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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE ARTES
DEPARTAMENTO DE MÚSICA

ANÁLISE MUSICAL IV

APOSTILA

PROF. FERNANDO LEWIS DE MATTOS


***
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE ARTES
DEPARTAMENTO DE MÚSICA

ANÁLISE MUSICAL IV

APOSTILA

PROF. FERNANDO LEWIS DE MATTOS

Porto Alegre, março de 2007


***
SUMÁRIO

1. CAMPOS (OU ÁREAS) DA ANÁLISE ............................................................................. 1


2. ANÁLISE DE MÚSICA SERIAL....................................................................................... 3
2.1. Análise da Klavierstück Op. 33a de Arnold Schoenberg ................................................ 3
2.2. Técnicas de derivação serial..........................................................................................10
2.2.1. Permutação............................................................................................................. 10
2.2.2. Tropo de Hauer ...................................................................................................... 11
2.2.3. Segmentação........................................................................................................... 13
3. A TEORIA ANALÍTICA DE LEONARD MEYER ....................................................... 16
3.1. Análise musical com base na Psicologia da Gestalt...................................................... 16
Princípios e Padrões da Percepção ................................................................................. 16
3.2. A estrutura rítmica da música........................................................................................20
3.2.1. Continuidade rítmica.............................................................................................. 20
3.2.2. Níveis de organização rítmica................................................................................ 21
3.2.3.Continuidade métrica .............................................................................................. 22
4. SEMIÓTICA MUSICAL ...................................................................................................25
4.1. Conceitos Gerais Sobre Semiótica ................................................................................25
4.1.1. As diversas teorias sobre o signo ........................................................................... 25
4.2. Semiótica da Música...................................................................................................... 36
4.2.1. Tripartição semiológica e análise musical ........................................................... 36
4.2.2. A análise distributiva de J.-J. Nattiez ................................................................... 41
4.2.3. A análise inter-semiótica de E. Tarasti .................................................................. 51
5. RETÓRICA E EXPRESSÃO MUSICAIS .......................................................................69
5.1. Retórica Verbal.............................................................................................................. 69
5.1.1. Figuras de Retórica................................................................................................ 69
5.2. Retórica na Música ........................................................................................................ 71
5.2.1. Expressão e retórica na música renascentista e barroca ...................................... 72
5.2.2. Análise de Expressão e Retórica no Estilo Clássico por Ratner ........................... 76
6. BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................85
1

1. CAMPOS (OU ÁREAS) DA ANÁLISE

Por Dante Grela1

1. Análise Estatística

Refere-se à análise de tudo o que compreende relações de contagem e durações dentro


de uma obra musical. Por exemplo, determinar o número de vezes em que aparece certa nota
ou intervalo em uma obra, movimento ou seção. Esta análise não possui nenhum valor em si
mesma, porém pode ser útil como auxílio na resolução de problemas de outras áreas.

2. Análise Articulatória

Este campo da análise se refere a como determinada obra está secionada no tempo. No
momento da análise articulatória não importam as funções estruturais de cada segmento, o
que deve ser determinado é onde inicia e termina cada unidade formal.
Os segmentos existentes na primeira articulação chamam-se unidades formais de
primeiro grau; os segmentos existentes na segunda articulação são chamados de unidades
formais de segundo grau, e, assim, sucessivamente.
A classificação das unidades é dada pela sua extensão; não se pode colocar unidades
de extensões diferentes no mesmo nível. O que deve ser levado em consideração nesta área
analítica é a duração real das unidades.

3. Análise Paramétrica

Os parâmetros para a análise serão as propriedades do som: altura, duração,


intensidade e timbre. Cada parâmetro será dividido em elementos, para fins da análise. Desta
forma, o parâmetro
• altura será dividido em melodia, harmonia2 e contraponto;
• duração será dividido em tempo, métrica e rítmica;
• intensidade será dividido em dinâmica e acentuação;
• timbre será dividido em orquestração, textura e articulação.

4. Análise Comparativa

Neste campo, se realiza a comparação entre as diversas unidades. O que deve ser
investigado é o conteúdo de cada segmento. Para que a análise comparativa seja aplicada,
devem ser considerados os seguintes modos de comparação:
• identidade – ocorre quando um segmento é totalmente igual a outro;
• semelhança – ocorre quando existe pouca diferença entre os elementos que formam as
unidades;

1
Compositor argentino, natural de Rosário, professor de Composição, Orquestração, Acústica Musical e Análise
na Escola de Música da Faculdade de Humanidades e Artes da Universidade Nacional de Rosário e no Instituto
Superior de Música da Universidade Nacional do Litoral.
2
Deste modo, a análise harmônica funcional é uma análise paramétrica.
2

• diferença – ocorre quando há duas unidades que, aparentemente, não têm nada em comum
entre si;
• oposição – ocorre quando um segmento é oposto a outro, ou seja, quando interagem, de
um lado, por relação de semelhança e, por outro lado, por relação de diferença. Para que duas
unidades se relacionem por oposição, é necessário que pertençam à mesma categoria. Por
exemplo, movimento melódico ascendente e movimento melódico descendente são opostos; o
aspecto horizontal da música é oposto ao seu aspecto vertical. Não se pode, porém, afirmar
que uma tercina é oposta a um movimento por graus conjuntos, visto que estes elementos não
pertencem à mesma categoria.

5. Análise Funcional

Neste campo analítico, o importante é investigar a função de cada segmento de uma


peça em relação à sua totalidade. Quando um elemento possui duas funções diferentes, fala-se
em poli-funcionalidade.
As principais funções estruturais, na música, são:
• exposição (ou apresentação) – tem função expositiva, ou seja, ocorre quando uma
unidade apresenta algo que será elaborado posteriormente;
• transformação – tem a função de modificar algo que já foi apresentado de modo a
transformá-lo em outra coisa. As transformações classificam-se em:
variação – ocorre quando o elemento original é reconhecido; tem a função de re-apresentar
algo que já foi exposto, porém, sob um ponto de vista diferente, em algum aspecto;
desenvolvimento - ocorre quando o segmento original é submetido a um processo de
elaboração que modifica sua estrutura, podendo a sua forma original não ser mais reconhecível;
transição – acontece quando uma unidade formal conduz gradativamente de um estado de
coisas a outro, por meio de uma ponte e sem mudanças abruptas;
introdução – é uma unidade formal anterior a outra mais importante. A unidade anterior (a
introdução) não origina-se de nenhuma parte anterior a ela.
interpolação (ou digressão) – acontece quando uma unidade formal é interrompida por outra,
para, em seguida, a unidade principal continuar. O segmento que interrompe a unidade principal
chama-se interpolação.
interjeição – é um segmento que, aparentemente, não tem nada a ver com o que acontece nas
unidades principais. Tem a mesma função da interjeição na língua3.
extensão (ou apêndice) – ocorre quando uma unidade está ligada a outra. É um
prolongamento que possui relação íntima com o segmento que o antecede. É um apêndice que
tem a função de finalizar.
conclusão – ocorre quando se realiza um corte no percurso da forma, sendo inserida uma
unidade diferente para finalizar (chamada coda). Esta unidade conclusiva diferencia-se da
extensiva por possuir certa independência com relação às unidades principais, ou seja, ocorre
como uma seção independente, sendo uma afirmação do final.

6. Análise de Inter-relações

Após ser realizada a análise nas outras áreas, deve-se inter-relacionar todos os campos
estudados para descobrir as relações internas à obra, ou seja, quais os seus elementos
principais, como se articulam e como interagem para formar a totalidade da peça analisada.
Esta é a área mais importante e difícil da análise musical.

3
Segundo o Novo Dicionário Aurélio, interjeição é uma palavra ou locução com que se exprime um sentimento
de dor, de alegria, de admiração, de aplauso, de irritação, etc. (1986, p. 958).
3

2. ANÁLISE DE MÚSICA SERIAL

2.1. Análise da Klavierstück Op. 33a de Arnold Schoenberg

Características Gerais:

• Forma Sonata Condensada

EXPOSIÇÃO4
I. Primeiro Grupo
A. Tema I (c. 1-2) 4/4/4
B. Episódio (c. 3-9) 4/4/4
C. Retorno modificado do Tema I (c. 10-11) 4/4/4
D. Transição 9c. (12-13) 4/4/4
II. Segundo Grupo
A. Tema II (c. 14-18) 6/6
B. Episódio (c. 19-20) 6/4
C. Retorno modificado do Tema II (c. 21-23) /6
D. Codetta e transição (c. 23-27) 3/3/3/3

DESENVOLVIMENTO
I. (c. 27-29) vários tipos de segmentos
II. (c. 29-32) 4/4/4

REEXPOSIÇÃO
I. Retorno modificado do Tema I (c. 32-34) 4/4/4
II. Retorno modificado do Tema II (c. 35-36) 6/6

CODA
I. (c. 37-38) 4/4/4
II. (c. 39-40) 4/4/4
____________________________________________________

INTRODUÇÃO5... (c. 1-2)


PRIMEIRO TEMA... (c. 3-7)
TRANSIÇÃO (repetição aumentada da Introdução)... (c. 8-13)
SEGUNDO TEMA... (c. 14-25)
FRASE CONCLUSIVA... (c. 25-27)
REPETIÇÃO E CODA... (c. 32-40)

4
In: Perle (1981, p. 113). As figuras na coluna da direita representam o número de notas de cada segmento.
5
In: Romano e Zulueta (1965, p. 89).
4

Conforme Perle (1981, p. 111-116), a peça para piano p. 33a de Schoenberg apresenta
as seguintes características:
• Importante papel do intervalo de 5ªJ: a série inicia com dois intervalos de 5ªJ; a
omissão da 5ªJ na apresentação da série nos c. 19-23 dá um peso especial ao
intervalo em sua apresentação nos c. 23-24; visto que o início e final das frases
geralmente coincide com o início e conclusão de uma forma da série ou de um par
de formas seriais, a posição da 5ªJ na série a estabelece como o intervalo
predominante na peça; este intervalo determina os níveis de transposição das
apresentações da série; os dois pares combinatórios (P-0 e I-5 / R-0 e RI-5)
permanecem sem transposição na seção de Exposição; na seção de
Desenvolvimento, todo o grupo é transposto à 5ªJ superior; a Recapitulação inicia-
se com outra 5ªJ descendente, restabelecendo a “tonalidade” original que é
mantida até o final; desta forma, o plano de transposições de toda a peça é uma
expansão do grupo inicial de três notas da série; a importância compositiva do
intervalo de 5ªJ no Op. 33a é conseqüente da estrutura da série e não de qualquer
qualidade inerente do próprio intervalo.
• As notas inicial e final da série encontram-se à distância de trítono.
• Procedimentos rítmicos: ocorre elaboração progressiva do movimento rítmico da
peça, por meio de subdivisões do pulso (unidade de tempo) em valores menores,
nas três exposições do Tema I (A, B e C – no esquema formal de Perle); há,
também, um crescimento gradativo da força cinética dos compassos que se
encontram entre a apresentação original do Tema I e o poco rit. que conduz ao seu
estabelecimento, alcançado inicialmente por meio de um crescimento progressivo
do número de ataques em cada segmento de frase, e, posteriormente, da mudança
para notas de menor duração (c. 3-8); também ocorre um interrupção do padrão de
semicolcheias nas passagens de transição (c. 8-9; 12-13; 26 e seção de
Desenvolvimento) que contrasta com o padrão regular em colcheias do Tema II.
• O contorno melódico e o conteúdo harmônico são elementos unificadores ainda
mais significativos: a estrutura geral do movimento está contida, como um
microcosmo, no arco melódico dos dois primeiros compassos, que é repetido em
tempo expandido nos compassos 3-7 e restabelecido em sua duração inicial, porém
expandido espacialmente, nos compassos 10-11, ambos expandidos temporal e
espacialmente no início da Recapitulação. Os seis acordes da figura inicial,
derivados da sucessão direta das formas da série P-0 e RI-5 são a exposição do
material harmônico principal da obra.
• Organização serial: existe uma organização semi-combinatória com relação à
totalidade da série, com a relação combinatória principal ocorrendo entre P-0 e I-5
– a nota inicial de P-5 encontra-se à distância de 5ªJ abaixo de P-0. Para Romano
e Zulueta (1965, p. 90), a série do Op. 33a está dividida em três tetracordes
(segmentos de quatro sons): P-0: A-B-C; RI-5: c-b-a.
Segmentos da série (cf. Romano e Zulueta):
A (sib, fá, dó, si)
B (lá, fá#, dó#, ré#)
C (sol, láb, ré, mi)
c (lá, si, fá, fá#)
b (sib, dó, sol, mi)
a (ré, dó#, sol#, ré#)
5

Estrutura tetracordal da série da Klavierstück Op. 33a de Schoenberg6


1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
← ← ←
B c a c b a ← ← ← →
A →
A →
B →
C A B C

A →
B →
C c b a
← ← ←
A C b C B A →
a →
a →
b →
c a b c

11 12 13 14 15 16 17 18 19 20
6 primeiros graus seis últimos graus 6 u.g.
c b a →
a →
b →
c

← ← →
C B A A B →
C

6 primeiros graus seis últimos graus 6 u.g.

*
21 22 23 24 25 26 27 28 29 30
6 u.g. [Láb] 6 p.g. 6 p.g. 6 u.g. 6 u.g. 6 u.g. 6 g. 6g. A’ B’
C’ a” b’ c” c” a”

6 u.g. 6 p.g. 6 p.g. 6 u.g. 6 u.g. 6 u.g. 6 g. 6g. a’ b’ c’ A” B” C’ A’

31 32 33 34 35 36 37 38 39 40
b” c” 2C” B” A” 6 u.g. 6 p.g.
→ →
A B →
C ←
c ←
b ←
a ←
a←a ←
a →
A →
B →
C
→→→←←←
ABC c b a →→→←←←
a b c CBA


a →
b →
C ←
C B ←
A →
a →
b →
c
B” C” c” b” a”
6 u.g. 6 p.g.
[Sib]

Segundo Cook (1987, p. 322-333), o material serial da peça para piano Op. 33a de
Schoenberg está organizado com base nos seguintes princípios:
6
No quadro, os numerais dispostos à esquerda superior das colunas indicam o número de compasso; as cifras colocadas na
parte superior representam a mão direita, na inferior, a mão esquerda; a direção das setas indica a ordem direta ou retrógrada
da série (quando não há seta, os graus da série estão dispostos em forma cordal); os retângulos tracejados que envolvem as
cifras (nos compassos 6-7 e 37-38) indicam que a série está disposta em ambas as mãos; os colchetes horizontais tracejados
delimitam o segmento serial indicado; as indicações 6 primeiros graus (6 p. g. – primeiro hexacorde) ou 6 últimos graus (6
u.g. – segundo hexacorde) em itálico indicam notas de P-0, em tipo normal indicam notas de I-5; notas entre colchetes
correspondem à repetição ou omissão de um grau da série, ou um ‘erro’ indicado pelo próprio compositor; cifras com linhas
(A’, B’, C’, etc.) indicam transposições dos tetracordes originais de P-0 e I-5;
*
No compasso 28, a indicação 6 g. (seis graus) significa que há um tropo com combinação de partes diferentes de
tetracordes – na mão direita: 6 g. (em itálico) indica que ocorre a combinação de quatro sons de A’ com dois sons de B’, 6 g.
(em tipo normal) indica que ocorre a combinação de quatro sons de a” com dois sons de b”; na mão esquerda 6 g. indica a
combinação de dois sons de B’ com quatro sons de C’, 6 g. indica a combinação de dois sons de b” com quatro sons de c”
(note-se que na combinação simultânea das duas mãos a série aparece completa, inicialmente em A’ B’ C’, posteriormente
em a” b” c”). Assim, tem-se:

6 g. 6 g. A’ B’
A’ (4 g.) + B’ (2 g.) a” (4 g.) + b” (2 g.)

6 g. 6 g. a’ b’

B’(2 g.) + C’ (4 g.) b” (2 g.) + c” (4 g.)


6

• Segmentação: a peça está organizada com base na totalidade do conteúdo serial


por meio de segmentos da série como: hexacordes (grupo de seis notas da série) e
tetracordes (grupo de quatro notas da série) – estes segmentos funcionam como
unidades estruturais no decorrer da peça.
• Complementaridade: a construção serial depende de relações de
complementaridade entre os segmentos.
• Relações combinatórias7: as relações combinatórias existentes na série da peça
para piano Op. 33a de Schoenberg ocorrem entre P-0 e I-5: com exceção dos c. 1-
2, 6-7 e 37-38 (em que estas formas da série, ou seus retrógrados, são utilizadas
uma após à outra), a totalidade a peça está composta por pares de séries
relacionados de forma combinatória utilizados concomitantemente; na seção de
desenvolvimento (c. 25-32:1) são utilizados pares hexacordais com relação
combinatória.
• Unidade estrutural básica: devido às relações combinatórias, não seria
adequado tomar a série P-0 como sendo a base estrutural da peça; seria mais
correto considerar o conjunto de 24 notas da combinação P-0/I-5 como sendo a
unidade básica da composição, ou, no sentido oposto, derivar todos os eventos da
peça de um único hexacorde.
• Partição8: ocorre o fenômeno de partição hexacordal na série da peça Op. 33a
pelo fato de que ambos hexacordes possuem o mesmo vetor intervalar, ou seja,
todas as classes de intervalos estão presentes paritariamente em cada hexacorde; a
tabela abaixo ilustra este fato:

7
relações combinatórias – definição: terminologia cunhada por Milton Babbitt, segundo a qual uma série é
considerada como sendo combinatória hexacordal quando os hexacordes de duas formas distintas da série
formam um conjunto de doze sons, mesmo ocorrendo transformações internas em cada um dos hexacordes, ou
transformações do outro hexacorde; quando há múltiplas inter-relações deste tipo, a série é chamada de
totalmente combinatória; podem haver séries com possibilidades de combinação de três células de quatro sons
(série combinatória tetracordal) ou de quatro grupos de três sons (combinatória tricordal); as séries de doze
sons subsidiárias que resultam de relações combinatórias são chamadas de séries derivadas quando são
construídas a partir de um único segmento sob várias transformações; as séries secundárias são aquelas
derivadas a partir de vários segmentos.
8
partição é uma propriedade formal que pertence à série, enquanto segmentação é um meio pelo qual o
compositor escolhe dividir a série arbitrariamente em algum ponto; o que entra em jogo neste ponto é a
totalidade de intervalos entre as notas de uma determinada parte da série tomada como uma unidade harmônica –
quando se divide a série em hexacordes, cada hexacorde possui o mesmo vetor intervalar pelo fato de que são
equivalentes, sendo que cada hexacorde possui todas as classes de intervalos em uma distribuição equilibrada.
7

Vetor intervalar da série da peça para piano Op. 33a, de A. Schoenberg

Classe de intervalos 1 2 3 4 5 6
Série completa 2 3 1 1 3 1
Hexacorde (1) 4 2 2 2 3 2
Hexacorde (2) 4 2 2 2 3 2
Tetracorde (1) 2 1 0 0 2 1
Tetracorde (2) 0 1 2 1 1 1
Tetracorde (3) 1 1 1 1 1 1
Tricorde (1) 0 1 0 0 2 0
Tricorde (2) 0 1 1 0 1 0
Tricorde (2) 0 1 0 1 0 1
Tricorde (2) 0 1 0 1 0 1

• Estrutura serial e organização formal


primeiro tema – este tema apresenta, como tradicionalmente ocorre na sonata, um
caráter robusto (geralmente chamado de ‘masculino’): a segmentação da série em
tetracordes, neste tema, produz formações harmônicas mais distintas do que em
hexacordes – esta distinção é utilizada para destacar o tema, que consiste inicialmente
de uma sucessão de acordes de quatro sons, no contexto da sonata;
segundo tema (c. 14-18, 21-23:1; 35-36) – este tema apresenta um caráter mais
lírico, geralmente chamado de ‘feminino’: os hexacordes são enfatizados por serem
tratados frasicamente, como antecedente-conseqüente; como cada hexacorde
apresenta, internamente, todas as classes intervalares, este tema não apresenta, em seu
todo, uma forte identidade harmônica; este fato faz com que a relação deste tema com
outras passagens da peça seja mais dependente da textura e do registro do que da
harmonia – o que é uma distinção essencial entre a forma sonata na música
serial/atonal e a forma sonata no sistema tonal.
desenvolvimento – esta seção apresenta um caráter tempestuoso e gestual: no
desenvolvimento, há segmentação da série em tricordes, o que produz entidades
harmônicas ainda mais distintivas do que os tetracordes do primeiro tema – 1º
tricorde: acorde por quartas – 4ªJ + 4ªJ (harmonia quartal), 2º tricorde: formação de
2ªM + 4ªJ [0, 2, 5], 3º e 4º tricordes: formação 2ªM + trítono [0, 2, 6] (esta formação
traz uma coloração tonal, por aparentar-se com o acorde de V7 incompleto ou com a
It6; por outro lado, pode ser também utilizado para construir harmonias próprias da
escala de tons inteiros);
• Associações da série à forma sonata: as transposições da combinação das
formas seriais P-0/I-5 são realizadas segundo um plano de forma sonata – a
primeira transposição ocorre próximo ao início do desenvolvimento (c. 27), e não
no segundo tema, como seria esperado; este procedimento pode ser tomado como
uma tentativa de recriar o arco de tensão típico da sonata, muito mais do que uma
simples substituição direta das relações tonais; o retorno da transposição ‘afastada’
P-7-RI-0 à combinação ‘principal’ P-0/I-5 no momento da recapitulação está
claramente modelado pela prática tonal; há, inclusive, um repouso cadencial
precedendo a (por assim dizer) ‘tônica final’; além disso, a primeira ‘modulação’
(c. 27-28) também se assemelha à prática tonal (no mínimo, a técnica é
comparável, mesmo que não se perceba auditivamente) a figura abaixo representa
8

esquematicamente as relações seriais, os círculos representam agregados


dodecafônicos entre hexacordes de diferentes formas da série; somente o primeiro
hexacorde da série é utilizado em sua ‘modulação’ real (o segundo não aprece até
o final do c. 28); Schoenberg tira vantagem do fato de que as quartas destes
hexacordes se superpõem entre as diferente transformações seriais que está
utilizando;

c.: 26 27 28

P-0 (ii) I-5 (i) P-2 (i) I-0 (i)

I-5 (ii) P-0 (i) I-7 (i) P-7 (i)

A figura abaixo demonstra como que cada tricorde aparece uma e somente uma vez:

Db Ab Eb Bb F C G D

I-5 P-0

I-7 P-2

I-0 P-7

A análise demonstra que aos intervalos de 4ª têm diferentes funções cada vez que
aparecem, sendo que estas funções dependem das outras notas que ocorrem juntamente em
cada hexacorde. Estes hexacordes variam em transformações e servem para identificar a
transformação em uso (este é aproximadamente o mesmo papel da inflexão cromática no
círculo de quintas). O exemplo mais interessante desta técnica ocorre na mão direita, no c. 27,
ou seja, imediatamente antes da ‘modulação’ que caracteriza o desenvolvimento. Este é o
único momento em que são exploradas relações peculiares existentes entre os tricordes de P-
0 e I-5; estas relações podem ser percebidas quando se coloca uma forma da série superposta
à outra: os dois primeiros tricordes de I-5 são os mesmo que os dois tricordes finais de P-0
(que são eles próprios relacionados por transposição), exceto pelo fato de que as notas Sol e
Sol# trocam de posição. Schoenberg enfatiza esta relação no c. 27 ao deixar cada nota em um
único registro em toda a passagem.
• Fatores harmônicos enfatizados na série: um aspecto importante do serialismo
combinatório é que permite enfatizar determinadas características intervalares de
um determinado segmento da série, enquanto mantém todas as doze notas em
circulação, pela utilização simultânea do mesmo segmento na exposição de duas
formas da série relacionadas combinatoriamente; isto ocorre nos compassos 5-6 e
27, no Op. 33a, onde acordes por quartas e harmonias de tons inteiros alcançam
seus respectivos ápices; em outras palavras, pode-se dizer que o serialismo
combinatório enfatiza os aspectos harmônicos mais do que os lineares da série.

