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O ESGARÇAMENTO DOS LAÇOS FAMILIARES E A VIOLAÇÃO DO

DIREITO DA CRIANÇA NO CONTEXTO DA PRODUÇÃO CAPITALISTA

Efren Diones Saqueto1

Ivana Célia Franco Paião2

_______________________________________________________________

RESUMO

Esta produção está relacionada à produção do trabalho de conclusão de curso,


em Serviço Social. Trata-se da reflexão acerca da influência do sistema
capitalista de produção junto à instituição familiar, detectando assim,
expressões da questão social, que acometem os membros da classe proletária
brasileira. Com o avanço tecnológico, cientifico e sociocultural, vimos ocorrer o
esgarçamento dos laços familiares em seus moldes tradicionais, agudizando a
produção e reprodução da violência, sendo entendida como de ordem física,
psicológica, moral, institucional, comunitária, de gênero e afetando crianças e
adolescentes, com impacto forte no âmbito escolar e comunitário. Apresenta-se
aqui resultados da pesquisa documental, no ano de 2013, junto ao Conselho
Tutelar do município de “Patati-Patata” (Nome fictício), de casos de crianças
matriculadas na escola “Ciranda” (Nome fictício).

Palavras-chave: Família, violação de direitos, questão social

ABSTRACT

This material is closely related to the production of completion of course


concluding work in Social Services. It is the reflection on the influence of the
capitalist system of production with the family institution, thereby detecting
expressions of social issues that particularly affect members of the Brazilian
working class. With the advancement of technology, scientific and socio-cultural
changes, we experience the fraying of family ties in their traditional ways,
sharpening the production and reproduction of violence, being here understood
as physical, psychological, moral, institutional, community, gender and affecting
mainly children and adolescents, with a strong impact on the school and
community level. The material presents the results of documentary research, in

1
Assistente Social graduado pela Universidade Paulista (UNIP), Campus Assis SP.
2Assistente Social graduada pela UNIMAR; Mestre em Serviço Social e Política Social pela
UEL; professora no curso de Serviço Social da Universidade Brasil, Campus Assis.
2013, with the Guardianship Council of the municipality of "Patati-Patata" (not
her real name), of cases of children enrolled in school "Ciranda" (not his real
name).

Keywords: family, violation of rights, social issues

O Sistema Capitalista e sua influência no contexto familiar

A família antes de tudo é uma formação cultural e econômica que


visa à sobrevivência de seus membros nas mais diversas circunstâncias. Para
a instituição familiar foi atribuída à missão ‘sagrada’ e ‘natural’ de dar
continuidade aos elos culturais de um determinado povo.

A família enquanto instituição tradicional, de poder e manutenção


cultural, fôra atingida em cheio pelas transformações advindas do sistema
capitalista, configurando assim a metamorfose no bojo das relações
domiciliares. O homem, que antes exercia atividade voltada para sobrevivência
de si e sua família, com o desenvolvimento econômico e social, deveria vender
a sua força de trabalho ao dono do capital, para assim dar sustento a sua
família.

A família humana que outrora estava acostumada com a vida nos


campos, com a proteção advinda das fortalezas feudais e das confrarias cristãs
católicas, com o desenvolvimento econômico-social, passava agora por um
tempo de profundas transformações, que iriam mudar traços culturais
dogmatizados pelas sociedades primitivas.

Os papéis familiares definidos como o homem, o patriarca e provedor da


casa seriam alterados. Ao homem estava o poder de dominar todos aqueles
colocados culturalmente sobre seu jugo. A mulher era vista como a
reprodutora, tendo de cuidar dos afazeres domésticos, incluindo aqui o cuidado
para com os filhos, deveria ser piamente fiel ao seu marido (papel reforçado
pelos valores morais impostos por exemplo pela igreja). Aos filhos restava à
luta pela sobrevivência e a fidelidade ao seu pai.

A mulher, que é colocada como uma serva fiel dos mandos do homem,
com a nascente fase social começa a produzir para si escravos, através de
guerras e dominações de povos menos desenvolvidos, é erigida a propriedade
privada e a conquista de novas terras, assim também o comércio e a troca de
valores, como nos coloca Engels (2012, p. 206) “A diferença entre ricos e
pobres veio somar-se à diferença entre homens livres e escravos; a nova
divisão do trabalho acarretou uma nova divisão da sociedade de classes”.

