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CLASSIFICAÇÃO DA OBRA

A obra Frei Luís de Sousa nã o é exemplo típico nem de uma tragédia clá ssica nem
de um drama româ ntico. É uma obra híbrida, a nível da classificaçã o quanto à sua
natureza. O pró prio Almeida Garrett o diz na Memó ria ao Conservató rio Real, texto
onde faz a apresentaçã o da sua peça: "Contento-me para a minha obra com o título
de drama; só peço que a nã o julguem pelas leis que regem, ou devem reger, essa
composiçã o de forma e índole nova; porque a minha, se na forma desmerece da
categoria, pela índole há -de ficar pertencendo sempre ao antigo género trá gico."
A tragédia grega é a histó ria de um fado que brinca com os homens: é típico o caso
de É dipo. Os homens bem fazem, bem fogem, bem inventam desculpas e
subterfú gios - vale tanto como nada. Eles pró prios sabem, muito embora finjam o
contrá rio, que o destino os virá colher na rede. E pouco a pouco a face deles, que se
fingia despreocupada, vai-se cavando e petrificando nas rugas do terror. Ora é este
destino que se aproxima passo a passo e este terror crescente dos humanos que se
sabem colhidos na rede da histó ria que Garrett nos conta no Frei Luís de Sousa. Por
isso mesmo, o drama quase nã o tem enredo. Logo de começo se sabe o que vai
acontecer; o desfecho é evidente e nã o interessa ao autor torná -lo incerto por meio
de uma intriga complicada. Interessa-lhe antes contar o terror e o pasmo dos
homens ante esse desfecho garantido de antemã o. A ú nica acçã o movimentada - a
resistência de Manuel de Sousa aos regentes e o incêndio de sua casa - serve para
encaminhar as personagens ao ponto preciso em que o destino as quer apanhar: a
casa do pró prio D. Joã o de Portugal, à vista do seu retrato. Em vã o D. Madalena
resiste, em vã o Manuel de Sousa sossega, tentando conjurar o destino pela
ignorâ ncia inocente do que todos sabem que vai acontecer.

ELEMENTOS TRÁGICOS

Podemos dizer que Frei Luís de Sousa é uma tragédia, quanto ao assunto:


• parte do tema – ilegitimidade de Maria (adultério);
• a classe social dos protagonistas: pessoas de estirpe elevada, de cará cter justo e
íntegro, sobre as quais recai a desgraça;
• a existência de um conflito interior vivido essencialmente pelas personagens de
D. Madalena de Vilhena e de Telmo;
• o desafio ao destino (hibris) : feito por D. Madalena e Manuel de Sousa Coutinho,
quando casam sem a certeza absoluta de que D. Joã o estava morto; Manuel de
Sousa, incendiando o palá cio;
• o sofrimento (pathos) como uma constante ao longo da obra, especialmente
vivido por D. Madalena;
• a criaçã o de uma atmosfera de temor: os pressá gios de Telmo, as datas, o
incêndio do retrato de Manuel de Sousa Coutinho;
• o papel do destino, entidade à qual o homem nã o pode fugir;
• a peripécia: o incêndio do palá cio de Manuel de Sousa Coutinho, o que vai
originar a ida da família para o palá cio de D. Joã o, aonde este se dirige
imediatamente mal chega a Portugal, sem tempo para se inteirar bem de todos os
aspectos da situaçã o;
• o reconhecimento de uma personagem (agnorisis): o Romeiro como D. Joã o de
Portugal;
• uma fatalidade (a desonra de uma família, equivalente à morte moral), que o
pú blico/leitor vislumbra logo na primeira cena, cai gradualmente sobre Madalena
até ao clímax (a revelaçã o da identidade do Romeiro), a partir do qual o desenlace
trá gico se torna irreversível, atingindo todas as restantes personagens;
• a catá strofe: a morte de uma vítima inocente, D. Maria, a ida dos seus pais para o
convento (morte para o mundo), a destruiçã o psíquica de Telmo e o sofrimento de
D. Joã o;
• a catarse: o sentimento de terror e piedade provocado nos espectadores,
levando-os à aprendizagem de uma liçã o, à purificaçã o espiritual;
• Telmo, dizendo verdades duras à protagonista, e Frei Jorge tendo sempre uma
palavra de conforto, parecem o coro grego.

