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®
ARTIGO

Canudos:
a revolta de um
povo
CllIUIdos é UIIUJ IlUJl'ca o Jozaf' Daataa
buIelévellUl
conscilncia do povo

A
s elites estão feste-
brasileiro. Oriundo dos jando o massacre
terrllS baitmIIS, do de Canudos, ou a
Guerra, como preferem
reclJncavo, o jornalista chamar os mais tradicio-
JOZllfá Dantas invoca nais, que começou no dia
12 de novembro de 1896
as origens, Euclides da e terminou no dia 5 de ou-
Cunha, onde nllSCeu e, tubro de 1897, quando o
como se fosse um Exército abateu milhares
de pessoas sem nenhuma
Greg6rio de Matos piedade, na maior carnifI-
Guerra, um "Boca do cina jamais vista na histó-
ria do Brasil. O dia 5 de
Inferno" de hoje, outubro deveria ser regis-
mostra em detIllhes sua trado na memória de nos-
sa gente como o "Dia Na-
l1uIigIUIçllo com a cional de Luta dos Serrt-
clll'nljlcina de 1896. Terrai, e de todas as pes-
soas que são exploradas
sem nenhuma cerimÔnia
pelo capitalismo selva-
gem e por polfticos
inescrupulosos.
q

Até outubro de 1997, acusação de homiddio, não trouxe melhoras à


o Brasil vai ser sacudido sendo mandado de volta vida do povo brasileiro,
por movimentos sociais e, ao Ceará, sua terra natal. nem a Proclamação da
também, pelas elites, ávi- Ele nasceu no dia 13 de República em 1889.
das em perpetuarem a março de 1830, na cida- Pelo contrário, a situa-
visão distorcida do movi- de de Quixeramobim. ção ficou mais calamito-
mento de Canudos, que, Inocentado e livre, sa. A República trouxe um
para elas, era simples- retornou à Bahia, quando desenvolvimento artificial.
mente um bando de iniciou definitivamente o Rui Facó conta, na sua
Antônio c.Iu desordeiros, capitanea- movimento que mais tar- obra Cangaceiros e Faná-
(PT) dos por um fanático. O de veio a se chamar Ca- ticos, editada pela Civili-
o livro é um mundo de ensino brasileiro tem nudos. zação Brasileira, em 1963,
perspectivas. de prazer, iJe mostrado a visão tradici- O movimento criou que ,"com a derrubada da
conhecimentos e de emoções onal, embora nos últimos volume entre os anos de Monarquia, em 1889, na
para quem o M. Nós podemos
anos escritores venham 1877 e 1887. Na década, República partilhavam do
viajar com as letras, com as
tentando resgatar o verda- Antônio Conselheiro e poder do Estado os lati-
gravuras. com os mapas e todas
deiro significado do m~ sua gente cruzaram os fundiários e a burguesia,
as maravilhoSdS ilustrações que
vimento de Canudos. Es- sertões, chegando até o ambos se temendo mutu-
podem constar de uma
publicação. t muito importante peramos que as escolas litoral baiano, na Vila do amente. Os primeiros,
que os centros comunit.frios, as brasileiras passem a mos- Conde. Sua obra, prega- depois de perderem a
escolas e os parques tenham salas trar os fatos corretos, para ção, construção e restau- esctavaria, receavam per-
de leitura para propidar à que tenhamos uma soci- ração de capelas, igrejas der os feudos; os segun-
comunidade o contato edade mais consciente de e cemitérios começou a dos, sonhando com em-
inesqueclve/ com o amplo sua história. O evento desagradar aos latifundiá- preendimentos industri-
universo que um Nvro pode mais esperado é o filme rios e ao clero. Tanto é ais, ferroviários, moderni-
conter. de Sérgio Rezende, estre- que, já em 1886, o dele- zação da agricultura, ne-
lado por José Wilker e gado de polícia de cessitavam de braços li-
Marieta Severo, que vai Itapicuru mandou ofício vres, mas temiam liqUidar
custar cerca de R$ 7 mi- ao chefe de polícia da o regime latifundiário".
