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DUAS CARAS

Sinopse para uma novela das oito de

Aguinaldo Silva

Rio de Janeiro, fevereiro de 2007


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A história que abaixo será contada a partir dos depo-


imentos de suas principais personagens terá três fases. A
primeira se passa na segunda metade da década de 80, se-
rá situada nas zonas litorânea e da mata de Pernambuco
com ênfase no município praiano de Igarassu e mostrará
apenas duas figuras que participarão de toda a novela:
MARCONI FERRAÇO, então com quinze anos e conhecido
como “GAROTO PIDÃO”, e BÁRBARA CARREIRA, além
do estelionatário HERMÓGENES e outras personagens
eventuais.
A segunda fase acontece dez anos depois, e nela o
GAROTO PIDÃO, agora com vinte e cinco anos, já tem um
nome, que ainda não é o definitivo: ele é ADALBERTO
RANGEL. Nessa fase HERMÓGENES sai da história, e en-
tram, além de figuras eventuais (moradoras do interior do
Paraná e da cidade fictícia de Passaredo), JÚLIA e MARIA
PAULA. É no final desta segunda fase que nosso herói
aplica o maior golpe de sua vida e então, por circunstân-
cias que não vale a pena relatar agora, acaba mudando de
rosto.
O clima dessas duas primeiras fases é de road movie,
pois ADALBERTO, primeiro com Hermógenes e depois so-
zinho, estará sempre na estrada, a fugir das vítimas de seus
golpes, dos quais o mais comum é o conto da guitarra ro-
mena.
A terceira fase é o presente, e nela o ex-garoto pidão e
ex-Adalberto Rangel agora se apresenta como o empresá-
rio da construção civil MARCONI FERRAÇO. Ela se passa
no Rio de Janeiro, na área compreendida pela Barra da Ti-
juca e Jacarepaguá, abarcando, via Estrada Velha, o en-
torno da Lagoa, no qual está situada a Favela da Manguei-
rinha, que é um dos cenários.
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UM ROSTO, MUITOS NOMES:

Eu me chamo MARCONI FERRAÇO, mas este não é meu nome ver-


dadeiro. Assim como não é verdadeira a meia dúzia de outros nomes que usei
durante algum tempo em diferentes ocasiões e em locais diversos do Brasil,
até me instalar no Rio de Janeiro, mais precisamente na Barra da Tijuca, e
decidir que esta identidade, pela qual hoje me apresento, seria a definitiva.
O meu nome de batismo? Tantas vezes precisei abdicar dele desde mi-
nha adolescência que já não o recordo. E se o lembrasse não o pronunciaria
agora. Sei que o recebi há quarenta anos, na pia batismal de uma igreja em
ruínas, numa vila histórica do litoral de Pernambuco chamada Igarassu. Sou
pernambucano, portanto, e ainda devo ter por lá alguns parentes, embora não
saiba deles, e menos ainda eles de mim.
Minha vida pregressa, aliás, é um segredo que mantenho guardado a
sete chaves, primeiro porque já não sou mais quem era, e segundo porque a
revelação do modo como cheguei até aqui me condenaria a muitos anos de
cadeia. Sim, tive uma vida irregular e movimentada, e fui durante muito tem-
po o que uns chamariam de “171” e outros de “estelionatário”. Mas, depois
que dei o maior golpe de toda a minha vida (e sobre ele falarei mais adiante),
tudo isso ficou para trás; é passado.
Fui um “reles marginal”, como me classificou certa vez um policial
que conseguiu me prender durante algumas horas, antes de ficar com tudo o
que eu tinha e me mandar embora. Hoje sou um homem de prestígio, cujos
negócios principais estão no ramo da construção civil, graças à qual pude re-
escrever minha própria história até me tornar uma figura muito respeitável no
Rio de Janeiro, principalmente na Barra da Tijuca e no segmento mais nobre
do bairro de Jacarepaguá, onde centralizo meus negócios imobiliários.
No setor em que agora atuo também tomei atitudes que meus advoga-
dos, com a boa vontade típica das criaturas pagas a peso de ouro, chamariam
de “pouco ortodoxas”. O que significa que forjei escrituras à custa de dinhei-
ro; baixei minha mão pesada sobre a cabeça de alguns proprietários indecisos
quanto ao que deveriam fazer com seus imóveis (e não lhes dei outra alterna-
tiva senão vendê-los a mim a preço de banana); e, usando às vezes da força
bruta, invadi terras e me apropriei delas na mão grande, sem que por isso al-
guém se atrevesse a desafiar meu poderio para me chamar de “grileiro”.
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Nessa questão da posse de terras esses dois bairros nos quais atuo são
até hoje um verdadeiro faroeste distante no qual, como no faroeste verdadei-
ro, no frigir dos ovos a força e a ousadia é o que mais contam. E Deus é tes-
temunha disso: ao longo da minha vida nunca tive problemas em usar a força
nem deixei um só instante de ser ousado quando foi preciso.
Tenho um passado que os moralistas e os politicamente incorretos
chamariam de “negro”. E isso afeta minhas relações com o mundo que me
cerca. Como já disse acima, reescrevi minha própria história, ou pelo menos a
adaptei ao meu gosto pessoal e ao meu dinheiro. Mesmo assim, não faço
alarde desta minha nova biografia, e trato de manter os detalhes dela numa
permanente zona de sombra.

O pessoal da mídia, do qual fujo como o diabo da cruz, diz que sou
avesso à publicidade. Alguns me incluem até na lista dos “temperamentais”,
ou pior ainda: dos “esquisitos”. Embora não tenham a menor idéia da razão
de tudo isso, o fato é que estão certos. Evito me expor além da conta devido
ao meu passado, mesmo que sejam quase nulas as chances de que alguém
saído dele venha a me reconhecer. É que há alguns anos, por decisão minha,
me submeti a uma série de cirurgias plásticas que acabaram por me dar um
novo rosto, e este se adaptou à perfeição à minha nova identidade.
Mesmo sem gostar de aparecer, como sou rico e poderoso acabei me
tornando uma celebridade: sou aquele que foge das câmeras e das entrevistas
e cuja exposição, ainda que rápida e fugidia, é sempre objeto de notícia. Para
a mídia sou antes de tudo um empresário voraz, e depois sou também um
grande mistério que ela, por mais que tente, nunca chega a decifrar como gos-
taria.
Sou um homem solitário. Tenho muitos conhecidos, mas ninguém a
quem possa chamar de amigo. Nem mesmo ao meu sócio, GABRIEL DU-
ARTE, velho conhecido dos meus primeiros tempos na Barra da Tijuca, a
quem cooptei por que do ponto de vista legal não me era permitido ter várias
empresas sozinho. A participação dele em tudo que tenho é mínima, simbóli-
ca apenas; mas mesmo assim lhe rende o bastante para manter sua vida de
luxo e ostentação, que ele divide com a esposa, uma mulher fútil chamada
EVA - mas conhecida nas colunas sociais como EVITA, e os dois filhos ado-
lescentes e problemáticos, PEDRO e RAMONA.
Gabriel é o que muitos diriam “uma boa alma”. E Eva - ou Evita Duar-
te como ela se autodenomina, numa tentativa de se ligar à outra do mesmo
nome e glorioso passado na Argentina – se aproveita do fato de o marido ser
um “banana” - como ela o chama às vezes - e o domina. Houve um tempo em
que chegou a se insinuar para mim. Mas eu deixei bem claro, sem precisar
pronunciar sequer uma palavra quanto a isso, que sua família perderia todos
os privilégios se ela não tirasse da cabeça essa idéia de manter comigo algum
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tipo de intimidade. Desde então, como a maioria dos que me rodeia, Evita
Duarte me respeita e me teme.
Vivo só em minha mansão num condomínio de luxo na Barra da Tiju-
ca, apenas com os criados necessários à manutenção da casa, além de uma
governanta que priva de minha intimidade há vinte e cinco anos. Ela poderia
me destruir se contasse tudo o que sabe a meu respeito. Mas – não tenho a
menor duvida quanto a isso – me é moralmente fiel desde o dia (quando eu
tinha quinze anos) em que me iniciou sexualmente num prostíbulo do bairro
de Prazeres (em Jaboatão, um município perto do Recife), e eu disse que a
amava.
Não era verdade, claro. Mas ela, que já ouvira antes esse tipo de decla-
ração irrefletida sem lhe dar maior importância, sabe-se lá por que razão da-
quela vez resolveu acreditar nela. E continuou acreditando, mesmo depois
que lhe dei, ao longo de todos esses anos, provas irrefutáveis de que tal sen-
timento não era verdadeiro. Seu nome é BÁRBARA. E houve um tempo,
quando ela estava no auge, em que fazia juz a ele. Hoje é uma mulher ainda
bonita, mas madura e contida, que prefere ser conhecida pelo nome completo
e mais um título, ou seja: “dona” BÁRBARA CARREIRA.
Vivo só, mas não tanto, pois quase sempre existe uma mulher à minha
volta tentando me conquistar a qualquer preço. Não posso dizer que as mu-
lheres sejam o meu ponto fraco, pois um homem como eu não pode se dar ao
luxo de ter alguma fraqueza. Mas a verdade é que gosto muito delas. Foi uma
mulher quem me deu tudo o que tenho. E embora vá falar dela mais adiante e
contar como fiquei rico graças à sua ingenuidade e seu romantismo (sim, eu
roubei até o último centavo de tudo o que ela possuía), a verdade é que nunca
penso nela, e menos ainda lhe sou agradecido.
Claro que essa mulher vai reaparecer a certa altura da minha vida para
cobrar com juros altíssimos, que só poderão ser pagos com minha completa
desgraça, tudo o que lhe roubei no passado. Mas antes de chegar a essa fase
crítica de minha vida é preciso que lhes dê mais detalhes sobre como sou
agora. Portanto...

É Bárbara quem escolhe as mulheres com quem eventualmente dur-


mo. E nenhuma delas fica a menos de três metros de mim sem antes assinar
um documento, redigido à perfeição pelos meus advogados, no qual renuncia
a qualquer tipo de reinvidicação legal quando eu a mandar embora. Enquanto
estão comigo sou gentil com elas e lhes dou presentes caros dos quais guardo
os recibos em meu nome, pois assim se quiser posso retomá-los. Mas depois
que as despacho é como se não tivessem existido, e sob nenhuma circunstân-
cia quero mais saber notícias delas. É Bárbara que as trouxe quem as despa-
cha quando assim determino. E o faz com o maior prazer, pois no fundo deve
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se achar a única mulher que jamais sairá da minha vida, a não ser que ela
mesma o queira.
Nesse momento estou prestes a mandar uma dessas mulheres embora.
Chama-se DÉBORA, era aspirante a modelo - mas sem nenhuma chance por
causa dos peitos grandes -, e de uns dias para cá só pensa em passar por cima
de todas as precauções que exijo dela até engravidar e ter um filho comigo.
Claro que isso não seria possível, pois na clínica onde um famoso cirurgião
plástico moldou à perfeição o meu segundo rosto aproveitei para pedir que
me fizessem uma vasectomia.
A razão para isso foi muito mais que um capricho. Então eu não sabia
que vida teria quando saísse dali. E imaginava que, qualquer que ela fosse,
nela não haveria lugar para uma esposa, e muito menos para filhos. Meu
exemplo de vida ainda era o velho e nômade Hermógenes. Até então eu tinha
sido um aventureiro como ele, e pretendia continuar como tal; e para isso não
poderia me dar ao luxo de ter uma família.
Claro que meus passos acabaram me guiando em outra direção e hoje,
como já deixei bem claro, sou um homem estabelecido. Mas nunca pensei em
reverter a cirurgia que por enquanto me impede de ter filhos, pois até hoje
não achei uma mulher pela qual valesse a pena fazê-lo. De qualquer modo,
este é um fato da minha vida que nunca revelei a ninguém – nem mesmo a
Bárbara.
Quanto à minha atual namorada e seus inúteis esforços para engravidar
de mim... Por enquanto ainda não sei desta sua intenção melíflua, mas Bárba-
ra logo vai descobri-la e me contar a respeito, e então minha fúria vai se aba-
ter sobre Débora e ela se arrependerá de ter nascido.
Sim, porque eu sou um homem de grandes ódios, embora eles nunca
me façam perder a cabeça. Sou capaz de esperar durante anos, sem dar a me-
nor bandeira a respeito, pela hora certa de me vingar de um desafeto. E quan-
do o faço é sempre de modo definitivo; com todo rigor possível e sem deixar
pistas. Por isso, pelo modo inflexível como costumo agir na vida e nos negó-
cios, sou um homem muito temido, e também muito respeitado. Foi à custa
desses dois sentimentos, o temor e o respeito - além da força e da ousadia de
que falei acima - que construí minha vida.
E que vida. Agora tenho tudo. Mas não acho que seja suficiente, pois
nos próximos anos vou querer mais ainda. Sou rico, riquíssimo, tenho dinhei-
ro e bens a perder de vista. Também sou dono e senhor de muita gente, inclu-
indo figuras de prôa do Executivo, do Legislativo e da Justiça no Rio de Ja-
neiro. Já elegi vereadores e deputados, nomeei Secretários de Estado e direto-
res de empresas estatais e mistas, e transformei num inferno a vida de pelo
menos um governador do Estado, o qual teve a veleidade de achar que podia
sobreviver sem meus favores.
Sim, eu sou o Homem. E para isso, embora saiba mantê-los a uma cer-
ta distância, tenho em torno de mim uma legião de asseclas, quase todos re-
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crutados em diferentes pontos da área em que reino. O primeiro, claro, é o


meu sócio, Gabriel Duarte e sua família de aloprados e doidivanas sobre os
quais já falei antes. O segundo é o chefe do escritório de advocacia que traba-
lha para mim em regime de exclusividade: o doutor PAULO DE QUEIROZ
BARRETO. Cinquentão, amante dos conhaques e dos charutos, viciado em
pôquer, dado aos garotos, mas no mais absoluto segredo... Cheio de defeitos,
portanto; porém uma verdadeira fera quando se trata de enveredar pelos me-
adros obscuros do Direito. Por mais clara que a Lei seja, diz ele, tem sempre
um “mas” – uma vírgula mal posta, ou uma crase desencaminhada e sórdida -
que nos permitirá driblá-la. E ele é mestre em descobrir este “mas” e fazer
dele o uso que melhor apraz ao seu cliente.
Doutor Barreto, como eu o chamo, é casado com uma vetusta senhora,
cinco anos mais velha que ele, de nome GUINEVÈRE. Com ela, apesar da
inapetência dos dois para o sexo, teve um filho hoje com vinte e oito anos -
seu provável sucessor no escritório, mas sem a sombra sequer do seu talento -
que se chama PAULO DE QUEIROZ BARRETO FILHO e é mais conheci-
do nas rodas como BARRETINHO; e uma filha de vinte e cinco anos, JÚ-
LIA: meio assistente de produção numa produtora de filmes, meio chefe de
cozinha, e nem uma coisa nem outra. Por ela um rapaz chamado EVILÁSIO
CAÓ, lugar-tenente de um dos poucos desafetos meus a quem respeito (um
sujeito conhecido como JUVENAL ANTENA do qual ainda falarei muito),
vai se apaixonar perdidamente, mesmo sabendo que negro, originário de uma
favela e marginal como é, nunca terá a menor chance de se aproximar dela.
O doutor Barreto tem uma irmã, BRANCA MARIA BARRETO DE
MORAES, viúva de um certo professor João Pedro Pessoa de Moraes, ho-
mem de muitas posses e interesses na área da educação cuja morte (como
será contado adiante) ocorreu de forma no mínimo insólita. Dona Branca não
teve tempo – nem razões, como se saberá depois - para chorar a perda, pois
herdou do marido uma Universidade particular, que hoje dirige com mão de
ferro depois de ter providenciado sua mudança do Centro da cidade para a
Barra, onde a transformou, “à custa de gritos e porretadas”, num centro de
referência do melhor ensino.
Mulher arrogante e inflexível, ela tem uma filha, chamada SÍLVIA, pe-
la qual – para surpresa de todos, até de mim mesmo - vou me apaixonar de
forma irreversível depois que ela voltar de um longo período de estudos na
Suíça. Embora Sílvia resista com veemência a este meu sentimento, acabarei
por conquistá-la, é claro. E será no dia do nosso casamento que a tal mulher
do meu passado vai aparecer para cobrar sua fatura atrasada e mais as multas
e juros, com isso transformando minha vida tão ordenada num caos, um ver-
dadeiro inferno.
Outro que é muito próximo de mim, embora esteja a quilômetros de
distância, é um cidadão que atende pelo insólito nome de WATERLOO DE
SOUSA: o responsável pela minha segurança e aquele que executa, sempre
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de forma cruel e inflexível, minhas ordens mais obscuras. Há alguns dias,


sem que o consultasse a respeito, ele se ofereceu para atear fogo à Favela da
Mangueirinha, cuja simples existência nas vizinhanças há anos impede a
construção de um dos meus projetos imobiliários mais ambiciosos. É nessa
comunidade, formada basicamente por nordestinos, que reina como todo po-
deroso chefão o tal Juvenal Antena de quem falei acima. Embora a sugestão
de Waterloo tenha provocado em mim algumas fantasias dignas de um Nero,
por enquanto não lhe dei nenhuma resposta.
Ex-policial de passado tenebroso, fanático por armas e sempre dado a
uma beligerância, Waterloo às vezes me lembra um cão raivoso. Mas como
os animais dessa espécie, sem jamais deixar de ser tenso ele é fiel a quem o
alimenta. E mesmo sabendo o quanto é perigoso sei tirar proveito disso sem-
pre lhe pagando mais do que merece. Ele deve ter uma família, ou pelo me-
nos alguém que lhe seja mais próximo, mas nunca lhe perguntei nem ele me
falou a respeito. Sei que de vez em quando sai com algumas moças, em geral
arrebanhadas nas copas e cozinhas das mansões do condomínio onde moro.
Nos últimos tempos está bancando uma delas, a mulata conhecida como
ANDRÉIA BIJOU, candidata a rainha de bateria da Escola de Samba Nasci-
dos na Mangueirinha, cujo presidente e benemérito é ninguém menos que o
tal Juvenal Antena.
Ah, sim, tem o meu motorista, um rapaz de nome EZEQUIEL que, por
ter se tornado pentecostal é execrado pela genitora, uma suma sacerdotisa do
candomblé conhecida como DONA SETEMBRINA. Ele nunca se separa de
sua Bíblia - até mesmo quando está dirigindo trata de mantê-la sobre o colo.
E a certa altura da minha história vai ter premonições a meu respeito que, pa-
ra grande espanto meu, se mostrarão perigosamente verdadeiras.
Ezequiel tem um irmão mais velho de nome JOSÉ, o ZÉ DAS COU-
VES, ex-feirante de profissão e tão dado à bebida que, nos momentos mais
tenebrosos, em matéria de apoio só pode contar com DOGÃO, um vira-latas
que se tornou seu amigo fiel e inseperável. Apesar deste sério handcap capaz
de deixar a maioria dos seres comuns sem qualquer esperança de futuro, José
será descoberto por um produtor musical num lance de pura sorte, e se trans-
formará num pagodeiro de grande sucesso.
Sua música, do tipo “deixa a vida me levar”, funcionará como uma es-
pécie de porta-voz da pobre sabedoria popular atualmente em voga. Tanto
que em pouco tempo ele se tornará dono de uma ampla discografia. Zé das
Couves, como ele mesmo diz, é “amancebado” com uma mulher chamada
Amélia, que nas palavras dele é “de verdade” não porque seja igual à daquela
música antiga, mas porque, depois que ele fica famoso, à custa de uma disci-
plina ferrenha impõe ordem à sua vida. Os dois estarão sempre tentando ter
um filho, mas enquanto não o conseguem tratarão de adotar duas crianças,
dois “Jabás” segundo Zé “importados diretamente da Paraíba”.
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Já falei de passagem do modo como a Favela da Mangueirinha, sob a


égide do seu todo poderoso chefão Juvenal Antena, vem impedindo a concre-
tização de um dos meus projetos imobiliários mais caros: o Condomínio de
Excelência Blue Lagoon, apresentado aos possíveis compradores como “um
paraíso às margens da Lagoa da Tijuca”, mas na verdade a mais de três qui-
lômetros desta. O terreno onde os prédios seriam erguidos foi um dos primei-
ros a ser comprado por mim, mal cheguei ao Rio e decidi que o ramo da
construção civil seria o meu negócio. Situado na Baixada de Jacarepaguá, ele
ficava ao lado de um outro condomínio que, depois da falência de sua cons-
trutora quando mal saíra das fundações, acabou sendo invadido pelos pró-
prios operários, quase todos nordestinos.
A ação para a retomada de posse das terras, feita pelos donos do terre-
no com a minha ajuda (pois eu tinha interesses na área), já estava quase vito-
riosa quando entrou na briga o tal Juvenal Antena. Ex-funcionário de uma
empresa de transportes de valores, aposentado muito cedo da corporação por
razões nunca explicadas, ele se auto proclamou líder dos invasores. E não
apenas os exortou a resistir, mas ainda comandou a invasão de outras áreas
próximas, incluindo parte do meu terreno. A partir daí a ação da justiça se
tornou inviável, pois uma associação de moradores, criada a mando de Juve-
nal, logo se tornou perita em apelar para o recurso das liminares que torna-
vam impossível qualquer tentativa de despejo.
Enquanto a justiça protelava mês após mês, ano após ano sua decisão
sobre o caso, a favela crescia. De simples acampamento de operários tornou-
se um verdadeiro bairro, com direito até a um próspero comércio ao qual não
falta nem mesmo uma sofisticada “uisqueria” - na verdade disfarce para uma
casa de massagens. Hoje, segundo as estatísticas, ela teria milhares e milhares
de habitantes. Mas deve ter muito mais que isso, pois levas de novos morado-
res chegam a cada dia graças às facilidades que Juvenal Antena lhes oferece,
incluindo uma linha de ônibus pirata que uma vez por semana liga a Man-
gueirinha diretamente a Campina Grande, na Paraíba; e assim é impossível
contá-los.
Enquanto isso, bem ao lado, as placas oferecendo a Excelência do
Condomínio Blue Lagoon há muito apodreceram. Isso quando não foram ar-
rancadas para servir de divisórias aos novos barracos. E, para evitar que a
invasão do meu terreno se consuma, tive que mandar construir em torno dele
uma verdadeira muralha de concreto, com direito a guaritas nas quais os me-
ganhas arrebanhados por Waterloo, fortemente armados, vigiam dia e noite.
Algumas escaramuças já foram registradas entre meus seguranças e os
homens de Juvenal, que também tem o seu “exército”; pois é graças a este
que ele comanda todos os setores da favela, incluindo a vida pessoal dos seus
moradores. E estes, mesmo tendo que pagar pelo direito de viver no local não
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reclamam disso, pois o chefão, em troca do pagamento da “taxa de moradia”,


lhes dá paz, proteção, assistência médico-jurídica e até conselhos.
É isso mesmo - na Favela da Mangueirinha, Juvenal Antena é ao mes-
mo tempo prefeito, juiz, delegado e conselheiro. Ele decide as desavenças
entre vizinhos e as querelas domésticas. Castiga os moradores que saem da
linha e, nos casos mais graves, chega a expulsá-los da comunidade, conde-
nando-os ao degredo. Pune todos os delitos, desde os furtos, agressões e as-
saltos até aquele que considera o maior de todos - o tráfico de drogas: quando
um traficante resolve desafiá-lo e se instalar no local não hesita em mandar
despachá-lo.
Ele também cuida da limpeza das ruas, providencia a entrega dos boti-
jões de gás sempre no dia certo, assim como, através da instituição urbano-
nacional denominada “gato”, fornece o acesso à água, à iluminação e à tele-
visão a cabo. Tudo mediante o pagamento de taxas que, mesmo módicas, de-
pois de multiplicadas pelo número crescente de moradores da favela contri-
buem para manter sempre cheios os cofres do seu cada vez mais vasto impé-
rio. Se os moradores do local se queixam disso? Pelo contrário, acham que é
Deus no céu e Juvenal na terra, e assim ele é muito querido.
Durante esses anos todos, enquanto eu cresci de modo sempre legal,
Juvenal cresceu ilegalmente ao meu lado. Embora tenhamos escolhido cami-
nhos diferentes, somos cada um à sua maneira dois empreendedores. Assim
não tive outra saída a não ser aturá-lo, sempre adiando a hora do nosso gran-
de confronto. Mas este vai se tornar inevitável quando ele se aliar à mulher
que reaparece do meu passado para tirar tudo o que tenho. E então, não só a
ela, mas também a ele: terei que destruí-los.

A essa altura todos já perceberam: por mais que tente manter alguma
reserva quanto a essa mulher do meu passado, chegou a hora de contar como
a conheci, como nos envolvemos, e como eu apliquei o maior de todos os
meus golpes nela. Mas para isso terei que voltar a um período ainda mais re-
moto do meu passado, quando eu não tinha ainda a menor idéia de que um
dia, antes de passá-la para trás, iria casar com ela.
Nasci como já disse, numa cidade histórica e decadente do litoral de
Pernambuco. Meus pais eram muito pobres. E se dependesse apenas deles eu
não teria chegado nem perto de aonde cheguei, não fosse o fato de que, aos
quinze anos, conheci um cidadão chamado HERMÓGENES. Talvez até hoje,
tanto no modo de me comportar como nas minhas atitudes, eu me inspire ne-
le. Hermógenes era discreto, supostamente alvar, quase invisível, porque sua
profissão assim o exigia: ele era “171”: um estelionatário de muita experiên-
cia que se especializara no “conto da guitarra”. Andava há anos pelo interior
do Nordeste a convencer, com grande êxito, fazendeiros e comerciantes ingê-
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nuos a lhe comprar uma engenhoca que ele apresentava como “a infalível
máquina de fabricar dinheiro”.
Não vou aqui esmiuçar os detalhes desse golpe, pois a verdade é que,
para os não iniciados, ele pareceria completamente absurdo. Incluía um pou-
co de prestidigitação e muita conversa, e nessa última o tal de Hermógenes
era imbatível. Dava gosto vê-lo a convencer suas vítimas de que, uma vez
donos daquela miraculosa máquina, eles não teriam outra saída senão assumir
o fardo de se tornarem riquíssimos. Com gestos precisos, quase como um ar-
tista, fazia diante dos olhos extasiados do cliente uma demonstração de como
a máquina funcionava. E sem falhar uma só vez os convencia.
Depois de sair dali deixando a tal máquina – que ao novo comprador
logo se revelaria inútil -, mal se via a salvo de uma possível perseguição ele
tirava um velho mapa rodoviário do bolso e nele escolhia a esmo sua próxima
parada. Era durante essas idas e vindas na estrada, entre os locais de um golpe
e outro, que ele se tornava mais acessível e conversador. E então, para apren-
der melhor sobre a profissão na qual me iniciava, eu me enchia de coragem e
o interrogava.
Como eu entrei na sua vida? Foi simples: aceitei seu convite para cair
na estrada, num certo dia em que ele passou de carro diante da minha casa e
me viu lá sentado no meio fio. Ele procurou meu pai, lhe ofereceu uma certa
quantia para que este alocasse os meus serviços... Ou seja: embora Hermóge-
nes tenha tratado o assunto com a maior delicadeza, a verdade é que meu pai
me entregou a ele em troca de dinheiro e, portanto, eu fui vendido. Hermóge-
nes costumava dizer, quando eu fazia alguma coisa errada e ele me castigava
duramente, que me escolhera por pena: “quando lhe vi na beira da estrada
magro e sujo feito um cachorro sem dono e com aquele olhar de pedinte, não
resisti em lhe trazer comigo”.
Ele dizia isso e eu fingia que acreditava. Mas já percebera que o meu
“olhar de pedinte” o atraíra porque, quando me apresentava às suas possíveis
vítimas como seu filho doente, e dizia que precisava vender a máquina para
financiar uma operação sem a qual eu teria uma morte prematura, elas olha-
vam para mim e não tinham a menor dúvida. Assim, meu “olhar de pedinte”
o ajudou a ganhar muito dinheiro. Mas Hermógenes nunca me deu nada além
de comida e roupa, sem exagerar numa coisa ou noutra, pois, segundo dizia
seus “clientes” não acreditariam na história da operação de urgência se eu
aparecesse diante deles gordo e bem vestido.
Nessa época eu ainda não tinha o nome pelo qual sou conhecido hoje.
Também não usava mais o meu nome de batismo, e sim um dos muitos dos
quais me servi enquanto trabalhei para Hermógenes. Este não apenas me “ba-
tizava”, como providenciava os documentos que tornavam legal o nome es-
colhido. E também me indicava os caminhos através dos quais era possível
legalizar uma falsa identidade; desse modo conheci falsários capazes de forjar
– e tornar legais – qualquer tipo de documentação que o cliente lhes pedisse.
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Existe uma verdadeira malha desse tipo de “profissionais”, que se conhecem


um ao outro e cobrem o país inteiro. E a eles recorri nas muitas vezes em que
precisei de tais serviços, mesmo quando já não trabalhava mais para o meu
“patrão”.

