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Rede Globo de Televisão

Central Globo de Produção

NOVELA DAS SEIS

Capítulo 15

Novela de
Gilberto Braga e Alcides Nogueira

escrita com:
Sérgio Marques
Márcia Prates
Lilian Garcia
Eliane Garcia

Colaboração de
Marília Garcia

Direção Geral
Marcos Paulo
Mauro Mendonça Filho

Núcleo
Marcos Paulo

Personagens deste capítulo

ABELARDO LEOPOLDO
ALICE MARTA
BARTOLOMEU OLINTO
BÁRBARA PALMIRA
CLEMENTE QUEIROZ
CRISTÓVÃO PEREIRA
DARIO REINALDO
ESTER ROSÁLIA
EUGÊNIO SOBRAL
FABÍOLA TRAJANO
FELÍCIO UBALDO
GASPAR VIOLETA
GUIOMAR VITÓRIO
HELENA WALDIR
HIGINO XAVIER
IDALINA YVETTE
INÁCIO ZULMIRA
JULIANA

Participação Especial

CLARISSA
NOVELA DAS SEIS 15/1

CENA 1. SALÃO DE ESTER. INTERIOR. DIA.

Cont. cap. anterior. Mesmos. Inácio a Ester surpresa:


Inácio — É longe mas preciso ir. Minha mãe.
Ester — Claro.
Inácio — E apresento você logo, se tenho de ir agora você
vem comigo, minha mulher.
Ester — Inácio...
Inácio — Sei que ela vai ficar boa, e vai gostar de você, vai
adorar, agora sim, porque/
Ester — Não, meu amor, agora não.
Inácio — Você... não quer?
Ester — Não é o momento, sua mãe doente, me apresentar à
sua família?
Inácio — Por que não, a mulher com quem vou me casar, a
melhor mulher que poderia...
Rapidíssimo olhar de Ester em torno, as garotas, o salão, hesita tocada mas
insegura, Inácio não percebe.
Ester — Inácio, eu quero muito conhecer sua família,
acredite, mas agora, todos abalados, tenho certeza de
que ela se recupera logo, aí com calma você explica...
quem eu sou, com tempo, o que você resolver está
bom pra mim, até lá espero, depois vamos a São Paulo
nos casar ou o que você quiser. O que quiser.
Corta para:

CENA 2. PORTA SALÃO DE ESTER. EXTERIOR. DIA.


Jesus levando malas de Ester para dentro da casa. Trajano já em seu carro,
Inácio e Ester se despedem, Guiomar e Eugênio observam. Trajano fala ao
cocheiro:
Trajano — Leve-nos à estação de trem.
Inácio — Queria tanto que você fosse comigo!
Ester — Eu vou. E nunca mais vou me separar de você
enquanto você me quiser.
Inácio — Então nunca mais vai se separar mesmo. Tem
certeza de que agora...
Ester faz que sim.
Inácio — Volto num instante, feche os olhos, quando abrir já
terei voltado. Não pra nos casar. Só pra assinar os
papéis, casados já somos, sou seu marido, você minha
mulher, pra sempre.
Beijam-se apaixonados, rapidamente, ela fecha os olhos. Depois de um longo
tempo ele se afasta suavemente, sobe ao carro.
Eugênio — Tenho certeza de que sua mãe vai ficar boa!
NOVELA DAS SEIS 15/2

Trajano — (se contém) Se alguma coisa pode ajudar é ver


você. Vamos, cocheiro!
Carro parte. Guiomar puxa Ester com delicadeza:
Guiomar — Vem, minha querida, ele já...
Ester abre os olhos, perdida, Inácio partiu.
Guiomar — (completa) Ele... já vai voltar.
Close de Ester, lágrimas nos olhos.
Corta para:

CENA 3. F. OURO VERDE. SALAS. INT. NOITE.


Rosália traz bandeja com aperitivos. Sobral e Abelardo recusam, Padre Olinto
bebe o seu e pega outro. Tensão.
Rosália — O jantar já vai ser servido.
Sobral — Estou completamente sem apetite.
Abelardo — Também não tenho disposição, Rosália. Cancele o
jantar.
Olinto — (se desespera) Cancelar? (tom) Acho que tenho de
voltar para a igreja.
Abelardo — Dr. Xavier não deu muitas esperanças, padre.
Podemos precisar do senhor a qualquer momento.
Rosália — (mau humor) Eu boto a mesa pro padre. Em
consideração à sá Helena.
Rosália sai. Olinto toma mais um gole de vinho. Acha de boa qualidade.
Corta para:

CENA 4. F. O. VERDE. QUARTO HELENA. INTERIOR. NOITE.


Helena na cama, Xavier terminando de pingar as gotas numa colher, Idalina
ajuda Helena a se recostar para tomar o remédio. Luzia, Marta e uma escrava
figurante ocupadas cada uma com um serviço. Depois, Zulmira.
Idalina — Este já é o terceiro frasco das gotas, doutor Xavier.
Estamos seguindo à risca as suas recomendações,
mas Helena me parece cada vez mais prostrada!
Xavier — A baronesa já tinha os pulmões debilitados, a
pneumonia é muito forte. Vamos aumentar a dose para
trinta gotas.
Xavier vira-se para Luzia, que verte a água da moringa numa bacia e molha
uma compressa, passa-a para Xavier, que a coloca na testa de Helena. Zulmira
chegando com bandeja do chá medicinal.
Corta para:

CENA 5. F. O. VERDE. BIBLIOTECA. INTERIOR. NOITE.


Leopoldo sonda Sobral fechado, enigmático.
Leopoldo — O Trajano... foi à corte.
Sobral — Trajano? O neto do...
NOVELA DAS SEIS 15/3

Leopoldo — Ele mesmo. Era preciso, Sobral, alguém tinha de...


avisar. Acredito que, com as notícias... você sabe,
talvez... enfim, talvez tenhamos visitas.
Espia Sobral fechado, inescrutável. Longa pausa e Sobral apenas murmura,
quase para si mesmo:
Sobral — Inácio...
Corta para:

CENA 6. SALÃO DE ESTER. EXTERIOR. DIA.


Manhã seguinte. Plano de localização.
Corta para:

CENA 7. QUARTO DE ESTER. INTERIOR. DIA.


Ester com Violeta, desfazendo sua mala, que estava pronta.
Ester — Ontem não tive forças...
Violeta — Você devia ter ido com ele.
Ester — Brigado com a família, Violeta.
Violeta — Por quê?
Ester — O Inácio não gosta de comentar, acho que o
problema foi com o pai. Eu ia me sentir... constrangida.
Ele sempre deixou bem claro que adora essa mãe! Mas
ela há de ficar boa, eu tenho certeza, o Inácio não pode
ter uma decepção assim! (pega lista de livros, tom)
Nem os livros pros garotos chegamos a comprar...
Agora nem sei... Porque numa hora de doença... torço
pra que se reconcilie com a família. Mas preferia que
não desistisse do trabalho em S. Paulo, não.
Violeta — Queria levá-la pra fazenda ontem mesmo!
Apresentá-la a todos!
Ester — Num momento de desespero, Violeta, tinha acabado
de receber a notícia da doença da mãe. Quando passar
a crise, que se Deus quiser vai passar, sim! ele... vai
cair em si. São Paulo é melhor pra nós.
Violeta — Será que o Inácio já chegou à fazenda?
Ester — É tão irônico...
Violeta — O quê?
Ester — Por causa dessa briga com o pai... o fato de não
querer comentar... Eu não tenho a menor idéia de onde
possa ser essa fazenda... um país tão grande! Vai ver
são dias de viagem...
Violeta — Vamos rezar. Deus não há de levar a mãe do seu
noivo de uma forma tão cruel, vamos rezar, Ester, não
há mais nada a fazer...
Ester triste.
NOVELA DAS SEIS 15/4

Corta para:

CENA 8. F. O. VERDE. QUARTO HELENA. INTERIOR. DIA.


Helena agonizante, padre Olinto que acabou de ouvir sua confissão, ao lado.
Olinto — Deus é misericordioso, Helena. Está arrependida de
todos os pecados que acaba de confessar?
Helena confirma.
Olinto — Agnus Dei, qui tollis peccáta mundi, dona nobis
pacem. In nómine patris et fillii et spiritus sancti, amen.
Helena fala com dificuldade, fraca.
Helena — O Abelardo, padre... eu quero ver meu filho.... O
Abelardo...
Corta para:

CENA 9. F. O. VERDE. SALAS. INTERIOR. DIA.


Continuam todos os de antes. Sobral zanza de um lado para o outro,
tensíssimo. Abelardo num canto. Felício é introduzido por Rosália. Vai até
Sobral e o cumprimenta, respeitoso.
Felício — Como ela está?
Sobral — Piora a cada minuto. O padre já... já deu a extrema-
unção.
Felício — E meu neto ainda não chegou com o Inácio?
Sobral — (distante) Inácio...
Padre Olinto chega até Abelardo e fala, baixo.
Olinto — Ela quer lhe falar.
Reação de Abelardo. Surpreso. Primeiro não sabe bem o que fazer. O padre
lhe faz sinal com a cabeça de que é uma obrigação. Abelardo caminha em
direção ao quarto. O clima pesadíssimo.
Corta para:

CENA 10. F. O. VERDE. QUARTO HELENA. INTERIOR. DIA.


Abelardo já fala muito abalado a Helena.
Abelardo — Sei que decepcionei a senhora, tratei injustamente,
não podia ter dito tantas coisas...
Helena — Não peça desculpas...
Abelardo — A senhora não merecia...
Helena — Tinha razão...
Abelardo — Fui injusto!
Helena — Razão sim... em tudo o que fez....
Abelardo — Não fale assim!
Helena — (sorri com esforço) Mas não adiantou... pode ser
severo... o quanto quiser...
Abelardo — Não fui severo! fui injusto!
NOVELA DAS SEIS 15/5

Helena — (sem ouvir) Eu não deixei... não vou deixar nunca...


de gostar de você... nem um pouco... Vou amá-lo até...
até o fim.
Abelardo — (força otimismo) Não diga isso! Vai passar, minha
mãe! E eu vou compensar, a senhora vai ver, e não vai
demorar, logo que estiver boa...
Helena — Eu talvez... não fique boa... (tom) Logo! (ansiosa)
Mas preciso tanto, antes de... enquanto ainda estou
aqui... tenho de falar com o... tenho de...
Abelardo — Com... o Inácio?
Helena — (muito ansiosa) Tenho medo... muito medo de... não
ter tempo, de não poder...
Corta-se, muito emocionada, ruído fora, vozerio. Abelardo se vira:
Abelardo — Parece que alguém... está chegando. Eu vou ver...
Volta-se de novo para a mãe, surpreso. Helena está calma, transfigurou-se,
sorri serena:
Helena — Vá. Eu espero. Chegou alguém sim. Acho que
chegou a tempo.
Corta para:

CENA 11. F. O. VERDE. SALAS. INTERIOR. DIA.


