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DUAS CARAS
Aguinaldo Silva
Nessa questão da posse de terras esses dois bairros nos quais atuo são
até hoje um verdadeiro faroeste distante no qual, como no faroeste verdadei-
ro, no frigir dos ovos a força e a ousadia é o que mais contam. E Deus é tes-
temunha disso: ao longo da minha vida nunca tive problemas em usar a força
nem deixei um só instante de ser ousado quando foi preciso.
Tenho um passado que os moralistas e os politicamente incorretos
chamariam de “negro”. E isso afeta minhas relações com o mundo que me
cerca. Como já disse acima, reescrevi minha própria história, ou pelo menos a
adaptei ao meu gosto pessoal e ao meu dinheiro. Mesmo assim, não faço
alarde desta minha nova biografia, e trato de manter os detalhes dela numa
permanente zona de sombra.
O pessoal da mídia, do qual fujo como o diabo da cruz, diz que sou
avesso à publicidade. Alguns me incluem até na lista dos “temperamentais”,
ou pior ainda: dos “esquisitos”. Embora não tenham a menor idéia da razão
de tudo isso, o fato é que estão certos. Evito me expor além da conta devido
ao meu passado, mesmo que sejam quase nulas as chances de que alguém
saído dele venha a me reconhecer. É que há alguns anos, por decisão minha,
me submeti a uma série de cirurgias plásticas que acabaram por me dar um
novo rosto, e este se adaptou à perfeição à minha nova identidade.
Mesmo sem gostar de aparecer, como sou rico e poderoso acabei me
tornando uma celebridade: sou aquele que foge das câmeras e das entrevistas
e cuja exposição, ainda que rápida e fugidia, é sempre objeto de notícia. Para
a mídia sou antes de tudo um empresário voraz, e depois sou também um
grande mistério que ela, por mais que tente, nunca chega a decifrar como gos-
taria.
Sou um homem solitário. Tenho muitos conhecidos, mas ninguém a
quem possa chamar de amigo. Nem mesmo ao meu sócio, GABRIEL DU-
ARTE, velho conhecido dos meus primeiros tempos na Barra da Tijuca, a
quem cooptei por que do ponto de vista legal não me era permitido ter várias
empresas sozinho. A participação dele em tudo que tenho é mínima, simbóli-
ca apenas; mas mesmo assim lhe rende o bastante para manter sua vida de
luxo e ostentação, que ele divide com a esposa, uma mulher fútil chamada
EVA - mas conhecida nas colunas sociais como EVITA, e os dois filhos ado-
lescentes e problemáticos, PEDRO e RAMONA.
Gabriel é o que muitos diriam “uma boa alma”. E Eva - ou Evita Duar-
te como ela se autodenomina, numa tentativa de se ligar à outra do mesmo
nome e glorioso passado na Argentina – se aproveita do fato de o marido ser
um “banana” - como ela o chama às vezes - e o domina. Houve um tempo em
que chegou a se insinuar para mim. Mas eu deixei bem claro, sem precisar
pronunciar sequer uma palavra quanto a isso, que sua família perderia todos
os privilégios se ela não tirasse da cabeça essa idéia de manter comigo algum
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tipo de intimidade. Desde então, como a maioria dos que me rodeia, Evita
Duarte me respeita e me teme.
Vivo só em minha mansão num condomínio de luxo na Barra da Tiju-
ca, apenas com os criados necessários à manutenção da casa, além de uma
governanta que priva de minha intimidade há vinte e cinco anos. Ela poderia
me destruir se contasse tudo o que sabe a meu respeito. Mas – não tenho a
menor duvida quanto a isso – me é moralmente fiel desde o dia (quando eu
tinha quinze anos) em que me iniciou sexualmente num prostíbulo do bairro
de Prazeres (em Jaboatão, um município perto do Recife), e eu disse que a
amava.
Não era verdade, claro. Mas ela, que já ouvira antes esse tipo de decla-
ração irrefletida sem lhe dar maior importância, sabe-se lá por que razão da-
quela vez resolveu acreditar nela. E continuou acreditando, mesmo depois
que lhe dei, ao longo de todos esses anos, provas irrefutáveis de que tal sen-
timento não era verdadeiro. Seu nome é BÁRBARA. E houve um tempo,
quando ela estava no auge, em que fazia juz a ele. Hoje é uma mulher ainda
bonita, mas madura e contida, que prefere ser conhecida pelo nome completo
e mais um título, ou seja: “dona” BÁRBARA CARREIRA.
Vivo só, mas não tanto, pois quase sempre existe uma mulher à minha
volta tentando me conquistar a qualquer preço. Não posso dizer que as mu-
lheres sejam o meu ponto fraco, pois um homem como eu não pode se dar ao
luxo de ter alguma fraqueza. Mas a verdade é que gosto muito delas. Foi uma
mulher quem me deu tudo o que tenho. E embora vá falar dela mais adiante e
contar como fiquei rico graças à sua ingenuidade e seu romantismo (sim, eu
roubei até o último centavo de tudo o que ela possuía), a verdade é que nunca
penso nela, e menos ainda lhe sou agradecido.
Claro que essa mulher vai reaparecer a certa altura da minha vida para
cobrar com juros altíssimos, que só poderão ser pagos com minha completa
desgraça, tudo o que lhe roubei no passado. Mas antes de chegar a essa fase
crítica de minha vida é preciso que lhes dê mais detalhes sobre como sou
agora. Portanto...
se achar a única mulher que jamais sairá da minha vida, a não ser que ela
mesma o queira.
Nesse momento estou prestes a mandar uma dessas mulheres embora.
Chama-se DÉBORA, era aspirante a modelo - mas sem nenhuma chance por
causa dos peitos grandes -, e de uns dias para cá só pensa em passar por cima
de todas as precauções que exijo dela até engravidar e ter um filho comigo.
Claro que isso não seria possível, pois na clínica onde um famoso cirurgião
plástico moldou à perfeição o meu segundo rosto aproveitei para pedir que
me fizessem uma vasectomia.
A razão para isso foi muito mais que um capricho. Então eu não sabia
que vida teria quando saísse dali. E imaginava que, qualquer que ela fosse,
nela não haveria lugar para uma esposa, e muito menos para filhos. Meu
exemplo de vida ainda era o velho e nômade Hermógenes. Até então eu tinha
sido um aventureiro como ele, e pretendia continuar como tal; e para isso não
poderia me dar ao luxo de ter uma família.
Claro que meus passos acabaram me guiando em outra direção e hoje,
como já deixei bem claro, sou um homem estabelecido. Mas nunca pensei em
reverter a cirurgia que por enquanto me impede de ter filhos, pois até hoje
não achei uma mulher pela qual valesse a pena fazê-lo. De qualquer modo,
este é um fato da minha vida que nunca revelei a ninguém – nem mesmo a
Bárbara.
Quanto à minha atual namorada e seus inúteis esforços para engravidar
de mim... Por enquanto ainda não sei desta sua intenção melíflua, mas Bárba-
ra logo vai descobri-la e me contar a respeito, e então minha fúria vai se aba-
ter sobre Débora e ela se arrependerá de ter nascido.
Sim, porque eu sou um homem de grandes ódios, embora eles nunca
me façam perder a cabeça. Sou capaz de esperar durante anos, sem dar a me-
nor bandeira a respeito, pela hora certa de me vingar de um desafeto. E quan-
do o faço é sempre de modo definitivo; com todo rigor possível e sem deixar
pistas. Por isso, pelo modo inflexível como costumo agir na vida e nos negó-
cios, sou um homem muito temido, e também muito respeitado. Foi à custa
desses dois sentimentos, o temor e o respeito - além da força e da ousadia de
que falei acima - que construí minha vida.
E que vida. Agora tenho tudo. Mas não acho que seja suficiente, pois
nos próximos anos vou querer mais ainda. Sou rico, riquíssimo, tenho dinhei-
ro e bens a perder de vista. Também sou dono e senhor de muita gente, inclu-
indo figuras de prôa do Executivo, do Legislativo e da Justiça no Rio de Ja-
neiro. Já elegi vereadores e deputados, nomeei Secretários de Estado e direto-
res de empresas estatais e mistas, e transformei num inferno a vida de pelo
menos um governador do Estado, o qual teve a veleidade de achar que podia
sobreviver sem meus favores.
Sim, eu sou o Homem. E para isso, embora saiba mantê-los a uma cer-
ta distância, tenho em torno de mim uma legião de asseclas, quase todos re-
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A essa altura todos já perceberam: por mais que tente manter alguma
reserva quanto a essa mulher do meu passado, chegou a hora de contar como
a conheci, como nos envolvemos, e como eu apliquei o maior de todos os
meus golpes nela. Mas para isso terei que voltar a um período ainda mais re-
moto do meu passado, quando eu não tinha ainda a menor idéia de que um
dia, antes de passá-la para trás, iria casar com ela.
Nasci como já disse, numa cidade histórica e decadente do litoral de
Pernambuco. Meus pais eram muito pobres. E se dependesse apenas deles eu
não teria chegado nem perto de aonde cheguei, não fosse o fato de que, aos
quinze anos, conheci um cidadão chamado HERMÓGENES. Talvez até hoje,
tanto no modo de me comportar como nas minhas atitudes, eu me inspire ne-
le. Hermógenes era discreto, supostamente alvar, quase invisível, porque sua
profissão assim o exigia: ele era “171”: um estelionatário de muita experiên-
cia que se especializara no “conto da guitarra”. Andava há anos pelo interior
do Nordeste a convencer, com grande êxito, fazendeiros e comerciantes ingê-
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nuos a lhe comprar uma engenhoca que ele apresentava como “a infalível
máquina de fabricar dinheiro”.