ASPECTOS EM QUE A OBRA SE AFASTA DA TRAGÉDIA CLÁSSICA:


• o facto de estar escrita em prosa (a tragédia clá ssica era em verso);
• a utilizaçã o de um registo de língua coloquial, fluente, pró ximo da realidade
(diferente do tom solene e vocabulá rio culto da tragédia clá ssica);
• o facto de ter três actos e nã o cinco;
• o desrespeito pela lei das três unidades: há apenas unidade de acçã o, mas nã o há
unidade de espaço (o 1.º acto passa-se no palá cio de Manuel de Sousa Coutinho, o
2.º no de D. Joã o de Portugal e o 3.º na parte baixa deste palá cio e na igreja de S.
Paulo), nem de tempo (os acontecimentos nã o se dã o num dia – má ximo de 24
horas - mas sim numa semana);
• a supressã o da personagem do Coro, que tinha a funçã o de prever e comentar os
acontecimentos, embora se considere que Telmo desempenha parte dessas
funçõ es;
• o assunto, que nã o diz respeito à s lendas ou histó rias da Antiguidade Clá ssica,
mas é, sim, um assunto retirado da realidade do seu país, com actualidade e com
fundo histó rico.

QUAIS OS FACTORES QUE CONTRIBUEM PARA A DENOMINAR DE "DRAMA"?

Sã o precisamente estes seis, em que se afasta da tragédia clá ssica e reflecte as


características do drama de proximidade com a realidade.
Como se pode depreender dos tó picos apresentados, esta obra está muito mais
pró xima da tragédia do que do drama. Garrett apenas nã o a denominou assim
porque o género tragédia tinha tal solenidade e conjunto rígido de regras que o
autor preferiu a prudência de uma designaçã o menos prestigiosa, o que lhe
pouparia algumas críticas.

O ROMANTISMO NA OBRA

• a crença no sebastianismo alimentado por Telmo e Maria;


• o patriotismo e nacionalismo - além do que decorre do Sebastianismo, deve-se ter
em conta o comportamento de Manuel de Sousa Coutinho ao incendiar o seu
pró prio palá cio para impedir que fosse ocupado pelos Governadores ao serviço de
Castela;
• exaltaçã o do sentimento da liberdade individual dos cidadã os e consequente
condenaçã o do absolutismo político. O incêndio provocado por Manuel de Sousa no
seu pró prio palá cio, se nã o liberta efectivamente a Pá tria oprimida, tem, pelo
menos, na sua inú til beleza, a força de um símbolo e de um exemplo;
• a crença em agouros, em dias aziagos, em superstiçõ es - alimentadas por
Madalena, Telmo e Maria, que, sistematicamente, aludem a agouros, visõ es,
sonhos;
• as visõ es de Maria, os seus sonhos, o seu idealismo patrió tico;
• sentimentos nobres;
• a religiã o surge como refú gio e consolaçã o para as almas atormentadas pelo
pecado;
• gosto do teatral e espectacular, capaz de comover a sensibilidade das grandes
massas de espectadores. Recordem-se os finais dos actos (incêndio do palá cio, o
"Ninguém..." do Romeiro, cerimó nia da tomada do há bito de Manuel de Sousa e D.
Madalena).
• linguagem elegante e cuidada;
• Maria é uma figura româ ntica de sensibilidade doentia e grande imaginaçã o;
• tema da morte - a morte como soluçã o dos conflitos é um tema privilegiado pelos
româ nticos; no caso do Frei Luís de Sousa, verifica-se:
• a morte física de Maria (morre tuberculosa);
• a morte simbó lica de Madalena e de Manuel, que, ao tomarem o há bito, morrem
para a vida mundana;
• morte simbó lica de D. Joã o de Portugal que, depois de admitir que morreu no dia
em que sua mulher o julgou morto, simbolicamente, morre uma segunda vez,
quando Telmo, depois de lhe ter desejado a morte física como ú nica maneira de
salvar a sua menina, o seu anjo (Maria), aceita colaborar com o Romeiro no sentido
de afirmar que se trata de um impostor, numa ú ltima tentativa de evitar a
catá strofe;
• morte psicoló gica de Telmo.
Barreiros, Antó nio José, História da Literatura Portuguesa, vol. II