lhões, e esperamos que Bahia, contando um de- Assim, nasceu o pri-
conte a história verdadei- sentendimento entre o meiro milagre brasileiro -
ra grupo de Conselheiro e o o segundo foi no regime
O movimento - Para vigário local, já que a igre- militar no início da déca-
entender Canudos é pre- ja tinha passado circular da de 70 -, com o surgi-
ciso voltar ao passado. determinando aos pár~ mento de novas casas co-
Ninguém sabe, ao certo, cos proibirem os fiéis de merciais, bancárias e in-
quando começou real- assistir às pregações de dustriais, assim como fer-
mente o movimento de Conselheiro. Com o cres- rovias. "O governo repu-
Canudos. Mas a Folhinha cimento do movimento, blicano provisório - regis-
Laemmert, anuário edita- os poderosos ficaram te- tra Rui Facó, na mesma
João deOeus do no Rio de Janeiro, fez merosos. obra - emitia vagas sobre
(POT)
Os livros são grandes mestres o primitivo registro, em Mas, como andava o vagas de pape~moeda na
que nos ensinam a analisar, 1876, informando que resto do Brasil? A situação maior inflação monetária
criticar, pesquisar e conhecer o naquele ano "apareceu política e econômica do de toda a história do País
mundo, sem sair do lugar. É no sertão no norte um in- País era deplorável. En- até então. O volume de
através da leitura que a divíduo que se diz chamar quanto a Monarquia ag~ pape~moeda em circula-
populaç.io de nosso país AntÔnio Conselheiro e nizava, o movimento pela ção duplicou em menos
desperta para a importância da que exerce grande influ- instauração da República de um ano do novo regi-
luta pelos seus direitos e torna- ência no espírito das clas- crescia a passos largos. A me. E surgiram projetos
se consciente da necessidade ses populares servindo-se economia vivia o caos, fabulosos para a época
de cumprimento dos seus de seu exterior misteri~ especialmente nos Esta- Propunham construir 20
deveres. A diversidade so e costumes ascéticos". dos nordestinos, onde a mil quilômetros de estra-
bibliográfica. o número de Todavia, em 1874, An- monocultura da cana-de- das de ferro apenas com
livrarias e bibliotecas tÔnio Conselheiro já era açúcar era delicada, com- as concessões outorgadas
disponíveis, favorecem o conhecido na Bahia, binada com a dec~dência em 1890, triplicando as-
desenvolvimento intelectual e acompanhado de vários dos grandes latifúndios, sim a rede ferroviária na-
aumentam o nfvel de exigência seguidores. Os ciúmes enquanto o Sul vivia o in .. cionaL O governo assegu-
das comunidades em geral. O inerentes à situação o le- cio do ciclo do café. A rava juros elevados aos
povo que conhece sua hist6ria,
varam à prisão, na vila de abolição da escr.watw:a construtores. Somente no
viajando pelos livros, é apaz
Itapicuru-de-Cima, sob a em 13 de maio de 1888 ano seguinte à Proclama-
de transformá-la.

DF LETRAS
ção da República. fundaram- da própria sobrevivência, cola no Crato. Sua educação prudentes encherem as reli-
se no Rio de Janeiro 33 ban- em luta, ainda que espontâ- foi sólida, estudando nos giões, povoarem os deser-
cos, 241 empresas com fina- nea, não consciente, contra melhores colégios do Esta- tos, deixarem as riquezas e
lidades diversas". a monstruosa e secular do, como escreveu Edmun- desprezarem o mundo. As-
Assim, "acumularam-se opressão latifundiária e do Muniz, no artigo Canu- sim sucedeu a Thomas
fortunas fáceis da noite para semifeudal, violando aberta- dos: o Suicídio Literário de Morus, chanceler-mor de
o dia", sintetiza Rui Facó. mente o mais sagrado de Val1fas Llosa, uma crítica ao Henrique VIII. Foi este minis- .