Não vou aqui esmiuçar os detalhes desse golpe, pois a verdade é que,
para os não iniciados, ele pareceria completamente absurdo. Incluía um pou-
co de prestidigitação e muita conversa, e nessa última o tal de Hermógenes
era imbatível. Dava gosto vê-lo a convencer suas vítimas de que, uma vez
donos daquela miraculosa máquina, eles não teriam outra saída senão assumir
o fardo de se tornarem riquíssimos. Com gestos precisos, quase como um ar-
tista, fazia diante dos olhos extasiados do cliente uma demonstração de como
a máquina funcionava. E sem falhar uma só vez os convencia.
Depois de sair dali deixando a tal máquina – que ao novo comprador
logo se revelaria inútil -, mal se via a salvo de uma possível perseguição ele
tirava um velho mapa rodoviário do bolso e nele escolhia a esmo sua próxima
parada. Era durante essas idas e vindas na estrada, entre os locais de um golpe
e outro, que ele se tornava mais acessível e conversador. E então, para apren-
der melhor sobre a profissão na qual me iniciava, eu me enchia de coragem e
o interrogava.
Como eu entrei na sua vida? Foi simples: aceitei seu convite para cair
na estrada, num certo dia em que ele passou de carro diante da minha casa e
me viu lá sentado no meio fio. Ele procurou meu pai, lhe ofereceu uma certa
quantia para que este alocasse os meus serviços... Ou seja: embora Hermóge-
nes tenha tratado o assunto com a maior delicadeza, a verdade é que meu pai
me entregou a ele em troca de dinheiro e, portanto, eu fui vendido. Hermóge-
nes costumava dizer, quando eu fazia alguma coisa errada e ele me castigava
duramente, que me escolhera por pena: “quando lhe vi na beira da estrada
magro e sujo feito um cachorro sem dono e com aquele olhar de pedinte, não
resisti em lhe trazer comigo”.
Ele dizia isso e eu fingia que acreditava. Mas já percebera que o meu
“olhar de pedinte” o atraíra porque, quando me apresentava às suas possíveis
vítimas como seu filho doente, e dizia que precisava vender a máquina para
financiar uma operação sem a qual eu teria uma morte prematura, elas olha-
vam para mim e não tinham a menor dúvida. Assim, meu “olhar de pedinte”
o ajudou a ganhar muito dinheiro. Mas Hermógenes nunca me deu nada além
de comida e roupa, sem exagerar numa coisa ou noutra, pois, segundo dizia
seus “clientes” não acreditariam na história da operação de urgência se eu
aparecesse diante deles gordo e bem vestido.
Nessa época eu ainda não tinha o nome pelo qual sou conhecido hoje.
Também não usava mais o meu nome de batismo, e sim um dos muitos dos
quais me servi enquanto trabalhei para Hermógenes. Este não apenas me “ba-
tizava”, como providenciava os documentos que tornavam legal o nome es-
colhido. E também me indicava os caminhos através dos quais era possível
legalizar uma falsa identidade; desse modo conheci falsários capazes de forjar
– e tornar legais – qualquer tipo de documentação que o cliente lhes pedisse.
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até que surgisse aquela a quem enganei, posso dizer que ela foi a única mu-
lher da minha vida.
Durante os dez anos em que viajei com Hermógenes pelo interior do
Nordeste nunca tive um tostão no bolso, e andei sempre mal vestido e famin-
to. Mas nunca me arrependi de estar com ele, pois numa coisa meu “patrão”
era pródigo: nas lições que me dava sobre a vida e sobre a sua “arte”. Graças
a ele me tornei um “mestre em vender ilusões”, que era como ele se referia ao
estelionato. E quando me considerei pronto para exercer a profissão por conta
própria, soube cobrar o que ele me devia, segundo meus cálculos. A essa al-
tura eu já descobrira que ele guardava todo o seu dinheiro na mala, atrás de
um fundo falso. E então, chegada a hora, foi só fugir com ela enquanto ele
dormia sem deixar o menor rastro.
Dizem que Hermógenes é vivo até hoje. Não sei – nunca mais o vi,
pois tive o cuidado de não agir na mesma região que o meu antigo patrão e
mestre. De posse do dinheiro que ele amealhara ao longo daqueles anos todos
de “conto da guitarra”, viajei para o interior de Minas, onde durante alguns
meses tratei de “tirar o atraso e aproveitar a vida”. E quando já tinha gasto
quase tudo que roubara do outro, usei o que me restava para comprar os ape-
trechos necessários, com os quais passei a dar meus próprios golpes, sempre
com o sucesso previsto.
Não me fixei apenas no truque principal de Hermógenes, pois sabia
que a “guitarra” exigia uma sutileza de gestos que eu não tinha. E também
não me especializei num determinado tipo de golpe, preferindo praticar de
forma aleatória vários deles.
Do interior de Minas fui para São Paulo e, sempre pelo interior, desci
para o Oeste do Paraná, seguindo o que se chamaria naqueles anos de “a tri-
lha da riqueza”. Naquelas pequenas e prósperas cidades recém fundadas nun-
ca havia menos de meia dúzia de pessoas ansiando por ser enganadas, e eu
sempre satisfazia seus anseios. E foi por causa de uma delas que cruzei com
os pais de MARIA PAULA.
Tudo aconteceu de forma aleatória. Numa das poucas vezes em que me
dispus a dar o golpe da “guitarra” escolhi para vítima um fazendeiro simpló-
rio de ascendência italiana. Depois de parar diante de sua porta com o meu
carro como quem não queria nada, e após dois dedos de prosa, logo fui intro-
duzido à sua casa, e lá começei a exercitar minha lábia. Tudo caminhou bem
até que uma mulher, que logo soube ser a sogra do tal sujeito, entrou inespe-
radamente na sala. Em meio à minha vigarice, e com o fazendeiro visivel-
mente fascinando, não tive como interromper meu trabalho por conta de sua
chegada. E vi desde o primeiro instante que enquanto ficava lá, parada e em
silêncio, ela não acreditava numa só palavra do que eu falava.
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motorista atestaria que eu não tivera culpa de nada. E cada um deles, no devi-
do tempo, sustentou estas versões que só serviram para me enaltecer diante
dos moradores da pequena cidade de Passaredo, onde vivia o casal de cuja
família agora restava apenas a filha Maria Paula.
MARIA PAULA:
Depois que Adalberto Rangel, como ele disse que se chamava, sumiu
da minha vida levando tudo que meus pais tinham me deixado, durante dois
meses me recusei a sair de casa ou ver quem quer que fosse, tão envergonha-
da fiquei por causa do que me acontecera. E não houve um só dia naquele
período de absoluta solidão e muita dor e pena em que não me sentisse cul-
pada. Sim, por que a humilhação pela qual passei, e que me deixou tão pros-
trada, não me tirou o tino a ponto de achar que fora apenas vítima. Eu confia-
ra cegamente naquele homem a quem na verdade não conhecia; a tal ponto
que lhe entregara tudo o que tinha, incluindo no pacote até mesmo a minha
vida. E se, depois de se apossar de tudo, ele fora embora sem deixar o menor
rastro me deixando na mais absoluta penúria, então cometera um crime - mas
a culpa fora minha.
Sim, eu confiei em Adalberto Rangel. Mas só fiz isso porque o amava.
Eu o amei desde o primeiro instante em que o vi e ele me contou como en-
contrara meus pais agonizantes logo após presenciar o desastre de automóvel,
e quais tinham sido as últimas palavras da minha mãe antes de morrer prati-
camente em seus braços: “por favor, procure minha filha e cuide dela”.
Foi por isso que ele saíra do seu caminho e viera até Passaredo, segun-
do me disse no dia em que me pediu em casamento: para cuidar de mim co-
mo a minha mãe lhe pedira. Então eu tinha apenas dezoito anos, era uma me-
nina que sempre fora mimada pelos pais a vida inteira e, agora órfã, sem ne-
nhum parente próximo ou distante, precisava confiar em alguém; e o escolhi-
do para isso foi ele.
Desde que chegou à cidade com os policiais rodoviários e me deu a no-
tícia nunca mais ele se afastou de mim – a não ser quando foi embora. Ficou
do meu lado, junto com vizinhos e amigos, enquanto eu purgava a dor terrível
de ter perdido minha família inteira. E no enterro, quando o sofrimento se
tornou forte demais e eu desmaiei, foi ele quem me amparou em seus braços.
Desde aqueles primeiros dias Adalberto Rangel tratou de se tornar essencial à
minha vida, de tal forma que, decorrida uma semana da morte dos meus pais,
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rante uns dois anos, não queria ter filhos, pois pretendia se sentir livre para
aproveitar a vida ao meu lado. Por isso me pedia para tomar as precauções
necessárias.
O problema era que eu pensava justamente o contrário: órfã de forma
tão prematura, depois de casada não via a hora de constituir minha própria
família. Sim, eu não podia esperar dois anos para ter um filho, achava que
este só serviria para tornar ainda maior a felicidade que em que vivíamos.
