Você está na página 1de 3

SOBRE AS MISERICÓRDIAS

Este sermão de São Bernardo não está incluso na coleção dos Sermões De diversis ou
litúrgicos, mas foi transcrito pelos seus discípulos; reflete assim a pregação de Bernardo,
sem artifícios literários, mas com assuntos que ele ama e realça de frequente.
Bernardo denuncia a ingratidão para com os dons de Deus, que é o pior pecado; na
segunda parte agradece a Deus por 7 misericórdias recebidas no caminho a partir do
pecado até à perseverança na graça. Para mim são uma ajuda a reconhecer a ação do
Senhor na minha vida e a reconhecer que sempre é mais o que recebemos de graça.

1.“Cantarei para sempre as misericórdias do Senhor”. Porque é que me soa aos ouvidos um
pensamento insensato e pouco claro de que esta vida de penitência é um jugo que vem
pesar sobre a minha cabeça? O que sinto é uma carga diferente, certamente mais leve, e,
todavia, muito maior. Porque o Senhor carrega-me com as suas misericórdias, envolve-me
e cobre-me com os seus benefícios, de tal modo que já não posso sentir outro jugo senão
isto. “Que darei eu ao Senhor, por todos os benefícios que me tem feito?”. Ele deu-me
tantas coisas, tantas coisas também Ele me devolveu, e agora vens falar-me de uma outra
carga? "O meu espírito desfalece", reduz-se ao nada perante tão grandes e numerosos
benefícios. E mesmo que eu não saiba agradecer como deveria fazer, a minha alma
experimenta uma adversão total pela ingratidão. Porque a ingratidão é uma arma
mortal, é um favor feito ao adversário, é a inimiga da salvação. Digo-vos que, tanto
quanto sei, não há nada que desagrade tanto a Deus, sobretudo nos filhos da graça e
naqueles que seguem o caminho de conversão, como a ingratidão. Porque ela bloqueia o
caminho da graça e, onde ela está, a graça não encontra passagem, não encontra lugar.
Por isso, irmãos, sinto uma grande tristeza no meu coração e uma dor contínua quando
vejo alguns que são tão propensos à leviandade, tão fáceis de rir e de dizer palavras
grosseiras, que receio que se esqueçam da misericórdia divina mais do que convém e, por
não sentirem gratidão pelos seus muitos benefícios, são por vezes abandonados pela
graça, que não veneram como tal.
2. Pois que direi daquele que se obstina na murmuração e na impaciência, ou que se
arrepende de ter aderido a Deus, e contra a norma, e até contra a razão, se arrepende do
bem que fez? Digo, sem dúvida, que ele não só não agradece a Deus pelas suas
misericórdias, como ainda o insulta. No que lhe diz respeito, honra muito pouco aquele de
quem foi chamado, que o serve na tristeza e no ressentimento, se é que se pode dizer que
o serve nessa tristeza que é segundo a carne e que produz a morte. Achas que lhe será
dada uma graça maior, ou não lhe será tirada até a que parece ter? Não pensais que o que
é dado a um ingrato se perde, e não vos arrependeis de ter dado o que depois se
perdeu? É, portanto, necessário que o homem seja grato e agradecido se a graça dom não
só permanece com ele, mas também se multiplica. Não há ninguém que, se procurar, não
descubra facilmente quantas coisas depende de Deus, pois "não há quem possa esconder-
se do seu calor". Mas sobretudo nós, que ele reservou para si e contratou para o servirmos
só a ele, se, como diz o Apóstolo, não recebemos "o espírito deste mundo, mas o espírito
que vem de Deus, porque sabemos que de Deus nos foi dado tudo", encontramos inúmeras
coisas pelas quais damos continuamente graças a Deus. Haverá alguém entre nós que não
reconheça que "a tua misericórdia é grande sobre mim"? Por isso, desta grande multidão
de misericórdias do Senhor, gostaria de vos propor brevemente algo, para que aqueles que