Mas veio logo a seguir a todos os privilégios secular- romance A Guerra do Fim tro condenado à morte por
quebra da bolsa de valores, mente estabelecido desde do Mundo. A saga de Antô- não querer seguir a heresia;
a substituição do marechal os começos da colonização nio Conselheiro na maior e indo-fhe falar no cárcere
Deodoro da Fonseca pelo européia no Brasil - mono- aventura literária do nosso sua mulher para o perverter,
marechal Floriano Peixoto, e pólio da terra nas mãos de tempo, escrita pelo peruano lhe perguntou aquele sábio:
a triste realidade. Os preços uma minoria a explorar a Mário Vargas Llosa, editada - Quantos anos poderei vi-
dos gêneros alimentícios fo- verl Respondeu ela que vin-
ram elevados, crescendo te e ainda mais. Conduiu ele
62% entre 1888 e 1890, pas- assim: - Vindes me persua-
sando para 118% entre dir que troque vinte anos de
1891 e 1894. O pagamen-
to, como sempre acontece,
Os famintos de vida por uma eternidade de
penas! Se dlsséssels vinte mil
fica com o povo. O Nordes-
te foi a região mais
Canudos foram os anos, diríeis muito pouco,
pois a respeito da eternida-
sacrificada, com o despovo-
amento das fazendas e a
primeiros sem-terra de era nada. E assim sacrifi-
cou a vida em defesa da re-
escassez de cereais, obrigan- ligião católica".
do a migração de campone- do Brasil "Se Antônio Conselheiro
ses pobres para o Sul e a - continua Edmundo Muniz-
Amazônia, onde cresciam a conhecia a vida de Thomas
produção do café e da bor- Morus, não poderia deixar
racha, respectivamente. A de conhecer a Utopia, a
participação dos estados obra que o imortalizou. Ad-
nordestinos na pauta de ex- mirava-o não só por suas
portação do País caiu de idéias, como também pela
31,87%, de acordo com Rui A Monarquia obstinação com que as de-
Facó, para cerca de 13%. A fendeu. Esta obstinação ser-
Bahia, palco da história, per- considerava um crime via de exemplo para ele e
deu sua participação de para todos os fiéis da causa
14,3%, em 1857, para ape- contrariar os do que abraçaram. Na Utopia
nas 5,06%, em 1897. estava a origem histórica e
Foi em meio à situação poder, especialmente ideológica de Canudos".
dramática do País que o Edmundo Muniz con-
movimento crescia, sob o
comando de Antônio Con-
os donos das terras duiu: "Os movimentos igua-
litários são todos parecidos
selheiro. Não se via perspec- tanto no campo das idéias
tiva de mudança, pois a bur- como no campo da ação.
guesia condenava a peque- Antônio Conselheiro tinha
na propriedade. Qualquer imensa maioria. Era este o pela livraria Francisco Alves um pouco de Thomas
levante no campo contra a mais nefando dos crimes Editora (RJ), em 1981, esta Morus, de Thomas Munzer,
propriedade feudal era con- contra a ordem dominan- uma obra estéril sem ne- de pugachev, de Fourier e de
siderado como banditismo, te... " nhum valor histórico e con- Owen. Por força do momen-
mas Canudos provou que Antônio Conselheiro ti- trária aos valores do povo to histórico em que viveu,
não era a reunião de bando- nha plena consciência dos nordestino. há, em seu movimento, a
leiros, e tinha simpatia das problemas do País e de sua A boa formação cultural fusão das idéias que promo-
populações rurais, como gente. Antes de iniciar sua de Antônio Conselheiro fica veram os levantes igualitári-
conta Rui Facó: "Ante o fe- peregrinação pelas terras do patente num trecho de suas os dos séculos XV, XVI, XVII
nômeno Canudos, os senho- Nordeste, ele foi comercian- Prédicas, citada por e XVIII com as utopias do
res das dasses dominantes te, depois caixeiro de Sobral, Edmundo Muniz: "É inútil - Renascimento e do século
e seus porta-vozes recusa- escrivão de Juiz de Paz em dizia Antônio Conselheiro - XIX". Edmundo Muniz com-
ram-se a acreditar na reali- Campo Grande, solicitador considerar~e a eternidade, e para Conselheiro a Emiliano
dade: milhares de párias do (advogado, defendendo os esta consideração foi a que Zapata, líder popular do
campo armados em defesa pobres) em Ipu e mestre-es- fez muitos varões sábios e México.