Assim, pouco antes de Adalberto me dar o golpe e sumir no mundo deixei de
lado as precauções e, como descobri depois, engravidei dele. Portanto, o fan-
tasma que me roubara tudo e depois se desvanecera no ar sem saber deixara
comigo uma parte de si, graças à qual seria possível identificá-lo.
Mas antes disso eu teria que localizá-lo, e talvez nunca chegasse a esse
ponto. Mesmo que tivesse dinheiro para pagar aos detetives que o procurari-
am para mim, que pistas eu lhes daria para que fizessem isso? Tudo o que
tinha era um nome e uma biografia que se mostraram falsos, pois até as fotos
tiradas no dia do nosso casamento ele carregara consigo junto com os negati-
vos. Na cidade mineira onde ele disse que nascera, segundo os advogados
que durante algum tempo trabalharam para mim de graça não havia nenhum
registro a respeito, e também ninguém o conhecia. Numa fazenda uma mu-
lher chegou a se demorar mais examinando as fotos, pois achou que ele era
parecido com um vigarista que há algum tempo atrás dera um golpe no seu
genro. Mas este homem, que talvez pudesse identificá-lo, morrera há pouco
após sofrer um derrame.
Assim, prestes a ter um filho, eu decidi que não daria à luz em Passa-
redo. Disposta a deixar para trás a garota ingênua e mimada que fora engana-
da por um vigarista, vendi tudo o que me restara – os móveis e alguns objetos
–, entreguei a casa na qual nascera aos seus novos donos e, grata às pessoas
que pagaram por tudo muito mais do que valia, me mudei para São Paulo.
JÚLIA DE SOUSA, uma moça de minha idade, filha de uma ex-empregada
de minha casa e praticamente minha irmã, já que fôramos criadas na mesma
casa e estudáramos na mesma escola, contra tudo e contra todos resolveu ir
comigo. Em poucos dias eu estava instalada numa casa modesta, num bairro
da periferia paulista. Júlia logo arranjou emprego de diarista e, juntando o que
ela ganhava com o que eu ainda tinha, pudemos atravessar os próximos cinco
meses, até que nasceu o meu filho RENATO.
Logo que pude tratei de arranjar emprego. Foi difícil, por causa da mi-
nha total falta de experiência. Mas quando consegui um que me pareceu dig-
no (num supermercado, primeiro de caixa e depois como promotora de ven-
das) tratei de trabalhar com afinco, pois o que eu mais queria então era criar
do modo melhor possível o meu filho.
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Foi só em Renato que pensei nesses dez anos. De tanto trabalhar não
tive tempo para namoros nem aventuras. E também não os quis, porque - em-
bora me envergonhe de dizer isso – não esquecera que, antes de ser enganada,
eu fora feliz com o meu suposto marido. Não sou adepta do provérbio segun-
do o qual as mulheres gostam de apanhar, mas o fato é que de vez em quando
sonhava que estava dormindo em seus braços, e quando acordava tratava de
me convencer, mas sem muita ênfase, que aquilo não passara de um pesade-
lo.
Ao contrário de mim Júlia, que não carregava nenhum peso trazido do
seu passado, pôde se dedicar, enquanto também progredia no trabalho e nos
estudos, à vida romântica. Logo conheceu um rapaz, técnico em informática
de ascendência italiana, chamado ÍTALO NEGROPONTE, com quem casou
e hoje tem dois filhos: MANOELA, de oito anos, e LEONE, de sete. Ítalo
trabaha na filial carioca de uma empresa paulista de informática, fica lá du-
rante os dias úteis e só vem para casa nos fins-de-semana. Assim Júlia pode
ficar quase sempre comigo. Os dois filhos dela são grandes amigos de Rena-
to, que agora tem dez anos, pois já faz todo esse tempo desde que fui roubada
pelo pai dele, sobre o qual nunca lhe contei a verdade – disse apenas que ele
precisou ir embora e são poucas as chances de que volte algum dia.
“E se ele voltar?” – Renato me perguntava de vez em quando. Eu des-
conversava a respeito disso, mas então pensava que se ele voltasse só teria
uma pergunta a lhe fazer: por que, tendo eu lhe dado toda a minha vida, ele
tivera que fazer aquilo? E então, qualquer que fosse a sua resposta, em nome
do meu filho eu lhe cobraria tudo o que perdi com multas e juros e o denun-
ciaria à polícia.
dia de muitas tarefas, acabei deixando o assunto de lado. Dois dias depois, no
entanto, ele estava de volta: durante um programa de variedades num canal
da televisão a cabo, apareceu a festa de inauguração da tal Faculdade e, ao
lado da noiva Sílvia (que era filha da proprietária do estabelecimento de ensi-
no), lá estava Marconi Ferraço de novo.
Mesmo sem saber o que me levou a fazer isso, eu me apressei em co-
locar uma fita no videocassete, gravando assim o resto da aparição do tal
Marconi Ferraço e sua noiva. Depois que o programa terminou, voltei a fita e
a revi várias vezes. O que tanto me chamara a atenção naquele homem? Não
consegui descobrir. Ciosa dos meus horários – teria que acordar às cinco ho-
ras da manhã no dia seguinte e tomar dois ônibus para levar Renato na escola
e depois ir trabalhar no supermercado - tratei de esquecer o assunto de novo e
fui dormir.
Mas no meio da noite, depois de um sono agitado e entrecortado por
pesadelos, acordei banhada em suor e ali, no escuro do meu quarto, sempre
com a figura esquiva de Marconi Ferraço diante dos meus olhos, começei a
pensar numa possibilidade absurda, mas que explicava à perfeição porque
aquele homem me impressionara tanto: seria possível? Tratei de levantar, li-
gar de novo a televisão e rever a fita mais algumas vezes, até que me certifi-
quei: de algum modo, por trás do rosto de Marconi Ferraço que nunca vira
antes eu reconhecera um outro rosto - o de Adalberto Rangel, pai de meu fi-
lho e meu falso ex-marido.
BÁRBARA CARREIRA
Eu não tinha notícias de Xis (sim, Xis, pois sempre o conheci pelo
nome verdadeiro, mas nem sob tortura eu o pronunciaria agora) há qua-
se um ano quando recebi um seu telefonema no qual, depois de me dar ins-
truções sobre a viagem e o endereço do local em que se achava sem dar mai-
ores explicações ele ordenou: “venha”.
E eu não pensei duas vezes já que a alternativa àquela aventura no fim
da qual encontraria o meu “Garoto Pidão” seria continuar à frente da casa de
massagens no Recife que eu então gerenciava. Segui suas instruções: viajei
para o interior de São Paulo e no aeroporto da próspera cidadezinha, depois
de pedir a um motorista de táxi que me levasse ao endereço que ele dera tive
uma surpresa, pois se tratava de uma clínica particular e muito luxuosa.
Lá dentro, internado numa suíte digna de milionários, sob a supervisão
de um médico de sotaque cucaracha, ele já estava sendo preparado para al-
gum tipo de procedimento cirúrgico. Mas, à minha chegada, pediu um tempo
aos que voejavam em torno dele e, uma vez sozinho comigo, me explicou
tudo. Não me disse de onde sairia o dinheiro para pagar toda aquela parafer-
nália, mas deixou bem claro que iria se submeter a uma série de cirurgias ra-
dicais no fim das quais ganharia um novo rosto.
Por quê? Isso ele me disse: dera há pouco o maior golpe de sua vida, e
ganhara dinheiro suficiente para não precisar mais exercer sua profissão de
estelionatário. Claro, embora o dinheiro fosse muito, não seria suficiente se
decidisse viver apenas dos juros. Seria preciso investi-lo em algo produtivo, e
por isso ele estava disposto a se transformar num empresário. Já escolhera o
ramo ao qual se dedicaria: a construção civil, na qual poderia investir com
boa parte do dinheiro dos clientes, sem sacrificar todo o seu capital de imedi-
ato. Também já escolhera a cidade na qual se instalaria - aquela que sempre
fizera parte dos seus sonhos de menino (embora então lhe parecesse inacessí-
vel): o Rio de Janeiro.
Mas antes de chegar lá ele teria que ficar um tempo ali na clínica, so-
freria dores atrozes por conta dos procedimentos radicais que mudariam seu
rosto, e por isso precisava de alguém que lhe desse apoio. Estaria eu disposta
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que um motorista me levou até a mansão onde agora era a sua casa: eu era
aquela que devia prover todas as necessidades de sua vida, inclusive as mu-
lheres que ele - discreto e solitário como era - pessoalmente nunca procurava.
Nosso arranjo deu certo, mas apenas porque tratei de cumpri-lo com
todo o meu empenho. Desde que essa nova fase de nossas vidas começou
nunca mais tivemos um instante sequer de intimidade. Ele era o patrão, e eu a
fiel empregada, e por isso só falávamos de assuntos que fossem do interesse
dele. Eu sabia de sua vida inteira, e poderia destruí-lo se o quisesse, mas
Marconi Ferraço nunca se preocupou com isso, pois tinha certeza de que, se o
destino resolvesse escrever na areia uma lista dos seus possíveis traidores, o
meu nome não estaria nela.