Os mesmos de antes. O vozerio que Helena ouvia na cena anterior bem claro
nesta. Inácio e Trajano acabaram de entrar e entregam agasalhos, ou o que
seja, apressadamente, a Cristóvão e Zulmira. Reações gerais à presença de
Inácio. Apenas Sobral, de costas, em conversa com Felício e Bartolomeu,
ainda não viu que foi o filho quem chegou. (Abelardo chegando do quarto.)
Felício indica com um gesto que Sobral deve olhar. Sobral vê Inácio. Emoção
forte. Sobral quer se aproximar de Inácio, tentando disfarçar a emoção. Inácio
com Rosália.
Inácio — Minha Rosália...
Abraça a escrava, olhando em direção ao quarto da mãe. Sobral chega ao
filho, Rosália se afasta. Closes alternados dos dois.
Sobral — Eu preferia que estivesse aqui por outros motivos.
Inácio — Minha mãe... (quer perguntar “está viva?”)
Sobral — Vá, Inácio, ela o espera.
Uma certa frieza e respeito entre pai e filho.
Corta para:

CENA 12. F. O. VERDE. QUARTO HELENA. INTERIOR. DIA.


Zulmira à porta, entreaberta. Helena caminha com muita dificuldade da cama
para a penteadeira, de camisola.
Zulmira — Posso mandar entrar?
Helena — (grito sussurrado) Não!
Helena tenta se maquiar um pouco, com dificuldade. Olha-se no espelho.
NOVELA DAS SEIS 15/6

Helena — Ajude aqui.


Zulmira se aproxima. Helena mostra o penhoar.
Helena — Por favor.
Zulmira ajuda Helena a vestir o penhoar. Helena indica que quer se sentar
numa chaise-longue.
Helena — Ali, vamos!
Zulmira a ajuda até a chaise-longue. Helena senta-se.
Helena — Eu... estou muito abatida?
Zulmira — Um pouco, sinhá, mas sô Inácio não tá esperando
que/
Helena — (corta, frágil) Já esperou muito. Vá, Zulmira. Diga
que ele pode entrar.
Um tempo. Zulmira abre a porta, Inácio entra e Zulmira sai imediatamente.
Grande emoção de mãe e filho, Inácio se ajoelha aos pés de Helena, beija-lhe
as mãos.
Inácio — Minha mãe... Minha mãe...
Corta para:

1º INTERVALO PARA COMERCIAIS

CENA 13. ESTALAGEM. INTERIOR. DIA.


Pouco movimento. Palmira acaba de servir mais uma dose de bebida forte a
Higino, que bebe num gole só, torturado. Vitório e Waldir com ele, atentos.
Figurantes. Gaspar entra depois. Abre em Reinaldo cochichando com Palmira,
que passa.
Reinaldo — Se continuar assim...
Palmira — Está desesperado! E eu acho que não é bem por
não ter conseguido a fazenda, sabe?
Reinaldo passa com gesto que não sabe e se afasta.
Higino — Mais uma dose. Deixe a garrafa aqui.
Palmira já se aproximou e serve. Higino segura a mão dela, assustando-a.
Higino — Você sabe! não está querendo me dizer! Eu preciso
de notícias da Helena!
Palmira — Não sei de nada... não sei mesmo...
Higino — Está mentindo. Você e aquele... Pelo amor de Deus,
me fala, é verdade que ela está morrendo?
Palmira se desvencilha.
Palmira — Eu não sei, seu Ventura. Juro que não sei!
Higino grita, descontrolado. Gaspar entrando.
Higino — Ninguém sabe nada? Eu preciso saber se é
verdade! Tenho de saber se ela está morrendo!
NOVELA DAS SEIS 15/7

Gaspar — É verdade, sr. Ventura, verdade sim. Eu acabo de


saber que a baronesa... Padre Olinto já está na
fazenda...
Higino se transforma, levanta-se transtornado.

CENA 14. F. O. VERDE. QUARTO HELENA. INTERIOR. DIA.


Helena muito fraca, com Inácio. Depois do primeiro sinal de tosse, melhor
nossa Sônia tossir quando assim o sentir, até o final. Quando sentirmos,
marcamos.
Helena — Deus é bom!
Inácio — Desculpa eu ter partido...
Helena — Deus ouviu as minhas preces!
Inácio — Eu não podia!
Helena — (por cima) Não podia me levar pra junto dele antes
que eu... (tosse)
Inácio — Não diga isso! Por favor, mãezinha! Não diga uma
coisa dessas!
Helena — Nós sabemos que eu vou (corta-se) Sabemos que
eu estou... muito fraca...
Inácio — (revoltado) Por isso eu fui embora! Não podia
suportar! Tratada do jeito que foi! Mas eu errei! me
arrependo muito! Minha obrigação era ficar aqui,
enfrentá-lo, deixei-a entregue à maldade desse crápula,
desse... (não sabe continuar)
Helena — Não fale assim... Por favor. O seu pai... ele tinha
razões pra... (tosse)
Inácio — Como eu o odeio!
Helena — Por favor, Inácio. Perdoe o seu pai.
Reação de Inácio, muito surpreso.
Helena — Ele... tinha motivos pra agir da forma que agiu...
Inácio atento, lívido.
Helena — Eu... não tive pelo Higino só uma... uma inclinação
de adolescente... Gostei dele, garota, a família proibiu.
Casei-me com o seu pai... (tom, tenta ser forte) Dois
anos depois de você nascer... eu... numa viagem... Foi
na Europa, seu pai voltou um pouco antes... Eu fiquei
em Lisboa com sua avó... Encontramo-nos por acaso
no hotel... O Higino já começando a prosperar... Eu...
cedi a instintos... fui infiel, Inácio. Eu traí o seu pai.
Corta rápido para:

CENA 15. F. O. VERDE. LONGE DA CASA GRANDE. EXTERIOR. DIA


ANOITECENDO.
NOVELA DAS SEIS 15/8

Higino, Vitório, Waldir, capangas entrando a cavalo na fazenda. Clemente, com


menos homens, diante dele tenso.
Clemente — Seu Higino, vamos conversar.
Higino — Diga o que tem a dizer na frente dos meus homens,
estou com pressa.
Clemente — Era melhor particular.
Vitório — O patrão já falou que está com pressa.
Clemente — O sr. não pode ir entrando assim, sou responsável.
Higino — Então me detenha. Mas rápido, porque estou
entrando!
Empurra cavalo de Clemente para o lado (ou afasta-o com seu próprio cavalo,
se Clemente estiver a pé), comanda os homens para dentro da fazenda.
Clemente acovardado.
Waldir — (ri) Olha o responsável!
Higino — Cale a boca! Vamos! Rápido! Eu não tenho tempo a
perder!
Plano de Higino e seus capangas cavalgando em direção à casa grande.
Corta para:

CENA 16. F. O. VERDE. QUARTO HELENA. INTERIOR. DIA ANOITECENDO.


Continua a confissão de Helena a Inácio.
Helena — Traí seu pai! Menti pra minha própria mãe... Ela
nunca soube. Ninguém soube! Só ao seu pai, na volta
da viagem, fui obrigada a contar a verdade porque...
porque eu fiquei grávida...
Tempo. Inácio começa a entender.
Helena — Só disse a verdade porque não tinha outra saída!
Pelo tempo em que ficamos sem nos ver... eu não
podia... Eu teria mentido, Inácio, estou falando com
você como... a um confessor... não posso mais
esconder coisa alguma... teria mentido, sim, porque...
tenho má índole, talvez... teria escondido o pecado, se
pudesse, mas não havia como, grávida, depois de...
Inácio — (com medo e vergonha) Grávida do... do Abelardo?
Helena — Do Abelardo.
Tempo. Inácio muito chocado.
Helena — Entende por que você precisa perdoar o seu pai?
Ele não expulsou a adúltera da casa! Quantos homens
numa situação assim teriam me dado por castigo... o
abandono... A desonra pública... Seu pai foi nobre!
Inácio — Tratando-a da forma que a/
Helena — (corta) Nobre! Foi bom! Deixou seu irmão nascer,
entendeu que a criança não era responsável, não podia
NOVELA DAS SEIS 15/9

culpar o menino! Criou o Abelardo com o mesmo


carinho que sempre deu a você!
Tempo. Inácio chocado.
Helena — Entende por quê nós não podíamos ter um
casamento de verdade?
Inácio — O Abelardo... Filho do... filho do...
Helena — (num rompante) O Abelardo não pode saber nunca!
Tempo.
Helena — Ele odeia o Higino! Adora o Henrique! Não pode
saber nunca, Inácio, nunca!
Inácio — Se fosse realmente nobre... a perdoaria, minha
mãe...
Helena — (defende) Amou o Abelardo e ama até hoje como
ama a você que tem seu sangue!
Inácio — O sr. Higino sabe que/
Helena — (corta) De modo algum! Eu nunca mais voltei a vê-
lo! Nem desconfia! E não pode desconfiar nunca!
Porque o Abelardo... olha pra mim, Inácio, meu filho
querido, olha pra mim... Jura por tudo quanto há de
mais sagrado que... você não vai deixar que o Abelardo
venha a saber! O Abelardo não pode saber nunca!
Olha pra mim!
Tempo. Inácio olha.
Helena — Eu não queria lhe dar essa dor, Inácio, não a você...
Mas também não podia deixar que odiasse um homem
que tinha motivos pra... (corta-se) Deu amor ao
Abelardo como deu a você! Olha pra mim!
Inácio olha.
Helena — Você tem ódio do seu pai?
Inácio — (envergonhado) Não.
Helena — Você jura que vai respeitar esse meu último pedido?
Inácio — Juro.
Corta rápido para:

CENA 17. F. O. VERDE. PORTA CASA GRANDE. EXT. NOITE.


Higino, Vitório, Waldir e homens saltam diante da porta, 2 ou 3 escravos
assustados por ali, Higino nem pára, só os empurra para o lado, vai entrando
enquanto fala:
Higino — Vitório e Waldir comigo, os outros esperam aqui!
Corta para:

CENA 18. F. O. VERDE. SALAS. INTERIOR. NOITE.


Mesmos de antes menos Inácio. Higino, Vitório e Waldir entram, Sobral já
avança, todas as falas rapidíssimas:
NOVELA DAS SEIS 15/10

Sobral — Esta é uma casa de família, bandido só entra aqui


pra se entregar!
Higino — Resolvo meus problemas com você na hora que
quiser, agora tenho outro assunto, não me obrigue a/
Abelardo — (corta) Se quiser dar mais um passo vai ter de
mostrar o homem que é. Não vai ser fácil sem escravo
pra atirar pelas costas.
Vitório e Waldir com as mãos nos cinturões, Higino hesita um segundo, enorme
tensão.
Corta rápido para:

CENA 19. F. O. VERDE. QUARTO HELENA. INTERIOR. NOITE.


Continua a confissão de Helena a Inácio, agora vão começar a ouvir falas
distantes, não muito claras, que vêm da sala.
Helena — Jura por tudo quanto há de mais sagrado?
Inácio — Juro.
Sobral — (grita OFF) Fora daqui!
Helena — Se o Abelardo algum dia souber... Ainda mais agora
que...
Higino — (OFF) Vou lhe mostrar quem é bandido!
Helena e Inácio ouvem os gritos, reagem.
Inácio — Espere um instante...
Higino — (OFF) Ninguém pode me impedir de entrar!
Inácio sai, rápido. Helena faz um esforço enorme e consegue se levantar.
Apoiando-se em móveis, vai tentar caminhar até a porta.
Vitório — (OFF) Ninguém chega perto!
Corta para:

CENA 20. F. O. VERDE. SALAS. INTERIOR. NOITE.


