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XIDECOLÓQUIO
HISTÓRIA E IMAGEm/IMAGENS
DE HISTÓRIA UTÓPICAS
E IMAGEm/IMAGENS UTÓPICAS ISSN 2447-6676
27 e 28 de maio de 2021
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quem estiver disposto a trabalhar como folclorista (e, sobretudo: se insistir em se de-
signar folclorista) terá diante de si a dura tarefa de lutar contra o preconceito de que
este campo de estudos é alvo. Contra o preconceito e contra o isolamento. (MATA,
MATA, 2006, p. 11)
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de povo-nação, tão cara ao Romantismo que, afirma Saliba (1991), era “o povo” a pedra
angular das utopias românticas. Para além das utopias românticas gestoras do pensa-
mento folclorístico, este artigo se propõe a analisar de forma seleta e pontual a influência
do pensamento romântico na Folclorística da atualidade e quais pontos requerem nossa
atenção teórica na empresa da retomada da temática no Brasil. No cumprimento de tal
intento, recorremos a figura simbólica do Corrupira Entretempos para dialogar com as
pautas que devem estar em discussão entre os folcloristas neste momento de retomada
da disciplina no país. Não obstante, já sendo lugar-comum nas discussões folclóricas, a
pauta da interdisciplinaridade permeia as propostas de intervenção teórica.
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Não surpreende o fato de tal descoberta do povo e suas tradições terem desperta-
do o interesse dos antiquários pela temática, uma vez que a mentalidade erudita face ao
conceito de progresso compreendia a cultura popular como fator histórico em vias de ex-
tinção. Apesar da originalidade técnico-teórica se configurar a partir do que Burke (2008)
conceituaria como paradigma da “biculturalidade” – ou seja, a categorização da cultura
entre “alta” e “baixa” –, o interesse do antiquário por costumes e tradições antigas se pro-
jetava desde a Antiguidade Clássica. Colecionadores sistemáticos de tudo que se consi-
derasse arcaico, os antiquários demonstravam especial zelo por suas fontes, não sendo
sua preocupação, contudo, a estruturação das mesmas em ordem cronológica, exercício
que ficava a encargo do historiador, sempre preocupado com o retorno político de suas
obras (MOMIGLIANO, 2014): já no século V a.C., a pesquisa erudita do passado (que ficaria
a encargo dos antiquários) e a história política (de responsabilidade dos historiadores)
apresentavam distinções nítidas. O métier do antiquário, entretanto, se fundamentaria
três séculos a frente, sob inspiração da originalidade metodológica de Terêncio Varrão
em suas Antiquitates divinae et humanae (MOMIGLIANO, 2014), primeira obra a descrever
ampla e sistematicamente todos os aspectos da cultura e do cotidiano de um povo, neste
caso, dos romanos que o precederam e cujo manuscrito, embora saudado por seus con-
temporâneos, através dos quais sabemos de sua existência e metodologia, não sobrevi-
veu aos naufrágios do tempo.
Após um recesso que perdurou por praticamente todo o período medieval, o inte-
resse pelas antiguidades ressurge na Modernidade em meio ao humanismo quatrocen-
tista e quinhentista, conforme nota Choay (2014). Esse interesse, entretanto, era então
voltado para as antiguidades arquitetônicas e demais evidências físicas: diferentemente
do historiador, o interesse do antiquário não estava na produção bibliográfica dos tem-
pos de outrora, mas sim nas demais evidências tangíveis de sua passagem pela história.
Somente a partir do século XVII – e em tom bastante pejorativo, como alerta Ortiz (1992)
– os eruditos ingleses voltam sua atenção para as antiguidades populares, evidências
mentais – e por conseguinte imateriais – de tempos passados, presentes nas superstições
do povo, em suas canções e contos, lendas e parlendas, dentre outras manifestações. O
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termo designado para a nova área de atuação revela, notavelmente, a percepção dos
antiquários sobre o tema: assim como as colunas do panteão, as moedas romanas da
Antiguidade Tardia ou os ostentosos monumentos públicos, as manifestações culturais
advindas do povo eram, de fato, antiguidades populares e, como qualquer objeto sobre
o qual debruçavam seu interesse, sua Idade de Ouro se deu no passado, muitas vezes
longínquo, do qual chegavam senão reminiscências do que outrora fora prodigioso, re-
lembrando, no entanto, que uma visão dourada sobre a cultura popular não fosse ainda
típica destes estudiosos.