• Série composta por todas as classes de intervalos: na série do Op. 33a todas as
classes intervalares aparecem na relação entre notas adjacentes; este fato faz com
9

que a série apresente um equilíbrio intervalar; por esta razão, o que marca o caráter
específico da peça é a forma como os intervalos estão organizados em segmentos,
dentro da série.
• Palíndromo9: os compassos finais da peça Op. 33a apresentam uma estrutura serial
palindrômica, ou seja, o conseqüente tem a mesma estrutura que o antecedente em
movimento retrógrado.
• Estrutura frasal e estrutura serial: as frases são mais ou menos transformadas de
acordo com o plano serial somente no desenvolvimento (em torno do c. 28), sendo
modeladas conforme a elaboração em seqüência dos desenvolvimentos da música
tonal. De qualquer forma, o início e final das exposições seriais geralmente
coincidem com o início e final de frases, não havendo associações definidas entre
elementos formais específicos com transformações específicas da série, porém o
início de pontos estruturalmente importantes geralmente coincidem com a
apresentação novas formas da série.
• Elementos não seriais definidores da estrutura frásica e formal: em geral são os
elementos não serializados que possuem importância crucial na articulação das
frases: o mesmo contorno em forma de arco existente nas frases pode ser notado
no registro, na dinâmica e no tempo (andamento). Há, inclusive, padrões
cadenciais (o c.13 rima com c. 8, p. ex.). O caráter robusto do primeiro tema, o
caráter lírico do segundo tema e o caráter tempestuoso do desenvolvimento
ilustram, juntamente com os outros fatores, a importância de elementos não seriais
na definição não somente da estrutura serial em si, como também na clarificação
da estrutura formal da peça.
• Textura e harmonia com relação à série: a textura é outro elemento que se
relaciona com a série, sendo, porém, independente dela. A série está planejada de
forma que diferentes texturas – grupos de três, quatro ou seis notas, p. ex. –
resultam em diferentes formações harmônicas, assim como a formação
proeminente de díades (ou grupos de duas notas) formadas por intervalo de 7ªm é
derivada diretamente da série10. Em muitos aspectos, o manuseio de acordes é
bastante tradicional, sendo perceptível o fato de que Schoenberg tende a utilizar
cada um dos acordes mais importantes da peça em formações consistentes, ou seja,
com as diferentes notas posicionadas da mesma forma, umas em relação às outras,
em diferentes passagens – este fato auxilia a delimitar e estruturar o vocabulário
harmônico da peça, que de outra maneira seria bastante difuso (neste sentido, os
acordes encontrados estão organizados de modo bastante similar àquela encontrada
na música pré-serial de Schoenberg). Há momentos, inclusive, em que a peça Op.
33a é claramente tonal, não somente pelo fato de que aparecem formações cordais
do vocabulário tonal, mas também pelo fato de que existem movimentos
harmônicos que desapareceriam se a peça fosse tocada ‘de cabeça para baixo’
(sendo esta uma operação neutra do ponto de vista estritamente serial). Os
momentos mais claros neste sentido são propiciados pelo acorde de VI9 de Láb nos
compassos nos compassos 17, 18 e 34. O primeiro tema, por sua vez, apresenta
9
palíndromo ocorre quando um trecho pode ser lido da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita sem
modificar a sua estrutura, ou seja, quando o conseqüente é um retrógrado exato do antecedente, como ocorre nas
seguintes frases: amor a Roma, orava o avaro, socorram o Marrocos.
10
Porque a utilização proeminente de sétimas menores? Porque elas são parte da harmonia quartal, do acorde
formado com base em tons inteiros, tanto quanto de acordes de sétima de dominante ou de acordes secundários
de sétima do vocabulário tonal. Todas estas são importantes formações harmônicas existentes no Op. 33a – a
utilização de sétimas menores, não somente como díades, mas como notas externas de acordes de três sons
auxiliam na integridade harmônica da peça.
10

uma forte coloração tonal nos c. 10-11, em que a mesma série de acordes é
utilizada, simultaneamente, para frente e para trás, soando claramente bitonal.
Estas colorações tonais funcionam como as quartas e os tons inteiros: como um
jogo de luz e sombra e, também, como uma sonoridade para enfatizar importantes
pontos estruturais, porém sem conexões mais profundas com relação à estrutura
musical. Pode-se, de fato, dizer que Schoenberg reverte a prática tonal no sentido
em que a estrutura harmônica cumpre um papel puramente superficial em sua
sonata, sendo a estrutura frasal e a textura os meios mais importantes para a
articulação da forma – este fato enfatiza a importância dos aspectos
composicionais, que é muito maior do que dos fatores pré-composicionais, na
música serial.

2.2. Técnicas de derivação serial11

2.2.1. Permutação

Além das derivações seriais mais conhecidas (retrógrado, inversão e retrógrado da


inversão), há outras variantes possíveis em uma série dodecafônica. As mais utilizadas são a
permutação e a segmentação.
O princípio da permutação pode ser aplicado a uma série de doze sons completa ou a
parte dela (hexacordes, tetracordes ou tricordes). A permutação consiste em reordenar os
elementos da série de todas as formas possíveis. Um tricorde (notas: Dó, Fá#, Si), por
exemplo, pode ser variado por meio das seguintes permutações:

Dó – Fá# – Si
Dó – Si – Fá#
Fá# – Dó – Si
Fá# – Si – Dó
Si – Dó – Fá#
Si – Fá# – Dó

Os métodos mais usuais de permutação ocorrem através da reordenação da série por


meio de algum processo lógico, como, por exemplo, a seleção de uma nota sim uma nota não
(o que resulta na ordenação dos número ímpares antes dos números pares, ou vice-versa). Se
for realizado um processo de permutação, selecionando ‘um sim, um não’ na seqüência de
números de 1 a 12,

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

11
In: BRINDLE, Reginald Smith. Serial composition, London: Oxford University, 1980, p. 154-160.
11

tem-se a seguinte série:

1 3 5 7 9 11 2 4 6 8 10 12

Aplicando-se o mesmo princípio a esta nova série, tem-se:

1 5 9 2 6 10 3 7 11 4 8 12

Seguindo o mesmo processo, obtém-se as seguintes séries derivadas:

1 9 6 3 11 8 5 2 10 7 4 12
1 6 11 5 10 4 9 3 8 2 7 12
1 11 10 9 8 7 6 5 4 3 2 12
1 10 8 6 4 2 11 9 7 5 3 12
1 8 4 11 7 3 10 6 2 9 5 12
1 4 7 10 2 5 8 11 3 6 9 12
1 7 2 8 3 9 4 10 5 11 6 12

Se for aplicado o mesmo procedimento à última série do quadro anterior,

1 7 2 8 3 9 4 10 5 11 6 12

chegar-se-á novamente a série original:

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12

Isto significa que este processo de permutação permite um número limitado de nove
derivações da série original. O mesmo princípio pode ser aplicado com outras combinações
lógicas. Em vez de realizar o processo com o método ‘uma nota sim, uma nota não’ (como foi
o exemplo anterior), pode-se utilizar como princípio de derivação: ‘a cada duas notas’, ‘a
cada três notas’, a ‘cada quatro notas’, etc. Obviamente, algumas derivações por meio de
determinado processo coincidem com outras, reduzindo consideravelmente o número de
séries derivadas por permutação através de processos lógicos.

2.2.2. Tropo de Hauer

Outra forma importante de ordenar as doze notas do total cromático são os ‘tropos’ de
Joseph Mathias Hauer, os quais, embora similares às séries de Schoenberg em alguns
aspectos, são bastante diferentes em outros. Em sua publicação Vom Wesen der
Musikalischen (Viena, 1920), Hauer escreve sobre a melodia atonal;: “sua lei, seu nomos
consiste de uma repetição perpétua de todas as doze notas da escala temperada”. Porém, ao
12

invés de observar este princípio com suas totais implicações de repetição livre e desordenada,
tanto Hauer quanto Schoenberg estabeleceram restrições ao princípio em nome da ordem, do
método, da unidade e de outros fatores. A verdade é que possivelmente ambos se sentissem
perdidos quando confrontados com a tarefa de lidar com a recorrência desordenada das doze
notas, sendo assim, os dois compositores buscaram princípios de ordenação, algum modo de
facilitação do problema perpétuo de escolha (da ordem das notas) com o qual se
confrontaram. Schoenberg escolheu estabelecer uma ordem fixa de notas (a série). Ele
colocou uma camisa de força na livre escolha do compositor. Hauer, por sua vez, escolheu
preservar uma possibilidade razoável de seleção.
Os ‘tropos’ de Hauer ainda incluem todas as doze notas cromáticas, mas são divididos
em dois segmentos de seis notas, ou ‘hexacordes’. Nenhuma nota é repetida em cada
segmento e nenhuma nota é comum a ambos os segmentos. Portanto, a divisão das doze notas
em duas metades é o único fator restritivo. As notas em cada hexacorde não são colocadas em
nenhuma ordem rígida e o compositor tem, assim, livre escolha na ordenação de cada grupo
de seis notas. Sua única obrigação, naturalmente, é utilizar cada hexacorde alternadamente de
forma a manter a ‘repetição perpétua de todas as doze notas da escala temperada’.
Este sistema parecia ter muitas vantagens, embora pudesse perder a ‘força unificadora’
das séries de Schoenberg. Liberdade de escolha, no mínimo em cada hexacorde, significa que
o compositor está menos restrito naquilo que escreve tanto vertical, quanto horizontalmente.
Sua melodia e harmonia estão, assim, liberadas da ordenação estrita das notas, conforme o
método de Schoenberg, e estão consideravelmente sujeitas ao acaso. ‘Livre fantasia’ e
‘inspiração’ estão colocadas dentro da dimensão das seis notas que, sendo quase tão ampla
quanto a dimensão da escala diatônica de sete notas, é uma área de atuação razoavelmente
generosa.
Na realidade, muitos compositores que utilizam as séries de doze notas de
Schoenberg, geralmente tendem a quebrá-las em dois hexacordes e utilizam livremente o
conteúdo de cada segmento. Os sistemas de Schoenberg e Hauer podem ser utilizados em
alternância. Mesmo em passagens breves, ambos podem coexistir lado a lado e, assim
unificados, podem proporcionar a consistência de um método e a liberdade do outro. O
‘método’ resultante tem muito a ser recomendado se a aspiração do compositor é escrever
música que tenha ambas as qualidades ideais: construção lógica e livre fantasia.
Na prática, o ‘tropo’ é geralmente escrito de forma que em cada hexacorde as notas
sejam arranjadas em padrões escalares como ‘material’ compositivo, sem influência prévia na
ordenação das notas. Por exemplo, a série do Op. 23 de Webern está representada abaixo em
sua disposição original (serial) e em forma de ‘tropo’:

Ex. 3-1: Série do Op. 23 de Webern.


13

Ex. 3-2: Série do Op. 23 de Webern em forma de ‘tropo’.

Na forma de ‘tropo’, o conteúdo de cada hexacorde pode ser reordenado à vontade. De


fato, cada hexacorde pode ser arranjado de 720 diferentes maneiras. Porém, como muitas
destas variantes contém aquelas formações que comprometem o equilíbrio atonal (p. ex.:
tríades, quartas adjacentes, grupos de tons inteiros) e são, por isto, consideradas inválidas, o
número real de variantes utilizáveis de cada hexacorde pode ser consideravelmente menor.
Transposições de cada ‘tropo’ são possíveis, da mesma forma que nas séries de doze
sons, porém acontece freqüentemente que algumas transposições de certos hexacordes
simplesmente reproduzem a mesma sucessão de notas do original (como é o caso da escala de
tons inteiros, em que somente uma transposição é possível).
Tropos nunca são utilizados em forma invertida, visto que inversões podem,
geralmente (mas não sempre), produzir diferente conteúdos em cada hexacorde.
Hauer afirmou que somente 44 tropos seriam suficientes para a derivação de todas as
melodias dodecafônicas possíveis, as quais poderiam chegar a um extravagante número de
479 milhões de séries possíveis de doze notas.
Obviamente, parece que, dado qualquer ‘tropo’, a maneira mais fácil de ordenação do
conteúdo de cada hexacorde seria através de métodos de permutação. Um pequeno número de
métodos de permutação que dê um número satisfatório de ordem de notas, com suas relativas
transposições, seria suficiente para muitas composições. Alternativamente, o compositor pode
proceder sempre por livre escolha ou combinar ambos os métodos.

2.2.3. Segmentação

Uma extensão do sistema do ‘tropo’ de Hauer é a divisão de uma série de doze sons
em vários segmentos, cada segmento contendo duas, três ou quatro notas (ninguém parece ter
considerado o uso de segmentos desiguais – p. ex.: 2+3+2+3+2, embora não haja nenhuma
objeção razoável para isto). O conteúdo de cada segmento pode, então, ser livremente
ordenado. Também a ordem dos segmentos pode variar. Especialmente se os segmentos são
menores (somente duas ou três notas), o conteúdo de alguns segmentos será o mesmo em uma
ou mais formas transpostas da série. Tal segmento torna-se um pivô entre estas formas
transpostas da série, e como o conteúdo de outros segmentos estarão em diferentes
combinações, e não na forma original, permite uma grande variedade de padrões de
combinação de notas a serem utilizadas.
14

2.3. Glossário

trop(o)12 - elem. comp., do gr. trópos ‘volta, giro’, que se documenta em alguns compostos
formados do prórpio grego (como tropologia) e em alguns outros introduzidos a partir do séc.
XIX, na linguagem erudita ⇒ tropismo sm. ‘(Biol.) reação de aproximação ou de
afastamento do organismo em relação à fonte de estímulo’ XX. Do ing. tropism, deriv. do lat.
cisnt. tropismus || tropo sm. ‘(Gram.) emprego de palavra ou expressão em sentido figurado’’
ext. (Mús.) canto, melodia’| tropos XVII, topus, deriv. do gr. trópos || Do lat. tard. tropus, der.
do gr. trópos || tropolog-ia 1813. Do fr. tropologie, deriv. do lat. tard. topologia e, este, do
gr. tropológia || tropológ-ico XV || troponôm-ico 1899 || troposfera XX. Do fr. troposphère.

tropo 13(ó). [Do gr. trópos, ‘desvio’, pelo lat. tropu.]. S.m. 1. Gram. Emprego de palavra ou
expressão em sentido figurado. 2. Mús. Tom (11). 3. Mús. Na música medieval, ampliação de
um canto litúrgico de formação melismática, mediante acréscimos ou substituições. 4. Teat. A
primeira manifestação dramática da Idade Média, a qual se constituía de pequeno recitativo
ou diálogo inserido na liturgia da missa, de onde se originaram os dramas litúrgicos.

troponômico. [De trop(o)- + -nom(o)- + -ico]. Adj. Diz-se das mudanças que um dado
objeto sofre segundo os diversos tempos e lugares.

tropo14. [Canto Gregoriano] O tropo é um complemento do canto cuja forma não está
previamente fixada, e que se interpola nele mesmo ou se acrescenta como apêndice. Formas
de tropos:
- Aplicação de texto a melisma: o tropo é um texto novo que se submete
silabicamente a um melisma preexistente no canto gregoriano;
- Texto novo com nova melodia: neste procedimento, ambos se guiam pelo texto e
melodias originais;
- Interpolação puramente melódica: no canto gregoriano se interpola, com fins
ornamentais, um melisma em uma determinada passagem.

12
In: CUNHA. Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fornteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1982.
13
In: HOLANDA FERREIRA. Aurélio Buarque de. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1986.
14
In: MICHELS, Ulrich. Atlas de música, 1. Madrid: Alianza, 1987.
15

2.4. Bibliografia para o estudo de música serial

BARRAUD, Henry. Para compreender as músicas de hoje. São Paulo: Perspectiva, 1968.
BENT, Ian. Analysis. New York: Norton, 1987.
BOULEZ, Pierre. A música hoje. São Paulo: Perspectiva, 1986.
_____________. Apontamentos de aprendiz. São Paulo: Perspectiva, 1995.
BRINDLE, Reginald Smith. Serial composition, London: Oxford University, 1980.
COOK, Nicholas. A guide to musical analysis. New York: Norton, 1987.
DUNSBY, Jonathan; WITTALL, Arnold. Music analysis in theory and practice. New Haven:
Yale University, 1988.
EIMERT, Herbert. Qué es la musica dodecafónica? Buenos Aires: Nueva Visión, 1973.
LEIBOWITZ, René. Introduction à la musique de douze sons. Paris: L’Arche, s.d.
_______________. Schoenberg and his school. New York: Philosophical Library, 1949.
_______________. Schoenberg. São Paulo: Perspectiva, 1981.
MICHELS, Ulrich. Atlas de música, 2. Madrid: Alianza, 1996.
PERLE, George. Serial composition and atonality. Berkeley, University of California, 1981.
POUSSEUR, Henri. Música, semántica y sociedad. Madrid: Alianza, 1984.
ROMANO, Jacopo; ZULUETA, Jorge. Arnold Schoenberg – la obra completa para piano.
Madrid: Editorial Presencia, 1965.
RUFER, Josef. Composition with twelve notes. London: Barrie & Rockliff, 1961.
SCHOENBERG, Arnold. Style and idea. Berkeley: University of California, 1975.
WEBERN, Anton. O caminho para a música nova. São Paulo: Novas Metas, 1984.
16

3. A TEORIA ANALÍTICA DE LEONARD MEYER

3.1. Análise musical com base na Psicologia da Gestalt15

Princípios e Padrões da Percepção

A mente, na seleção e organização de estímulos, obedece a certas leis gerais da


percepção, que consideram os modos pelos quais a mente organiza os estímulos recebidos e
explica como certas expectativas se manifestam com base nas relações entre a memória e a
imaginação. Estes princípios de percepção foram formulados pela Psicologia da Gestalt.
A Gestalt tende a anular ou minimizar o papel da aprendizagem na percepção e
organização de figuras. Meyer critica esta posição, afirmando que as leis da percepção
"operam no interior de um determinado meio sociocultural, onde as atitudes, as crenças e o
aprendizado qualificam estas operações" (1956, p.84).

Alguns dos princípios da Psicologia da Gestalt utilizados por Meyer são (cf.
Koellreutter, 1987, p. 27-28):
• Lei da Semelhança – a igualdade de aparência desperta a tendência de construir
unidades estruturais;
• Lei da Proximidade – elementos próximos tendem a ser percebidos juntos, ou seja,
como uma única unidade estrutural;
• Lei da Experiência – elementos tendem a construir unidades estruturais na mente
de acordo com a experiência;
• Lei da Conclusão – a percepção dirige-se espontaneamente para uma ordem que
tende para a unidade de todos concluídos;
• Lei da Seqüência ou Boa Continuação – toda a unidade linear (sucessão) tende a
se prolongar psicologicamente na mesma direção, mesma ordem e com o mesmo
processo de desenvolvimento.

Outros princípios da Gestalt utilizados por Meyer em sua formulação da análise


musical são:

Lei da Pregnância16 – postula que toda a organização psicológica será sempre tão boa
quanto as condições permitam, incluindo propriedades como regularidade, simetria,
simplicidade e outras. Um sistema deixado por si mesmo na memória, tende a tornar-se mais
simples, simétrico e regular com o passar do tempo. Há uma tendência da mente em
aperfeiçoar a organização psicológica, a discriminar entre padrões satisfatórios e escolher
qual deles requer aperfeiçoamento. Um objeto é sempre compreendido como uma parte bem
integrada de um todo, quanto maior a integração, maiores as forças que os mantém juntos e
mais constantes permanecerão em relação a estímulos de mudança.

Princípio Figura-Fundo – a percepção tende naturalmente a destacar certos elementos


de uma estrutura, colocando-os em primeiro plano, enquanto deixa outros elementos

15
In: MEYER, Leonard. Emotion and meaning in music, Chicago: University of Chicago Press, p. 83 –127,
1956.
16
Pregnânica: qualidade que tem uma forma de impregnar o espírito do indivíduo e ser por ele percebida no
processo de grupação de elementos; a força da forma. In: HOLANDA FERREIRA (1986).
17

(geralmente menos importantes para o reconhecimento daquilo que se deseja perceber) em


segundo plano – podendo, inclusive, haver uma hierarquização de várias camadas estruturais
de percepção, ou seja, vários planos diferenciados com diversos graus de importância
perceptiva. Na linguagem de artes visuais, os elementos que são reconhecidos em primeiro
plano são chamados de figura, enquanto que aqueles elementos percebidos subsidiariamente
são chamados de fundo.
Segundo Meyer, para que a mente tenha a capacidade de reconhecer os elementos de
determinado trecho de uma obra musical, é necessário que haja equilíbrio entre os diversos
elementos que se ouvem simultaneamente. Assim, quanto maiores as mudanças em
determinados parâmetros, maior é a necessidade de que os outros permaneçam estáveis. Visto
que a mente é limitada em sua capacidade de assimilação de informação, é preciso que os
diversos movimentos sonoros sejam dosados através do equilíbrio entre os elementos
musicais, por meio da distribuição entre parâmetros estáveis e instáveis. As propriedades que
mudam constantemente tornam-se mais salientes, enquanto as outras permanecem em
segundo plano. Isto gera a relação que a Psicologia da Gestalt chama de figura-fundo. A
clareza das articulações entre os diversos níveis arquitetônicos e as suas inter-relações
colaboram para a obtenção do fluxo e da continuidade. Neste ponto, Meyer aproxima-se
muito das formulações de Riemann (1943) sobre a conjunção e separação de grupos
fraseológicos e a sua importância na construção do processo formal de uma determinada peça
musical.
A experiência musical depende das relações entre o pensamento e a memória.
Segundo pesquisas de Max Werthermeier (um dos fundadores da Gestalt Psicologie), o
pensamento, a superação de dificuldades e a expectação são partes de um único processo. Se a
expectação depende de uma lacuna estrutural, o retardamento em completar o processo do
pensamento resultará em um aprofundamento da relação afetiva do indivíduo com o objeto.
Por exemplo, uma situação confusa e duvidosa resultará em sentimentos de suspense. A
expectação musical depende, em grande parte, dos processos da memória, seja com relação ao
que acabou de ser ouvido em uma obra específica ou em termos da memória de experiências
musicais anteriores. Os traços deixados na memória pelos estímulos estão em constante
mutação. Estas mudanças são agrupadas em três classes:
Normalização – ocorre quando a reprodução de figuras relembradas por um sujeito
enfatizam, sucessivamente, uma forma familiar;
Ênfase (ou Apontamento) – ocorre quando um aspecto particular do padrão, que atinge
o observador como no momento em que ele percebeu o estímulo, torna-se cada vez mais
exagerado;
Mudanças Autônomas – são inerentes ao próprio padrão e o resultado de sua força
intrínseca.

Em música, estes processos ocorrem dentro de um sistema mais ou menos fechado e a


memória opera entre diferentes experiências musicais ou entre partes da mesma experiência.
A Lei da Pregnância atua na memória completando o que está incompleto, tornando regular o
irregular, e assim por diante. Assim, as formas instáveis, que não estão bem organizadas,
tendem a ser esquecidas. Esta é a razão que faz com que as partes mais estáveis e melhor
organizadas de uma obra musical sejam mais facilmente lembradas (temas são mais
facilmente lembrados do que seções de transição ou de desenvolvimento). A memória tende a
reconhecer os temas como sendo mais simples do que realmente são, como tipos ideais mais
do que eventos particulares. O processo de normalização tende a agrupar as experiências
formando conceitos de classe, unindo diversas experiências em uma única categorização. A
mente possui diversos sistemas que, através de um processo de condensação e assimilação,
18

formam a base para a percepção em classes, para a distinção dos eventos em normais e
inusuais.
A Normalização desempenha um papel importante na facilitação da re-audição de
composições musicais. Cada audição da mesma obra é uma nova audição, com novos
interesses e enfoques, com os desvios tornando-se mais regulares ou sendo esquecidos. Desta
forma, outros elementos tendem a causar novas surpresas, a permanecer como desvios mesmo
depois de várias audições da mesma peça musical. Embora a organização psicológica tenha a
tendência a tornar os estímulos percebidos tão bons quanto possível, nem sempre estes são
organizados de maneira satisfatória tanto quanto a mente possa desejar. Esta insatisfação em
relação à organização psicológica permite que se desenvolvam a expectativa e a percepção de
desvios. A boa continuação e a boa formação são fatores poderosos que condicionam a
percepção de estímulos e sua memorização posterior.

A mente tem a tendência a perceber e organizar os estímulos nas figuras mais simples,
satisfatórias e completas possíveis. Musicalmente, cada estilo em particular tende a formar
figuras de maneiras específicas (e diferente dos outros estilos), dependendo dos materiais
melódicos, da organização rítmica, da textura, entre outros parâmetros, tanto quanto das inter-
relações dos parâmetros entre si. Por outro lado, "o número, a interdependência e a sutileza de
variáveis envolvidas na percepção musical torna impossível o estabelecimento de um sistema
de regras analíticas absolutas" (Meyer, 1956, p. 86). A habilidade e as formas de percepção
dependem das respostas sensíveis dos ouvintes e estas dependem da sua própria experiência
pessoal, que é apreendida culturalmente.