De vez em quando Hermógenes se concedia umas férias do seu “traba-


lho”, e então viajava comigo para o Recife. Nessas ocasiões sempre se hos-
pedava no mesmo hotel miserável no Centro velho da cidade. Foi numa des-
sas viagens que ele, preocupado com o tempo cada vez maior que eu passava
trancado no banheiro, decidiu que estava na hora do seu ajudante conhecer
intimamente uma mulher, pois só assim “acalmaria os nervos”. Dessa forma
travei relações com Bárbara, aquela que me coube no bordel ao qual ele me
levou numa certa noite. Naquela primeira vez, embalado pelo prazer e a ma-
gia que a mulher me proporcionara, lhe fiz a declaração de amor que – não
sei por que diabos – a marcou para sempre e fez com que se tornasse minha
servidora fiel, como é até hoje.
A partir daquela primeira noite, todas as vezes em que Hermógenes se
concedeu os tais períodos de férias e viajou para o Recife comigo tratei de
visitá-la. E por mais ocupada que estivesse Bárbara nunca deixava de conse-
guir um tempo para fazer com que eu desfrutasse dos seus carinhos e de sua
companhia. Eu era “seu menino querido”, ela dizia com o mesmo fervor com
que me chama agora de “Doutor Marconi”.
Assim, nos tornamos primeiro uma espécie de amantes, e depois mais
que isso: ficamos amigos. Passamos a fazer confidências um ao outro, e a
conversar sobre nossos planos para o futuro, embora nessas ocasiões falássa-
mos mais para nós mesmos. E assim como eu soube de sua vida pregressa
(antes de se tornar prostituta ela fora casada tardiamente e tivera dois filhos),
Bárbara acabou sabendo tudo a meu respeito - até mesmo do meu trabalho
como ajudante de um vigarista. Mas nunca me criticou nem me aconselhou a
mudar de vida, já que também havia escolhido um caminho irregular para si
mesma e não tinha a menor vergonha disso.
Com o passar dos anos ficamos tão íntimos que até nos escrevíamos.
Embora eu não tivesse um paradeiro certo, já que estava sempre em trânsito
com Hermógenes, fazia uma previsão dos lugares por onde passaria e a in-
formava a respeito; e quando chegava naqueles locais sempre havia uma car-
ta que ela me enviara na posta restante dos correios e que, com os meus gar-
ranchos de semi-alfabetizado, eu respondia.
Claro, nessas minhas andanças com Hermógenes eu conheci outras
mulheres e eventualmente também as tive. Mas, por conta da minha vida
sempre em trânsito, não me liguei a nenhuma além de Bárbara. Por isso, até
que nos tornássemos primeiro apenas amigos, e depois patrão e empregada, e
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até que surgisse aquela a quem enganei, posso dizer que ela foi a única mu-
lher da minha vida.
Durante os dez anos em que viajei com Hermógenes pelo interior do
Nordeste nunca tive um tostão no bolso, e andei sempre mal vestido e famin-
to. Mas nunca me arrependi de estar com ele, pois numa coisa meu “patrão”
era pródigo: nas lições que me dava sobre a vida e sobre a sua “arte”. Graças
a ele me tornei um “mestre em vender ilusões”, que era como ele se referia ao
estelionato. E quando me considerei pronto para exercer a profissão por conta
própria, soube cobrar o que ele me devia, segundo meus cálculos. A essa al-
tura eu já descobrira que ele guardava todo o seu dinheiro na mala, atrás de
um fundo falso. E então, chegada a hora, foi só fugir com ela enquanto ele
dormia sem deixar o menor rastro.

Dizem que Hermógenes é vivo até hoje. Não sei – nunca mais o vi,
pois tive o cuidado de não agir na mesma região que o meu antigo patrão e
mestre. De posse do dinheiro que ele amealhara ao longo daqueles anos todos
de “conto da guitarra”, viajei para o interior de Minas, onde durante alguns
meses tratei de “tirar o atraso e aproveitar a vida”. E quando já tinha gasto
quase tudo que roubara do outro, usei o que me restava para comprar os ape-
trechos necessários, com os quais passei a dar meus próprios golpes, sempre
com o sucesso previsto.
Não me fixei apenas no truque principal de Hermógenes, pois sabia
que a “guitarra” exigia uma sutileza de gestos que eu não tinha. E também
não me especializei num determinado tipo de golpe, preferindo praticar de
forma aleatória vários deles.
Do interior de Minas fui para São Paulo e, sempre pelo interior, desci
para o Oeste do Paraná, seguindo o que se chamaria naqueles anos de “a tri-
lha da riqueza”. Naquelas pequenas e prósperas cidades recém fundadas nun-
ca havia menos de meia dúzia de pessoas ansiando por ser enganadas, e eu
sempre satisfazia seus anseios. E foi por causa de uma delas que cruzei com
os pais de MARIA PAULA.
Tudo aconteceu de forma aleatória. Numa das poucas vezes em que me
dispus a dar o golpe da “guitarra” escolhi para vítima um fazendeiro simpló-
rio de ascendência italiana. Depois de parar diante de sua porta com o meu
carro como quem não queria nada, e após dois dedos de prosa, logo fui intro-
duzido à sua casa, e lá começei a exercitar minha lábia. Tudo caminhou bem
até que uma mulher, que logo soube ser a sogra do tal sujeito, entrou inespe-
radamente na sala. Em meio à minha vigarice, e com o fazendeiro visivel-
mente fascinando, não tive como interromper meu trabalho por conta de sua
chegada. E vi desde o primeiro instante que enquanto ficava lá, parada e em
silêncio, ela não acreditava numa só palavra do que eu falava.
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Fosse ela a minha vítima, e eu teria dado um jeito de interromper o


golpe alegando um defeito qualquer na “máquina”, e depois trataria de ir em-
bora. Até tentei fazer isso; mas o fazendeiro, a essa altura muito interessado
por conta de tudo o que eu já dissera não me deu a menor chance; e assim,
sempre sob o olhar de censura da megera, fui obrigado a levar o negócio adi-
ante até fechá-lo. Recebi o pagamento combinado, dei as últimas instruções
sobre o funcionamento da máquina – que só poderia ser religada dali a uma
hora – e tratei de sair a toda, sabendo que era apenas uma questão de minutos
até que a megera conseguisse convencer o genro de que pagara um alto preço
para ser enganado.
Se nessas ocasiões eu sentia medo? Não, pelo contrário: era quando al-
guma coisa ameaçava dar errada no golpe que ele me parecia mais prazeiro-
so. O perigo me excitava quase tanto quanto uma mulher bonita. E esse pra-
zer só fazia crescer enquanto eu dirigia o carro a toda velocidade, me afastan-
do cada vez mais do local onde mais uma vez me dera bem como golpista.
Em geral essas fugas eram interrompidas para uma relaxada num bordel de
beira de estrada, num local suficientemente distante daquele do qual fugira,
onde já me sentisse mais seguro.
Era isso que eu estava pensando em fazer naquele instante, já a duas
horas de distância das terras do tal fazendeiro, enquanto dirigia a cento e vin-
te por hora: parar numa daquelas “boates” que proliferavam no interior do
Paraná trazidas pelo progresso e escolher a melhor de suas mulheres para
passar um tempo comigo. Com o rádio do carro ligado a todo volume, preo-
cupado em não deixar passar o primeiro bordel que surgisse, eu me descon-
centrei da estrada. Por isso só vi tarde demais quando um carro saiu de trás do
caminhão que vinha em direção contrária à minha tentando cortá-lo e, sem
conseguir fazê-lo, veio a toda velocidade pela contramão à minha frente.
Enquanto eu buzinava frenético, sem ter como me desviar - pois se o
fizesse bateria no caminhão que vinha pelo lado contrário ou então iria de
encontro à mureta e poderia cair na ribanceira -, vi quando o carro patinou no
instante em que o seu motorista, sem saber o que fazer, pisou com toda vio-
lência no pedal do freio. E então foi tudo muito rápido: enquanto o caminhão
passava e seguia o seu caminho, o outro carro rodopiou à minha frente e, a
essa altura descontrolado, desviou violentamente para a esquerda, pulou so-
bre a mureta de proteção da estrada e foi cair no abismo lá embaixo.
Ao mesmo tempo em que o carro batia lá no fundo com um estrondo,
eu tratava de freiar e parar no acostamento, onde fiquei durante alguns se-
gundos, meio aturdido, a pensar naquele acidente horrível e a repetir para
mim mesmo que não fora o culpado. Depois, no silêncio que se seguiu ao
barulho do carro rolando ladeira abaixo, quando afinal me acalmei um pouco,
tratei de tirar o cinto de segurança, descer e ir até a beira do abismo para ver
como ele ficara. Estava parado lá embaixo, a uns cem metros, em meio a uma
nuvem de poeira. Nos poucos segundos que antecederam o desastre pude ver
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que, além do motorista, havia nele um passageiro. Teria alguém sobrevivido


à queda? Só havia um meio de saber: descendo até lá.
Decorridos alguns minutos depois do acidente poucos carros tinham
passado na estrada de raro movimento àquela hora, e nenhum dos seus moto-
ristas se dera conta do ocorrido. Eu podia ter parado um deles e clamado por
socorro. Mas não o fiz – pois alguma coisa, talvez minha intuição de golpista
- me dizia que antes devia eu mesmo ir lá embaixo para ver se havia algum
sobrevivente do desastre, e se era possível lhe prestar algum tipo de ajuda.
E foi o que fiz. Depois de estacionar melhor meu automóvel para não
despertar suspeitas, tratei de descer pela ribanceira até o carro, perto do qual
constatei: seus passageiros, um homem e uma mulher, estavam mortos. Ti-
nham mais de quarenta anos. Eram casados, como pude ver nos documentos
que achei em suas respectivas bolsas. WALDEMAR e GABRIELA FON-
SECA DO NASCIMENTO: eram assim que se chamavam. Tinham muitas
posses. Na bolsa do homem - uma pasta de executivo - isso podia ser facil-
mente constatado pelos muitos cartões de crédito, pela meia dúzia de extratos
bancários, pelas ordens de compra e venda de ações e gado, e também pela
escritura que documentava a venda recente de uma fazenda de altíssimo valor
no pantanal de Mato Grosso.
Em menos de dez minutos, enquanto estive a cascavilhar nas duas bol-
sas, com minha experiência de estelionatário pude traçar um alentado perfil
do casal, até concluir que se tivessem cruzado comigo ainda em vida poderi-
am se tornar de longe minhas vítimas de situação mais abastada. Havia tam-
bém muito dinheiro com eles, inclusive em moeda estrangeira. Mas eu, como
não sou ladrão, embora tenha contado quanto não roubei nada. Apenas me
detive um pouco mais nas fotos de uma moça que a mulher trazia em sua car-
teira; loura e linda, ela escrevera numa delas uma dedicatória que dizia: “à
minha mãe, com as saudades e o beijo da Maria Paula”. Era aquela com
quem, menos de dois meses depois, eu estaria casado.
Mas naquele instante não me passava pela cabeça que eu chegaria a es-
se ponto. Afinal de contas não tivera culpa do acidente (apenas estava lá
quando ele acontecera), não planejara nada, e muito menos podia imaginar
que a filha daquele casal mal me conhecesse se envolveria comigo. Além dis-
so, a brutalidade da morte dos dois, a mim que era jovem e nunca vira antes
alguém perder a vida, sem nenhuma dúvida me abalara. Tanto que, desolado
por não poder fazer mais nada por eles, apenas me ajoelhei perto do carro e,
com as mãos cobrindo o rosto, tratei de murmurar uma prece, na tentativa de
ajudá-los a fazer em paz a passagem.
E foi assim que os guardas da Polícia Rodoviária me encontraram: ajo-
elhado ao lado do carro acidentado, na mais completa desolação, a orar pelos
dois mortos com os olhos cheios de lágrimas. Trazidos pelo motorista do ca-
minhão, que cruzou com eles poucos quilômetros adiante e lhes relatou o aci-
dente, eles foram testemunhas da minha extrema comoção, assim como o
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motorista atestaria que eu não tivera culpa de nada. E cada um deles, no devi-
do tempo, sustentou estas versões que só serviram para me enaltecer diante
dos moradores da pequena cidade de Passaredo, onde vivia o casal de cuja
família agora restava apenas a filha Maria Paula.

MARIA PAULA:

Depois que Adalberto Rangel, como ele disse que se chamava, sumiu
da minha vida levando tudo que meus pais tinham me deixado, durante dois
meses me recusei a sair de casa ou ver quem quer que fosse, tão envergonha-
da fiquei por causa do que me acontecera. E não houve um só dia naquele
período de absoluta solidão e muita dor e pena em que não me sentisse cul-
pada. Sim, por que a humilhação pela qual passei, e que me deixou tão pros-
trada, não me tirou o tino a ponto de achar que fora apenas vítima. Eu confia-
ra cegamente naquele homem a quem na verdade não conhecia; a tal ponto
que lhe entregara tudo o que tinha, incluindo no pacote até mesmo a minha
vida. E se, depois de se apossar de tudo, ele fora embora sem deixar o menor
rastro me deixando na mais absoluta penúria, então cometera um crime - mas
a culpa fora minha.
Sim, eu confiei em Adalberto Rangel. Mas só fiz isso porque o amava.
Eu o amei desde o primeiro instante em que o vi e ele me contou como en-
contrara meus pais agonizantes logo após presenciar o desastre de automóvel,
e quais tinham sido as últimas palavras da minha mãe antes de morrer prati-
camente em seus braços: “por favor, procure minha filha e cuide dela”.
Foi por isso que ele saíra do seu caminho e viera até Passaredo, segun-
do me disse no dia em que me pediu em casamento: para cuidar de mim co-
mo a minha mãe lhe pedira. Então eu tinha apenas dezoito anos, era uma me-
nina que sempre fora mimada pelos pais a vida inteira e, agora órfã, sem ne-
nhum parente próximo ou distante, precisava confiar em alguém; e o escolhi-
do para isso foi ele.
Desde que chegou à cidade com os policiais rodoviários e me deu a no-
tícia nunca mais ele se afastou de mim – a não ser quando foi embora. Ficou
do meu lado, junto com vizinhos e amigos, enquanto eu purgava a dor terrível
de ter perdido minha família inteira. E no enterro, quando o sofrimento se
tornou forte demais e eu desmaiei, foi ele quem me amparou em seus braços.
Desde aqueles primeiros dias Adalberto Rangel tratou de se tornar essencial à
minha vida, de tal forma que, decorrida uma semana da morte dos meus pais,
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e antes de descobrir que o amava, eu já o considerava o maior de todos os


meus amigos.
Agora sei o quanto fui ingênua. Aqui em São Paulo, onde estou a tra-
balhar e a tentar vencer na vida com meu próprio esforço – pois, do que meus
pais deixaram ao morrer, depois que ele foi embora não me restou mais nada
-, é sempre nisso que penso cada vez que me concedo uma pausa: meu Deus,
como eu fui tola. E não por falta de aviso. Muita gente lá em Passaredo ten-
tou me alertar sobre a bobagem que eu estava fazendo: “ninguém sabe de on-
de saiu este homem”, me diziam, “tente se informar melhor sobre ele antes de
se envolver deste modo”.
Mas não adiantou nada. Dois meses depois da morte dos meus pais eu
já estava casada com ele. E em regime de comunhão de bens - não porque
Adalberto me obrigara a isso, mas porque eu assim o quisera. E, durante os
dez meses em que vivi com meu marido e me julguei a mais feliz das mulhe-
res, não deixei de assinar, sem sequer ler o que continham qualquer um dos
papéis que ele me apresentara.
Foram esses papéis – procurações, como me disseram depois os advo-
gados -, assinados por mim de livre e espontânea vontade -, que ele usou para
movimentar contas bancárias, vender terras, imóveis, gado e ações, e para
transferir todo o dinheiro depois se sabe lá para onde. Até a casa onde nós
morávamos ele conseguiu vender sem que me desse conta. E assim, quando
foi embora, eu não possuía mais nada, além de um monte de dívidas, os mó-
veis e minhas roupas.
Sim, durante dois meses não saí de casa nem falei com ninguém, por
conta da vergonha. Mas quando afinal me dispus a conversar com os advoga-
dos que me procuravam se oferecendo para tomar alguma providência, des-
cobri que meu calvário não havia terminado. Após muito pesquisar, eles des-
cobriram que não havia em nenhum lugar desse país enorme um homem
chamado Adalberto Rangel - pelo menos que fosse o titular dos documentos
apresentados por ele ao casar comigo. Além disso, os números desses docu-
mentos indicavam que eram todos falsos. Assim, do ponto-de-vista legal,
nem ao menos estivera casada com ele.
Eu fora vítima de um golpe praticado por um homem que sequer exis-
tia. Adalberto Rangel fora apenas uma ilusão, uma ventania que soprara com
força sobre a minha vida e, quando fora soprar em outra freguesia, levara to-
das as minhas posses. Não havia nada de concreto que pudesse fazer a polícia
identificá-lo algum dia. Nem mesmo impressões digitais ele deixara.

Pelo menos foi isso que os advogados me dissseram. E eu acreditei ne-


les, até que se passaram dois meses desde o sumiço do suposto Adalberto
Rangel e eu percebi que há algum tempo minhas regras não vinham. E então
me lembrei: uma das coisas que ele costumava dizer era que, pelo menos du-
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rante uns dois anos, não queria ter filhos, pois pretendia se sentir livre para
aproveitar a vida ao meu lado. Por isso me pedia para tomar as precauções
necessárias.
O problema era que eu pensava justamente o contrário: órfã de forma
tão prematura, depois de casada não via a hora de constituir minha própria
família. Sim, eu não podia esperar dois anos para ter um filho, achava que
este só serviria para tornar ainda maior a felicidade que em que vivíamos.
Assim, pouco antes de Adalberto me dar o golpe e sumir no mundo deixei de
lado as precauções e, como descobri depois, engravidei dele. Portanto, o fan-
tasma que me roubara tudo e depois se desvanecera no ar sem saber deixara
comigo uma parte de si, graças à qual seria possível identificá-lo.

Mas antes disso eu teria que localizá-lo, e talvez nunca chegasse a esse
ponto. Mesmo que tivesse dinheiro para pagar aos detetives que o procurari-
am para mim, que pistas eu lhes daria para que fizessem isso? Tudo o que
tinha era um nome e uma biografia que se mostraram falsos, pois até as fotos
tiradas no dia do nosso casamento ele carregara consigo junto com os negati-
vos. Na cidade mineira onde ele disse que nascera, segundo os advogados
que durante algum tempo trabalharam para mim de graça não havia nenhum
registro a respeito, e também ninguém o conhecia. Numa fazenda uma mu-
lher chegou a se demorar mais examinando as fotos, pois achou que ele era
parecido com um vigarista que há algum tempo atrás dera um golpe no seu
genro. Mas este homem, que talvez pudesse identificá-lo, morrera há pouco
após sofrer um derrame.
Assim, prestes a ter um filho, eu decidi que não daria à luz em Passa-
redo. Disposta a deixar para trás a garota ingênua e mimada que fora engana-
da por um vigarista, vendi tudo o que me restara – os móveis e alguns objetos
–, entreguei a casa na qual nascera aos seus novos donos e, grata às pessoas
que pagaram por tudo muito mais do que valia, me mudei para São Paulo.
JÚLIA DE SOUSA, uma moça de minha idade, filha de uma ex-empregada
de minha casa e praticamente minha irmã, já que fôramos criadas na mesma
casa e estudáramos na mesma escola, contra tudo e contra todos resolveu ir
comigo. Em poucos dias eu estava instalada numa casa modesta, num bairro
da periferia paulista. Júlia logo arranjou emprego de diarista e, juntando o que
ela ganhava com o que eu ainda tinha, pudemos atravessar os próximos cinco
meses, até que nasceu o meu filho RENATO.
Logo que pude tratei de arranjar emprego. Foi difícil, por causa da mi-
nha total falta de experiência. Mas quando consegui um que me pareceu dig-
no (num supermercado, primeiro de caixa e depois como promotora de ven-
das) tratei de trabalhar com afinco, pois o que eu mais queria então era criar
do modo melhor possível o meu filho.
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Foi só em Renato que pensei nesses dez anos. De tanto trabalhar não
tive tempo para namoros nem aventuras. E também não os quis, porque - em-
bora me envergonhe de dizer isso – não esquecera que, antes de ser enganada,
eu fora feliz com o meu suposto marido. Não sou adepta do provérbio segun-
do o qual as mulheres gostam de apanhar, mas o fato é que de vez em quando
sonhava que estava dormindo em seus braços, e quando acordava tratava de
me convencer, mas sem muita ênfase, que aquilo não passara de um pesade-
lo.
Ao contrário de mim Júlia, que não carregava nenhum peso trazido do
seu passado, pôde se dedicar, enquanto também progredia no trabalho e nos
estudos, à vida romântica. Logo conheceu um rapaz, técnico em informática
de ascendência italiana, chamado ÍTALO NEGROPONTE, com quem casou
e hoje tem dois filhos: MANOELA, de oito anos, e LEONE, de sete. Ítalo
trabaha na filial carioca de uma empresa paulista de informática, fica lá du-
rante os dias úteis e só vem para casa nos fins-de-semana. Assim Júlia pode
ficar quase sempre comigo. Os dois filhos dela são grandes amigos de Rena-
to, que agora tem dez anos, pois já faz todo esse tempo desde que fui roubada
pelo pai dele, sobre o qual nunca lhe contei a verdade – disse apenas que ele
precisou ir embora e são poucas as chances de que volte algum dia.
“E se ele voltar?” – Renato me perguntava de vez em quando. Eu des-
conversava a respeito disso, mas então pensava que se ele voltasse só teria
uma pergunta a lhe fazer: por que, tendo eu lhe dado toda a minha vida, ele
tivera que fazer aquilo? E então, qualquer que fosse a sua resposta, em nome
do meu filho eu lhe cobraria tudo o que perdi com multas e juros e o denun-
ciaria à polícia.

Mas na verdade, preocupada em viver minha nova vida, há muito dei-


xei de pensar no inexistente Adalberto Rangel, pelo menos até o dia em que,
ao abrir uma revista de celebridades no consultório de um dentista onde tinha
levado Renato, pousei os olhos sobre a foto da inauguração de uma Faculda-
de no Rio de Janeiro, mais precisamente na Barra da Tjuca, na qual apareci-
am, entre outras pessoas, um empresário chamado Marconi Ferraço ao lado
de sua noiva , de nome Sílvia. Alguma coisa me chamou a atenção naquela
foto. Primeiro não soube o que era, mas depois percebi que era o modo quase
esquivo como aquele homem se colocava diante da câmera; era como se ele
não se sentisse à vontade diante dela, ou se relutasse em ser fotografado. Já
tinha ouvido falar de muitas pessoas que se sentiam pouco à vontade diante
de uma câmera, mas este não parecia ser o caso daquele homem – o que ele
estava era quase se escondendo.
Durante o resto do dia, sem que atinasse com o motivo disso, o jeito
esquivo daquele homem na foto não me saiu da cabeça, e assim eu fui dormir
pensando nele. Mas, quando acordei, preocupada de novo com o meu dia a
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dia de muitas tarefas, acabei deixando o assunto de lado. Dois dias depois, no
entanto, ele estava de volta: durante um programa de variedades num canal
da televisão a cabo, apareceu a festa de inauguração da tal Faculdade e, ao
lado da noiva Sílvia (que era filha da proprietária do estabelecimento de ensi-
no), lá estava Marconi Ferraço de novo.
Mesmo sem saber o que me levou a fazer isso, eu me apressei em co-
locar uma fita no videocassete, gravando assim o resto da aparição do tal
Marconi Ferraço e sua noiva. Depois que o programa terminou, voltei a fita e
a revi várias vezes. O que tanto me chamara a atenção naquele homem? Não
consegui descobrir. Ciosa dos meus horários – teria que acordar às cinco ho-
ras da manhã no dia seguinte e tomar dois ônibus para levar Renato na escola
e depois ir trabalhar no supermercado - tratei de esquecer o assunto de novo e
fui dormir.
Mas no meio da noite, depois de um sono agitado e entrecortado por
pesadelos, acordei banhada em suor e ali, no escuro do meu quarto, sempre
com a figura esquiva de Marconi Ferraço diante dos meus olhos, começei a
pensar numa possibilidade absurda, mas que explicava à perfeição porque
aquele homem me impressionara tanto: seria possível? Tratei de levantar, li-
gar de novo a televisão e rever a fita mais algumas vezes, até que me certifi-
quei: de algum modo, por trás do rosto de Marconi Ferraço que nunca vira
antes eu reconhecera um outro rosto - o de Adalberto Rangel, pai de meu fi-
lho e meu falso ex-marido.

NOSSO HOMEM EM HONDURAS

En el libro de Grahan Greene nuestro hombre es de Havana. Yo


nasci en Honduras. Si, soy el médico. E embora hispânico de nascimento,
cometerei a licença poética de me expressar aqui no mais castiço português, a
fim de esclarecer melhor mais alguns passos dessa história.
Sou um famoso cirurgião plástico que se dedicou, durante grande parte
da vida a forjar e/ou moldar rostos. Nem sempre os que meus pacientes que-
riam, mas aqueles que eu podia... E a verdade é que, na minha especialização,
eu podia tudo. Quase sempre alcancei sucesso em minhas cirurgias. Em Los
Angeles devolvi a atrizes de sessenta anos os rostos que elas ostentavam aos
trinta. Em certas repúblicas do Caribe corrigi os defeitos mais ostensivos de
políticos, porém só os da face, porque os da alma eles sempre faziam questão
de manter intactos.
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Por força da minha experiência, acabei sabendo tudo sobre a estrutura


do rosto humano e assim, nas operações que fiz, nunca banquei o demônio e
me perdi em detalhes.
Ganhei muito dinheiro. Minha fortuna cresceu proporcionalmente à
minha crescente falta de escrúpulos. Se houvesse um organismo internacional
na América Latina destinado a castigar médicos que desonrassem a profissão,
na lista de punidos eu deveria ser o primeiro. Sim, nem sempre honrei o cha-
mado Juramento de Hipócrates. Fiz coisas reprováveis, sem dúvida, mas, a
não ser em raríssimas exceções, um argumento final sempre me absolveu: a
ostensiva satisfação dos meus clientes. Foi assim até o dia em que concluí
que minha mão talvez já não fosse a mesma e eu deveria optar pela aposenta-
doria profissional e o usufruto da minha renda.
Assim, estava eu em Havana/desculpem, Honduras, minha cidade natal
a gozar do chamado dolce far niente, quando recebi de um candidato a clien-
te um telefonema inesperado. Seu nome era Marconi Ferraço, e seu chamado
viera de muito longe: do Brasil, país que eu visitara poucas vezes, mas do
qual, ao longo da minha vida profissional, sempre tivera clientes muito ilus-
tres. Mal o atendi, depois de se identificar e dizer que lera recentemente um
polêmico artigo sobre meu trabalho na revista Lancet, sem maiores rodeios
ele me fez um desafio: se eu conseguisse modificar seu rosto a ponto de tor-
ná-lo irreconhecível até mesmo dos seus mais íntimos ele me pagaria “tudo”.
Eu lhe perguntei o que significava esse “tudo”, e ele me respondeu: “o que o
senhor estipular de honorários eu cubro”.
Antes que eu pudesse responder el señor Ferraço desligou o telefone,
não sem antes me dizer que dali a um mês me ligaria de novo para saber mi-
nha resposta. Como não pude lhe dizer “não” de imediato, fiquei durante este
mês pensando na possibilidade, tal como ele queria. E quando ele me ligou
pontualmente dali a trinta dias, o que eu lhe respondi foi que sim - embora
estivesse retirado faria este último trabalho, se ele estivesse mesmo disposto a
pagar o que eu lhe cobraria.
Claro, eu lhe cobraria muito. Tanto que – era essa a minha última espe-
rança – ele desistiria de mim e procuraria outro médico. Mas não foi isso que
aconteceu quando lhe disse o “quantum”. Sem vacilar Marconi Ferraço me
disse que aceitava e combinou comigo todos os detalhes, já que, mesmo sem
saber qual seria a minha resposta, ele tinha se antecipado. Havia uma clínica
no interior de São Paulo que nos alugaria o seu centro cirúrgico e entraria
com o pessoal de apoio. Seriam várias operações, e muito dolorosas como eu
o alertei; mas ao final de um longo procedimento sem dúvida ele teria um
novo rosto, e até uma voz diferente, pois as cirurgias acabariam por alterar
até mesmo a estrutura de sua boca. Ao ouvir isso ele apenas me respondeu
que isso seria “perfeito”.
Um dia depois eu recebi na minha conta bancária o gordo depósito que
ele fez, através de um banco em Miami, destinado ao meu pagamento inicial
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e as despesas de viagem. E dessa forma não me restou outra alternativa senão


suspender provisoriamente a minha aposentadoria e ir para o Brasil moldar
um novo rosto. E com uma vontade que o dinheiro de Marconi Ferraço só
aumentou: eu estava disposto a realizar minha última obra prima.

