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WALNICE NOGUEIRA GALVÃO

Euclides da Cunha,
precursor

WALNICE
NOGUEIRA GALVÃO
é professora da
FFLCH-USP e autora
de, entre outros,
Guimarães Rosa
(Publifolha).
C
omo para comprovar que a história é feita de paradoxos, Euclides da Cunha,

ateu e antirreligioso, é o autor de um livro que viria a se tornar peça-chave

dos estudos sobre nosso messianismo.

Sua obra será imperfeitamente compreendida se não for colocada contra o

pano de fundo da Escola Militar, instituição de que foi um dos mais característicos

frutos. Uma das primeiras de nível superior a serem instaladas no país, copiava o

modelo da Polytechnique, realização da Revolução Francesa. Tinha por objetivo

formar oficiais e engenheiros para os serviços públicos civis, como construção de

estradas, portos e pontes. É visível a influência da Ilustração, sobretudo graças à

inclusão nos currículos das ciências físicas e naturais, então uma novidade. Fun-

dava-se assim na remota colônia um centro de altos estudos de modelo ilustrado,

o que teria consequências imprevisíveis.

A década que precede a Abolição e a República seria a de mais notável parti-

cipação da Escola Militar na vida pública do país. As causas em que se empenha

são o abolicionismo e o republicanismo, que, conjuntamente, levarão à queda do

regime e à implantação da República.

A geração da Escola Militar a que pertenceu Euclides é aquela que viveu em

cheio a renovação de todas as ideias. Religião católica, instituições monárquicas,

escravidão, prestígio da grande propriedade rural, ecletismo filosófico e espiritua-

lismo, romantismo artístico-literário, tudo isso seria levado de roldão por “um

bando de ideias novas”, nos termos de Sílvio Romero e João Cruz Costa. Os dias

do Antigo Regime estavam contados. É nesse período de extraordinário ativismo

político que Euclides se torna aluno.

Passado esse interregno tumultuoso, Euclides acabará por deixar o exército

em 1896, aos 30 anos. Fará carreira como engenheiro funcionário público, embora
atraído pela política e pelo magistério; desamparo milhares de ex-escravos, muitos
quando morreu, aos 43 anos, era finalmente dos quais iriam engrossar as hostes conselhei-
professor. Jamais deixaria de lutar para ter ristas. Tudo isso constituindo húmus propício
um papel mais direto, e não só técnico, nos ao surgimento de líderes messiânicos e de
destinos da República. cortejos de retirantes.
Em outra fase de sua vida, viria a es- Quando começou a chamar a atenção,
crever Os Sertões, livro no qual procura Antonio Conselheiro já se tinha transfor-
combinar duas vertentes de pensamento. A mado num penitente ou, como passaria a
primeira é nitidamente determinista, vinda assinar, “O Peregrino”. Certos traços pas-
da Inglaterra com Buckle e da França com sarão a ser reiterados quando dele falam:
Taine, influências hegemônicas no Brasil seu tipo físico de sertanejo, com barba e
da viragem de século. É consabido que o cabelo compridos; o hábito azul de brim
esquema de montagem do livro obedece aos americano; a aparência desmazelada; o
ditames analíticos de raça, meio e momento. regime ascético, pelo qual se privava de
Concorrem para essa linha, extrapolados carne, jejuava e dormia no chão; as obras
das ciências naturais e exatas para os fe- de construção e restauração em que se
nômenos sociais, o evolucionismo spence- empenhava; o carisma – e, naturalmente,
riano, o darwinismo racial e o positivismo o perigo para a ordem constituída.
de Comte e de Littré. A segunda vertente Já ia completar duas décadas sua pere-
deriva da concepção dos heróis segundo grinação quando houve o primeiro desafio
Carlyle, justificados por esse autor como aberto dos retirantes capitaneados pelo
encarnações do espírito divino que levam Conselheiro às forças policiais, o que se
a história avante: o que se acomoda mal deu em Masseté, no sertão da Bahia, em
com o ideário positivista, anticlerical e até consequência de uma de suas iniciativas pú-
antirreligioso de Euclides. blicas, com sobretons políticos. Foi quando
A partir desse quadro teórico, ou apesar liderou em Bom Conselho, Itapicuru, Soure,
dele, Os Sertões coloca-se como um livro Amparo e Bom Jesus, tudo no lapso de oito
precursor, posto na raiz do desenvolvimento dias, em 1893, uma queima das tábuas com
das ciências sociais brasileiras nos anos de os editais dos novos impostos republicanos,
1930 e 1940. A coexistência de dois países os quais, como é óbvio, viriam sobrecar-
– um litorâneo e adiantado, o outro inte- regar de gravames a economia de penúria
riorano e atrasado –, lição aprendida em dos pobres. Por todo o final do Império,
Os Sertões, será mais tarde radicalizada em alastraram-se pelo Nordeste os motins po-
contradição ferrenha substituindo a noção pulares que receberam o nome genérico de
de coexistência. “Quebra-quilo”, pois o alvo das iras do povo
Esse foi o primeiro grande livro, com eram os padrões de pesos e medidas, bem
imediato êxito e divulgação, a trazer para como as tábuas de editais, em que os novos
a linha de frente do pensamento nacional a impostos se materializavam. Tratava-se de
indagação das razões do atraso do interior um ato aberto de desobediência civil; por
do país e desse país com relação a outros. causa disso, a polícia baiana foi chamada
e, no confronto, sairia derrotada.
A refrega de Masseté viria marcar um
ponto de inflexão e deve estar na raiz da
O BELO MONTE decisão de pôr um freio à errância, com o
subsequente assentamento em Canudos. A
Sucessivas secas assolaram o sertão na essa altura, o andarilho Conselheiro já era
segunda metade do século XIX e culminaram reconhecido pelas gentes do sertão como
na famigerada de 1877, causando uma crise um benemérito, que empenhava seu séquito
econômica sem precedentes e um saldo final em mutirões de boas obras.
que ultrapassou os 100 mil mortos. Some-se a As terras em que ficava Canudos não
isso o fim do cativeiro em 1888, que atirou ao eram desertas e ali se erguia um povoado