o conflito - Contrariar escreve Euclides da Cu- mia dos munidpios - es-
os do poder, especial- nha, na sua obra Os Ser- creve Euclides da Cunha
mente os donos das ter- tões. -, as Câmaras das locali-
ras, era um crime, consi- O movimento foi cres- dades do interior da Bahia
derado pela Monarquia. cendo, formado com tinham afixado nas tábu-
Assim, com o intuito de gente de diferentes ativi- , as tradicionais, que subs-
se livrar do pregador, dades: artesãos, peque- tituem a imprensa, editais
Antônio Conselheiro foi nos proprietários expul- para a cobrança de im-
Marco lima preso, já em 1876, e man- sos de suas terras pelos postos. Ao surgir esta no-
(PSDB) dado de volta para o Ce- grandes ou pelo fisco, vidade, Antônio Conse-
A rultura é o ceme de um povo, ará, sob a acusação de ter emigrantes, alforriados, lheiro estava em Bom
é a alma. como bem clelinia o cometido crimes, dos escravos fugitivos, ele- Conselho. Irritou-o a im-
escritor Femando Pessoa. E a quais as autoridades de mentos de todas as cama- posição, e planeou o
perpetuação da cultura se faz Fortaleza não encontra- das sociais, que eram se- revide imediato. Reuniu o
atraVés do registro sistemático em ram provas. Comprada a duzidos pelos ensinamen- povo num dia de feira e,
livros e escritos que atravessam o sua inocência, já que as tos do Conselheiro. Ele entre gritos sediciosos e
tempo, que se constituem na acusações eram calunio- inspirava confiança, e por estrepitar de foguetes,
história das nações e de seus
sas e difamatórias, Antô- isso muita gente vinha mandou queimar as tábu-
'habitantes. Brasdia viveu
nio Conselheiro retorna à de longe para pedir-lhe as numa fogueira, no lar-
recentemente uma festa da
rultura com a realÍLação da XV Bahia, para perto de sua conselhos. "Apoiado em go". Depois foi embora
Feira do livro, no Pavilhão de gente, que o amava. Es- seu cajado - descreve com sua gente para Mon-
Exposições do Parque da Odade. sas perseguições, entre- Edmundo Muniz -, cami- te Santo.
Mais de 4tXJ mIl pessoas tanto, não o intimidaram. nhava de arraial em arrai- O fato pode ter desa-
visitaram os stands das editoras. Ele continuou a pregar e al, de cidade em cidade, gradado as chamadas au-
Brasdia viveu uma Brande festa a juntar mais pessoas ao pregando a salvação dos toridades, mas a insurrei-
das /etras. seu redor. homens por meio das ção contra a cobrança de
Como não conseguia boas ações. Totalmente impostos agradou aos
calar Antônio Conselhei- independente do governo menos favorecidos, na vi-
ro, em 1887 a Diocese da e da igreja, combatia a são de Rui Facó: "Con-
Bahia pede ajuda ao Pre- escravidão, opondo-se à quistava assim as simpa-
sidente da Provfncia, acu- ordem social baseada no tias não somente dos po-
sando-o de estar "pregan- latifúndio e na exploração bres, mas também daque-
do doutrinas subversivas, dos camponeses". les que, possuindo uma
fazia um grande mal à re- A burguesia, a igreja e nesga de terra e algumas
ligião e ao Estado". Foi o governo tinham medo reses, mal assegurando
solicitada uma vaga num de Antônio Conselheiro. com isto o sustento da
hospício no Rio de Janei- Mas a convivência ainda famnia, não podiam, de
ro, mas a resposta foi de não tinha se agravado ao forma alguma, satisfazer
Renato RiíIÍIIlM que não havia vagas. An- ponto de se iniciar uma absurdas exigências fis-
(Pl) tônio Conselheiro, a des- guerra. Mas, no ano de cais - os pequenos propri-
literatura, no conc:e;to de Manuel etários",