BÁRBARA CARREIRA

Eu não tinha notícias de Xis (sim, Xis, pois sempre o conheci pelo
nome verdadeiro, mas nem sob tortura eu o pronunciaria agora) há qua-
se um ano quando recebi um seu telefonema no qual, depois de me dar ins-
truções sobre a viagem e o endereço do local em que se achava sem dar mai-
ores explicações ele ordenou: “venha”.
E eu não pensei duas vezes já que a alternativa àquela aventura no fim
da qual encontraria o meu “Garoto Pidão” seria continuar à frente da casa de
massagens no Recife que eu então gerenciava. Segui suas instruções: viajei
para o interior de São Paulo e no aeroporto da próspera cidadezinha, depois
de pedir a um motorista de táxi que me levasse ao endereço que ele dera tive
uma surpresa, pois se tratava de uma clínica particular e muito luxuosa.
Lá dentro, internado numa suíte digna de milionários, sob a supervisão
de um médico de sotaque cucaracha, ele já estava sendo preparado para al-
gum tipo de procedimento cirúrgico. Mas, à minha chegada, pediu um tempo
aos que voejavam em torno dele e, uma vez sozinho comigo, me explicou
tudo. Não me disse de onde sairia o dinheiro para pagar toda aquela parafer-
nália, mas deixou bem claro que iria se submeter a uma série de cirurgias ra-
dicais no fim das quais ganharia um novo rosto.
Por quê? Isso ele me disse: dera há pouco o maior golpe de sua vida, e
ganhara dinheiro suficiente para não precisar mais exercer sua profissão de
estelionatário. Claro, embora o dinheiro fosse muito, não seria suficiente se
decidisse viver apenas dos juros. Seria preciso investi-lo em algo produtivo, e
por isso ele estava disposto a se transformar num empresário. Já escolhera o
ramo ao qual se dedicaria: a construção civil, na qual poderia investir com
boa parte do dinheiro dos clientes, sem sacrificar todo o seu capital de imedi-
ato. Também já escolhera a cidade na qual se instalaria - aquela que sempre
fizera parte dos seus sonhos de menino (embora então lhe parecesse inacessí-
vel): o Rio de Janeiro.
Mas antes de chegar lá ele teria que ficar um tempo ali na clínica, so-
freria dores atrozes por conta dos procedimentos radicais que mudariam seu
rosto, e por isso precisava de alguém que lhe desse apoio. Estaria eu disposta
23

a fazê-lo? – Ele me perguntou, mas só porque já tinha certeza da minha res-


posta. E eu a dei como ele esperava, e deixei claro que antes de lhe dizer
“sim” não precisara nem pensar duas vezes.
Aquilo tudo custaria uma fortuna. Mas dinheiro para tanto havia; e ele
permitiu que eu soubesse disso quando murmurou no meu ouvido o número
de certa conta no exterior e o modo como, através de um doleiro, eu poderia
movimentá-la caso lhe acontecesse alguma coisa. Da parte dele ainda havia
muito a explicar, mas eu sabia que esta não era a hora mais apropriada. Além
disso, caso Xis (ou Marconi Ferraço, como ele me disse que agora se chama-
va) não me desse nenhuma explicação (foi o que aconteceu depois de tudo
terminado), não seria eu quem a pediria.
Foi - como o médico cucaracha lhe disse e ele acreditou - um proce-
dimento longo e penoso. Algumas vezes a dor era tanta que o fez entrar em
desespero. Nessas ocasiões eu fiz das tripas coração e tratei de ajudá-lo. Eu,
que até então fora uma mulher capaz apenas de atitudes triviais ou muito mo-
destas, tive que tomar decisões difíceis e complicadas visando o bem estar de
Marconi, e a verdade é que, apesar das minhas limitações de pessoa simpló-
ria, não fiz feio.
Graças ao meu empenho, e ao enorme talento do cirurgião cucaracha -
sobre o qual fiquei sabendo que era famoso e muito respeitado em certos cír-
culos, mas suspeito em outros no estrangeiro - no final tudo deu certo. Ainda
me lembro da última conversa que os dois tiveram antes de Marconi ser leva-
do para o centro cirúrgico onde seria feita a primeira operação plástica. Mar-
coni perguntou ao cucaracha se ia mesmo ficar diferente, e este lhe respon-
deu sem maiores preâmbulos: “não, vai ficar muito mais que isso, você vai
se transformar em outro”.
Algum tempo e muitas operações depois, quando as últimas bandagens
foram retiradas, Marconi Ferraço pode constatar num espelho o quanto o ci-
rurgião plástico estava certo: sim, ele se transformara em outro, pois, além
daquele ar às vezes meio esquivo nos seus olhos, não havia nele mais nada
que lembrasse seu antigo rosto. Depois que ficamos a sós, enquanto arrumava
seus objetos pessoais para deixar a clínica, ele me confessou eufórico: aquilo
fora tudo o que sempre desejara nos seus momentos de devaneio - outro no-
me, outro rosto, e uma nova vida, na qual tivesse dinheiro suficiente para não
precisar mais dar golpes nem se arriscar o tempo inteiro. Era essa nova vida
que ele ia começar agora – me disse - limpo de qualquer vestígio do seu pas-
sado, como se naquele momento mesmo estivesse nascendo.
“É claro que nesta sua nova vida não haveria lugar para alguém como
eu, que viera dos momentos menos edificantes de sua antiga história” - eu
pensei já me preparando para receber uma boa gorjeta, ouvir um agradeci-
mento apenas formal, e depois vê-lo dar-me as costas e ir embora. Mas não
foi isso que aconteceu. Pois aquele novo homem decidiu manter perto de si
pelo menos alguma testemunha de sua vida antiga, e me escolheu para isso.
24

Fizemos um acordo. A partir dali eu estaria sempre ao seu lado, na


qualidade não de amante eventual, pois não tínhamos mais esse tipo de rela-
ção há anos, mas de fiel escudeira. Mas quando saímos do hospital não se-
guimos juntos. Ele foi embora sem me dizer para onde ia, e eu voltei para o
meu trabalho de gerente na casa de massagens lá no Recife, tentando acredi-
tar na última frase que ele dissera antes de me dar as costas e ir embora:
“aguarde minhas notícias”.
Durante meses eu esperei que estas notícias viessem. E embora isso
não tenha acontecido por alguma razão eu não perdi a fé em Xis ou Marconi
Ferraço: em breve haveria novidades, e ele me comunicaria.. Foi isso que ele
fez, mas - como me disse depois - só “no devido tempo”. Um belo dia um
telegrama a mim endereçado chegou à casa de massagens. Nele havia apenas
um endereço no Rio de Janeiro, e o número do bilhete que eu devia retirar
numa empresa aérea antes da viagem, já com data e hora marcada.
Quando desci no aeroporto ele não estava me esperando, como eu pen-
sava. Mas não fiquei triste por causa disso. Tratei de tomar um táxi e, ao che-
gar ao endereço indicado no telegrama constatei, decepcionada, que ali era
um escritório, e não sua casa. À porta, uma placa indicava o quanto ele pro-
gredira durante o tempo em que não me dera notícias: “Marconi Ferraço Em-
preendimentos Imobiliários” era esse o nome da empresa que ele fundara,
botara para funcionar a pleno vapor em poucos meses e agora comandava.
Depois que me identifiquei uma senhora (de cuja cara não gostei, e a
quem acabei demitindo tempos depois porque Marconi me deu poderes para
tanto) se apresentou como sua secretária e me levou até a porta de sua sala.
Eu entrei lá, alegre por me encontrar com Xis de novo, mas não foi ele quem
avistei, e sim o Outro. Ele cumprira sua promessa e me chamara. Mas naque-
le instante mesmo ficou claro porque demorara tanto para fazê-lo – é que an-
tes precisara criar sua nova personalidade e só então apresentá-la a mim – a
única pessoa que o conhecia de antes – já pronta e acabada.
Talvez eu esteja me dando importância demais ao achar que Marconi
pensou nesse tipo de coisas. Mas o fato é que, depois que o destino lhe con-
cedeu essa possibilidade de trocar de nome, de rosto, de vida, antes de fazê-lo
ele pensou em tudo. Agora não era mais o garoto falastrão e curioso que se-
guiu Hermógenes durante anos e aprendeu a dar golpe após golpe – era um
homem discreto, quase esquivo, dono de um olhar gelado, de gestos mínimos
e precisos, e com uma personalidade sobre a qual o menos que se diria é que
ela era “forte”.
Tanto que não precisou de mais do que meia dúzia de frases para, aos
meus olhos, deixar claro o quanto estava distante de mim agora. Há muito
não éramos amantes, mas ficáramos amigos. Mas a partir de agora seríamos
patrão e empregada. Foi essa a função que assumi naquele dia mesmo, depois
25

que um motorista me levou até a mansão onde agora era a sua casa: eu era
aquela que devia prover todas as necessidades de sua vida, inclusive as mu-
lheres que ele - discreto e solitário como era - pessoalmente nunca procurava.
Nosso arranjo deu certo, mas apenas porque tratei de cumpri-lo com
todo o meu empenho. Desde que essa nova fase de nossas vidas começou
nunca mais tivemos um instante sequer de intimidade. Ele era o patrão, e eu a
fiel empregada, e por isso só falávamos de assuntos que fossem do interesse
dele. Eu sabia de sua vida inteira, e poderia destruí-lo se o quisesse, mas
Marconi Ferraço nunca se preocupou com isso, pois tinha certeza de que, se o
destino resolvesse escrever na areia uma lista dos seus possíveis traidores, o
meu nome não estaria nela.
Eu era digna de sua total confiança. E para mostrar o quanto era grato
por isso ele sempre me recompensava muito bem. Nesses nove anos de arran-
jo não foi apenas meu patrão que evoluiu. Se ele ficou milionário, eu posso
dizer que, comparando com o modo precário como vivia anteriormente, hoje
sou rica. Mesmo totalmente dedicada a Marconi tenho, é claro, uma vida pes-
soal, sobre a qual ele não sabe nada. Não que eu minta para ele a respeito –
apenas não vejo necessidade de lhe contar minhas histórias.
Mandei buscar no interior de Pernambuco meus dois filhos, agora
adultos, e os mantenho perto de mim, num condomínio na Estrada Velha de
Jacarepaguá onde montei minha casa. O mais velho, HERALDO, tem vinte e
três anos e estuda Direito, e a mais nova, FERNANDA, aos vinte anos é mi-
nha fonte principal de preocupações, pois namora um tal de DUDA, um rapaz
de classe média, sobrinho e meio filho adotivo de Evita Duarte, mulher do
sócio de Marconi, o qual vive de mesada, dedica-se eventualmente a ativida-
des francamente irregulares como revender comprimidos de ecstasy, e até
agora não decidiu o que vai querer da vida.
Se eu tenho algum interesse romântico? Depois de tudo que vivi, posso
dizer que isso já não é tão importante para mim a essa altura da vida. Mesmo
assim tenho minhas aventuras. Mas elas sempre acabam no instante em que
preciso escolher entre minha dedicação a Marconi ou um possível amante, e
então sempre fico com o primeiro.

Quanto a Marconi Ferraço, a cada dia que passa ele fica mais distante
de Xis, o garoto donzelo que um dia Hermógenes colocou diante de mim lá
no bordel e, após me pagar, mandou que lhe ensinasse “uma boa meia dúzia
de coisas sobre a vida”.
Hoje ele sabe mais do que eu. Mas sua sabedoria não lhe será suficien-
te quando o seu passado, que ele considera morto e enterrado, voltar um dia e
lhe cobrar todas as contas que lhe são devidas. E então a nova lição que ele
aprenderá é que nenhum homem pode se dar ao luxo de renegar tudo o que já
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foi, renascer como se saísse de novo do útero da mãe e viver impunemente


uma nova vida.
E eu mesma, que agora sou dona Bárbara Carreira, uma mulher respei-
tável, também me darei conta disso quando surgir do meu passado a figura de
uma caftina para a qual trabalhei chamada ZENILDA.
Mas até tudo isso acontecer continuarei cuidando do meu patrão com
toda a dedicação possível ajudando-o a enfrentar situações difíceis como a de
Débora, essa menina a quem vou ter que convencer que desista de ter um fi-
lho dele; ou aquelas provocadas por Juvenal Antena, líder da Comunidade da
Mangueirinha, com a qual Marconi Ferraço, dono do terreno em torno do
qual a favela cresceu acintosamente, vem mantendo durante todos estes anos
uma acirrada disputa de fronteiras.

JUVENAL ANTENA (1)

Não tem um dia em que eu abra o jornal e não leia alguma novidade
ruim a meu respeito. Mesmo quando não aparece lá o meu nome, é ele o que
vejo nas entrelinhas das notícias sobre alguma coisa irregular que aconteceu
nessa ou naquela comunidade: a culpa é sempre de alguém como Juvenal An-
tena. Meu nome é Juvenal Ferreira dos Santos, tenho 48 anos bem vividos, e
nasci aqui perto, quando essa região era apenas uma roça. Minha mãe era
uma senhora um tanto rude, mas amantíssima. Meu pai eu nunca soube direi-
to quem era. Quanto ao apelido, ele me foi dado nos primeiros anos de minha
vida adulta, quando brotaram por aí, feito espinhas na cara de um garoto, as
primeiras parabólicas.
Por que “Antena”? Por que estou sempre ligado. Nada se passa num
raio de alguns quilômetros ao meu redor sem que eu saiba. Por mais que as
pessoas tentem guardar segredo quando dão passos em falso ou mijam fora
do penico, não perdem por esperar, pois eu serei sempre informado. Foi as-
sim que ganhei o respeito dessa gente toda e me tornei uma espécie de padre,
prefeito, juiz, conselheiro e delegado. Assim como o tal de Marconi Ferraço
fez no resto do bairro, eu plantei nesta Favela da Mangueirinha, às vezes com
mão de ferro, mas sempre procurando ser justo, as raízes do meu império.
Sim, porque eu posso dizer sem medo de errar - nessa comunidade eu sou o
rei; e as pessoas que constantemente me pedem favores são meus súditos.
E é assim que os trato - como um monarca que, por ser tão poderoso,
pode se dar ao luxo de ser bom e justo. Providencio para que tenham uma
cesta básica de confortos urbanos, e em troca eles precisam pagar apenas uma
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cômoda taxa mensal por tudo isso. São meus homens que fazem os gatos
destinados a levar luz elétrica, água, televisão a cabo e até internet banda lar-
ga às suas casas. São de sócios de minha confiança as Vans que os transpor-
tam para seus empregos a tempo e a hora, evitando que cheguem atrasados.
Meus caminhões é que trazem, no dia e na hora previstos, os botijões de gás
com os quais cozinham a comida que alimenta seus filhos. Assim como são
meus os homens que providenciam para que não haja nenhum tipo de irregu-
laridade dentro dos limites da favela onde eles moram, incluindo assalto e
tráfico de drogas.
Pois só existe uma coisa que eu deteste mais do que ladrões e trafican-
tes: são aqueles que praticam violências contra crianças. Apanhei muito
quando era menino, mas minha mãe sempre teve uma justificativa para tais
castigos: eu era “muito levado”. Nunca reclamei por causa disso, sempre a
tratei como minha mãe querida até sua morte, mas a verdade é que o peso de
sua mão às vezes ainda me dói no lombo e, portanto, aquela pancadaria toda
me rendeu sérios agravos. Por isso não posso ver uma criança em situação
periclitante, e já me sinto na obrigação de ajudá-la. Sei que, numa comunida-
de pobre como essa, os traficantes são seus maiores inimigos. Mal se insta-
lam, tratam de atrair essas crianças com seu enganoso canto de sereia e, em
troca de promessas vãs (que nunca se cumprem porque a morte lhes chega
antes), em pouco tempo formam um verdadeiro exército de meninos.
Mas não na minha comunidade. Aqui, como já disse, sou o que cha-
mam de justiceiro, o que significa que faço justiça - ou seja, trato de punir,
em geral com a expulsão, mas até com a morte, os que tentam corromper a
inocência das crianças e infernizar o dia-a-dia dos adultos.
Meu povo sabe o quanto me preocupo com seus filhos, e me respeita
ainda mais por causa disso. Sou o “seu Juvenal”, a quem eles recorrem a pro-
pósito de tudo, e nunca saem da Associação Comunitária, na qual dou expe-
diente todos os dias, sem ouvir da minha parte pelo menos um conselho ami-
go. Às vezes eles exageram como é o caso da mulher que veio me pedir para
dar um jeito de conter o ímpeto sexual do seu marido.
“Não aguento mais, seu Juvenal, ele quer sexo todo dia, chego do tra-
balho morta de cansada e o homem já parte pra cima de mim com tudo, às
vezes duas, três vezes por noite... Isso está me matando!” Depois que ela foi
embora mandei chamar o indigitado, um nordestino mais troncudo que uma
jaqueira, e lhe dei o conselho: “se quer extravazar, vai às termas”. Ele fez o
que eu disse, é claro; e com isso a Uisqueria Highlands (da qual, como no
resto do comércio da favela, eu sou sócio minoritário), em cujo prédio funci-
ona as termas em questão, ganhou mais um cliente assíduo...
O engraçado é que, embora tenha esse profundo amor pelas crianças
dos outros, até pouco tempo eu mesmo não tinha filhos. Fui casado certa vez,
mas não deu certo. E a mulher, disposta a fugir de mim sem deixar rastro, se
mandou para São Paulo. Foi de lá que recebi, vinte anos depois, a notícia em
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forma de gente: ESMERALDA a tal mulher, uma negra de quatrocentos ta-


lheres, estava grávida de mim quando fugiu, e lá tivera uma filha, a quem ba-
tizou de SOLANGE: uma mocinha cheia de não-me-toques, a qual veio me
procurar depois de sua morte, e agora, ao ver o pai em ação na comunidade,
não consegue entender a função que exerço e se horroriza a cada instante.
Isso significa que Solange, por mais que eu tenha ficado feliz por rece-
bê-la, me trouxe junto consigo um sério problema: ela rejeita o mundo em
que vivo e o modo pelo qual me coloco dentro dele. Negra como a mãe, é
uma garota sensível e fina e, como já me disse, “nunca pensou que um dia ia
acabar morando numa favela”. Pois não poderia ser de outro modo: para que
meu povo tenha certeza que sou um deles, e não um estrangeiro invasor como
esse tal de Marconi Ferraço, minha casa fica dentro dos limites da comunida-
de, e agora, para horror de Solange e sua sensibilidade exacerbada, é lá que
ela mora.
Tão estranha minha filha se sente vivendo comigo que por duas vezes
já tentou fugir de casa. Mas eu tratei de mandar atrás dela os meus homens (o
meu exército, como diz o jornal de vez em quando ou, pior ainda, a minha
milícia) e eles a trouxeram de volta. Tudo isso só serviu para nos afastar mais
ainda. Porém, querendo ou não, e tentando ou não conhecer pessoas de classe
média da área em torno, cujas casas agora ela frequenta como se fossem fili-
ais do paraíso, minha filha vai continuar morando comigo. E eu tenho fé que
um dia, como os filhos dos outros fazem no dia de Cosme e Damião, quando
distribuo doces e presentes entre eles, ela virá sentar no meu colo e então - tal
como um filho sempre deve tratar o pai - será carinhosa comigo.
Sim, porque Juvenal Antena não é um homem de desistir fácil, como
sabem todos os que convivem comigo. Até um ano atrás eu era um sujeito só,
embora cheio de mulheres. Mas agora tenho uma filha, O destino, resolveu
brincar com nossas vidas e nos colocou no caminho um do outro. E embora
ela me veja com tal horror que até evite ficar a sós comigo - pois talvez tema
que eu a mate como dizem (mas não provam) que já fiz com muitos outros -,
o fato é que não vou desistir de conquistar o seu amor e um dia vê-la me
chamar de pai do modo carinhoso pelo qual meu coração tanto anseia.

A chegada de Solange provocou um grande reboliço em minha vida,


pois por sua causa fui obrigado a ordenar a algumas mulheres, que frequenta-
vam minha casa e eram responsáveis por certa forma do meu bem estar, que
tratassem de bater asas. Isso significa que agora estou só; e nem ao menos
posso me dar ao luxo de frequentar os fundos da Uisqueria Highlands onde
funcionam as termas, pois com isso correria o risco de saber que alguém an-
dou sussurrando nos becos da favela algum comentário do tipo: “parece que
seu Juvenal anda atrasado”, o que sem dúvida me deixaria enfraquecido.
29

Assim, sem mulheres que - nem que seja com seus dedos carinhosos,
diminuam meus ímpetos - estarei menos protegido neste flanco quando dona
Branca Maria Barreto de Moraes, a ilustre proprietária da Universidade Pes-
soa de Moraes, por causa do romance clandestino entre Evilásio Caó, um dos
meus “soldados”, e sua sobrinha Júlia, cruzar o meu caminho. E então, como
eu costumava ouvir de minha mãe e agora repito (mesmo sem saber o signifi-
cado exato ou de onde saiu tal expressão) entre nós “dar-se-á a melódia”.
Se vou me apaixonar por dona Branca Maria Barreto de Moraes? Eu
diria que a paixão, como a piedade ou o medo, não é um sentimento que pos-
sa acometer Juvenal Antena. Mas não há dúvida que, de um modo bastante
radical para ambos, vou acabar me envolvendo com ela.

Mas Dona Branca, bem como a aversão que sente por mim a minha fi-
lha Solange, não será o meu maior problema. Este foi nos últimos dez anos, e
continuará sendo até que o resolva de uma vez por todas, minha difícil rela-
ção com Marconi Ferraço. Desde que liderei, há dez anos, a invasão dos pré-
dios ao lado do terreno que ele comprara, dando início à criação da Favela da
Mangueirinha e tornando assim impossível a construção do seu condomínio
de alto luxo, ele finge que me ignora, mas faz tudo para me destruir. É isso
que ele deseja - assim como eu quero vê-lo cair do cavalo -, e eu tenho certe-
za que não pensa em outra coisa.
Enquanto a comunidade se espalha por todos os lados sob minha pro-
teção, se enroscando ao redor do seu terreno como o anel da serpente em tor-
no de uma goela, ele compra mais e mais autoridades e lhes oferece o céu,
desde que o ajudem a romper o cerco. Sua intenção é atacar a comunidade
por todos os flancos, obrigando-a a sair dali ou pelo menos recuar de suas
fronteiras atuais. Mas eu manobro o tempo inteiro para anular os seus ata-
ques, pois se isso acontecesse, se ele conseguisse nos expulsar, ou até mesmo
nos fazer recuar de nossas fronteiras, em última análise eu é que seria venci-
do..
Nos primeiros anos essa tentativa de expulsão quase se concretizou al-
gumas vezes, mas então eu soube reagir à altura. Se ele tinha várias autorida-
des guardadas em seu bolso, eu também tinha minhas algibeiras cheias. Não
foi à toa que mereci uma medalha especial, outorgada pela Câmara Municipal
do Rio de Janeiro, por serviços prestados à comunidade. Marconi Ferraço
pode arrotar vantagens à vontade, mas eu também sou poderoso. Enquanto
um mesmo juiz nos concedia sucessivas liminares, graças às quais nenhum
dos terrenos que ocupamos podia ser retomado, eu trabalhava à frente dos
meus comandados dia e noite. Em apenas algumas horas, novos barracos sur-
giam, e as áreas construidas cresciam por toda a parte.
Quando enfim a última liminar foi derrubada e chegou a ordem de
despejo já não era mais possível, como disse o pastor Divino da Igreja Pente-
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costal e um dos meus aliados, “mostrar o caminho de volta para Israel ao meu
povo”. A terra prometida já era aqui, pois a Favela da Mangueirinha não era
mais um arruado sem prumo. Tinha luz em todas as casas, iluminação pública
e água encanada, além de próspero comércio na rua mais visível e, portanto,
se transformara numa verdadeira comunidade, que agora exigia da Prefeitura,
- e com todos os direitos - os benefícios do programa “favela bairro”.
Eles nos deram isso, mas, por conta da interferência de Marconi Ferra-
ço, o fizeram apenas em parte. De qualquer modo, tínhamos sido reconheci-
dos. Alguns, selecionados pela Associação Comunitária e dispensados de pa-
gar as taxas a ela devidas, passaram até a recolher IPTU, e assim se tornaram
legalizados. E com isso ninguém mais poderia duvidar do nosso direito de
morar naqueles terrenos.
E assim o condomínio de luxo que Marconi Ferraço pretendia construir
ali do lado, como a prova principal do quanto era empreendedor o seu espíri-
to, ficou apenas nos planos. Dele restam apenas as placas, nas quais, durante
as noites mais escuras, meus “soldados” (e até eu mesmo algumas vezes) pra-
ticam tiro ao alvo. Claro que esse prejuízo não afetou seus bolsos, já que, pa-
ra compensá-lo, ele tratou de obter em outras construções lucros ainda maio-
res. Algumas ele ergueu em terrenos de posse contestada que por isso lhe fo-
ram vendidos a preço de banana. Mas uma vez fechado cada um desses ne-
gócios não foi difícil para ele regularizar a papelada.
Algumas vezes ele não pôde agir dessa forma porque, a pedido de al-
gum morador da área, eu intercedi e usei todo o meu prestigio para anular a
negociata. E esse tipo de intervenção da minha parte só serviu para aumentar
o seu ódio. Sei que um dia posso sofrer uma emboscada por parte dos seus
asseclas, liderados pelo tal de Waterloo, cujo passado sei muito bem o quanto
é sinistro. Os que me são mais próximos constantemente me alertam sobre
isso. Mas não temo tal desenlace, pois há alguns anos Dona Setembrina, a
mãe-de-santo da comundiade cuja crença eu respeito, me deu uma série de
banhos de ervas, e depois jurou que dessa forma o meu corpo estava fechado.
Assim, continuo a exercitar, com apuro cada vez maior, minha rivali-
dade com Marconi Ferraço, e – tenho que respeitá-lo por causa disso – ele
sempre me responde à altura. No mais, minha vida é a mesma rotina diária.
Dou, faça chuva ou faça sol, expediente diário de seis horas na Associação
Comunitária. E para não ter que fazer hora extra depois que saio de lá, proibi
o meu povo de – seja qual for o problema – bater à porta da minha casa.
Nas eleições passadas, a pedido de alguns amigos de um partido pe-
queno, cheguei a me candidatar a vereador, mas além de todos os votos da
Mangueirinha não conquistei nenhum outro fora de lá, e assim fui derrotado.
Isso me deixou traumatizado, mas talvez o trauma vá embora antes da próxi-
ma eleição e eu me candidate de novo, só que em outras bases. Pois se tem
uma lição que aprendi nessa primeira tentativa foi que nenhum voto é livre e
todos de uma forma ou de outra são comprados.
31

Se eu sou um homem só? Não, porque, como já disse, sou uma espécie
de Rei e disponho do amor de todos os meus súditos. Claro, sei que alguns
entre eles me odeiam, mas estes são poucos e covardes, embora também se-
jam traiçoeiros. Para anulá-los eu tenho dos que me devotam a mais absoluta
fidelidade e contribuem com o meu trabalho social na comunidade. O tal Evi-
lásio Caó de quem já falei é um deles. Filho de MISAEL CAÓ, um marcenei-
ro que foi um dos primeiros moradores da área e até hoje continua exercendo
o seu ofício enquanto espera uma aposentadoria do INSS que não vem nunca,
ele é de todos - sem que os outros desconfiem - o meu preferido; e é também
aquele por quem um dia serei miseravelmente traído.
O seu romance com Júlia, a filha mais nova do doutor Paulo de Quei-
roz Barreto, vai se transformar na clássica história de amor proibido, não só
por causa da diferença de classes (ele pobre e mora na favela, e ela é rica e
vive num condomínio de luxo), mas também porque ela é branca e ele é ne-
gro. E vai se complicar mais ainda quando Solange, minha filha, mesmo sem
conseguir se adaptar ao ambiente do pai, acabar se apaixonando por Evilásio
na pior hora, ou seja, quando este decidir contestar o meu comando e desafiar
o meu poder dentro da comunidade.