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com esse nome. Havia uma parca agricultura no sertão e por todo o interior do país, uma
de subsistência, consistindo principalmente religião festiva. Já anteriormente, na fase
de mandioca para farinha e de cana-de-açú- nômade, a entrada do séquito nos lugarejos
car para rapadura. Também, como até hoje, e povoados era assinalada pelo espoucar
criavam-se cabras, único vivente capaz de dos foguetes. Nada disso era incompatível
não perecer na caatinga sem água e sem com a austeridade preconizada pelo líder,
verdura. Era pouco, ou quase nada. da qual há abundantes testemunhos.
Mas nem todos eram miseráveis no sé- Havia dois ofícios religiosos diários, à
quito. Havia gente de posses, que liquidava madrugada e à noitinha, e periodicamente
seus bens para acompanhar o Peregrino. Em os conselhos, ou sermões de leigo, com
pouco tempo ergueu-se na praça das igrejas data marcada, para os quais acorria gente
um correr de casas, que ficou conhecido até de longe, ansiosa por ouvir a palavra
como a Rua das Casas Vermelhas, assim do Peregrino. Canudos tornou-se um
chamadas devido à cor das telhas, desta- centro de romaria, atraindo crentes que
cando-se visualmente do conjunto. ali chegavam para pedir audiência e fazer
Duas igrejas, por sua vez, defrontavam- doações. Mas o arraial mudaria seu per-
se de dois lados da praça. A primeira era a de fil à medida que a guerra se avizinhava,
Santo Antonio ou Igreja Velha, mais antiga, quando começaram a afluir voluntários
cujo orago era epônimo do Conselheiro, de todos os quadrantes. Seu número cres-
benzida e inaugurada provavelmente em ceria vertiginosamente após o início das
junho de 1893, coincidindo com o dia do hostilidades em 1896.
santo a 13, com grandes festas que incluíram Embora não fosse propriamente uma
casamentos de cidadãos locais. A segunda, comunidade igualitária, havendo distinção
a do Bom Jesus ou Igreja Nova, cujo arre- até visível entre mais ricos e mais pobres,
mate a conflagração impediria, era muito dada pela aparência das casas, alguns
mais ambiciosa e de maiores proporções. traços de igualdade havia, e certamente
Pode-se aquilatar a força simbólica dessas conferidos pela religião comum. O mais
invocações quando se sabe que o Peregrino marcante desses traços era a inexistência
também era chamado de Santo Antonio ou de propriedade privada da terra. Quem
Santo Antonio Aparecido, e Bom Jesus ou chegasse podia erguer seu barraco, sem
Bom Jesus Conselheiro. A antiga capelinha pagar nada a ninguém. Segundo teste-
de Nossa Senhora da Conceição, anterior munhos, a capela possuía como doação
à ereção de ambas as igrejas, passou a ser uma légua em quadro, que se dispunha
chamada de “Santuário”, preservando o em seu entorno, e era nessa terra que os
altar e abrigando inúmeras imagens de recém-chegados tinham permissão para se
santos. Num quartinho anexo morava o instalar. Alimentos, roupas e dinheiro eram
Conselheiro; e ali seria sepultado. recebidos em donativos pelo Conselheiro
Ao redor desse centro formado pelas resi- e repassados aos destituídos. Por toda a
dências dos abonados e pela praça das igrejas, duração do arraial, emissários percorreriam
divisavam-se poucos arruados, perdidos em o sertão solicitando esmolas em espécie
meio à aglomeração indistinta de casebres. ou em numerário, o conjunto das quais
Cobertos de folhas de icó, eram edificados era por ele administrado.
em taipa ou pau-a-pique, ou seja, barro re- Secundando o líder, havia a Guarda
forçado com galhos ou ramos, arquitetura Católica, constituída por 12 apóstolos.
comum a toda a população pobre do Brasil. Uniformizados, armados e municiados pelo
Os precários materiais de construção davam Conselheiro, dele recebiam soldo. Posta-
o tom à cidadela, tornando-a indistinguível vam-se de sentinela defronte ao Santuário,
tanto do chão quanto dos arredores, na mesma onde residia o Peregrino, revezando-se de
monotonia parda da caatinga. quatro em quatro horas.
Na vida cotidiana do arraial predomina- Em seguida, vinha a Companhia do
va a religião, embora fosse, como de hábito Bom Jesus ou Santa Companhia, bem mais