Mesmos de antes, clima muito tenso, Inácio veio de dentro. Higino contém
Vitório e Waldir.
Higino — Vou entrar, ninguém pode me impedir.
Inácio — Vai é sair já desta casa, vai prá rua que é o seu
lugar!
Higino — Tenho que ver Helena antes que... Ela está
morrendo, por culpa desse infeliz!
Sobral, que avança, acerta um soco em Higino:
Sobral — Baronesa! Quem lhe deu licença de chamar minha
mulher pelo nome?
Higino caiu, Inácio segura Sobral, Vitório e Waldir puxaram armas. Mas, antes
de as erguerem, Abelardo, mesmo apoiado na bengala ou em algum móvel, é
mais rápido e apontou a sua, fala frio, senhor da situação:
NOVELA DAS SEIS 15/11

Abelardo — Se os dois levantarem as armas um vai me matar.


Mas o primeiro vai morrer. Vamos! Mostrem o quanto
são valentes!
Vitório e Waldir com as armas apontadas para baixo, com medo. Inácio,
também calmo agora, sorri:
Inácio — O Abelardo já tomou conta, meu pai. Então, sr.
Vitório, não está pronto a se sacrificar pelo patrão?
Vitório hesita um segundo, depois pousa a arma sobre um móvel. Waldir faz o
mesmo. Mas Higino se levantou:
Higino — Esses dois podem ser dois covardes. Mas eu vou
entrar. (a Abelardo) E você vai ter de usar essa arma a
sangue frio se quiser me impedir.
Dá um passo à frente e pára ao ouvir:
Helena — (calma) Quer falar comigo?
Reações. Helena veio do quarto muito fraca, ampara-se a algum móvel.
Reações gerais à presença dela. Close de Helena.
Corta para:

2º INTERVALO PARA COMERCIAIS

CENA 21. F. O. VERDE. SALAS. INTERIOR. NOITE.


Os mesmos de antes. Continuação imediata. Inácio corre até Helena.
Inácio — Mãe, a senhora não pode se levantar!
Higino — (por cima, emocionado) Helena, você...

nei. Nem me importa o que o senhor quer, não lhe


perguntei. Eu estou doente e quero me recuperar junto
do meu marido, dos meus filhos, dos meus amigos. (vai
mudar o tratamento) Entre os quais não está você.
(com enorme desprezo) Eu o conheci sim, era quase
uma criança, tenho de você uma lembrança
indestrutível. Sabe as memórias infantis que se levam
pra toda a vida, os medos, os nojos do tempo em que
se tem pavor de que uma barata ou um morcego possa
nos atacar à noite e nos sentimos... fracos, indefesos?
Eu cresci mas ainda tenho nojo de baratas! (vira-se,
agora sem elevar a voz) Saia da minha casa, eu quero
descansar.
Higino um segundo sem ação, arrasado.
Helena — Saia!
Sem uma palavra, Higino sai, tonto, esbarra nos móveis, empurra os capangas
que o seguem. Helena desmonta, quase desfalece, Inácio e Xavier a carregam
para o quarto.
NOVELA DAS SEIS 15/12

Xavier — Isto foi uma loucura, precisa deitar-se


imediatamente, eu vou examinar...
Cortou para Sobral perplexo com Felício:
Sobral — Mas por quê, por quê?! Sair da cama nesse estado,
o esforço, dizer essas coisas...
Felício — (nostálgico) Ver a pessoa que se ama em perigo nos
dá forças de que nem suspeitamos.
Sobral — Justamente, por isso não entendo! (agora mais
sofrido do que rancoroso) Juntar as últimas forças pra
expulsar o homem que ela amou a vida toda!
Felício — O homem que ela... amou?
Sobral — (triste) Que me importa isso agora, todos já devem
saber, sempre foi apaixonada por esse canalha, desde/
Felício — (corta) Está louco, barão? Não vê o que todos os
outros sempre viram? será preciso que venha um velho
cavalheiro como eu... para tirar o véu dos seus olhos,
lhe mostrar o que está diante de seu rosto?
Sobral — Conselheiro, pelo amor de Deus, o que é que o
senhor está querendo dizer?
Felício — Prometi à baronesa que não ia contar nunca mas...
Não tenho condições de cumprir a promessa. Quer
saber como sua mulher ficou nesse estado?
Sobral — (muito tenso) Prometeu não contar o quê?
Felício — Sabe onde ela estava na noite da tempestade?
Sobral — Helena? Na noite da tempestade?
Felício — (sim) Comigo, na minha casa, aonde foi debaixo de
chuva, sozinha, molhada até os ossos, para oferecer
suas jóias, implorar que eu não cobrasse a sua dívida!
Sobral — A Helena... fez isso? Foi por isso que o senhor...
Felício — Não, Sobral. Acho você um imbecil mas um imbecil
de bem, não ia aceitar as jóias de sua mulher pra lhe
dar crédito! Mas Helena... esta parece que não o quer
só pelo seu caráter, terei de lhe dizer ainda o que deve
fazer agora, enquanto é tempo?
Sobral olha desesperado para o quarto de Helena. Caminha em direção ao
cômodo, muito tenso. Cruza com Inácio e Xavier, que estão saindo.
Inácio — (um trapo) Ela... tem alguma chance, doutor?
Xavier — Seu maior desejo era ver você. Falava muito em
você! Em momentos de delírio, febres altas...
Corta para:

CENA 22. F. O. VERDE. QUARTO HELENA. INTERIOR. NOITE.


Helena na cama, Idalina e Rosália ajeitam travesseiros, colchas, procuram
alguma posição mais confortável. Sobral entrando. Rosália carinhosamente
NOVELA DAS SEIS 15/13

enxuga com um lenço o suor no rosto de Helena. (Talvez só nesta cena nossa
Sônia devesse aparecer com seus cabelos completamente soltos, mas isso
depende da evolução que puder haver desde o início do capítulo, fica a critério
de vocês.) Sobral se aproxima.
Sobral — (a Rosália e Idalina) Eu preciso falar com ela.
Rosália — (enfrentando) Não pode, não! Ela já se cansou
demais!
Helena, muito frágil, pega a mão de Rosália, com carinho.
Helena — Por favor, Rosália, obedeça.
Contra a vontade, Rosália sai, seguida por Idalina. Sobral olha Helena
longamente. Closes alternados dos dois.
Corta para:

3º INTERVALO PARA COMERCIAIS

CENA 23. F. O. VERDE. QUARTO HELENA. INTERIOR. NOITE.


Helena e Sobral, continuação imediata.
Helena — Eu... estou com sede... muita sede...
Sobral serve um copo d’água a Helena enquanto fala.
Sobral — É verdade?
Helena bebe a água, sôfrega.
Sobral — É verdade que você procurou o Conselheiro? Que
ofereceu suas jóias pra salvar a fazenda?
Helena — Ele... prometeu não contar...
Sobral — (desesperado, sem gritar) Por quê, Helena? Por
quê?
Helena — Você... ainda não entendeu?
Close de Sobral, confuso.
Helena — Eu lhe disse, quantas vezes lhe repeti, eu estive
com este homem, sim, fui envolvida, mas só por uma
noite!
Sobral — Eu nunca tive motivo pra acreditar em você! uma
mulher que (corta-se, olha para a direção da sala onde
sabe que está Felício) Você... não o amava?
Helena — Nunca mais voltei a vê-lo, Henrique! Quantas vezes
vai ser preciso que eu repita! Eu aprendi a amar...
você!
Close de Sobral.
Helena — (mais fraca do que nunca) A forma como você criou
o Abelardo... como se fosse seu... Eu te adoro,
Henrique... só errei uma vez...
Sobral — O que você está dizendo...
Helena — Você! (tosse)
NOVELA DAS SEIS 15/14

Sobral — Quer dizer que... por todos esses anos...


Helena — Você... (tosse)
Sobral — Por todos esses anos... nós podíamos ter sido
felizes?
Helena fecha finalmente os olhos. Morreu.
Sobral — (consigo mesmo) Felizes...
Sobral se dá conta de que Helena está morta. Sacode-a desesperado,
chorando.
Sobral — (agora grita) Helena! Helena!
Plano geral de Helena morta, nos braços de Sobral.
Corta para:

CENA 24. F. O. VERDE. PORTA CASA GRANDE. EXT. DIA.


Manhã seguinte. Plano de localização.
Corta para:

CENA 25. F. O. VERDE. SALAS. INTERIOR. DIA.


Idalina vem vindo de seu quarto, vestida para o enterro, apoiada por Leopoldo.
Abelardo caminha até eles.
Idalina — (sofrida, ao neto) Estão todos prontos?
Abelardo faz sinal com a cabeça de que o pai está com Inácio, na biblioteca.
Idalina olha. Corta para a biblioteca, Sobral e Inácio. Depois que Inácio fala em
ódio, diálogo muito rápido, intenso, falas por cima das outras.
Sobral — Ela lhe contou?
Inácio — Tudo.
Sobral — (preocupado) O Abelardo...
Inácio — Nunca vai saber de nada, jurei.
Sobral — Não pode, nunca, ele não tem culpa de ter nascido
daquele/
Inácio — Nenhuma, culpa nenhuma, só quem tem culpa
nessa tragédia... sou eu.
Sobral — Você?! Mas por quê, que é que está dizendo, eu é
que/
Inácio — Ódio.
Sobral — Como, ódio, do quê/
Inácio — Eu achava o senhor cruel, gratuitamente cruel, falso,
liberal da boca pra fora, tirano dentro de casa,
insensível, injusto!
Sobral — Eu era, sou, você tem razão, mereci!
Inácio — Acho que cheguei a sentir verdadeiro ódio do
senhor!
Sobral — Tinha razão, o que eu fiz foi/
Inácio — E hoje sei que no seu lugar talvez tivesse feito
exatamente a mesma coisa.
NOVELA DAS SEIS 15/15

Sobral — Você?! Mas... por quê, sua mãe...


Inácio — Se tivesse acontecido comigo será que eu ia saber
perdoar? compreender? Ia ser difícil demais... aceitar,
entender...
Agora mais suave, Sobral subitamente maduro, compreende o que o filho
sente:
Sobral — Você está aprendendo da maneira mais dura... que
às vezes é muito difícil saber ser homem. Como eu não
soube.
Inácio — Ao contrário. Me ensinou. Porque nunca vou
cometer esse erro. Que cometeria se não tivesse visto
o que vi. Aconteça o que acontecer nunca vou deixar
pro último minuto pra ser feliz com a mulher que eu
amo, o senhor me ensinou, minha mãe me ensinou. E
o senhor vai prometer, me deve, deve a ela, esquecer
as culpas agora, os rancores, é meu pai, eu o amo,
estamos indo à igreja enterrar a minha mãe, sua
mulher... Se a vida dela não teve grande sentido, meu
pai, que ao menos a morte... Morreu para que nós nos
perdoássemos. Vamos caminhar para a frente,
continuar, deixar o passado... passar, vamos... tentar
ser felizes.
Sobral o abraça, talvez tenham lágrimas nos olhos.
Sobral — Vou tentar, isso eu juro, meu filho, vou tentar com
todas as forças. Por Helena.
Abraço muito longo e comovente entre os dois.
Corta para:

CENA 26. F. M. ALTO. SALAS. INTERIOR. DIA.


