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Por Juliana Teixeira Esteves, Tieta Tenório Bitu, Vitor Gomes Dantas Gurgel,
Raissa Lustosa Coelho Ramos, Assíria Nicácia Landim Freitas e Aline Araujo De
Albuquerque Melo
Introdução
A categoria de pessoas que trabalham com cuidados tem muito a dizer sobre
as relações de desigualdade existentes na nossa sociedade, em especial as
empregadas domésticas, categoria profissional classicamente feminina e
desvalorizada, alvo de desigualdade social. O caso de Miguel nos permite pensar
sobre a realidade da maioria dessas mulheres: que, por pertencerem às camadas
mais periféricas da sociedade, acabam trabalhando como empregadas domésticas
nos lares de pessoas brancas.
Esse padrão é herança da estruturação patriarcal e hierárquica do período
escravocrata, em que cabia às escravas a realização das obrigações domésticas e o
cuidado com a prole das “sinhás”. Afinal, o Trabalho Doméstico teve seu marco
histórico no período colonial; a atividade doméstica era desempenhada por mulheres
negras, escravas, que assumiam funções de amas de leite, mucamas, costureiras,
aias, cozinheiras, babás, sofrendo explorações das mais diversas. Em 1886 surge o
Código de Posturas do Município de São Paulo, instituindo diversas restrições de
direitos aos empregados domésticos. A partir de um nova configuração de moradia,
a urbana, a partir da senzala e da Casa Grande surge um novo cômodo: o quartinho
da empregada.
Após abolição, diante da falta de oportunidades de trabalho remunerado e
sobrevivência, muitas continuaram nas casas de seus ex-proprietários, exercendo
atividades domésticas. As intersecções entre raça, classe e gênero atravessam a
vida da patroa e da empregada. No século XIX eram comuns manuais de economia
doméstica, com prescrições de comportamento para a mulher branca tornar-se boa
dona de casa, esposa e defensora da família, sendo estas as características que
iriam definir o modelo universal de feminilidade. Todavia, a mulher negra e a
trabalhadora doméstica, eram vistas como fonte de proliferação de doenças e
imoralidade para família, sendo necessário controlá-las através de coação, como a
ameaça de desemprego (SANTOS, 2010).
O constrangimento e a ameaça, que colocam as trabalhadoras domésticas
em risco para que continuem a servir seus patrões mesmo diante de uma pandemia,
não são novidades da burguesia, mas heranças de uma branquitude colonialista
brasileira.
O Estado de Pernambuco instituiu o lockdown entre os dias 16 e 31 de maio,
mas empregadas domésticas e cuidadoras que trabalhassem em residências cujos
empregadores exercessem atividades essenciais ou integrassem grupo de risco
foram deixadas de fora da quarentena. Segundo Amanda Souza, prima de Miguel,
Mirtes e sua mãe, Marta - também trabalhadora doméstica contratada pela família -
contraíram o covid-19 com o patrão e, mesmo assim, continuaram a trabalhar.
Angela Davis elucida a desvalorização do trabalho doméstico a partir da
consolidação do capitalismo e a Revolução Industrial, quando toda a economia se
desloca para longe do ambiente privado. A mercadoria produzida nas fábricas,
diferentemente das tarefas domésticas, satisfaz a demanda de lucro do empregador,
a partir disso, “o trabalho doméstico foi naturalmente definido como uma forma
inferior de trabalho, em comparação com a atividade assalariada capitalista” (DAVIS,
1944, p.230). Para além disso, o próprio conceito de profissão desenvolvido pela
sociedade classista requer atributos exclusivos conhecimentos científicos e técnicos,
obtidos após uma longa formação. Partindo dessa concepção, o trabalho realizado
dentro das nossas casas é visto como natural, como uma ocupação e não profissão,
o que limita seu valor econômico e desqualifica esse trabalho.
Como consequência desses aspectos, a profissão teve seus direitos
consolidados muito tardiamente e de forma ainda muito precária, com salários
instituidos na base do mínimo, e ainda assim na informalidade.