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numerosa. Contava cerca de mil cabeças, a um negociante de Juazeiro, de que eram
ou 800 homens e 200 mulheres, todos uni- bons fregueses. Todavia, o negociante
formizados em brim azul. Um cenáculo se recusou a entregar a madeira, e os
de beatas, chefiadas por uma mordoma, conselheiristas, revoltados, mandaram
cuidava da administração da residência do dizer que iriam buscar a encomenda
Conselheiro, no Santuário. Ele, conforme pessoalmente. Pedida proteção policial
se sabe, quase não comia, apenas o sufi- para Juazeiro ao governador, iniciaram-
ciente para se manter vivo mas em total se as hostilidades, que no total somariam
abstinência. quatro expedições.
Após o insucesso de duas expedições,
o governador da Bahia, que hesitava em
comprometer a soberania do estado, de-
AS HOSTILIDADES cidiu-se a apelar para o governo federal,
alegando que o problema era demasiado
As relações da Igreja Católica com grave para encontrar solução dentro da
o Conselheiro tinham sido indefinidas, esfera estadual de poderes. A 3a Expedição
no passado. Como ele não se arvorava a redundaria numa debandada e num desas-
sacerdote, não pregava dentro das igrejas tre, pois as tropas em fuga foram largando
nem ministrava os sacramentos, nada pelo caminho fardas, armas e munições.
usurpava. Além disso, seus mutirões para E que constituíram um maná caído do
reparar igrejas e cemitérios implicavam céu para os conselheiristas. Paupérrimos
poupança para a Igreja, que detinha essa e vivendo uma subsistência de mínimos
responsabilidade. E suas campanhas de vitais, não tinham arsenal que valesse
reavivamento, com realização de novenas a pena mencionar. Lutavam com armas
e trezenas, traziam ganhos para os padres, obsoletas, de armar pela boca, tendo por
que auferiam lucros para casar e batizar. munição pregos e pedregulhos.
Alguns vigários o detestavam, outros eram
seus amigos. O padre Vicente Sabino dos Hoje, há mais de cem anos de distân-
Santos, vigário do Cumbe próximo, tinha cia, e tendo-se noção tanto das reduzidas
até uma casa dentro do arraial. Mas essa dimensões do conflito quanto das reais
situação logo mudaria, e a Arquidiocese forças de que os conselheiristas dispu-
de Salvador enviaria uma missão de dois nham, não dá para fazer uma ideia do
padres capuchinhos, que ao regressar pânico que se alastrou pelo país. Não se
escreveram um relatório condenando sabia muito bem se a ameaça equivaleria
Canudos sem perdão. Daí em diante, não a uma invasão iminente por hordas estran-
mais poderiam contar com o beneplácito geiras ou a um cataclismo desencadeando
da Igreja, e esta se aliaria àqueles que forças da natureza. A opinião pública,
clamavam pelo extermínio. apavorada, passou a ser habilmente or-
questrada pelos jornais, sem dar-se conta
••• dessa manipulação até após o término da
guerra. A informação era tão tendenciosa
Aquela que seria uma verdadeira que antes mereceria ser chamada de de-
guerra, de um país inteiro contra um sinformação deliberada.
minúsculo povoado perdido no fundo do Convocada a toque de caixa, a 4a Ex-
sertão, começou de modo quase fortuito. pedição baseou-se no tripé tecnológico
Como a escassa vegetação da caatinga fornecido pela Revolução Industrial, que
não fornece madeira para construção, os passaria a definir a guerra moderna: trem,
canudenses tiveram que comprar fora o telégrafo e jornal. O novo tipo de conflito
tabuado de que necessitavam para a Igreja usaria a estrada de ferro para mobilizar
Nova, cuja edificação já ia adiantada. A massas de tropas através de vastos territó-
encomenda foi feita e previamente paga rios. Tal estratégia depende da instalação