Bárbara e Alice saem de casa, de luto.
Alice — (excitada) Será que o filho mais velho vai estar lá?
Bárbara — E onde já se viu filho não comparecer ao enterro da
mãe?
Higino vem do quarto, arrasado, mal dormido e irritado.
Higino — Nem mais um passo, as duas! Aonde estão
pensando que vão?
Bárbara — Higino, você não vai nos proibir de/
Higino — Já proibi!
Bárbara — Mas eu conheci Helena Sobral!
Higino — Volte ao seu quarto! obedeça!
Bárbara — Eu me sinto na obrigação! Eu quero!
Higino — (grita) Agora!
Bárbara — A mãe dela é nossa amiga!
Higino — Vou ter de arrastá-la pelos cabelos?
NOVELA DAS SEIS 15/16

Bárbara — Pelo amor de Deus, Higino, você está sendo


insensato!
Higino — (fora de si) Estou no meu direito! Me respeite,
Bárbara! Respeite os meus sentimentos!
Bárbara — (encara) Que sentimentos? Do que é que você está
falando?
Higino — (recua) Do meu ódio por aquela família.
Bárbara — Se é por isso, está na hora de nos mostrarmos
superiores, acima de uma briga mesquinha por terras
num momento de... dor. (tom) Vamos, Alice.
Elas partem. Higino fica olhando, meio catatônico, sofrendo muito. Tempo.
Toma uma decisão e sai.
Corta para:

CENA 27. F. M. ALTO. PORTA CASA GRANDE. EXTERIOR. DIA.


Higino caminha rapidamente em direção a seu cavalo, monta e parte a galope.
Corta para:

CENA 28. IGREJA. EXTERIOR. DIA.


Higino chega a galope à porta da igreja onde Helena está sendo enterrada.
Salta do cavalo longe da porta. Fica olhando de longe, sofrido.
Corta para:

CENA 29. IGREJA. INTERIOR. DIA.


O enterro de Helena. Padre Olinto ministrando a cerimônia fúnebre. Diante do
túmulo, Sobral entre Abelardo e Inácio. Idalina apoiando-se em Leopoldo.
Trajano, Felício, Bartolomeu. Xavier, Fabíola, Juliana, disfarçando olhares para
Abelardo. Mais afastadas, Bárbara com Alice, que não tira o olho de Inácio.
Idalina registrando Alice. Pereira, Gaspar, Yvette, Ubaldo, Reinaldo, Palmira.
Os escravos de Ouro Verde emocionados, com flores nas mãos e lágrimas nos
olhos: Zulmira, Rosália, Cristóvão, Marta e Dario. Figurantes da vila e fazendas
da região. Último plano deve ser Inácio.
Corta para:

CENA 30. QUARTO DE ESTER. INTERIOR. DIA.


Ester apreensiva com Guiomar.
Guiomar — Isso você nunca tinha me dito, Ester! Que nem ao
menos sabe onde fica esta fazenda!
Ester — E que importância tem o lugar onde fica?
Guiomar — É, tolice minha... No fundo acho que é porque... Ah!
eu gostaria que nada disso tivesse acontecido! Você
pronta pra partir! Esta mãe não podia ter esperado
outra hora pra...
NOVELA DAS SEIS 15/17

Ester — (serena) Não fale assim. Vamos rezar pra que ela se
recupere. Quem sabe nesse exato momento a mãe do
Inácio já não está bem? De qualquer modo, eu sei que
dentro de poucos dias o Inácio vai voltar, é o meu
amor! o único amor que eu tive na vida! E me ama,
Guiomar, tenho certeza, tanto quanto eu a ele!
Corta para:

CENA 31. IGREJA. INTERIOR. DIA.


Mesmos de antes, mais tarde. Fila de pêsames diante da família. Sobral,
Inácio, Abelardo, Idalina e Leopoldo recebem cumprimentos. Bárbara e Alice
na fila. Fabíola e Juliana cumprimentando.
Fabíola — Meus sentimentos.
Sobral — Muito obrigado. Obrigado, d. Fabíola...
Idalina, discretamente, cutuca Leopoldo porque Alice vai cumprimentar Inácio.
Leopoldo olha. Alice, na fila, diante de Inácio. Close dele, sem nenhuma reação
especial. Close de Alice, absolutamente fascinada por Inácio.
Corta.

FIM

PLAYBOY ENTREVISTA GILBERTO BRAGA


por Ruy Castro
Uma conversa franca sobre sexo, censura, dinheiro,
sucesso, os bastidores da TV e o fantástico mundo da novela
das oito, com o autor de Água Viva

Durante todo este mês de Julho, 50 milhões de brasileiros estarão sintonizados na


cabeça de Gilberto Braga. Água Viva, a novela que, desde Fevereiro, tem obrigado o
Brasil a ficar em casa entre 8 e 9 da noite, aproxima-se do último capítulo - e essa
multidão de telespectadores está ansiosa por saber os destinos que Gilberto terá
reservado para Nelson (Reginaldo Faria), Lígia (Betty Faria), Sueli (Ângela Leal),
Miguel (Raul Cortez), Estela (Tônia Carrero), Lurdes (Beatriz Segall), Janete (Lucélia
Santos), Marcos (Fábio Jr.), Sandra (Glória Pires), Irene (Heloísa Mafalda), Edir
(Cláudio Cavalcanti), Márcia (Natália do Vale), Cléber (José Lewgoy), Selma (Tamara
Taxman), Maria Helena (Isabela Garcia) e os outros personagens que, durante tantos
meses, entusiasmaram tanta gente.
Água Viva chegará ao fim com uma média de 90 pontos no Ibope este mês - a mais
alta na história da telenovela -, mas a Rede Globo não descarta a possibilidade de, no
próximo dia 2 de Agosto, quando for ao ar o último capítulo, a novela superar até os
quase 95 pontos que Pai Herói, de Janete Clair, alcançou no dia 18 de Agosto de 1979.
Se isso acontecer, não será surpresa porque Gilberto Braga está sendo considerado
pela crítica como o melhor discípulo de Janete Clair. E a própria Janete foi mais longe e
o classificou como "o melhor de nós todos".
Melhor discípulo ou melhor de todos, o fato é que, da cabeça de Gilberto, saíram os
personagens e situações que, nestes últimos meses, andaram açulando paixões,
despertando suspiros, provocando ódios e lançando modas em todo o Brasil.
As pessoas se comoveram (e vão se comover mais do que nunca) com o drama de
NOVELA DAS SEIS 15/18

Maria Helena, que conseguiu despertar até um novo interesse pelo problema da
adoção e do menor abandonado. Elas amaram Nelson Fragonard e tiveram
sentimentos confusos a respeito de seu irmão Miguel. Torceram desesperadamente
por Sueli e reagiram violentamente a Lígia, já que ambas disputavam Nelson. Mas o
personagem que reuniu a quase unanimidade de sentimentos foi o de Lurdes Mesquita,
inspirado - segundo Gilberto - na madrasta da Branca de Neve. Rapaz, como ela foi
odiada! Mas o melhor é que todos esses sentimentos continuarão sendo alimentados
até o fim deste mês, quando todas as peripécias de Água Viva crescerão em
intensidade até atingirem um clímax que, para milhões, será comparável ao de um
orgasmo.
Depois de Água Viva, todas as praias do Brasil adotaram o windsurf. Reginaldo Faria
tornou-se o novo símbolo sexual masculino do país, após vinte anos de carreira
cinematográfica. Lucélia Santos firmou a imagem de menina-moça que explodiria em
toda a sua suave beleza nas páginas de PLAYBOY de Abril último. E Betty Faria, de
quem os leitores de PLAYBOY sentiam saudades desde a nossa edição de Agosto de
1978, voltou com força total, após quase dois anos fora das novelas.
Gilberto Braga, carioca de 34 anos, não tem apenas um grande futuro como escritor de
televisão. Já tem até passado. Começou adaptando A Dama das Camélias para um
"Caso Especial" e, durante alguns anos, habitou o horário das seis com Senhora,
Helena, A Escrava Isaura e Dona Xepa. Todas essas eram adaptações de romances
ou peças conhecidos, mas os créditos na abertura foram passando aos poucos de
"Adaptação de Gilberto Braga" para "Uma Novela de Gilberto Braga", tal a margem de
invenção a que ele se permitia. A novela das seis é aquela em que a Globo tenta
formar escritores novos, antes de lançá-los na grande aventura da novela das oito, que
é o filé do Ibope.
Para Gilberto, o salto para o horário das oito não foi uma aventura - foi uma apoteose.
A novela chamou-se Dancin’ Days, e, de Outubro de 1978 a Março de 1979, manteve o
país inteiro ao ritmo da discothèque, e fez todo mundo se apaixonar por Júlia (Sônia
Braga) e Cacá (Antônio Fagundes). Com Dancin’ Days, Gilberto Braga passava a fazer
parte desse clube fechadíssimo, composto por Janete Clair, Dias Gomes, Bráulio
Pedroso e poucos outros.
Água Viva teve uma característica que, de saída, tornou-a diferente de todas as
novelas: deu 80 de Ibope logo no primeiro mês, seus astros foram capa de todas as
revistas e o clima da história - pesca, veleiro, topless, patins, festas e juventude -
envolveu imediatamente o grande público numa atmosfera de euforia. A maioria das
novelas começa por baixo e leva quase dois meses para decolar.
Mas como será a cabeça do autor de Água Viva? Para descobrir isso, como se faz um
noveleiro de sucesso e o que acontece por trás das câmeras, o editor Ruy Castro
passou dois dias inteiros no amplo apartamento de Gilberto Braga no Flamengo, no Rio
- teto preto, spots aparentes e uma estante cheia de livros sobre o cinema americano.
"Eu já conhecia o Gilberto desde que ele era crítico de teatro, no início dos anos 70, e
ainda se assinava Gilberto Tumscitz. Perguntei-lhe por que tinha mudado para Gilberto
Braga", diz Ruy.
"Braga é o sobrenome de minha mãe”, respondeu Gilberto. "Mas só mudei para facilitar
as chamadas de áudio na televisão. Ia ser difícil o público entender: 'Uma novela de
Gilberto Tumscitz, dirigida por Ziembinsky e estrelada por Sura Berditchevsky e Ísis
Koschdoski'. Não ia vender bem, ia?"
E Gilberto Braga gosta de vender bem o seu produto.
PLAYBOY - O incrível sucesso de Água Viva fez de você a maior revelação de escritor
de televisão em muitos anos. Por que aparecem tão poucos bons autores de novela?
GILBERTO BRAGA - Deve ser porque é difícil escrever novela, não? E além disso é
muito chato escrever uma história que tem de durar 150 capítulos e te obriga a produzir
NOVELA DAS SEIS 15/19