Lei da Boa Continuação – Entre outras coisas, o princípio da boa continuação permite
que a mente organize estímulos sonoros (musicais) separados como sendo configurações e
movimentos contínuos. O processo de continuidade é percebido como sendo a norma na
progressão musical, assim como distúrbios na continuação são considerados como desvios.
Estes distúrbios podem ser de dois tipos: (a) lacunas no processo, nas quais este é
temporariamente estagnado para depois continuar novamente; (b) modificações no processo,
nas quais há geralmente uma quebra na linha de continuidade, onde uma forma de progressão
toma o lugar de outra. Ambas as formas de distúrbio podem ocorrer conjuntamente, como
acontece quando uma mudança de processo ocorre após uma parada no movimento musical.
O movimento pelo qual um processo se modifica, transformando-se em outro, chama-se
reversão. A continuação deve ser diferenciada da repetição, pois a primeira sempre implica
em mudança no interior de um processo contínuo e não simples repetição. A continuação é
esperada somente enquanto é significativa, ou seja, no sentido de que pode ser compreendida
como movimento em direção a um objetivo. Quando o significado é obscurecido, a mudança
é esperada. A continuidade sempre ocorre no interior de um contexto cultural e estilístico
particular.

Expectação – as relações entre memória e imaginação desempenham um papel


fundamental na percepção e na formação do sentido musical. Toda e qualquer configuração
que se fixa em nossa memória tende a criar uma expectação com relação à sua continuidade,
ou seja, a nossa imaginação pressupõe certos padrões de continuidade para qualquer estrutura
incompleta que se apresenta à nossa percepção. Deste modo, a memória dos trechos musicais
que acabamos de ouvir predispõe nossa imaginação a antecipar mentalmente os eventos que
se seguirão. Desta forma, cria-se o que Meyer denomina de expectação. As configurações que
esperamos que ocorram podem suceder de três modos distintos:
• realização – ocorre quando as configurações esperadas são imediatamente
satisfeitas (um exemplo seria a cadência perfeita: I-IV-V-I);
19

• retardação – ocorre quando as expectativas do ouvinte quanto à resolução de


determinada configuração são retardadas (um exemplo seria uma cadeia de
suspensões retardando a cadência final);
• frustração – ocorre quando as estruturas projetadas pela imaginação são evitadas,
gerando a frustração no ouvinte (um exemplo seria a cadência deceptiva em
direção a uma mediante cromática: I-IV-V-bVI).

Conforme Meyer, a emoção e o significado na música (título de seu livro) se


manifestam prioritariamente em função das relações entre a expectação e a realização,
retardação ou frustração dos elementos musicais projetados pela imaginação com base na
memória daquilo que acabou de ser ouvido. Porém é importante considerar o papel
fundamental que cumprem as Leis da Percepção formuladas pela Psicologia da Gestalt no
processo de significação musical, pois o processo de expectação somente é possível em razão
dos princípios perceptivos de semelhança, proximidade, experiência, conclusão e boa
continuação, com base na compreensão de configurações complexas pela hierarquização
entre figura e fundo e por função da capacidade mental de acomodação das estruturas através
da pregnância.

Com base nestes princípios perceptivos gerais, Meyer (1967, p. 22-41) realiza uma
análise comparativa entre uma melodia retirada do Op. 3 n.º 3 de Geminiani e de um Prelúdio
e Fuga de Bach para órgão. O problema básico que Meyer busca resolver é responder à
questão:
- O que faz uma grande obra musical?
Em síntese, a resposta estaria nas habilidades do compositor em projetar padrões de
continuidade e lacunas a serem preenchidas, reconhecendo o momento preciso de realizar,
retardar, ou frustrar as expectações projetadas criando estruturas lógicas e bem delineadas.
Na comparação entre as linhas melódicas de Bach e Geminiani, Meyer afirma que o que
diferencia a melodia de cada um destes compositores é, principalmente, o fato de que
Geminiani realiza todas as expectativas imediatamente, sem dar tempo para que o ouvinte se
relacione afetivamente com a música. Bach, por sua vez, cria uma série de desvios
(retardando ou frustrando a expectativa do ouvinte), tornando sua melodia extremamente rica
e tocante. Abaixo, a análise gráfica de Meyer, que apresenta no exemplo ‘a’ a melodia de
Geminiani e no exemplo ‘b’ a melodia de Bach (Note-se que ambas tem por base a mesma
estrutura fundamental):

Exemplo 4-1: a) Geminiani, Op. 3, n.º 3; b) Bach, Prelúdio e Fuga para órgão.
20

3.2. A estrutura rítmica da música17

3.2.1. Continuidade rítmica

Para compreender precisamente a estrutura rítmica da música, é necessário efetuar a


distinção entre os conceitos fundamentais ligados ao tempo musical. Meyer define estes
conceitos da seguinte forma:
• pulso – a percepção de pulso depende da divisão objetiva ou subjetiva do tempo
em pulsações regularmente recorrentes e igualmente acentuadas; pulsos iguais não
permitem a impressão de ritmo ou metro, a menos que a mente do ouvinte
imponha arbitrariamente alguma forma de diferenciação entre as pulsações.
• metro – a percepção de metro implica na consciência de diferenciação de pulsos
entre acentuados e não-acentuados; o metro pode existir independentemente do
ritmo pelo fato de que este depende, além da existência de tempos acentuados e
não-acentuados, de seu agrupamento.
• ritmo – a percepção de ritmo envolve o agrupamento mental de um ou mais pulsos
não-acentuados em relação com um pulso acentuado, podendo ser mais ou menos
claros, regulares e variar infinitamente dentro de cada metro; as acentuações
rítmicas podem ser conflitantes com a organização métrica. Pode-se reconhecer os
seguintes padrões rítmicos básicos, aproveitados da prosódia greco-latina:
1. iambo – fraco-forte: ∪ −
2. anapesto – fraco-fraco-forte: ∪ ∪ −
3. troqueo – forte-fraco: − ∪
4. dáctilo – forte-fraco-fraco: − ∪ ∪
5. anfíbraco – fraco-forte-fraco: ∪ − ∪
6. tríbraco – fraco-fraco-fraco: ∪ ∪ ∪
7. espondeo – forte-forte: − −
[Estes dois últimos não são utilizados por Meyer]

Qualquer evento é acentuado quando enfatizado na consciência de algum modo. Esta


ênfase pode ser o resultado de diferenças na intensidade, duração, estrutura melódica,
progressão harmônica, instrumentação ou qualquer outro modo de articulação que possa
diferenciar um estímulo ou grupo de estímulo de outros. Há diferenças entre acento métrico e
acento artificial. Este último é a ênfase dinâmica em um som acentuado ou não metricamente
e não pode criar um acento métrico, apenas altera o agrupamento rítmico básico, dando-lhe
uma nova configuração. Como já foi dito, uma série de estímulos com intensidades e durações
iguais não criam a impressão de ritmo a menos que a mente lhes imponha uma diferenciação
arbitrária. A operação destes agrupamentos depende da organização de diversos elementos da
estrutura musical, como a melodia, a harmonia, a instrumentação e outros. Além disso, grupos
rítmicos precedentes influenciam na percepção de grupos posteriores, assim como grupos
posteriores influenciam na percepção retrospectiva de grupos que já foram ouvidos, ou seja,
um processo rítmico estabelecido tende a se perpetrar. A disposição de todos os materiais
musicais determina como será o agrupamento rítmico; o padrão musical completo tende a ser
percebido nos termos mais simples e satisfatórios possíveis. Assim, a organização rítmica não
é somente a relação entre durações e acentuações mas o resultado destes elementos em
relação a todos os outros aspectos das estruturas de organização sonora.

17
In: MEYER, Leonard. The rhythmic structure of music. Chicago: University of Chicago, 1960.
21

3.2.2. Níveis de organização rítmica

O ritmo organiza-se em diversos níveis através de diferenciações de acento e duração.


Podem-se analisar os agrupamentos rítmicos em diversos níveis da estrutura musical. O
primeiro nível da estrutura rítmica é aquele no qual há uma disposição em um curto espaço de
tempo, o segundo nível é formado pela combinação de dois agrupamentos de primeiro nível, o
terceiro nível é formado pela combinação de dois agrupamentos de segundo nível e, assim,
sucessivamente. Deste modo, é possível analisar o padrão de organização rítmica de um
motivo, de uma frase, de um período, de uma seção ou de uma peça inteira, conforme está
demonstrado no exemplo a seguir.

Exemplo 4-2: Schoenberg, Sechs kleine Klavierstücke, Op. 19, No. 4.


22

3.2.3.Continuidade métrica

O metro é o produto da divisão de um determinado tempo em partes de igual duração,


porém com acentuações diferentes, onde o número de tempos é fixo e sua disposição é
variável. Mesmo sendo distintas, as estruturas rítmicas e métricas não são completamente
independentes entre si. Uma modificação que altera a posição de um acento em relação a
outros afeta tanto o ritmo quanto o metro. As composições musicais apresentam certa
hierarquia de metros, com determinados pulsos acentuados e outros não. O nível fundamental,
ou nível primário, é aquele indicado na armadura de clave.
Os níveis que se encontram no interior do primário são chamados de níveis métricos
inferiores e designados como nível secundário, nível terciário, etc., em ordem de valores cada
vez menores.

Ex.: 4/4 q q q q \ e e e e e e e e \ x x x x x x x x x x x x x x x x ||

n. fundamental | n. secundário | nível terciário

Os níveis nos quais o nível primário se encontra no seu interior são chamados de
níveis métricos superiores e designados como nível secundário, nível terciário, etc., em
ordem de valores cada vez maiores.

Ex.: 4/4 q q q q \ h h \ w ||

n. fundamental | n. secundário | nível terciário

Os compositores tendem cada vez mais a tratar os níveis inferiores secundário e


terciário com maior liberdade. Isto se deve à forma como estes níveis métricos são
valorizados. No período tonal era dado valor primordial ao nível primário em função da
importância da música de dança, da necessidade da coincidência harmônica das diversas
vozes e da emergência da homofonia. Na Idade Média e na Renascença não era dada
prioridade a nenhum nível métrico em especial, sendo que, na música polifônica, cada voz
possuía sua própria organização métrica independente das outras vozes, com a utilização dos
diversos níveis de organização rítmica ocorrendo em cada voz específica.

Os distúrbios na continuação métrica podem ocorrer de três formas:


1. mudança total da métrica – ex.: hemiólia. Comparem-se as duas melodias citadas
abaixo, que são extremamente similares de um ponto de vista superficial. No nível métrico,
porém, o exemplo 4-3a, de Mozart, apresenta grupos binários dentro da métrica ternária geral;
enquanto que no exemplo 4-3b, de Schubert, a métrica ternária é totalmente respeitada, ou
seja, não há distúrbio métrico).
23

Exemplo 4-3: a) W. A. Mozart, Sinfonia em Sol menor K550, Minueto


b) F. Schubert, Sinfonia n.º 5 e, Sib maior, Minueto.
2. deslocamento de uma parte do metro, mesmo que o número de tempos não seja
desviado em sua colocação métrica – ex.: síncope. O exemplo 4-4b apresenta o início da Fuga
em Fá# menor do segundo volume do Cravo Bem Temperado de Bach; no exemplo 4-4a o
tema foi re-escrito para evitar a escrita sincopada (note-se que esta nova maneira de escrever
não permite estabelecer um metro regular).

Exemplo 4-4: a) transcrição do tema da Fuga XIV do Cravo Bem Tempreado (livro II) de J. S. Bach evitando a
escrita sincopada; b) J. S. Bach, Cravo Bem Tempreado, Fuga em Fá# menor (livro II), exposição

3. cruzamento métrico, oposição de metros simultâneos – ex.: estruturas polirrítmicas.


24

Exemplo 4-5: G. Dufay, Missa Santi Jacobi, Kyrie.

É possível analisar a organização métrica de uma obra com referência aos diversos
níveis de estruturação métrica, da mesma forma como é possível analisar os diversos níveis
rítmicos e suas relações no decorrer de uma obra musical.

A lei da Boa Continuação, que foi aplicada aqui para o entendimento da estrutura
rítmica e métrica, pode ser aplicada a outros processos musicais como a harmonia, a
instrumentação, a textura, a forma, ou qualquer aspecto do desenvolvimento musical
governado por relações de probabilidade. Perturbações na continuidade musical podem ser
causadas por reversão de um processo musical estabelecido, pelo retardamento do processo,
por ambos simultaneamente ou através de antecipação (a síncope é uma simples antecipação
rítmica e métrica onde um acento ocorre antes do esperado). Estes vários processos de
continuação não são separados na mente do compositor, do intérprete ou do ouvinte, fazem
parte de uma realidade única e indissociável chamada música.
25

4. SEMIÓTICA MUSICAL

4.1. Conceitos Gerais Sobre Semiótica

Semiótica, em um sentido amplo, é a ciência que se dedica ao estudo dos signos. A


origem da palavra semiótica vem do vocábulo grego semeîon, que significa signo. Todorov
(1988) considera o signo como sendo a “noção básica de toda a ciência da linguagem” (p.
101), definindo-o como sendo “uma entidade que 1) pode tornar-se sensível e 2) para um
grupo definido de usuários, assinala uma falta nela mesma. A parte do signo que pode tornar-
se sensível denomina-se, desde Saussure, significante, a parte ausente, significado, e a relação
mantida por ambos, significação” (ibid., p. 102). Em outras palavras, o signo é sempre
alguma coisa que está no lugar de outra coisa, que substitui outra coisa. O Novo Dicionário
Aurélio define o signo como “uma “entidade constituída pela combinação de um conceito,
denominado significado, e uma imagem acústica, denominada significante (...), a imagem
acústica de um signo lingüístico não é a palavra falada (ou seja, o som material), mas a
impressão psíquica deste som (...)” (1986, p. 1584). Em outro momento, o mesmo dicionário
define o signo como “todo objeto, toda forma ou fenômeno que representa algo distinto de si
mesmo” (ibid.). Desta forma, o signo é sempre algo que representa algo que está fora de si
mesmo, é algo que remete para outra situação que não a situação concreta que é
experimentada.
Há uma divisão geral nas ciências da linguagem que distingue duas categorias
científicas que se dedicam ao estudo do signo:
1) Semiótica – estudo dos signos com base na filosofia, em especial desenvolvida por
Charles Sanders Peirce (filósofo norte-americano, 1839-1914);
2) Semiologia – estudo dos signos com base na lingüística, especialmente a partir da teoria
lingüística geral de Ferdinand de Saussure (lingüista suíço, 1857-1913).

4.1.1. As diversas teorias sobre o signo

Trabant (1976), e Nöth (1995; 1996) dedicam-se ao estudo de várias teorias semióticas
ao longo da história, desde Platão ao século XX. A seguir será apresentada uma síntese das
pesquisas desenvolvidas por estes dois autores, separando-se entre aqueles pensadores que
desenvolveram teorias diádicas do signo (dividido-o em dois elementos) daqueles que
desenvolveram teorias triádicas (dividindo o signo em três elementos).

Teorias Bipartidas do Signo

As teorias diádicas do signo são aquelas que consideram que o signo é uma coisa que está
por outra coisa.
As teorias triádicas dividem o signo em três elementos: 1) o significante – aquilo que
substitui algo (a palavra cavalo, por exemplo); 2) o significado – a idéia gerada pelo
significante (a imagem mental gerada pela palavra cavalo); 3) o referente – aquilo que é
representado pelo significante (o cavalo real representado pela palavra).
As teorias diádicas dividem-se entre
26

1. aquelas que consideram que há somente o significante (palavra cavalo) e o significado


(idéia de cavalo).
Entre estas encontram-se os modelos desenvolvidos pelos filósofos racionalistas do séc.
XVII, em especial Réné Descartes (1596-1650), cuja teoria descreve o processo cognitivo
como uma cadeia de razões independente da realidade sensorial; assim, “o processo semiótico
fica completamente confinado à mente, desde a recepção até a compreensão do signo”
(NÖTH, 1995, p. 43). Thomas Hobbes (1588-1679) definiu que os “nomes são signos das
nossas concepções e não das coisas mesmas” (HOBBES apud NÖTH, 1995, p. 45), desta
maneira os signos não se referem ao mundo, mas a outros signos gerando uma rede de tramas
mentais.
Os empiristas John Locke18 (1632-1704) e George Berkeley (1685-1753) também tinham
uma concepção diádica do signo, considerando que a matéria não participa do processo de
semiose. Locke distinguia duas classes de signos: as idéias, que representam as coisas na
mente de quem as percebe, e as palavras, que são signos das idéias na mente de quem as
utiliza.
O ‘construtivismo radical’ dos biólogos Maturana e Varela (1972) postula que o signo
jamais poderia ser originado fora da mente, defendendo que todo o processo cognitivo é
puramente mental.

2. aquelas que consideram que há somente o significante (palavra cavalo) e o referente


(cavalo real).
Entre aqueles que postularam este modelo estão os epicuristas (ca. 300), cuja teoria divide
o signo em significante (coisa percebida como signo) e referente (objeto referido pelo signo).
Os elementos do modelo epicurista são os seguintes:
• semaínon – significante
• tygchánon – objeto referido

Para Aurélio Agostinho (345-430), que definiu (com base nos epicuristas) o signo como
um fato perceptivo que representa alguma coisa atualmente não perceptível, “o signo é uma
coisa que, além da impressão que produz nos sentidos, faz com que outra coisa venha à mente
como conseqüência de si mesma” (AGOSTINHO apud NÖTH, 1995, p. 34).

Os processos elaborados pelas teorias diádicas do signo poderiam ser sintetizados pelo
esquema abaixo: :

Sistema: Coisa 1 (signo) Coisa 2 (objeto representado)


Coisa 1 (signo) Coisa 2 (conceito)

Exemplos: Fumaça Fogo


Fumaça Idéia de Fogo

Teorias Tripartidas do Signo

As teorias tríadicas do signo acrescentam, ao sistema diádico anterior, uma distinção entre
a “coisa” designada e o “conceito” (ou “idéia” ) gerado no interregno entre a “coisa que

18
O empirista britânico John Locke é considerado como o primeiro pensador a utilizar o termo semiótica com o
sentido que esta palavra possui atualmente.
27

representa” (Coisa 1) e a “coisa representada” (Coisa 2). Desta forma, têm-se as teorias que
dividem o signo em três partes: 1) o significante (Coisa 1, aquilo que designa outra coisa); 2)
o significado (conceito ou idéia gerado pelo significante); 3) o referente (objeto, evento ou
conceito representado pelo significante).
Conforme Trabant:

se bem que muitos teóricos estejam de acordo em que se deve estabelecer uma
distinção entre a coisa designada, por um lado, e o “conceito” ou “idéia”, por outro,
a maneira como se deve conceber a relação entre ‘signos’, ‘conceitos’ e a ‘coisa
designada’ constitui um dos problemas mais controversos da filosofia (1976, p.
31).

Entre os autores e escolas que desenvolveram teorias triádicas do signo estão:

Na antigüidade, os principais pensadores que desenvolveram teorias triádicas sobre o


signo são Platão (427-347 a. C.), Aristóteles (384-322 a. C.) e os estóicos (ca. 300 a. C. – 200
d. C.). Abaixo, os modelos apresentados por estes pensadores:

O modelo platônico:
• Nómos - o nome
• Eîdos ou Lógos – a noção ou idéia
• Prágma - a coisa à qual o signo se refere

O modelo aristotélico:
• Symbolon – o símbolo lingüístico, definido como um signo convencional
• Pathémata – as afeições da alma provocadas pelo signo
• Prágmata – os retratos das coisas representadas pelo signo

O modelo estóico:
• Semaínon – entidade percebida como signo (significante)
• Semainómenon – o conceito gerado pelo signo (significado)
• Tygchánon – o evento ou objeto ao qual o signo se refere (referente)

Na Idade Média, os pensadores de maior influência foram os chamados escolásticos, que


dividiam-se em realistas e nominalistas (cujas teorias serão abordadas a seguir). Os principais
dentre estes pensadores foram o nominalista Roger Bacon19 (1215-1294), Duns Scott (1270-
1308) e Willian Ockham (1290-1349).

A distinção entre denotação e conotação provém da semiótica desenvolvida neste


período, quando também uma teoria da representação começou a estudar as
funções semióticas de signos, símbolos e imagens (NÖTH, 1995, p. 37).

Outro elemento importante na semiótica medieval é a interpretação da Bíblia com base


em modelos pansemióticos a partir de quatro níveis:
1. Sentido literal – por exemplo: “Jerusalém é a cidade dos judeus”;
2. Sentido moral – por exemplo: “Jerusalém é a alma do homem”;
3. Sentido alegórico – por exemplo: “Jerusalém é a Igreja de Cristo”;
19
As discussões de Bacon em torno do nome das coisas (daí nominalismo), utilizando principalmente o ‘nome
da rosa’ como referencial, inspirou outro nominalista contemporâneo, Umberto Eco a escrever seu famoso
romance O Nome da Rosa, no qual entram discussões que retomam a escolástica medieval.
28

4. Sentido anagógico20 – por exemplo: “Jerusalém é a cidade de Deus no céu”.

No Renascimento, esta visão pansemiótica foi utilizada também para as investigações


das Ciências Naturais, pois eram entendidas como assinaturas deixadas pelo Criador em
vários cantos do mundo.

Teoria Realista do Signo

A posição realista considera os conceitos como

grandezas espirituais independentes das coisas reais, que mantêm uma relação
convencional com as palavras (signos). Estabelece-se, portanto, uma distinção
entre o signo e o conceito, por um lado, e a relação do signo e do conceito com a
coisa designada, por outro (TRABANT, 1976, p. 31-32).

Desta forma, os conceitos são interpretados como sendo independentes dos processos
psicológicos individuais de cada sujeito, isto é, como sendo entidades que existem em um
plano ideal independente do sujeito. Este plano ideal poderia ser o resultado de uma estrutura
superior ou das relações sociais que se desenvolvem em cada grupo humano.
Este sistema poderia ser representado genericamente pelo seguinte esquema:

Sistema: Significante Significado [plano ideal geral]

Referente [mundo material]

Exemplo: Palavra Cavalo Conceito de Cavalo

Animal Cavalo

Teoria Nominalista do Signo

Para os nominalistas medievais seria incorreto aceitar a existência de um mundo das


idéias como sendo superior e independente dos indivíduos, pois todas as idéias são geradas
por indivíduos e somente se tornam gerais quando compartilhadas por um grupo de
indivíduos. Desta forma, as idéias ou conceitos são concebidos

como representações individuais, que estão pelas coisas reais, e as palavras como
os signos destas representações. Para o nominalismo somente são reais as coisas e
os nomes, e não os conceitos gerais. Os signos são os meios que conferem
realidade às idéias, os nomes são as realidades das idéias, que de outra maneira
permaneceriam ocultas no íntimo do sujeito (daí ‘nominalismo’) (ibid., p. 33).

20
Anagogia é a elevação da alma na contemplação das coisas divinas, também é a interpretação das Escrituras
Sagradas, ou de outros textos (Virgílio, Dante, etc.) que permite passar do sentido literal ao sentido místico
(NOVO DICIONÁRIO AURÉLIO, 1986, p. 112).
29

Para o nominalismo somente são reais as coisa e os nomes, e não os conceitos gerais,
sendo, assim, uma teoria da utilização dos signos, considerando-os como sendo dependentes
dos sujeitos que os utilizam e dos objetos designados. A teoria nominalista poderia ser
sistematizada da seguinte forma:

Sistema: Idéia [plano espiritual]

Exemplar de Significante21 Referente [plano material]

Exemplo: Conceito Geral de Cavalo

Palavra Cavalo (Nome) Cavalo Real

Trabant (ibid., p. 55) realiza, para fins de entendimento e expansão dos conceitos
realista e nominalista sobre o signo, uma projeção da teoria realista sobre a teoria nominalista,
esquematizando da seguinte maneira:

Sistema: Significante Significado [plano ideal geral]

Idéia
Plano do indivíduo
e da matéria
Exemplar de Significante Referente

Exemplo: Palavra Cavalo Conceito [plano ideal geral]


Geral de Cavalo

Representação
do Conceito de Cavalo Plano do indivíduo
e da matéria

Som da palavra Cavalo Cavalo Real

21
Neste sentido, o exemplar de significante é uma imagem material perceptível através dos sentidos (p. ex.: o
som concreto da palavra cavalo), enquanto que o referente não é necessariamente perceptível (p. ex.: um cavalo
real, individual).
30

Teoria Pragmática do Signo (Peirce)

Charles Sanders Peirce (1839-1914), um dos fundadores do pragmatismo norte-


americano e pensador que se dedicou a vários campos do conhecimento (matemática, física,
astronomia, química, filosofia e lógica), é um dos iniciadores da semiótica geral
contemporânea. Sua teoria é pansemiótica, pois para ele “o homem é um signo” (PEIRCE
apud NÖTH, 1995, p. 63).
Peirce desenvolveu sua fenomenologia22 com base em três categorias universais,
sendo seu modelo filosófico um dos mais amplamente triádicos já elaborados. As categorias
peirceanas são:
• Primeiridade – é o sentimento imediato e presente das coisas, sem nenhuma relação com
outros fenômenos do mundo, sem reflexão: “primeiridade é o modo de ser daquilo que é
tal como é, positivamente e sem referência a outra coisa qualquer” (ibid., p. 65).
• Secundidade – inicia quando se relacionam um primeiro fenômeno a um segundo: “ela
nos aparece em fatos tais como o outro, a relação, compulsão, efeito, dependência,
independência, negação, ocorrência, realidade, resultado (ibid., p. 66).
• Terceiridade – é a categoria que relaciona o fenômeno segundo a um terceiro fenômeno: é
a categoria da mediação, do hábito, da memória, da continuidade, da síntese, da
comunicação, da representação, da semiose e dos signos” (ibid., p. 66).
Para Peirce, todo o signo ocorre em uma relação triádica, ou seja, entre três elementos e
com base nas três categorias. Por exemplo, ao sentirmos o perfume de determinada flor que
nos lembra uma situação agradável vivida há anos: a primeiridade seria a experiência
sensorial olfativa de percepção do perfume, a secundidade seria o primeiro momento em que
este perfume nos traz a experiência passada à memória, a terceiridade seria o processo de
conscientização desta memória e de sua sensação agradável, através de uma teia de relações
mentais já existentes, que permite contar, posteriormente, a experiência a alguém.