PERSONAGENS
Madalena
Esta senhora é, como outras que Garrett retratou, vítima de um amor contrariado
que casou com um homem a quem só tinha respeito, D. Joã o de Portugal, quando
afinal amava outro, Manuel de Sousa Coutinho. Mas amou-o ainda em vida do
marido. Nã o seria esse amor cego que a levou a contrair segundas nú pcias com
tanta leviandade? Esse será o maior espinho a rasgar-lhe o peito, como confessou a
Frei Jorge. Madalena é quem mais sofre. As palavras de Telmo, o sebastianismo da
filha, a mudança de casa, a coincidência de datas, tudo se conjuga para que se
adense cada vez mais a desgraça que desabará , tremenda, sobre a sua cabeça.
Vemo-la em conflito constante com os restantes personagens: com Telmo, por
acreditar na vinda de D. Joã o; com Maria, por ter ideias sebastianistas; com Manuel,
por a obrigar a mudar de casa.
Em D. Madalena, os sentimentos dominam a razã o:
- Para ela, é inaceitá vel que o sentimento do amor de Deus possa conduzir ao
sacrifício do amor humano; até ao limite, tenta dissuadir o marido da tomada do
há bito, só se resignando quando tem a certeza de que ele já foi;
- Apesar de nã o se duvidar do seu amor de mã e, é nela mais forte o amor de
mulher, ao contrá rio do que acontece com Manuel de Sousa Coutinho, que se
mostra muito mais preocupado com a filha do que com a mulher.

MANUEL DE SOUSA COUTINHO


Manuel de Sousa é o tipo de homem clá ssico, dominado pelos ditames da razã o. Um
aristocrata de sangue e de espírito, cheio de calma nos piores momentos, que sabe
bem qual o caminho a trilhar.
Nunca duvida, nunca hesita. Só o esmaga, no III acto, o sofrimento causado pela
visionada desonra da filha.
No acto I, assume uma atitude condizente com um espírito clá ssico, deixando
transparecer uma serenidade e um equilíbrio pró prios de uma razã o que domina
os sentimentos e que se manifesta num discurso expositivo e numa linguagem
cuidada e erudita: revela-se patriota, corajoso e decidido; nã o sente ciú mes pelo
passado de Madalena;
No acto III, evidencia uma postura acentuadamente româ ntica: a dor, apó s a
chegada do Romeiro, parece ofuscar-lhe a razã o, tal é a forma como exterioriza os
seus sentimentos, fazendo-o de uma forma um tanto violenta, descontrolada e, por
vezes, até contraditó ria (a razã o leva-o a desejar a morte da filha e o amor impele-o
a contrariar a razã o e a suplicar desesperadamente pela sua vida);
Pode-se, pois, concluir que esta personagem, do ponto de vista psicoló gico, evolui
de uma personalidade de tipo clá ssico (actos I e II) para uma personalidade de tipo
româ ntico (acto III).

FREI JORGE

Frei Jorge, colocado no drama para desempenhar um papel secundá rio, é o


consolador e moderador dos extremos de D. Madalena. O reconhecimento do
Romeiro, junto do retrato, envolveu-o repentinamente na tragédia que atingia o
irmã o e a cunhada.

TELMO

Tal como Manuel de Sousa, é um homem dos antigos. Amigo de D. Joã o, que
trouxera ao colo, admira o segundo marido de D. Madalena com entusiasmo, por
ser um português à s direitas, mas nã o se conforma com a situaçã o.
O conflito psicoló gico suscitado pelos dilemas perante os quais sã o colocadas as
personagens realiza-se particularmente na figura de Telmo Pais. Telmo tem de
escolher entre Maria, que ele criou, e D. Joã o, que ele também criou e a quem deve,
além disso, fidelidade de escudeiro.
Há um pormenor que o transforma em vítima: o amor a Maria. Esse amor levará
Telmo a desfazer num momento todos os sonhos da sua vida. Sempre ansiara pela
vinda de D. Joã o. Mil vezes protestara a Madalena que ele viria. Agora que chegou,
presta-se ao papel de o ocultar. Por amor da «sua menina», prontifica-se a dizer
que o Romeiro é um impostor. Ele vira-o, conhecera-o. E vai dizer que está morto.
É como se o matasse e como se matasse a ú nica razã o que o segurava ainda ao
mundo, ao mesmo tempo.
Representa o coro da tragédia, fiel, confiante, supersticioso, sebastianista, humilde,
enorme sabedoria.