vinte laudas por dia, trabalhando a noite toda, acordando às 3 da tarde, sem ir ao
cinema, sem ir ao teatro. É desumano. Outro dia eu li uma entrevista do Carlos
Eduardo Novaes dizendo que, depois de Chega Mais, ele não quer escrever outra
novela, porque não tem visto a mulher dele e tal. Eu entendo. E, se olhar para a minha
cara, você vai ver que eu estou arrasado, física e psicologicamente.
PLAYBOY - Parece em bom estado de conservação. Mas como seria a estrutura ideal
de novela para você? Noventa, cem capítulos, ou seja, três ou quatro meses no ar?
GILBERTO - Não. Eu tenho a impressão de que, pelo menos por enquanto, vai ter que
continuar assim, porque acho que o público prefere novela longa. Ele demora muito a
se ligar na novela, principalmente as classes B e C.
PLAYBOY - Mas com as suas não acontece isso. O público adorou Água Viva desde o
começo.
GILBERTO - É. Com as minhas não. Talvez porque eu tenha uma boa audiência na
classe A, e classe A se liga mais depressa. Mas o grosso dos telespectadores só
começa a se interessar depois de um mês da novela no ar. Eu sinto isso na minha
casa, pela minha cozinheira, que só fica ligadona a essa altura. Comigo é o contrário,
porque eu só acho muito interessantes os primeiros capítulos e, quando o público
começa a gostar, eu já estou cansado, estou noutra e não queria mais estar
escrevendo aquilo.
PLAYBOY - Então por que continua? Por dinheiro?
GILBERTO - É claro que dinheiro é superimportante na minha vida, mas dizer que eu
faço televisão por dinheiro seria uma simplificação. Tem outras coisas também. A
sensação do sucesso é muito boa e eu lamento minha mãe não estar viva, porque ela
adoraria. É ótimo quando, depois de um capítulo bom, o telefone não pára, os amigos
ligam para dizer que gostaram daquela frase ou daquela cena.
PLAYBOY - Seja como for, dinheiro é muito importante na vida dos seus personagens,
não?
GILBERTO - Demais! Eu acho um saco o quanto se fala em dinheiro em Água Viva.
[Risos.]
PLAYBOY - Você tinha algum preconceito cultural contra a televisão no tempo em que
era crítico de teatro?
GILBERTO - Preconceito, não tinha, não. Problema em relação ao veículo eu tenho até
hoje, e só estou conseguindo superar um pouquinho com o meu vídeo-cassete. Me
grila muito esse negócio de ter que ver alguma coisa numa hora que escolheram para
mim. Mas isso não tem a ver com preconceito, e sim com liberdade. Eu não era um
espectador de televisão. Não era mesmo, não via nada. Uma dúvida que eu nunca vou
resolver na minha cabeça é a de que, caso não tivesse entrado para a televisão, se
algum dia eu seria espectador de televisão. Eu sempre me pergunto se veria Água Viva
se não fosse o autor. Tenho a impressão de que, vendo, eu ia gostar, ia achar
interessante. Mas não teria saco para ligar toda noite às oito horas. Há muito mais
coisas para fazer.
PLAYBOY - Suponhamos que a maioria dos telespectadores não tenha tantas coisas
para fazer.
GILBERTO - Pois é. Talvez isso tenha a ver com o fato de eles preferirem novela
longa. Essa gente tem tão poucas opções de vida que precisa conviver durante seis
meses com personagens que eles amam ou odeiam, mas que fazem parte da vida
deles. Se as novelas fossem mais curtas, eles iam perder essa convivência e, até se
acostumarem com uma nova família de personagens, seria trágico para eles. Pode ser
isto, sim.
PLAYBOY - Como se explica que Água Viva tenha dado 80 pontos no Ibope logo no
primeiro mês?
GILBERTO - Acredito que foi porque entrou numa época favorável, logo depois de uma
NOVELA DAS SEIS 15/20

novela que não era muito amada, como Os Gigantes, e então o público devia estar com
vontade de ver alguma coisa interessante. Porque, em geral, é o contrário. Depois de
um grande de sucesso, como Dancin’ Days, por exemplo, o público pensa assim: "Ah,
não vou mais ver novela, porque me atrapalha o jantar ou chega uma visita e eu não
posso conversar por causa da novela, e não sei o quê". As pessoas ficam com
sentimento de culpa por não estarem fazendo outra coisa, por se sentirem escravos.
Mas aí entra a novela seguinte e, como eles não têm opções, não resistem e vêem até
o capítulo 150. Mas não vamos ser modestos demais: eu acho que o sucesso de Água
Viva tem muito a ver também com a qualidade da novela. Ela é viva, os personagens
são interessantes.
PLAYBOY - Como se cria uma novela como Água Viva?
GILBERTO - No meu caso, eu começo por uma boa lista de personagens e de atores,
uns cinco ou seis. Depois vou fazendo outros personagens que tenham a ver com eles,
quer dizer, pai, mãe, tios, irmão, namorada. Dai em diante, vou criando situações até o
último capítulo, numa redundância que possa manter o público interessado. Porque
novela é isso mesmo: é redundância, é encher lingüiça, tem que inventar pra cacete...
PLAYBOY - Você não faz uma idéia muito boa das novelas...
GILBERTO - Faço sim! Além disso, encher lingüiça pode ser uma coisa muito
agradável.
PLAYBOY - Bem, aí você reúne esses personagens numa sinopse que você submete à
Globo, ou já aconteceu de a Globo te dar uma dica: "Olha, vamos fazer uma novela
bem pro alto ou bem dramática"?
GILBERTO - Já aconteceram as duas coisas. Na minha primeira novela, a idéia geral
foi da Globo. O Daniel Filho, que era o diretor geral das novelas, queria uma história de
herança, me deu uma ideinha e surgiu A Corrida do Ouro, que eu escrevi junto com o
Lauro César Muniz. Nas novelas seguintes, as idéias foram minhas. Claro que isso tem
muito de intuição, e é mais ou menos óbvio que, depois de uma novela mais pra baixo
como Os Gigantes, tinha de sair uma bem pro alto. No caso de Água Viva, eu não
conseguia entregar uma história definitiva, só esboços. Eu tinha os dois irmãos, Nelson
e Miguel, tinha a Lígia, mas o resto estava obscuro. Eu não sabia se o Nelson devia ser
irmão bastardo, se começava rico ou começava pobre. Aí a gente discutiu com o Boni e
surgiu a idéia do barco e da pesca, porque nós já tínhamos Angra dos Reis. Aliás, a
idéia do veleiro foi do Daniel Filho, que me disse: “Ah, você vai gostar de veleiro! Você
não lembra quantas vezes o Humphrey Bogart comeu a Lauren Bacall num veleiro?"
[Risos.]
PLAYBOY - Quando você cria um personagem, você tem em vista um ator para ele ou
isso não chega a ser uma preocupação?
GILBERTO - Eu sempre tenho em vista um ator, só que nem sempre é esse ator que
vai fazer o papel. O ideal seria fazer o contrário. Em Água Viva, por exemplo, em que
quase todos os papéis foram criados em cima dos atores, um dos que mais funciona é
justamente o único que foi escrito sem ator definido: a Lurdes. A Tônia Carrero chegou
a gravar, depois houve uma troca de papéis e a Lurdes acabou sendo a Beatriz Segall,
que hoje é uma das melhores da novela.
PLAYBOY - Água Viva tem nada menos que 55 personagens com falas. Como é que
você faz para não se perder no meio da novela e misturar características de
personagens?
GILBERTO - Bem, eu não posso ir pela memória, porque não tenho muita. Eu vou pelo
grande dom que eu acho que está me ajudando a vencer na vida, e que é o ouvido. Eu
tenho muito ouvido. Eu vou muito no tom do ator que está fazendo o papel e, quando
estou escrevendo, quase ouço ele falando, como se ele estivesse ditando a novela
para mim.
PLAYBOY - Acontece às vezes de certos atores recusarem pegar determinados
NOVELA DAS SEIS 15/21

personagens, achando que podem atrapalhar a imagem deles?


GILBERTO - Que acontece, não tem nem dúvida. Mas eu nunca tive esse problema,
porque, se eu próprio sinto que está atrapalhando a imagem do ator, eu começo a
mexer no personagem. Dancin' Days, por exemplo, tinha uma fase em que o
personagem da Sônia Braga voltava da Europa e virava putona. Mas aí todo mundo
começou a reclamar. Sônia Braga foi ótima, fazia bem putona mesmo, como eu queria;
mas, depois de um mês no ar, eu já não agüentava mais: "Ah, porque ela não pode
fazer isso!" ou "Ah, porque ela não pode explorar o Ubirajara!" Aí eu mudei - e mudo
mesmo, porque eu estou escrevendo novela para agradar ao público. Escrever novela
já é um saco e ainda sair à rua e ter de ouvir gente reclamando, eu não quero. Como
mudei também a Lígia, o personagem de Betty Faria em Água Viva, pelo menos um
pouco. Eu tenho uma tendência a fazer heroína puta, eu gosto de puta à beça, mas o
público não gosta de puta feito eu.
PlAYBOY - E a Betty, também não estava gostando?
GILBERTO - A Betty? Pelo que me disse, estava. Mas o fato é que ela não estava
agradando, né? E ninguém gosta de não agradar. As pessoas punham a culpa nela,
mas a culpa só podia ser minha, porque ela sempre fez a Lígia exatamente como eu
imaginei. E a Lígia era pra ser gostada pelo público - puta, sim, mas era pra ser
gostada. Eu acho a Lígia muito mais interessante, por exemplo, que a Sueli. Todo
mundo gosta da Sueli: "Ah, por que o Nélson não casa com a Sueli?” ou "A Sueli, sim,
é que é mulher pro Nélson"... Pois eu acho a Sueli chata pra cacete, embora adore a
atriz, que é a Ângela Leal e que está fazendo muito bem. Mas o personagem feminino
que eu curto mesmo é a Lígia.
PLAYBOY - Se curtisse mesmo, manteria o personagem daquele jeito.
GILBERTO - Mas eles não forçam a minha barra pra eu fazer isso. Eu sou público
também, e quero que gostem.
PLAYBOY - Como é o seu contacto com o público?
GILBERTO - Eu acho que tenho contacto mais ou menos com todas as classes, só que
mais com a A e menos com a C. Mas me chegam cartas de todos os lugares, a classe
C escreve muito.
PLAYBOY - E o que eles escrevem?
GILBERTO - De cada cem cartas, cinqüenta são de gente pedindo pra ser ator. As
outras têm geralmente a ver com o que está acontecendo na novela. Outro dia, chegou
uma carta de Recife, escrita por um casal de certa escolaridade, no mínimo ginásio
completo, bem articulada, sabe como é? Eles falavam no problema da adoção, que
estava muito bem enfocado na novela, etc. De repente, eu levo o maior susto: eles
propunham uma solução para o problema e se ofereciam para adotar a Maria Helena!
Queriam que a Sueli os encaminhasse à direção do orfanato e aí falavam da vida
deles, da casa deles e de como eles tinham condições de criar a menina numa boa!
[Risos.]
PLAYBOY - Incrível!
GILBERTO - Pois é. Eles acreditam nos personagens...
PLAYBOY - Isso não dobra a sua res ponsabilidade? Por exemplo, você não usa uma
certa dose de cinismo para escrever o personagem da Maria Helena.
GILBERTO - Não sei se posso chamar de cinismo, porque eu vejo o cinismo como uma
coisa muito positiva. É claro que é um personagem de apelação, que vai
inevitavelmente comover, mas que me comove também, porque tem um lado meu que
gosta muito dessas coisas, que chora com o drama da Barbara Stanwick e do filho em
Stella Dallas, etc. Eu hesitei em criar a Maria Helena porque não gosto muito de
criança, não tenho ligação com criança de menos de 10 anos. Então era um risco muito
grande escrever sobre uma menina de 8 anos. Mas, depois que o Manoel Carlos
começou a dividir a novela comigo, ficou bom, porque eu acho que ele escreve a Mana
NOVELA DAS SEIS 15/22

Helena melhor que eu.