peito da inveja da igreja 1893, um fato inusitado
Bande;ra. "é a alma de um ppvo
e do temor das elites, con- vai iniciar a mais cruel A repercussão do fato,
escrita em verso e prosa". sendo
assim, não pode ser negada à tinuou a reunir multidões, destruição de uma comu- segundo Euclides da Cu-
população o acesso ao livro, ao a construir suas igrejas, nidade. Euclides da Cunha nha, desagradou os
conhedmento da produção artfstica cemitérios e a peregrinar afirma que Antonio Con- mandarins da Capital do
Ionnadora da aJltura que pelos sertões baianos. "O selheiro "viu a República Estado. Assim, decidiu-se
personalÍLa, lip#ica uma nação, sob Conselheiro continuou com maus olhos e pre- mandar um destacamen-
o risco da alienação total da sem tropeços na missão gou, coerente, a rebeldia to de 30 soldados para
subjugação. A democratização do pervertedora, avultando contra as novas leis. As- combater Conselheiro e
livro é o primeiro passo para uma sumiu desde 1893 uma sua gente. O combate
na imaginação popular.
revolução cultural no Brasil Em
Apareciam as primeiras feição combatente intei- aconteceu na localidade
outras palavras, bibliotecas para
,toda a comunidade, da criança ao lendas. Não arquivaremos ramente nova". Neste de Massete, entre Tucano
adulto, em todos os nlveis sodais; todas. Funda o arraial do ano, o governo decretou e Cumbe (atual Euclides
valonzação do escritor, quer na Bom Jesus; e contam as a autonomia dos munid- da Cunha), onde as forças
publicação das obras, quer em sua grandes assombradas que pios, autorizando-os a poliCiaiS foram vencidas.
divulgação; fonnação de em certa ocasião, quando cobrarem impostos no Temendo o desdobra-
professores em Imgua. literatura e se construía a belíssima interior. mento do acontecido, An-
artes para atendimento ao povo. igreja que lá está( ... )", "Decretada a autono- tônio Conselheiro, que

DF lETRAS
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conhecia o sertão devido a gia-se aos objetos de uso
suas andanças por 20 anos, pessoal, aos móveis e à mo-
levou o seu pessoal para a radia Os produtos do traba-
fazenda Canudos, 'que esta- lho artesanal, bem como a
va abandonada, batizando- produção agrícola e pastÕril
a de Belo Monte, situada pertenciam à comunidade~
entre as serras de Canabra- recebendo os artesãos, os
va, Cocorobó, Calumbi, vaqueiros, os agricultores
Cambaio e Caipã, tendo ain- uma quota de acordo com
da o rio Vaza-Barris, e a es.- as necessidades de cada
trada de ferro a 200 quilô- um".
metros, na cidade de Quei- A produção de Canudos
madas. era a materialização dos so-
Canudos cresceu rápido. nhos dos miseráveis e famin-
Vinha gente de todas as ci- tos. "Na faixa verde que cir-
dades próximas. Pessoas cunda a cidade, cultivava-se
que vendiam o que tinham mandioca, milho, feijão, ba-
e tocavam para Canudos. tata, abóbora, melancia, o in-
"Os raros viajantes que ar- dispensável para a manuten-
riscavam a viagens naquele ção do povoado, garantindo
sertão, topavam grupos su- o seu auto-abastecimento",
cessivos de fiéis que segui- narra Edmundo Muniz. A
am, ajoujados de fardos, car- produção excedente era
regando as mobmas toscas, vendida nos municípios vizi-
as canastras e os oratórios, nhos. O povoado produzia,
para o lugar eleito. Isolados, ainda, sua ferramenta, como
a princípio, essas turmas foices, enxadas, facões, agui-
adunavam-se pelos cami- lhadas, entre outros; tam-
nhos, aliando-se a outras, bém se produzia a pólvora.