Herder chegou a sugerir que a verdadeira poesia faz parte de um modo de vida parti-
cular, que seria descrito depois como “comunidade orgânica”, e escreveu com nostalgia
sobre povos “que chamamos selvagens (Wilde), que muitas vezes são mais morais que
nós”. O que parecia estar implícito no seu ensaio é que, no mundo pós-renascentista,
apenas a canção popular conserva a eficácia moral da antiga poesia, visto que circula
oralmente, é acompanhada de música e desempenha funções práticas, ao passo que a
poesia das pessoas cultas é uma poesia para a visão, separada da música, mais frívola
que funcional. (BURKE, 2008, p. 27)
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monialização dos monumentos físicos (CHOAY, 2014), com quem os românticos primeiro
estabelecem seu diálogo acerca das antiguidades populares, compete aos românticos
similar atuação na patrimonialização da cultura popular, até o momento, tratada como
impreterivelmente imaterial: num discurso sugestivo, rememorando inclusive a potência
social da poesia homérica, Herder propõe a reapropriação de um modo de vida, mas não
no sentido de reconstrução do passado varroniano (MOMIGLIANO, 2014) e sim de revi-
vescência do etos tradicional no presente.
Saliba (1991), em sua obra As Utopias Românticas, se debruça, como o título suge-
re, sobre as inúmeras utopias gestadas e desenvolvidas ao longo do heterogêneo Ro-
mantismo; o autor, conforme dito anteriormente, afirma que “o povo, afinal, acabava por
se constituir na imagem central e verdadeiramente mítica da utopia romântica” (SALI-
BA, 1991, p. 68). Mas qual sua pretensão ao propor tal assertiva? Ora, o Romantismo é
contemporâneo das Revoluções Francesa e Industrial, e segundo muitos autores (ORTIZ,
1992; SALIBA, 1991; BURKE, 2010; dentre outros) foi inclusive uma reação cultural a estas,
um movimento igualmente convulsivo de intensa sensibilidade que procurava dar conta
do novo mundo que se assentava sobre os escombros do Antigo Regime. Naturalmente,
comumente suas utopias se encontravam no que Koselleck (2006) – muito apropriada-
mente em tal caso – nomearia como “horizonte das expectativas”, ou seja, no futuro, onde
um mundo mais racional e sensível se responsabilizaria por corrigir as mazelas da huma-
nidade: era o desabrochar do homem. Por vezes, entretanto, a complexidade do presente
e a incerteza do futuro fazia com que seus participes volvessem os olhos para o passado
e, num proceder bastante utópico, construíam no passado não-lugares ideais, onde os
verdadeiros valores vicejavam, uma espécie de “abrigo imaginário para as intempéries do
presente” (SALIBA, 1991, p. 61) que seduzia poetas e historiadores.
Claro que por trás dessa ótica nostálgica do passado como refúgio quase sagrado
escondia-se, não raro, um olhar aristocrático que fazia da tradição um imperativo da
história – como é possível perceber em teóricos contra-revolucionários como Joseph
De Maistre e Edmund Burke. Mas, por outro lado, essa ótica também envolvia um pro-
pósito progressista ou, pelo menos pelo menos, prospectivo, que ansiava igualmente
em recorrer ao passado, mas com um diálogo cruzado entre este e o presente, isto é,
com uma autêntica evocação do presente. (SALIBA, 1991, p. 61)
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2 Herder faleceu antes das invasões napoleônicas aos reinos germânicos e, desta forma, não viven-
ciou as discussões sobre a formação do Estado-nação a partir dos critérios socioculturais próprios do povo,
ou seja, a evocação do “gênio do povo” como pedra angular pra edificação da nação. É consenso entre os
autores (SALIBA, 1991; ORTIZ, 1992; BURKE, 2008), porém, que Herder teria sido precursor na discussão ao
considerar o que posteriormente se classificaria como etnia enquanto um corpo independente e cultural-
mente autorregulatório, impassível de ser comparado a outros numa escala progressiva.