PLAYBOY - Você é muito cobrado pelas chamadas "patrulhas ideológicas"?
GILBERTO - Ah, sou. Outro dia, uma revista aí, dessas que vendem pouco, me
perguntou por que eu não aproveitava a abertura para discutir em Água Viva a
realidade do país mais a fundo e não sei o quê. Esse tipo de pergunta me enche muito
o saco porque eu não saberia discutir a realidade mais a fundo na novela. Eu veria com
prazer programas políticos na televisão, seria uma boa, mas, se eu fosse fazer política
na novela, ia sair uma bosta, ninguém iria gostar, iriam desligar na minha cara ou então
ficar reclamando. Então, proselitismo eu não faço, tento não fazer. O que eu tento é
não botar na novela coisas que possam prejudicar as pessoas, mais do que trazer
coisas que possam ajudá-las, entende? Eu tento não pôr idéias reacionárias, mas
gosto de pôr contradições novas e todas as que tenho eu vou jogando. Acho que tudo
que é contradição tende a enriquecer quem está vendo.
PLAYBOY - Você não tenta passar mensagens?
GILBERTO - Tento, claro, e tem pelo menos duas que eu acho que estou passando
bem em Água Viva: que estou dando uma força à liberação da mulher e que filho não
tem de se submeter cegamente aos pais. Passando isso, a minha consciência fica
tranqüila e me deixa ganhar meu dinheiro.
PLAYBOY - Você não estará se tornando um especialista em tratar de gente jovem
vem, bonita, rica e cheia de problemas?
GILBERTO - Não é só isso, tem mais coisas. Tem gente jovem, bonita, rica e cheia de
problemas, e tem também gente velha, feia, pobre e com menos problemas. Não sei
por que esse negócio de achar que só tem rico na minha novela.
PLAYBOY - Estarão vendo mal a novela?
GILBERTO - Sei lá. Talvez por não ter nas outras, na minha realça. Mas os meus
personagens são gente de classe média, que deve ganhar 20 ou 3O mil cruzeiros por
mês. Os privilegiados são uns quatro ou cinco.
PLAYBOY - E essas histórias de coincidências entre alguns personagens e pessoas da
vida real?
GILBERTO - Pois é, as pessoas vivem me perguntando se eu me inspirei em fulano,
beltrano ou sicrano. Se o caso do Cléber com a manicure aconteceu com o Walter
Moreira Salles, se a Lurdes é baseada na Ana Maria Tornaghi ou na Helena Brito
Cunha, se a Estela é a Béki Klabin, sei lá o quê. Essa história do Walter Moreira Salles
eu nunca tinha ouvido antes. (Que idéia a dele de transar com a manicure!) A Lurdes
não tem nada a ver com a Ana Maria Tornaghi; com a Helena Brito Cunha talvez tenha
pontos mínimos de contacto, mas ela tem muito mais a ver é com a madrasta da
Branca de Neve. E a Estela tem realmente alguns detalhezinhos pitorescos da Béki,
tanto que eu perguntei à Béki se ela se importava e ela disse que achava ótimo. Agora,
dizer que a Estela é a Béki é uma besteira, não? O fato é que é difícil você encontrar
uma história com um mínimo de interesse que já não tenha acontecido, né?
PLAYBOY - A televisão te impõe alguma restrição a temas?
GILBERTO - Isso é outra coisa que vivem querendo saber, se a televisão impõe, se a
televisão não impõe. Quem é a televisão? É o Roberto Marinho, o Boni? Eu não sei. O
meu contacto com a televisão não é tão grande assim. A mim, pessoalmente, não
impõe nada, na medida em que eu sou uma pessoa responsável. Se eu assino um
contrato para escrever a novela das 8, eu automaticamente me imponho uma série de
coisas. Eu sei que não posso fazer uma série de coisas. Outro dia, por exemplo, eu
estava sem idéias para o personagem da Irene e me veio uma que eu achei
engraçadinha. Eu pensei: seria engraçado que aquela patota que mora no apartamento
descobrisse que a Irene é virgem. Aí elas iam achar isso um absurdo, iam ficar com
pena dela e podiam fazer um sorteio para ver quem comia a Irene. Só que o sorteio ia
sair pro mais tímido. Não é engraçado? Ia dar cenas ótimas! Mas aí eu penso melhor e
NOVELA DAS SEIS 15/23

concluo: "Não, não dá. Às 8 horas da noite não dá". Não é preciso ninguém da TV
Globo vir me dizer, eu mesmo sei. Talvez daqui a uns dez anos possa.
PLAYBOY - Talvez a insistência nessa pergunta se deva ao fato de a televisão sem
censura ainda não ter sido testada no Brasil. Como seria essa televisão para você?
GILBERTO - Isso é uma coisa que eu queria ver, porque, para mim, mais censor do
que a censura é o próprio público. Eu peguei o tempo da censura braba, agora esse
tempo passou e o público continua extremamente reacionário. Gente sem informação,
de baixo poder aquisitivo, tem sempre os valores mais antigos possíveis. Mesmo a pior
censura, como a do tempo do Medici, não chegava a ser tão reacionária quanto a do
público. Então, se a televisão for estatal e eles não tiverem outro canal para escolher,
tudo bem. Mas, enquanto a televisão for comercial e tiver anúncio, você vai ter sempre
um problema grave com o público. Em Água Viva, por exemplo, a censura não cortou
muita coisa, a não ser expressões como "pombas!" e "puxa-saco". Em compensação,
teve gente que escreveu para o Jornal do Brasil dizendo que a novela é anticristã, que
eu preciso ler o Evangelho e que eu estou destruindo a família brasileira.
PLAYBOY - Isso o preocupa de alguma maneira?
GILBERTO - Me preocuparia se eu estivesse mesmo tentando destruir a família
brasileira. Mas, como eu sou muito careta nesse ponto e acredito totalmente nos
valores familiares, não me preocupa nem um pouco.
PLAYBOY - A censura já o incomodou diretamente?
GILBERTO - Não, a censura nunca encheu o meu saco porque eu sempre fui muito
autocensurado. Talvez eu fique louco daqui a uns dez anos, de bloquear tanta coisa
dentro de mim. Quando comecei a escrever A Escrava Isaura, fui chamado a Brasília
para conversar, porque eles achavam a novela perigosa. Então, na reunião com
censores, ficou mais ou menos estabelecido que eu poderia escrever A Escrava Isaura,
mas que não poderia falar de escravo. Uma censora me disse que a escravatura tinha
sido uma mancha negra na história do Brasil, e que não deveria ser lembrada - aliás,
segundo ela, o ideal seria arrancar essa página dos livros didáticos; imagine então falar
disso na novela das seis...
PLAYBOY -... para criancinhas desprevenidas...
GILBERTO - É. Um censor falou que a novela podia despertar sentimentos racistas na
netinha dele, porque ela via os brancos batendo nos escravos na televisão e podia
querer bater nas coleguinhas pretas dela. Aí eu disse ao censor que ele devia ver um
psicólogo para a menina porque, se ela se identificava assim com os bandidos... De
qualquer maneira, eu prometi que ia falar o mínimo possível em escravo e falei o
mínimo possível em escravo em A Escrava Isaura. [Risos.]
PLAYBOY - Algum problema quando a Tônia Carrero transou com um negro em Água
Viva?
GILBERTO - Não, porque a censura está muito mais aberta agora, né? De qualquer
maneira, eu não sei a quem possa fazer mal uma senhora de 60 anos transando com
um negro numa novela. É que a gente está tão acostumada a que não pode nada que,
às vezes, as coisas mais naturais a gente acha que não pode e, quando vai ver, pode.
PLAYBOY - Você não se sente um tanto limitado por não poder sequer insinuar que,
quando um casal está "namorando" na novela, eles estão efetivamente trepando?
GILBERTO - Não. Eu fui criado dentro de uma estética cinematográfica dos anos 50,
imposta pelo macarthismo, e não tenho dificuldade nenhuma em fazer isso. Essa
limitação continua até hoje porque nem em Emmanuelle você vê o peru sendo enfiado -
só se vê isso em filme pornô, clandestino. De qualquer maneira, se eu fizer uma cena
de gente não casada num quarto com cama, não passaria na censura. Mas eu estou
contente porque agora os casados já podem...
PLAYBOY - Você diria que, embora a televisão não te imponha nada, há uma série de
regras não escritas a respeito de temas em que não se pode tocar?
NOVELA DAS SEIS 15/24

GILBERTO - Talvez, mas a gente sabe lidar com regra não escrita, né?
PLAYBOY - Ninguém tem interesse em ir minando aos poucos essa resistência?
GILBERTO - Todo mundo tem esse interesse, tá todo mundo tentando, e eu sou um
deles. Como é que eu posso garantir, por exemplo, que a Lurdes não chupa o Marcos,
filho dela?
PLAYBOY - Chupa?
GILBERTO - Não sei, não sei... Não posso garantir que não. O que eu vejo na novela é
que ela é muito sacana e ele é muito carinhoso com ela... [Risos.] Mas eu não posso
nem mostrar um adultério bem bonitinho, com final feliz, para defender a coitada da
amante, que é sempre sacaneada. Isso eu gostaria de fazer: defender a outra.
PLAYBOY - E por que não faz?
GILBERTO - Porque não pode. Que eu saiba, não pode.
PLAYBOY - E divórcio, pode?
GILBERTO - Ah, divorciar pode à vontade. Só não pode mostrar as causas normais
que levam ao divórcio, entende? A partir do momento em que os personagens já estão
separados, podem ter uma vida sexual normal. Mas, enquanto estão casados, não
podem nem olhar para outra pessoa, porque é considerado pernicioso...
PLAYBOY - Homossexualismo em novela também é considerado pernicioso?
GILBERTO - Nunca vi homossexualismo em novela, não.
PLAYBOY - Você mesmo já fez. O Everaldo, personagem de Dancin' Days, não era
homossexual?
GILBERTO - Ah, sim! Mas era tão em nível de comédia que eu nem me toquei que
estava tratando de homossexualismo. E, naquele tempo, a censura era violenta, mas
ninguém reclamou.
PLAYBOY - Quer dizer que, em nível de comédia, pode?
GILBERTO - O Everaldo não ameaçava a moral de ninguém, assim como o Clóvis
Bornay também não ameaça. Eu já vi mães pedindo autógrafo ao Clóvis Bornay,
dizendo: "Ah, dá aqui pro meu filho, dá!" E ele bem desmunhecado e tal, era muito
engraçado. Acho que a bichona não ameaça a moral de ninguém.
PLAYBOY - Então, pode-se concluir que, se você inventasse um personagem que
fosse um homossexual sensível, sofrido, com problemas, e que discutisse esses
problemas com os outros personagens, não passaria?
GILBERTO - Acredito que não. Porque, se foi cortada de Água Viva a única alusão um
pouquinho mais clara de que a Janete não era virgem... a fala foi cortada!... Então, se
não pode não ser virgem, claro que também não pode ser homossexual.
PLAYBOY - Mas pode ser viado.
GILBERTO - É, pode ser bichona. Não sei, varia muito, depende do grupo de censores.
A censura não é uma coisa tão organizada como a gente supõe.
PLAYBOY - E, no entanto, o homossexualismo é um dado da realidade que as pessoas
ainda costumam discutir, não?
GILBERTO - Talvez. Mas o tesão que eu sinto para escrever sobre isso é mesmo que
eu sentiria se escrevesse aquela história do adultério. É o tesão da dramaticidade.
Daria cenas melodramáticas incríveis, como a da amante desprezada, sozinha, na
noite de 31 de dezembro. Ou essa mesma situação com homossexuais que chocariam
as pessoas quando começassem a se beijar na boca numa festa de réveillon, por
exemplo.
PLAYBOY - Você tem percebido um aumento grande do homossexualismo feminino
neste país, ultimamente?
GILBERTO - Não sei, mas tenho ouvido dizer que não. Pode parecer que está
aumentando porque hoje elas usam o sapato na frente de todo mundo, e antes era
mais escondidinho.
PLAYBOY - E não é uma pena que o mundo da novela deixe de fora todos esses
NOVELA DAS SEIS 15/25