O sistema semiótico de Peirce pode ser sintetizado no quadro abaixo:

Tricotomias I II III
Relação ao Relação ao
Categorias REPRESENTAMEN em si OBJETO INTERPRETANTE
PRIMEIRIDADE QUALI-SIGNO ÍCONE REMA
SECUNDIDADE SIN-SIGNO ÍNDICE DICENTE
TERCEIRIDADE LEGI-SIGNO SÍMBOLO ARGUMENTO

Em seu modelo, Peirce realiza uma divisão do signo, no processo de semiose23, em três
categorias (primeiridade, secundidade e terceiridade) que apresentam três correlatos do signo

22
Fenomenologia é o estudo descritivo de um fenômeno ou de um conjunto de fenômenos em que estes se
definem quer por oposição às leis abstratas e fixas que os ordenam, quer às realidades de que seriam a
manifestação (NOVO DICIONÁRIO AURÉLIO, 1986, p. 769). Este termo foi cunhado por J. H. Lambert
(1728-1777), com o sentido de uma doutrina das aparências. Os principais pensadores que desenvolveram
teorias fenomenológicas são Hegel, Peirce, Husserl, Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty e Paul Ricoeur. A mais
difundida é a fenomenologia de Husserl, que consiste em um retorno à essência das coisas mesmas, como
negação da ciência e como uma nova forma de significação do mundo com base nos dados originários da
experiência.
23
Semiose é o processo total de ação do signo sobre o intérprete deste signo (o receptor, na terminologia da
Teoria da Comunicação). Os lingüistas franceses também chamam de semiose os diferentes códigos de
comunicação não verbais, tais como a linguagem dos gestos, a música, a matemática, etc. Para estes lingüistas,
em especial Barthes (1992), para que um código de comunicação possa receber o estatuto de linguagem, deve
preencher certos requisitos, como ter uma sintaxe formalmente elaborada (gramática) e uma semântica com base
31

(representamen, objeto e interpretante) que, por sua vez, se dividem, cada um, em três classes
(o representamen divide-se em: quali-signo, sin-signo e legi-signo; o objeto divide-se em:
ícone, índice e símbolo; o interpretante divide-se em: rema, dicente e argumento). Abaixo,
será apresentada uma explicação sintética desta terminologia.
Na terminologia peirceana, o representamen é a parte perceptível do signo, ou seja, aquilo
que chega ao receptor através dos sentidos (o som da palavra cavalo, por exemplo24). A
divisão do representamen em três classes, com base nas categorias primeiridade, secundidade
e terceiridade, é a seguinte (chamada de primeira tricotomia):
1. quali-signo – é a qualidade do signo, o signo em si mesmo, que participa da categoria de
primeiridade do representamen;
2. sin-signo – é a existência singular do signo como algo concreto no mundo, participa da
categoria de secundidade do representamen;
3. legi-signo – é a lei geral que permite a comunicabilidade, ou seja, que haja a comunicação
por meio deste signo, o legi-signo participa da categoria de terceiridade do
representamen.
Desta forma, cada palavra de determinada língua humana (a palavra cavalo em português,
por exemplo) é um legi-signo (uma lei geral), enquanto que a utilização concreta desta
palavra em uma frase singular, formulada por um emissor específico, é um sin-signo. O quali-
signo é apenas uma “qualidade que é um signo, que não pode atuar como um signo enquanto
não se corporificar” (ibid., p. 78).

Aquela parte do signo à qual Peirce denomina objeto corresponde ao referente em outras
teorias semióticas. Este objeto, pode ser tanto algo material, um objeto concreto do mundo
(uma mesa, por exemplo), como pode ser uma entidade mental ou emocional (o sentimento de
gratidão, por exemplo), ou, ainda, algo “inimaginável em um certo sentido” (o exemplo de
Peirce é a palavra estrela, que não é imaginável por si mesma, mas somente no sentido em
que significa: 1. um astro luminoso, 2. um artista famoso ou 3. a boa sorte – estrela da sorte).
O objeto é composto pelos seguintes elementos (segunda tricotomia):
1. ícone – é o elemento do signo que faz parte do objeto, em que há similaridade entre o
representamen e o objeto. Desta forma, o ícone participa da categoria de primeiridade do
objeto. Um ícone de um cavalo poderia ser uma pintura ou uma fotografia do cavalo;
2. índice – participante da categoria de secundidade de um objeto, o índice está “fisicamente
conectado com seu objeto; formam, ambos, um par orgânico. Porém a mente interpretativa
não tem nada a ver com essa conexão, exceto pelo fato de registrá-la depois de
estabelecida” (ibid., p. 84). Um índice de um cavalo poderia ser o seu relinchar ou o som
de seus cascos;
3. símbolo – é um signo arbitrário, que faz parte de um código e depende de convenções
sociais – estas podem ser geradas tanto pelo hábito, quanto por leis, regras ou memória
coletiva. Participa da terceiridade do objeto. A palavra ‘cavalo’, falada ou escrita, é um
símbolo de um cavalo.

O interpretante, para Peirce, é aquilo que é gerado pelo signo na mente do intérprete. Para
Peirce

em um léxico (dicionário). Somente as línguas preenchem estes requisitos. Por esta razão, os outros códigos de
comunicação são chamados de semiologias, ou semioses.
24
Neste sentido, o representamen de Peirce é o mesmo que o significante de Saussure, ou o semaínon dos
estóicos.
32

um signo [representamen] dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa


um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Chamo o signo assim
criado de interpretante do primeiro signo (ibid., p. 74).

Os elementos que fazem parte do interpretante são os seguintes (terceira tricotomia):


1. rema (do grego rhéma, palavra) – é “qualquer signo que não é verdadeiro nem falso,
como quase cada palavra por si mesma, exceto as palavras sim e não” (ibid., p. 90); por
ser a palavra isolada, o rema, que pertence à primeiridade do interpretante, é a
possibilidade puramente qualitativa do signo, pois ainda não faz parte de qualquer
sentença para que possa ser comprovada ou refutada. A palavra cavalo isolada de
qualquer contexto de significação é um rema;
2. dicente – pertencente à secundidade do interpretante, o dicente corresponde à categoria
lógica da proposição25, ou seja, é um signo com existência real que veicula informação. A
afirmação ‘o cavalo corre’ é um dicente;
3. argumento – é o aspecto do signo que participa da categoria de terceiridade do
interpretante, ou seja, ocorre quando o signo faz parte de um discurso racional mais amplo
que permite passar da simples proposição à elaboração mais completa de conceitos com
premissas e conclusões, como ocorre, por exemplo, no famoso silogismo26 platônico: ‘Se
todo o homem é mortal, ora Sócrates é um homem, logo Sócrates é mortal’.

Com base nas tricotomias apresentadas acima, Nöth (1995, p. 93-94) apresenta uma lista
com as dez principais classes de signos de Peirce:
1. o quali-signo remático icônico é uma qualidade que é um signo, tal como a sensação de
vermelho;
2. o sin-signo icônico remático é um objeto particular e real que, pelas suas próprias
qualidades, evoca a idéia de um outro objeto, tal como o diagrama dos circuitos
eletrônicos em determinada máquina;
3. o sin-signo indicial remático dirige a atenção a um objeto determinado pela sua própria
presença, tal como um grito de dor;
4. o sin-signo indicial dicente é também um signo afetado diretamente por seu objeto, mas
além disso é capaz de dar informações sobre esse objeto, assim como um cata-vento;
5. o legi-signo icônico remático é um ícone interpretado como lei, tal como um diagrama – à
parte sua individualidade fática – em um manual de eletrônica;
6. o legi-signo indicial remático é uma lei geral “que requer que cada um de seus casos seja
realmente afetado por seu objeto, de tal modo que simplesmente atraia a atenção para esse
objeto” (PEIRCE apud NÖTH, 1995, p. 94), como o pronome demonstrativo ‘aquele’;
7. o legi-signo indicial dicente é uma lei geral afetada por um objeto real, de tal modo que
forneça informação definida a respeito desse objeto, tal como uma placa de trânsito;
8. o legi-signo símbolo remático é um signo convencional que ainda não tem o caráter de
uma proposição, tal como um dicionário;

25
Em lógica, proposição é a unidade mínima com significado, pois é a expressão de idéias completas
(combinação de, pelo menos, um sujeito e um predicado) que permite a verificação da propriedade de falso ou
verdadeiro. Assim, a palavra ‘cavalo’ isolada não pode ser uma proposição, enquanto que a sentença ‘todo o
cavalo voa’ é uma proposição falsa e ‘o cavalo é um mamífero’ é uma proposição verdadeira.
26
Silogismo é um argumento formado por três proposições: a premissa maior, a premissa menor e a conclusão,
que é deduzida pela concatenação da premissa maior com a menor. Por exemplo: Se A é B, ora B é C, logo A é
C (cf. exemplo acima).
33

9. o legi-signo símbolo dicente combina símbolos remáticos em uma proposição, sendo,


portanto, qualquer proposição completa;
10. o legi-signo simbólico argumento é o signo do discurso racional, tal como um silogismo.

Teoria Lingüística do Signo (Saussure)

A teoria do signo de Ferdinand de Saussure27 (1857-1913), considerado ‘pai da


lingüística moderna’, acrescenta fundamentos com base na Psicologia Social e não somente
na lógica, como ocorre com as teorias realistas e nominalistas. Saussure apresenta três
diferenças importantes com relação às teorias anteriores:

1. a Coisa 1, o signo, tal como a Coisa 2 (conceito e referente) é diferenciada, na medida em


que
2. se estabelece uma distinção entre o plano do sistema de signos (a língua) e o plano de
atualização dos signos (a fala)28.
3. O signo passa a ser não apenas a coisa 1, mas em certa medida a unidade constituída pela
Coisa 1 e pela Coisa 2, ou antes, a unidade constituída pela ‘imagem acústica’ e pelo
‘conceito’ (cf. TRABANT, 1976, p. 40).

A influência da obra Curso de Lingüística Geral (1916), uma compilação dos cursos
oferecidos por Saussure em Genebra realizada por Charles Bally, foi de grande influência no
desenvolvimento subseqüente da lingüística. Saussure define o signo lingüístico como sendo
arbitrário (convencional), apresentado como a combinação de uma ‘imagem acústica’ (o
significante, a Coisa 1) com um significado (o conceito gerado pelo significante). Outra
importante contribuição de Saussure foi a distinção entre a tradicional análise diacrônica
(evolução histórica da língua) e a análise sincrônica (funcionamento da língua em um dado
momento histórico).
Saussure

sublinha que o signo une ‘não uma coisa e um nome, mas um conceito e uma
imagem acústica’. O significado de cavalo não é, pois, nem um cavalo, nem o
conjunto dos cavalos, mas o conceito ‘cavalo’. (...) No significado de um signo
encontram-se apenas os traços distintivos que o caracterizam relativamente aos
outros signos da língua e não uma descrição completa dos objetos que ele designa
(TODOROV, 19, p. 229-230).

Assim, as signos são definidos negativamente, isto é, em comparação àquilo que não
significam em um determinado sistema lingüístico, e não por seu conteúdo implícito. Trabant
esquematiza a teoria de Saussure da seguinte forma:

27
Conforme já foi visto, costuma-se distinguir a semiótica, de origem norte-americana com base na filosofia de
Peirce, da semiologia, de origem francesa e fundamentada na lingüística de Saussure.
28
A língua (langue), para Saussure, é o sistema lingüístico geral através do qual determinados grupos humanos
se comunicam, por exemplo: a língua portuguesa. A fala (parole) seria a utilização prática deste sistema
lingüístico geral e abstrato em cada situação específica, por exemplo: o português falado em Angola, em Timor
Leste ou no Sul do Brasil (cf. Barthes, 1992, p. 17-18).
34

Sistema29: Significante Significado [modelo coletivo


psicológico social]

Imagem Acústica Representação [processos


psicológicos
indiv. indiv. Individuais]

Exemplar de Significante Referente [realização individual


e material]

Exemplo: Palavra Cavalo Conceito Geral [modelo coletivo


em geral de Cavalo psicológico social]

Impressão psíquica Representação [processos


gerada pelo som da individual do conceito psicológicos
palavra cavalo no de cavalo individuais]
indivíduo

Som da palavra Cavalo Cavalo Real [realização


individual e
material]

Teoria Behaviorista do Signo (Morris)

Se a teoria de Saussure aproxima-se mais da teoria realista por levar em consideração


processos sígnicos gerais, a teoria de Charles William Morris (n. 1901) aproxima-se da teoria
nominalista por considerar os signos em sua utilização prática. Morris distingue três áreas de
atuação e estudo do signo: a sintaxe (estudo das relações entre os signos), a semântica (o
significado dos signos, ou aquilo que os signos designam) e a pragmática (o significante dos
signos, ou aquilo que os signos interpretam), mantém a distinção de Saussure entre a língua e
a fala, assim como sua dependência mútua.
Morris diferencia-se da posição nominalista em três aspectos (cf. TRABANT, 1976, p.
49-50):
a) A teoria nominalista é inflectida no sentido de um behaviorismo materialista científico, ou
seja, a teoria do signo de Morris é explicitada segundo conceitos behavioristas no sentido
de comportamentos observáveis, concebidos como sendo a reação de um organismo a
estímulos. Assim, desenvolve uma Semiótica Descritiva, da qual o objeto de estudo seria
o ‘comportamento sígnico’.
b) Em segundo lugar, a teoria do signo de Morris é uma teoria da recepção dos signos,
enquanto que a teoria nominalista atendia à produção destes.
c) Em terceiro lugar, Morris, uma vez que não pode falar de grandezas ‘espirituais’ não
observáveis, no sentido das idéias nominalistas, completa o modelo nominalista com a

29
Nöth (1995, p. 42) considera que o modelo semiótico de Saussure seria diádico, pois, para Saussure, o
significante seria uma ‘imagem acústica’, ou seja, mental e não um estímulo externo.
35

noção de designatum30, que não tem o significado de uma grandeza conceptual, mas sim
de uma ‘classe de referentes’.

O comportamento sígnico é demonstrado por Morris através de dois exemplos:


1. um cão devidamente condicionado corre para determinado local quando ouve uma
campainha.
2. um motorista modifica seu percurso para chegar em determinada cidade quando é
informado que a estrada principal está bloqueada.
Nos dois casos, tanto o toque da campainha quando a informação verbal, o que ocorre
são signos, ou seja, estímulos que desencadeiam determinadas reações.
A disposição para responder a determinado estímulo sígnico atualiza-se da seguinte
maneira:

perante a presença do ‘portador do signo’ o organismo não se apercebe da presença


de determinada coisa material – o referente – , mas sim de uma ‘classe de coisas’,
31
ou seja, o intérprete, em conseqüência dessa disposição (interpretante ), responde
32
como se o denotatum estivesse presente: o cão corre para o local onde
normalmente encontra o alimento após ouvir a campainha. Aquilo que o intérprete
se apercebe, condicionado pelo interpretante e devido à presença do portador do
signo, não é apenas um denotatum, mas sim um designatum, isto é, ‘a totalidade
dos objetos que têm a propriedade de que o intérprete se apercebe através da
presença do portador do signo (ibid., p. 52).

A teoria behaviorista do signo poderia ser representada pelo seguinte esquema:

Sistema: Interpretante

Significante Classes de [Classe]


referentes

Exemplar de Significante Referente [Elemento da


da Classe: Indivíduo]

Exemplo: Disposição condicionada

30
Por designatum, Morris entende a relação estabelecida em determinada classe de coisas (p. ex.: classe de
coisas ‘cavalo’).
31
Morris busca em Peirce o conceito de interpretante, porém o utiliza em um sentido comportamentalista. Para
Morris os interpretantes são as disposições gerais para determinado comportamento, ou seja, são disposições
orgânicas dos seres vivos para responder a um determinado signo-estímulo. Desta maneira, o conceito de
interpretante substitui a idéia da teoria nominalista, porém não como grandeza mental, mas como disposição
comportamental.
32
Para Morris, denotatum é o referente observável em todos os comportamentos sígnicos (p. ex.: a palavra
‘cavalo’).
36

para reconhecer os cavalos

Palavra Cavalo Classe de [Classe]


Referentes: Cavalo

Som da palavra Cavalo Cavalo Real [Elemento da


Classe: Indivíduo]

4.2. Semiótica da Música

4.2.1. Tripartição semiológica e análise musical

Nattiez (1975) utiliza a divisão do fato musical33 em três dimensões analíticas,


conforme proposta por Molino (1975). Esta dimensões são denominadas:
a) nível poiético (do grego: poietikós, que produz, que cria; poíesis, ação de fazer algo) –
este nível é concernente ao processo de composição, em que são considerados todos os
aspectos que colaboram para o entendimento do ato de criação, tais como sociologia e
história da música, biografia do compositor, aspectos antropológicos34, etc.;
b) nível neutro – é a própria obra musical (neutro porque não existe por si mesmo, mas
somente na medida em que há quem a realiza – compõe e/ou toca – e quem a percebe),
são considerados todos os aspectos que colaboram para o entendimento da obra
(independentemente de como foi concebida ou de como é percebida), tais como análise
morfológica, análise harmônica, etc.;
c) nível estésico (do grego: aisthetikós, sensível; aísthesis, ato de perceber) – este é o
processo de recepção da obra musical por parte dos ouvintes, em que são considerados os
aspectos que fazem parte da recepção da obra, tais como psicologia da audição, acústica
musical, estética musical, etc.

Este modelo tripartido é representado por Nattiez da seguinte forma:

nível poiético nível neutro nível estésico

Os princípios nos quais repousa o modelo tripartido são os seguintes (cf. NATTIEZ,
1990b, p. 54):

33
Por fato musical, os semioticistas entendem a totalidade da experiência musical, em todas as suas nuanças e
características, desde a primeira idéia construtiva do compositor até a audição por parte do público, passando por
aspectos socioculturais, econômicos, históricos, estéticos, interpretativos, éticos, antropológicos, psicológicos,
etc.
34
Os aspectos concernentes à interpretação e execução por parte de instrumentistas fazem parte dos processos
poiéticos da interpretação e execução musicais.
37

1) “Toda obra musical é o produto de uma atividade composicional criadora específica: o


processo poiético;
2) Esse processo poiético deixa um traço: onda sonora que o gravador pode registrar no caso
da música de tradição oral, ou partitura que permite que a obra seja reproduzida no caso
da música ocidental;
3) Esse traço, quando é executado, dá lugar a processos perceptivos (qualificados de nível
estésico ou estésica) por parte dos ouvintes. (Note-se o sentido da seta que se encontra à
direita no esquema). Na perspectiva semiológica de Molino não há transmissão para um
‘receptor’ das ‘intenções’ do compositor por intermediação de uma obra e de sua
execução; a percepção, aqui, é um processo ativo de reconstrução da mensagem”.

Vários fatores são importantes na diferenciação entre as teorias analíticas tradicionais


e a nova teoria de Molino/Nattiez. A primeira mudança de direção encontra-se na distinção
entre as pesquisas e estudos sobre a obra (nível neutro), os processos envolvidos na
composição ou execução (poiética) e os processos envolvidos na recepção (estésica) da
mesma. A teorias analíticas tradicionais postulavam que o processo analítico desvendaria o
processo compositivo de determinada obra35. Com a tripartição, Nattiez demonstra ser
impossível esta conexão direta entre aquilo que o ouvinte percebe e as intenções do
compositor.

Compreende-se, então, que, por um lado, as análises dos processo poiéticos e dos
processos estésicos, diversamente do que afirma a teoria clássica da comunicação,
não coincidem necessariamente e que, por outro lado, as estruturas que o
musicólogo ressalta na obra têm uma realidade distinta dessas duas famílias de
processos (ibid., p. 55).

Ao compreender a autonomia entre os três níveis (poiético, neutro e estésico), Nattiez


apresenta outro quadro, em que distingue seis diferentes famílias da análise musical:

35
As teorias analíticas tradicionais, mesmo aquelas desenvolvidas no século XX, como a análise schenkeriana
ou a análise motívico-temática, postulam que ao descobrir elementos existentes em determinada obra, o analista
está desvelando as intenções do compositor ao compô-la. Schenker, por exemplo, afirmava que a análise
segmentada em níveis estruturais, desde o plano imediato (Hintergrund) em direção ao plano de fundo
(Vordergurnd) e sua estrutura básica (Ursatz), desvendaria o plano de composição de uma obra por percorrer o
processo composicional desde o produto final (a obra) até sua estrutura básica originária (seu ponto de partida).
38

Processos Poiéticos Estruturas Imanentes da Obra Processos Estésicos

(I) x
Análise Imanente

(II) x x
Análise Poiética Indutiva

(III) x x
Análise Poiética Externa

(IV) x x
Análise Estésica Indutiva

(V) x x
Análise Estésica Externa

(VI) x = x = x
Comunicação entre os três níveis
Análise Holista

Nattiez compreende as seis situações analíticas da seguinte maneira (cf. NATTIEZ,


1990a, p. 140-143; 1990b, p. 55-57):

a) Análise Imanente – esta é uma família de análise que, trabalhando com uma metodologia
explícita ou implícita, aborda somente as configuração imanentes da obra, sem tomar
parte na pertinência poiética ou estésica das estruturas assim discernidas. Em outras
palavras, são as análises que somente consideram o texto musical e não os processos e
condições de criação, execução ou recepção. Nattiez exemplifica esta família com a
análise rítmica de Boulez da Sagração da Primavera (1966), a análise da música atonal
com base na Teoria dos Conjuntos de Allen Forte, ou as análises com base na informática.
b) Análise Poiética Indutiva – nesta família analítica procede a partir da observação da peça
(o traço, ou nível neutro) chegando a conclusões sobre o processo compositivo. Esta é,
segundo Nattiez, uma das situações mais freqüentemente encontradas na análise musical.
O analista observa diversos procedimentos recorrentes em uma obra, ou conjunto de
obras, e chega à conclusão: “é difícil de crer que o compositor não tenha pensado sobre
isto”. Esta família é exemplificada com a análise motívico-temática de Schoenberg e Réti.
c) Análise Poiética Externa – neste caso, a situação é o reverso da anterior, o musicólogo
toma documentos deixados pelo compositor – cartas, projetos, esboços – como ponto de
partida e analisa a obra com base nestas informações. O caso mais destacado deste tipo de
análise é a obra de Paul Mies (1929) em que são descobertas características estilísticas da
obra de Beethoven com base nos seus esboços.
d) Análise Estésica Indutiva – pratica-se uma análise estésica indutiva quando se procura
predizer como a obra será percebida pelo ouvinte com base nas estruturas musicais
observadas pela análise no nível neutro (partitura). Esta projeção da audição pode ser
tanto por meio da ampliação da própria experiência pessoal do analista (hipostasiada em
consciência universal), quanto tendo em conta as leis perceptivas gerais desenvolvidas por
39

pesquisas no campo da psicologia. Para Nattiez, este é o caso mais comum na análise
musical, em primeiro lugar porque diversas análises desejam se colocar como sendo
relevantes do ponto de vista da audição e, em segundo lugar, porque muitos analistas
colocam a si mesmos como uma espécie de consciência coletiva de ouvintes, chegando à
dedução “é isto o que se ouve”, porque é desta maneira que eles próprios ouvem.
e) Análise Estésica Externa – esta família procede de pesquisas experimentais em que
grupos de ouvintes são incentivados a dar respostas sobre aquilo que estão ouvindo. Desta
forma, a análise fundamenta-se não sobre as obras, mas sobre as respostas de sujeitos que
as percebem em situações experimentais. Assim, o processo analítico principia com as
informações coletadas dos ouvintes dirigindo-se, posteriormente, à compreensão de como
a obra (ou conjunto de obras) é percebida. Esta família é amplamente estudada nas
pesquisas em psicologia da música, tendo ganhado considerável impulso nos últimos anos
com as pesquisas cognitivas.
f) Análise Holista – esta é a situação analítica mais complexa, na qual a análise imanente (do
nível neutro) é tomada como sendo igualmente relevante tanto para o entendimento dos
processos poiéticos quanto para os processos estésicos. Em outras palavras, o analista
considera que as observações realizadas no campo da análise imanente correspondem
tanto aos processos de composição e execução, quanto aos processos de recepção da obra
(em todas as peculiaridades possíveis). A análise schenkeriana seria o exemplo mais
conhecido desta família analítica, pois Schenker acreditava que o seu procedimento
analítico iria revelar, por um lado, os passos da composição e, por outro lado, as estruturas
que deveriam ser explicitadas pelo intérprete, pois, assim, seriam percebidas pelo ouvinte.