Eu era digna de sua total confiança. E para mostrar o quanto era grato
por isso ele sempre me recompensava muito bem. Nesses nove anos de arran-
jo não foi apenas meu patrão que evoluiu. Se ele ficou milionário, eu posso
dizer que, comparando com o modo precário como vivia anteriormente, hoje
sou rica. Mesmo totalmente dedicada a Marconi tenho, é claro, uma vida pes-
soal, sobre a qual ele não sabe nada. Não que eu minta para ele a respeito –
apenas não vejo necessidade de lhe contar minhas histórias.
Mandei buscar no interior de Pernambuco meus dois filhos, agora
adultos, e os mantenho perto de mim, num condomínio na Estrada Velha de
Jacarepaguá onde montei minha casa. O mais velho, HERALDO, tem vinte e
três anos e estuda Direito, e a mais nova, FERNANDA, aos vinte anos é mi-
nha fonte principal de preocupações, pois namora um tal de DUDA, um rapaz
de classe média, sobrinho e meio filho adotivo de Evita Duarte, mulher do
sócio de Marconi, o qual vive de mesada, dedica-se eventualmente a ativida-
des francamente irregulares como revender comprimidos de ecstasy, e até
agora não decidiu o que vai querer da vida.
Se eu tenho algum interesse romântico? Depois de tudo que vivi, posso
dizer que isso já não é tão importante para mim a essa altura da vida. Mesmo
assim tenho minhas aventuras. Mas elas sempre acabam no instante em que
preciso escolher entre minha dedicação a Marconi ou um possível amante, e
então sempre fico com o primeiro.
Quanto a Marconi Ferraço, a cada dia que passa ele fica mais distante
de Xis, o garoto donzelo que um dia Hermógenes colocou diante de mim lá
no bordel e, após me pagar, mandou que lhe ensinasse “uma boa meia dúzia
de coisas sobre a vida”.
Hoje ele sabe mais do que eu. Mas sua sabedoria não lhe será suficien-
te quando o seu passado, que ele considera morto e enterrado, voltar um dia e
lhe cobrar todas as contas que lhe são devidas. E então a nova lição que ele
aprenderá é que nenhum homem pode se dar ao luxo de renegar tudo o que já
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Não tem um dia em que eu abra o jornal e não leia alguma novidade
ruim a meu respeito. Mesmo quando não aparece lá o meu nome, é ele o que
vejo nas entrelinhas das notícias sobre alguma coisa irregular que aconteceu
nessa ou naquela comunidade: a culpa é sempre de alguém como Juvenal An-
tena. Meu nome é Juvenal Ferreira dos Santos, tenho 48 anos bem vividos, e
nasci aqui perto, quando essa região era apenas uma roça. Minha mãe era
uma senhora um tanto rude, mas amantíssima. Meu pai eu nunca soube direi-
to quem era. Quanto ao apelido, ele me foi dado nos primeiros anos de minha
vida adulta, quando brotaram por aí, feito espinhas na cara de um garoto, as
primeiras parabólicas.
Por que “Antena”? Por que estou sempre ligado. Nada se passa num
raio de alguns quilômetros ao meu redor sem que eu saiba. Por mais que as
pessoas tentem guardar segredo quando dão passos em falso ou mijam fora
do penico, não perdem por esperar, pois eu serei sempre informado. Foi as-
sim que ganhei o respeito dessa gente toda e me tornei uma espécie de padre,
prefeito, juiz, conselheiro e delegado. Assim como o tal de Marconi Ferraço
fez no resto do bairro, eu plantei nesta Favela da Mangueirinha, às vezes com
mão de ferro, mas sempre procurando ser justo, as raízes do meu império.
Sim, porque eu posso dizer sem medo de errar - nessa comunidade eu sou o
rei; e as pessoas que constantemente me pedem favores são meus súditos.
E é assim que os trato - como um monarca que, por ser tão poderoso,
pode se dar ao luxo de ser bom e justo. Providencio para que tenham uma
cesta básica de confortos urbanos, e em troca eles precisam pagar apenas uma
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cômoda taxa mensal por tudo isso. São meus homens que fazem os gatos
destinados a levar luz elétrica, água, televisão a cabo e até internet banda lar-
ga às suas casas. São de sócios de minha confiança as Vans que os transpor-
tam para seus empregos a tempo e a hora, evitando que cheguem atrasados.
Meus caminhões é que trazem, no dia e na hora previstos, os botijões de gás
com os quais cozinham a comida que alimenta seus filhos. Assim como são
meus os homens que providenciam para que não haja nenhum tipo de irregu-
laridade dentro dos limites da favela onde eles moram, incluindo assalto e
tráfico de drogas.
Pois só existe uma coisa que eu deteste mais do que ladrões e trafican-
tes: são aqueles que praticam violências contra crianças. Apanhei muito
quando era menino, mas minha mãe sempre teve uma justificativa para tais
castigos: eu era “muito levado”. Nunca reclamei por causa disso, sempre a
tratei como minha mãe querida até sua morte, mas a verdade é que o peso de
sua mão às vezes ainda me dói no lombo e, portanto, aquela pancadaria toda
me rendeu sérios agravos. Por isso não posso ver uma criança em situação
periclitante, e já me sinto na obrigação de ajudá-la. Sei que, numa comunida-
de pobre como essa, os traficantes são seus maiores inimigos. Mal se insta-
lam, tratam de atrair essas crianças com seu enganoso canto de sereia e, em
troca de promessas vãs (que nunca se cumprem porque a morte lhes chega
antes), em pouco tempo formam um verdadeiro exército de meninos.
Mas não na minha comunidade. Aqui, como já disse, sou o que cha-
mam de justiceiro, o que significa que faço justiça - ou seja, trato de punir,
em geral com a expulsão, mas até com a morte, os que tentam corromper a
inocência das crianças e infernizar o dia-a-dia dos adultos.
Meu povo sabe o quanto me preocupo com seus filhos, e me respeita
ainda mais por causa disso. Sou o “seu Juvenal”, a quem eles recorrem a pro-
pósito de tudo, e nunca saem da Associação Comunitária, na qual dou expe-
diente todos os dias, sem ouvir da minha parte pelo menos um conselho ami-
go. Às vezes eles exageram como é o caso da mulher que veio me pedir para
dar um jeito de conter o ímpeto sexual do seu marido.
“Não aguento mais, seu Juvenal, ele quer sexo todo dia, chego do tra-
balho morta de cansada e o homem já parte pra cima de mim com tudo, às
vezes duas, três vezes por noite... Isso está me matando!” Depois que ela foi
embora mandei chamar o indigitado, um nordestino mais troncudo que uma
jaqueira, e lhe dei o conselho: “se quer extravazar, vai às termas”. Ele fez o
que eu disse, é claro; e com isso a Uisqueria Highlands (da qual, como no
resto do comércio da favela, eu sou sócio minoritário), em cujo prédio funci-
ona as termas em questão, ganhou mais um cliente assíduo...
O engraçado é que, embora tenha esse profundo amor pelas crianças
dos outros, até pouco tempo eu mesmo não tinha filhos. Fui casado certa vez,
mas não deu certo. E a mulher, disposta a fugir de mim sem deixar rastro, se
mandou para São Paulo. Foi de lá que recebi, vinte anos depois, a notícia em
28
Assim, sem mulheres que - nem que seja com seus dedos carinhosos,
diminuam meus ímpetos - estarei menos protegido neste flanco quando dona
Branca Maria Barreto de Moraes, a ilustre proprietária da Universidade Pes-
soa de Moraes, por causa do romance clandestino entre Evilásio Caó, um dos
meus “soldados”, e sua sobrinha Júlia, cruzar o meu caminho. E então, como
eu costumava ouvir de minha mãe e agora repito (mesmo sem saber o signifi-
cado exato ou de onde saiu tal expressão) entre nós “dar-se-á a melódia”.
Se vou me apaixonar por dona Branca Maria Barreto de Moraes? Eu
diria que a paixão, como a piedade ou o medo, não é um sentimento que pos-
sa acometer Juvenal Antena. Mas não há dúvida que, de um modo bastante
radical para ambos, vou acabar me envolvendo com ela.
Mas Dona Branca, bem como a aversão que sente por mim a minha fi-
lha Solange, não será o meu maior problema. Este foi nos últimos dez anos, e
continuará sendo até que o resolva de uma vez por todas, minha difícil rela-
ção com Marconi Ferraço. Desde que liderei, há dez anos, a invasão dos pré-
dios ao lado do terreno que ele comprara, dando início à criação da Favela da
Mangueirinha e tornando assim impossível a construção do seu condomínio
de alto luxo, ele finge que me ignora, mas faz tudo para me destruir. É isso
que ele deseja - assim como eu quero vê-lo cair do cavalo -, e eu tenho certe-
za que não pensa em outra coisa.
Enquanto a comunidade se espalha por todos os lados sob minha pro-
teção, se enroscando ao redor do seu terreno como o anel da serpente em tor-
no de uma goela, ele compra mais e mais autoridades e lhes oferece o céu,
desde que o ajudem a romper o cerco. Sua intenção é atacar a comunidade
por todos os flancos, obrigando-a a sair dali ou pelo menos recuar de suas
fronteiras atuais. Mas eu manobro o tempo inteiro para anular os seus ata-
ques, pois se isso acontecesse, se ele conseguisse nos expulsar, ou até mesmo
nos fazer recuar de nossas fronteiras, em última análise eu é que seria venci-
do..