assuntos?
GILBERTO - Mas é como eu disse: eu não fico me lamentando porque não pode isso
ou aquilo. Eu prefiro ficar contente porque já pode isso ou aquilo.
PLAYBOY - Um dos motivos pelos quais você é considerado um renovador da novela é
que os seus personagens femininos, como a Júlia de Dancin' Days e a Lígia de Agua
Viva são sempre mulheres fortes, decididas, que botam pra quebrar. Isso é
premeditado?
GILBERTO - Não, não acho que seja. É que eu escrevo mulheres melhor do que
homens.
PLAYBOY - E por que a maioria dos seus personagens masculinos são homens frágeis
e supersensíveis!
GILBERTO - Quais, por exemplo?
PLAYBOY - O Cacá de Dancin’ Davs, o Nélson e o Edir de Água Viva...
GILBERTO - O Edir é frágil, mas menos do que a mulher dele. E o Nélson foi bolado
pra isso, pra ser o irmão frágil do Miguel.
PLAYBOY - Você se acha frágil?
GILBERTO - Não, não me acho frágil, não. Mas eu tenho um lado frágil, como tenho
um lado forte. O Nélson e o Miguel devem ter partido de alguma divisão minha: o
Gilberto forte, o Gilberto fraco, o Gilberto que venceu, o Gilberto que perdeu...
PLAYBOY - Seja como for, nenhum desses personagens é o machão tradicional, como
os que o Tarcísio Meira costuma interpretar.
GILBERTO - Mas só porque eu não sei fazer. Eu acho ótimo o machão tradicional,
como o Rhett Buttler de ...E o Vento Levou, mas todas as vezes em que eu tentei fazer,
saiu uma merda. Eu sempre fui mais para aquela linha do herói fraco, como os que o
Montgomery Clift fazia, e que são a antítese do machista.
PLAYBOY - Você acha que o machista é uma espécie em extinção?
GILBERTO - Acho. Está havendo uma transformação na cabeça dos caras, e talvez
isto se deva à cultura, né?... ao fato de o mundo andar pra frente.
PLAYBOY - Não será talvez o comportamento das mulheres que estará levando os
homens a rever as posições deles?
GILBERTO - Pode ser. Há as feministas, há muitas mulheres independentes por aí, eu
mesmo sou amigo de um monte delas.
PLAYBOY - Antigamente havia uma pressão para o homem ser o machão inflexível.
Não estará havendo hoje uma pressão ao contrário, para o homem assumir a sua
"porção mulher" e "transar o corpo numa boa", como foi proposto pelo Fernando
Gabeira?
GILBERTO - Toda ação provoca uma reação em sentido contrário, não? A gente
aprende isso no colégio...
PLAYBOY - Uma conseqüência natural para o homem que assuma tudo isso não será
o bissexualismo?
GILBERTO - Esse é um assunto que eu não vejo com muita clareza. Tenho alguns
amigos bissexuais que eu sinto dificuldade de entender. Na minha cabeça, a tendênda
mais espontânea é achar que eles estão divididos e que vão acabar pendendo para um
lado ou para outro. Acho difícil alguém gostar de homem e de mulher ao mesmo tempo.
Já com o bissexualismo feminino é diferente, porque eu conheço mulheres que gostam
de homem e de mulher ao mesmo tempo.
PLAYBOY - Você já participou de alguma orgia ou suruba?
GILBERTO - Já. Várias vezes, mas há muito tempo. Houve até uma época em que eu
participava bastante, mas suruba sempre me deu uma certa frustração, porque eu não
sou surubeiro por temperamento. Ficava sempre a impressão de que havia alguém ali
por quem eu tinha mais tesão do que pelos outros e aí eu queria me concentrar nessa
pessoa. Mas numa suruba não dá pra se concentrar, porque tem muita gente na cama.
NOVELA DAS SEIS 15/26

Além disso, para quem gosta mesmo de suruba, tem que ser na base de número
ímpar. Não dá certo com quatro, nem com seis, nem com oito pessoas, porque acaba
casal com casal. Quem curte mesmo tem que ir com três, com cinco ou com sete.
PLAYBOY - Das que você participou, havia mais homens ou mais mulheres?
GILBERTO - Acho que a tendência é ter mais mulheres, mas, embora eu não saiba
explicar, sinto que os homens gostam mais de suruba do que elas. Porque, em geral, é
homem quem organiza, não?
PLAYBOY - O que você achou dessas experiências?
GILBERTO - Eu nunca saí de uma suruba achando que tinha sido satisfatória. Quer
dizer, eu sempre gozei, mesmo que tivessem me jogado pra escanteio. Tinha pelo
menos uma satisfação primária. Mas no fundo eu vivia com uma nostalgia da relação a
dois, que é o que a minha cabeça prefere. Então eu entrei numa mais romântica e saí
desse esquema.
PLAYBOY - Você tem algum problema de culpa em relação a sexo?
GILBERTO - Tenho. A minha cabeça não aceita bem poligamia.
PLAYBOY - E gostaria de aceitar?
GILBERTO - Não sei se seria uma boa pra mim.
PLAYBOY - Você também não gosta de ser passado pra trás?
GILBERTO - Não. Eu tenho todos os problemas do machão brasileiro.
PLAYBOY - Não é interessante você, que é o biógrafo desse "novo homem” brasileiro,
antimachista, ter um problema típico do machismo?
GILBERTO - Claro que é interessante. E é claro também que eu tenho que ter
problema de machismo, quem é que não tem? A gente foi educada por esse esquema.
Todos os homens e mulheres que eu conheço são machistas.
PLAYBOY - As mulheres também?
GILBERTO - Extremamente. Às vezes até mais do que nós. Eu acho o feminismo um
negócio muito legal, que eu defendo pra cacete, mas a gente vai ter que lutar muito
para chegar lá, porque vivemos num sistema machista.
PLAYBOY - Quais as mulheres de Água Viva que têm comportamento extremamente
machista?
GILBERTO - Quase todas as de classe média e de meia-idade. A mãe da Janete, a tia
da Janete, deixe eu ver quem mais... Pô! Quer coisa mais machista do que a família
pressionando a moça para casar com um rapaz rico porque só casamento é solução de
vida? Ninguém nunca pensou na hipótese remota de aquela moça transar a vida dela
numa boa. É machismo isso, não?
PLAYBOY - Engraçado como o casamento é um dos temas favoritos de novela. O que
esses personagens casam e descasam não é normal. Ou é?
GILBERTO - É. Eu acho, inclusive, que, na vida real, os casamentos estão muito
melhores do que antigamente, na medida em que hoje acontecem mais separações. As
pessoas estão se sentindo um pouquinho menos culpadas quando não dá certo. E,
quando elas sentem que, se errarem, vão ter uma chance de partir pra outra, passam a
ter menos medo do casamento. Aquela história do "até que a morte nos separe" era
uma violentação, um compromisso de doido. Porque, se você se compromete a ter o
mesmo parceiro até a morte, você não está se permitindo o erro. E, não se permitindo
o erro, você está fodido.
PLAYBOY - Por que tanta ênfase?
GILBERTO - Porque eu sou traumatizado por ser filho de um casamento ruim que se
manteve até o fim. E tomei muita porrada na vida para não ter ficado assim tão pró-
separação.
PLAYBOY - Que grilos isso deixou na sua formação?
GILBERTO - Os grilos na minha formação foram as relações dos meus pais entre si,
não as deles comigo. Eles fizeram pressão para que eu me tornasse diplomata ou
NOVELA DAS SEIS 15/27

militar, mas quando eu disse que não queria ser uma coisa nem outra, desistiram. Mas,
com isso, eu tive um problema de identificação profissional que custou a se resolver.
Demorei a entender que tinha de usar profissionalmente o meu interesse natural, que
era o cinema, o teatro e a leitura. Fiquei perdidão, um tempo, fui professor de francês
durante cinco ou seis anos, fìz vestibular para o Instituto Rio Branco e comecei até a
fazer curso de Letras na PUC, que abandonei porque achava chato pra cacete. Eu não
tinha saco pra estudar José de Alencar nem meia hora. Anos depois, quando adaptei
Senhora para a televisão, às vezes ficava sem idéias e tinha de abrir o livro para
procurar alguma coisa, e aquilo quase me matava de tédio. Aí, finalmente, fui ser crítico
de teatro de O Globo e, depois, pintou a televisão.
PLAYBOY - Voltando aos seus pais, eles reprimiam a sua sexualidade de alguma
forma?
GILBERTO - Meu pai morreu quando eu tinha 17 anos e minha mãe se matou louca
quando eu tinha 27. Se havia algum problema sexual dentro de casa era o dela. Aquele
negócio de insistir em ser a viúva virgem, de querer dar e não ter coragem, de achar
que tinha de casar para dar... Na história da minha vida, não teve muita repressão
sexual, não.
PLAYBOY - E hoje, tem alguma?
GILBERTO - Ao nível consciente, acho que não, mas é muito difícil garantir isso. Tanto
que estou fazendo análise há seis anos, desde que minha mãe morreu.
PLAYBOY - A morte de sua mãe parece ter sido decisiva para você. Dá para falar a
respeito?
GILBERTO - Dá, mas já contei quase tudo em Dancin’ Days. Só mudei o final porque
não tive coragem de contar tudo. Depois que meu pai morreu, ela ficou com
características de psicose maníaco-depressiva. Mas só teve as fases de depressão,
nunca teve a fase maníaca. Esteve várias vezes internada, sofreu tratamento à base de
choques elétricos, saía da clínica numa boa, ficava assim uns tempos, depois voltava,
saía de novo e, numa dessas, jogou-se pela janela do nosso apartamento em
Copacabana. Foi uma coisa que eu nunca pude aceitar. A Áurea de Dancin’ Days foi
toda baseada nela. A Janete Clair, que entende tanto de novela e de vida, leu a
sinopse de Dancin’Days e disse pra mim: "Ah, a Áurea não vai poder se jogar pela
janela. Primeiro, porque a barra vai ser violenta e você não vai agüentar. Segundo,
porque o público não vai aceitar ficar sem a Áurea". E, realmente, a Áurea acabou
numa boa... [Risos.]
PLAYBOY - De certa forma, a personalidade da sua mãe interfere até hoje nos seus
personagens femininos, não?
GILBERTO - Deve interferir muito. Minha mãe tinha todo esse problema de ter parado
de estudar, de não ter uma profissão, por causa do casamento. E o casamento era
ruim. Quando meu pai morreu, ela pegou uma barra mais pesada do que era na
realidade, não resistiu e se matou. Claro que isso tem muito a ver com a força que eu
dou para as mulheres na novela, não é?
PLAYBOY - É por isso que todas as mães que você cria são supermães?
GILBERTO - Eu não sei se todas são supermães, mas a única coisa que faz com que
os telespectadores não pensem que o personagem de Lígia é o demônio é aquela
transa com o filho. Até a Danusa Leão reclamou comigo outro dia: "Ih, esse negócio de
puta com filho pra cá, filho pra lá, tou achando muito chato!” Mas tem personagens que
não são supermães, e talvez isso seja uma idealização minha a respeito de uma mãe
que eu gostaria de ter tido. Em Água Viva, essa mãe é a Estela.
PLAYBOY - A Estela, interpretada por Tônia Carrero, é uma mulher rica. Você era
pobre?
GlLBERTO - Ah, era pobre, pobre, pobre, de marré de ci. Pobre da rua Miguel Lemos,
em Copacabana.
NOVELA DAS SEIS 15/28

PLAYBOY - E te grilava muito ser pobre?