A primeira regulamentação do trabalho doméstico no Brasil se iniciou apenas
com a Lei n.º 5.859/72, pois a CLT expressamente excluiu esse tipo de trabalho do
seu âmbito de proteção. A referida Lei foi alterada sucessivas vezes para, apenas
em 2001 instituir o direito ao seguro desemprego, e só em 2006 passar de 20 dias
para 30 dias de férias, ter estabilidade gestante e não sofrer descontos salariais
relativos a alimentos consumidos, moradia (na hipótese de dormir no trabalho),
vestuário e itens de higiene.
Apesar da Constituição Federal de 1988 ter garantido o salário-mínimo, o 13º
salário e a licença maternidade de 120 (cento e vinte) dias, excluiu a classe dos
direitos previstos e assegurados aos demais trabalhadores e trabalhadoras urbanas
e rurais.
Os próximos grandes avanços foram a Emenda Constitucional n.º 72/13 e a
Lei Complementar nº 150/15, apesar de significativo avanço em relação à
normatização pretérita não tratar de dignificar plenamente o trabalho doméstico
remunerado com uma real equiparação ao restante dos trabalhadores estáveis.
Embora com alguns aspectos mais protetivos como pagamento em dobro de
domingos e feriados, FGTS, dentre outros, possibilitou a potencialização da
exploração através de banco de horas, possibilidade de negociar diretamente
compensações de carga horária, contrato de trabalho doméstico temporário e por
tempo parcial.
Sobre essa forma de precarização laboral a partir da jornada diferenciada,
Cláudia Nogueira acrescenta que, a modalidade de degradação dos direitos está
reservada para a mulher trabalhadora, porque o capital, além de reduzir ao limite o
salário feminino, também necessita do tempo de trabalho das mulheres na esfera
reprodutiva, que é imprescindível para o processo de valorização do capital, uma
vez que seria impossível o capital realizar o ciclo produtivo sem o trabalho feminino
na esfera reprodutiva (NOGUEIRA, 2014).
“Uma mãe, sem seu filho, sofre uma crise, não apenas de
identidade, como também de existência. Quem sou eu sem
Miguel? Ela tirou de mim o meu neguinho, minha vida, por
quem eu trabalhava e acordava todos os dias”.
Nessa conjuntura, e por causa dessa forma como a sociedade ainda lida com
o trabalho de cuidados domésticos, foi que Miguel perdeu sua vida. Um menino que,
com saudades da mãe, foi junto com ela para o lar onde ela trabalhava; que,
invisibilizado pela sua cor, pela sua classe, e pelo fardo que carrega pelo estigma
social, não foi relevante o suficiente para ter sua vida cuidada; que saiu sozinho
vagando por um edifício, por desatenção, descuido ou descaso da patroa, até cair
do 9º andar.
O acidente que proporcionou a morte de Miguel demonstra a internalização
de uma cultura escravista e colonial institucionalizada. Mirtes, preta, empregada
doméstica, sai de sua casa mesmo durante a quarentena, para cuidar da casa dos
outros, brancos, enquanto não há quem cuide da sua. Realidade de milhões de
mulheres no Brasil, invisibilizadas pela sua origem, cor e classe social.
Como destaca Thula Pires, vidas negras ainda são consideradas descartáveis
e “é sobre a nossa carne que repousam os efeitos desproporcionais do que precisa
ser negociado” (2020, p. 18). Ainda hoje, a violência estrutural, simbólica, física, de
gênero e principalmente institucional são mais acentuadas na população negra.
Nunca houve o final da opressão. E a morte de Miguel nos convida a repensar essas
estruturas de opressão na nossa sociedade.
Por fim ainda, cabe a reflexão sobre a alienação da vida das empregadas
domésticas, suas condições de trabalho e como a sociedade ainda enxerga esse
ofício, reproduzindo as mesmas estruturas.
REFERÊNCIAS
ÁVILA, Maria Betânia; FERREIRA, Verônica. Trabalho produtivo e reprodutivo no
cotidiano das mulheres brasileiras. In. Trabalho remunerado e trabalho doméstico
no cotidiano das mulheres. Recife: SOS Corpo, 2014. Artigo 1, p. 18;