Nos primeiros anos essa tentativa de expulsão quase se concretizou al-
gumas vezes, mas então eu soube reagir à altura. Se ele tinha várias autorida-
des guardadas em seu bolso, eu também tinha minhas algibeiras cheias. Não
foi à toa que mereci uma medalha especial, outorgada pela Câmara Municipal
do Rio de Janeiro, por serviços prestados à comunidade. Marconi Ferraço
pode arrotar vantagens à vontade, mas eu também sou poderoso. Enquanto
um mesmo juiz nos concedia sucessivas liminares, graças às quais nenhum
dos terrenos que ocupamos podia ser retomado, eu trabalhava à frente dos
meus comandados dia e noite. Em apenas algumas horas, novos barracos sur-
giam, e as áreas construidas cresciam por toda a parte.
Quando enfim a última liminar foi derrubada e chegou a ordem de
despejo já não era mais possível, como disse o pastor Divino da Igreja Pente-
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costal e um dos meus aliados, “mostrar o caminho de volta para Israel ao meu
povo”. A terra prometida já era aqui, pois a Favela da Mangueirinha não era
mais um arruado sem prumo. Tinha luz em todas as casas, iluminação pública
e água encanada, além de próspero comércio na rua mais visível e, portanto,
se transformara numa verdadeira comunidade, que agora exigia da Prefeitura,
- e com todos os direitos - os benefícios do programa “favela bairro”.
Eles nos deram isso, mas, por conta da interferência de Marconi Ferra-
ço, o fizeram apenas em parte. De qualquer modo, tínhamos sido reconheci-
dos. Alguns, selecionados pela Associação Comunitária e dispensados de pa-
gar as taxas a ela devidas, passaram até a recolher IPTU, e assim se tornaram
legalizados. E com isso ninguém mais poderia duvidar do nosso direito de
morar naqueles terrenos.
E assim o condomínio de luxo que Marconi Ferraço pretendia construir
ali do lado, como a prova principal do quanto era empreendedor o seu espíri-
to, ficou apenas nos planos. Dele restam apenas as placas, nas quais, durante
as noites mais escuras, meus “soldados” (e até eu mesmo algumas vezes) pra-
ticam tiro ao alvo. Claro que esse prejuízo não afetou seus bolsos, já que, pa-
ra compensá-lo, ele tratou de obter em outras construções lucros ainda maio-
res. Algumas ele ergueu em terrenos de posse contestada que por isso lhe fo-
ram vendidos a preço de banana. Mas uma vez fechado cada um desses ne-
gócios não foi difícil para ele regularizar a papelada.
Algumas vezes ele não pôde agir dessa forma porque, a pedido de al-
gum morador da área, eu intercedi e usei todo o meu prestigio para anular a
negociata. E esse tipo de intervenção da minha parte só serviu para aumentar
o seu ódio. Sei que um dia posso sofrer uma emboscada por parte dos seus
asseclas, liderados pelo tal de Waterloo, cujo passado sei muito bem o quanto
é sinistro. Os que me são mais próximos constantemente me alertam sobre
isso. Mas não temo tal desenlace, pois há alguns anos Dona Setembrina, a
mãe-de-santo da comundiade cuja crença eu respeito, me deu uma série de
banhos de ervas, e depois jurou que dessa forma o meu corpo estava fechado.
Assim, continuo a exercitar, com apuro cada vez maior, minha rivali-
dade com Marconi Ferraço, e – tenho que respeitá-lo por causa disso – ele
sempre me responde à altura. No mais, minha vida é a mesma rotina diária.
Dou, faça chuva ou faça sol, expediente diário de seis horas na Associação
Comunitária. E para não ter que fazer hora extra depois que saio de lá, proibi
o meu povo de – seja qual for o problema – bater à porta da minha casa.
Nas eleições passadas, a pedido de alguns amigos de um partido pe-
queno, cheguei a me candidatar a vereador, mas além de todos os votos da
Mangueirinha não conquistei nenhum outro fora de lá, e assim fui derrotado.
Isso me deixou traumatizado, mas talvez o trauma vá embora antes da próxi-
ma eleição e eu me candidate de novo, só que em outras bases. Pois se tem
uma lição que aprendi nessa primeira tentativa foi que nenhum voto é livre e
todos de uma forma ou de outra são comprados.
31
Se eu sou um homem só? Não, porque, como já disse, sou uma espécie
de Rei e disponho do amor de todos os meus súditos. Claro, sei que alguns
entre eles me odeiam, mas estes são poucos e covardes, embora também se-
jam traiçoeiros. Para anulá-los eu tenho dos que me devotam a mais absoluta
fidelidade e contribuem com o meu trabalho social na comunidade. O tal Evi-
lásio Caó de quem já falei é um deles. Filho de MISAEL CAÓ, um marcenei-
ro que foi um dos primeiros moradores da área e até hoje continua exercendo
o seu ofício enquanto espera uma aposentadoria do INSS que não vem nunca,
ele é de todos - sem que os outros desconfiem - o meu preferido; e é também
aquele por quem um dia serei miseravelmente traído.
O seu romance com Júlia, a filha mais nova do doutor Paulo de Quei-
roz Barreto, vai se transformar na clássica história de amor proibido, não só
por causa da diferença de classes (ele pobre e mora na favela, e ela é rica e
vive num condomínio de luxo), mas também porque ela é branca e ele é ne-
gro. E vai se complicar mais ainda quando Solange, minha filha, mesmo sem
conseguir se adaptar ao ambiente do pai, acabar se apaixonando por Evilásio
na pior hora, ou seja, quando este decidir contestar o meu comando e desafiar
o meu poder dentro da comunidade.
A certa altura o filho de Misael Caó começa a ter dúvidas quanto ao di-
reito do homem para o qual trabalha de exercer tanto poder sobre a co-
munidade em que nasceu e vive. E quando essas dúvidas se transforma-
rem em certeza ele criará coragem e tratará de enfrentá-lo.
Dar-se-á então uma luta terrível que remeterá a história ao que há de
mais atual na vida carioca – a luta pelo poder dentro das favelas e a tute-
la dos seus moradores por facções ilegais e até criminosas. Na medida em
que trata de contestar esta situação e depois resolve lutar abertamente
contra ela, Evilásio se transforma no mocinho dessa história na qual an-
ti-heróis em busca de redenção (só) na aparência prevalecem.
No percurso em direção à consciência, Evilásio vai se revelar um líder
nato – ou, como diz o Pastor Divino a certa altura, “o Moisés que levará
seu povo à travessia do Mar Morto”. Desse modo teremos – afinal! – al-
guma coisa de inédito numa novela deste modesto autor – um mocinho
que é pobre, negro e favelado cuja travessia, como a de todo herói de no-
velas, no final sem dúvida chegará a bom termo.
32
Porque, depois de destronar Juvenal Antena, Evilásio Caó, não por que
se imponha, mas por livre escolha deste, se tornará o líder inconteste do
seu povo.
Sim, eu disse que o filho de Misael Caó, mesmo que no futuro seja
aquele por quem serei traído, é hoje o meu preferido. Mas não é o único.
GUMERCINDO PEIXEIRO, cuja antiga profissão o próprio nome indica, é
o meu segundo. É dele, mas também em sociedade comigo, a empresa de
Vans que faz o transporte comunitário mediante o pagamento de uma taxa
mensal por parte dos que usufruem do serviço. Ao contrário dos ônibus, faça
chuva ou faça sol elas nunca atrasam. Desde que conheceu uma certa mulher
casada chamada ALZIRA e se apaixonou por ela, Gumercindo andou vaci-
lando. Alguém sugeriu que, por causa disso, eu o expulsasse da minha área e
entregasse a concessão do serviço de Vans a outro. Mas Gumercindo vem
jogando no meu time desde priscas eras e eu posso dizer sem medo de errar
que é meu amigo. Portanto, depois de admoestá-lo de modo contundente a
respeito de sua fraqueza amorosa, lhe dei mais um voto de confiança.
A tal Alzira mora numa casa meio arruinada na Estrada Velha de Jaca-
repaguá, é casada com um certo DORGIVAL BARRETO que, segundo a
lenda, não consegue arranjar emprego há oito anos, e é o arrimo da casa, que
tem mais dois moradores, DORGINHO, dezesseis anos, e LILIANA , qua-
torze, filhos do casal. Embora diga que trabalha de atendente noturna num
hospital público, na qualidade de funcionária terceirizada, Alzira, como Gu-
mercindo descobrirá de modo traumatizante, na verdade tem outra profissão,
que exerce com rara perícia segundo os que a experimentaram, nos fundos da
Uisqueria Highlands, isso mesmo: a tal casa de massagens, na qual ela é uma
das profissionais mais ativas.
Alzira é sobrinha de um dos mais antigos moradores do entorno da
nossa comunidade: o português MANOEL DE ANDRADE COUTO, que
emigrou para o Brasil ainda criança no primeiro terço do século XX com a
intenção de fazer fortuna. Mas por mais que tentasse, e algumas vezes se
dessse muito bem, seu dinheiro sempre sumia a certa altura em consequência
de vagas perdas, e por isso ele nunca chegou nem perto do seu intento. Aca-
bou se instalando, depois de sucessivos fracassos comerciais e um casamento
infeliz, numa espécie de chácara na Estrada Velha, que hoje é objeto de uma
acirrada disputa judicial, pois fica bem no meio de um terreno no qual Mar-
coni Ferraço pretende (outra vez!) construir um dos seus condomínios.
