos como assalariados, devendo permanecer no local até completarem 21
anos.

Além da exploração de mão de obra não remunerada até o término do período de experiência, a
rotina imposta era extremamente restritiva. O trabalho ia do nascer do sol até as sete e meia da noite
(o que no verão significava mais de 14 horas diárias), com vinte minutos para almoço, meia hora para
o jantar e meia hora para a ceia. As operárias e os operários também eram submetidos a um conjunto
de atividades extras. Nos dias de trabalho, após as 22h, como parte dos arranjos firmados entre a
fábrica e as instituições fornecedoras de mão de obra, eles recebiam aulas de leitura, escrita, música e
dança. Contribuía ainda para o exercício de controle sobre os trabalhadores, a residência em
alojamentos no entorno da fábrica e a promoção de casamentos internamente.

Enquanto esteve em funcionamento, o estabelecimento produziu diferentes tipos de tecidos


(indicados principalmente para a confecção de sacaria, roupa para a população escravizada e velas
para embarcações) e fios. Suas mercadorias eram comercializadas tanto na Bahia, quanto em outras
províncias, como Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

Considerada um símbolo de modernidade para a elite provincial, a Todos os Santos recebeu a visita
do Imperador D. Pedro II, em 1859. Além disso, foi premiada com medalha de ouro nas Exposições
Nacionais de 1861 e 1866; e participou das Exposições Internacionais de Londres, Paris e Filadélfia.
Em 1876, após um período de crise, foi fechada e, posteriormente, vendida. Esta transação deu início
à constituição da Companhia Valença Industrial, empresa têxtil que ainda hoje opera na cidade.

Embora a Companhia Valença Industrial não funcione no mesmo edifício em que a Todos os Santos
esteve instalada, ela postula o seu legado e se afirma como continuidade da Todos os Santos. Em
seus quase dois séculos de existência, a indústria têxtil em Valença moldou, em grande medida, a
identidade dos moradores da zona urbana e é constantemente reivindicada como um importante
lugar de memória das trabalhadoras e dos trabalhadores locais.

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Gravura da fábrica Todos os Santos, século XIX.


OLIVEIRA, Edgar Otacílio da Silva. Valença: Dos primórdios a contemporaneidade. 2. ed. Valença/
Ba: FACE, 2009. p. 79.

PAra saber mais

FELÍCIO, Nilceanne Nogueira Lima. As fábricas têxteis do rio Una: história sobre trabalho e
indústria em Valença-Bahia (1844-1887). Dissertação (Mestrado em História). FFCH-UFBA,
Salvador, 2018.
KIDDER, Daniel Parish. FLETCHER, James Cooley. O Brasil e os brasileiros: Esboço histórico e
descritivo. 7. ed. São Paulo; Rio de Janeiro; Recife; Porto Alegre: Companhia Editora Nacional,
1941. v. 2.
OLIVEIRA, Waldir Freitas. A Industrial Cidade de Valença: Um surto de industrialização na Bahia no
Século XIX. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1985.
PAIXÃO, Neli Ramos. Ao soar do apito da fábrica: idas e vindas de operárias(os) têxteis em Valença-
Bahia (1950-1980). Dissertação (Mestrado em História). FFCH-UFBA, Salvador, 2006.
SANTOS, Silvana Andrade dos. Escravidão, tráfico e indústria na Bahia oitocentista: a sociedade
Lacerda e Cia e a fábrica têxtil Todos os Santos. Tese (Doutorado em História). IH-UFF, Niterói,
2020.

Crédito da imagem de capa: Fábrica Todos os Santos, meados da década de 1850. Referência:
KIDDER, Daniel Parish. FLETCHER, James Cooley. Brazil and the brazilians: portrayed in historical
and descriptive sketches. 9. ed. Boston: Li le, Brown, and Company, 1879. p. 499.

Lugares de Memória dos Trabalhadores

As marcas das experiências dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros estão espalhadas por
inúmeros lugares da cidade e do campo. Muitos desses locais não mais existem, outros estão
esquecidos, pouquíssimos são celebrados. Na batalha de memórias, os mundos do trabalho e seus
lugares também são negligenciados. Nossa série Lugares de Memória dos Trabalhadores procura
justamente dar visibilidade para essa “geografia social do trabalho” procurando estimular uma
reflexão sobre os espaços onde vivemos e como sua história e memória são tratadas.
Semanalmente, um pequeno artigo com imagens, escrito por um(a) especialista, fará uma
“biografia” de espaços relevantes da história dos trabalhadores de todo o Brasil. Nossa
perspectiva é ampla. São lugares de atuação política e social, de lazer, de protestos, de repressão,
de rituais e de criação de sociabilidades. Estátuas, praças, ruas, cemitérios, locais de trabalho,
agências estatais, sedes de organizações, entre muitos outros. Todos eles, espaços que
rotineiramente ou em alguns poucos episódios marcaram a história dos trabalhadores no Brasil,
em alguma região ou mesmo em uma pequena comunidade.

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