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de uma linha de telégrafo até a base de
operações, para transmissão das ordens de
A LIÇÃO DA GUERRA
comando. E o jornal, valendo-se da rapidez
O fim da guerra provocou uma revira-
das comunicações via telégrafo, é arma no
volta de opinião. Por um lado descobriu-se
controle da opinião pública.
que só havia aquele foco, aliás irredutível, e
que nada tinha a ver com uma tentativa de
restauração da monarquia; por outro lado
divulgaram-se os métodos escusos adotados
A JORNADA DE EUCLIDES pelo exército, que degolara sistematicamen-
te os prisioneiros manietados.
Na qualidade de adido ao estado-
Assistiu-se a um mea culpa generaliza-
maior do ministro da Guerra viajava
do, que acometeu muita gente e encontraria
Euclides da Cunha, engenheiro-militar
sua forma mais altamente elaborada em Os
reformado no posto de tenente, dupli-
Sertões; o que, à parte seus indiscutíveis
cado de enviado especial do jornal O
méritos, tem muito a ver com seu êxito
Estado de S. Paulo. Primeiro fenômeno
imediato e a glória que cobriu seu autor.
de ampla cobertura de mídia no Brasil,
O fato é que o levante conselheirista
a Guerra de Canudos contou com muitos
tinha sido visto como uma irrupção de atra-
correspondentes, quase todos militares,
so, ignorância e superstição de um Brasil
a maioria beligerantes.
profundo numa nação moderna, que uma
Uma das posições ocupadas pelo exér-
fase de otimismo progressista trazido pela
cito no cerco ao arraial chamava-se Alto
extinção do trono e do cativeiro parecia
da Favela, e ali abundava uma planta com
anunciar. O que em parte explica por que
esse nome. O substantivo comum, tomado
todos se apressaram a renegar os canu-
à botânica e transformado em topônimo,
denses e a reivindicar irracionalmente seu
teria longa vida e passaria por outras
extermínio.
metamorfoses. De volta ao Rio, as tropas
Quanto ao exército, portara-se mal e
receberiam permissão para edificar seus
sua conduta fora norteada por um equí-
barracos nos morros desertos da cidade, ao
voco. O oficialato aprendia na Escola
primeiro dos quais dariam o nome de Morro Antonio
Militar a concepção, advinda da Revo-
da Favela, em lembrança do outro. Dali, o Conselheiro
lução Francesa, de que o soldado é um
topônimo novamente se tornaria substanti- em pintura de
“cidadão armado”. Sua missão seria mais
vo comum, mas mudando de significado,
civilizatória que bélica, devendo por isso Israel Pedrosa
para designar todo tipo de aglomeração
urbana de caráter precário.
Os canudenses destacaram-se pela es-
tratégia baseada em táticas de guerrilha,
notável pela originalidade e pelo talento
de aproveitar o menor acidente de terreno,
inclusive as duríssimas condições de vida
na caatinga. Lances de bravura invulgar
foram registrados por quem ali se achava.
Entretanto, a superioridade material das
tropas era esmagadora, e o poder de fogo
dos rebeldes foi silenciando.
O arraial resistiu até o dia 5 de outubro,
quando, e todos os relatos ressaltam o fato,
tombaram seus últimos defensores – dois
homens, um velho e um menino –, que
continuavam a disparar de dentro de um
fosso escavado na praça das igrejas.
Reprodução