chegando, afinal, conjuntas, Surgiu, ainda, a indústria de
a Canudos", descreve couro curtido, que chegou
Euclides da Cunha. a ser exportado para a Euro-
"Na cidade em cresci- pa
mento - conta Edmundo A prosperidade de Canu-
Muniz - reinava a ordem e a dos foi a causa responsável
tranqüilidade. Não existiam por sua destruição precipi-
autoridades policiais, nem tada. Para concluir as obras
cobradores de impostos. da igreja nova, Antônio Con-
Não havia lugar para taber- selheiro encomendou um
nas, nem para prostíbulos. carregamento de madeira
As bebidas alcoólicas eram em Juazeiro. Expirado o pra-
expressamente proibidas. As zo para entrega da merca-
mulheres não precisavam se doria, Antônio Conselheiro
prostituir para ganhar a vida se propôs a ir buscá-la. Mas,
Na divisão do trabalho não como o Juiz de Direito do
existiam mulheres ociosas: município, Arilado leni, era
além de trabalharem no seu velho desafeto, já que na
campo e tratarem dos reba- queima das tábuas dos im-
nhos de ovelhas, fiavam, fa- postos em 1893, em Bom
ziam objetos de cerâmica, Conselho, ele era o juiz da
bem como cestos, bolsas e comarca, telegrafou à Capi-
esteiras de palha". tal alardeando que o Conse-
Em Canudos, de acordo lheiro tencionava assaltar a
com Edmundo Muniz, "vigo- cidade. Foram enviados pou-
rava a propriedade coletiva co mais de 100 praças, em
da terra, das pastagens, dos novembro de 1896, para
rebanhos, das plantações. A combater os camponeses.
propriedade individual cin- No dia 12 de novembro,
a tropa segue para Canu- gada a reconhecer que a para esclarecer à popula-
dos, com a missão de des- "fama e o poder de Con- ção os verdadeiros moti-
truHa. Assim, começav~ a selheiro incrementaram- vos do movimento de
guerra que se estenderia se de modo extraordiná- Canudos. A Folha de São
até o dia 5 de outubro de rio ••• AntÔnio e seus adeJ> Paulo, edição de 25 de de-
1897. Como aconteceu tos compareceram à fei- zembro de 1992, tem um
com o combate de 1893, ra realizada em Missão de título interessante: "Canu-
a tropa foi vencida. Em de- ltapicuru•.. Começou açu- dos renasce das cinzas de
Et/imJu PinmeU$ zembro do mesmo ano lando o povo a não pagar Conselheiro", onde o re-
(PMDB) de 1896 é enviada a se- impostos". pórter Elvis César Bonassa
Vivendo a era da Intemet, gunda expedição, com Como disse Rui Facó, conta o ressurgimento de
quando ddadãos de todos os cerca de 557 homens, ar- os seguidores de Conse- Canudos, tendo como um
ca"tos do mundo já podem se mados até os dentes, mas lheiro "travaram uma luta dos pilares o Padre
comunicar através do também é derrotada. Em de classes. Inconsciente- Enoque, um líder de base
computador, não podemos fevereiro de 1897 vai a mente, não importa, mas da igreja. Seguindo os
ignorar uma realidade: apesar do terceira expedição, com uma luta de classes"'con- mesmos passos, O Esta-
avanço da comuniGlÇão, o livro
1.300 homens, e também tra a opressão semifeudal do de São Paulo, jornal
conbrwa a ser, indiscutivelmente,
o prindpal instrumento de é vencida. Em junho de do latifúndio, a miséria e que fez a cobertura do
transmissão do conheamenlo e 1897 parte a quarta e úl- a fome. Não foi um "foco massacre com Euclides da
da cultura. t lúndamenlal por tima expedição, com mais de superstição e fanatis- Cunha, também estampa:
isso, que trabalhemos para sua de 4.000 homens. Depois mo", como foi espalhado "Saga de Canudos ressur-
dilúsão. PrecisillTlOS ampliar os de batalhas sangrentas e no País. "A epopéia de ge da fé e das cinzas", na
Ihdices de produção de livros no desiguais, porque os mo- Canudos ficará em nossa edição de 4 de agosto
pais, tradicionalmente muito radores de Canudos en- história como um patri- deste ano, matéria assina-
inferiores aos dos pafses onde a frentavam os soldados mÔnio das massas do da pelo repórter Jotabê
eduGlÇão e a wltura recebem a com facões, espingardas campo e uma glória do Medeiros. Ao que tudo
devida prioridade. de matar passarinhos, pau movimento revolucioná- indica vai ser restabeleci-
e pedra, contra canhões rio pela sua libertação", da a verdade dos fatos.