MARIA
Esta personagem é uma criaçã o româ ntica extraordiná ria. Acredita em sonhos, em
visõ es, nas tradiçõ es populares, gosta de ler romances, entusiasma-se com o
patriotismo a ponto de desejar ter nascido homem, só para poder lutar pela Pá tria,
pelo seu gosto do romanesco, da fantasia, do folclore (imagina acontecimentos
misteriosos, coisas lindas mas terríveis, acredita em agouros e superstiçõ es,
desejaria ver uma batalha, extasia-se com a beleza horrível do incêndio, lê
apaixonadamente romances populares, crê no regresso de D. Sebastiã o).
Precocemente inteligente, ultrapassa os ensinamentos de Telmo e as meias
palavras que todos proferem em casa para ocultar-lhe uma verdade terrível.
Prepara-se para a desgraça que vai cair sobre a sua infâ ncia, e é patética na cena
final do drama por ser uma vítima inocente da sociedade cujas exigências nã o pode
compreender.
É uma personagem idealizada - a ingenuidade, a pureza, a meiguice, pró prios duma
alma infantil, e a inteligência, a experiência, a cultura, a intuiçã o, a sensibilidade
exaltada, características de um espírito adulto, confluem numa personagem pouco
real, protó tipo da mulher-anjo, tã o do agrado dos româ nticos. Maria é demasiado
angélica para ser verdadeira.
Alguns traços caracterizadores de Maria:
• culto sebastianista
• dom da profecia
• cultura
• coragem, ingenuidade e pureza
• a tuberculose pulmonar, doença que ataca geralmente pessoas jovens, muito
vulgar no séc. XIX, impressionou especialmente os escritores româ nticos;

D. JOÃO DE PORTUGAL

Parece um espectro que vem do outro mundo para aterrar vivos e vingar todo o
mal cometido. Mas a sede de vingança confunde-se com o amor e com o
sofrimento. O sofrimento dos outros, que a princípio lhe parecia insignificante
comparado com o seu, acaba por comovê-lo e entã o pede ao seu maior amigo que
lhe arranque a vida que veio mostrar, declarando que D. Joã o de Portugal é morto,
que ele, o Romeiro, o ninguém apontado a Frei Jorge, nã o passa de um embusteiro,
de um mentiroso.
A tragédia nã o poupou nenhuma personagem. Cada uma a seu modo, todas
tiveram razoá vel quinhã o na desgraça, na dor imensa em que culmina o drama.
D. Joã o de Portugal apresenta:
- Uma existência abstracta (uma espécie de fantasma omnipresente) até à cena XII
do acto II, inclusive, permanecendo em cena através dos receios evocativos de
Madalena, da crença de Telmo em relaçã o ao seu regresso e do sebastianismo de
Maria (se D. Sebastiã o pode regressar, o mesmo pode acontecer em relaçã o a D.
Joã o de Portugal);
- Uma existência concreta a partir da cena XIII do acto II: regressa a Portugal ao fim
de 21 anos, depois de ter passado 20 em cativeiro em Á frica, surgindo na figura do
Romeiro (mesmo assim, a sua identidade só é revelada no final do acto II);
- Procura interferir voluntariamente na acçã o dramá tica, tentando impedir, com a
cumplicidade de Telmo, a entrada em há bito de Madalena e de Manuel de Sousa;

ESPAÇO

O espaço vai-se reduzindo: Á frica - Europa – Portugal - Lisboa - Almada - I palá cio –
II palá cio
TEMPO

O tempo vai-se reduzindo também, fechando-se dramaticamente em unidades cada


vez mais curtas.
1578 – Madalena casa com D. Joã o. Madalena conhece Manuel de Sousa.
1578 e 1585 – Madalena procura assegurar-se da morte de D. Joã o
1585 e 1599 – Madalena casa com M. de Sousa.
1598 a 1599 ( 1 ano ) – D. Joã o é libertado dirige-se para Portugal
28 de Julho a 4 de Agosto ( 8 dias ) – Madalena vive de novo no palá cio de D. Joã o.
Agosto (3 dias ) – D. Joã o apressa-se para chegar
4 de Agosto ( hoje ) – é um dia fatal para Madalena