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dedicar-se à difusão dos ideais revolu- ardente, a extinção absoluta de uma crença
cionários pela pregação e pelo exemplo. consoladora e forte...”.
Foi o que as forças armadas acreditaram
estar levando a Canudos. Por isso, não
é de espantar a dimensão trágica que se
atingiu, e que está exposta com todas as PERCURSO DE EUCLIDES
letras em Os Sertões, quando um exército
que se considerava ao mesmo tempo a Nas reportagens feitas por Euclides
vanguarda e o braço armado do Terceiro encontram-se os primeiros sinais de que
Estado descobriu-se massacrando a plebe sua inteligência está prestes a captar al-
que o constituía. gum engano no ar. Penetrando no sertão
e chegando até Canudos, o escritor vai
••• gradativamente intensificando esses sinais
e mitigando o entusiasmo patriótico que no
A lição principal que fica de uma guerra início demonstrara, sem todavia perdê-lo de
fratricida e desnecessária é a admiração vez. Desviando-se dos demais repórteres,
pelo esforço desenvolvido por populações fará reflexões sobre o cunho equivocado da
carentes de tudo para criar novas formas acolhida a bala dada aos canudenses, quanto
de vida em comum. De um modo ou de outro tipo de tratamento mais civilizado
outro, engendraram uma estrutura alter- poderia apaziguá-los. E dali a um palmo
nativa de poder que as subtraía ao mando está o surgimento da admiração que por
de fazendeiros, padres e delegados de eles passa a manifestar.
polícia. No dizer de um militar que dei- No livro, após a radiografia do meio
xou seu testemunho, Antonio Conselheiro físico, examina aquilo que atribui ao serta-
estava “fazendo da religião instrumento nejo: o fanatismo religioso, a superstição,
de governo”. o equilíbrio psíquico instável, além de um
Aparentada às guerras camponesas considerável atraso com relação à marcha
(Engels), aos processos de reencanta- da civilização.
mento do mundo (Weber), às rebeldias O determinismo que preside a essa minu-
pré-políticas (Hobsbawm) e aos movi- ciosa análise do meio físico e dos componen-
mentos utópicos regidos pelo princípio tes étnicos vê o processo eclodir na pessoa
esperança (Ernst Bloch), a Guerra de de Antonio Conselheiro. Com efeito, este
Canudos se ergue como um monumento a constituiria uma síntese histórica oriunda
seus mortos, a perturbar a glorificação de das correntes de povoamento, através da
nossa história. Ou, na súmula arrebatada miscigenação no isolamento.
de Euclides: O diagnóstico do Conselheiro é contra-
ditório, o leitor percebendo a hesitação do
“Não lhes bastavam seis mil mannlichers autor entre considerá-lo um grande homem
e seis mil sabres; e o golpear de doze e decretá-lo “doente grave”, afetado de para-
mil braços, e o acalcanhar de doze mil noia. “Condensando o obscurantismo de três
coturnos; e seis mil revólveres; e vinte raças”, a pessoa do condutor de povos “cres-
canhões, e milhares de granadas, e milha- ceu tanto que se projetou na História”.
res de shrapnels; e os degolamentos, e os Tentando elucidar a origem da Guerra
incêndios, e a fome, e a sede; e dez meses de Canudos, Euclides mostra como o
de combates, e cem dias de canhoneio advento da República acarreta altera-
contínuo; e o esmagamento das ruínas; e o ções que perturbam o ânimo dos con-
quadro indefinível dos templos derrocados; selheiristas: novos impostos, separação
e, por fim, na ciscalhagem das imagens entre Igreja e Estado, liberdade de culto
rotas, dos altares abatidos, dos santos em e instituição do casamento civil, que
pedaços – sob a impassibilidade dos céus contradizia frontalmente um sacramento
tranquilos e claros –, a queda de um ideal católico.
Reprodução