E aqui, antes de permitir a Juvenal Antena que continue a se expressar com


suas próprias palavras, vale a pena abrir um parênteses para explicar em
que circunstâncias dar-se-á essa “traição” de Evilásio Caó ao seu chefe, já
que ela, na segunda fase da novela, terá a função de se tornar a “moral” de
toda a nossa história:

A certa altura o filho de Misael Caó começa a ter dúvidas quanto ao di-
reito do homem para o qual trabalha de exercer tanto poder sobre a co-
munidade em que nasceu e vive. E quando essas dúvidas se transforma-
rem em certeza ele criará coragem e tratará de enfrentá-lo.
Dar-se-á então uma luta terrível que remeterá a história ao que há de
mais atual na vida carioca – a luta pelo poder dentro das favelas e a tute-
la dos seus moradores por facções ilegais e até criminosas. Na medida em
que trata de contestar esta situação e depois resolve lutar abertamente
contra ela, Evilásio se transforma no mocinho dessa história na qual an-
ti-heróis em busca de redenção (só) na aparência prevalecem.
No percurso em direção à consciência, Evilásio vai se revelar um líder
nato – ou, como diz o Pastor Divino a certa altura, “o Moisés que levará
seu povo à travessia do Mar Morto”. Desse modo teremos – afinal! – al-
guma coisa de inédito numa novela deste modesto autor – um mocinho
que é pobre, negro e favelado cuja travessia, como a de todo herói de no-
velas, no final sem dúvida chegará a bom termo.
32

Porque, depois de destronar Juvenal Antena, Evilásio Caó, não por que
se imponha, mas por livre escolha deste, se tornará o líder inconteste do
seu povo.

Sim, eu disse que o filho de Misael Caó, mesmo que no futuro seja
aquele por quem serei traído, é hoje o meu preferido. Mas não é o único.
GUMERCINDO PEIXEIRO, cuja antiga profissão o próprio nome indica, é
o meu segundo. É dele, mas também em sociedade comigo, a empresa de
Vans que faz o transporte comunitário mediante o pagamento de uma taxa
mensal por parte dos que usufruem do serviço. Ao contrário dos ônibus, faça
chuva ou faça sol elas nunca atrasam. Desde que conheceu uma certa mulher
casada chamada ALZIRA e se apaixonou por ela, Gumercindo andou vaci-
lando. Alguém sugeriu que, por causa disso, eu o expulsasse da minha área e
entregasse a concessão do serviço de Vans a outro. Mas Gumercindo vem
jogando no meu time desde priscas eras e eu posso dizer sem medo de errar
que é meu amigo. Portanto, depois de admoestá-lo de modo contundente a
respeito de sua fraqueza amorosa, lhe dei mais um voto de confiança.
A tal Alzira mora numa casa meio arruinada na Estrada Velha de Jaca-
repaguá, é casada com um certo DORGIVAL BARRETO que, segundo a
lenda, não consegue arranjar emprego há oito anos, e é o arrimo da casa, que
tem mais dois moradores, DORGINHO, dezesseis anos, e LILIANA , qua-
torze, filhos do casal. Embora diga que trabalha de atendente noturna num
hospital público, na qualidade de funcionária terceirizada, Alzira, como Gu-
mercindo descobrirá de modo traumatizante, na verdade tem outra profissão,
que exerce com rara perícia segundo os que a experimentaram, nos fundos da
Uisqueria Highlands, isso mesmo: a tal casa de massagens, na qual ela é uma
das profissionais mais ativas.
Alzira é sobrinha de um dos mais antigos moradores do entorno da
nossa comunidade: o português MANOEL DE ANDRADE COUTO, que
emigrou para o Brasil ainda criança no primeiro terço do século XX com a
intenção de fazer fortuna. Mas por mais que tentasse, e algumas vezes se
dessse muito bem, seu dinheiro sempre sumia a certa altura em consequência
de vagas perdas, e por isso ele nunca chegou nem perto do seu intento. Aca-
bou se instalando, depois de sucessivos fracassos comerciais e um casamento
infeliz, numa espécie de chácara na Estrada Velha, que hoje é objeto de uma
acirrada disputa judicial, pois fica bem no meio de um terreno no qual Mar-
coni Ferraço pretende (outra vez!) construir um dos seus condomínios.
Todos os outros imóveis existentes no local já foram derrubados, me-
nos a casa semi-arruinada do “seu Manoel”, que fica o tempo todo sentado no
meio de sua sala disposto a “resistir até a morte”. E isso é o que vai acontecer
efetivamente, já que a casa será derrubada - revelando um fantástico segredo
escondido no seu subsolo -, mas o velho Manoel só sairá de lá morto.
33

Do tal casamento infeliz seu Manoel teve uma filha, dona CÉLIA
MARA, hoje com cinquenta anos, que é casada com um técnico em eletrici-
dade muito util aos meus negócios dos “gatos”, também de ascendência por-
tuguesa e de nome ANTÔNIO JOSÉ MELGAÇO. Ele e a esposa tiveram
apenas uma filha, CLARISSA, vinte anos, a qual, embora tenha problemas de
dislexia, atravessou com louvores todo o ensino básico e agora está pronta
para disputar uma vaga na Universidade que dona Branca dirige com rara
eficiência desde que seu marido morreu, como veremos a seguir, em circuns-
tâncias muito constrangedoras.
Assim como sua prima Alzira, que é filha de uma irmã do velho Ma-
noel já falecida, dona Célia Mara, supostamente uma senhora honesta e bem
casada, também tem um segredo, daqueles de farta cabeleira, que vai se reve-
lar de modo escandaloso. Isso acontecerá quando João Pedro Pessoa de Mo-
raes, o marido de dona Branca, for vítima de uma bala perdida, num sábado à
noite, durante uma prosaica sessão de circo na Praça Onze.
Antes que ele seja identificado no hospital para onde foi levado agoni-
zante, um fotógrafo consegue um flagrante do desespero de sua mulher, a
qual desaparece misteriosamente depois de sua morte. E a publicação da foto
no dia seguinte, quando só então o morto é identificado, mostra que a mulher
em questão não era a esposa do famoso professor, mas sim a dona Célia Mara
da qual, no maior segredo, há mais de quinze anos ele era amante.

CÉLIA MARA

A revelação desse nosso segredo assim, de modo tão intempestivo e


trágico, destruiu uma família, deixou outra seriamente transtornada e me ati-
rou de modo irreversível - a mim que sempre soubera administrar minha vida
dupla - na rua da amargura. Na verdade eu conheci João Pedro – ou Joca,
como o chamava – antes mesmo de casar com Antônio. Ele era então um jo-
vem professor cheio de projetos, e eu uma mocinha romântica para a qual a
vida não faria sentido se não me proporcionasse um lar que pudesse chamar
de meu e, de quebra com ele, me trouxesse um marido.
Nós nos dávamos muito bem, e quando estávamos juntos nos divertí-
amos muito. Aos meus olhos fôramos feitos um para o outro. Portanto, para
mim aquele nosso namoro só podia desembocar numa saída: o casamento.
Tanta certeza eu tinha disso que não hesitei em dar a prova de amor pedida
por Joca, a qual, naqueles anos em que o sexo era uma mercadoria muito va-
34

lorizada e não esse produto genérico de hoje, era a que os rapazes sempre
exigiam de suas namoradas: dormir com ele.
Eu cedi num fim-de-semana. Disse ao meu pai que ia dormir na casa
de uma colega, mas na verdade nós dois fomos nos hospedar num hotel mo-
desto na rua principal de Petrópolis. Lá aconteceu como o meu amado queria;
e em nenhum momento daquela nossa “lua de mel” me passou pela cabeça
que ele pudesse me abandonar depois daquilo, mas foi o que aconteceu: uma
semana depois João Pedro rompeu comigo e antes do final daquele ano já
estava casado com Branca. Não que a amasse como ele me disse em nossa
última e dramática conversa antes do seu casamento, mas porque ela tinha
aquilo de que ele mais precisava para concretizar seus projetos: dinheiro.

Sem que ninguém soubesse do que me acontecera além da minha pri-


ma Alzira, durante meses me desesperei por causa disso. Eu agora estava em
desvantagem no mercado das moças casamenteiras, pois não era mais vir-
gem, e os possíveis maridos de então sempre exigiam essa condição de suas
noivas. Àquele que me escolhesse agora eu teria a obrigação de contar a ver-
dade, já que na noite de núpcias não poderia escondê-la. Foi o que fiz quando
Antônio surgiu em minha vida e, após um rápido namoro, me pediu em ca-
samento.
Na verdade eu o encontrei já tardiamente, quando achava que ia ficar,
como se dizia então, “pra titia”. E então a virgindade já não era o fator mais
importante na vida de uma moça casamenteira. Mesmo assim tinha o seu pe-
so. Assim, quando eu lhe disse que já fora de outro homem, Antônio, que era
muito conservador, ficou chocado. Mas depois do choque inicial que a reve-
lação lhe provocou ele se conformou com o fato, me tomou com esposa e
nunca mais tocou no assunto. Pelo menos até que a morte de Joca, naquele
maldito dia em que lhe pedi para ir ao circo (porque eram assim, sempre mui-
tos prosaicos, os programas de nossa vida secreta e alternativa), revelou de
forma escandalosa o nosso grande e velho segredo.
Pois embora eu não visse Joca durante muito tempo, tornei a reencon-
trá-lo alguns meses depois de casada e, como se tudo isso fosse uma brinca-
deira de mau gosto do destino, mal nos vimos, marcamos um encontro para
dali a dois dias, e em uma semana já nos tornáramos amantes. Sua vida com
Branca era, como ele dizia, “um mar sem ondas”. Mas o dinheiro que ela
trouxera de dote era essencial aos seus projetos de criar sua própria Universi-
dade particular, em vez de ser um simples professor nas faculdades alheias; e
por isso, embora me amasse tanto como não cansava de repetir no meu ouvi-
do quando estávamos na cama, já que eu casara com outro não se separaria
dela.
Eu o aceitei nesses termos. E, sem deixar de cumprir minhas obriga-
ções em casa, passei a conviver com ele nos nossos encontros semanais como
35

se fosse o meu segundo marido. Só deixamos de nos ver com a mesma fre-
quência durante o tempo em que fiquei grávida de Clarissa, alguns anos de-
pois de Branca ter tido Sílvia, a sua própria filha.
Quando o escândalo estourou, e Antônio descobriu que durante aque-
les anos todos eu e Joca tivéramos um caso, imediatamente pôs em dúvida a
paternidade de Clarissa, mas eu tratei de desafiá-lo a fazer o teste de DNA.
Ele não o fez, é claro, e eu tinha certeza que não o faria, porque sempre fora
covarde; em vez disso proibiu minha filha de me ver ou me dar qualquer tipo
de apoio, ordem que ela passou a desobedecer depois de algumas semanas na
medida do possível.

Foram dias terríveis. A partir daquele instante no qual, no auge do nú-


mero da equilibrista, Joca foi atingido por uma bala perdida que, segundo me
disseram na ocasião, veio lá dos confins do Morro da Providência, o inferno
se abateu sobre a minha cabeça. Nós estávamos de pé, a aplaudir a equilibris-
ta junto com os outros espectadores, quando ele foi jogado para trás com vio-
lência e caiu sobre as cadeiras. E eu, ao me voltar para tentar descobrir qual a
razão daquilo, percebi o sangue a esguichar do seu peito.
Caído ali no chão das arquibancadas do circo, sem entender o que lhe
acontecera, ele voltou seu rosto para mim com um ar perplexo como se me
pedisse uma explicação a respeito. E ao encará-lo de volta pude ver como o
brilho da vida – aquela vida que se misturara com a minha durante tantos
anos – se esvaía rapidamente dos seus olhos.
E então entrei em desespero. Sem que chegasse a perceber como isso
acontecera, logo me vi ao lado dele numa ambulância, que cruzava as ruas do
centro a toda velocidade com sua sirene ligada. Um médico e um enfermeiro
tentavam mantê-lo vivo, e foi a eles que eu respondi positivamente quando
me perguntaram se eu “era a esposa”. Enquanto segurava a mão de Joca que
já estava entubado e agonizava a olhos vistos, eu não sabia onde estava nem o
que dizia. E também ouvia apenas palavras, ou pedaços de frases como: “ví-
tima de bala perdida”. Foi isso que médicos e enfermeiras ficaram a repetir
aos gritos no hospital, quando receberam meu suposto marido e seguiram os
procedimentos de praxe na tentativa de salvá-lo; mas, segundo um deles me
disse meia hora depois, fora tudo inútil.
A essa altura a maldita sequência de fotos já tinha sido feita ali no cor-
redor, e nelas eu aparecia no auge da aflição, a chorar, a me lamentar e a pu-
xar os cabelos, com toda a aparência de uma mulher prestes a ficar viúva. Foi
a má notícia dada pelos médicos que me acalmou ou que, pelo menos, me
devolveu o sangue frio. Joca estava morto e eu não podia continuar ali, ou
logo descobririam que eu não era sua esposa e sim uma reles amante, e então
um estrago maior ainda ocorreria. Eu não podia nem mesmo me aproximar
36

do seu cadáver e chorar uma última lágrima antes de me despedir dele – tinha
era que sumir enquanto dava tempo.
Na primeira ocasião em que médicos, enfermeiros e os repórteres de
plantão no hospital me deram as costas saí dali como se fosse invisível. De-
pois de atravessar vários corredores, desemboquei na rua, pensando ter esca-
pado do escândalo. Peguei o primeiro táxi, e dentro dele chorei como uma
desesperada, sem sequer dar uma explicação ao motorista que, através do re-
trovisor me olhava preocupado. Saltei duas quadras antes e tratei de me
acalmar de uma vez por todas durante a caminhada até minha casa. Já era tar-
de, Antônio na certa estaria cochilando diante da televisão, e se eu conseguis-
se entrar discretamente talvez ele não acordasse, e assim não teria que lhe dar
satisfações do meu atraso.
Foi o que fiz. Enquanto ele ressonava derreado sobre a sua poltrona
preferida, eu atravessei a sala pé ante pé e tratei de me refugiar no banheiro
do meu quarto. Lá tomei um banho morno que me acalmou na medida do
possível, e depois fui para a cama. Quando Antônio entrou em fingi estar em
pleno sono. E ele deitou e, como só poderia fazer alguém que tivesse a cons-
ciência tranquila, logo adormeceu - pela última vez - ao meu lado. Eu, ao
contrário, fiquei acordada o tempo todo. Cada vez que meu corpo me traía e
eu cochilava, escutava o impacto da bala entrando no corpo de Joca e acorda-
va assustada. Pensava na sua esposa e tinha pena dela. E quando lhe disses-
sem que ao morrer seu marido estava com outra? Imaginem como seria difícil
para uma mulher absorver esse tipo de choque. Pelo menos, eu pensava tola-
mente, ela não saberia quem era. Ah, como eu estava enganada...
Na manhã seguinte, em todas as bancas de revistas da cidade, na pri-
meira edição do jornal minha foto aparecia na capa, apontada como a mulher
do homem ainda não identificado que fora vítima de uma bala perdida em
plena sessão de circo na Praça Onze. Meia hora depois a segunda edição do
jornal já consertava o erro: o morto fora identificado, sua esposa, que compa-
recera ao hospital, se recusara a dar entrevistas, e apenas em relação à tal mu-
lher que o acompanhava permanecia o mistério: quem era ela, e por que, ao
saber que o seu acompanhante estava morto, simplesmente fugira?
O passo seguinte da imprensa seria tentar descobrir quem eu era e onde
morava. Já estavam quase chegando ao meu endereço, mas quando isso acon-
tecesse não me encontrariam. Pois quando acordei, ainda sem ter a menor
idéia dos desdobramentos daquela história trágica, já encontrei minhas malas
prontas. Bastou que abrisse os olhos e Antônio, de pé ali diante de mim, me
arrancou da cama, me levou até a sala e, sem deixar sequer que eu vestisse
uma roupa decente - já que estava de camisola -, de uma forma que não dei-
xou a menor dúvida, me jogou no olho da rua onde os vizinhos espalhados
diante das portas de suas casas só esperavam que eu aparecesse para me apu-
par e me chamar de piranha.
37

Foi o meu marido quem falou com os jornalistas. E eu imagino o quan-


to penou ao fazer isso, pois, além de todo o sofrimento que aquela situação
lhe provocara, sei muito bem o quanto ele me amava. Por isso não resisti
quando me expulsou, proibiu minha filha de me ver e deixou bem claro que
lutaria até o fim na Justiça para que eu não tivesse direito a nada. Ele não pre-
cisaria chegar a tanto; eu mesma não pretendia reivindicar, por conta do nos-
so casamento em comunhão de bens, sequer um alfinete, pois não me achava
com nenhum direito. De alguma forma eu tinha que pagar pelo que fizera, já
que mesmo sem querer acabara destruindo várias vidas.
O pastor Divino, da igreja de uma comunidade aqui perto, a cujas ora-
ções recorri durante a depressão que me veio após estes acontecimentos, me
disse certa vez que “Deus castiga, porém perdoa”. Mas não era Ele quem ti-
nha que me perdoar - era eu mesma. E isso eu não consegui fazer até hoje,
assim como não conseguiram fazê-lo os que me rodeiam. Não vou nem falar
de Antonio, que envelheceu dez anos depois de tudo isso e, nas poucas vezes
em que cruzou comigo, tratou de extravasar seu ódio, além de fazer de tudo
desde então para infernizar minha existência. Nem da minha filha que, mes-
mo continuando a me dar apoio, nunca conseguiu entender o que me levou a
viver aquela vida dupla. Mas vou falar dos vizinhos, que estavam todos dian-
te de suas casas esperando que eu fosse expulsa e saíram atrás de mim me
vaiando; do meu pai, que se recusou a me receber em sua casa quando che-
guei lá de mala na mão, apupada pela gente maldosa que me seguia rua a fora
(ele não mudou de opinião nem mesmo quando eu lhe disse que não tinha
para onde ir); e do marido de Alzira que, ao me ver chegar diante de sua casa
simplesmente trancou-se com sua família lá dentro e proibiu minha prima de
sair de lá, ou de me prestar qualquer solidariedade ou ajuda.
De todo modo, apesar deles eu não fiquei na rua. Fui recolhida pelos
homens do seu Juvenal Antena, que me conhecia de passagem e, mesmo de-
pois de tomar conhecimento da minha história, penalizado por me ver naque-
le estado, me deu abrigo durante aquela noite na Associação Comunitária da
Favela da Manguerinha; e no dia seguinte fui levada pela governanta do em-
presário Marconi Ferraço, dona Bárbara Carreira, que soube da minha desdita
e, talvez por conta dos muitos agravos que deve ter sofrido no passado, se
encheu de pena e me hospedou sem maiores perguntas na sua casa.
Dessa forma, até que Alzira conseguisse fazer o marido mudar de opi-
nião e me receber no seio de sua família, eu sempre tive abrigo, embora de-
pendesse da bondade de estranhos. Mas só depois que meu pai morreu, e des-
cobriu-se que ele tinha um tesouro incalculável em barras e objetos de ouro
escondido debaixo do assoalho de sua casa em ruínas (o qual, por nunca ter
sido declarado, foi reclamado pela Receita Federal e agora se encontra sub-
judice), é que eu, por conta da remota possibilidade de herdar aquela fortuna,
voltei de novo a ter minha própria casa.
38

A essa altura, depois de atravessar um inverno longo e cheio de deses-


perança, eu já tinha conseguido me refazer de todos esses agravos. Por pior
que fosse, a vida estava ali para ser vivida, e assim eu tratei de retomá-la de
novo. Mas para tanto foi preciso um bom tempo. Enquanto isso Branca se
tornara a toda poderosa proprietária da Universidade que o marido lhe deixa-
ra, e era justamente nela que minha filha Clarissa ia tentar o vestibular agora.
Por conta da dislexia, que acrescentava muitas dificuldades à sua capacidade
de aprendizado, resolvi ajudá-la nos estudos. E o fiz com tamanha aplicação
que um dia ela me disse: “sabe, mãe, você leva jeito pra coisa”. A “coisa” em
questão era o estudo, é claro.
Clarissa me disse isso ao sair da minha casa, após mais uma exaustiva
sessão em que, tentando ajudá-la a entender o que lia, eu acabei entendendo
mais que ela. Depois que ela saiu pensei durante algum tempo a respeito, e
então me veio uma luz e eu me perguntei: “por que não?” Eu tinha feito o
segundo grau completo, portanto estava habilitada a tentar um curso superior
a qualquer momento. E assim no dia seguinte compareci à Universidade fun-
dada pelo meu antigo amante com o dinheiro de sua esposa e, depois de apre-
sentar toda a papelada necessária, em poucos minutos, após pagar uma taxa
altíssima, estava matriculada para prestar um exame de admissão ao vestibu-
lar.
A partir daqui não preciso fornecer maiores detalhes sobre o desdo-
bramento desta minha história. Só tenho a acrescentar que, apesar do jogo
pesado de Bárbara, que vê segundas e terceiras intenções nessa minha deci-
são de estudar logo na Universidade que agora é sua, não só vou passar no
vestibular como vou frequentar a faculdade ao lado de minha filha. E lá seus
professores vão chegar - no que seria uma reafirmação do ditado segundo o
qual “antes tarde que nunca” – a uma conclusão muito importante a meu res-
peito: levando em conta o tempo durante o qual fiquei longe dos bancos esco-
lares, minha capacidade de aprender é tão grande que posso estar na fronteira
que separa os estudantes comuns dos super dotados.

Quanto à minha vida, digamos assim, mais privada, eu afirmaria que


está bem, não fosse o modo como Antônio, com uma perícia cada vez maior,
se dedica a estragá-la. Nenhum homem pode se aproximar de mim sem que
ele o procure e lhe diga o quanto, de acordo com seus princípios, eu sou per-
vertida e devassa. E por mais que sejam liberais estes homens, alguma coisa
nas palavras daquele marido traído por mim durante vinte anos lhes cala fun-
do. Por isso não demora muito e logo, sem me dar maiores justificativas, eles
se afastam.
39

Mesmo assim eu insisto. Por mais que ainda tenha contas a pagar pelos
meus erros, o fato é que continuo aberta para a vida. Assim, quando um certo
professor aqui da Faculdade chamado FRANCISCO MACIEIRA, que é fa-
moso por suas idéias revolucionárias sobre a democratização do ensino, se
interessar por mim, mesmo sabendo que ele também é objeto de interesse de
Bárbara eu irei à luta, e isso nos tornará rivais de novo.

BRANCA MARIA BARRETO DE MORAES

Nas primeiras horas após o trauma eu concordei em seguir passo a pas-


so o roteiro da humilhação e bancar a viúva, mesmo ultrajada. Para isso tive
que tomar tantos calmantes quanto meus médicos particulares me recomen-
daram; e assim, na hora do enterro de João Pedro estava completamente do-
pada.
Foi uma cerimônia que alguém depois classificou de “surrealista”.
Primeiro porque todos os presentes fingiram desconhecer que aquele homem
havia me traído durante anos de modo monstruoso e com a maior desfaçatez;
e quando vieram me dar condolências, sempre fizeram sobre ele referências
elogiosas. E não eram pessoas comuns nem puxa-sacos que lá estavam – era
como disse depois um colunista social, o “crème de la crème” do Rio de Ja-
neiro: a verdadeira nata. Eu estava ali, sabendo o tempo todo que ele morrera
na companhia de outra com quem tinha um caso há vinte anos, e apesar disso,
aferrada às regras de etiqueta, cumpria com fervor o meu papel de viúva.
Mas enquanto os discursos e as manifestações de hipocrisia se sucedi-
am, para mim essa tarefa foi ficando cada vez mais árdua. Eu nunca fora uma
mulher de engolir desaforos; e houve um instante naquela cerimônia absurda
em que decidi que isso também não aconteceria agora. Assim, pedi licença ao
orador da vez, o qual repetia à exaustão o quanto fora ilustre o meu marido, e
anunciei que eu mesma queria fazer um discurso. Meu irmão, o advogado
Paulo de Queiroz Barreto, ainda tentou me impedir de falar, pois sabia: deci-
dida como era, se tomasse a palavra o que eu poderia dizer seria imprevisível.
Mas enquanto me adiantava até me colocar perto do túmulo, ignorei os
gestos que Paulo me fazia e fui em frente. E ali - saboreando primeiro a ex-
pectativa, e depois o espanto e o choque de todos os presentes – disse, de
modo a não deixar a menor dúvida, o que achava da monstruosidade que o
meu marido fizera comigo, e o quanto me sentia decepcionada por descobrir
que durante aqueles anos todos convivera não com um homem honrado, mas
com um canalha.
40

Foi um discurso arrasador ou, melhor ainda: de eficiência curta e gros-


sa. E chegou ao seu clímax quando, após pronunciar a última palavra, eu me
debruçei cheia de náusea e vomitei sobre o caixão que a essa altura já fora
colocado dentro do túmulo.
Depois que me ergui de novo, e após limpar a boca com um lenço ofe-
recido por algum dos presentes mais solícito, pedi desculpas por não poder
ficar até o fim da cerimônia, “pois estava muito atrasada e precisava ir cuidar
de minha vida”. E então me voltei e fui embora, dando as costas de uma vez
por todas ao filho da mãe que fora o meu marido.
Minha filha Sílvia, que estuda na Suíça e só foi informada sobre a mor-
te do pai depois do enterro (pois decidi que seria melhor mantê-la longe da-
quele escândalo), recebeu de um anônimo alguns recortes de jornais que rela-
tavam minha violenta reação no cemitério. E ficou tão chocada que me envi-
ou um e-mail cheio de censura no qual, entre outras coisas, dizia que “eu ti-
nha me comportado como uma bruxa”. Sobre o que o pai dela me fizera não
escreveu nenhum comentário. Em resposta, eu lhe mandei uma carta formal e
registrada pelo correio, na qual deixava bem claro que ela estava proibida de
falar assim comigo. Sim, Sílvia é minha única filha e posso dizer sem medo
de errar que a adoro. Mas não é por causa disso que vou engolir seus desafo-
ros.

Enquanto me retirava do cemitério eu vi, escondida atrás de um túmulo


numa das alamedas do cemitério, uma mulher que logo identifiquei: era a tal,
aquela cuja foto vira estampada no jornal – a amante de João Pedro. Eu sabia
que se tratava de uma mulher de outra classe social, bem diferente de mim e
de todas as outras do nosso circulo com quem ele poderia ter me traído. Ela
percebeu claramente que a vi, e reagiu assustada, pois achou que eu aprovei-
taria aquela ocasião para provocar um ajuste de contas entre nós, no qual ela
começaria em franca desvantagem. Mas isso não aconteceu, pois eu já dissera
tudo o que tinha para dizer em meu discurso diante do túmulo, e agora não
queria mais me envolver com essa história sórdida.
Soube depois que a tal, quando todos os presentes ao enterro foram
embora, aproximou-se do túmulo do meu marido e seu amante, jogou-se so-
bre ele e durante várias horas lá ficou a chorar, no maior desespero. Soube
também que por causa do escândalo ela foi jogada na rua da amargura e per-
deu tudo. Não é que tenha ficado feliz com isso; mas se me perguntassem eu
diria que tudo o que aconteceu àquela mulher foi mais que justo.
Sobre a sua relação com o meu marido, quero crer que ela o amava, ou
não o teria aturado durante mais de vinte anos. E quanto a mim? Eu tinha
grande apreço por João Pedro, eu o respeitava, eu o incentivava a progredir
sempre, e acho que numa relação como a nossa, mais do que amor ou paixão,
era esse meu entusiasmo pelo progresso dele o que contava. Afinal de contas,
41

mesmo usando o meu dinheiro, ele tinha construído uma universidade. E em-
bora seus métodos fossem os mais tradicionais possíveis, ele se preocupava
em alcançar um mínimo de qualidade da educação que ofertava. Seu objetivo
era construir algo para além dele, tinha um ideal voltado para os outros, para
o coletivo. Isso era muito positivo e, portanto, eu o admirava.
De qualquer modo, por não amá-lo “com todas as minhas forças”, co-
mo era o caso dela, é que pude mais facilmente esquecê-lo. Nem sequer me
dei mais ao trabalho de pensar porque ele fizera aquilo comigo, pois, depois
do meu discurso diante do seu túmulo, qualquer conclusão a esse respeito já
não teria mais importância.