Todos os outros imóveis existentes no local já foram derrubados, me-
nos a casa semi-arruinada do “seu Manoel”, que fica o tempo todo sentado no
meio de sua sala disposto a “resistir até a morte”. E isso é o que vai acontecer
efetivamente, já que a casa será derrubada - revelando um fantástico segredo
escondido no seu subsolo -, mas o velho Manoel só sairá de lá morto.
33
Do tal casamento infeliz seu Manoel teve uma filha, dona CÉLIA
MARA, hoje com cinquenta anos, que é casada com um técnico em eletrici-
dade muito util aos meus negócios dos “gatos”, também de ascendência por-
tuguesa e de nome ANTÔNIO JOSÉ MELGAÇO. Ele e a esposa tiveram
apenas uma filha, CLARISSA, vinte anos, a qual, embora tenha problemas de
dislexia, atravessou com louvores todo o ensino básico e agora está pronta
para disputar uma vaga na Universidade que dona Branca dirige com rara
eficiência desde que seu marido morreu, como veremos a seguir, em circuns-
tâncias muito constrangedoras.
Assim como sua prima Alzira, que é filha de uma irmã do velho Ma-
noel já falecida, dona Célia Mara, supostamente uma senhora honesta e bem
casada, também tem um segredo, daqueles de farta cabeleira, que vai se reve-
lar de modo escandaloso. Isso acontecerá quando João Pedro Pessoa de Mo-
raes, o marido de dona Branca, for vítima de uma bala perdida, num sábado à
noite, durante uma prosaica sessão de circo na Praça Onze.
Antes que ele seja identificado no hospital para onde foi levado agoni-
zante, um fotógrafo consegue um flagrante do desespero de sua mulher, a
qual desaparece misteriosamente depois de sua morte. E a publicação da foto
no dia seguinte, quando só então o morto é identificado, mostra que a mulher
em questão não era a esposa do famoso professor, mas sim a dona Célia Mara
da qual, no maior segredo, há mais de quinze anos ele era amante.
CÉLIA MARA
lorizada e não esse produto genérico de hoje, era a que os rapazes sempre
exigiam de suas namoradas: dormir com ele.
Eu cedi num fim-de-semana. Disse ao meu pai que ia dormir na casa
de uma colega, mas na verdade nós dois fomos nos hospedar num hotel mo-
desto na rua principal de Petrópolis. Lá aconteceu como o meu amado queria;
e em nenhum momento daquela nossa “lua de mel” me passou pela cabeça
que ele pudesse me abandonar depois daquilo, mas foi o que aconteceu: uma
semana depois João Pedro rompeu comigo e antes do final daquele ano já
estava casado com Branca. Não que a amasse como ele me disse em nossa
última e dramática conversa antes do seu casamento, mas porque ela tinha
aquilo de que ele mais precisava para concretizar seus projetos: dinheiro.
se fosse o meu segundo marido. Só deixamos de nos ver com a mesma fre-
quência durante o tempo em que fiquei grávida de Clarissa, alguns anos de-
pois de Branca ter tido Sílvia, a sua própria filha.
Quando o escândalo estourou, e Antônio descobriu que durante aque-
les anos todos eu e Joca tivéramos um caso, imediatamente pôs em dúvida a
paternidade de Clarissa, mas eu tratei de desafiá-lo a fazer o teste de DNA.
Ele não o fez, é claro, e eu tinha certeza que não o faria, porque sempre fora
covarde; em vez disso proibiu minha filha de me ver ou me dar qualquer tipo
de apoio, ordem que ela passou a desobedecer depois de algumas semanas na
medida do possível.
do seu cadáver e chorar uma última lágrima antes de me despedir dele – tinha
era que sumir enquanto dava tempo.
Na primeira ocasião em que médicos, enfermeiros e os repórteres de
plantão no hospital me deram as costas saí dali como se fosse invisível. De-
pois de atravessar vários corredores, desemboquei na rua, pensando ter esca-
pado do escândalo. Peguei o primeiro táxi, e dentro dele chorei como uma
desesperada, sem sequer dar uma explicação ao motorista que, através do re-
trovisor me olhava preocupado. Saltei duas quadras antes e tratei de me
acalmar de uma vez por todas durante a caminhada até minha casa. Já era tar-
de, Antônio na certa estaria cochilando diante da televisão, e se eu conseguis-
se entrar discretamente talvez ele não acordasse, e assim não teria que lhe dar
satisfações do meu atraso.
Foi o que fiz. Enquanto ele ressonava derreado sobre a sua poltrona
preferida, eu atravessei a sala pé ante pé e tratei de me refugiar no banheiro
do meu quarto. Lá tomei um banho morno que me acalmou na medida do
possível, e depois fui para a cama. Quando Antônio entrou em fingi estar em
pleno sono. E ele deitou e, como só poderia fazer alguém que tivesse a cons-
ciência tranquila, logo adormeceu - pela última vez - ao meu lado. Eu, ao
contrário, fiquei acordada o tempo todo. Cada vez que meu corpo me traía e
eu cochilava, escutava o impacto da bala entrando no corpo de Joca e acorda-
va assustada. Pensava na sua esposa e tinha pena dela. E quando lhe disses-
sem que ao morrer seu marido estava com outra? Imaginem como seria difícil
para uma mulher absorver esse tipo de choque. Pelo menos, eu pensava tola-
mente, ela não saberia quem era. Ah, como eu estava enganada...
Na manhã seguinte, em todas as bancas de revistas da cidade, na pri-
meira edição do jornal minha foto aparecia na capa, apontada como a mulher
do homem ainda não identificado que fora vítima de uma bala perdida em
plena sessão de circo na Praça Onze. Meia hora depois a segunda edição do
jornal já consertava o erro: o morto fora identificado, sua esposa, que compa-
recera ao hospital, se recusara a dar entrevistas, e apenas em relação à tal mu-
lher que o acompanhava permanecia o mistério: quem era ela, e por que, ao
saber que o seu acompanhante estava morto, simplesmente fugira?
O passo seguinte da imprensa seria tentar descobrir quem eu era e onde
morava. Já estavam quase chegando ao meu endereço, mas quando isso acon-
tecesse não me encontrariam. Pois quando acordei, ainda sem ter a menor
idéia dos desdobramentos daquela história trágica, já encontrei minhas malas
prontas. Bastou que abrisse os olhos e Antônio, de pé ali diante de mim, me
arrancou da cama, me levou até a sala e, sem deixar sequer que eu vestisse
uma roupa decente - já que estava de camisola -, de uma forma que não dei-
xou a menor dúvida, me jogou no olho da rua onde os vizinhos espalhados
diante das portas de suas casas só esperavam que eu aparecesse para me apu-
par e me chamar de piranha.
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Mesmo assim eu insisto. Por mais que ainda tenha contas a pagar pelos
meus erros, o fato é que continuo aberta para a vida. Assim, quando um certo
professor aqui da Faculdade chamado FRANCISCO MACIEIRA, que é fa-
moso por suas idéias revolucionárias sobre a democratização do ensino, se
interessar por mim, mesmo sabendo que ele também é objeto de interesse de
Bárbara eu irei à luta, e isso nos tornará rivais de novo.
mesmo usando o meu dinheiro, ele tinha construído uma universidade. E em-
bora seus métodos fossem os mais tradicionais possíveis, ele se preocupava
em alcançar um mínimo de qualidade da educação que ofertava. Seu objetivo
era construir algo para além dele, tinha um ideal voltado para os outros, para
o coletivo. Isso era muito positivo e, portanto, eu o admirava.
De qualquer modo, por não amá-lo “com todas as minhas forças”, co-
mo era o caso dela, é que pude mais facilmente esquecê-lo. Nem sequer me
dei mais ao trabalho de pensar porque ele fizera aquilo comigo, pois, depois
do meu discurso diante do seu túmulo, qualquer conclusão a esse respeito já
não teria mais importância.
tuição, e então, já que tenho poderes para isso, não me restará outra alternati-
va, senão fechá-la e mandá-los todos plantarem batatas”.
Meia hora depois de fazer essa ameaça eu era entronizada no cargo de
presidente do Conselho de minha Universidade. Eu era a dona, e agora era
também quem mandava. Meu objetivo era ir muito além do meu marido, e
para isso precisava elevar aquele estabelecimento de ensino particular a um
nível de absoluta excelência. Não apenas uma máquina caça-níqueis, mas
uma universidade que se aproximasse do nível das melhores escolas particu-
lares inglesas e americanas. Não perdi tempo, e comecei a fazer isso naquele
mesmo dia. E à custa de gritos e patadas, com os quais venho azeitando as
engrenagens por vezes emperradas do nosso estabelecimento, é o que estou
prestes a conseguir agora.
FRANCISCO MACIEIRA
Sim, dona Célia Mara é bem fornida não apenas de cérebro, mas tam-
bém de carnes, como bem sabia o indigitado professor João Pedro, e eu aca-
barei por descobrir quando dona Branca, sua viúva cheia de não-me-toques,
se decidir pela inconveniência do meu assédio e me der um fora. Mas isso é
assunto para daqui a várias quadras. E por falar em “quadra”, devo dizer que
a da Escola de Samba Nascidos da Mangueirinha, ora no segundo grupo e da
qual sou o presidente, vai ser inaugurada na noite mesmo em que o dono da
Universidade Pessoa de Moraes, vítima de uma bala perdida, não apenas
tomba morto como tem o seu segredo de mais de vinte anos desmascarado.
