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Casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Vou começar por recorrer ao princípio do dano de John Stuart Mill assim se aceitamos o
princípio do dano, então o que é importante é discutir se o casamento entre homossexuais ou a
adopção por parte de homossexuais causam dano a alguém.

A homossexualidade é imoral

É preciso notar que nem todas as coisas que são imorais devem ser proibidas por lei (faltar a um
encontro com um amigo e não avisar por preguiça é imoral, mas não deve ser proibido por lei);
logo, mesmo que a homossexualidade fosse imoral, isso não seria suficiente para proibir as
relações homossexuais ou para deixar de legalizar os casamentos entre homossexuais.

Note-se, entretanto, uma linha de argumentação bastante estranha, mas comum: há quem
argumente que os casamentos entre homossexuais não devem ser legalizados, porque a
homossexualidade é imoral, mas ao mesmo tempo não ache que os comportamentos
homossexuais em si devam ser proibidos, porque dizem apenas respeito aos próprios! Como se
vê, a argumentação aqui é algo confusa. Pensemos nisto:

1. Se, por um lado, se acha que a homossexualidade é imoral, e se apresenta isso como
uma razão para não legalizar os casamentos entre homossexuais, então por que não
constituiria também uma razão para proibir os comportamentos homossexuais?
2. Se, por outro lado, se acha que os comportamentos homossexuais apenas dizem respeito
aos próprios, e se toma isso como uma razão para não proibir os comportamentos
homossexuais, então por que não constituiria também uma razão para legalizar os
casamentos entre homossexuais?

Pode-se assim ver que esta linha de argumentação não é apenas estranha: é inconsistente. E
parece ter por trás uma atitude algo hipócrita: não devemos interferir com as relações
homossexuais existentes (desde que sejam secretas, presumivelmente), mas também não
devemos oficializá-las legalmente, como sucede com as relações heterossexuais.

O casamento serve para procriar

Este é um mau argumento porque, de modo a sermos coerentes, se não legalizássemos os


casamentos entre homossexuais porque o casamento serve para procriar e os homossexuais não
podem procriar, então deveríamos também proibir as pessoas estéreis de se casar. Mas não se
deve proibir as pessoas estéreis de se casar. Logo, o simples facto de os homossexuais não
poderem procriar não é uma boa razão para que sejam proibidos de se casar.
Segundo outra versão deste argumento, a legalização do casamento entre homossexuais
constituiria um ataque à família. Este argumento, cujos contornos não são inteiramente claros, e
que, além do mais, parece ter por detrás uma vontade da igreja católica de interferir
ilegitimamente na vida de não crentes, parece partir do pressuposto dúbio de que legalizar os
casamentos entre homossexuais constituiria um desincentivo à procriação e à formação de
relações heterossexuais. Mas os homossexuais não se sentem atraídos por pessoas do sexo
oposto, pelo que não legalizar o casamento entre homossexuais não os levará, certamente, a
fazer algo que de outro modo não fariam. Dizer que a legalização do casamento entre
homossexuais constitui um desincentivo à formação de relações heterossexuais é tão ridículo
como dizer que dar gelado de chocolate às pessoas que adoram gelado de chocolate, mas
detestam patê constitui um desincentivo ao consumo de patê.

A homossexualidade é imoral, e viver com um casal homossexual pode fazer que a criança se
torne homossexual
Este é um mau argumento por duas razões. Em primeiro lugar, parece falso que o facto de ter
pais homossexuais possa levar uma criança a tornar-se homossexual. Afinal, a maior parte dos
homossexuais são filhos de casais heterossexuais, mas não se tornaram por isso heterossexuais.
Que razão temos, então, para pensar que o facto de crianças heterossexuais serem educadas por
casais homossexuais as levaria a tornar-se homossexuais?
Em segundo lugar, suponhamos que, contra todas as aparências, por mais improvável que
pareça, serem educadas por um casal homossexual leva as crianças a tornar-se homossexuais. E
daí? Ser educada por um casal rabugento, ou que goste de música pimba, pode levar uma a
criança a tornar-se rabugenta ou a gostar de música pimba. Será essa uma razão para impedir
que pessoas rabugentas ou que gostem de música pimba adoptem crianças? É óbvio que não. Do
mesmo modo, mesmo que ser educada por um casal homossexual levasse a que uma criança se
tornasse homossexual — o que, como disse, é altamente improvável — essa não seria uma boa
razão para impedir a adopção por parte de casais homossexuais. Só pode pensar o contrário
quem estiver a partir do princípio de que o estado deve tomar posição sobre que estilos de vida
considera melhores, favorecendo-os em detrimento de outros. Mas o estado não deve fazê-lo.

Independentemente de a homossexualidade ser ou não imoral, pode-se ver pelo comportamento


de todas as outras espécies da natureza que as crianças devem ser educadas por um pai e por
uma mãe

Este é um mau argumento porque, de modo a sermos coerentes, se não permitíssemos que um
casal homossexual adoptasse uma criança porque as crianças devem ser educadas por um pai e
por uma mãe, então deveríamos retirar a custódia dos filhos aos divorciados, aos viúvos e aos
pais solteiros. Como é óbvio, não devemos fazê-lo. Logo, o argumento não funciona.

Mesmo que a homossexualidade não fosse imoral e que uma criança pudesse ser feliz com um
casal homossexual, há que levar em conta que tal criança seria gozada pelas outras, o que
constituiria uma experiência traumática para esta.

Segundo este argumento, ao adoptar uma criança, um casal homossexual está a causar-lhe dano
porque a expõe à crueldade das outras crianças. Para ver que este é um mau argumento, basta
pensar no seguinte: uma criança branca que fosse adoptada por pais negros na América ou na
África do Sul, quando ainda havia segregação racial, seria gozada pelas outras crianças. Seria
essa uma razão para impedir que pais negros adoptassem uma criança branca? É óbvio que não.
Nem seria preciso dar um exemplo tão extremo. Basta pensar nisto: as crianças podem ser
muito cruéis, e provocam-se frequentemente por razões mesquinhas e lamentáveis. Não é difícil
imaginar crianças a gozar outras crianças por terem pais numa cadeira de rodas ou cegos. No
entanto, obviamente, essa não é uma boa razão para impedir que pessoas cegas ou que estejam
numa cadeira de rodas adotem crianças.
Não devemos estar reféns da crueldade inevitável das crianças ou da existência de
preconceitos arreigados.

Conclusão

A vontade de impedir a legalização do casamento entre homossexuais e da adopção por parte de


homossexuais deriva, em grande medida, de uma tendência lamentável para tentar impor aos
outros o estilo de vida que consideramos melhor — uma tendência infelizmente entranhada na
sociedade portuguesa. Gostaria de terminar com uma citação de Mill, que sintetiza o espírito por
detrás da defesa da legalização do casamento entre homossexuais e da adopção por parte de
homossexuais:

“A única liberdade que merece o nome, é a liberdade de procurar o nosso próprio bem à nossa
própria maneira, desde que não tentemos privar os outros do seu bem, ou colocar obstáculos aos
seus esforços para o alcançar. Cada qual é o justo guardião da sua própria saúde, tanto física,
como mental e espiritual. As pessoas têm mais a ganhar em deixar que cada um viva como lhe
parece bem a si, do que forçando cada um a viver como parece bem aos outros”.

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