Com esta classificação, Nattiez pretende apresentar um ponto de partida para


investigações posteriores sobre as diferentes situações envolvidas na análise musical,
possibilitando delinear limites claros para cada campo analítico.
Além desta classificação com base na tripartição do fato musical em três situações
(processos de produção, obra musical e processos de recepção), Nattiez apresenta uma
classificação dos campos analíticos que se dedicam à análise do nível neutro (análise
imanente) em dois tipos distintos, conforme a linguagem utilizada na ‘reflexão analítica’:
1. Análises Não-formalizadas – estas são as análises que utilizam a linguagem verbal como
metalinguagem para discursar sobre a música. Há três subtipos de análise não-
formalizada:
a) Análise Impressionista: as análises impressionistas (ou ‘impressionísticas’) explicam o
conteúdo musical de determinada obra em um estilo mais ou menos literário, partindo de
uma seleção inicial de elementos tomados como sendo característicos. Estas análises
apenas descrevem as ‘impressões’ causadas pela música no próprio analista, ou seja, não
possuem qualquer valor científico, nenhum acréscimo ao conhecimento sobre música. A
seguinte análise, do Prélude à la Près-midi d’un Faune de Debussy, pertence a esta
categoria:

A alternância entre as divisões binárias e ternárias das colcheias, as fintas


maliciosas dadas pelas três pausas, suavizam tanto a frase, a tornam tão fluida,
que ela escapa a qualquer rigor aritmético. A melodia flutua entre o céu e a
terra como um canto gregoriano; escorrega sobre os sinais tradicionais de
divisão; desliza tão furtivamente entre várias tonalidades que se liberta sem
esforço de suas amarras, e se pode esperar a primeira vez em que aparece um
fundamento harmônico antes que a melodia chegue à graciosa despedida de
sua atonalidade casual (VUILLERMOZ apud NATTIEZ, 1990a, p. 161).
40

b) Paráfrase: a paráfrase consiste em somente ‘re-contar’ um texto musical em palavras, sem


adicionar nada a este texto. Estas são aquelas análises puramente descritivas em que o
autor limita-se a enumerar os eventos da obra, um após o outro. A seguinte análise da
Bourrée da Suite III de J. S. Bach pertence a este tipo de análise:

Uma anacruse, uma frase inicial em Ré maior. A figura marcada com (a) é
imediatamente repetida, descendo uma terça e sendo empregada no decorrer
de toda a peça. Esta frase é imediatamente elidida com seu conseqüente, que
modula de Ré maior para Lá maior. A figura (a) é utilizada novamente duas
vezes, em um registro mais agudo em cada vez; esta seção é repetida
(WARBURTON apud NATTIEZ, 1990a, p. 162).

c) Leitura Hermenêutica: esta é a análise verbal mais rica e interessante, pois não apenas
apresenta impressões pessoais ou descreve um texto musical, mas também acrescenta ao
texto um grau de profundidade hermenêutica e fenomenológica que, “em mãos de um
escritor talentoso, pode resultar em genuínas obras primas interpretativas” (NATTIEZ,
1990a, p. 162). As leituras hermenêuticas são aquelas que acrescentam algo de significativo
ao entendimento da estrutura musical, seguindo o caminho da análise estilística,
estrutural, fenomenológica ou especulativa.

A transição do primeiro para o segundo tema é sempre uma peça difícil da arte
criar estruturas musicais; e nas raras vezes em que Schubert alcança isto com
suavidade, o esforço o conduz às raias da imbecilidade (como ocorre no
movimento lento do Quarteto em Lá menor, que em outros aspectos é genial).
Assim, em suas obras mais inspiradas, a transição é alcançada por um abrupto
coup de théatre; e de todos estes coups, sem dúvida o mais rude é aquele que
ocorre na Sinfonia Inacabada. Muito bem, então, há, aqui, algo de novo na
história da sinfonia, não mais novo, não mais simples do que as coisas novas
que foram reveladas, uma a uma, na Nona Sinfonia de Beethoven. Não
importa sua origem histórica, este fato tem seus méritos. Este não seria um dos
momentos mais impressionantes? (TOVEY apud NATTIEZ, 1990a, p. 162)

2. Análises Formalizadas – este não é o caso de ‘falar sobre música’, mas de ‘simular’ a
música com exatidão suficiente de forma que seria possível (em princípio) utilizar um
modelo para reproduzir as configurações naturais do objeto original. Para Nattiez, as
modelizações (conforme Nattiez denomina estas analises) têm uma vantagem sobre as
análises não-formalizadas (descrições verbais).

Dada qualquer variável específica, as modelizações, por natureza, produzem uma


varredura completa de um conjunto inteiro de obras vis à vis com esta variável. As
modelizações não podem cobrir a totalidade de qualquer conjunto de obras (visto
que o número de variáveis e de suas possíveis combinações é infinito), porém elas,
pelo menos, evitam uma séria lacuna epistemológica característica da descrição
verbal, (...) que [pode] ser chamada de ‘o efeito do trabalho’, ou seja, a análise de
um objeto por meio da seleção descontínua de poucos elementos considerados
representativos (NATTIEZ, 1990a, p. 163).

Há duas grandes famílias de modelização:


a) Modelos Globais – por ‘modelos globais’ Nattiez compreende descrições que oferecem
uma imagem de todo o conjunto de obras estudado, listando características, classificando
fenômenos, ou ambos simultaneamente, com a intenção de chegar a avaliações
estatísticas. São chamados de ‘globais’ porque não reconstituem a estrutura musical na
41

ordem de sua sucessão real no tempo (como seqüência de eventos musicais). Estes
modelos distinguem-se em:
• análise de traços característicos: é a análise realizada mais freqüentemente na
etnomusicologia, na qual o pesquisador identifica a presença ou ausência de uma variável
particular e realiza uma imagem coletiva da melodia, do gênero ou do estilo estudado
através de quadros e tabelas.
• análise classificatória: esta análise distingue os fenômenos observados em classes com
base em critérios retirados do próprio conjunto de obras estudado.
b) Modelos Lineares – estes modelos descrevem um grupo de obras através de um sistema de
regras que abarca não somente a organização hierárquica da estrutura musical, mas
também a distribuição, o ambiente e o contexto em que ocorrem os eventos.

Em sua classificação, Nattiez reconhece diferenças qualitativas entre os diferentes tipos e


subtipos de análise. As análises verbais são consideradas como sendo menos precisas do que
as análises formalizadas. Entre as análises verbais, somente as leituras hermenêuticas são
consideradas como tendo valor musicológico; entre as análises formalizadas, os modelos
lineares têm mais ‘valor cognitivo’ do que os modelos globalizados porque não somente
refletem os níveis hierárquicos de estruturas musicais, mas reproduzem sua sucessão
temporal. Além de apresentar esta classificação, Nattiez reconhece a existência de ‘modelos
intermediários’, em que análises verbais são enriquecidas com gráficos e tabelas elucidativas
ou nas quais modelizações são explicadas por meio da linguagem verbal. Entre estes modelos
intermediários estariam as análises de Schenker e Meyer, entre outros.

O processo analítico em seu todo é sistematizado por Nattiez com o seguinte esquema:

Princípios analíticos

Metalinguagem construção do discurso


do analista

metodologia

objeto de
análise
variáveis selecionadas

4.2.2. A análise distributiva de J.-J. Nattiez

Após apresentar a concepção de Nattiez sobre a situação geral da análise musical,


estudar-se-á os seus próprios princípios analíticos, que se referem especialmente à análise
imanente (do nível neutro). Este processo analítico é freqüentemente chamado de análise
distributiva. Esta análise é realizada em vários estágios.
O primeiro estágio da análise distributiva é a segmentação, que consiste em re-
escrever a música alinhando as recorrências motívicas, em repetições literais ou variadas, uma
abaixo da outra, classificando-as por meio de letras ou letras e números (ex.: A1, A2, B1, B2).
42

A principal diferença entre a segmentação motívica semiótica e a análise motívica de Réti


consiste em que, na segmentação, se mantém o aspecto linear da música, isto é, sua seqüência
temporal (sua distribuição no tempo). A leitura da segmentação no sentido convencional, da
esquerda para a direita e de cima para baixo, apresenta a distribuição dos eventos musicais
conforme ocorrem em sua seqüência temporal; a leitura no sentido vertical, de cima para
baixo, apresenta as recorrências do mesmo motivo e suas variações; a leitura horizontal, da
esquerda para a direita, evidencia os diferentes motivos que ocorrem na peça analisada. O
mesmo processo de segmentação e explicitação pode ser realizado para a análise de qualquer
parâmetro compositivo, sendo especialmente comum a segmentação rítmica.
Para Nattiez, a segmentação apresenta a vantagem de não substituir a escrita musical
por outro código, como ocorre com as análises não-formalizadas, que substituem a linguagem
musical pela linguagem verbal. Além disto, na segmentação, as recorrências motívicas são
explicitadas de forma imediata ao leitor, o que não acontece na partitura convencional. Por
esta razão, a apresentação de um quadro de segmentação é chamado por Nattiez de
explicitação.
Com a segmentação é possível evidenciar os tópicos paradigmáticos existentes na
obra musical analisada. Em lingüística, paradigmas são os modelos ou padrões a partir dos
quais qualquer linguagem é articulada. Os paradigmas básicos da língua falada são os
fonemas, que se articulam em unidades maiores, as palavras, que formam um nível
paradigmático superior. Em música, o nível paradigmático básico é representado pelo
material sonoro utilizado em determinada peça (as notas da escala de Dó maior é o paradigma
básico de todas as obras escritas em Dó maior). Como em cada obra são criadas diferentes
relações com o mesmo material sonoro (a coleção de notas da escala de Dó maior, por
exemplo), o paradigma motívico básico específico de cada obra escrita com o mesmo meio
sonoro é distinto. Desta forma, os paradigmas motívicos da canção Ich Grole Nicht de
Schumann, em Dó maior, são diferentes da Sonata KV 545 em Dó Maior de Mozart. Os
tópicos paradigmáticos de cada uma destas obras deve ser reconhecido e evidenciado pelo
analista em um mapa de segmentação36. Assim, a análise paradigmática consiste,
inicialmente, em reconhecer e destacar os paradigmas principais característicos de cada obra
musical, ou seja, aquilo que a diferencia de todas as outras. No caso da canção Ich Grole
Nicht de Schumann, o paradigma melódico básico seria o movimento diatônico descendente
do 3º ao 1º grau da escala e um salto posterior em direção ao 4º grau, gerando o movimento
melódico: 3º-↓2º- ↓1º-↑4º.

Ex. 1: R. Schumann, canção Ich grole nicht

36
Também chamado de quadro de segmentação.
43

Na Sonata KV 545 de Mozart, o paradigma melódico básico seria o arpejo ascendente


sobre a tríade de tônica com um salto descendente em direção à sensível, resolvendo na
tônica, gerando o movimento: 1º-↑3º-↑5º-↓7º-↑1º-↑2º-↓1º.

Ex. 2: W. A. Mozart, Sonata KV 545, I. Allegro

O passo seguinte consiste em realizar o quadro de segmentação, demonstrando como


se desenvolvem e relacionam os paradigmas básicos de determinada peça de música. Abaixo,
está reproduzida a análise paradigmática de Elisabeth Morin (in: COOK, 1987, p. 153-154) da
primeira variação de William Byrd sobre a canção John come kiss me now:

Ex. 3: William Byrd, Variações sobre a canção John come kiss me now, Var. 1
44

Ex. 4: E. Morin, análise paradigmática melódica da Var. I de Byrd sobre John come kiss me now
45

Ex. 5: E. Morin, análise paradigmática rítmica da Var. I de Byrd sobre John come kiss me now

Após realizar a análise paradigmática, a tarefa da análise semiótica, conforme


preconizada por Nattiez, consiste na realização da análise sintagmática. Na terminologia de
Saussure, sintagma é a combinação de unidades lingüísticas básicas (paradigmas) em
unidades lingüísticas superiores. Na linguagem verbal, consiste na combinação de palavras
(unidades paradigmáticas) formando sentenças ou frases. As unidades paradigmáticas
(palavras) formam os sintagmas (frases) através de relações sintagmáticas. Na frase
‘Menuhin é um grande músico’, os paradigmas são: o substantivo próprio ‘Menuhin’, o verbo
‘ser’, o artigo ‘um’, o adjetivo ‘grande’ e o substantivo comum ‘músico’. O sentido da frase
somente é possível porque cada um destes paradigmas (palavras) apresenta uma relação com
os demais. Estas relações ocorrem com base em vários princípios:
1. Linearidade – a ordem em que os eventos ocorrem. O sentido da frase citada
anteriormente seria diferente se a ordem fosse: ‘Um grande músico é Menuhin’, ou
‘Menunhin é um músico grande’; da mesma forma, a frase não faria sentido se fosse dita
da seguinte maneira: ‘Músico é um Menuhin grande’ – isto significa que as relações
sintagmáticas significativas são limitadas.

Dizer a maneira como diferentes elementos se combinam é dizer que lugares


respectivos eles podem tomar no encadeamento linear do discurso (...). Por
conseguinte, descrever um sintagma é descrever quais unidades o constituem, em
que ordem de sucessão, e, se elas não são contíguas, a que distância se encontram
umas das outras (TODOROV, 1972, p. 108).

2. Função – somente é possível reconhecer o sentido da frase porque cada palavra


(paradigma) desempenha uma função específica, como: sujeito (Menuhin), verbo (ser) e
predicado (um grande músico).
46

3. Tipo – pertencem ao mesmo tipo sintagmático aquelas unidades que possuem a mesma
relação entre o sentido da seqüência total e o de seus componentes, como, por exemplo, o
prefixo ‘des’ pertence ao mesmo tipo sintagmático quando acrescentado ao verbo ‘fazer’
ou ao verbo ‘colar’, pois as palavras ‘desfazer’ e ‘descolar’ pertencem à mesma categoria;
porém o mesmo prefixo combinado à palavra ‘continuo’, gerando a expressão
‘descontínuo’ pertence a outro tipo sintagmático, pois ‘contínuo’ não é um verbo, mas um
adjetivo. O mesmo serve para as sentenças e frases: as sentenças ‘Menuhin é um grande
músico’ e ‘Pollini é um excelente intérprete’ pertencem ao mesmo tipo sintagmático, pois
são formadas pela combinação sucessiva de: substantivo próprio + verbo + artigo +
adjetivo + substantivo comum.
4. Sentido – as duas frases citadas anteriormente pertencem à mesma categoria de sentido,
pois ambas apresentam juízo de valor sobre determinado músico. Já a frase ‘Estrelas
configuram a beleza do céu’ apresenta outro sentido, mesmo pertencendo ao mesmo tipo
sintagmático (substantivo próprio + verbo + artigo + adjetivo + substantivo comum).
5. Nível – o nível sintagmático corresponde à camada estrutural à qual determinada unidade
pertence: as palavras que formam uma sentença pertencem ao mesmo nível sintagmático;
as sentenças que formam cada frase pertencem ao mesmo nível de estrutura; frases que
formam um parágrafo pertencem ao mesmo nível sintagmático; os parágrafos que formam
um capítulo de um livro pertencem ao mesmo nível de estrutura; os capítulos que formam
um livro pertencem ao mesmo nível sintagmático. Assim, “para descrever um sintagma
particular, dever-se-á dizer não só quais unidades o constituem, mas dentro de qual
unidade se encontra” (ibid., p. 109).

Na semiótica musical, a análise sintagmática corresponde ao estudo das relações


temporais que ocorrem na música. Assim, “a distribuição das unidades paradigmáticas no
tempo é analisada de modo a descobrir quais são as regras que têm prioridade sobre esta
distribuição” (COOK, 1987, p. 165). Com a análise sintagmática, a análise semiótica do nível
neutro estaria completa. Neste estágio deverão ser compreendidas as relações entre as
unidades sintagmáticas quanto à linearidade (a distribuição das unidades no tempo), às
funções exercidas por cada unidade paradigmática, aos tipos de unidades paradigmáticas em
diversos níveis sintagmáticos e suas relações, ao sentido específico de cada unidade em cada
momento da peça e aos níveis estruturais em que cada unidade ocorre.
No último estágio da análise sintagmática, o analista deve abstrair os materiais
destacados de seus contextos específicos e apresentá-los como fórmula(s) simbólica(s), com o
intuito de descobrir quais as leis generativas gerais que podem ser aplicadas para o
entendimento de cada estágio da estrutura compositiva. Para chegar a este estágio, o analista
deve realizar uma lista fisionômica. Esta lista deve apresentar uma catalogação de deferentes
características encontradas na obra analisada, do ponto de vista de cada parâmetro (melódico,
rítmico, etc.).
Abaixo, está a lista fisionômica de Morin (in: COOK, 1987, p. 173) retirada de sua análise
do conjunto completo das variações de Byrd sobre a canção John come kiss me now:
47

Ex. 6: E. Morin, lista fisionômica das variações de Byrd sobre John come kiss me now
48

Abaixo, uma síntese da análise da peça para flauta solo Syrinx de Debussy, por Nattiez
(in: COOK, 1987, p. 161-164; 180-171; 176).

Ex. 7: J-J. Nattiez, primeira análise paradigmática de Syrinx de Debussy


49

Ex. 8: J-J. Nattiez, segunda análise paradigmática de Syrinx de Debussy


50

Ex. 9: J-J. Nattiez, lista fisionômica de Syrinx de Debussy


51

4.2.3. A análise inter-semiótica de E. Tarasti

Enquanto Nattiez está interessado em resolver os problemas de análise do fato musical


em si mesmo com a tripartição deste fato em três níveis – poiético, neutro e estésico –
dedicando-se especialmente sobre o nível neutro (análise imanente), Tarasti (1996) busca
estabelecer relações entre o campo musical e outros campos semióticos, relacionando
especialmente a música com as artes visuais e a literatura. Desta forma, Tarasti realiza a
análise musical como uma espécie de metáfora narrativa, tendo

como base teórica principal a Semiótica Narrativa de Greimas e a tipologia dos


signos de Peirce, não se tratando, porém, de uma tentativa de conciliação entre as
duas linhas teóricas, mas apenas um uso paralelo. Uma parte de sua tentativa vai na
direção de achar analogias entre o funcionamento musical e o narrativo. Desse
modo, Tarasti fala de actantes, de sujeito, objeto, modalidades e isotopia aplicados
à música (MITIDIERI, 1997, p. 119).

A narratividade em música

Conforme afirma Nöth (1996, p.165), a Semântica Estrutural (1966) de Greimas foi
considerada pela Escola de Paris como a primeira elaboração de uma semiótica lingüística. A
teoria de Greimas não se coloca como uma ‘teoria sobre o signo’, mas pretende ser uma
‘teoria sobre a significação’, que “somente se torna operacional quando se situa tanto acima
quanto abaixo do signo” (GREIMAS apud NÖTH, 1996, p. 165). Nas pesquisas que se
desenvolvem ‘abaixo do signo’, ou ‘nível inferior’, realiza-se a divisão do signo em seus
componentes semânticos que são ‘menos do que signos’. No ‘nível superior’, ou ‘acima do
signo’, desenvolvem-se pesquisas relativas às unidades textuais que produzem estruturas ou
entidades semânticas que são ‘mais do que signos’. Com este projeto, busca-se explicar o
funcionamento estrutural de qualquer sistema lingüístico ou semiótico37. Para isto, são
distintas três áreas de análise semiótica:
1. estruturas sêmio-narrativas – são aquelas que ocorrem pela combinação de estruturas
semânticas e sintáticas;
2. estruturas discursivas – têm por função trazer as estruturas superficiais ao discurso, ou
seja, são as estruturas que localizam os atores narrativos no tempo e no espaço;
3. estruturas textuais – são estruturas da substância de expressão que ocorrem, no texto
falado, pela seqüência linear (justaposição) fonética e, no texto escrito, pelo espaço visual
do campo de escritura.

Uma importante contribuição de Greimas foi a elaboração do ‘quadrado semiótico’,


que amplia os conceitos lógicos tradicionais de contraditório e contrário para um sistema
amplo de significados que busca dar conta de todas as possibilidades lógicas. Este ‘quadrado
semiótico’ é o seguinte:

Asserção Negação
37
Note-se aqui a semelhança com a análise paradigmática – unidades paradigmáticas básicas (como a coleção de
notas de determinada obra): menos que signos, segmentação da obra em unidades paradigmáticas específicas
(como motivos): signos; e com a análise sintagmática – inter-relações de unidades paradigmáticas (como a
organização frásica de determinada obra): mais que signos.
52

(VIDA) (MORTE)
contrariedade
S1 S2

c e
o d
m a
p d
l i
e r
m contra- a
e t
n n
t e
a dição m
r e
i l
d p
a m
d o
e c
__ __
S2 S1
Não-asserção Não-negação
(NÃO-MORTE) (NÃO-VIDA)

No quadro acima, S1 e S2 são semas, ou seja, unidades semânticas mínimas de


estrutura abstrata e profunda que têm a função de diferenciar significações. Quaisquer dois
semas agrupados em alguma categoria formam uma hierarquia sêmica, sendo que “o universo
dos semas representa a totalidade de categorias conceituais da mente humana” (NÖTH, 1996,
p. 172). A combinação de semas em qualquer contexto de significação constituem lexemas,
que são unidades da estrutura superficial do léxico que ocorrem no nível da manifestação, não
chegando a ser unidades semânticas em si mesmos. As significações que ocorrem como
combinação de semas como unidades semânticas são os sememas38. Há dois tipos de semas,
na constituição de um semema:
1. semas nucleares – que caracterizam um semema na sua particularidade específica,
independentemente de qualquer contexto;
2. semas contextuais – que caracterizam-se por ser compartilhados em um contexto
sintagmático, ou seja, são aqueles que os sememas possuem em comum com outros
elementos do sintagma.

Na concepção lógica de Greimas, há quatro tipos de relações lógicas (por isto, a


representação por meio do quadrado):

38
De modo simplificado, pode-se dizer que o sema seria qualquer relação fonética de determinada língua. Sendo
assim, a combinação dos semas (fonemas) 'f' e 'a' gera o semema (monema) 'fa'; a combinação do semema ‘fa’
com o semema ‘do’ forma o lexema (palavra) ‘fado’, que não tem um sentido determinado antes de sua
atualização em um discurso específico como um semema (frase). Por exemplo, na frase ‘todo o homem carrega
seu fado’, o lexema ‘fado’ adquire o sentido de ‘destino’, tornando-se assim, um semema, pois passa a ser uma
unidade semântica. A atualização do lexema ‘fado’ na frase ‘o fado é a típica canção portuguesa’ constitui-se
em outro semema, com sentido de ‘canção popular portuguesa, melancólica e fatalista, usualmente com
acompanhamento de guitarra’ (DICIONÁRIO DE MÚSICA ZAHAR, 1985, p. 120).
53

1. Contradição: é a relação existente entre dois termos de uma relação binária, como
asserção/negação. Esta relação é descrita como a oposição entre a presença e a ausência
de um sema. Assim um sema S1 (‘vida’) é oposto ao seu não-S1 (‘não-vida’) no qual a
vida está ausente.
2. Contrariedade: é a relação entre dois semas quando um deles implica o contrário do
outro. Neste caso, o contrário de S1 (‘vida’) é S2 (‘morte’). Na relação de contrariedade é
necessário que um termo exista para pressupor o outro, ou seja, sem o conceito de ‘vida’
não pode haver o conceito de ‘morte’.
3. Implicação (ou Complementaridade): que ocorre entre os termos S1 (‘vida’) e não-S2
(‘não-morte’), ou seja, ‘vida’ implica ‘não-morte’.
4. Implicação (ou Complementaridade): a mesma relação de complementaridade ocorre
entre os termos S2 (‘morte’) e não-S1 (‘não-vida’), ou seja, ‘morte’ implica ‘não-vida’.