já são sábios possam aproveitar a oportunidade e tornar-se ainda mais sábios.
3. Encontro em mim sete misericórdias do Senhor, e creio que também vós as encontrareis
facilmente em vós mesmos. A primeira é que, estando eu ainda no mundo, me preservou
de muitos pecados: o primeiro, digo, não entre todos os que me ofereceu, mas o primeiro
entre estes sete. Pois quem não vê que, assim como eu caí em muitos pecados, poderia ter
caído em muitos outros se a misericórdia do Todo-Poderoso não me tivesse preservado
deles? Digo-o e digo-o bem alto: se o Senhor não me tivesse ajudado, dificilmente a minha
alma teria evitado cair em toda a espécie de pecados. Como foi grande a condescendência
desta misericórdia! Conservou na graça aquele que era ingrato e pouco a aproveitava; de
facto, em muitas coisas se opunha e desprezava, mas com suprema benignidade foi
protegido por ela para não cometer outros erros. Mas a segunda misericórdia que
derramaste sobre mim, Senhor, com que palavras hei-de ilustrá-la para dizer quão
benigna, quão generosa, quão gratuita foi? Eu pequei, e vós fingistes não ver ( ou seja a
paciência de Deus); não me contive na impiedade, e vós vos contivestes nas chibatadas.
Prolonguei a minha iniquidade, e tu, Senhor, prolongaste a tua misericórdia. Mas de que
teria servido a espera se não se tivesse seguido a penitência? Ter-me-ia encontrado sob
um monte de condenações, com o Senhor a dizer: "Tu fizeste isto e eu calei-me".
4. Assim, houve uma terceira misericórdia que veio visitar o meu coração e mudá-lo,
tornando amargas as coisas que antes me davam uma doçura perversa, de modo que eu,
que me alegrava em fazer o mal e exultava com as piores acções, começaria de novo a
olhar para os meus anos diante dele com a amargura da minha alma. (às vezes nós nem
chamamos de misericórdia esta amargura que é afinal o que nos constringe a mudar,
porque não estamos contentes). Então, Senhor, abalaste a terra do meu coração e
"rasgaste-o; cura as suas feridas, porque foi abalado". Muitos vêm, de facto, fazer
penitência, mas esta é estéril para eles, porque a sua penitência é reprovável, como o era a
sua culpa anterior. Por isso, houve uma quarta misericórdia, quando acolhestes a minha
penitência com piedade, fazendo-me encontrar no número daqueles de quem fala o
salmista: "Bem-aventurados", diz ele, "aqueles cujos pecados são perdoados".
5. Segue-se a quinta misericórdia, pela qual me destes a força de viver depois em
continência e de modo mais irrepreensível, para que eu não recaia no pecado, cometendo
"um último erro pior do que o anterior". Pois é absolutamente claro, Senhor Deus, que
pertence ao Teu poder, e não ao do homem, tirar da cabeça o jugo do pecado depois de se
ter submetido a ele uma só vez, pois "quem comete pecado é escravo do pecado" e não
pode ser libertado dele senão pela mão de um homem forte. E, de facto, depois de me
teres livrado do mal com estas cinco misericórdias, para que se cumpra o que está escrito:
"Afasta-te do mal e pratica o bem", com outras duas, agracias-nos com os teus bens. Estes
dois são, portanto, a graça de merecer, com a qual nos concedeis os recursos de uma vida
boa (isto é: por Bernardo mesmo as nossas boas obras são sua graça, que nos concede
fazer para ter algo para merecer e não chegar totalmente de mãos vazias!), e a esperança
de obter, com a qual, a quem não é digno e é pecador, graças à vossa bondade tantas
vezes experimentada, dais a coragem de esperar até as coisas celestes. (isto é, a esperança
e o desejo de união com Deus, que seria uma loucura pensar se não fosse Deus mesmo que
põe no coração de um pecador este anseio.)

Você também pode gostar