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Bíblia, por meio do qual é traçado o arco
A SUMA SERTANEJA que vai da criação do arraial de Canudos, o
Gênese bíblico, até seu aniquilamento pelo
A Guerra de Canudos, como vimos, fogo, o Apocalipse, em conjunção com as
acabou por revelar-se a ignomínia de uma profecias das sagradas escrituras.
chacina de pobres-diabos. Tornou-se evi- Euclides, por sua formação como en-
dente que não houvera conspiração alguma e genheiro militar, era adepto do progresso
que esse bando de sertanejos miseráveis não e da ciência, o que já se vê na escolha da
tinha qualquer ligação com os monarquistas profissão. Nunca lhe tinha ocorrido que a
instituídos – gente branca, urbana e de outra modernização é causa de dores e perdas para
classe social, com horror a “jagunços” e os pobres, aos quais chacina sem piedade
“fanáticos” –, nem qualquer apoio logístico, quando os encontra em seu caminho, seja
seja no país, seja no exterior. para abrir uma estrada de ferro, para escavar
A reviravolta resultante foi notável: a uma barragem, ou mesmo para substituir
opinião mudou de lado e passou a lamentar uma monarquia por uma república. São
o massacre de valentes compatriotas numa todos, em diferentes instâncias, fenômenos
luta fratricida. Ademais, deixou de ser se- de modernização.
gredo que a conduta do exército estivera Tanto Euclides acreditava nela que
longe de ser irreprochável. Começou a ser termina por condenar a guerra, afirmando
revelada a prática de degolar em público que os canudenses deviam ter sido tra-
os prisioneiros indefesos, sancionada por tados a cartilha e não a bala, concluindo
todos, inclusive pelos comandantes. pela falácia ilustrada de ver na educação
Com a Guerra de Canudos, completa- a panaceia para a iniquidade. Seu grande
se o processo de consolidação do regime feito foi ter conseguido expressar (e nisso
republicano. Graças a ela, exorcizou-se o reside o alcance universal do livro) o que
espectro de uma eventual restauração mo- a modernização faz aos pobres, atormen-
nárquica. Posteriormente, tendo à vista os tando-os de tal maneira que seu mundo – o
testemunhos, pode-se dizer que a opinião Belo Monte na denominação que deram a
pública foi manipulada e que os canudenses Canudos, a Nova Jerusalém nas palavras
serviram de bode expiatório nesse processo. de Euclides –, que tinha tudo para ser o
Desempenharam involuntariamente o papel paraíso no qual aguardariam o Juízo Final,
de adversário comum a todos, aquele que se metamorfoseia-se no seu contrário, ou seja,
enfrenta coletivamente e que permite forjar no inferno.
a união nacional. À falta de um inimigo Era assim que os canudenses encara-
externo, capaz de promover a coesão do vam sua sina. Coerentemente, nessa visão
corpo social e político, infalível em caso escatológica, o imaginário apocalíptico,
de guerra internacional, suscitou-se um baseado no dogma salvacionista, sofre uma
inimigo interno, com invulgar eficácia. inversão demoníaca. A Cidade de Deus, um
Para ligar os numerosos e heterogê- quadriculado de ouro e pedras preciosas,
neos materiais de que se serviu, Euclides degrada-se no labirinto cor de terra do
tomou ainda emprestada dos canudenses arraial. O Cordeiro de Deus, que tira os
messianistas e milenaristas – que ali se pecados do mundo, transforma-se em bode,
concentraram para esperar o Juízo Final único animal ali existente. O Rio da Água da
anunciado pela chegada do novo século, Vida, que corre no Paraíso, não é mais que
numa vida de oração e penitência para sal- o rio seco que passa por Canudos, o Vaza-
var a alma – a visão escatológica. E mostra Barris. A Árvore da Vida se transforma na
como, através da inversão demoníaca das árvore da morte – os garranchos sem seiva
imagens bíblicas que presidem à crença da caatinga. E assim sucessivamente. Essa
salvacionista, é possível aderir ao ponto era a visão dos canudenses, que Euclides
de vista deles. Isso se efetiva através da soube captar, enformar literariamente e
mimese do grande sintagma narrativo da expressar.

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