Quanto aos conceitos da Semiótica Narrativa de Greimas utilizados por Tarasti, os


mais significativos são os seguintes:

I. Aspectualização do Discurso39

As aspectualizações descrevem elementos de continuidade e descontinuidade,


estabilidade e instabilidade na representação narrativa de eventos. Esta é uma dimensão
dinâmica na estrutura narrativa de Greimas, que se distingue em:
1. Aspectualização espacial – quanto às considerações sobre o ‘espaço musical’, Tarasti
distingue:
a) Espacialidade real – que é a estrutura de alturas da música, que pode ser interpretada em
dois sentidos:
• Espacialidade interna: que “é realizada através da categoria centro/periferia, ou seja, por
tendências centrípetas ou centrífugas em um texto musical. Algum lugar em um universo
ou espaço musical pode ser escolhido como um centro, com relação ao qual outros lugares
podem ser mais ou menos periféricos” (TARASTI, 1994, p. 79). Tarasti utiliza o conceito
de Greimas de débrayage/embrayage: o movimento a partir de um centro (débrayage –
francês, debreagem) e o movimento de retorno a um centro (embrayage – francês,
embreagem)40. O exemplo mais característico de espaço real interno seriam as relações
harmônicas de afastamento e retorno à tônica na música tonal.
• Espacialidade externa: “refere-se a diferentes registros em música; todo o material
acústico musical pode ser medido com relação ao registro que ocupa. As espacializações
visuais da música têm geralmente por base somente este tipo de espaço musical externo”
(ibid., p. 79), como, por exemplo, os diagramas realizados por computadores e
osciloscópios que descrevem o curso de linhas melódicas em gráficos. Espacialidade
externa também pode ser entendida como a posição ocupada pelos intérpretes em uma
sala de concerto, como a disposição dos músicos em uma obra policoral da Escola de
Veneza do século XVII para a Catedral de São Marcos.
O espaço musical (interno ou externo) pode ser articulado conforme as seguintes
dimensões: horizontal (antes/depois), vertical (acima/abaixo), profundidade (figura/fundo) e

39
Aspectualização é, na gramática verbal, a categoria que indica as relações entre processo e tempo.
40
Tarasti define debreagem espacial como o movimento para fora de alguma norma de locação de algum texto –
seu ‘aqui’; debreagem temporal é definida como um acontecimento no passado ou no futuro em relação a um
‘agora’ textual; debreagem atorial ocorre quando se focaliza a atenção para fora de um ‘eu’ central, ao dirigir a
atenção para outro atores. Embreagem seria o movimento oposto ao de debreagem, ou seja, o retorno a um
‘aqui’, a um ‘agora’ ou a um ‘eu’ central de um texto.
54

centro/periferia “no sentido de que alguma coisa em música pode ser envolvida por outra
coisa” (ibid., p. 79), como ocorre quando um tema (actante musical) impulsiona a si mesmo
para frente, enquanto o restante da textura o ‘envolve’ ou ‘circunda’.
Para Tarasti, o espaço musical relaciona-se sempre com o movimento, ou seja, com
sua qualidade cinética, que é classificada em:
• Espaços pontuais: posições de sons e alturas separadas entre si, isto é, a coleção de alturas
(o meio sonoro) pelo qual é constituída uma peça musical e as relações existentes entre
estas alturas (intervalos). A primeira tarefa do analista é realizar um quadro topológico
destes pontos, porém deve também determinar quais os pontos que funcionam como
centro(s) em relação ao(s) qual(is) qualquer movimento pode ser considerado como sendo
embreagem ou debreagem. Há uma hierarquia de pontos no espaço musical, de tal forma
que eles têm diferentes valores, aos quais Tarasti denomina modalidades, tomando o
termo da Semântica Estrutural de Greimas.

Os pontos, no espaço musical, recebem diferentes valores modais denotando o


quanto são desejados, esperados, alcançáveis, possíveis, necessários, facultativos,
fortuitos, etc. Mesmo peças totalmente seriais (...) são modalizadas na mente do
ouvinte de acordo com alguma estrutura modal implícita do próprio texto musical.
Assim, a primeira tarefa da análise espacial da música é realizar uma análise
topológica aproximada de quais são os ‘pontos’ empregados na peça; a tarefa
seguinte é esclarecer como estes pontos são modalizados [como se relacionam]
(ibid., p. 84).

• Transições de um espaço musical para outro: a rota percorrida na mudança de um espaço


musical a outro é chamada de vetor.

Na música tonal, a transição de um ponto A (dominante) para um ponto B (tônica)


pode ser modalizado de diversas formas, isto é, provido com um intenso
direcionamento para algo (um ‘querer’), conforme ocorre na irrupção do tema
principal no movimento lento da Quinta Sinfonia de Tchaikovsky (ibid., p. 85).

• Campos sonoros completos: acrescentando algo aos pontos e às transições entre estes
pontos, Tarasti reconhece que o espaço musical pode consistir de campos completos, “que
não são percebidos como conglomerados de pontos tonais salientes mas como massas
sonoras ou tímbricas mais ou menos articuladas” (ibid., p. 85). Este conceito não é
aplicado somente às obras que lidam com o conceito de ‘massa sonora’, como as obras de
Penderecki ou Ligeti, mas também a peças tonais, como ocorre no Scherzo em Dó# menor
de Chopin, em que os campos sonoros ou as superfícies sonoras não são entidades neutras,
tornando-se modalizadas quando ocorre algum movimento em direção, ou a partir, de um
ponto ou centro fixo do espaço musical.

b) Espacialidade fictícia (metafórica) – diz respeito às relações externas à própria estrutura


musical. Greimas define o ponto em que a narração inicia como um espaço-zero,
chamado de espaço tópico, que é envolvido por outros espaços, situados antes ou depois
dele, denominados de espaços heterotópicos. Tarasti acrescenta o conceito de espaço
utópico, em que a ação transforma o ‘ser’:

este é um espaço para atuações (nos mitos há lugares que são geralmente
subterrâneos ou celestiais). Em adição, há um espaço paratópico, no qual as
competências são adquiridas. Em música, o espaço paratópico é o lugar onde a
substância musical revela sua própria competência (‘saber’) e atuação (‘estar apto a
55

fazer’). Por exemplo, a exposição na forma sonata é tipicamente um espaço


utópico, em que os temas são introduzidos; a seção de desenvolvimento é o espaço
onde as atuações temáticas ocorrem. Muito freqüentemente este espaço paratópico
é, ao mesmo tempo, um espaço heterotópico: as atuações existem em ‘outro lugar’,
ou seja, em tonalidades diferentes daquelas do espaço utópico (ibid., p. 97).

2. Aspectualização temporal – são indicações cronológicas de determinada qualidade


ou ação, interiores ao predicado, e que comportam “a idéia de um certo modo de
manifestação no tempo, desta ação ou da qualidade, a indicação da maneira como elas
preenchem o período [de tempo] a que a enunciação diz respeito” (TODOROV, 1972, p.
278). Os aspectos temporais distinguem-se, entre outros, em: incoativos (aspectos que isolam
o início de um processo), durativos (aspectos de continuidade de um processo), perfectivos
(aspectos que indicam que a ação, ou a qualidade, aparece em um certo momento do período
de tempo que é objeto da enunciação), imperfectivos (indica que a ação, ou a qualidade, se
desenvolve durante o período de tempo que é objeto da enunciação, preenchendo-o) e
terminativos (aspectos que isolam o final de um processo).
Para Tarasti, o ‘tempo musical’ não pode ser reduzido a simples esquemas rítmicos ou
métricos, pois o tempo é uma categoria mais profunda, da qual os fenômenos rítmicos são
somente prolongações de superfície. Com base no quadrado semiótico de Greimas e nas
categorias de irreversibilidade e imprevisibilidade do tempo, Tarasti apresenta o seguinte
quadro, representando diferentes possibilidades de ‘universos musicais’:

1. 3.
irreversível reversível
imprevisível previsível

3. 4.
irreversível reversível
previsível imprevisível

O primeiro seria um universo de ‘primeiras vezes’, no qual nada realmente


retorna e nada pode ser previsto, representaria uma consciência momento a
momento, uma negação de toda a continuidade. Visto que a predição do futuro
recai, de alguma forma, sobre a memória, uma completa perda da memória
dominaria este universo musical. Nenhum evento poderia ser retido na mente e,
assim, o futuro seria experimentado como uma contínua surpresa. Esta não seria
uma apoteose da singularidade exatamente como a estética de certas escolas da
música de vanguarda?
No Universo 2 pode-se prever aquilo que segue, porém no momento em que
acontece, já é esquecido. É difícil de imaginar tal universo musical, [que], de fato,
representa uma certa atuação de determinado sujeito, seja compositor ou intérprete:
um talento sintagmático que cria ou executa sem obedecer a limites da forma
global, esquecendo, por exemplo, ao escrever ou tocar uma sonata, se está no
desenvolvimento ou na recapitulação.
O Universo 3 apresenta um caso no qual o receptor da entonação a percebe
pela primeira vez (por exemplo, a primeira audição de uma sinfonia). Cada
momento, cada evento no decorrer da música é novo e único, permanecendo na
memória, enquanto a forma global é conceptualizada somente após os primeiros
56

compassos terem sido tocados. No Universo 4 se é orientado tanto para o passado


quanto para o futuro. Cada evento pode ser antecipado e pode, também, chamar
outro anterior. O retorno de um tema é, no mínimo, similar à sua primeira
ocorrência. Ao mesmo tempo, um certo frescor de invenção é mantido devido ao
‘tornar-se’ contínuo (TARASTI, 1994. p. 62).

3. Aspectualização actancial – descreve o modo de distanciamento do enunciador


narrativo do sujeito narrativo. Na estrutura narrativa de um conto, por exemplo, seriam as
relações existentes entre o narrador e cada um dos personagens (em especial, o personagem
principal). Nas relações entre o narrador e o personagem, isto é, entre a narrativa e a trama,
Greimas reconhece aspectualizações durativas (representações da continuidade do evento),
incoativas (focalizando o começo de um processo) ou terminativas (focalizando o fim de um
processo).
As categorias actanciais que Tarasti utiliza na análise atorial são: sujeito, objeto,
destinador, destinatário, adjuvante e opositor.
Para Greimas, o modelo básico da estrutura actancial é o seguinte:

um sujeito narrativo (...) deseja e procura um objeto (...). O sujeito e o objeto fazem
parte de duas redes semânticas mais desenvolvidas: o sujeito, por um lado, é
assistido por um adjuvante mas, do outro lado, tem de lutar contra um opositor (...).
Ambos possuem o poder de auxiliar ou prejudicar (...) [o sujeito]. O objeto se
encontra entre um destinador que dá o objeto (...) e um destinatário que o recebe
(...). O destinador e o destinatário possuem um ‘saber’ situacional e representam
um eixo de comunicação. Entre o destinador e o destinatário, Greimas vê uma
relação de implicação, entre o sujeito e o objeto, uma relação de projeção e entre
adjuvante e opositor, uma relação de contradição (NÖTH, 1996, p. 178-179).

Para Tarasti, os actantes

são unidades sintáticas, na forma de oposições binárias que têm precedência sobre
o investimento semântico. Desenvolvidos temporalmente como pares actanciais, os
actantes transformam-se em uma ‘história’. O papéis (ou funções) actanciais são
definidos em termos de seu conteúdo e função modais na narrativa. Vários atores
podem incorporar um único actante, ou um ator pode preencher uma variedade de
funções actanciais. Atores emergem através de semas de individualização e, assim,
tornam-se pontos de convergência entre a sintática e a semântica (TARASTI, 1994,
p. 303).

O objeto
é a metade do par actancial sujeito/objeto. Muitas narrativas centram-se em
relações sujeito/objeto básicas nas quais um sujeito é separado do objeto
(disjunção) e luta por unir-se a ele (conjunção) em uma busca pelo objeto (ibid., p.
304).

Para distinguir entre sujeito e objeto em uma peça de música é necessário reconhecer o

‘ser’ da peça, ou seja, seu ‘estado de consonância’: neste estado de consonância, sujeito e

objeto formam uma entidade sincrética, ou seja, na modalidade ‘ser’ não percebemos a

música como um estágio em que o sujeito está se movimentando para alcançar o objeto. Na
57

categoria ‘fazer’ ocorre o inverso: sentimos um estado de ‘dissonância’ no qual falta algo, em

que a energia nos deixa insatisfeitos. O que falta pode ser tomado como uma disjunção, uma

procura pelo objeto; quando este objeto é alcançado ocorre, finalmente a conjunção (cf.

TARASTI, 1994, p. 104).

Um bom exemplo desta atorialização seria a relação entre primeiro e segundo tema em

uma peça na forma sonata, em que as modulações e contraposições dos temas no

desenvolvimento atuam como disjunção e como luta pela conjunção, enquanto que a

reexposição do segundo tema na tônica seria a conjunção final. Esta disputa entre conjunção e

disjunção (entendida em qualquer nível ou parâmetro da composição) é o que Tarasti chama

de ‘atorialidade’ em música.

II. Modalidades

1. Modalidades Actanciais (do fazer)


Para Greimas, todo o texto (seja literário, filosófico, científico, etc.), sempre tem uma
estrutura narrativa, sendo que as unidades sintáticas deste texto são chamadas de actantes (ou
categorias actanciais).
O modelo apresentado por Greimas é o seguinte:

Destinador (saber) Objeto (saber) Destinatário

(desejo)

Adjuvante (poder) Sujeito (poder) Opositor

(GREIMAS apud NÖTH, 1996, p. 179).

É necessário distinguir entre os actantes da sintaxe de nível profundo daqueles de


nível de superfície. Pois “as categorias actanciais desta sintaxe de profundidade podem se
manifestar em atores na superfície da narrativa” (NÖTH, 1996, p. 179). Na superfície, várias
categorias actanciais de profundidade podem ser combinadas em um único ator (personagem).
Nöth exemplifica comparando um romance de amor com a história de Parsifal. No primeiro
caso, o amante pode representar, na estrutura de superfície, tanto o sujeito quanto o
destinatário, enquanto que a amada pode ser tanto o objeto quanto o destinador. “Na busca do
cálice sagrado de Parsifal, por outro lado, esses quatro papéis ficam bem distintos. Parsifal é o
sujeito, o cálice sagrado é o objeto, Deus é o destinador e o homem em geral (a humanidade)
é o destinatário” (ibid., p. 179-180).
58

2. Modalidades Descritivas (do ser)


As ações dos actantes não são somente meros produtos de um ‘fazer’, mas também o
resultado de um ‘querer’, de um ‘dever’, de um ‘saber’ ou de um ‘poder’.

Essas modalidades das ações já caracterizam as relações entre os actantes na


estrutura profunda do modelo actancial. O eixo sujeito-objeto, por exemplo, é
ligado pela modalidade teleológica41 do ‘querer’. O eixo adjuvante-opositor
representa a modalidade ‘poder’ e o eixo destinador-destinatário representa a
modalidade etológica42 do ‘saber’ (...). As modalidades do ‘querer’ e do ‘dever’
pertencem ao nível virtual dos valores, as modalidades do ‘poder’ e do ‘saber’
pertencem ao nível da atualidade, e as modalidades do ‘fazer’ e do ‘ser’ pertencem
ao nível da realização. No nível da realização, as relações são conjuntivas, no nível
da virtualidade, elas são disjuntivas (ibid., p. 182-183).

Morris (apud TARASTI, 1994, p. 85) fala de três tipos de movimento: 1. Movimento
em direção a algum ponto; 2. Movimento contra algum ponto; 3. Movimento a partir de
algum ponto. Tarasti utiliza estas categorias para explicar as modalizações de micro-espaços e
registros musicais, aplicando a elas as modalidades de Greimas, na busca de um programa de
análise do espaço musical.
Ao conceito de ‘espaço musical’, Tarasti aplica a modalidade ‘ser’, a estase (algo que
simplesmente ‘é’), ou seja, cada momento da música em um sentido estático do espaço
musical, como cada um dos dois temas de um movimento em forma sonata – o primeiro tema
seria um ‘ser 1’, o segundo tema seria um ‘ser 2’. A modalidade ‘fazer’ relaciona-se ao
‘tempo musical’ e representa o dinamismo (algo que ‘faz’ ou torna possível que algo
aconteça), geralmente diz respeito aos pontos de transição, como a transição do primeiro para
o segundo tema na forma sonata, ou: “o acorde de sétima diminuta, no qual qualquer nota
pode servir como sensível, é uma harmonia que facilmente nos move de um espaço musical a
outro” (TARASTI, 1994, p. 86).
As modalidades adicionais são: o ‘querer’, que se relaciona à energia cinética, isto é,
ao movimento em direção a determinado objetivo, como ocorre na resolução de um acorde de
dominante na tônica; o ‘dever’, que ocorre quando a estrutura musical exige determinado
procedimento compositivo, como acontece na música serial em que determinada nota deve
seguir outra na estrutura da série, para Tarasti há vários graus de ‘dever’ – “em alguns casos
algo é fortemente obrigatório, em outros casos é menos obrigatório” (ibid., p. 90); o ‘poder’,
que se relaciona à reprodução, virtuosidade, poder e eficiência de recursos técnicos, como,
por exemplo, o finale de uma obra sinfônica extremamente afirmativo com efeitos de tutti em
fortíssimo; o ‘saber’, que se relaciona à informação contida em cada novo segmento da peça –
“por exemplo, uma progressão diatônica em quintas não projeta a modalidade ‘saber fazer’,
porém uma modulação habilidosa e dramática através da re-interpretação de alguma
tonalidade exibe esta modalidade (como ocorre na canção Erlkönig de Schubert)” (ibid., p.
92) .

A modalidade ‘saber’ influencia a modalidade ‘crer’ no sentido em que o


acréscimo de tensão musical é convincente e persuasivo. Determinada peça pode
conter um clímax final que não é realmente crível ou necessário (...), se a obra
musical obedece somente a normas externas e de acordo com as quais situa o
clímax na seção áurea, por exemplo (...), sem que este ponto se torne necessário por

41
Teleologia, em filosofia é o estudo da finalidade; teleológico é aquele argumento que relaciona um fato à sua
causa final.
42
Etologia é a ciência que estuda o comportamento e os costumes, humanos ou animais.
59

algum ‘querer’ energético interno, então este clímax certamente não é sentido
como uma solução eficiente ou acreditável (ibid., p. 92).

Qualquer modalidade apresentada anteriormente pode ser combinada com outras.


Tarasti combina as modalidades básicas ‘ser’ e ‘fazer’ com as modalidades adicionais
‘querer’, ‘dever’, ‘poder’ e ‘’saber’, gerando o seguinte quadro:

Espaço Musical

querer ser querer não-ser poder ser poder não-ser

não-querer não-ser não-querer ser não-poder não-ser não-poder ser

dever ser dever não-ser saber ser saber não-ser

não-dever não-ser não-dever ser não-saber não-ser não-saber ser

Tempo Musical

querer fazer querer não-fazer poder fazer poder não-fazer

não-querer não-fazer não-querer fazer não-poder não-fazer não-poder fazer

dever fazer dever não-fazer saber fazer saber não-fazer

não-dever não-fazer não-dever fazer não-saber não-fazer não-saber fazer

Esta combinação entre as modalidades básicas e adicionais pode ser entendida com
dois exemplos:
1. combinação entre ‘ser’ e ‘querer’ – (a) a modalidade ‘querer ser’ significa que algum
ponto do espaço musical é o resultado de algum esforço particular, como a tônica no
espaço interno de uma peça musical; (b) a modalidade ‘querer não-ser’ significa que se
quer evitar determinado registro, como, por exemplo, a proibição de Berlioz quanto à
utilização de certas notas graves dos instrumentos de madeira, em seu Traité
d’Instrumentation et d’Orchestration; (c) a modalidade ‘não-querer ser’ significa que
algum registro (ou ponto) em um espaço musical, embora tenha sido utilizado, produz um
efeito desagradável ou indesejável, como ocorre na Sinfonia Fantástica de Berlioz com a
transformação grotesca da idée fixe no último movimento; (d) a modalidade ‘não-querer
não-ser’ realiza-se quando se parte do princípio de que nenhuma lacuna pode ficar sem ser
preenchida, pois não preencher as lacunas poderia representar um desequilíbrio no espaço
musical.
60

2. combinação entre ‘fazer’43 e ‘querer’ – (a) a modalidade ‘querer fazer’ significa que um
texto musical se esforça para aumentar o grau de tensão por meio de uma forte tendência
em direção a determinado objetivo, ocorre quando o processo musical tem uma
direcionalidade fortemente definida; (b) a modalidade ‘querer não-fazer’ ocorre quando a
música tende ao decréscimo de tensão a se movimenta para fora do campo de
dissonâncias, como, por exemplo, quando

um ponto x do espaço musical foi modalizado com ‘poder fazer’ e se procede de x


até um ponto modalizado com ‘poder’ e com ‘querer ser’, neste caso, geralmente,
se encontra um decréscimo gradual de tensão musical, evitando, assim, uma
transição muito abrupta (ibid., p. 91).

Outra situação desta modalidade ocorre quando o ‘querer’ musical aponta para um
determinado rumo, porém este é evitado, como acontece no final de várias danças de J. S.
Bach, em que a frase se dirige para a conclusão final, porém chega a uma cadência
deceptiva, exigindo uma quebra na quadratura pelo acréscimo de mais uma frase
necessária para concluir o movimento; (c) a modalidade ‘não-querer fazer’ “significa que
a energia cinética da música tende para a dissonância e busca a continuação de ‘ser’,
como em um caso de sotto voce, deslize de detenção entre dois espaços modalizados
diferentemente” (ibid., p. 91); (d) a modalidade ‘não-querer não-fazer’ realiza-se quando a
música não luta por se dirigir a um espaço de menor tensão, ou seja, permite que a tensão
(o ‘fazer’) permaneça no nível atual.

III. Isotopia
Este termo foi tomado de empréstimo da física nuclear, sendo que na Semântica
Estrutural de Greimas significa a coerência e a homogeneidade que apresenta o texto, sendo o
“princípio que permite a concatenação semântica de declarações” (GREIMAS apud NÖTH,
1996, p. 175). A isotopia é “entendida basicamente como traço redundante de significação (do
plano de conteúdo e do plano de expressão) que garante certa uniformidade de leitura de um
texto” (MITIDIERI, 1997, p. 119). Em música, os exemplos de isotopia apresentados por
Tarasti são, entre outros:
• a organização profunda das alturas de determinada obra – seu meio sonoro (coleção de
notas), as relações entre os sons que fazem parte deste meio sonoro e o esquema básico de
organização das alturas.
• a organização motívico-temática da obra – a recorrência, variação, desenvolvimento e
transformação de temas e motivos.
• as características de gêneros e estilos – aqueles elementos que permitem distinguir um
gênero de outro (uma fuga de uma suíte barroca), ou um estilo de outro (o style galant
francês do stile sensitivo italiano, ambos da primeira metade do séc. XVIII).
O conceito de isotopia permite, por um lado, o entendimento e compreensão da música
como discurso ou linguagem, pois são os elementos isotópicos (de repetição) que possibilitam
o sentido e a coerência musicais. Por outro lado, os elementos recorrentes permitem a
classificação, por parte da musicologia, de obras musicais distintas, em gêneros, estilos ou
escolas de acordo com suas características regionais, históricas, sociais, etc.

43
A modalidade ‘fazer’ pressupõe a existência de tensão e seu crescimento; a modalidade ‘não-fazer’ significa o
decréscimo de tensão, um direcionamento à consonância rítmica ou harmônica.
61

A análise de Quadros de uma Exposição de Mussorgsky, por Tarasti

Com base nos princípios da semiótica narrativa de Greimas e na semiótica pragmática


de Peirce, Tarasti efetua análises musicais inter-semióticas, em que busca elucidar os elos de
ligação entre linguagens distintas (música e literatura ou música e artes plásticas), ou
estabelecer critérios para o entendimento do conceito de narratividade em música.
A obra analisada por Tarasti do ponto de vista da ‘representação’ musical de uma
situação de exposição de artes visuais não poderia deixar de ser Quadros de Uma Exposição
de Mussorgsky. Tarasti afirma que a obra

consiste basicamente de dois tipos de movimentos: ‘promenades’ (passeios) e


‘quadros’. Ao prestar atenção em suas funções cognitivas, estes movimentos estão
situados em níveis bastante diferentes. Nas promenades a ênfase está sempre na
énonciation énoncée, a enunciação enunciada ou a emissão emitida, ou seja, no
espectador fictício (aqui o ouvinte) que modaliza e é modalizado por diferentes
quadros. Os quadros são como uma ‘linguagem’ musical objetivamente retratada,
que são comentados pelas promenades (TARASTI, 1994, p. 215).