e armas de fogo, Canudos conclui Rui Facó. A introdução da maté-
é tomada de assalto no O renasamento - O ria nas escolas é de fun-
dia 5 de outubro de 1897. governo destruiu a gente damentai importância
No dia seguinte é de Canudos, mas não aca- para a propagação desse
destruída. Foi a maior car- bou com a sua história. movimento, como já vem
nificina, pois mesmo ven- Por muito tempo os his- acontecendo em Euclides
cidos, mulheres, velhos e toriadores faltaram com a da Cunha. É preciso, tam-
crianças foram abatidos. verdade, talvez levados bém, que o dia 5 de ou-
Se era uma guerra, não pelo vírus da corrupção. tubro seja consagrado
houve o mínimo respeito Como disse Edmundo como o Dia Nacional de
Miquéias Paz aos vencidos. Muniz, "todos os conhe- Luta pelos Sem-Terra ou
(PCdoB) N a época, houve ma- cedores da história sabem por todo aquele que se
A maioria dos visitantes vai a nifestos contra o "massa- que Canudos não se su- acha marginalizado, ex-
Corumbá para ver de perto a cre" de Canudos, especi- blevou. Canudos foi ata- plorado pelo engodo dos
imponllnda da queda d'água da governos ditos democrá-
almente pelos alunos da cado. Não houve insurrei-
ddade. Mas nem I11ntos assim
Faculdade de Direito da ção em Canudos, houve ticos. A sociedade preci-
vão até lá atra/dos pelas janelas
antigas, pelas portas de duas Bahia. Rui Barbosa tam- uma intervenção militar e sa tomar cuidado, porque
folhas, pelas senhoras andãs bém protestou. Mas a sem nenhuma base jurídi- muitas Canudos estão
debruçadas em parapeitos, pela imprensa da época tinha ca. Ninguém jamais con- para surgir num futuro
igreja barroquinha e pelo jeito ficado contra Canudos. testou este fato, monar- próximo, pois, apesar da
intennináve/ com que se arrastam Vamos buscar empresta- quistas e republicanos, televisão, da informática,
as horas no calor da ddade. da novamente a narrativa juristas e escritores". da Internet, as desigualda-
Corumbá de Goiás é; sem de Rui Facó, extraída do A partir de agora, des sociais, a fome, a
dúvida. uma das mais belas e jornal O País:"Ao iniciar- quando se comemora os miséria continuam crian-
atraentes paragens das se a Campanha de Canu- 100 anos do massacre de do legiões de conselhei-
vizinhanças de 8raslTia. Canudos, que a história ristas.
dos, a imprensa das clas-
ses dominantes destacava seja contada de forma
como um fato clamoroso verdadeira. A imprensá" * Jozafã Dantas, jornalista e
esta expressão de rebel- vem mudando o enfoque, advogado, nasceu em Euclides da
Cunha (BA).
dia sertaneja, sendo obri-
..
que será de grande valia

DF LETRAS

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