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Entoava Gonçalves Dias (apud CASCUDO, 2012b, p. 97) que “Curipira, vagando solto
no espaço era o gênio do pensamento”. Tem razão o poeta, parafraseando Rubem Al-
ves, pois não há símbolo mais apropriado à missão de representar não só o folclore, mas
igualmente a Folclorística. A lenda de origem indígena, muito popular no Norte e em
partes do Nordeste e Centro-Oeste brasileiros, reza histórias sobre um duende das ma-
tas, senhor de seus domínios, inclemente com aqueles que ousam atravessá-los sem sua
permissão; como sanção pelo sacrilégio, Corrupira usa de seus pés virados para as costas
no intuito de confundir os caçadores que adentram suas matas, deixando pegadas que
indicam o caminho oposto por ele tomado, fazendo com que os transgressores adentrem
em paragens inéditas e, inevitavelmente, não consigam encontrar o retorno seguro an-
tes do cair da noite: com ela, desce o horror sobre a pobre vítima na forma do pequeno
duende de cabelos vermelhos, sorriso sinistro e pés virados que o açoita impiedosamen-
te com cipós pelo atrevimento. Com seus pés virados e olhos vigilantes, o Corrupira figura
como ponte cultural entre o passado e o futuro, a essência do tempo folclórico, com pés
sempre voltados para a tradição, mas com os olhos sempre atentos para os dilemas do
presente e do futuro. Como a própria humanidade, Corrupira caminha em direção ao
seu futuro, não possui raízes que o retenha num ponto como as árvores, mas deixa para
os caçadores – leia-se folcloristas – suas pegadas em direção ao passado, indícios de sua
passagem pela história, que cabe ao caçador desvendar e compreender. Os olhos, em
contrapartida, perscrutam a realidade ao seu redor e nela age conforme as condições que
encontra, sempre com os pés voltados para trás, para sua tradição cultural, a qual muitas
vezes ignora a origem ou o tempo de vigência – por vezes milenares – no quadro geral da
história de seus antepassados.
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A Folclorística, por sua vez, talvez encontre no Corrupira no Mato de Ernst Zeuner (Fi-
gura 1) um símbolo mais adequado à sua situação, como o Anjo da História de Benjamin
(1985) o encontrou no Angelus Novus de Paul Klee: o Corrupira que outrora figurou entre
as páginas do livro de Érico Veríssimo (1966), agora nos auxilia a compreender a postura
que o folclorista brasileiro precisa assumir em tempos de retomada da discussão no país.
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Por fim, mas não menos importante, a escolha da ilustração de Zeuner como símbo-
lo e argumento para os pontos elencados se faz ainda viva ao considerarmos a segunda
figura a contracenar com o Corrupira que, a despeito de seu nome na obra de Veríssimo
(1996) e procurando evitar uma confusão simbólica, aqui entenderemos apenas como o
Humano que inexoravelmente vai de encontro a sua cultura que percorre um longo per-
curso até chegar neste. A caracterização deste enquanto indígena é oportuna num senti-
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do muito específico: o de que o folclore está face ao Humano independente de sua etnia,
isto é, não compete a Folclorística apenas o estudo da cultura do homem não-letrado, o
“não-erudito”, mas sim de todas as culturas populares presentes nas mais diversas etnias.
Nesse sentido, assertiva é a proposta de Cascudo 2012a) do que é cultura popular, pois
para este em qualquer sociedade sempre
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O símbolo adotado para dialogar com os dilemas e propostas aqui dispostos, faz-se
apropriado ao levarmos em consideração a característica temporal de sua lenda original:
o Corrupira Entretempos, existente em diversos pontos da história folclórica brasileira –
mesmo antes do termo Brasil surgir no vocabulário português. Este símbolo sequestrado
para nossa breve locução, em verdade, não só ilustra, como propõe visualmente motiva-
ções para o debate quando em diálogo com os pontos abordados. Igualmente Entretem-
pos é o folclore, com suas tradições seculares e milenares, mas com a concentração sem-
pre voltada para os sofrimentos do presente, na esperança de um futuro que concretize
as esperanças que se arrastam ao longo de suas tradições culturais. Longe de ser uma lis-
ta definitiva dos problemas teórico-metodológicos da Folclorística ou um compendio das
soluções salutares para este, este texto chama a atenção dos folcloristas brasileiros para
a necessidade de discussão destes e para o avivamento do debate em território nacional.
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