Por serem sempre compostas com base no mesmo material ‘temático-actante’, as


promenades fazem com que delas emirja um narrador que dá continuidade à narrativa, sendo
que o único fator de continuidade da peça é a ‘iconicidade actante’, ou seja, a ‘interpretação’
da exposição por parte deste narrador/espectador fictício que, às vezes, está envolvido pela
pintura, às vezes mantém uma distância irônica e, em outras vezes, sente-se oprimido por
aquilo que vê.
Com base na polaridade binária entre promenades e quadros, Tarasti (1994, p. 214-215)
apresenta um esquema de articulação atorial, espacial e temporal que percorre toda a peça,
analisando cada um de seus movimentos:
1. Promenade: do ponto de vista temporal, a atenção é mantida pelo ritmo fixo em
semínimas e sua debreagem44 aperiódica; a dimensão atorial é realizada através do ‘ator
I”.
2. O Gnomo: há debreagem rítmica e assimétrica; os atores são corrompidos e opostos
fortemente ao ator ‘normal’ da primeira promenade; ocorre uma negação da seção anterior
em todos os sentidos; a modalidade ‘fazer’ domina; ocorre muita debreagem harmônica
com relação ao início, notem-se os trítonos no baixo.
3. Promenade: é uma pré-modalização do quadro seguinte; ocorre um movimento de
elevação espacial como símbolo da arquitetura gótica medieval.
4. O Velho Castelo: um pastiche italiano de Mussorgsky (compare-se com a escritura de
Busoni ou Glinka e com o estilo de ‘finale’); há predominância da rítmica siciliana; ocorre
uma modulação enarmônica de Láb maior da promenade anterior para Sol# menor; há
forte debreagem temporal: o ‘velho castelo’ faz alusão ao passado, a um lugar
heterotópico45, ‘outro lugar’, no que diz respeito à narração musical.
5. Promenade: é produzido um efeito de alienação pela pós-modalização, ou seja, o retorno
abrupto ao tempo ‘agora’ e ao lugar ‘aqui’.
6. Tuileries: tem por subtítulo: ‘disputa das crianças enquanto brincam’; é um pastiche
francês de Mussorgsky; note-se, aqui, a debreagem atorial.
7. Bydlo: nova debreagem atorial, de tal modo que o peso e a lentidão da carruagem
polonesa é tornada antropomórfica.

44
Ver nota 21.
45
Espaços heterotópicos são aqueles que envolvem o espaço tópico, isto é, o espaço inicial. V. seção sobre
espacialidade fictícia.
62

8. Promenade: uma pré-modalização e uma pós-modalização indicial46 apontam que os


limites da peça estão desaparecendo.
9. Bailado dos Pintinhos Não-chocados: ocorre articulação atorial no primeiro plano.
10. Samuel Goldenberg e Schmuyle (dois judeus poloneses): nova articulação atorial, como
uma ‘polifonia de consciências’ que aparece em meio ao discurso musical de Mussorgsky;
aparece, novamente, um estilo em uníssono, similar àquele que ocorre em O Gnomo.
11. Promenade: é uma repetição da primeira Promenade; existe embreagem pela retomada do
ponto de partida da narração; há uma referência direta ao ato de enunciação e ao
narrador/espectador que está interpretando os quadros.
12. O Mercado de Limoges: no plano geral da peça, ocorre articulação atorial e espacial ao
mesmo tempo.
13. Catacumbas: é uma debreagem espacial; tem por subtítulo: ‘com murtuis in lingua
mortua’, que é uma interpretação atorial da seção precedente.
14. A Cabana nas Pernas da Galinha (Baba-Yaga): é uma articulação atorial e espacial; há
um retorno do heterotopos (‘outro lugar’) em direção ao topos (‘lugar inicial’).
15. O Grande Portão de Kiev: é, meramente, uma articulação espacial e, ao mesmo tempo,
uma culminação da Promenade do início; a glorificação do espaço tópico47.

46
Indicial, de índice. V. nas categorias de Peirce, os elementos que compõem o objeto: ícone, índice e símbolo.
47
Espaço tópico é o espaço zero, ou seja, o espaço inicial. V. seção sobre espacialidade fictícia.
63

Abaixo, são reproduzidos os compassos iniciais de cada movimento de Quadros de


uma Exposição, de M. Mussorgsky:
64

Ex. 10: M. Mussorgsky, Quadros de uma Exposição, índice dos movimentos


(Edição Schott/Universal – UT 50076).

Síntese da análise de Tarasti da Promenade I (v. partitura na p. 67 deste polígrafo)


65

Em sua análise da primeira Promenade, Tarasti considera que o aspecto mais


interessante neste movimento refere-se às articulações temporais, visto que, do ponto de vista
do espaço externo, ocorre somente contraste entre duas texturas: monofonia em uníssono e
homofonia cordal. Do ponto de vista temporal, há grande complexidade em diversos graus de
debreagem. Quanto às recorrências rítmicas, pode-se dizer que há uma tendência à
embreagem em direção a duas células rítmicas:
três semínimas: q q q ; e duas colcheias seguidas por uma semínima: e e q .

O interessante é a utilização de todas as articulações possíveis destas duas células


rítmicas de forma aperiódica e sem nenhum centro rítmico, o que gera a sensação de
debreagem rítmica. Por outro lado, a relação da primeira Promenade com as demais cria a
sensação de embreagem, por mais diferenças que haja entre elas. Isto ocorre devido ao fato de
que a primeira Promenade apresenta, em si mesma alto índice de debreagem rítmica, fazendo
com que as mudanças rítmicas ocorrentes nas outras promenades soem como embreagem do
ponto de vista estrutural. Em outras palavras, a introdução de irregularidades rítmicas como
ponto de partida (e, conseqüentemente, como ponto de referência) faz com que a
irregularidade não se apresente como um ponto de debreagem, mas de embreagem do ponto
de vista da estrutura global48. Abaixo, o mapa de segmentação, com a análise paradigmática
da estrutura rítmica da primeira Promenade de Quadros de Uma Exposição por Tarasti:

48
Este princípio faz com que uma peça musical ritmicamente muito complexa – como o Estudo n.º 21 para
pianola de Nancarrow, que apresenta diferentes andamentos simultaneamente – tenha sua complexidade
‘disfarçada’ por se tornar entrópica, ou seja, tornar-se recorrente. É este fato que faz com que esta peça seja
inteligível, pois se não houvesse nenhum tipo de entropia, seria incomunicável.
66

Ex. 11: E. Tarasti, análise paradigmática rítmica da Promenade I, de Quadros de uma Exposição de
Mussorgsky.
67

Do ponto de vista da articulação atorial, os primeiros dois compassos apresentam o


protagonista (ator principal), inicialmente como uma linha melódica, em seguida com
acompanhamento homofônico. Este ator principal consiste de uma série de grupos sucessivos
de seis notas organizadas de forma simétrica e fechada, como um todo reflexivo. Esta simetria
forma um polo contrário à fragmentação e assimetria temporal, o que evita monotonia no
nível espacial. O que ocorre no movimento é o seguinte (ibid., p. 220):

1. Repetição do tema com a relação solo-tutti (c. 1-4): A, A’.


2. A partir da inversão do tema, uma unidade a b a b’ é formada (c. 5-8): B, B’.
3. Segue uma seção de desenvolvimento, representando a continuidade e elaborando,
principalmente, intervalos de segunda (a partir dos motivos precedentes) com
notas de passagem e bordaduras como componente central. O princípio formal é
um motivo e sua extensão: C (c. 9-10), C’ (c. 11-13).
4. Desenvolvimento e transformação gradual de um motivo: D (c. 14), D’(c. 15).
5. Reorganização das células do motivo C de acordo com o princípio formal da
repetição e condensação motívica: C + C + c (c. 17-21).
6. Nos compassos 21-24 a primeira seqüência do início é repetida, agora
harmonizada em cada tempo, embora diferente da primeira ocorrência.

Cada uma das seis seções apresenta um princípio de formação levemente variado, o
que gera uma diferença no nível atorial. Desta forma, o movimento inteiro é dominado por um
único ator, o que gera uma impressão de identidade fenomênica. Este ator consiste de vinte e
quatro elementos diferentes (unidades paradigmáticas), sendo que quatro deles são
especialmente pertinentes.
A análise modal (das modalidades) revela que, quanto à modalidade ‘querer’, os dois
primeiros compassos manifestam duas implicações: um movimento ascendente e um
movimento descendente, que são fragmentários devido às notas que estão faltando para
completar a coleção de notas da escala diatônica (Lá e Mib) – o que gera, por sua vez, uma
escala pentatônica. O ‘querer’ é equilibrado, pois os actantes (movimento ascendente e
descendente) são fechados em si mesmos – manifestam simultaneamente uma vontade e a
negação desta vontade, sem a criação de tensão em razão disto.
Quanto à modalidade ‘saber’, há um grau elevado de informação espaço-temporal (a
primeira Promenade é o legi-signo49 de todas as promenades ulteriores).
Quanto à modalidade ‘querer’, a primeira promenade apresenta um valor negativo,
pois segue princípios convencionais de maneira redundante: há somente harmonização em
estilo coral e oposição entre solo e tutti. Existe um grau neutro da modalidade ‘dever’, pois o
primeiro movimento segue somente normas convencionais – isto irá ser modificado no
decorrer da obra, pois o fato de esta promenade servir como legi-signo para a formação dos
outros movimentos a torna extremamente importante do ponto de vista do ‘dever’ na estrutura
global da peça.
Por representar um espectador/narrador imaginário que percorre a exposição, realiza a
leitura das mensagens apresentadas pelos quadros e as comunica ao ouvinte, as promenades
representam modalizações (avaliações e interpretações) dos ‘quadros’ da exposição. São estes
quadros que devem convencer o ouvinte de sua ‘verdade’. Em outras palavras, o valor
epistemológico da obra somente é revelado com base na relação entre as promenades e os
quadros, visto que as primeiras, embora sejam as protagonistas, não podem afirmar nada

49
Isto significa que esta promenade é a lei geral que rege as relações de continuidade entre todos os
movimentos, em especial, entre as promenades. V. nas categorias de Peirce, os elementos do representamen:
quali-signo, sin-signo e legi-signo.
68

sobre os quadros sem a existência destes, enquanto que estes não passam de objetos e, assim,
somente têm seu sentido desvendado quando postos em frente a um observador (a promenade,
o ator principal). Desta forma,

a primeira promenade, vindo antes de qualquer cena pictórica, não pode


representar, por sua interpretação epistemológica, nada além de uma tabula rasa
inocente, inexperiente. Admitimos naturalmente que as entonações50 contidas na
Promenade formam um estoque de entoações com relação às quais todas as futuras
entonações serão comparadas. Somente com base nestas relações pode-se definir,
posteriormente, um ‘ser’ ou uma ‘manifestação’ de entonações futuras derivadas
deste estoque. Note-se que aqui o termo ‘ser’ não denota um estado de repouso ou
consonância, mas a existência de alguma entonação musical em um estoque
imanente de entonações, em contraste com a ‘manifestação’ concreta, ou o soar,
desta entonação (ibid., p. 223).

50
Entonações são manifestações fônicas que correspondem ao mundo fenomênico. Entonações musicais são o
resultado da transmutação de sons advindos das experiências da vida, que incluem experiências psíquicas
interiores, em elementos e processos musicais, como uma melodia ou o crescimento de determinada frase
musical (TARASTI, 1994, p. 304).
69

5. RETÓRICA E EXPRESSÃO MUSICAIS

5.1. Retórica Verbal

Retórica é definida como sendo a arte de bem falar ou escrever com o propósito de
persuadir, ou como o conjunto de teorias relativas à eloqüência51.

5.1.1. Figuras de Retórica

São figuras lingüísticas ou disposição de figuras lingüísticas que emprestam maior


vivacidade à frase e ao pensamento. As figuras de retórica dividem-se em figuras verbais e
figuras de pensamento.

a) Figuras Verbais

Consistem em alterar o sentido habitual das palavras. As principais figuras verbais de


retórica são:

a) Elipse – Gram. Omissão de palavras que se podem subentender. Ex.: “Onde pode, põe a
mão. Onde não pode, os olhos”.
b) Silepse – Ret. Emprego de uma palavra no sentido próprio e figurado a um só tempo.
Gram. Figura pela qual a concordância se faz de acordo com o sentido e não conforme as
regras da sintaxe. A silepse pode ser: a) de gênero. Ex.: “Admitindo a idéia de que eu
fosse capaz de semelhante vilania, S. M. foi cruelmente injusto para comigo”; b) de
número. Ex. “O resto do exército realista evacua neste momento Santarém; vão em fuga
para o Alentejo”; c) de gênero e número. Ex.: “Eis que começa a gente do mar a queixar-
se e dar culpas a quem os fizera navegar”; d) de pessoa. Ex.: “Quanto à pátria de origem,
todos os homens somos do céu”.
c) Inversão (ou anástrofe) – Gram. e Ret. Inversão, mais ou menos forte, da ordem natural
das palavras ou das orações. Ex.: “Ouviram do Ipiranga às margens plácidas / De um povo
heróico o brado retumbante”, i. e., Às margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado
retumbante de um povo heróico.
d) Hipálage – Ret. Figura pela qual se atribui a certas palavras de uma frase o que convém
logicamente a outras da mesma frase, claras ou subentendidas. Ex.: “O raspar espavorido
de fósforos” (espavorido refere-se , logicamente, não ao substantivo virtual raspar, mas ao
agente da ação de raspar); “Em cada olho, um grito castanho de ódio”.
e) Pleonasmo – Gram. Redundância de termos que, em certos casos, têm emprego legítimo,
para conferir à expressão mais vigor ou clareza. Ex.: “Vi com estes olhos que a terra há de
comer; vi claramente visto o lume vivo / Que a marítima gente tem por santo” (Camões,
Os Lusíadas, V. 18).
f) Metáfora – Tropo que consiste na transferência de uma palavra para um âmbito semântico
que não é o do objeto que ela designa, e que se fundamenta numa relação de semelhança
subentendida entre o sentido próprio e o figurado. Por ex., chama-se de raposa a uma
pessoa astuta: “L. B. é uma raposa na arte de fazer política”.

51
As definições apresentadas a seguir foram consultadas no NOVO DICIONÁRIO AURÉLIO (1986) e na
GRANDE ENCICLOPÉDIA LAROUSSE (1993).
70

g) Alegoria – 1. Exposição de um pensamento sob forma figurada; 2. Ficção que representa


uma coisa para dar idéia de outra; 3. Seqüência de metáforas que significam uma coisa nas
palavras e outra no sentido. As alegorias são, geralmente, representações de idéias
abstratas por imagens concretas. Ex.: “A Liberdade guia o povo com sua bandeira em
riste”.
h) Catacrese – Ret. Processo que consiste em ampliar o sentido de uma palavra para além do
seu significado estrito. Ex.: embarcar num trem.
i) Sinédoque – Ret. Tropo que se funda na relação de compreensão e consiste no uso do todo
pela parte, do plural pelo singular, do gênero pela espécie, etc., ou vice-versa. Ex.: “Os
Santos mais ilustres, os Agostinhos, os Ambrósios, os Jerônimos, permaneciam fora, pelos
pátios divinos” (Eça de Queiroz, Notas Contemporâneas, p. 368).
j) Metonímia – Ret. Tropo que consiste em designar um objeto por palavra designativa de
outro objeto, que tem com o primeiro uma relação de: causa e efeito (trabalho, por obra),
de continente e conteúdo (copo, por bebida), lugar e produto (Porto, por vinho do Porto),
matéria e objeto (bronze, por estatueta de bronze), abstrato e concreto (bandeira, por
pátria), autor e obra (um Camões, por um livro de Camões), a parte pelo todo (asa, por
avião), etc. [Sinônimo: transnominação. Cf. sinédoque].
k) Eufemismo – 1. ato de suavizar a expressão de um idéia substituindo a palavra ou
expressão própria por outra mais agradável, mais polida. 2. Palavra ou expressão usada
por eufemismo. Ex.: “Empregou o eufemismo ‘descuidado’ para não chamá-lo de
‘grosseiro’ ”. [Antônimo: disfemismo].
l) Antonomásia – Ret. Substituição de um nome próprio por um comum ou por uma
perífrase. Ex.: “O Poeta Negro” (Cruz e Souza); “um Nero” [um homem cruel].
m) Antífrase – Ret. Emprego de palavra ou frase em sentido oposto ao verdadeiro. Ex.: a
substituição do nome Cabo das Tormentas por Cabo da Boa Esperança, para fugir do mau
agouro.

b) Figuras de Pensamento

As figuras de pensamento são aquelas que consistem em procedimentos lógicos


independentes da expressão do sentido comunicado, ou seja, não modificam o significado
original das palavras, quando muito as enfatizam ou suavizam. As principais figuras de
pensamentos são:

a) Antítese – Figura pela qual se salienta a oposição entre duas palavras ou idéias. Ex.: “A
Liberdade – em face à Escravidão” (Castro Alves, Obra Completa, p. 154). [Sin.:
enantiose]
b) Apóstrofe – Ret. 1. Figura que consiste em dirigir-se o orador ou o escritor, em geral (e
não sempre) fazendo uma interrupção, a uma pessoa ou coisa real ou fictícia. 2.
Interpelação direta e inopinada. Ex.: “Deus! Ó Deus! Onde estás que não respondes?”
(Castro Alves, Obra Completa, p. 290). [Sin.: Catilinária].
c) Exclamação – Ato de exclamar; voz, grito ou brado de prazer, alegria, raiva, tristeza, dor.
Exclamar: Pronunciar em voz muito alta; bradar, gritar, vociferar, clamar.
d) Interrogação – Ato ou efeito de interrogar-se. Interrogar: 1. Fazer perguntas, inquirir,
perguntar; 2. Dirigir-se a alguém com um gesto, um olhar, como a perguntar-lhe alguma
coisa.
e) Enumeração – 1. Indicação de coisas, uma por uma; 2. Exposição ou relação metódica.
Enumerar: 1. Relacionar metodicamente; 2. Contar, especificar.
71

f) Gradação – 1. Aumento ou diminuição gradual; 2. Passagem ou transição gradual. Ex.:


“Acabava o crepúsculo e o céu escurecia devagarinho, passando do rosa pálido e do
amarelo transparente, ao lilás, ao cinza, ao roxo, ao azul escuro, numa gradação suave”
(Malu de Ouro Preto, Siri na Noite sem Lua, p. 43).
g) Reticência – Interrupção do pensamento (por ficar facilmente subentendido o que não foi
dito), ou omissão intencional de algo que se devia ou podia dizer, mas apenas se sugere,
ou que, em certos casos, indica insinuação. Segunda intenção, emoção. Ex.: Era esta a
sala... (Oh! Se me lembro e quanto!) / Em que da luz noturna à claridade, / Minhas irmãs e
minha mãe... / O pranto / Jorrou-me em ondas...” (Luís Guimarães Júnior, Sonetos e
Rimas, p. 11).
h) Perífrase – rodeio de palavras; circuito, circuito de palavras, circunlocução. Ex.:
“Circunlóquios de todos os gêneros, sendo mais aplaudidos os de maior rodeio”. [Sin.:
Circunlóquio].
i) Hipérbole – Ret. Figura que engrandece ou diminui exageradamente a verdade das coisas;
exageração. Ex.: “Chorei biliões de vezes com a canseira / De inexorabilíssimos
trabalhos!” (Augusto dos Anjos, Eu, p. 21).
j) Lítotes – Ret. Modo de afirmação por meio da negação do contrário. Ex.: “Não é nada
tolo” (por: é muito esperto).
k) Prosopopéia – Ret. Figura pela qual se dá vida e, pois, ação, movimento e voz a coisas
inanimadas, e se empresta voz a pessoas ausentes ou mortas e a animais; personificação,
metagoge; 2. Fig. Discurso empolado ou veemente. Ex.: “Disse-me o gato: és mais
curioso do que eu!”.

5.2. Retórica na Música

Os estudos sobre Retórica Musical, tal como é entendida hoje, surgiram durante o
século XVI, nas cameratas, círculos de humanistas que se reuniam para estudar, discutir e
apresentar recitais de poesia, música e dança com patrocínio de nobres de Florença, Nápoles e
Veneza. Destas cameratas, aquela que teve maior importância para a origem do stile moderno,
e para o nascimento da ópera, foi a chamada Camerata Fiorentina, que exerceu grande
influência sobre Monteverdi. Os principais participantes desta camerata foram os músicos
Jacopo Peri, Giulio Cacccini e Vicenzo Galilei (pai de Galileu), além do poeta Rinuccini.
Estes eram compositores e cantores que se dedicavam à musica reservata e ao madrigalismo.
Partindo do conhecimento de retórica clássica, ou seja, a retórica greco-latina, os
músicos e poetas passaram a buscar meios de representação musical do sentido emocional dos
textos que escolhiam para pôr em música (em especial, poesias de Petrarca e Boccacio). A
expressão musical do poema por parte dos madrigalistas era localizada, ou seja, eram
representadas musicalmente palavras ou expressões isoladas e não o pathos geral da poesia.
Deste modo, partiram das figuras conhecidas da retórica clássica e as aplicaram à estruturação
musical. Este procedimento foi-se desenvolvendo até o século XVIII, gerando as seguintes
categorias ligadas à retórica, especialmente retiradas das figuras de pensamento:
72

5.2.1. Expressão e retórica na música renascentista e barroca

1. Fraseologia Musical
Cadências com sentido de pontuação frásica:
a) cadência perfeita – paralelo musical à pontuação final; quando utilizada enfaticamente
(tutti em fortíssimo, p. ex.), torna-se representativa da exclamação.
b) cadência à dominante – representação musical da interrogação, da enumeração ou da
reticência.
c) cadência interrompida – paralelo musical à figura de reticência.
d) cadência deceptiva – relativa à lítotes.

2. Representação musical através de elementos fraseológicos:

a) representação da antítese por meio da utilização de motivos ou frases contrastantes, da


justaposição de frases em diferentes tonalidades ou de contraste de intensidade (o caso
típico do período Barroco é o contraste entre f e p), de tempo (alternância de movimentos
com andamentos lentos e rápidos), de orquestração (oposição, no concerto grosso, entre
ripieno e concertino), ou, ainda, no sistema tonal, a substituição dos doze modos
renascentistas por apenas dois modos opostos: modo maior e modo menor.
b) representação da apóstrofe através de digressões, interpolações e interjeições no decorrer
do discurso musical.
c) representação da enumeração pela justaposição de temas diferentes ou pela imitação do
mesmo tema em vozes e alturas diferentes.
d) representação da gradação pela condução harmônica gradativa (o princípio básico de
encadeamento harmônico I–IV–V–I, ou a modulação por meio de acordes pivôs são
formas de representar musicalmente a gradação), com o enriquecimento gradual da textura
e a elaboração progressiva do material temático.
e) representação da perífrase por meio de referências ao stile antico (o caráter modal da
prima prattica), em trechos cantados como recitativo, ou quando se evitava a condução
harmônica progressiva com base no círculo de quintas, digressões e interpolações.
f) representação da hipérbole no stile concertato e no stile colossal pela utilização de vários
coros vocais e instrumentais, orquestras de grande porte para a época, broken consorts na
música inglesa, etc.
g) representação da presopopéia pela superposição de temas distintos em contraponto, como
ocorre na fuga dupla, na fuga tripla ou nos trechos de óperas em que os atores estão fora
de cena (como ocorre no L’Orfeo de Monteverdi, na cena em que os mortos chegam ao
Hades).

3. Simbolismo Sonoro

O Barroco tomou do Renascimento o chamado simbolismo sonoro, que considera que


cada manifestação musical representa algo fora da música:
a) representação de nomes por notas através de relações entre letras e sílabas. O caso mais
famoso é o nome Bach representado pela notas Sib-Lá-Dó-Si (B-A-C-H na cifra
germânica).
73

Ex. 12: J. S. Bach, A Arte da Fuga , excerto da Fuga XX

b) Augenmusik (alemão, ‘música para os olhos’), disposição visual das notas na partitura de
maneira a representar imagens, como a representação da cruz pela disposição das notas
em cruz na História da Ressurreição de Schütz.