Essa escola de samba, fruto do trabalho de toda a comunidade, e objeto
da cobiça de vários políticos que atuam na região, vem subindo de cotação a
cada desfile graças aos meus méritos administrativos, e aos talentos de DÁ-
LIA MENDES, sua carnavalesca formada em vários tipos de arte. Ela foi
resgatada por mim das mãos de um traficante pé-de-chinelo o qual, até o ins-
tante em que o expulsei da área, a mantinha em cativeiro, alimentando-a a
pão, água e muita droga.
O modo como fiz com que o indigitado sujeito tirasse o seu time de
campo? Prefiro não relatar agora, não só porque me faltaria tempo para isso,
como também porque, tenho certeza, os senhores achariam toda a história
muito chocante.
Escorraçada pela família, que achava impossível sua reabilitação, pois
antes já tivera muitas recaídas, ela ficou sob minha responsabilidade. Eu a
internei numa clínica, e de lá ela só saiu no dia em que afinal acreditei em sua
sinceridade quando me disse que, mais que tudo na vida, o que ela queria
48
agora era “ficar limpa”. Foi só depois disso que descobri seus talentos e lhe
ofereci o cargo de carnavalesca em nossa escola então iniciante. Agradecida,
ela se empenhou de tal maneira que angariou o respeito da crítica especiali-
zada. E hoje, embora seja fiel à nossa bandeira e à comunidade onde se insta-
lou e até hoje mora, de vez em quando tem que rejeitar convites que lhe são
dirigidos para trabalhar em outras escolas.
A quadra da Escola de Samba Nascidos da Mangueirinha fica ao lado
da Associação Comunitária, e servirá também como salão de festas, o qual
será alugado a preço módico aos moradores da área. Sua inauguração contará
com a presença do deputado estadual NARCISO TELLERMAN, político
idealista e acima de quaisquer suspeitas, mas cuja integridade será posta em
dúvida pelos seus pares e os colunistas políticos só porque ele, ainda que dis-
corde de muitos dos meus métodos, mesmo assim vê virtudes na minha pes-
soa; e não esconde de ninguém que, sem impor nenhuma condição ao contrá-
rio do que pensam os seus colegas sempre tão interesseiros, é meu fiel e
grande amigo.
Na quadra existe um “bar de batidas e comidinhas” (embora eu tenha
discordado deste nome, por achá-lo meio fresco), o qual é administrado por
outro cidadão que andava por aí desgarrado e foi salvo do vendaval pela mi-
nha teimosia. Ele se chama BERNARDINHO DA CONCEIÇÃO e, como
Dália Mendes, foi expulso de casa ainda adolescente, quando sua família des-
cobriu que preferia em vez das moças os rapazes.
Filho de um casal de inúteis, o BERNARDO pai que há vinte anos, de
calção e sem camisa, vende cerveja na praia do Quebra Mar “porque tá muito
difícil de arranjar emprego”, e a AMARA mãe que não faz outra coisa na vi-
da além de ficar na janela tomando conta da vida dos outros, ele tem dois ir-
mãos tão inúteis quanto os pais e mais velhos que ele, BATISTA E BE-
NOLIEL. Estes, depois de o expulsarem de casa, trataram de trazê-lo de volta
quando descobriram que ele, após fazer um curso de culinária patrocinado
por mim, começara a ganhar dinheiro à custa de sua profissão no boteco bati-
zado “Castelo de São Jorge” e especializado em pratos de bacalhau, que um
amigo meu lhe financiou ali, perto do PROJAC.
Hoje, sem mudar de em nada o seu comportamento (para decepção das
moças e alegria dos rapazes), ele não só foi aceito por todos como se tornou o
chefe da casa, porque ganha dinheiro e os sustenta apesar dos meus conselhos
em contrário. Bernardinho e Dália são tão ligados um no outro que não con-
seguem esconder o quanto se amam, embora a preferência sexual da qual ele
não abre mão não permita que sejam mais do que amigos.
Nesse caso ele não só teria cometido esse crime, como também seria conde-
nado por isso.
Foi nesse ponto de nossa conversa que Maria Paula sorriu, do modo
como fazia quando éramos casados e ela me dizia o quanto estava feliz por
causa disso.
“Já ouviu falar em exame de DNA?” - ela me perguntou.
Eu respondi que “sim, é claro”, e também sorri, pois tinha certeza que
não deixara para trás nada que permitisse me identificar num teste desse tipo.
Mas ela desfez essa minha ilusão quando falou que tivera um filho:
“Eu estava grávida quando você roubou tudo o que era meu e sumiu no
mundo” – ela falou de um modo surpreendemente frio. – “Já que você então
não queria ter filhos, eu ainda estava tentando criar coragem para lhe dar a
notícia, mas não tive tempo de fazer isso, pois aconteceu aquilo. Ele se cha-
ma Renato, tem dez anos agora, e eu não preciso de mais do que um fio de
cabelo de cada um para provar tudo o que digo, inclusive que você e ele são
pai e filho”.
Desde então Maria Paula me tem em suas mãos. Não me passa mais
pela cabeça que, a partir de agora, eu consiga viver plenamente algum dia de
minha vida sem conviver com este filho. Assim como não me passa pela ca-
beça que, antes de ter acesso a ele, possa pensar em adotar uma crinça embo-
ra eu esteja com Sílvia e ela asssim o queira.
Durante muitos anos eu vivi a mais cômoda de todas as vidas: aquela
que se baseia apenas no presente, está voltada para o futuro e prescinde to-
talmente de um passado. Até que descobri que isso, esse engodo que inventei
para mim mesmo, não era exatamente uma vida. Eu só tenho uma saída: lar-
gar tudo e mudar de identidade de novo, ou mergulhar de uma vez por todas
neste oceano de lembranças que reneguei – meu próprio passado. A essa altu-
ra já descobri que Maria Paula, embora diga que me odeia, na verdade me
ama. Mas não como Marconi Ferraço, e sim como Adalberto Rangel, esse
cuja história não posso assumir sem ter que pagar muito caro por isso.
Esse é o dilema que terei de resolver antes que minha história termine:
quem sou eu, afinal? Depois de ter vivido tantas outras vidas, terei forças pa-
ra afinal ser eu mesmo?
Quanto a mim, vou tocando minha vida para frente. Tenho um filho
querido, e também tenho amigos. Sou uma mulher que leva uma vida digna e
é independente, que pode muito bem prescindir do apoio e até do amor de um
homem. De vez em quando Júlia me pergunta: “e quanto a Adalberto Rangel,
ou Marconi Ferraço, ou como ele agora se chama?” Eu apenas sorrio, pois
não posso afirmar se ele tomará ou não a única decisão possível para mim,
que é a de pagar pelos seus erros. Mas enquanto isso eu e Renato ficaremos
esperando.
57
DRAMATIS PERSONAE
guns anos aprendeu a ser contida. É daquelas que, de tanto ter rivais mulhe-
res, já não se deixa enganar por elas, pois conhece todos os seus truques. Dos
homens ela finge que não sabe - não porque isso seja verdade, mas porque na
sua opinião este é o melhor jeito de mantê-los sob controle.
Marconi está nas suas mãos e sabe disso, pois é Bárbara a guardiã de todos os
seus segredos. Mas mesmo nas circunstâncias mais adversas ela preferiria
morrer a ter que traí-lo. Não é apaixonada por ele, nem se sente sua mãe, mas
apenas uma grande, enorme e fiel amiga. É bonitona até hoje e, quando não
está imbuída do seu papel de governanta daquele homem poderoso, pode ser
quase tão extrovertida quanto uma viúva italiana daquelas dos filmes de Vit-
torio de Sica.
É séria como só sabem sê-lo as mulheres que um dia foram prostitutas. Não
admite o menor sinal de descaso ou falta de respeito. É a mais conservadora
de todas as mães em sua relação com Heraldo e Fernanda, os dois filhos. Fará
tudo o que Marconi quiser (ou mandar) para impedir que ele sofra ou caia em
desgraça. Se tem uma vida pessoal? Tem sim, mas sobre isso não valos falar
agora, pois se trata de outro assunto. Só podemos adiantar que fatos surpre-
endentes de sua vida virão à tona quando aparecer na nossa história uma certa
caftina chamada ZENILDA, vinda diretamente de Greenville, onde aconte-
ceu uma certa história à qual se deu o nome de A INDOMADA. Mas essa era
outra novela.
Tem poucas amigas fora do trabalho, é muito caseira e talvez, como Bárbara
já andou murmurando a seu respeito, estivesse reservada apenas para ser “ti-
tia”, não fosse o fato de que um certo mau caráter chamado Benoliel, irmão
do Bernardinho de que falamos no perfil do seu irmão logo acima, vai surgir
e derrubar com os dois pés todas as barreiras de proteção que cercam a sua
vida.
ao que chama de “Direito livre e pleno”, ou seja: o interesse dos que o contra-
tam.
mes, meio chefe de cozinha, e nem uma coisa nem outra”. Ela vai conhecer
um rapaz chamado Evilásio Caó, filho do velho marceneiro Misael Caó, mo-
rador da Comunidade da Mangueirinha e lugar-tenente de Juvenal Antena
durante as filmagens de um documentário sobre a favela em questão financi-
ado pelo Sundace Institute.