GILBERTO - Nunca achei que ia ser a vida toda. Se algum dia tivesse achado, teria me
grilado muito. Mas eu era pobre assim como o Alberico de Dancin' Days. Nunca deixei
de almoçar no Nico, um dos restaurantes mais caros do Rio, mesmo que tivesse de
tomar dinheiro emprestado. Sabe, eu tenho muito a ver com a Lurdes Mesquita!
PLAYBOY - E hoje, você está rico?
GILBERTO - Não muito, não...
PLAYBOY - Quanto você ganha?
GILBERTO - Não vou falar. Além disso, é menos do que vocês pensam e, se meu
copeiro ficar sabendo, vai pedir aumento - e ele já ganha muito bem.
PLAYBOY - Numa outra entrevista, você admitiu que ganhava uma fábula.
GILBERTO - Não admiti, não. Eu disse que ganhava uma fábula, mas em relação ao
salário mínimo, e cortaram o resto da frase. Eu não ganho uma fábula. Roberto
Marinho talvez ganhe.
PLAYBOY - Você acha que o seu salário compensa o sacrifício de escrever uma
novela?
GILBERTO - Não.
PLAYBOY - Você acha que tem gente faturando em cima de você?
GILBERTO - Eu estou um pouco por fora, não dá para controlar direito e eu não sei
bem como é o merchandising. Tem outras coisas que me preocupam também, como a
utilização dos meus personagens para fazer publicidade fora da novela. O Everaldo de
Dancin’ Days, por exemplo, está fazendo anúncio dos pratos Meridional até hoje, e eu
não ganho nada.
PLAYBOY - Por que você pediu ao Manoel Carlos para dividir a novela com você numa
certa fase?
GILBERTO - Porque o trabalho é massacrante e eu não gosto de trabalhar demais. Ele
entrou por volta do capítulo 57, nós pusemos a novela em dia em uma semana e então
seguimos um plano de trabalho, que era o de cada um escrever um bloco semanal,
comigo aprovando ou não o que ele escrevia. Ele no Leblon e eu aqui no Flamengo, a
gente transando por telefone. De outro jeito não dava. Malu Mulher, por exemplo, tem
três escritores para pôr quatro programas no ar por mês. Pois eu tinha de pôr 25
programas no ar, sozinho!
PLAYBOY - É verdade que você ainda submete capítulos inteiros de Água Viva a
Janete Clair?
GILBERTO - Não é verdade. Espera aí, deixa eu pensar bem. A Janete leu a sinopse
de Dancin’ Days, leu os primeiros vinte capítulos, sim. Submeti, sim. E o fato de ela ter
gostado me animou muito, porque eu estava inseguro. Há duas pessoas em quem eu
confio muito, e que são a Janete e o Daniel Filho. Então, quando eu tenho dúvidas, eu
me abro com eles e eles me ajudam. E não vejo nenhuma dependência em pedir a
opinião de pessoas que conhecem mais e há mais tempo do que eu.
PLAYBOY - A Janete Clair não seria, digamos assim, uma substituta intelectual da sua
mãe?
GILBERTO - Ah, não tenho dúvida de que é. Mas não é só ela, não. Tem mais umas
cinco ou seis...
PLAYBOY - A Janete Clair disse que você era "o melhor de todos" os escritores de
novela, porque "seguia as regras do jogo”. Você concorda?
GILBERTO - É um barato ouvir a Janete dizer isso, porque é um elogio sincero. Acho
que, em termos dessa nova geração de escritores, ela tem razão, porque eu sou o que
deu mais certo.
PLAYBOY - Você não gostaria de propor, um dia, uma novela fora das regras do jogo?
GILBERTO - Não sei por que não. No horário das 10, a própria Globo já bancou
novelas fora das regras do jogo porque achou que devia. Se não, vai ficar tudo igual
NOVELA DAS SEIS 15/29

pelo resto da vida. A Globo bancou O Bofe, do Bráulio Pedroso, O Rebu, também do
Bráulio, e, pelo que sei, havia coisas geniais nessas novelas e elas estiveram longe de
ser fracasso.
PLAYBOY - Porque, se fossem...
GILBERTO - Ah, mas aí, também, você não acha que está certo? Alguém vai fazer
uma novela pra ninguém ver?
PLAYBOY - Qual é o piso de Ibope que uma novela pode dar sem que ninguém se
sinta ameaçado?
GILBERTO - Não sei, mas acho que a Globo não agüentaria produzir Água Viva, por
exemplo, se ela desse só 40 ou 50 de Ibope. Os custos são muito altos.
PLAYBOY - Quer dizer que, falando português claro, existe a ditadura do Ibope na sua
cabeça?
GILBERTO - Mas eu acho que essa ditadura vai existir mesmo que eu saia da televisão
e vá fazer teatro, cinema ou qualquer outra coisa. Porque eu vou estar sempre
preocupado com o sucesso, com o dinheiro e com agradar. Eu raciocino muito com a
TV Globo, porque eu quero mais ou menos a mesma coisa: que gostem da novela...
PLAYBOY - Ou seja: você não conseguiria jogar sem regras?
GILBERTO - Não. É assim: "Me diz quais são as regras que eu faço direito".
PLAYBOY - Outra coisa: por que personagem de novela bebe tanto? Ninguém bebe
assim na vida real.
GILBERTO - Bebem tanto assim em Água Viva? Eu não tinha notado. Acho que é
muito pra facilitar a marcação dos atores, não é? Quantas horas de cena você acha
que se passaram na sala da Lígia? Então, como os atores não podem plantar
bananeira, o diretor manda eles pegarem um copo, prepararem um uísque, sei lá.
PLAYBOY - Se essa marcação quisesse estar mais próxima da realidade, você não
acha que eles deveriam estar enrolando um charo?
GILBERTO - Não, porque os meus personagens não fumam maconha.
PLAYBOY - E você, fuma?
GILBERTO - Olha, eu acredito que seria bom que legalizassem a maconha, embora
eu, pessoalmente, tenha muito bloqueio em relação a drogas, inclusive bebida. Mas,
em Nova York, onde eu passei dois meses antes da novela, eu senti que, depois da
legalização, as pessoas estavam fumando menos - mais abertamente, mas fumando
menos. Eu já fumei algumas vezes e, há muito tempo, me deu um efeito assim
parecido com o de ficar de pileque. Mas muito breve, porque eu me bloqueio, porque
tenho medo de ficar dependente. Eu já fico puto de ser dependente de cigarro. Mas,
mesmo assim, não gostaria que proibissem o cigarro. Eu sou contra qualquer proibição.
PLAYBOY - O que leva as pessoas a tomarem drogas, na sua opinião?
GILBERTO - Escapismo, não? Deve ser a mesma coisa que me leva a dormir muito...
PLAYBOY - E você está tentando escapar de quê?
GILBERTO - De enfrentar a realidade, eu acho...
PLAYBOY - As novelas não seriam outra forma de escapismo?
GILBERTO - É provável que elas tenham esse lado também, mas, ao mesmo tempo,
as pessoas querem ter emoções fortes. Será que ter emoções fortes é uma atitude
escapista?
PLAYBOY - Você acha que o público pega tudo que você tenta passar na novela?
GILBERTO - Não sei. Outro dia, eu escrevi uma fala para o personagem da Lucélia
Santos em que ela devia dizer: "Isto aqui não é convento de carmelitas, não!" Mas acho
que o datilógrafo comeu uma sílaba de "convento” e saiu "conto". Aí a Lucélia disse no
ar "conto de carmelitas" e todo mundo achou muito natural, ninguém estranhou nada!
[Risos.]
PLAYBOY - Você não faz uma idéia muito boa da inteligência dos atores.
GILBERTO - Faço sim! Eu acho que eles são inteligentes e sensíveis pra cacete. Mas
NOVELA DAS SEIS 15/30

o que eles têm que decorar não tá no gibi. Já me perguntei várias vezes se seria
possível fazer novela nos Estados Unidos e concluí que não, porque, nos Estados
Unidos, os sindicatos não permitiriam que eles trabalhassem tanto.
PLAYBOY - Por falar no personagem da Lucélia, por que todas as mulheres jovens da
novela são agressivas, despachadas, ativas?
GILBERTO - Ativas elas são. Mas, agressivas, nem todas. O personagem da Lucélia é
agressivo, mas o da Glória Pires nem um pouco. E o da Natália do Vale também não.
Há um equilíbrio entre agressivas e não-agressivas.
PLAYBOY - Você diria que, na vida real, está havendo uma tendência das mulheres a
se tornarem mais ativas e agressivas do que eram?
GILBERTO - Num certo nível social, ou no meio que eu freqüento, acho que sim. Em
geral, eu acho que não, o que é uma pena.
PLAYBOY - Você preferiria que elas fossem?
GlLBERTO - Preferiria. Eu acho que as mulheres foram muito sacaneadas no curso da
história. Que se agitem!
PLAYBOY - Você acha que, à medida que elas se agitam e ficam mais agressivas, ou,
digamos, menos passivas, o homem tende a se assustar?
GILBERTO - Homem de cabeça boa gosta de mulher livre e ativa, porque assim ele
divide mais as coisas com ela. Quem tem a cabeça boa não está a fim de controlar
mulher, não. Está mais é a fìm de uma relação equilibrada.
PLAYBOY - Bem, hoje você é um sucesso, não? Água Viva deverá dar 90 pontos no
Ibope neste último mês. E, como você sempre quis ser um sucesso, isso não o deixa
super-realizado?
GILBERTO - Eu nunca pensei em me olhar no espelho e dizer: "Eu sou mais eu!" Em
geral, eu penso: "Tou chegando lá, tou ficando contente!"
PLAYBOY - E aonde você quer chegar?
GILBERTO - Pragmaticamente, eu estou planejando a minha vida até meados do ano
que vem, mais ou menos. Estou pensando em escrever um filme, estou pensando na
minha próxima novela na Globo, e gostaria que os dois fossem sucessos. Ao nível da
fantasia, eu gostaria de chegar à fama internacional. Com que, não sei. [Risos.] Quero
fazer um trabalho que repercuta no mundo inteiro, de preferência nos Estados Unidos.
E quero que pinte mesa em qualquer restaurante de lá na hora, porque esperar meia
hora de pé na fila é muito chato. Para dizer a verdade, eu não quero ser reconhecido
no Régine's, no Rio. Eu quero ser reconhecido é no Elaine's em Nova York.
PLAYBOY - Uau! Bem, agora a pergunta óbvia: como termina Água Viva?
GILBERTO - Você pode ter certeza de que vai terminar com o final mais feliz possível -
nem que a Lígia tenha de acabar com o Nélson.
in "Playboy"

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