Antes de ir embora do cemitério, quando eu disse aos atônitos presen-


tes que precisava sair mais cedo para cuidar da minha vida, não estava lhes
dando uma satisfação, e menos ainda lhes ofertando uma figura de retórica a
guisa de despedida. Pois foi isso mesmo que tratei de fazer mal cheguei em
casa: começei a cuidar da minha vida. Primeiro convoquei meu irmão e ad-
vogado, para saber qual era minha exata posição dentro dos negócios da fa-
mília. Éramos ricos. Naqueles anos todos, além de me trair vergonhosamente,
João Pedro multiplicara o dinheiro que eu lhe dera para financiar a Universi-
dade. Hoje ela tinha um campus na Barra da Tijuca e uma primeira filial na
Baixada Fluminense, e já estava se preparando para abrir a segunda e a tercei-
ra em Angra dos Reis e Campos. Até então eu me mantivera à parte, cum-
prindo muito bem o meu papel da esposa do Magnífico Reitor, o que manda-
va em tudo.
Mas agora eu queria mais do que essa função apenas decorativa. Pode-
ria eu assumir a direção dos negócios? Meu irmão disse que sim: eu tinha
esse direito, mas para tanto teria que enfrentar o Conselho Administrativo da
Universidade, o qual sem dúvida desaprovaria a minha idéia. Ele tinha razão,
como eu pude comprovar na reunião em que o Conselho pretendia escolher
seu novo presidente, e à qual compareci para reivindicar o cargo.
Todos os presentes se declararam contra a minha pretensão, entre ou-
tras coisas porque já tinham escolhido um dos seus pares para substituir o
meu marido: um professor de física chamado HERIBERTO GONÇALVES -
que nunca ensinara sequer o bê-a-bá aos seus alunos, mas – por ser tão idiota
- seria sempre dócil aos desígnios dos demais. Em última análise, o que esta-
vam fazendo era me dar uma rasteira. O problema é que eu não caí como eles
esperavam. Pois lembrei aos conselheiros um fato importante: estavam ali
diante de uma viúva que acabara de ser ultrajada por um homem igual a eles:
“Basta convocar a imprensa, dizer que fui enganada durante vinte anos
por um homem e agora estou prestes a ser enganada de novo por um bando
deles. O escândalo por conta disso será tamanho que desmoralizará essa insti-
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tuição, e então, já que tenho poderes para isso, não me restará outra alternati-
va, senão fechá-la e mandá-los todos plantarem batatas”.
Meia hora depois de fazer essa ameaça eu era entronizada no cargo de
presidente do Conselho de minha Universidade. Eu era a dona, e agora era
também quem mandava. Meu objetivo era ir muito além do meu marido, e
para isso precisava elevar aquele estabelecimento de ensino particular a um
nível de absoluta excelência. Não apenas uma máquina caça-níqueis, mas
uma universidade que se aproximasse do nível das melhores escolas particu-
lares inglesas e americanas. Não perdi tempo, e comecei a fazer isso naquele
mesmo dia. E à custa de gritos e patadas, com os quais venho azeitando as
engrenagens por vezes emperradas do nosso estabelecimento, é o que estou
prestes a conseguir agora.

Claro que o ingresso da ex-amante do meu marido no nosso corpo dis-


cente, e sua súbita notoriedade ao se destacar entre os demais alunos por ser
uma pessoa que resolveu estudar em plena maturidade, vai me tirar do sério.
Ainda mais quando, no meio de tantos homens, ela resolver dar em cima jus-
tamente do professor Francisco Macieira, um “expert” brasileiro em educa-
ção vindo de um escritório da Unesco na Europa, contratado por mim, para
cuidar da instalação de uma “escola de elite”, destinada a formar crianças ca-
rentes – independente da raça ou credo religioso – dando e elas, do ensino
fundamental à universidade, as mesmas oportunidades aos filhos das famílias
privilegiadas. Essa é, das idéias que apresentei desde que passei a dirigir a
minha Universidade, a que nos rendeu maior promoção e, por conta do em-
penho de Macieira, e que vem me dando nos últimos tempos maior alegria.
Voltando à minha rival, desde que sua história saiu nos jornais (a mãe
que decide retomar os estudos só para ajudar a filha disléxica) ela se tornou a
favorita dos nossos professores. É, para eles e também para os demais alunos,
uma figura popular e muito simpática. E faz o possível para tirar proveito dis-
so. Dá entrevistas à televisão e aos jornais, emite opiniões e conselhos... É a
raínha do senso comum, despojada de qualquer sinal de sofisticação e, por
mais incrível que pareça, todos parecem gostar disso.
Mas eu não posso deixar de pensar que essa mulherzinha e sua filha
não vieram parar aqui por acaso: minha paranóia me diz que ela teve alguma
intenção velada ao fazer isso, ou seja: decorridos quase três anos desde a
morte de João Pedro a amante dele ainda me persegue. Isso teria alguma coi-
sa a ver com a tal mocinha disléxica? A essa altura já sei que a mãe dela e o
meu marido foram amantes durante mais de vinte e assim a menina poderia
ser... A filha dele? Se fosse, teria direito à metade do que eu agora possuo, e
então (penso não apenas nela ou em mim, mas também em minha filha Síl-
via) tudo mudaria em nossas vidas.
43

FRANCISCO MACIEIRA

Conheci dona Branca Maria Barreto de Moraes em Paris, durante um


encontro de educadores da América Latina organizado por mim sob o patro-
cínio da Unesco, ao qual o marido dela compareceu como um dos represen-
tantes brasileiros. As sessões se realizaram durante três dias de trabalhos in-
tensivos; mas a última delas, programada para um sábado pela manhã, aca-
bou mais cedo que o previsto, pois os participantes, mais do que discutir os
destinos da educação no continente do qual tinham vindo (com todas as des-
pesas pagas pelos seus próprios governos), estavam mais interessados em
fazer suas últimas compras nas Galerias Laffayette e adjacências, que naquele
dia fechavam mais cedo.
Mesmo assim na saída, enquanto o marido lhe pedia através de sinais
que se apressasse, ela fez questão de me cumprimentar por causa das minhas
intervenções durante o encontro. Horas depois eu a vi entrar, sempre em
companhia do marido, no Café de la Paix, um restaurante perto da Ópera, em
meio a uma caravana terceiro-mundista que mal podia se locomover por cau-
sa das muitas sacolas de compras que carregava. Ela também me avistou, e
me acenou discretamente. Eu respondi, e depois que o bando entrou no res-
taurante fiquei lá parado, pensando no quanto dona Branca se destacava em
meio àquele bando de consumistas.
Talvez tenha pensado demais a respeito pois, três minutos depois, vi
quando saíram todos do restaurante com visível ar de decepção e foram em-
bora. Curioso, caminhei até o Café de la Paix, entrei e perguntei a uma das
recepcionistas porque aqueles clientes tinham se retirado. E ela me explicou
que, por causa do excesso de sacolas que carregavam, o maitre disse a eles
que não teria condições de acomodá-los nas mesas.
Imagino o quanto dona Branca deve ter se sentido envergonhada ao ser
escorraçada do restaurante desse modo. Ainda mais porque, no meio daquelas
pessoas, ela se destacava sem precisar fazer qualquer esforço para isso. Mes-
mo que se adequasse às limitações do marido - do qual fazia questão de ser
apenas a companheira - e tentasse ser discreta, ela não conseguia esconder
que, ao contrário dele, tinha classe. E não se iludam – embora tivesse gostado
dela meu julgamento era absolutamente neutro.
De qualquer modo não a vi mais durante muito tempo, até que um be-
lo dia me chegou à Unesco, onde continuava trabalhando, um e-mail enviado
por ela, no qual me perguntava se eu estaria disposto a voltar para o Brasil
para cuidar da fundação de uma escola destinada à formação, através de bol-
44

sas de estudo, de crianças carentes que, de acordo com critérios rigorosos de


escolha, tivessem potencial para fazerem parte da elite intelectual brasileira
no futuro.
A essa altura, depois de trabalhar durante anos com projetos educacio-
nais para vários governos do terceiro mundo, eu estava profundamente frus-
tado com o que fazia. Pois já percebera que a maior parte do dinheiro desti-
nado a tais projetos não era consumida com a educação das crianças carentes,
mas sim, depois de devidamente desviado, vinha parar na Avenue Montaig-
ne, nas caixas registradoras da loja da Louis Vuitton e suas vizinhas. Cansara
de ver esposas e filhas de próceres esquerdistas de países latinos e africanos
sairem de lá com dezenas de sacolas, e não precisara fazer nenhum cálculo
para concluir que cada uma dessas bolsas continha no seu interior um objeto
cujo preço bastaria para suprir a educação anual, além da alimentação, de pe-
lo menos uma criança.
Desse modo, depois de toda a minha atuação política nos anos 60 no
Brasil, que me renderam a prisão e o exílio, acabei chegando a uma conclu-
são terrível: se havia alguma esperança de mudar a situação atual do ensino
em meu país, isso não seria feito pelo governo, mas sim pela iniciativa priva-
da. Se alguém conseguisse convencer os empresários de que educação não é
gasto e sim investimento, e este no futuro pode resultar em altos lucros, eles
sem dúvida investiriam boa parte do próprio dinheiro em escolas.
Esta também parecia ser a opinião de dona Branca, a julgar pelo que
ela me propunha em seu e-mail. Depois de pesquisar a respeito, descobri que
seu marido morrera, e ela assumira a direção da Universidade particular por
ele fundada. E seus planos de transfomá-la numa escola de excelência, apesar
das resistências do conselho administrativo (o qual preferia mantê-la como
era, ou seja, apenas como um rendoso caça-níqueis), estavam em andamento.
Se eu aceitasse, seria a segunda vez que regressaria ao Brasil do meu
exílio. Voltara antes, no final dos anos 70, depois que a ditadura desmoronou
e foi decretada a anistia. Então eu vivia na Suécia, onde sobrevivia dando au-
las de português a suecas intesssadas em se corresponder com nossos mula-
tos; e de tanto ficar lá acabara adotando alguns dos costumes nativos. Um
deles, de usar roupas sumárias durante o fugaz período de verão em que se
podia frequentar alguma praia, acabou me rendendo notoriedade em minha
temporada brasileira. Eu trouxera comigo a sunga que costumava usar quan-
do ia à praia na Suécia, na verdade uma tanga de crochet que me fora presen-
teada por uma amiga. Uma peça comum entre os homens de lá mas que, para
a mídia brasileira, depois que me deixei fotografar com ela, resultou num
verdadeiro escândalo. De tal modo que no Rio janeiro aquele verão ficou
conhecido como “o da tanga”.
Não me incomodei com a notoriedade, nem mesmo com as dúvidas
que a peça em questão suscitou quanto à minha virilidade. Eu era casado com
uma sueca (talvez a única que não preferia, dentre os brasileiros, aqueles que
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eram negros ou mulatos). E embora não tivesse nada contra as preferências


de quem quer que fosse, estava muito seguro quanto às minhas.
De qualquer modo a tanga, e a polêmica por ela provocada, me trans-
formou - a mim que antes de sair do país primeiro fora um discreto professor
e depois aderira à luta armada e à clandestinidade - numa figura notória. Tan-
to que até quiseram lançar minha candidatura a deputado, e eu confesso que
cheguei a considerar a possibilidade, até que minha esposa sueca, depois de
ver destroçadas todas as suas ilusões otimistas sobre o suposto “paraíso tropi-
cal” do qual eu saíra, deixou bem claro que a Europa era o seu lugar e ela
queria ir embora.
Foi bom que nós voltássemos para o continente no qual ela não se sen-
tia estrangeira. Pois em Paris, onde nos instalamos depois que consegui o
emprego no Departamento de Educação da Unesco, vivemos os melhores
anos de nossa vida em comum e fomos imoralmente felizes, até que há quatro
anos ela teve um câncer no seio e morreu em poucos meses. E eu me trans-
formei num viúvo triste, solitário, e cada vez mais frustado com o modo en-
sandecido como o mundo adentrou nesse terceiro milênio.
Posso dizer sem medo de errar que desde então ando decepcionado
com tudo: com a política, com os métodos educacionais, com essa mania do
“politicamente correto” que tolhe os instintos e a imaginação, impede a cria-
tividade e a ousadia e corrói tudo... Sim, ando frustrado: com os governos
(sejam de esquerda, centro ou direita), com os métodos da organização inter-
nacional para a qual trabalho, com o modo cada vez mais fútil como as pes-
soas se relacionam entre si e com o próprio mundo. Mas mesmo assim, talvez
por causa de um cacoete adquirido em minha juventude, continuo lutando.
Por isso, quando o e-mail de dona Branca me chegou, e depois de pon-
derar alguns dias a respeito, resolvi aceitar o seu convite, e assim voltei ao
Brasil do meu segundo e mais longo exílio.
Quando cheguei e me apresentei a ela, não me dei ao trabalho de lhe
perguntar o que pretendia, pois a respeito disso eu já tinha meus próprios pla-
nos. E, foi só expô-los – ela concordou com todos. A idéia era recrutar, nas
escolas públicas existentes na área próxima à sede de sua Univerdade na qual
seria instalada a escola, crianças que se destacavam pelo potencial, e não pela
raça ou pelo credo. Desde que revelassem uma tendência acima da média pa-
ra apreender o que lhes ensinavam, elas seriam chamadas para a nossa escola,
onde teriam acesso a boa alimentação, assistência médica e tudo o que existe
de mais moderno em matéria de métodos de ensino.
A idéia confrontava a política oficial do setor, que preferia privilegiar
pessoas de uma determinada raça mesmo que para isso fosse necessário ser
menos exigente quanto aos níveis do aprendizado. Mas isso não me preocu-
pava, pois, conforme disse a dona Branca com toda sinceridade possível,
buscar alternativas para a unanimidade oficial sempre fora para mim a melhor
de todas as políticas.
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Enquanto a escola era construída iniciei o meu trabalho. Resolvi que eu


mesmo iria garimpar em busca dos futuros alunos. E assim passei a frequen-
tar escolas públicas de ínfima categoria e a me espantar com o descaso dos
que cuidavam delas - não apenas os administradores, mas também os que en-
sinavam. Além de selecionar alunos delas, procurei ir além e conhecer o am-
biente do qual tinham saído, quase sempre favelas. E numa destas conheci
uma figura que acabou facilitando o meu trabalho: ninguém menos que um
dos manda-chuvas dessas comunidades, um cidadão conhecido como Juve-
nal Antena. Ficamos amigos, embora de vez em quando nos “peitemos”, pois
eu, o cara da tanga de crochet, mesmo depois de tantos anos não consigo
concordar quando alguém, na tentativa de resolver um problema, resolve ape-
lar para a violência.
Juvenal também tem seus motivos para me criticar, e o mais comum
deles é que sou o que se chamaria no começo do século passado de um
dandy: um homem que se veste com todo apuro possível, e que cuida de sua
própria aparência até com certo exagero. Um homem que tem noções pró-
prias e muito peculiares do que seja elegância. Alguém que, nesse campo, se
destaca. E não porque o queira, como ficou comprovado na casualidade do tal
episódio da tanga de crochet, mas porque ser assim, bem como gostar de mu-
lheres classudas , dos contos de Tchekov e da música de Cole Porter faz parte
da minha natureza.
A própria dona Branca, ainda que por razões pessoais, acabou se apro-
ximando dessa figura que é Juvenal e, como eu pude perceber, tornou-se ob-
jeto de sua cobiça. Pois, inacessível para o homem humilde que ele foi antes
de se tornar o rei da comunidade, aquela mulher branca e fina seria ainda hoje
a imagem viva de uma espécie de Deusa. E quanto a mim, posso entender
muito bem o que Juvenal sente a respeito de dona Branca, pois a verdade é
que a essa altura também estou fascinado por ela.
Mas é claro – sei como separar as coisas. Dona Branca é uma mulher
incrível, mas eu sou apenas funcionário dela; temos um projeto em comum
que, a julgar pelas adesões de vários empresários cariocas, por seu pioneiris-
mo pode se tornar muito importante. Já se fala em criar escolas como essa em
vários Estados do país, sempre com o objetivo de oferecer as excelências do
ensino e a possibilidade do progresso aos filhos das classes menos privilegia-
das que tenham potencial de aprendizado. É uma idéia a longo prazo, claro,
mas se ela vingar, daqui a alguns anos, terá sido criada, como “nunca antes”
nesse país, uma nova espécie de elite. Trata-se de uma possibilidade glorio-
sa. E eu não posso me envolver com minha patroa e assim correr o risco de
estragar uma idéia tão bela.
O que eu não percebi, mesmo sendo um profundo observador da alma
humana, é que esse meu fascínio por dona Branca era um sentimento recipro-
co. Nesse caso eu teria evitado demonstrar, de modo tão entusiástico, o meu
interesse, supostamente de educador, por aquela que se tornou uma espécie
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de “queridinha da mídia” entre os alunos da Universidade – dona Célia Mara.


Uma senhora que resolveu estudar após os cinquenta anos, depois de ter sua
vida pessoal destruída e perder tudo, e que se mostrou tão capacitada ao
aprendizado quanto os jovens estudantes de sua turma, incluindo entre eles
sua própria filha.
Desse modo, o viúvo solitário que eu era há quatro anos de repente se
viu em pleno olho do furacão, ou seja, objeto do interesse de duas mulheres
que mesmo antes de me conhecer já eram rivais em tudo. Uma rivalidade
que, se eu não souber arbitrá-la, pode anular os objetivos da minha volta ao
Brasil e assim estragar tudo.

JUVENAL ANTENA (2)

Sim, dona Célia Mara é bem fornida não apenas de cérebro, mas tam-
bém de carnes, como bem sabia o indigitado professor João Pedro, e eu aca-
barei por descobrir quando dona Branca, sua viúva cheia de não-me-toques,
se decidir pela inconveniência do meu assédio e me der um fora. Mas isso é
assunto para daqui a várias quadras. E por falar em “quadra”, devo dizer que
a da Escola de Samba Nascidos da Mangueirinha, ora no segundo grupo e da
qual sou o presidente, vai ser inaugurada na noite mesmo em que o dono da
Universidade Pessoa de Moraes, vítima de uma bala perdida, não apenas
tomba morto como tem o seu segredo de mais de vinte anos desmascarado.
Essa escola de samba, fruto do trabalho de toda a comunidade, e objeto
da cobiça de vários políticos que atuam na região, vem subindo de cotação a
cada desfile graças aos meus méritos administrativos, e aos talentos de DÁ-
LIA MENDES, sua carnavalesca formada em vários tipos de arte. Ela foi
resgatada por mim das mãos de um traficante pé-de-chinelo o qual, até o ins-
tante em que o expulsei da área, a mantinha em cativeiro, alimentando-a a
pão, água e muita droga.
O modo como fiz com que o indigitado sujeito tirasse o seu time de
campo? Prefiro não relatar agora, não só porque me faltaria tempo para isso,
como também porque, tenho certeza, os senhores achariam toda a história
muito chocante.
Escorraçada pela família, que achava impossível sua reabilitação, pois
antes já tivera muitas recaídas, ela ficou sob minha responsabilidade. Eu a
internei numa clínica, e de lá ela só saiu no dia em que afinal acreditei em sua
sinceridade quando me disse que, mais que tudo na vida, o que ela queria
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agora era “ficar limpa”. Foi só depois disso que descobri seus talentos e lhe
ofereci o cargo de carnavalesca em nossa escola então iniciante. Agradecida,
ela se empenhou de tal maneira que angariou o respeito da crítica especiali-
zada. E hoje, embora seja fiel à nossa bandeira e à comunidade onde se insta-
lou e até hoje mora, de vez em quando tem que rejeitar convites que lhe são
dirigidos para trabalhar em outras escolas.
A quadra da Escola de Samba Nascidos da Mangueirinha fica ao lado
da Associação Comunitária, e servirá também como salão de festas, o qual
será alugado a preço módico aos moradores da área. Sua inauguração contará
com a presença do deputado estadual NARCISO TELLERMAN, político
idealista e acima de quaisquer suspeitas, mas cuja integridade será posta em
dúvida pelos seus pares e os colunistas políticos só porque ele, ainda que dis-
corde de muitos dos meus métodos, mesmo assim vê virtudes na minha pes-
soa; e não esconde de ninguém que, sem impor nenhuma condição ao contrá-
rio do que pensam os seus colegas sempre tão interesseiros, é meu fiel e
grande amigo.
Na quadra existe um “bar de batidas e comidinhas” (embora eu tenha
discordado deste nome, por achá-lo meio fresco), o qual é administrado por
outro cidadão que andava por aí desgarrado e foi salvo do vendaval pela mi-
nha teimosia. Ele se chama BERNARDINHO DA CONCEIÇÃO e, como
Dália Mendes, foi expulso de casa ainda adolescente, quando sua família des-
cobriu que preferia em vez das moças os rapazes.
Filho de um casal de inúteis, o BERNARDO pai que há vinte anos, de
calção e sem camisa, vende cerveja na praia do Quebra Mar “porque tá muito
difícil de arranjar emprego”, e a AMARA mãe que não faz outra coisa na vi-
da além de ficar na janela tomando conta da vida dos outros, ele tem dois ir-
mãos tão inúteis quanto os pais e mais velhos que ele, BATISTA E BE-
NOLIEL. Estes, depois de o expulsarem de casa, trataram de trazê-lo de volta
quando descobriram que ele, após fazer um curso de culinária patrocinado
por mim, começara a ganhar dinheiro à custa de sua profissão no boteco bati-
zado “Castelo de São Jorge” e especializado em pratos de bacalhau, que um
amigo meu lhe financiou ali, perto do PROJAC.
Hoje, sem mudar de em nada o seu comportamento (para decepção das
moças e alegria dos rapazes), ele não só foi aceito por todos como se tornou o
chefe da casa, porque ganha dinheiro e os sustenta apesar dos meus conselhos
em contrário. Bernardinho e Dália são tão ligados um no outro que não con-
seguem esconder o quanto se amam, embora a preferência sexual da qual ele
não abre mão não permita que sejam mais do que amigos.

O que eu acho disso? Eu não julgo as pessoas, eu as encaro e pergunto.


E se elas me respondem alguma coisa que valha a pena, então eu não discuto,
apenas aceito e me recolho.
49

Quanto às mulheres que vão atravessar, como verdadeiros trens de-


sembestados, a minha vida – dona Branca, dona Célia Mara, Evita Duarte
(sim, ela também...) e minha filha Solange – o fato é que terei muito trabalho
por causa delas. Mulher é sempre um negócio complicado na vida de um
homem. Ainda mais quando este, como eu, tem dinheiro e é poderoso. Mas
nem todas são assim, difíceis - algumas surgem para simplificar o que as ou-
tras complicam. É o caso de GUIGUI, cujo nome de batismo é MARGARI-
DA MARIA DOS ANJOS, uma das últimas pessoas a construir um barraco
dentro do núcleo original da nossa comunidade mas que hoje, por decisão
minha, é a vice-presidente da Associação de Moradores.
Mais do que uma líder do pessoal da comunidade, ela é, como a tal de
Bárbara Carreira na vida de Marconi Ferraço, aquela que, por não ser minha
amante, priva da minha total intimidade. É Guigui quem faz às vezes de mi-
nha secretária quando dou audiência na sede da associação, anotando pedidos
e lendo solicitações – já que não posso fazê-lo porque, nessas ocasiões, estou
sempre sem meus óculos.
É ela também quem faz uma primeira filtragem, evitando que eu perca
tempo com os que desejam apenas jogar conversa fora, me conhecer ou fazer
alguma reivindicação absurda. Ainda outro dia apareceram aí três granfinas
que, sob o pretexto de fazer uma doação de roupas usadas, ficaram jogando
conversa fora até que uma criou coragem e perguntou se era verdade que eu
tinha nascido numa pia de gafieira. Eu lhes disse que não, é claro, e expliquei
a elas que essa, na verdade, era a história de um tal de Boca de Ouro, sujeito
que eu nem sequer conhecera.
Guigui é tão dedicada a mim que não tem vida própria. E, embora seja
uma mulher apetecível, incha de orgulho cada vez que eu digo aos demais
que ela para mim “é homem”. Pois eu, de tão amigo seu, não sinto nenhuma
atração por ela. Mas talvez não conseguisse viver tão bem sem tê-la do meu
lado, ainda mais nestes dias difíceis em que preciso aturar os luxos e amuos
de minha filha Solange.

Se eu vou levar a melhor na minha briga com Marconi Ferraço? Como


diria o Pastor Divino (e até Dona Setembrina concordaria): “o futuro a Deus
pertence”. Mas o fato é que acontecimentos imprevistos vão fazer com que
alguns dos aliados meus e dele se bandeiem e mudem de lado, ainda mais
quando a verdade sobre ele for revelada por conta do surgimento de sua (su-
posta) esposa e seu filho. Então ele já estará casado com Sílvia, a filha de
dona Branca, e, levando em conta que não foi Marconi Ferraço quem casou
com a outra e sim Adalberto Rangel, uma das perguntas que se fará é: ele é
ou não bígamo? Eu, é claro, torcerei para que a Justiça decida a meu favor.
50

Nesse caso ele não só teria cometido esse crime, como também seria conde-
nado por isso.