ESTRUTURA INTERNA DA OBRA


O conflito vai-se desenrolando e tornando cada vez mais angustiante pela sucessã o
destas três acçõ es fundamentais:
- o incêndio do palá cio de Manuel de Sousa e a destruiçã o do seu retrato (fim do 1º
acto);
- a mudança para o palá cio de D. Joã o de Portugal e a chegada deste na pessoa do
Romeiro (2º acto);
- a morte de Maria e a tomada de há bito de Manuel de Sousa e de D. Madalena (fim
do 3º acto).

ESTRUTURA EXTERNA DA OBRA


Está dividida em três actos e cada acto em cenas (o 1º acto tem 12 cenas; o 2º acto
tem 15 e o 3º acto tem 12).

LINGUAGEM E ESTILO

O diá logo colocado por Garrett na boca das personagens é moderno e româ ntico.
A linguagem flui com aparente despreocupaçã o. Entrecortada com reticências, com
elipses contínuas, retrata os movimentos das personagens em sucessivas
interrogaçõ es e exclamaçõ es.
Silêncios e pausas dizem à s vezes mais do que as palavras. O tom oral sobressai em
repetiçõ es vocabulares e frá sicas.

INTENÇÃO CRÍTICA

Obra de cará cter político associada à crise que Portugal atravessava.


Esperança na ressurreiçã o da pá tria que sofria a decadência dos ideais liberais.

O SEBASTIANISMO
No Frei Luís de Sousa, o mito sebastianista alimenta, desde o início, o conflito vivido
pelas personagens, na medida em que a admissã o do regresso de D. Sebastiã o
implicava idêntica possibilidade da vinda de D. Joã o de Portugal, que combatera ao
lado do rei na batalha de Alcá cer Quibir, o que, desde logo, colocaria em causa a
legitimidade do segundo casamento de D. Madalena.
Nã o é inocente, nem fruto do acaso, o facto de Garrett ter concebido que Madalena
aparecesse em cena justamente a ler Os Lusíadas. Efectivamente, tal facto está
também associado ao mito sebastianista que, deste modo, marca a obra desde o
seu início.
Quem se encarregará , pois, de dar corpo a tal mito? Telmo Pais, o velho aio de D.
Joã o e em cuja morte nã o acredita, e Maria, educada por Telmo.
Logo na segunda cena se revela com clareza todo o significado do mito
«sebastianista».
Fundem-se os dois motivos de regresso quando Madalena diz a Telmo: «mas as
tuas palavras misteriosas, as tuas alusõ es frequentes a esse desgraçado rei D.
Sebastiã o, que o seu mais desgraçado povo ainda nã o quis acreditar que morresse,
por quem ainda espera em sua leal incredulidade, esses contínuos agouros em que
andas sempre de uma desgraça que está iminente sobre a nossa família…» Na
mesma frase ligam-se dois motivos!
No Sebastianismo, como é representado no Frei Luís de Sousa por Telmo e Maria
(“o nosso santo rei”, diz Maria em I, 3), reside nã o somente a crença em que o rei
ao voltar conduzirá a uma época de brilho para Portugal. Infiltram-se nele
concepçõ es messiâ nicas mais antigas e relativas ao fim pró ximo do mundo. O
regresso que se realiza no Frei Luís de Sousa é, visto de lá - e temos de o ver assim,
segundo a vontade da pró pria obra - um anti-regresso. Nã o leva à redençã o, mas à
catá strofe, e nã o é uma «graça», mas sim uma «desgraça». Paira à volta do regresso
destruidor de D. Joã o de Portugal. No acto III, cena XI, chama Maria a D. Joã o
«homem do outro mundo», «anjo terrível», falando das suas visõ es. E quando, na
cena seguinte, o vê e ouve, ela grita: «É aquela voz, é ele, é ele!» É como se Garrett
tivesse duvidado dos efeitos adequados do motivo «sebastianista» por si só . Deve-
se, em todo o caso, à quele motivo uma boa parte da grandeza pró pria do Frei Luís
de Sousa.
WOLFANG KAYSER; in Aná lise e Interpretaçã o da Obra Literá ria; Vol. 11, 5.' ed.,
1970

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