As filmagens serão bastante conturbadas, e a relação entre Júlia e Evilásio
passará do campo profissional para o pessoal, o que deixará Juvenal Antena
muito preocupado, pois ele, sábio como é, prevê que este Romeu e Julieta
inter-racial e inter-classes vai dar muito pano para as mangas, ainda mais
quando Júlia, para desespero da coitada de dona Guinèvere que tanto deseja-
va um neto, engravidar e tiver um filho negro.
É famoso pelo estranho cheiro de metal que o seu corpo exala, o qual faz com
que sua passagem recente por um local seja sempre detectada. Em qualquer
ambiente é o agente desagregador. E assume essa postura de um modo tão
descarado que já virou até piada. Será o grande opositor de Francisco Maciei-
ra, quando este chegar à Universidade e tratar de por em prática suas idéias
revolucionárias.
É um verdadeiro cão, fiel até à morte àquele que o paga. Mesmo assim teve
patrões a quem odiou, embora sempre fizesse sem qualquer questionamento
tudo o que eles mandavam. Já de Marconi Ferraço, se este não fosse um sen-
timento pouco apropriado ao seu comportamento viril, se poderia dizer que
Waterloo o adora. Este é - como ele diz aos seus subalternos quando os acon-
selha a não fazer nenhuma crocodilagem com o chefe - “um patrão pra toda a
vida”.
Waterloo já matou muita gente, e matará de novo se for necessário, pois não
sente nenhum remorso quanto a isso.
prevê ou guardar segredo mesmo sabendo que o patrão está prestes a passar
por alguma provação, ou até sofrer uma desgraça?
Não está de todo descartada a possibilidade de que esses “poderes” de Eze-
quiel evoluam de tal forma que ele passe a fazer milagres. É um personagem
que está sempre no limite da insanidade e sabe disso. Portanto, com sua Bí-
blia sempre à mão, é um sujeito muito atormentado.
permitida, ele permanece à porta, sem arredar um passo até que o dono saia
de lá e o leve embora. Menos falta Zé das Couves sente de Amélia, sua com-
panheira, a quem ele chama de “a verdadeira mulher de verdade”, por ser a
única sobre a face da terra capaz de “agüentar sua barra”; por mais que Zé
das Couves beba, ela está sempre firme do seu lado. E quando a crise se abate
sobre ele, embora prefira a companhia de Cachorro, é ela quem cuida dele e o
ampara.
Nos intervalos entre uma queda e outra Zé perpetra seus sambas. E por causa
deles tudo mudará em sua vida. Pois ele será descoberto por um produtor mu-
sical chamado Mariozinho Rocha e, não só por causa do seu talento, mas
também por suas características altamente populares, acabará se tornando
uma espécie de mito da periferia, e assim ficará famoso.
Obrigada a ficar na favela dentro da qual o pai faz questão de manter sua ca-
sa, ela evitará maiores contatos com o povo de lá, e assim vai procurar abrigo
– através de amizades que fará nos shoppings – nos condomínios da Barra.
Aos que conhece apresenta uma biografia falsa, da qual consta até mesmo um
endereço num condomínio de cujos portões, depois que os amigos a deixam
lá de carro, ela nem passa. Vai se meter em muitas confusões por causa de
suas mentiras. Pensa que com elas engana até o pai, sem saber que ele está de
olho nela, sabe de tudo que está aprontando, e aguarda ansioso que ela enfim
se cure daquela arrogância e o aceite e entenda.
Sua obsessão é arranjar um rapaz de família emergente, casar com ele e sair
de uma vez por todas “daquela lixeira”. Vai viver muitas situações constran-
gedoras por causa disso, e de todas elas será salva pelo pai, mas sem que o
perceba.
Solange é o exemplo típico da pessoa que insiste em negar suas origens sem
saber que lá adiante tem um encontro inevitável marcado com elas. E no seu
caso este se dará através da figura de Evilásio Caó, negro como ela e como
ela de ascendência humilde, pelo qual a certa altura se verá apaixonada, em-
bora sem a menor possibilidade de vir a ser correspondida.
rá em frente, até que Júlia engravide e dê à sua mãe, dona Guinévere, o neto
que ela tanto queria e mais um bônus – o menino nasce negro.
Se eles vão terminar juntos? Como Shakespeare não disse, mas todos nós já
aprendemos o futuro a Deus pertence. E plantado no meio do futuro desses
dois estará a certa altura a determinação de Solange em conquistar Evilásio e
através do amor dele afinal se redimir de toda a sua soberba e reconquistar
suas origens.
Da mesma forma estará plantada no meio desse futuro do casal a tomada de
consciência de Evilásio, que graças a ela confirmará a previsão de Juvenal, o
qual também disse que “um dia seria por ele traído”. Pois o filho de Misael
Caó a certa altura começa a ter dúvidas quanto ao direito do homem para o
qual trabalha de ter tanto poder sobre a comunidade em que nasceu e vive. E
quando essas dúvidas se transformarem em certeza ele criará coragem e trata-
rá de enfrentá-lo.
Dar-se-á então uma luta terrível que remeterá a história ao que há de mais
atual na vida carioca – a luta pelo poder dentro das favelas e a tutela dos seus
moradores por facções ilegais e até criminosas. Na medida em que trata de
contestar esta situação e depois resolve lutar abertamente contra ela, Evilásio
se transforma no mocinho dessa história na qual não só anti-heróis em busca
de redenção prevalecem.
No percurso em direção à consciência, Evilásio vai se revelar um líder nato –
ou, como diz o Pastor Divino a certa altura, “o Moisés que levará seu povo à
travessia do Mar Vermelho”. Desse modo teremos – afinal! – alguma coisa
de inédito numa novela deste modesto autor – um mocinho que é pobre, ne-
gro e favelado cuja travessia, como a de todo herói de novelas, no final sem
dúvida chegará a bom termo.
isso, entre outras razões porque não saberia faze-lo. É o mais quadrado dos
homens e considera isso a sua maior qualidade. Está sempre esbravejando
contra a decadência do mundo. É formal até dizer chega, e tem horror á ex-
cessiva informalidade dos que o rodeiam. Exemplo: mulher grávida com o
barrigão ostensivamente à mostra, como só brasileiras e as representantes de
algumas tribos primitivas usam, ele acha imoral e pecaminoso.
Lê o jornal sempre do mesmo modo, primeiro a página de esportes, e depois,
pela ordem decrescente, as outras, até chegar à primeira. É cheio de pequenas
manias, do tipo: passar um pedaço de papel higiênico na tábua do banheiro
antes de sentar nela. Quando era jovem e já andava engravatado seu tipo as-
sim formal tinha um certo charme, e foi graças a isso que conquistou Célia
Mara. Mas com o passar do tempo aquele jeito dele ficou insuportavelmente
chato.
Também é daqueles que se considera o dono da razão em tudo. Quando des-
cobrir que a mulher o traiu durante vinte anos vai ficar o mais ressentido e
rancoroso dos homens, e por isso não perderá uma única ocasião de denegri-
la. Nunca mais dirá o nome dela, e apenas a chamará, até mesmo diante da
filha, de “a adúltera”, ou então, “aquela que me pôs um par de chifres”. É,
como dizem todos os que o conhecem: “uma figura”. Se ele vai se envolver
com alguém depois da grande decepção que Célia Mara lhe causou? Ainda é
cedo para se saber disso.
De qualquer modo Clarice ficará bastante magoada com esta súbita notorie-
dade na mãe num terreno que é dela. E assim ela só alcançará o equilíbrio, e
terá condições de realizar o seu sonho de menina, depois que ganhar o cari-
nho e a compreensão do promissor cineasta Duda Monteiro.
Portanto, nessa relação entre Dália e Bernardinho o que se vai mostrar é uma
novíssima forma do “amor entre iguais” que é muito mais comum do que se
pensa: a ligação entre um homossexual e uma heterossexual, tão forte que os
impede de procurar cada um o seu próprio parceiro.
A certa altura ela vai contar para ele a história do filme “O Feitiço de Lady
Áquila” e dizer:: “nós somos eles”. Talvez, de todos os encontros e desencon-
tros amorosos da nossa história, seja este o mais polêmico. Ah, sim: e embora
Bernardinho seja um assim chamado “gay”, dessa vez não correremos o risco
de (não) ter o tão famoso beijo.
ainda que para chegar a tal se utilize de portas travessas. E numa comunidade
onde o Estado não chega e os problemas por causa disso se avolumam, um
homem como ele, cujas atitudes contribuem para agregar as pessoas em torno
do bem comum, deve ser preservado e orientado. Narciso e Juvenal são ho-
mens sábios, cada um a seu modo. E por isso sempre se entendem.
Sua presença aqui tem um motivo do qual não se pode abrir mão – a discus-
são sobre ética na política numa história em que, por causa da cruzada de Ma-
ria Paula para fazer com que Marconi Ferraço pague pelo seus crimes, o te-
ma principal é justamente este: a ética como um dos valores maiores na vida
de cada pessoa, não apenas as figuras públicas, mas aquelas mais simples.
Em sua vida pessoal o deputado está há alguns anos, como ele mesmo diz,
“dando um tempo”. Mas isso vai mudar quando conhecer Maria Paula e se
apaixonar por ela.