MARCONI FERRAÇO (2)

O meu romance com Sílvia, a filha de dona Branca recém-chegada de


uma temporada de estudos na Suiça, foi rápido e intempestivo e mudou radi-
calmente a minha vida. Desde que nos conhecemos durante uma disputa por
causa de uma vaga no estacionamento lotado de um shopping onde eu teria
uma reunião de negócios, e após o estranhamento inicial, que logo foi supe-
rado, eu senti uma absoluta necessidade de me envolver com ela. Mas como
nem ao menos sabia de quem se tratava tratei de pedir a pesoas de minha con-
fiança que descobrissem quem era.
Em pouco tempo todas as informações a seu respeito me chegaram
através de um alentado relatório, do qual constavam até mesmo o número do
seu celular, sua preferência quanto à comida, e que número ela calçava. Dele
constava também o nome de sua mãe, que era conhecida nos meios empresa-
riais que eu discretamente frequentava como uma “verdadeira fera”.
Portanto, eu concluí que se quisesse me aproximar da filha teria antes
que conquistar a simpatia da mãe. E isso eu confesso: não só foi a parte mais
difícil do meu cerco a Sílvia, como na verdade não aconteceu até hoje. Se-
gundo esta me confidenciou, num dos momentos de intimidade durante a
qual conversamos a respeito, sua mãe já chegou a lhe dizer que não consegue
perceber o quê, mas sente que em relação a mim “tem alguma coisa errada”.
De qualquer modo eu nunca fui homem de desistir por tão pouco, ain-
da mais nessa fase, vamos chamá-la assim, “empresarial” da minha vida.
Nesta, como nos negócios, quando é preciso faço valer minha vontade e mi-
nha mão pesada. Assim, enquanto garantia o meu lado cercando a mãe da
moça de gentilezas, eu empreendia a campanha que me levaria à conquista de
sua filha. Claro que Sílvia não caiu em meus braços de mão beijada. Antes de
fazê-lo ela resistiu o quanto pôde. Tanto que num determinado momento eu
cheguei a me perguntar se estava ou não perdendo tempo. Mas só havia um
modo de ter certeza quando a isso – era continuar tentando.
Por isso depois de alguns meses de cerco e de vários cavalos de madei-
ra plantados à sua porta, Tróia finalmente caiu, e o fez incondicionalmente. E
para que não houvesse traumas por conta dessa coisa de conquistador e con-
quistado, eu também fiz o mesmo. Eu me apaixonei por Sílvia como nunca
tinha feito antes por outra mulher em toda a minha vida. Na verdade, como
51

dizia Bárbara Carreira quando eu lhe permitia esse tipo de comentários, eu


fora sempre um homem muito frio. Talvez por causa da minha profissão an-
terior, desde cedo fora isso que eu me tornara: uma pessoa que desconfiava
de tudo e de todos, e que via na possibilidade de uma paixão incondicional
um grande perigo.
Mas o fato é que agora eu era outro. Estava estabelecido, nada me
ameaçava... E por isso achei que podia me arriscar e viver aquele grande
amor que no final de tudo é o objetivo de todo homem, ainda mais quando ele
é bem sucedido. Sílvia foi essa paixão desenfreada. Eu a queria para mim e,
apesar das restrições da mãe dela, não houve nenhum impecilho que eu não
tratasse de afastar do nosso caminho.
Um destes empecilhos era o fato de que eu não podia ter filhos. Quan-
do decidi pedir Sílvia em casamento, antes de fazê-lo procurei um famoso
urologista e lhe pedi que revertesse a vasectomia. Ele me alertou, como era
de rotina, para as possibilidades de a reversão não dar certo; nesse tipo de
cirurgia elas eram de vinte por cento. Não levei essa observação do médico
em conta, pois sempre achei que, quando se tratava de sorte, eu seria sempre
bafejado. E foi o que aconteceu dessa vez – só que ao contrário: o meu caso
foi parar não entre os oitenta por cento nos quais a vasectomia era revertida,
mas nos vinte em que isso não ocorria.
Portanto, eu nunca poderia ter filhos. Foi o que disse a Sílvia, depois
de deixar claro que por causa disso ela poderia romper o nosso noivado se o
quisesse. Mas, apaixonada por mim como estava, ela se mostrou compreensi-
va. Disse até que no futuro nós poderíamos pensar em adotar uma criança. Eu
não lhe neguei esta possibilidade. Mas pensei comigo mesmo: nunca seria
capaz de criar um filho que eu mesmo não tivesse feito.
Claro, talvez por causa dessa minha impossibilidade, tive que fazer ao
meu amor concessões que antes considerava impossíveis. Uma delas foi me
expor de um modo como até então nunca fizera. Eu já disse o quanto evitava
qualquer contato com a mídia. Sabia que esta, quando afinal tinha acesso a
alguém que lhe interessava, nunca mais ficava satisfeita, queria descobrir
mais a respeito dessa pessoa, ter sempre mais e mais notícias.
Comigo não foi diferente. Em pouco tempo já havia jornalista me tra-
tando com a intimidade de quem tivesse estudado comigo no colégio. Eu não
era mais “doutor” Marconi Ferraço, nem mesmo “senhor”, era “você” e “meu
chapa”. Isso me desagradava profundamente, mas alegrava o coração de Síl-
via, a qual, sempre que me via aceitar o tratamento de igual para igual de um
jornalista, elogiava minhas insuspeitadas qualidades de “democrata”.
E foi assim que, para fazer companhia à noiva – pois em poucos meses
já tínhamos assumido essa condição publicamente – passei a sair com ela e a
frequentar eventos. Não só o teatro, como também os restaurantes da moda,
um bar ou outro, e até festas RVSP a cujos convites ela respondia sempre
afirmativamente. Foi numa delas que um conhecido jornalista de tevê nos
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filmou juntos, e depois colocou as imagens no ar em seu programa - identifi-


cando-me como o “poderoso empresário Marconi Ferraço, um dos barões da
construção civil na Barra da Tijuca”.
Foi essa a minha perdição, como soube depois, quando Maria Paula,
em pleno dia do meu casamento com Sílvia, bateu à minha porta. Era impos-
sível uma pessoa comum me reconhecer, pois meu rosto e minhas atitudes
tinham mudado completamente. Mesmo assim eu sempre achava que se
Hermógenes fosse vivo e algum dia nós nos cruzássemos de novo ele me
identificaria na hora, e na certa me chamaria de “garoto pidão”, como me
apelidara nos primeiros anos em que deambulamos juntos. Mas se eu sempre
temera que esse encontro com Hermógenes acontecesse, nunca imaginara
que um dia poderia acontecer com Maria Paula.
Assim, quando ela bateu em minha porta e eu a entrevi, ainda sendo
embarreirada por Bárbara Carreira, quase morri de susto. Minha “governan-
ta” pensou que aquela era alguma doida com a qual eu tinha tido alguma
aventura sem que ela soubesse, e lhe disse que sob nenhuma hipótese deixaria
que falasse comigo. Mas ficou paralisada quando Maria Paula, forçando a
passagem, disse com todas as letras: “ninguém vai me impedir de falar com o
meu marido!”
E então ela entrou na minha casa e, como eu estava bem ali a escutar,
na mesma hora ficamos frente a frente. Ela me chamou de Adalberto e, já em
prantos, perguntou por que eu lhe tinha feito aquilo. Eu lhe disse que não me
chamava “Adalberto” e sim Marconi, nunca a tinha visto antes em toda a mi-
nha vida e que, se ela não fosse embora dali eu não teria outra saída senão
chamar a polícia. Mas ela não se impressionou com isso e lá ficou, sempre a
chorar e a relembrar nossa história com suas frases entrecortadas, até o ponto
em que dona Branca chegou e, mesmo sem entender nada, percebeu o tama-
nho do escândalo.
E então, como uma pequena onda que nasceu lá no meio do oceano, e
enquanto rolava em direção à praia cresceu até se mostrar disposta a engolfar
tudo, aquela visita inesperada tornou-se um fator tão importante no decorrer
daquele dia que afinal a própria Sílvia recuou e, aconselhada pela mãe, deci-
diu que, pelo menos por enquanto, não casaria comigo.

A certa altura, quando isso já parecia impossível, eu consegui conter


Maria Paula, mediante a promessa de uma conversa posterior sobre suas rei-
vindicações que, para acalmar as pessoas que me rodeavam, eu tachava de
loucas. Assim evitei que sua história se espalhasse. De todo modo, para as
centenas de convidados o cancelamento da cerimônia de casamento, ainda
mais dessa forma, sem maiores explicações, transformou-se num enorme es-
cândalo.
53

Durante o decorrer dos acontecimentos dona Branca ficara completa-


mente histérica, pois, depois de perder o marido naquelas circunstâncias no
mínimo constrangedoras, por minha causa estava prestes a ser novamente
ridicularizada. Para Sílvia o escândalo não tinha tanta importância; mas, co-
mo ela deixou bem claro, se a história daquela mulher que dizia ser casada
comigo fosse verdadeira ela jamais me perdoria por ter mentido. Já Maria
Paula não fazia por menos: antes de ir embora, por conta da minha promessa
de procurá-la no dia seguinte no hotel onde se hospedara, disse que não recu-
aria um milímetro na sua decisão de ter de volta tudo o que eu lhe roubara, e
para isso não hesitaria em me denunciar à polícia.
Ou seja: eu estaria perdido, não fosse o fato de que Maria Paula não ti-
nha como provar que eu era quem ela pensava. O cidadão Adalberto Rangel
fora alguém que eu inventara com a ajuda de documentação falsa e, portanto,
nunca existira. Além disso, como expliquei a Bárbara Carreira, para quem
afinal abrira o jogo, eu tinha certeza que não deixara o menor rastro. Nem
mesmo se tivesse uma fotografia ela poderia me identificar, pois as cirurgias
plásticas tinham mudado totalmente a minha cara.
Nesse caso, Bárbara me perguntou, como a outra me reconhecera? A
própria Maria Paula me explicou depois, quando lhe pedi que me dissesse de
que modo chegou à conclusão que eu era esse tal de “Adalberto Rangel”. Ela
respondeu que foi por causa de um certo trejeito meu que eu não perdera. Se-
gundo ela, depois que tudo passou, sempre que pensava em mim se lembrava
de alguma coisa estranha que, sem dar maior importância, havia percebido
em mim naquela época: o modo como eu baixava a cabeça tentando esconder
o rosto, enquanto continuava a observar tudo em torno com os olhos semicer-
rados:
“Um jeito esquivo, de quem não quer se mostrar claramente porque
tem algum tipo de medo”, ela explicou: “se você vir o tape do programa vai
concordar comigo – você fez isso várias vezes durante aquela festa”.
Quando ela me disse isso nós estávamos no seu hotel, a meio da con-
versa que eu tinha lhe prometido; e eu já havia decidido que, se ela insistisse
em repetir sua história, eu daria um jeito de mandar interná-la num hospício,
pois não seria difícil conseguir que algum médico de minhas relações lhe
desse um atestado de louca. Mas antes de deixar isso bem claro tentei ser pelo
menos razoável. E comentei que, mesmo sendo eu o tal sujeito - o que sob
nenhuma hipótese poderia ser verdade -, o modo como ela me reconhecera
era subjetivo demais e, levando em conta que em nada mais eu e ele nos pa-
recíamos, ela não teria como prová-lo:
“Aos olhos de todos você vai parecer uma oportunista disposta a tudo
na tentativa de arrancar de mim algum dinheiro, e nesse caso, segundo meus
advogados, eu não teria outra saída senão denunciá-la à polícia”.
54

Foi nesse ponto de nossa conversa que Maria Paula sorriu, do modo
como fazia quando éramos casados e ela me dizia o quanto estava feliz por
causa disso.
“Já ouviu falar em exame de DNA?” - ela me perguntou.
Eu respondi que “sim, é claro”, e também sorri, pois tinha certeza que
não deixara para trás nada que permitisse me identificar num teste desse tipo.
Mas ela desfez essa minha ilusão quando falou que tivera um filho:
“Eu estava grávida quando você roubou tudo o que era meu e sumiu no
mundo” – ela falou de um modo surpreendemente frio. – “Já que você então
não queria ter filhos, eu ainda estava tentando criar coragem para lhe dar a
notícia, mas não tive tempo de fazer isso, pois aconteceu aquilo. Ele se cha-
ma Renato, tem dez anos agora, e eu não preciso de mais do que um fio de
cabelo de cada um para provar tudo o que digo, inclusive que você e ele são
pai e filho”.

É claro que só me restava uma saída – denunciar a insanidade daquela


mulher que viera do nada para me fazer uma acusação tão grave, e me recusar
ao teste por considerá-lo uma tentativa de invasão da minha vida privada e
um absurdo. Meu advogado deixou claro que eu podia fazer isso sem maiores
consequências, pois não havia outro indício além da história sem o menor
sentido que ela contava que alguma vez nós tivéssemos nos conhecido. E
quanto ao teste de DNA a justiça não poderia me declarar pai da criança caso
eu me recusasse a fazê-lo, pois para tanto Maria Paula tinha como provar que
convivera comigo antes, condição necessária para que a lei me aceitasse co-
mo pai presuntivo.
E foi o que fiz, eu a denunciei como louca. Maria Paula era apenas a
promotora de vendas de um supermercado em São Paulo (que logo depois
desse encontro se mudou para o Rio). E por mais decidida que estivesse não
tinha como fazer frente ao meu poderio. Ainda mais porque, mesmo que con-
vocasse a população inteira de Passaredo a lhe servir de testemunha, ainda
assim não conseguiria provar que Adalberto Rangel e eu éramos o mesmo.
Assim, frustrada em seus intentos, mas parcialmente satisfeita por ter me re-
encontrado e com a certeza de que pelo menos eu sabia que ela tinha me
desmascarado, teve que desistir de sua causa e me deixar em paz.
E foi então, quando pensei que estava livre dela e tratei de refazer meu
noivado com Sílvia, que esse fato cresceu e se tornou importante demais para
que eu o deixasse de lado: eu, que não podia mais ter filhos, na verdade
tinha um filho. Eu pensava ter deixado tudo para trás, mas por causa dele
não conseguira apagar de todo o meu passado. Por conta desse filho esse pas-
sado me voltava agora, e era tão forte que não conseguia mais abafá-lo, fingir
que não o vivera como fazia antes.
55

Eu tinha uma história e me lembrava dela todas as noites quando esta-


va só e o tempo parecia longo demais para que, apenas com o meu presente e
as possibilidades do meu futuro, eu pudesse preenchê-lo. Eu tinha um filho.
Eu possuía um passado. E já não suportaria se tivesse que continuar até o fim
dos meus dias apagando tantas páginas da minha vida até transformá-la num
caderno em branco.
E então, quando este assunto se tornou uma obsessão e eu já não con-
seguia deixar de pensar nele um só instante, decidi que precisava conhecer
aquele filho, conviver com ele, mesmo que, sem confessar meu crime, não
pudesse reconhecê-lo. Por isso procurei Maria Paula e, sem assumir que era
Adalberto Rangel como ela afirmava, lhe disse que no fim de contas ficara
penalizado com sua história e estava disposto a ajudá-la e ao filho.
Mas ela não me deixou sequer ver aquele a quem, talvez com certa
ironia, dera o nome de Renato – que quer dizer: renascido. Talvez por perce-
ber o quanto eu agora ansiava por isso ela deixou claro que só o permitiria se
eu purgasse minhas culpas, ou seja: se aceitasse o fato de que era Adalberto
Rangel e pagasse por todos os erros que este cometera no passado.

Desde então Maria Paula me tem em suas mãos. Não me passa mais
pela cabeça que, a partir de agora, eu consiga viver plenamente algum dia de
minha vida sem conviver com este filho. Assim como não me passa pela ca-
beça que, antes de ter acesso a ele, possa pensar em adotar uma crinça embo-
ra eu esteja com Sílvia e ela asssim o queira.
Durante muitos anos eu vivi a mais cômoda de todas as vidas: aquela
que se baseia apenas no presente, está voltada para o futuro e prescinde to-
talmente de um passado. Até que descobri que isso, esse engodo que inventei
para mim mesmo, não era exatamente uma vida. Eu só tenho uma saída: lar-
gar tudo e mudar de identidade de novo, ou mergulhar de uma vez por todas
neste oceano de lembranças que reneguei – meu próprio passado. A essa altu-
ra já descobri que Maria Paula, embora diga que me odeia, na verdade me
ama. Mas não como Marconi Ferraço, e sim como Adalberto Rangel, esse
cuja história não posso assumir sem ter que pagar muito caro por isso.
Esse é o dilema que terei de resolver antes que minha história termine:
quem sou eu, afinal? Depois de ter vivido tantas outras vidas, terei forças pa-
ra afinal ser eu mesmo?

MARIA PAULA (2)


56

Quanto a mim, vou tocando minha vida para frente. Tenho um filho
querido, e também tenho amigos. Sou uma mulher que leva uma vida digna e
é independente, que pode muito bem prescindir do apoio e até do amor de um
homem. De vez em quando Júlia me pergunta: “e quanto a Adalberto Rangel,
ou Marconi Ferraço, ou como ele agora se chama?” Eu apenas sorrio, pois
não posso afirmar se ele tomará ou não a única decisão possível para mim,
que é a de pagar pelos seus erros. Mas enquanto isso eu e Renato ficaremos
esperando.
57

DRAMATIS PERSONAE

1, MARCONI FERRAÇO, ou ADALBERTO RANGEL, entre mui-


tos outros nomes. Trinta e seis anos, de uma elegância discreta. Muito bem
apessoado. Olhar de serpente que hipnotiza a vítima antes de dar o bote. Ges-
tos contidos, capaz de se comunicar apenas com o corpo mesmo em instantes
de extrema imobilidade. Seu perfil já foi traçado de forma claríssima por ele
próprio nos depoimentos que prestou acima. Aqui só vale a pena enfatizar
que tem duas vozes. A primeira, quando ainda é Adalberto Rangel, terá que
ser “criada” pelo ator, o qual, quando ele se transforma em Marconi Ferraço,
poderá então usar sua voz original. A mudança será atribuída pelo cirurgião
plástico às várias cirurgias que acabaram alterando a estrutura muscular de
sua boca.
É bom lembrar também que ele mantém aquele seu jeito esquivo apesar das
muitas mudanças, pois é graças a ele que Maria Paula acaba por reconhecê-
lo. Como está descrito no depoimento dela: “o modo como ele baixava a ca-
beça tentando esconder o rosto, enquanto continuava a observar tudo em tor-
no com os olhos semi-cerrados”. Trata-se de um jeito esquivo, típico de quem
deu muitos golpes ao longo de sua vida pregressa e acha que pode cruzar a
qualquer momento com uma de suas vítimas.

2, GABRIEL DUARTE, quarenta e dois anos, simpático, ótima forma


física por causa da luta de box, além de outros esportes que pratica numa
academia diariamente. Seu hobby principal é a Fórmula Um, sobre a qual
sabe tudo e da qual coleciona todo tipo de gadgets. Numa de suas histórias
recorrentes, fala de uma conversa que manteve certa vez com Nigel Mansell
no bar de um hotel em São Conrado. Tem a mania de se achar saudável, por
causa dos esportes, da vida familiar e da alimentação cuidadosamente balan-
ceada; mas a certa altura um exame de rotina vai mostrar que ele tem um
problema no coração e a qualquer momento pode sofrer um infarto. É o que
todos chamariam de “uma boa pessoa”, com todas as limitações que essa
classificação implica.
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Era funcionário de uma imobiliária quando Marconi o conheceu na Barra da


Tijuca, durante a compra do terreno destinado à construção do Condomínio
de Excelência Blue Lagoon. Este não chegou a ir além do projeto por causa
da favela que nasceu logo ao lado e não parou de crescer até hoje. De qual-
quer modo Gabriel, o corretor que conduziu as negociações junto a Marconi,
acabou lucrando com a transação, pois este gostou do seu jeito e o promoveu
a sócio minoritário de sua empresa.
Gabriel detém apenas cinco por cento da sociedade, e só está lá para que o
verdadeiro dono possa cumprir a lei que o impede de possuir uma empresa
sozinho. Mesmo assim sua admissão na MARCONI FERRAÇO – EMPRE-
ENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS mudou sua vida e ele, que até então era o
modesto morador de um prédio de apartamentos na Taquara, logo se mudou
junto com sua esposa Eva e os filhos Petrus e Ramona para um condomínio
de casas na Barra da Tijuca, onde todos passaram a se comportar no melhor
estilo das famílias emergentes.

3, MARIA EVA MONTEIRO DUARTE, mas por favor, sem o


“Maria” e o “Monteiro”, pois estes ela eliminou de sua vida para se chamar
apenas, como a outra mais famosa lá da Argentina, Eva – ou Evita – Duarte.
É assim que ela se apresenta, sempre esperando que o interlocutor faça algu-
ma alusão à sua homônima. Quando isso não acontece é ela quem lembra a
coincidência de nomes, mas acaba sempre se decepcionando, pois nem todos
sabem que “a outra”, mais conhecida como Eva Perón, também tinha o so-
brenome Duarte.
A nossa Eva é capaz de gastar horas tentando convencer as pessoas que a ro-
deiam a ver alguma coincidência mágica nessa história dos nomes, mas o
máximo que consegue é fazer com quem concluam que ela, obcecada pelo
tema como é, “está ficando doida”. De qualquer modo ela procura se parecer
com a outra no penteado, na maquilagem e até no modo de se vestir meio re-
tro, pois, por ser a Evita Duarte da Barra da Tijuca, se acha sempre o máxi-
mo.
Ela tem trinta e seis anos. É mesmo “doidinha” como murmuram às suas cos-
tas seus amigos e conhecidos. Seu sonho é ver Gabriel entrar para a política
lhe dando assim a chance de se tornar uma Evita Duarte “de verdade”. Mas
ele, que não tem a menor vocação para tal, não leva este seu desejo em conta,
embora trate de satisfazer todos os outros. Os dois se dão tão bem como é
possível entre pessoas casadas há mais de quinze anos, mas Eva, depois que
conheceu o poderoso Marconi Ferraço, passou a achar o marido um verdadei-
ro “banana”. De qualquer modo, ocupada com a sua imitação de Eva Perón, a
casa e os filhos, além de uma vida social intensíssima, e por depender do
“banana” e no fundo gostar dele, ela vai levando.
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4, PETRUS DUARTE, dezesseis anos, filho de Gabriel e Eva, tem um


segredo que o atormenta e que, se pudesse, levaria para o túmulo: tem vergo-
nha da mãe por causa dessa história de se achar uma espécie de reencarnação
de Eva Perón; acha-a ridícula. Em ambientes públicos foge dela como o dia-
bo costuma fugir da cruz, e em algumas ocasiões chega até a negar o paren-
tesco. É um garoto tímido e introvertido, talvez sério demais para a sua idade,
razão pela qual ganhou dos colegas de condomínio e escola um apelido que
abomina: ele é chamado de “Político”.
Ao contrário do pai, detesta esportes. É alérgico à areia da praia, o que pro-
voca espanto até mesmo nos médicos especializados. Tem o que sua mãe
chama de “um carma” – a sua capacidade de provocar o interesse das meni-
nas mais feias. Isso só vai mudar quando ele conhecer Andréa Bijou, candi-
data a madrinha de bateria da Escola de Samba Nascidos da Mangueirinha e
protegida de Waterloo de Sousa, o chefe da segurança de Marconi Ferraço. E
então, antes mesmo de descobrir em circunstâncias bastante inusitadas que o
sentimento é recíproco, vai se apaixonar perdidamente por ela.

4, RAMONA DUARTE, quinze anos, filha de Gabriel e Eva, irmã de


Petrus. Como sua mãe diz com certo desdém, ela só pensa “naquilo”. E no
caso, “aquilo” é a educação - são os estudos. Quando se trata de aprender,
Ramona é uma verdadeira predadora. Sua voracidade é tanta que ela já sabe
muito mais que seus colegas de classe e, em matéria de conhecimentos ge-
rais, quase tanto quanto a maioria dos adultos inteligentes com os quais préfe-
re conviver em vez dos “pirralhos”.
Na mãe, cuja cultura não vai além da leitura de revistas semanais sobre cele-
bridades, ela dá verdadeiros esbregues, um deles quando ela confessa não
saber quem é aquele famoso cientista que anda numa cadeira especial por
sofrer de esclerose múltipla, e cujo nome até mesmo o autor dessas mal tra-
çadas linhas não lembra nesse instante.
O pai tem muito orgulho dela, e costuma dizer que Ramona nasceu para ser
um gênio. Mas Eva, ao contrário, acha que ela devia estudar menos, ou então
se dedicar apenas as matérias que a levarão a conseguir um bom marido. Ra-
mona é daquelas que - “só pra ver como é” - resolve fazer vestibular antes
mesmo de ter terminado o segundo grau e, para desespero da burocracia da
universidade, acaba passando.

5, BÁRBARA CARREIRA está presente nas três fases da novela.


Idade indefinida, mas sabe-se que foi ela quem tirou a virgindade do Garoto
Pidão quando este ainda nem completara dezesseis anos. Foi prostituta duran-
te anos, depois gerente de uma casa de massagens e, portanto, atuou no assim
chamado metier durante a maior parte de sua vida. Sempre foi muito malan-
dra, mas por conta de suas novas funções na vida de Marconi Ferraço há al-
60

guns anos aprendeu a ser contida. É daquelas que, de tanto ter rivais mulhe-
res, já não se deixa enganar por elas, pois conhece todos os seus truques. Dos
homens ela finge que não sabe - não porque isso seja verdade, mas porque na
sua opinião este é o melhor jeito de mantê-los sob controle.
Marconi está nas suas mãos e sabe disso, pois é Bárbara a guardiã de todos os
seus segredos. Mas mesmo nas circunstâncias mais adversas ela preferiria
morrer a ter que traí-lo. Não é apaixonada por ele, nem se sente sua mãe, mas
apenas uma grande, enorme e fiel amiga. É bonitona até hoje e, quando não
está imbuída do seu papel de governanta daquele homem poderoso, pode ser
quase tão extrovertida quanto uma viúva italiana daquelas dos filmes de Vit-
torio de Sica.
É séria como só sabem sê-lo as mulheres que um dia foram prostitutas. Não
admite o menor sinal de descaso ou falta de respeito. É a mais conservadora
de todas as mães em sua relação com Heraldo e Fernanda, os dois filhos. Fará
tudo o que Marconi quiser (ou mandar) para impedir que ele sofra ou caia em
desgraça. Se tem uma vida pessoal? Tem sim, mas sobre isso não valos falar
agora, pois se trata de outro assunto. Só podemos adiantar que fatos surpre-
endentes de sua vida virão à tona quando aparecer na nossa história uma certa
caftina chamada ZENILDA, vinda diretamente de Greenville, onde aconte-
ceu uma certa história à qual se deu o nome de A INDOMADA. Mas essa era
outra novela.

6, HERALDO CARREIRA, 27 anos, o filho mais velho de Bárbara.


Avesso aos estudos e ao trabalho, sempre viveu à custa da mãe que, quando
se dá ao luxo de desabafar a respeito, o considera “mais um cafetão em sua
vida”. Boa pinta. É sempre assediado por supostas namoradas, mas, embora
não as rejeite, nunca se dedica para valer a nenhuma delas, não porque não
goste, mas por preguiça.
Depois de relutar muito, e graças a um ultimato da mãe, que ameaça expulsa-
lo de casa, ele acaba aceitando um emprego de garçon no “Rei dos Mares”,
um restaurante especializado em bacalhau ali perto do Projac, no qual ele vai
conhecer ao mesmo tempo Dália Mendes e Bernardinho da Conceição, duas
pessoas que vão interferir profundamente em sua vida.

7, FERNANDA CARREIRA, 25 anos, a filha mais nova de Bárbara


e o oposto do irmão. Embora tenha interrompido os estudos por causa disso,
trabalha desde os quinze anos e, mesmo morando com a mãe, leva uma vida
independente. Agora trabalha num shopping da Barra da Tijuca, numa ótica
na qual, depois de um curso intensivo, se tornou uma das especialistas. Já foi
noiva duas vezes, mas a meio do caminho rumo ao casamento, como disse à
mãe depois de ter desmanchado os noivados, “se desinteressou”.
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Tem poucas amigas fora do trabalho, é muito caseira e talvez, como Bárbara
já andou murmurando a seu respeito, estivesse reservada apenas para ser “ti-
tia”, não fosse o fato de que um certo mau caráter chamado Benoliel, irmão
do Bernardinho de que falamos no perfil do seu irmão logo acima, vai surgir
e derrubar com os dois pés todas as barreiras de proteção que cercam a sua
vida.

8, DÉBORA VIEIRA, 22 aninhos, é a namorada de Marconi Ferraço


quando a história chega ao presente. Um quindim, um doce com cobertura de
silicone em todos os lugares estratégicos. Finge ter um cérebro de esquilo
dentro de uma cabeça emoldurada por fartos cabelos louros, mas na verdade
é muito inteligente, e usa essa inteligência para alcançar um único objetivo:
um marido rico. Da mesma forma que pensou a respeito dos namorados ante-
riores igualmente ricos, também acha que o seu atual pode ser o escolhido.
Assim, faz de tudo para seduzi-lo. E quando conclui que ele nunca vai cair
em suas garras de livre e espontânea vontade, resolve apelar para uma arma
que os tempos atuais comprovaram ser infalível: deixa de tomar precauções
na tentativa de engravidar dele.
O que ela não sabe é que sua possível vítima, por conta de uma vasectomia
feita no passado não pode ter filhos, embora este seja mais um dos seus se-
gredos. E que mesmo sem correr o risco, quando ele descobrir via Bárbara
Carreira que a pobrezinha da Débora está fazendo jogo sujo tratará de expul-
sá-la de sua vida.

9, PAULO DE QUEIROZ BARRETO, 55 anos. Um “emérito


causídico”, como às vezes o chama algumas colunas de jornais especializadas
em Direito. Advogado formado com muitos méritos na Faculdade Nacional,
sócio-majoritário de um escritório de grande prestígio. É aquele que enfrenta
– e quase sempre ganha – as ações mais intricadas pelas quais se vêem amea-
çadas as empresas em cujo nome atua. Uma delas é a Marconi Ferraço – Em-
preendimentos Imobiliários, cujo proprietário linhas acima traçou melhor que
ninguém um retrato justo e fiel do seu advogado – senão vejamos:
“Cinquentão, amante dos conhaques e dos charutos, viciado em pô-
quer, dado aos garotos, mas no mais absoluto segredo... Cheio de defeitos,
portanto; porém uma verdadeira fera quando se trata de enveredar pelos me-
adros obscuros do Direito. Por mais clara que a Lei seja, diz ele, tem sempre
um “mas” – uma vírgula mal posta, ou uma crase desencaminhada e sórdida -
que nos permitirá driblá-la. E ele é mestre em descobrir este “mas” e fazer
dele o uso que melhor apraz ao seu cliente”.
Portanto, quando alguém chama o dr. Barreto de “emérito causídico”
não se pode dizer que isso seja apenas “força de expressão”, já que ele é,
mais que à família e suas preferências menos claras, inteiramente devotado
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ao que chama de “Direito livre e pleno”, ou seja: o interesse dos que o contra-
tam.