Ex. 13: H. Schütz, excerto de História da Ressurreição

c) simbolismo numérico, em que a linguagem musical é traduzida em termos numéricos


(notas representando números, por exemplo) com a intenção de representar idéias ou
situações. Os mais comuns são o número três para representar a Santíssima Trindade
(como acontece nas Vésperas de Monteverdi, no exemplo abaixo, em que a execução de
um acorde de três notas, três vezes consecutivas, representa a Santíssima Trindade); o
número quatro representa os elementos da natureza; o número doze (número dos apóstolos
de Cristo) representa a Igreja.

Ex. 14: C. Monteverdi, excerto de Vésperas

d) gêneros e formas musicais que representam situações como ocorre quando uma fuga é
utilizada para expressar a perseguição, ou uma cena de caçada é representada pela dança
chamada caccia (caça, em italiano).

4. Música Poética: Figuras de Representação Musical

Os círculos humanistas da Renascença, tomando por base as categorias aristotélicas de


‘pensar’, ‘fazer’ e ‘criar’, dividiam a música em teórica (theoretica, categoria do pensar),
prática (practica, categoria do fazer) e poética (poetica, categoria do criar). A terceira
categoria (poética) apoia-se na retórica, concebendo, pela primeira vez, a música como uma
linguagem sonora, isto é, considerando que a música poderia substituir a linguagem verbal na
significação de objetos, conceitos e situações. Esta concepção da música como linguagem
gerou a Teoria dos Afetos do período Barroco e desenvolveu as noções de fraseologia e
representação musical. Esta foi realizada, nos séculos XVII e XVIII, por meio de figuras de
74

representação, que foram organizadas em cerca de 150 tipos diferentes, com nomes gregos e
latinos, e foram agrupadas segundo seu caráter e meio de representação de textos.
Alguns dos tipos de figuras de representação mais usuais são os seguintes:
a) imitação (hyperbole) – figura que possibilitaria a ‘imitação’ de seres, objetos, situações ou
estados de alma por meio de elementos sonoros; uma nota aguda poderia ‘imitar’ a altura,
o céu ou o cume de uma montanha, uma nota grave poderia ‘imitar’ um vale profundo ou
o inferno.
b) melodia (pathopoeia) – a pathopoeia permite que determinados movimentos melódicos
possam representar situações ou afetos específicos, como, por exemplo, o semitom pode
representar a dor, a terça maior, a alegria, a terça menor, a melancolia.
c) pausa (apócope) – a utilização de pausas poderia representar a morte, ou a irrupção de um
silêncio repentino em uma situação cênica.
d) repetição (repetitio) – a repetição imediata poderia ser utilizada com sentido de eco ou
para representar pensamentos e vozes de espíritos.
e) movimento (heterolepsis) – saltos melódicos (especialmente, intervalos ascendentes do
tempo forte para o tempo fraco) poderiam ser realizados para representar sentimentos de
culpa e pecado.
f) suspensão (mora) – utilização de suspensão e retardo com sentido de dúvida ou espera.

5. Teoria dos Afetos

A Teoria dos Afetos (Affektenlehre), desenvolvida durante o período Barroco, tem


como princípio fundamental o conceito de que cada peça musical, ou movimento de uma obra
mais ampla, deve representar somente um estado de alma, afeto ou emoção. Esta é uma
diferença considerável com relação às teorias de representação musical dos madrigalistas,
pois, para estes a ‘imitação’ de emoções ou situações era considerada em um sentido local, ou
seja, através da representação de cada palavra ou verso da poesia. Por seu turno, a Teoria dos
Afetos preconiza que a música deve expressar o pathos52 geral da poesia e não descrever
cada um de seus momentos específicos.
Os principais autores que se dedicaram à representação musical de afetos foram: Réné
Descartes, Athanasius Kircher e Johann Matheson. Descartes menciona, em sua obra Traité
des passions de l’âme (‘Tratado das paixões da alma’, Paris, 1649), seis tipos principais de
afetos: admiração, amor, ódio, desejo, alegria e tristeza. Destes tipos surgem infinitas
combinações e matizes que podem ser representados musicalmente. Em um sentido amplo, a
Teoria dos Afetos trata da expressão musical das paixões e estados de excitação da alma por
meio da utilização de:
1. escalas – diferentes modos ou tonalidades representariam diferentes estados de alma, vêm
daí os conceitos de que a escala maior representa a alegria e a escala menor expressa a
melancolia.
2. registro – os diferentes registros (grave, médio ou agudo) podem representar afetos como:
alegria no registro agudo, tristeza no registro grave, ou ansiedade provocada pela
mudança repentina e constante de registros.

52
Pathos (do grego, sofrimento, paixão) é, para os antigos gregos, a utilização de figuras de retórica com a
finalidade de provocar emoções intensas. Atualmente, a expressão designa os movimentos passionais
(suavização ou intensificação da expressão das emoções) de uma obra de arte. Daí vem a expressão ‘patético’
com o sentido de algo que revela forte emoção, que comove por ser trágico, sinistro ou, mesmo, cruel.
75

3. instrumentação – com base nas divisões renascentistas das famílias instrumentais53,


realizaram-se amplas descrições de instrumentos para expressar musicalmente diferentes
estados de alma ou tipos diferentes de caráter musical, tais como: órgão expressa o caráter
religioso, flautas representam o caráter pastoril, instrumentos de metal são utilizados para
representar o caráter heróico.
4. harmonia – predominância de consonâncias ou dissonâncias podem expressar diferentes
afetos, como alegria ou tristeza, respectivamente.
5. contraponto – maior ou menor intensificação do contraponto poderia expressar diferentes
estados de alma.
6. textura – texturas homofônicas expressariam afetos diferentes das texturas polifônicas.
7. articulação – a maneira de tocar também expressa afetos, como por exemplo: a expressão
de tristeza por fraseado em legato ou de alegria pela utilização de staccato.

Assim, a combinação de diversos recursos musicais permitiria a representação


adequada dos quatro humores54 que dariam origem aos mais diferentes afetos, ou estados
anímicos. A expressão de ‘alegria’ ou de ‘melancolia' poderia ser musicalmente representada
da seguinte forma:
a) expressão de alegria: por meio da utilização de escala em modo maior, predominância de
consonâncias, preferência pelo registro agudo, com textura homofônica e articulação em
staccato em andamento rápido.
b) expressão de melancolia: através de escala em modo menor, com predominância de
dissonâncias e suspensões, preferência pelo registro grave, com melodia acompanhada e
articulação em legato em tempo lento.

Abaixo, está reproduzido um quadro com a representação de afetos através de modos e


instrumentos, conforme apresentado por Harsdörffer e Staden em sua obra Gesprächspiele V
(1645):

Parte Modo Virtude Instrumentos


1 Dórico (em Ré) Fé cornetas, órgão
2 Frígio (em Mi) Esperança violas, B..C.
3 Eóleo (em Lá) Caridade violinos, teorba
4 Lídio (em Fá) Justiça flautas, cordas
5 Mixolídio (em Sol) Força clarins, trombone
6 Jônio (em Dó) Prudência chirimias, regal
7 Hipoeóleo (em Sib) Sobriedade flautas, harpa

53
As famílias de instrumentos eram divididas em: família das violas (instrumentos de arco), família das flautas
(sopros de madeira, em especial a família das flautas doces) e família dos trombones (instrumentos de sopro de
metal); havia, ainda, o broken consort (conjunto misto formado por instrumentos de diversas famílias).
54
Os quatro humores são disposições afetivas básicas que passam por vários estágios, desde uma sensação
agradável (pólo de prazer) até sensações desagradáveis (pólo de dor). Para as teorias humorais mais antigas,
desde a Idade Média (fundadas por Galeno), há correlação entre as disposições anímicas e os humores mórbidos,
geradores de doenças. Os quatro humores mórbidos (chamados também de maléficos) são o sangue, a bile
amarela, a bile negra e o linfa. Estes humores ‘físicos’ correspondem aos humores de estados anímicos, os quais
são: cólera, melancolia, alegria e apatia. Diversas teorias de expressão da música recorreram à teoria humoral
como ponto de partida para a representação de estados de alma. Desta forma, os quatro humores básicos, ao
serem misturados, gerariam todas as paixões, e suas gradações, experimentadas pelos seres humanos.
76

Abaixo, um excerto da Sinfoniae Sacrae II, N.º 4, de H. Schütz com a utilização de


algumas figuras de representação:

Ex. 15: H. Schütz, excerto de Sinfoniae Sacrae II , N.º 4

5.2.2. Análise de Expressão e Retórica no Estilo Clássico por Ratner

Ratner (1980) realizou um estudo extensivo das características da música clássica com
base em sua ‘expressão’ (a partir dos tipos e estilos clássicos), em sua ‘retórica’ (a partir de
sistemas de periodicidade, harmonia, ritmo, melodia, textura e interpretação) e na sua ‘forma’
(em especial, a forma sonata).

Estilística

Ratner (1980, p. 9) conceitua as figuras características que resultam das múltiplas


influências sobre os compositores da segunda metade do século XVIII como sendo tópicos
estilísticos do Período Clássico, ou seja, são os assuntos fundamentais que deram origem
àquilo que hoje se tem como sendo o estilo clássico.
Estes tópicos foram divididos em duas categorias: 1. tipos – peças musicais
completamente elaboradas, tomadas em seu todo; 2. estilos – figuras e progressões existentes
no interior de uma obra. Os tipos dividem-se em danças e marchas.
a) Danças – as danças eram divididas em:
• estilo elevado – afirmativo e enfático. São as danças cortesãs, tais como o minueto, a
sarabanda e a gavota Características: harmonia completa (cheia), idéias expressas de
forma clara e precisa, melodia elaborada e inventiva, estrutura frásica leve e equilibrada.
Representação de heróis, soberanos, grandes personalidades humanas e espíritos nobres.
Expressão de magnanimidade, majestade, magnificência, orgulho, espanto, medo, loucura,
vingança, dúvida.
• estilo médio – ingênuo e agradável. São as danças leves e alegres, tais como a bourrée e a
giga. Características: ritmo fluente (“deve agradar ao ouvinte sem excitá-lo ou levá-lo à
reflexão”), linha melódica vivaz e bem construída, a harmonia deve servir somente de
suporte à melodia sem dominar o discurso (isto se refere mais à textura do que a
progressões de acordes). Representação de alegria, prazer, amor, devoção, modéstia,
paciência.
• estilo baixo – rústico e simples. São as danças de origem popular, tais como as
contradanças e o Ländler. Características: não há elaboração de qualquer parâmetro, é
geralmente aplicado a peças curtas e caráter de dança. Representação da natureza, de
77

pessoas, objetos e situações relacionados às classes sociais mais baixas. Personificação


típica do pastor; também de mendigos, escravos, prisioneiros, pobres e camponeses.

b) Marchas – as marchas tinham dois sentidos fundamentais no século XVIII, poderiam ter o
mesmo sentido das danças ou ter um caráter mais cerimonial. Este último era utilizado
para as entrées, ou seja, para abrir ocasiões cerimoniosas, como abertura de apresentações
dramáticas (teatro e ópera) ou de espetáculos de dança, ou para introduzir cenas de dança
nas óperas. Muitos movimentos iniciais de sinfonias e concertos apresentam as
características próprias da marcha, como ocorre na Sinfonia Júpiter de Mozart.

Os estilos foram classificados por Ratner em:

a) Estilo Militar e Música de Caça – características: predominância de instrumentos de


metal, trompa de caça, metro binário, repetição regular do padrão rítmico colcheia-
semicolcheia-semicolcheia ( e x x ) e figuras pontuadas ( e. x ), andamento médio.

b) Estilo Cantante – características: caráter lírico e cantabile, predomínio da linha melódica


sobre outros elementos, a textura principal é a melodia acompanhada, tempo moderado,
ampla extensão melódica na voz principal.
c) Estilo Brilhante – características: virtuosismo (intensidade de sentimentos), uso abundante
de repetições e seqüências, andamento rápido, contrastes de registro, alternância entre
acordes e escalas rápidas, regularidade frásica (quadratura).
d) Estilo de Abertura (Ouverture e Sinfonia) – características: ritmo pontuado ( e. x ),

caráter cerimonioso, marcha lenta, tutti orquestral, contrastes de andamento e textura, a


principal textura é a homofonia.
e) Estilo Pastoral – características: baixo sustentado formado por pedal ou padrão em
ostinato com notas repetidas ou repetição de intervalo de 5ªJ ou 8ªJ, estrutura frásica
repetitiva, utilização de instrumentos de madeira (flauta, oboé), métrica ternária
(compasso composto), linha melódica destacada.
f) Estilo de Música Turca – características: andamento rápido, caráter rítmico, uso
abundante de seqüências e repetições, harmonia simples, utilização de instrumentos de
percussão (triângulo, pandeiro).
g) Sturm und Drang – características: expressão da subjetividade e sentimentos intensos,
com ritmos guias, textura complexa, harmonias em modo menor, utilização de
cromatismo abundante com muita dissonância (com ou sem preparação), estilo
declamatório e apaixonado.
h) Estilo Sensitivo (Empfindsamkeit) – características: estilo lírico pessoal, ‘romântico’,
caracterizado por rápidas mudanças de caráter e expressão, com descontinuidade frasal,
rítmica irregular e textura de melodia acompanhada.
i) Estilo Rigoroso (ou culto) – Características: condução séria da melodia com pouca
elaboração, progressões limitadas e sem ornamentação, melodia estruturada em pequenos
fragmentos (incisos e semifrases), derivação dos diversos elementos a partir de uma célula
básica (ou tema principal), utilização freqüente de dissonâncias (suspensões), o tema
principal nunca é deixado de lado, estando sempre presente em uma ou outra voz, textura
polifônica em que todas as vozes têm seu papel na condução temática e participa
diretamente da expressão do ‘sentimento’ da peça. É mais utilizado na música sacra,
sendo suas formas principais o moteto e a fuga.
78

j) Fantasia – características: figuração elaborada, mudanças abruptas de harmonia, baixo


com movimentos cromáticos e graus conjuntos, contrastes repentinos, texturas cheias ou
figuras melódicas fragmentárias, sentido de improvisação e falta de ligações estruturais
entre as figuras e frases.

Além destes estilos, permaneceu a tradicional divisão barroca de estilos:

a) Stile Ecclesiastico (ou musica da chiesa) – cujas características principais são: serenidade,
razão de ser, prece, contrição.
b) Stile Cammerali – que tem por características o estilo galante, a representação do prazer e
um caráter artificioso e inventivo. Na França, este estilo se expressa principalmente
através do:
Style Galant (associado tanto ao teatro quanto à música de câmara) – Características:
elaboração melódica abundante, articulação formal clara e direta por meio de pausas e
cesuras, divisão das tonalidades por modulações e transições, utilização de elementos
rítmicos diferenciados, evita relações complexas na estrutura, harmonia mais simples,
destaque para a linha melódica principal, com as vozes inferiores servindo somente como
acompanhamento (melodia acompanhada). Utilizado especialmente em obras vocais (ária,
coro), música de dança, introduções (aberturas), estilo concertante, sonatas e sonatinas.
c) Stile Theatrali – oriundo da ópera, este estilo utiliza todos os ‘tópicos de expressão’ para
representar musicalmente as diversas situações cênicas exigidas pelos libretos.

Durante o século XVIII, o pictorialismo e a word painting (inglês, ‘pintura das


palavras’) representam os esforços dos músicos em ‘imitar’ ou ‘simbolizar’ idéias ou
conceitos específicos da poesia. O pictorialismo geralmente está associado à música
instrumental, enquanto que word painting é a tradução de uma palavra ou verso poético em
uma figura musical na música vocal. No estilo clássico, há inúmeros exemplos deste
procedimento oriundo do madrigalismo italiano do século XVI, como ocorre, por exemplo,
em várias sinfonias e no oratório A Criação de Joseph Haydn, no qual fenômenos naturais são
representados por meio de figuras musicais.
Com relação à Teoria dos Afetos, o pictorialismo e a word painting diferenciam-se
especialmente no que diz respeito à representação musical se estados anímicos e de situações.
Como já foi visto, a Teoria dos Afetos preconizava a expressão de um pathos geral da poesia.
Os tópicos do estilo clássico foram desenvolvidos com o intuito de coordenar as nuanças
afetivas no decorrer de um mesmo segmento musical, através de misturas ou de contrastes
imediatos de tópicos, expressões e estilos diversos, que poderiam coexistir simultaneamente
ou serem justapostos sem preparação. Esta é uma das razões pelas quais a linha melódica do
estilo clássico é mais fragmentária e articulada em diversos níveis, enquanto que a melodia do
estilo barroco (em especial após 1650) é mais ampla e contínua.

No século XVIII, a retórica foi entendida como a distribuição de figuras melódicas.


Vários teóricos, como Mattheson, Koch, Momigny e Reicha, identificaram as figuras de
retórica com figuras melódicas e suas relações na sintaxe musical. Ratner (1980, p. 91-92)
realizou uma síntese dos termos utilizados para descrever as relações melódicas e suas
comparações com a retórica clássica. A lista de Ratner é a seguinte: abruptio (interrupção de
uma nota final), anadiplosis (repetição de uma figura após uma pontuação), anaphora
(repetição), antistrophe (segunda parte de uma seção melódica), antithesis (uma idéia oposta),
aposiopesis (interrupção de um pensamento; pausa geral), apostrophe (digressão em direção a
outro tópico), confirmatio (reforço de uma idéia), confutatio (refutação de uma idéia),
contrast (contraste), dispositio (ordenação de idéias), distributio (interrupção de uma idéia),
79

dubitatio (incerteza, movimento inesperado), ellipsis (pausa no lugar de uma nota), epiphora
(repetição de uma frase após material intermediário como um final de uma linha – rima),
epistrophe (repetição de uma idéia), exordium (introdução), gradatio (clímax, seqüência),
narratio (apresentação, exposição), parenthesis (inserção, interpolação), periphrasis
(circunlocução, utilização de várias notas em pontos em que somente uma seria necessária),
peroratio (conclusão), propositio (exposição ou reexposição), repercussio (reexposição ou
contra-exposição – não repetição), repetitio (repetição), variatio (variação), versetzung
(reexposição de uma figura em outro grau – transposição), Wiederschlag (contra-exposição
ou reexposição), wiederkehr (reexposição), zergliederung (interrupção de uma figura ou
idéia).
80

O quadro abaixo sintetiza as diferenças existentes entre os conceitos de expressão no


Renascimento, no Barroco e no Classicismo:

PERÍODO RENASCIMENTO BARROCO CLASSICISMO

Música Teórica, Música Stile Antico e Stile


Prática e Música Poética. Moderno
Estilo Elevado,
Divisões da Música
Estio Médio,
Música Sacra e Música Stile Ecclesiastico, Stile
Estilo Baixo
Profana Cammerali, Stille Theatrali

Madrigalismo, Música Dramática Música Dramática

Linguagens Música Reservata Música Sacra Música de Câmara

Música de Corte Música Sinfônica

Teoria de Simbolismo Sonoro Teoria dos Afetos Estrutura de Tópicos


Representação

Expressão de estados Representação do pathos Pictorialismo


Modo de
anímicos específicos geral da poesia
Representação
Word Painting
Word Painting

Expressão Musical Representação de cada Um único afeto deve Mistura e coordenação de


palavra ou verso permanecer em cada tópicos em cada segmento
isoladamente segmento musical da música

Representação Musical Representação localizada Representação estática de Representação interativa


de palavras e frases afetos de tópicos

Alguns recursos utilizados freqüentemente para expressar musicalmente alguns dos


humores e afetos encontram-se sintetizados no quadro abaixo:

EXPRESSÃO RECURSO55 MELÓDICA (Intervalo)56


Repouso rallentando, quadratura, tônica 8ªJ descendente
Alegria andamento rápido, claro, flutuação 3ªM ascendente
Vivacidade, Esperteza, Jocosidade saltitante, movimentos quebrados 5ªJ ascendente
Esperança música de exaltação 3ªM ascendente, 4ªJ ascendente
Amabilidade, Ternura, Delicadeza tempo médio, simetria 7ªm ascendente , 2ªm descendente
Desejo, Languidez tons lânguidos, simplicidade 2ªA ascendente
Medo gemidos, terror, tons quebrados 5ªA descendente (no baixo)
Maldição (elementos assustadores) tremolo, muitas dissonâncias 5ªA descendente (no baixo)
Dúvida, Indecisão estruturas irregulares, quebradas 7ªm ascendente
Ansiedade aceleração do tempo cromatismo ascendente
Patético mudanças de tempo e estrutura 2ªM ascendente

55
Conceitos retirados especialmente de: KRAUSE, Christian Gottfried. Von der musikalischen poesie, 1752.
56
Conceitos retirados especialmente de: KIRNBERGER, Johann Philipp. Die kunst der Reien Satzes, 1771.
81

A seguir está apresentada a análise do primeiro movimento da Sinfonia de Praga K


504, de Mozart, por Ratner:

A introdução mais impressionante na música clássica abre a Sinfonia de Praga, n. º


38, em Ré maior, K. 504, de Mozart, de 1786. Esta seção compreende 36
compassos de um tempo em adagio com métrica 4/4. Mozart alcança, aqui, um
equilíbrio retórico peculiar entre as duas seções principais. (...) Tanto a
instabilidade retórica da parte I, centrada em Ré maior, quanto a regularidade da
parte II, com a instabilidade harmônica alcançada pela mudança de modo,
contribuem para o acréscimo de tensão que prepara o Allegro, resolvendo somente
no sétimo compasso deste Allegro (ibid., p. 315).

Análise do Adagio introdutório (ibid., p. 315):

Parte I (c. 1-15) Parte II (c. 16-36)


Ré maior Ré menor
Ritmos irregulares Ritmo irregular
Mudanças de afeto Um único afeto – ombra (italiano, sobrenatural)
Cadências deceptivas Dirige-se para uma semicadência

Primeira parte da Introdução (ibid., p. 104-105):


82

Ex. 16: L. Ratner, análise da parte I da introdução do primeiro movimento da Sinfonia de Praga de Mozart
83

Segunda parte da Introdução (ibid., p. 316):

Ex. 17: L. Ratner, análise da parte II da introdução do primeiro movimento da Sinfonia de Praga de Mozart

Análise dos tópicos existentes no Allegro (ibid., p. 27-28):

Tópico Compassos
1. Estilo cantante, alla breve 37-40
1. Estilo Brilhante, culto 41-42
2. Fanfarra I 43-44
3. Estilo cantante, culto 45-48
4. Alla breve, estilo brilhante 49-50
5. Estilo brilhante, culto 51-54
6. Estilo brilhante, stile legato modificado 55-62
7. Fanfarra II 53-65
8. Estilo brilhante 66-68
9. Floreio cadencial (novo material) 69-70
10. Estilo cantante 71-74
11. Alla breve, estilo brilhante 75-76
12. Estilo culto, brilhante, alla breve 77-87
13. Sturm und Drang 88-94
14. Estilo cantante, depois um trecho em estilo culto 95-120
84

Abaixo é apresentado um quadro com a síntese da interpretação dos tópicos de


representação dos Prelúdios Op. 28 de F. Chopin, na visão de Alfred Cortot (1986, p. 35-41):

Prelúdio N.º 1 – espera febricitante da amada;


Prelúdio N.º 2 – meditação dolorosa, o mar deserto ao longe;
Prelúdio N.º 3 – o canto do regato;
Prelúdio N.º 4 – sobre um túmulo;
Prelúdio N.º 5 – a árvore cheia de cantos;
Prelúdio N.º 6 – o mal dos pais;
Prelúdio N.º 7 – as recordações deliciosas voam como perfume através da memória;
Prelúdio N.º 8 – a neve tomba, o vento uiva, a tempestade se desencadeia, mas em
meu triste coração a tempestade é mais terrível ainda;
Prelúdio N.º 9 – finis poloniae;
Prelúdio N.º 10 – chuva de foguetes;
Prelúdio N.º 11 – desejo de moça;
Prelúdio N.º 12 – cavalgada noturna;
Prelúdio N.º 13 – sob um sol estranho, numa noite estrelada, com o pensamento na
bem-amada ausente;
Prelúdio N.º 14 – mar tempestuoso;
Prelúdio N.º 15 - ... mas a morte lá está, na sombra...
Prelúdio N.º 16 – a carreira para o abismo;
Prelúdio N.º 17 – ela me disse: ‘eu te amo’.
Prelúdio N.º 18 – imprecações;
Prelúdio N.º 19 – as asas, as asas, para ir até ti, minha bem-amada!;
Prelúdio N.º 20 – funerais;
Prelúdio N.º 21 – retorno solitário ao lugar das confissões;
Prelúdio N.º 22 – revolta;
Prelúdio N.º 23 – as náiades brincam;
Prelúdio N.º 24 – do sangue, da volúpia, da morte.
85

6. BIBLIOGRAFIA

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