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Sermão 10
4. Agora, eu vos indicarei que fragrância exalam seus peitos, se com vossas
orações me ajudardes a vos expor o que me foi concedido entender, para conseguir fazê-
lo como o merece o aproveitamento dos que me escutam. Uns são os aromas do esposo
e outros, o da esposa, como o são os peitos de cada um.
Já nos cerificamos disso antes, quando falamos dos perfumes do esposo. Agora,
nós nos ocuparemos da fragrância da esposa. Redobremos a atenção, porque a Escritura
os elogiou especialmente, considerando [esses aromas] não só bons, senão excelentes.
Recolhi várias classes de aroma para eleger os que mais convém aos peitos da esposa.
Há um aroma de contrição, outro de devoção e outro de piedade. O primeiro é aflitivo:
causa dor. O segundo é calmante: alivia a dor. O último é curativo: afugenta a
enfermidade. Falemos de cada um detalhadamente.
O segundo perfume
5
Lucas 15,7.
6
Tiago 1,17.
7
Salmo 49,23.
8
1 Coríntios 11,3.
9
João 6,63.
10
Jeremias 17,5.
11
Atos 2,26.
Por isso o primeiro perfume se aplica aos pés e o segundo à cabeça: a humilhação de um
coração contrito corresponde à humildade da carne, e a glorificação é própria da
majestade. Tal é o perfume de que vos falei: aquele ante quem tremem as Potestades
não considera indigno de que se perfume sua cabeça. Inclusive o estima com grande
honra, dizendo: O que me oferece um sacrifício de louvor, esse me honra.
Que coisas não servem para fazer este perfume e por quê
9. Por essa razão não é próprio dos pobres e humildes, nem de corações
desconfiados, preparar um perfume cujos aromas e componentes estejam impregnados
unicamente de confiança, porque procede da liberdade de espírito e de um coração puro.
A alma ruim e de fé fraca se vê limitada pela precariedade de seus meios, e sua pobreza
não lhe permite uma ociosidade suficiente para entregar-se ao louvor de Deus ou à
contemplação de seus benefícios, que propiciem este louvor. Se alguma vez se esforça
por fazê-lo, acabam por pressioná-la seus interesses, porque são esmagadoras as
exigências de suas preocupações domésticas, e se vê forçada a fechar-se em si mesma
por sua própria necessidade.
Se me perguntardes qual é a causa desta miséria, diria que, se não me equivoco,
vós já a experimentastes ou a estais experimentando. Eu creio que esta moleza e
desconfiança da alma tende a derivar de outras causas: ou de que a conversão é ainda
muito recente, ou de uma vida monástica tíbia – ainda que tenha passado muito tempo
desde a conversão. Ambas as coisas humilham, deprimem e inquietam a consciência:
quer pela tibieza, quer pela recente conversão, sente que as paixões pretéritas de seu
coração ainda não estão mortas nela. Sente necessidade de arrancar do horto de seu
interior os espinhos das iniquidades e as urtigas das concupiscências, e vê que não pode
libertar-se delas. Que fazer? Exausta de gemer, poderá, ao mesmo tempo, sentir prazer
com os louvores de Deus? Como soaria em sua boca, cansada de lamentar e chorar,
aquela ação de graças ao som de instrumentos do profeta Isaías 12? Porque como
aprendemos do Sábio: História em hora errada é música em duelo.
Finalmente, a ação de graças não precede ao benefício; é sua consequência. Mas
a alma que vive triste não se alegra pelos benefícios, mas bem os necessita. Tem,
portanto, motivos de implorar, não de dar graças. Como pode recordar um benefício que
não tenha recebido? Por isso disse que não corresponde a uma alma indigente produzir
um perfume que deve conter um concentrado dos benefícios divinos.
É impossível ver a luz afundado no abismo das trevas. Jaz em amargura, sua
memória está possuída pela triste recordação dos pecados e rechaça todo pensamento
alegre. E a interpela o espírito profético, dizendo: É inútil levantar de madrugada13.
Que quer dizer: Em vão vos empenhais em contemplar os benefícios que alegram o
coração, se antes não recebeis a luz que vos console das culpas que vos inquietam. Este
perfume não está ao alcance dos pobres.
Olhai, portanto, quem são os que não sem razão podem viver satisfeitos com sua
riqueza: Os apóstolos saíram do conselho alegres de ter merecido aquele ultraje por
causa de Jesus14. Estavam repletos da infusão do Espírito, porque se mantiveram em paz
mesmo com os danos, não só das injúrias, mas também dos açoites. Sua riqueza era o
12
Isaías 51,3.
13
Salmo 126,2.
14
Atos 5,41.
amor que não se esgota por nenhum preço, e o amor lhes bastava para oferecer, sem
esforço, vítimas gordas. Seus peitos transpiravam o santo perfume que os encharcava,
quando começaram a falar em diferentes línguas as maravilhas de Deus, segundo o
Espírito lhes concedia que falassem15.
Também estão impregnados deste perfume aqueles a quem se refere o Apóstolo:
Continuamente dou graças a Deus por vós, pela graça que vos tem concedido mediante
Cristo Jesus, pois, por meio dele, vos fez ricos de tudo, de todos os dons da palavra e
do conhecimento; assim se viu confirmado entre vós o testemunho de Cristo, até o
ponto de não carecerdes de nada16. Oxalá pudesse eu dar graças assim por vós, vendo-
vos ricos em virtudes, fervorosos para o louvor de Deus, cheio até transbordar de
plenitude espiritual, em Cristo Jesus, Senhor nosso.
15
Atos 2,4.
16
1 Coríntios 1,4-7.