10, GUINEVÈRE DE QUEIROZ BARRETO. Cinco anos mais


velha que o marido. Uma santa senhora, de acordo com a opinião de todos
que privam de sua intimidade. E seria mesmo, não fosse o fato de que é um
tanto dado à fofoca. Às vezes apenas deduz alguma coisa, e então se dá ao
luxo de exercitar este seu defeito mesmo sem provas. Seu marido, nessas
ocasiões, trata de alerta-la para a existência daquelas três senhoras vetustas
que, como verdadeiras cariátides, sustentam um dos umbrais do Direito - as
donas Infâmia, Difamação e Calunia: dona Guinevère, com suas fofocas nem
sempre verdadeiras a respeito dos outros, de vez em quando se expõe de mo-
do perigoso à atuação delas.
Mas, embora às vezes exagere, ela é quase sempre apenas engraçada. E tem
uma relação bastante peculiar com o marido. Eles são muito mais irmãos que
mulher e marido, sempre o foram, mesmo nos primeiros anos do casamento.
Já então encaravam o sexo como uma obrigação cansativa e tediosa, um
compromisso conjugal no qual não viam a menor graça. Mesmo assim, talvez
porque as convenções o esperavam, tiveram dois filhos. Por causa deles, dona
Guinevère agora sonha com netos. Mas, quando sua filha Júlia lhe der um,
por causa do seu namoro com certo Evilásio Caó sobre o qual já se falou an-
tes, a vetusta senhora desejará em segredo que aquela pobre criança nem ti-
vesse nascido.

11, PAULO DE QUEIROZ BARRETO FILHO, o BARRE-


TINHO. Vinte e oito anos. Advogado. Também se formou na Faculdade Na-
cional, embora digam as más línguas que foi o pai quem lhe conseguiu o di-
ploma, graças ao seu prestígio. Trabalha no escritório do qual será o principal
herdeiro, mas por ordens expressas do Dr. Barreto passa sempre ao largo das
grandes causas. Pois tanto nos meandros do Direito como na própria vida
comporta-se de modo destrambelhado, a ponto de merecer dos que o rodeiam
o apelido pouco lisonjeiro de “Barretinho Toupeira”.
No mais, é uma boa pessoa. Gosta de se divertir, mas sempre em coisas que
não lhe peçam maiores esforços mentais, pois estes o deixam sempre cansado
e com dor de cabeça. Adora uma top model, e é isso que a certa altura o
aproximará de Débora Vieira, de quem ficará noivo, e cuja vida pregressa
será motivo de mais dores de cabeça para a coitada de dona Guinevère.

12, JÚLIA DE QUEIROZ BARRETO, vinte e três anos. Linda e


meiga. Ao contrário do irmão, é inteligente, ativa e safa. Mas ainda não se
achou na vida, como deixa claro Marconi Ferraço quando fala a seu respeito
algumas linhas acima: “meio assistente de produção numa produtora de fil-
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mes, meio chefe de cozinha, e nem uma coisa nem outra”. Ela vai conhecer
um rapaz chamado Evilásio Caó, filho do velho marceneiro Misael Caó, mo-
rador da Comunidade da Mangueirinha e lugar-tenente de Juvenal Antena
durante as filmagens de um documentário sobre a favela em questão financi-
ado pelo Sundace Institute.
As filmagens serão bastante conturbadas, e a relação entre Júlia e Evilásio
passará do campo profissional para o pessoal, o que deixará Juvenal Antena
muito preocupado, pois ele, sábio como é, prevê que este Romeu e Julieta
inter-racial e inter-classes vai dar muito pano para as mangas, ainda mais
quando Júlia, para desespero da coitada de dona Guinèvere que tanto deseja-
va um neto, engravidar e tiver um filho negro.

13, EDUARDO MONTEIRO, o DUDA. Vinte e sete anos. Filho da


irmã mais velha e já falecida de Eva Duarte, de quem é o sobrinho preferido,
entre outras coisas por ser bonitão (já foi modelo e candidato a ator) e ter uma
sensibilidade que acabou por direcioná-lo para o ramo artístico – ele agora é
diretor de documentários. Já fez um deles, bastante elogiado, sobre a luta dos
preservacionistas para proteger os micos leões dourados e garantir a sobrevi-
vência da espécie na reserva de Poço das Antas. Graças a este trabalho con-
seguiu o financiamento do Sundance Institute para o trabalho bastante polê-
mico que agora realiza sobre a luta de algumas “comunidades” (segundo ele
o eufemismo politicamente correto com o qual se designa atualmente as fave-
las) para se ver livres dos traficantes de drogas.

14, BRANCA MARIA BARRETO DE MORAES. Seu perfil


também já foi esboçado com extrema clareza no depoimento dado por ela
própria linhas acima. Quanto à idade está perto daquela fronteira indefinida
entre os 40 e os 50 anos. É uma aristocrata, e talvez por isso o seu marido
tenha se dividido durante anos entre ela e a popular dona Célia Mara.

15, JOÃO PEDRO PESSOA DE MORAES. “João” para dona


Branca, “Joca” para dona Célia Mara, as duas mulheres com as quais ele se
dividiu ao longo de sua vida. Uma espécie de “Seu Flor e suas Duas Espo-
sas”. Um homem supostamente sério, sempre preocupado com os temas mis
candentes da vida nacional, um educador, receptáculo de uma cultura alta-
mente sofisticada... E ao mesmo tempo um cidadão afeito a prazeres simpló-
rios como ir, com sua amante de educação apenas mediana, a um circo de
décima categoria no alçapão da Praça Onze. Mas dele se sabe apenas o que
os outros comentam, pois antes de morrer tragicamente só vai aparecer em
dois capítulos.
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16, MARIA SÍLVIA PESSOA DE MORAES BARRETO,


vinte e seis anos, filha de dona Branca e João Pedro. Seu pai, mesmo pos-
suindo uma universidade no Brasil, fez questão que a filha fosse estudar na
Suíça. E isso diz tudo sobre a opinião dele em relação à qualidade do ensino
que seus professores ministravam.
Sofisticada, lindinha, um tanto alienada do Brasil, já que está fora do país a
muitos anos, ela vai sofrer um verdadeiro choque cultural quando voltar ao
Rio de Janeiro, mesmo indo morar na Barra. Sua difícil adaptação ao dia-a-
dia violento da cidade será motivo de muitos traumas. Já na chegada será re-
cepcionada, na saída do aeroporto e a caminho de casa, por um bando de mal-
feitores armados de fuzis AR-15, os quais não estarão lá para lhe dizer “well-
come” e sim para assaltá-la.
A impressão de decadência que a cidade lhe passa, a sujeira, a falta de educa-
ção e de roupa dos seus moradores, a informalidade absoluta predominante
até mesmo entre as pessoas estabelecidas: tudo isso lhe causará uma profunda
espécie. Sílvia chega à conclusão de que, após sete anos de Suíça gélida e
civilizada, precisa fazer um curso intensivo de Brasil, ou não se adaptará de
novo à sua pátria.
O pior é que, por conta de tudo o que vê e reprova, ela se sente ameaçada.
Talvez por isso, após conhecer Marconi Ferraço, veja em sua figura firme e
poderosa uma espécie de escudo ou armadura contra a violência. Neste Brasil
de agora onde tudo é excessivo e operístico, ela acaba fascinada pelo minima-
lismo daquele homem de quem logo ficará noiva.
Sua profissão? Nenhuma, já que durante a “saison” na Suíça dedicou-se ao
estudo da museologia, matéria que não tem a menor serventia numa nação de
pouca memória como a nossa. Vai descobrir, entre os guardados (e esqueci-
dos) deixados pelo pai, uma prodigiosa coleção de fotografias da Avenida
Central (a Avenida Rio Branco de agora), uma obra prima arquitetônica que
foi feita para durar quinhentos anos, mas - graças ao estranho contubérnio
entre os empresários da construção civil, figuras representativas da burocracia
estatal e arquitetos de esquerda - sobreviveu apenas trinta antes de ser total-
mente derrubada. E então se ocupará com a edição de um livro bastante po-
lêmico sobre essa jóia perdida.

17, HERIBERTO GONÇALVES, 50 anos. Na Universidade Pes-


soa de Moraes ele chefia o Departamento de Física, já que é professor dessa
matéria. Mas há muitos anos não exerce o assim chamado magistério. É um
conspirador nato. Preterido na eleição para presidente do Conselho Adminis-
trativo da Universidade depois que dona Branca ameaçou armar um escânda-
lo e conseguiu ser indicada para o posto, o Professor Heriberto só tem um
objetivo na vida: descobrir um jeito de derrubar aquela a quem ele chama de
“a viúva negra”.
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É famoso pelo estranho cheiro de metal que o seu corpo exala, o qual faz com
que sua passagem recente por um local seja sempre detectada. Em qualquer
ambiente é o agente desagregador. E assume essa postura de um modo tão
descarado que já virou até piada. Será o grande opositor de Francisco Maciei-
ra, quando este chegar à Universidade e tratar de por em prática suas idéias
revolucionárias.

18, FRANCISCO MACIEIRA, cinqüenta e poucos anos, conserva-


díssimo, o charme em pessoa. Ao contrário de Heriberto ele não tem nenhum
cheiro característico, mas por sua presença magnética todos percebem quan-
do chega. Embora seja um homem sofisticado, é capaz de transitar pelos am-
bientes mais populares e se sentir muito à vontade. Seus encontros com Juve-
nal Antena e o deputado Narciso Tellermann - em geral em torno de uma me-
sa servida com farta comida nordestina preparada pela incansável dona Gui-
gui, a vice-presidente da Associação de Moradores da Comunidade da Man-
gueirinha – serão sempre pretexto para que os três ministrem aos telespecta-
dores verdadeiras lições de vida.
Não se falara mais dele aqui, já que ele próprio se apresentou num depoimen-
to linhas acima. Vale a pena acrescentar apenas que, sábio como é, mesmo
assim ele terá muito que aprender com a popular e pragmática dona Célia
Mara.

19, WATERLOO DE SOUSA, quarenta e oito anos. Ex-Polícia Mi-


litar ou ex-bombeiro: ninguém sabe ao certo - além do fato de que ele foi ex-
pulso de uma dessas corporações -, pois este homem sinistro faz questão de
manter no obscuro território da lenda os dados principais de sua vida pregres-
sa. É casado, embora não alardeie isso, primeiro porque se envergonha de sua
esposa, a senhora dona Áurea, que sempre teve sérios problemas de peso e
agora é obesa. E segundo porque as dúvidas sobre o seu estado civil facilitam
suas conquistas no ambiente das empregadas domésticas do condomínio onde
mora Marconi Ferraço, para quem exerce as funções de chefe de segurança.
Sobre a mais recente dessas conquistas, uma senhorinha que atende pelo no-
me de Andréia Bijou, falaremos mais adiante.
Waterloo é mau e jamais perde uma chance de demonstrar isso, pois adora
sê-lo. Não tem a menor dúvida de que sua única função na vida é ser perver-
so. Foi para isso que veio ao mundo – para se especializar na profissão de
justiceiro. Claro, tem essa preferência pelas moças de origem humilde, e ela
às vezes o deixa em desvantagem em relação aos colegas que disputam com
ele o campeonato carioca de maldades. Mas a felicidade que sente quando
tem o privilégio de bancar uma delas (e receber seus favores amorosos em
troca) compensa qualquer perigo.
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É um verdadeiro cão, fiel até à morte àquele que o paga. Mesmo assim teve
patrões a quem odiou, embora sempre fizesse sem qualquer questionamento
tudo o que eles mandavam. Já de Marconi Ferraço, se este não fosse um sen-
timento pouco apropriado ao seu comportamento viril, se poderia dizer que
Waterloo o adora. Este é - como ele diz aos seus subalternos quando os acon-
selha a não fazer nenhuma crocodilagem com o chefe - “um patrão pra toda a
vida”.
Waterloo já matou muita gente, e matará de novo se for necessário, pois não
sente nenhum remorso quanto a isso.

20, ANDRÉIA BIJOU, dezoito aninhos. Tem a cor da pele depurada


por quatrocentos anos de mistura, e é uma daquelas mulatas douradas, que só
existem no Brasil (ao natural) e nos Estados Unidos (depois de devidamente
“rebocadas” com as bases fabricadas pela Revlon – vide Beyoncé). Linda,
perfeita de corpo, mas muito simpleszinha de cabeça, foi a escolhida por Ju-
venal Antena para ser a madrinha de bateria da Escola de Samba Nascidos na
Mangueirinha. Trabalha de copeira e “atendente de porta” na casa de dona
Branca e, quando Sílvia chegar, cairá em suas boas graças e então as duas se
tornarão amigas.
É o atual objeto de desejo do sinistro Waterloo de Sousa, de quem recebe
muitos presentes, mas a quem até agora não deu NADA. Não precisa de mui-
to mais, além de sambar diante dele, para deixá-lo louco – a Waterloo e a to-
dos os homens. Juvenal Antena, que dentre eles é o mais contido, costuma
dizer que Andréia não é uma mulher, é um poço cheio até a borda de encren-
cas. Sempre que ouve isso ela diz, com um jeito bem infantil: “ah, seu Juve-
nal, que exagero”... E qualquer homem que a escute dizer isso ameaça subir
pelas paredes.
Andréia é sobrinha de Dona Setembrina, a mãe-de-santo da comunidade, a
qual não perde a esperança de transformá-la em sua sucessora, embora deixe
bem claro que para isso ela teria que dar uma virada radical em sua vida. An-
dréia, como faz em relação às propostas de Waterloo, também não descarta
essa possibilidade, pois sua “simplicidade de cabeça” não a impede de sazber
que uma moça como ela tem que deixar todas as portas abertas.
A certa altura ela vai se envolver com Petrus, dois anos mais novo que ela, o
filho de Gabriel e Evita.

21, EZEQUIEL DOS SANTOS, 28 anos, filho de Dona Setembrina,


motorista de Marconi Ferraço. Talvez por conta de sua forma muito especial
de esquizofrenia (é filho de uma mãe-de-santo, mas se tornou pentecostal),
começa a ter visões (ou premonições) em relação ao patrão que o tempo pro-
va serem verdadeiras. Isso vai lhe causar muitos dramas. Deve revelar o que
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prevê ou guardar segredo mesmo sabendo que o patrão está prestes a passar
por alguma provação, ou até sofrer uma desgraça?
Não está de todo descartada a possibilidade de que esses “poderes” de Eze-
quiel evoluam de tal forma que ele passe a fazer milagres. É um personagem
que está sempre no limite da insanidade e sabe disso. Portanto, com sua Bí-
blia sempre à mão, é um sujeito muito atormentado.

22, DONA SETEMBRINA DOS SANTOS, idade indefinida,


afro-descendente e zelosa guardiã da cultura do seu povo. É daquelas mães-
de-santo que mantém o seu terreiro “no mato”, como exigiam os antigos pre-
ceitos. Não cobra pelas consultas e conselhos, mas recebe doações que repas-
sa para a Associação Comunitária, a quem encarrega de distribuí-las com os
moradores mais carentes da favela.
Mãe Setembrina tem o maior respeito por Juvenal Antena, pois sabe que nu-
ma comunidade pober como aquela, na qual o Estado é alheio e ausente, é
necessário que exista alguém com disposição e capacidade para dar um mí-
nimo de organização à desordem. Por vezes ela acha que ele exagera em suas
decisões e atitudes, e então não hesita em ir até a Associação de Moradores
exigir que “tome juízo”.
Como Juvenal, ela é uma líder natural, mas está mais preocupada com a saú-
de espiritual do seu povo. Nos últimos tempos vê com tristeza que um núme-
ro cada vez maior de pessoas procura outros templos, deixando assim de fre-
qüentar o seu terreiro. De todos o que lhe deu maior desgosto foi Ezequiel, o
seu próprio filho. “Nossa fé está morrendo” – ela diz em seus momentos de
desânimo. Mesmo assim não desiste de continuar seguindo os preceitos, pois
ser uma sacerdotisa não foi uma escolha para Dona Setembrina: é o seu des-
tino, anunciado pelo jogo de búzios quando ela não tinha sequer nascido.

23, JOSÉ CARLOS DOS SANTOS, o ZÉ DAS COUVES.


Trinta e quatro anos, filho mais velho de Dona Setembrina. Feirante, alcóola-
tra e pagodeiro. Faz entrega numa velha Kombi, dentro da qual, após suas
bebedeiras monumentais, quase sempre dorme. Tem um amigo fiel e insepa-
rável, um cão que atende pelo nome puro e simples de sua espécie – ele é o
CACHORRO. Os dois são famosos no pedaço e motivo de piadas, mas só
uma delas faz Zé das Couves perder a compostura: é quando alguém comenta
que Cachorro, como o dono, também consome umas e outras. Pois seu ani-
mal de estimação, como ele costuma dizer aos que gostam de brincar com o
tema, “graças a Deus é abstêmio”.
Zé já foi internado em várias clínicas por causa do vício, mas nunca ficou
muito tempo em nenhuma delas, pois sente falta de seu companheiro insepa-
rável, o Cachorro. Quanto a este, como sua entrada nestes locais nunca é
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permitida, ele permanece à porta, sem arredar um passo até que o dono saia
de lá e o leve embora. Menos falta Zé das Couves sente de Amélia, sua com-
panheira, a quem ele chama de “a verdadeira mulher de verdade”, por ser a
única sobre a face da terra capaz de “agüentar sua barra”; por mais que Zé
das Couves beba, ela está sempre firme do seu lado. E quando a crise se abate
sobre ele, embora prefira a companhia de Cachorro, é ela quem cuida dele e o
ampara.
Nos intervalos entre uma queda e outra Zé perpetra seus sambas. E por causa
deles tudo mudará em sua vida. Pois ele será descoberto por um produtor mu-
sical chamado Mariozinho Rocha e, não só por causa do seu talento, mas
também por suas características altamente populares, acabará se tornando
uma espécie de mito da periferia, e assim ficará famoso.

24, AMÉLIA DOS SANTOS, 38 anos, mulher de Zé das Couves, “a


paraibinha” como ele a chama. Ama de paixão aquele homem, mas nem por
isso lhe dá nenhuma colher de chá: trata-o como ele merece, com muitos cui-
dados, mas sem nenhuma pena. Sabe que o alcoolismo dele é uma doença
incurável que, se bem administrada, pode se manter sob controle. Tenta aju-
da-lo a atingir esse estágio, mas sem dar muita bandeira.
É discreta, mas é também obstinada ou, como diz o Zé, “danada de teimosa”.
É nos raros momentos em que ele está suficientemente são para ser carinhoso
com ela, a “dona Encrenca”. É aquela mulher que resolveu se dedicar a um
homem, mas descobriu que este precisava não de carinho, e sim de ajuda. E
então não pensou duas vezes e foi em frente. Essa Amélia faria a outra, a “de
verdade” da canção, se sentir egoísta. Em nenhum momento ela deixará de
sustentar Zé das Couves com a força do seu espírito inquebrantável.

25, MARIA PAULA FONSECA DO NASCIMENTO, de-


zoito anos no passado, vinte e oito anos no presente. É a nossa heroína. Nessa
história onde o protagonista é um anti-herói, um vilão destinado à redenção
suprema (a purgação dos seus pecados), ela é aquela que levará pela mão to-
dos os telespectadores. Sua luta será a travessia rumo à realização e à felici-
dade destinada aos heróis em toda novela.
Primeiro uma menina ingênua, depois uma mulher íntegra, batalhadora e
muito corajosa, inflexível na sua determinação de fazer com que Marconi
Ferraço (a quem - diga-se já – a certa altura ela descobre que ainda ama) res-
ponda pelos seus crimes, pois este para ela é o único caminho através do qual
ele poderá tê-la de novo e também ao próprio filho.
Seu perfil já foi traçado por ela mesma de modo muito claro em depoimento
linhas acima. Ele demonstra à perfeição o seu inegável status de heroína, e
por isso não precisamos aqui voltar ao tema.
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26, RENATO FONSECA DO NASCIMENTO, dez anos, filho


de Maria Paula com Adalberto Rangel, que depois se tornou Marconi Ferra-
ço. É um menino saudável, mas introvertido, pois já percebeu, por causa de
conversas entre a mãe e Luciana entreouvidas por ele, que existe um segredo
em sua vida. Suas freqüentes perguntas sobre o pai têm a ver com isso, mas a
todas elas a mãe responde do mesmo modo: ele foi embora, e não é provável
que algum dia volte. O problema é que este pai misterioso vai voltar um dia e
se apresentar como tal a Renato. E será um problema se o menino aceita-lo,
mesmo que a mãe lhe diga para não fazer isso.

27, LUCIANA NEGROPONTE, trinta anos, desde a infância ami-


ga fiel de Maria Paula já que, filha de uma empregada de sua casa, foi com
ela criada. Quando esta resolveu se mudar para São Paulo, não hesitou em ir
embora com ela. Desde então estão sempre juntas. Luciana conheceu Ítalo
Negroponte, casou com ele e teve dois filhos, Sofia e Leone. Maria Paula é
madrinha da primeira, assim como Luciana é madrinha de Renato, o seu fi-
lho.
Dona de profundo senso prático é aquela que descomplica tudo e para todo
problema encontra uma solução, mesmo que esta nem sempre seja aplicável.
É uma boa alma, uma mulher que adora sua vida simples e não abriria mão
dela por nenhum outro tipo de vida. Peça importante na dura travessia de Ma-
ria Paula, com seu modo sempre solidário ela ajuda a amiga a manter o pró-
prio equilíbrio mesmo nos momentos mais difíceis.

28, ÍTALO NEGROPONTE, trinta e cinco anos, marido de Luciana


e pai de Sofia e Leone. Paulista da Mooca daqueles de sotaque “italianado”,
torcedor do Juventus e amante de um “chops”... Mas só nos fins de semana
quando está em casa e pode curtir com a família, pois nos dias úteis ele traba-
lha no Rio de Janeiro, numa multinacional para a qual aluga seus profundos
conhecimentos de informática.
No seu ramo profissional ele é um craque cujo passe é muito disputado. Mas
não suporta a linguagem cifrada que se usa neste ramo de atividade, ainda
mais aquela que vem ganhando espaço cada vez maior nos “sites” de conver-
sa nos quais, segundo ele, a língua portuguesa está sendo substituída “por um
simples arremedo”. Ítalo faz questão que seus filhos aprendam corretamente a
língua antes de poder desvirtuá-la. Mas sabe que esta pode ser uma batalha
perdida: “se tudo continuar como está”, ele prevê, “num futuro próximo as
pessoas só conseguirão se comunicar por grunhidos”.
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29, SOFIA NEGROPONTE, oito anos, filha de Luciana e Ítalo, que


a chama de “minha italianinha”. Aplicada, estudiosa, acabou absorvendo os
comentários do pai sobre o aprendizado correto do idioma como o único ca-
minho através do qual um povo consegue escapar da barbárie, e já decidiu
que, quando crescer, quer se especializar no estudo do Latim e outras línguas
mortas.

30, LEONE NEGROPONTE, sete anos, filho de Luciana e Ítalo, a


quem a mãe chama de “meu italianinho”, para contrabalançar o que considera
a preferência do pai pela filha. É o oposto da irmã: bagunceiro, avesso ao es-
tudo, mas capaz de aprender com rapidez surpreendente o que há de mais re-
cente na linguagem das ruas, cuja mutação constante o fascina, mesmo que
ele não saiba por que, pois não tem idade para isso. Para desespero da irmã é
capaz de usar durante um dia inteiro, e em diferentes situações, o dernier cri
da gíria, ou seja: a última expressão, mesmo chula, que ele acabou de apren-
der ali na esquina.

31, JUVENAL FERREIRA DOS SANTOS, o “seu” Juve-


nal Antena. Quarenta e oito anos. É uma daquelas figuras saídas de cama-
das mais populares da população que, mesmo sem ter maiores estudos, di-
plomou-se na vida e hoje é um sábio capaz de olhar dentro dos olhos de al-
gum “indigitado” - como ele os chama - adivinhar o seu passado, fazer consi-
derações sobre o seu presente e também prever o seu futuro.
Encantador quando quer da mesma forma ele também pode ser uma figura
sinistra. Mas quase sempre conquista o mundo inteiro sem precisar mover um
dedo, apenas com o seu charme e sua experiência. Tem uma preocupação da
qual não abre mão nunca – procura ser o mais justo que pode com seu povo,
ou seja, com os moradores da Comunidade da Mangueirinha sobre os quais,
como um potentado oriental, ele reina. É dono de uma linguagem rica e pecu-
liar sobre a qual revela domínio digno de um filólogo.
Já se apresentou de modo muito claro nos dois depoimentos que prestou li-
nhas acima, por isso não diremos mais nada sobre ele.

32, SOLANGE COUTO FERREIRA, a filha de Juvenal que che-


ga de repente e de cuja existência ele sequer sabia. Vinte e dois anos, negra, e
com um sotaque paulista – onde nasceu e foi criada – que vai fazer as delícias
dos rapazes da Mangueirinha onde, por conta da morte de sua mãe, ela se ve-
rá exilada. Acostumada com o povo de Higienópolis, sem nunca ter entrado
antes numa favela, ela achará a gente do local muito esquisita, inclusive o seu
pai, de quem terá sérias suspeitas alimentadas pelas muitas histórias que a
mãe lhe contava.
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Obrigada a ficar na favela dentro da qual o pai faz questão de manter sua ca-
sa, ela evitará maiores contatos com o povo de lá, e assim vai procurar abrigo
– através de amizades que fará nos shoppings – nos condomínios da Barra.
Aos que conhece apresenta uma biografia falsa, da qual consta até mesmo um
endereço num condomínio de cujos portões, depois que os amigos a deixam
lá de carro, ela nem passa. Vai se meter em muitas confusões por causa de
suas mentiras. Pensa que com elas engana até o pai, sem saber que ele está de
olho nela, sabe de tudo que está aprontando, e aguarda ansioso que ela enfim
se cure daquela arrogância e o aceite e entenda.
Sua obsessão é arranjar um rapaz de família emergente, casar com ele e sair
de uma vez por todas “daquela lixeira”. Vai viver muitas situações constran-
gedoras por causa disso, e de todas elas será salva pelo pai, mas sem que o
perceba.
Solange é o exemplo típico da pessoa que insiste em negar suas origens sem
saber que lá adiante tem um encontro inevitável marcado com elas. E no seu
caso este se dará através da figura de Evilásio Caó, negro como ela e como
ela de ascendência humilde, pelo qual a certa altura se verá apaixonada, em-
bora sem a menor possibilidade de vir a ser correspondida.

33, EVILÁSIO CAÓ. Tem vinte e sete anos e trabalha na Associação


de Moradores da Favela da Mangueirinha, onde nasceu e se criou. Dele Juve-
nal Antena disse num dos seus depoimentos que, de todos que trabalham
consigo, é o seu preferido. Entre outras coisas porque o viu crescer e tornar-
se o homem que um dia, quem sabe, pode vir a ser o seu herdeiro. Filho de
Misael Caó, um marceneiro que vivia na região antes mesmo que a favela
surgisse, ele é sobrinho de Mãe Setembrina, de quem seu pai é irmão e “ogã”
mais antigo.
Evilásio acha que, segundo os preceitos de Juvenal Antena, é fiel ao seu povo
até a medula. Ele está fadado ao casamento com uma das muitas mocinhas da
comunidade que o assediam... Até o dia em que chega lá uma equipe de fil-
magens para fazer um documentário sob a direção do promissor cineasta Du-
da Monteiro, ele conhece uma de suas assistentes, de nome Júlia, se encanta
por ela e logo descobre que este sentimento é recíproco.
Temos aqui uma situação clássica, a de Romeu e Julieta (já que o autor des-
sas mal traçadas linhas discorda de quem afirma que – “Romeu e Julieta?” -
hoje em dia ninguém mais sabe o que é isso). E um Romeu e Julieta com al-
gumas complicações mais incontornáveis que a desavença familiar da histó-
ria original, pois no nosso caso Evilásio é negro, favelado e de poucas letras e
Júlia branca, muitíssimo bem educada e nascida numa família de nome e
muitas posses.
Mas apesar de tudo, com a mãe-de-santo Dona Setembrina fazendo às vezes
do frade do texto clássico o amor deles não terminará em tragédia, mas segui-
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rá em frente, até que Júlia engravide e dê à sua mãe, dona Guinévere, o neto
que ela tanto queria e mais um bônus – o menino nasce negro.
Se eles vão terminar juntos? Como Shakespeare não disse, mas todos nós já
aprendemos o futuro a Deus pertence. E plantado no meio do futuro desses
dois estará a certa altura a determinação de Solange em conquistar Evilásio e
através do amor dele afinal se redimir de toda a sua soberba e reconquistar
suas origens.
Da mesma forma estará plantada no meio desse futuro do casal a tomada de
consciência de Evilásio, que graças a ela confirmará a previsão de Juvenal, o
qual também disse que “um dia seria por ele traído”. Pois o filho de Misael
Caó a certa altura começa a ter dúvidas quanto ao direito do homem para o
qual trabalha de ter tanto poder sobre a comunidade em que nasceu e vive. E
quando essas dúvidas se transformarem em certeza ele criará coragem e trata-
rá de enfrentá-lo.
Dar-se-á então uma luta terrível que remeterá a história ao que há de mais
atual na vida carioca – a luta pelo poder dentro das favelas e a tutela dos seus
moradores por facções ilegais e até criminosas. Na medida em que trata de
contestar esta situação e depois resolve lutar abertamente contra ela, Evilásio
se transforma no mocinho dessa história na qual não só anti-heróis em busca
de redenção prevalecem.
No percurso em direção à consciência, Evilásio vai se revelar um líder nato –
ou, como diz o Pastor Divino a certa altura, “o Moisés que levará seu povo à
travessia do Mar Vermelho”. Desse modo teremos – afinal! – alguma coisa
de inédito numa novela deste modesto autor – um mocinho que é pobre, ne-
gro e favelado cuja travessia, como a de todo herói de novelas, no final sem
dúvida chegará a bom termo.

34, MISAEL CAÓ. Pai de Evilásio, irmão de Dona Setembrina e, no


terreiro desta, o “ogã” mais antigo. De profissão marceneiro. Faz móveis com
rara presteza; recebe encomendas até de “gente que mora nos condomínios da
Barra”, mas nem sempre pode aceitá-las, pois não abre mão de atender pri-
meiro os moradores da comunidade, que estão sempre precisando de uma
mesa, um armário, um banquinho ou uma cama para mobiliar os “puxadi-
nhos” de suas casas. É uma figura de muito respeito, um dos que forma, ves-
tidos de acordo com o preceito, na ala de frente da Escola de Samba Nascidos
da Mangueirinha.
De Juvenal, a exemplo do que acontece com sua irmã mãe-de-santo, é amigo
e conselheiro. Mas, por causa de sua mania de falar sempre a verdade mesmo
que ela doa, nem sempre é ouvido quando tenta lhe dar algum conselho. Os
dois na verdade vivem às turras, mas conhecem a exata posição um do outro
na comunidade e nunca perdem o respeito.
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35, GUMERCINDO PEIXEIRO, 50 anos, amigo de infância de


Juvenal e seu sócio em vários empreendimentos. É o dono da frota de Vans
que garante aos moradores da comunidade, mediante o pagamento de uma
taxa mensal, o transporte na hora certa e também dia e noite. É, como diz o
amigo infância, “metido a play boy e conquistador barato”. Já foi casado três
vezes e três vezes foi expulso de casa pelas mulheres, sempre pelo mesmo
motivo – flagrante de adultério. Gasta uma fortuna em pensão alimentícia, já
que tem filhos com as esposas e também com outras das quais ele jura que
nem chegou perto.
Embora seja uma figura do bem, às vezes, como outra vez diz Juvenal, “ele
vacila”. Nessas ocasiões ouve do amigo, sempre de cabeça baixa e sem ja-
mais contestá-lo, verdadeiros esbregues. Nesse momento está solteiro, mas
como sempre lhe acontece, apaixonado. E o objeto de sua paixão é uma se-
nhora casada e de comportamento ilibado, que ele pretende seduzir apesar de
toda a sua indiferença, sem saber que ela na verdade leva uma vida dupla e,
em vez de atendente do plantão noturno de um hospital, como se apresenta,
trabalha numa casa de massagens.

36, ALZIRA CORREIA, trinta e dois anos e atual objeto da paixão de


Gumercindo Peixeiro. É prima de dona Célia Mara e, portanto, sobrinha do
velho português Manoel Andrade Couto. Mora com o marido e dois filhos
num modesto condomínio de casas ali na Estrada Velha. O seu cônjuge, de
nome Dorgival, está desempregado há oito anos, e de tanto desânimo já nem
sai mais de casa para procurar emprego. Fica por lá, de pijama o dia inteiro,
“a coçar os documentos” como diz Célia Mara, ou então a cuidar dos passari-
nhos que são o seu “hobby”.
Enquanto isso a sua mulher trata de sustentar a casa, supostamente como fun-
cionária terceirizada de um hospital público na qual é atendente, mas na ver-
dade como uma das profissionais mais requisitadas da casa de massagens
existente nos fundos da Uisqueria Highlands. Lá, como as outras “massagis-
tas”, ela entra trazida por uma Kombi, cujos vidros são cobertos por insufilm
e que estaciona no terreno baldio lá dos fundos, e por isso nunca é vista... Até
o dia em que o pobre Gumercindo lhe dá um flagrante e, depois de se refazer
do choque, passa a chantageá-la: ou faz o que ele quer, ou ele conta pra todo
mundo sua verdadeira história.
E vocês nem imaginam – porque eu não vou dizer agora – de que modo cria-
tivo dona Alzira resolve este dilema...

37, DORGIVAL CORREIA, trinta e seis anos, marido de dona Alzi-


ra, pai de Dorginho e Manoela. “O inútil”, como o classificará Juvenal Ante-
na depois de tomar conhecimento de sua história. Quando casou com Alzira,
já lá vão doze anos, ainda estava no seu primeiro emprego. Mas acabou sen-
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do demitido por absoluta inapetência para o trabalho. Decidiu então que no


seu caso seria melhor se ocupasse uma função pública, e então tratou de fazer
vários concursos, mas levou pau em todos e continuou desempregado.
No começo ainda se dedicou a alguns biscates esporádicos, mas depois nem
isso fez mais, assim como desistiu dos concursos, da leitura dos classificados
de jornais e da ronda semanal pelas agências de emprego. Com o passar dos
anos criou uma teoria segundo a qual é uma vítima da crueldade do sistema,
um injustiçado.
Vive às custas da mulher, mas não a explora, já que leva uma vida frugal e
sua única despesa extra é com os pássaros. Do seu modo peculiar ele é um
malandro. Leva a vida que deseja, embora trate de justificá-la de modo que
não o chamem pura e simplesmente de preguiçoso. Nunca faz perguntas so-
bre o emprego de Alzira, mas tem uma razão muito forte para isso, quando
Gumercindo afinal o procurar para lhe contar a verdade.

38, DORGINHO CORREIA, treze anos, pois Alzira já tinha dado à


luz o primeiro filho quando casou com o pai deste. Odeia o “hobby” do pai,
pois acha que passarinho tem mais é que viver solto, e vai abrir todas as gaio-
las e deixar os pássaros fugirem quando a verdadeira história de sua mãe se
espalhar e o escândalo se abater sobre a família... Ocasião em que será bas-
tante aplaudido pelo funcionário do estúdio encarregado de limpar do cenário
o cocô dos bichos.

39, MANOELA CORREIA, a Manu da Mangueirinha como


ela se audo-denomina. Doze anos e um projeto de vida que é sua obsessão –
ela quer ser a rainha dos bailes funks, e não como bailarina, mas como canto-
ra. Para isso tenta freqüentar, apesar da proibição do Juizado de Menores, os
que se realizam na quadra da escola de samba, mas é sempre expulsa, pois
Juvenal deu ordens para não permitir a entrada de crianças de modo a evitar
encrenca. Em casa, treina canto e dança o dia todo para desespero da família.
Seu ídolo é Tati Quebra-Barraco, da qual consegue fazer uma imitação per-
feita, pois é tão desafinada quanto a própria.

40, MARGARIDA MARIA DOS ANJOS, a dona Guigui.


Aí pelos quarenta e cinco, talvez mais, embora não pareça, pois é a chamada
coroa enxuta. Vice-presidente da Associação Comunitária dos Moradores da
Favela da Mangueirinha, alçada ao posto, numa eleição que a oposição decla-
rou (inutilmente) sob suspeita, por determinação de Juvenal Antena, de quem
é uma espécie de sombra. Dedica-se totalmente ao chefe e ao seu trabalho, e
assim não tem vida própria. Mora num quartinho dos fundos da associação,
isso quando não acaba dormindo em meio às fantasias da escola de samba,
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cuja equipe de costuras e bordados – bordadeira emérita que é – ela também


comanda.
De vez em quando (finge que não) escuta quando alguém faz um comentário
sobre a sua qualidade de gostosa, e sabe que se este comentário chegar aos
ouvidos de Juvenal ele reagirá com uma frase que a enche de orgulho: “Gui-
gui pra mim é homem!”. Pois isso significa que, para ele, ela é digna do mai-
or respeito. Guigui nasceu no Andaraí, e foi parar na comunidade depois de
atravessar a Estrada Grajaú-Jacarepaguá, anos atrás, porque, segundo ela,
“precisava fugir de uns sarilhos”. Quais eram estes ela nunca disse a nin-
guém, e Juvenal também achou melhor não lhe perguntar, quando ela se
apresentou a ele e deu um jeito de demonstrar sua incrível disposição para o
trabalho.
Naquela época ela ainda era Margarida Maria, mas ele lhe deu o apelido de
Guigui, pois achou o seu nome muito pomposo para quem estava destinada a
um dia fazer parte da diretoria da associação de moradores de uma favela.
Guigui não tem homem, e também, na opinião abalizada de Juvenal, não é
“daquelas” que se dedicam às mulheres. É na verdade um mistério que ele
talvez por interesse, prefere não esclarecer, pois ela é sua principal colabora-
dora, e ele teme perder isso se insistir em saber quem realmente é ela.
Mas sua verdadeira história vai surgir de modo avassalador a certa altura, e
provocar reações de todos, principalmente de Juvenal, que ficará abalado
com ela. Que história é essa? Mas nem pelo chamado “cacete” o autor dessas
mal traçadas linhas a revelaria agora.

41, CÉLIA MARA DE ANDRADE COUTO MELGAÇO,


a popularíssima - apesar dos vários sobrenomes - dona Cé-
lia Mara. Também naquela idade indefinida entre os quarenta e os cin-
quenta. Filha do português Manoel Andrade Couto, casada com Antônio José
Melgaço, outro descendente de lusos, e mãe da lindinha Clarisse, que é char-
mosamente disléxica. Sobre ela não temos mais o que dizer, já que a própria
se apresentou de modo a não deixar a menor dúvida em seu depoimento pá-
ginas acima. Junto com Juvenal Antena, ela forma em nossa história o par
mais representativo daquela parcela da população à qual se poderia denomi-
nar de “povo brasileiro”, pois “povo” ela é até a medula. Talvez por isso ela
venha a conquistá-lo e, se o coitado não morrer nas mãos de Evilásio Caó,
como este autor por enquanto imagina, terminar com ele.

42, ANTÔNIO JOSÉ MELGAÇO, 49 anos, o marido de Célia


Mara. Tem uma oficina ali na Estrada Velha, a qual comanda sem jamais su-
jar as mãos, pois há muito deixou de exercer a profissão de mecânico. Ganha
muito dinheiro, mas não sabe administra-lo, e por isso está sempre chorando
miséria. Gosta de Célia Mara e da filha, mas acha que não precisa demonstrar
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isso, entre outras razões porque não saberia faze-lo. É o mais quadrado dos
homens e considera isso a sua maior qualidade. Está sempre esbravejando
contra a decadência do mundo. É formal até dizer chega, e tem horror á ex-
cessiva informalidade dos que o rodeiam. Exemplo: mulher grávida com o
barrigão ostensivamente à mostra, como só brasileiras e as representantes de
algumas tribos primitivas usam, ele acha imoral e pecaminoso.
Lê o jornal sempre do mesmo modo, primeiro a página de esportes, e depois,
pela ordem decrescente, as outras, até chegar à primeira. É cheio de pequenas
manias, do tipo: passar um pedaço de papel higiênico na tábua do banheiro
antes de sentar nela. Quando era jovem e já andava engravatado seu tipo as-
sim formal tinha um certo charme, e foi graças a isso que conquistou Célia
Mara. Mas com o passar do tempo aquele jeito dele ficou insuportavelmente
chato.
Também é daqueles que se considera o dono da razão em tudo. Quando des-
cobrir que a mulher o traiu durante vinte anos vai ficar o mais ressentido e
rancoroso dos homens, e por isso não perderá uma única ocasião de denegri-
la. Nunca mais dirá o nome dela, e apenas a chamará, até mesmo diante da
filha, de “a adúltera”, ou então, “aquela que me pôs um par de chifres”. É,
como dizem todos os que o conhecem: “uma figura”. Se ele vai se envolver
com alguém depois da grande decepção que Célia Mara lhe causou? Ainda é
cedo para se saber disso.

43, CLARICE DE ANDRADE COUTO MELGAÇO, filha


de Célia Mara e Antônio e outra lindinha da novela. Só pensa “naquilo”, e
“aquilo” pra ela significa o estudo. Quer porque quer se formar em Direito e
depois fazer concurso para Juíza. Tem a veleidade de achar que pode se tor-
nar um marco nessa questão sempre renovada sobre saber ou não fazer Justi-
ça. Este é seu sonho desde que era pequena, e na escola ela sempre teve que
batalhar muito por isso, pois sofre de dislexia e, portanto, muito mais que
seus colegas teve sempre que se aplicar nos estudos.
Agora que vai fazer o vestibular descobre que suas dificuldades são ainda
maiores, e sua mãe, ao percebê-las, mesmo sem saber como resolve ajuda-la.
É aí que surge a idéia de Célia Mara fazer o vestibular junto com ela. Clarice
embarca na idéia com grande entusiasmo, mas depois, quando vê que a mãe
se destaca até se transformar na queridinha da Universidade, fica com ciúmes
e se transforma numa aluna (ainda mais) problemática.
Por causa disso, em algum momento ela se tornará aliada de Branca, que tra-
tará de cooptá-la para a sua cruzada contra a rival Célia Mara. Mas Clarice é
do bem, e logo se arrependerá de tomar posição contra a mãe em quaisquer
circunstâncias. Afinal, quando Célia Mara foi escorraçada de casa pelo pai no
qual “botou um par de chifres”, foi ela a única que não lhe retirou o apoio. A
ligação entre as duas é muito forte e não se desfará mesmo agora.
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De qualquer modo Clarice ficará bastante magoada com esta súbita notorie-
dade na mãe num terreno que é dela. E assim ela só alcançará o equilíbrio, e
terá condições de realizar o seu sonho de menina, depois que ganhar o cari-
nho e a compreensão do promissor cineasta Duda Monteiro.

44, MANOEL DE ANDRADE COUTO, português, oitenta


anos. Na Estrada Velha de Jacarepaguá é conhecido como uma figura exótica
e folclórica. Foi morar na região quando aquilo tudo, segundo suas palavras,
não passava de uma “enorme chácara”. Construiu lá uma casa depois que fi-
cou viúvo. Trabalhou a vida inteira e ganhou muito dinheiro em ocasiões di-
ferentes, mas – e este é um assunto que o leva às lágrimas – sempre perdeu
tudo.
Hoje é uma espécie de ermitão isolado em sua casa ao redor da qual cresceu
um bairro enorme. A área em torno foi comprada pela empresa de Marconi
Ferraço, menos o terreno no qual está situada a casa do velho, o qual anunci-
ou que jamais o venderia. Mas então se descobriu que, por nunca ter pago o
IPTU, ele na verdade não passava de um invasor no local, e assim não tinha
direito à posse.
Manoel ainda tentou lutar, mas o empresário, disposto a construir ali mais um
dos seus condomínios, jogou pesado e ganhou a causa em todas as instâncias
da Lei, que afinal mandou expulsar o velho. Aos oficiais de justiça que foram
retirá-lo de lá ele deixou claro que só sairia morto. E foi isso que aconteceu,
quando a casa começou a ser derrubada ainda com seu Manoel lá dentro e ele
teve um infarto.
E foi então, quando a equipe de demolição destruiu as paredes e tratou de ar-
rancar o assoalho, que veio a surpresa: escondida debaixo deste havia uma
verdadeira fortuna em moedas antigas e barras de ouro. Em pleno século
XXI, e numa área urbana de grande densidade demográfica, acontecia assim
um fato insólito – a descoberta de uma botija. Seu Manoel na verdade não
perdera dinheiro nenhum, mas comprara com ele aquele tesouro.
A quem pertenceria a fortuna? Sem dúvida a dona Célia Mara, filha do velho
e sua única herdeira que, aliás, naquela ocasião estava na mais completa des-
graça. Só que o rumor em torno do fato atraiu a atenção da Receita Federal, a
qual constatou que o velho jamais declarara imposto de renda e, portanto, sua
herdeira não tinha como comprovar a procedência daquela bolada. Por isso o
tesouro foi confiscado.
Enquanto corre na Justiça um processo que na certa vai durar alguns séculos
e dificilmente estará resolvido antes que a terra morra por causa do aqueci-
mento global, ele permanece sub judice e assim não poderá ser tocado.
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45, DÁLIA MENDES, 28 anos, a carnavalesca da Escola de Samba


Nascidos da Mangueirinha. Vejamos o que diz Juvenal Antena a respeito dela
num dos seus depoimentos linhas acima:
“Ela foi resgatada por mim das mãos de um traficante pé-de-chinelo o qual,
até o instante em que o expulsei da área, a mantinha em cativeiro, alimentan-
do-a a pão, água e muita droga.
“O modo como fiz com que o indigitado sujeito tirasse o seu time de campo?
Prefiro não relatar agora, não só porque me faltaria tempo para isso, como
também porque, tenho certeza, os senhores achariam toda a história muito
chocante.
“Escorraçada pela família, que achava impossível sua reabilitação, pois antes
já tivera muitas recaídas, ela ficou sob minha responsabilidade. Eu a internei
numa clínica, e de lá ela só saiu no dia em que afinal acreditei em sua since-
ridade quando me disse que, mais que tudo na vida, o que ela queria agora era
“ficar limpa”. Foi só depois disso que descobri seus talentos e lhe ofereci o
cargo de carnavalesca em nossa escola então iniciante. Agradecida, ela se
empenhou de tal maneira que angariou o respeito da crítica especializada. E
hoje, embora seja fiel à nossa bandeira e à comunidade onde se instalou e até
hoje mora, de vez em quando tem que rejeitar convites que lhe são dirigidos
para trabalhar em outras escolas”.
Dália tem uma amizade, daquela de “almas irmãs”, com Bernardinho da
Conceição, cujo perfil vem a seguir, também retirado de um dos depoimentos
de Juvenal Antena.

46, BERNARDINHO DA CONCEIÇÃO, 33 anos, “filho de um


casal de inúteis, o BERNARDO pai que há vinte anos, de calção e sem cami-
sa, vende cerveja na praia do Quebra Mar “porque tá muito difícil de arranjar
emprego”, e a AMARA mãe que não faz outra coisa na vida além de ficar na
janela tomando conta da vida dos outros, ele tem dois irmãos tão inúteis
quanto os pais e mais velhos que ele, BATISTA E BENOLIEL. Estes, depois
de o expulsarem de casa, trataram de trazê-lo de volta quando descobriram
que ele, após fazer um curso de culinária patrocinado por mim, começara a
ganhar dinheiro à custa de sua profissão no boteco batizado “Castelo de São
Jorge” e especializado em pratos de bacalhau, que um amigo meu lhe finan-
ciou ali, perto do PROJAC.
“Hoje, sem mudar de em nada o seu comportamento (para decepção das mo-
ças e alegria dos rapazes), ele não só foi aceito por todos como se tornou o
chefe da casa, porque ganha dinheiro e os sustenta apesar dos meus conselhos
em contrário. Bernardinho e Dália são tão ligados um no outro que não con-
seguem esconder o quanto se amam, embora a preferência sexual da qual ele
não abre mão não permita que sejam mais do que amigos”.
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Portanto, nessa relação entre Dália e Bernardinho o que se vai mostrar é uma
novíssima forma do “amor entre iguais” que é muito mais comum do que se
pensa: a ligação entre um homossexual e uma heterossexual, tão forte que os
impede de procurar cada um o seu próprio parceiro.
A certa altura ela vai contar para ele a história do filme “O Feitiço de Lady
Áquila” e dizer:: “nós somos eles”. Talvez, de todos os encontros e desencon-
tros amorosos da nossa história, seja este o mais polêmico. Ah, sim: e embora
Bernardinho seja um assim chamado “gay”, dessa vez não correremos o risco
de (não) ter o tão famoso beijo.

47, JOÃO BATISTA DA CONCEIÇÃO, 39 anos, o irmão mais


velho de Bernardinho, um inútil que primeiro o expulsou de casa e agora vive
às suas custas. Nunca trabalhou, e pouquíssimas vezes vestiu uma calça, pois,
como se fosse um personagem de novela das sete, anda sempre de calção fol-
gado e camiseta, sem esquecer a indefectível sandália de dedo. É bonitão, e
por isso disputado por várias mulheres, mas em geral as evita, não porque não
goste da fruta, mas de pura preguiça.

48, BENOLIEL DA CONCEIÇÃO, 35 anos, o segundo irmão de


Bernardinho, espécie de clone de Batista, o irmão mais velho. Os dois con-
cordam em tudo, e assim primeiro concordam em expulsar Bernardinho de
casa, e depois em chamá-lo de volta quando descobrem que ele começou a
ganhar dinheiro. É menos favorecido fisicamente que o irmão, e mais ativo,
por isso trata de se apresentar como premio de consolação a todas as mulhe-
res que cobiçam inutilmente o primeiro.

49, NARCISO TELLERMAN, 40 anos, deputado estadual de gran-


de prestígio nas comunidades, aquele que Juvenal Antena chama de “político
às avessas”, pois, ao contrário da maioria dos representantes da classe, se
preocupa com questões hoje em desuso, como a da ética. Divorciado e sem
filhos, depois que o seu primeiro casamento não deu certo resolveu que fica-
ria casado apenas com a política. E esta, para ele, tem a ver acima de tudo
com o pleno exercício do cargo que seus eleitores lhe delegam: tudo o que ele
almeja é representá-los com dignidade, e para isso é preciso ouvi-los não
apenas durante as eleições, mas quotidianamente.
Narciso é um tipo cada vez mais raro de político, aquele que, quando diz que
vai consultar suas bases, não está cometendo nenhum tipo de eufemismo; ele
as ouve e acredita nelas.
É também um humanista, um homem que acredita nas pessoas, e que sempre
dá crédito a elas mesmo quando, aos olhos dos outros, elas pareçam de moral
e ética duvidosas, como é o caso de Juvenal Antena. Em relação a este ele já
percebeu que o líder da Favela da Mangueirinha faz bem aos seus liderados,
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ainda que para chegar a tal se utilize de portas travessas. E numa comunidade
onde o Estado não chega e os problemas por causa disso se avolumam, um
homem como ele, cujas atitudes contribuem para agregar as pessoas em torno
do bem comum, deve ser preservado e orientado. Narciso e Juvenal são ho-
mens sábios, cada um a seu modo. E por isso sempre se entendem.
Sua presença aqui tem um motivo do qual não se pode abrir mão – a discus-
são sobre ética na política numa história em que, por causa da cruzada de Ma-
ria Paula para fazer com que Marconi Ferraço pague pelo seus crimes, o te-
ma principal é justamente este: a ética como um dos valores maiores na vida
de cada pessoa, não apenas as figuras públicas, mas aquelas mais simples.
Em sua vida pessoal o deputado está há alguns anos, como ele mesmo diz,
“dando um tempo”. Mas isso vai mudar quando conhecer Maria Paula e se
apaixonar por ela.

50, Inácio de Tal, o PASTOR DIVINO. O outro líder espiritual


da Comunidade da Mangueirinha, cargo que exerce em oposição a Mãe Se-
tembrina. É um homem absolutamente sincero em sua crença e, como tal, fez
voto de pobreza. Vive de doações dos seus fiéis, mas prefere que estas sejam
em bens perecíveis, e não em espécie. É bom até a medula. De acordo com os
preceitos da religião que segue – a cristã – sente profunda compaixão pelo
povo em meio ao qual vive. Oferece não apenas orações, mas também conse-
lhos. É solteiro, vive em luta permanente contra a tentação, e acha que o De-
mônio escolheu uma forma muito peculiar de enfraquecê-lo, pois é epilépti-
co.
Fala como um personagem saído da Bíblia, ou seja, sua linguagem é antiga.
Mas não tem a menor dificuldade em se fazer entendido. Sua igreja é pouco
mais que uma tenda, mas se transforma num templo monumental quando ele
resolve fazer um sermão e se mostra inspirado. Nessas ocasiões, como diz
Mãe Setembrina – que o admira a respeita – “a luz do céu cai sobre ele”. To-
mar uma atitude dessas vai lhe custar muito, mas quando Evilásio Caó decidir
contestar o poder de Juvenal Antena o Pastor Divino ficará do seu lado.

E MAIS (personagens que só aparecem no prólogo):

HERMÓGENES, mais de sessenta anos, mas ninguém sabe quanto. O


vigarista típico, acrescido de todos os tiques que a idade e os muitos anos de
experiência lhe trouxeram. Não move uma palha se não for por interesse. Não
é capaz de perder tempo com nenhum tipo de afeto, mas acaba se acostuman-
do com a companhia do Garoto Pidão, com quem fica viajando durante dez
anos.
É um criminoso compulsivo. Não consegue parar a anos, e talvez, se o fizer,
entre em decadência física e mental e acabe morrendo. Também não pára em
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nenhum lugar; está sempre se movendo. O mapa no qual escolhe a próxima


parada já está todo roto de tanto ser manuseado, mas ele não admite a idéia de
comprar um novo, pois acha que é aquele que lhe dá sorte. Neste terreno tem
várias manias, todas destinadas a lhe trazer “o sucesso nos negócios”.
Quando exerce o seu ofício, costuma ser hipnótico. Tem uma máxima que
ensina a X, depois Adalberto Rangel e Marconi Ferraço.: “nunca tenha pressa
quando vai dar um golpe; dê corda em sua vítima até que fique muito claro
que tudo o que ele deseja de você é ser enganado”. Quando manipula a gui-
tarra romena é um verdadeiro mágico. Muitas vezes, durante um golpe, teve
que dar chutes em X por debaixo da mesa, pois este, fascinado com seu ges-
tual, não conseguia tirar os olhos dele e acabava saindo do tipo.
Depois que foi passado para trás pelo ajudante, provavelmente ele morreu de
decepção... Ou não: tratou de dar a volta por cima, comprou outro Garoto Pi-
dão e continuou on the road. Assim, quem sabe ele não reaparece um dia e
acrescenta mais um elemento complicador à nossa história?

WALDEMAR FONSECA DO NASCIMENTO e GABRI-


ELA FONSECA DO NASCIMENTO, quarenta e poucos anos, os
pais de Maria Paula. Na primeira cena em que aparecem na novela eles mor-
rem num desastre de automóvel, mas depois, ainda no prólogo, vão aparecer
com a filha num flash-back.

CLÁUDIUS MACIEL e ELVIRA MACIEL, quarenta e poucos


anos. Amigos dos pais de Maria Paula. Ele é advogado, e é quem cuida do
seu caso quando ela se descobre lesada pelo marido.

JANDIRA, cinqüenta e poucos anos, mãe de Luciana, antiga empregada


da família de Maria Paula e aquela que a ajuda, com suas economias, a ir em-
bora de Passaredo, sem criar maiores problemas quando sua filha Luciana lhe
diz que também vai com a amiga.

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