Podemos dizer que no seio da família foram produzidas culturalmente,


através da historicidade humana, papéis a serem seguidos por cada membro,
sendo esse uma espécie de pacto social, no qual todos deveriam respeitar
fielmente, para que assim tudo ocorresse para o bem da comunidade.

Lyra et. al. (2010), revelam-nos como essa primitiva composição sócio-
familiar foi se decompondo a partir de novas descobertas culturais, que criaram
um novo modo de se relacionar dentro das comunidades. O homem foi
identificado como o chefe e provedor da casa, estando à mulher e os filhos
debaixo de sua ‘proteção’, como nos é descrito: “O homem, agora pai, torna-se
mais inacessível para os filhos e domina a família como uma figura de
autoridade e poder, requerido principalmente para as grandes decisões” (OP.
CIT., p.81).

Em contrapartida, à mulher é dada a função de cuidado para com os


filhos, sendo colocada sobre essa, uma figura de ternura, de carinho, e de
obediência e submissão às ordens dos homens, sendo tratada como um ser
frágil e acrítico perante o mundo, assim nos é demonstrado: “Desde que o
cuidado foi vinculado á maternidade, o exercício deste, foi naturalizado como
‘instinto feminino’, como instinto materno.” (LYRA et al., 2010, p. 85).

Passamos a uma sociedade patriarcal, dominada pelos homens, que


faziam da família uma extensão dos espaços privados e públicos, não havendo
distinção no tratamento dos servos e dos filhos, a verdade é que todos
deveriam estar debaixo de seus ‘pés’, como nos destaca Santos e Araújo
(2010, p.35): “A organização social de gênero atribui aos homens prerrogativas
de ditar normas de conduta para as mulheres, assim como julgar a correção do
cumprimento dessas normas”.

Com a destruição do antigo modelo de produção feudal, as propriedades


rurais foram sendo suprimidas e os trabalhadores tiveram que migrar para as
cidades, onde teriam de vender seu único bem, a força para o trabalho. A
situação nas cidades era bem diferente da vida no campo, dada falta de
estrutura urbana frente ao grande número de famílias vindas das antigas
propriedades de terra.

As transferências do campo para as cidades contribuíram para a


formação de vilas proletárias ou cortiços, que em geral eram aglomerados mal
cheirosos, sem saneamento básico, locais insalubres, que não primavam pelas
particularidades das famílias. Era comum a partilha da convivência com
amontoados de animais; situação bem diferente das famílias burguesas, como
nos escrevem Marx e Engels:

As condições de existência da velha sociedade já estão aniquiladas


nas condições de existência do proletariado. O proletário está sem
propriedade; suas relações com a mulher e com os filhos nada têm
em comum com as relações existentes na família burguesa [...] (2009,
p. 67).

Os pais que eram tratados como senhores em suas casas, agora teriam
de enfrentar um mercado de trabalho totalmente diferenciado, num processo de
produção fragmentado que tirou do homem o privilégio de gozar dos resultados
finais de seu laboro3, teriam de se submeter às excessivas horas de trabalho
por baixos salários, que mal dava para alimentar seus filhos.

As mulheres ‘donas de casa’ passaram a ser também operarias nas


fábricas, tendo de desenvolver atividades pesadas, em locais, geralmente,
insalubres, onde sua força de trabalho era explorada ao máximo, sendo
importante destacar que os salários recebidos pelas mulheres eram menores
do que os valores pagos aos homens, situação que perdura como uma
‘tradição’ até nossos dias. A família proletária já não tinha mais tempo para um

3
Do Latim labor; trabalho.
convívio harmonioso, pois a “[...] burguesia rasgou o véu de sentimentalismos
que envolvia as relações familiares e as reduziu a simples relações monetárias”
(MARX; ENGELS; 2009 p. 57).

O pior ainda veio a acontecer com as crianças que também foram


inseridas nesse mercado de trabalho capitalista, privadas da formação escolar
que só os filhos da classe burguesa tinham acesso. As crianças, no mercado
de trabalho, eram destinadas a cumprir turnos nas tenebrosas e fumacentas
fábricas, eram assim afetadas seriamente em sua saúde, e muitas eram
literalmente esmagadas ou dilaceradas nas máquinas.

Os pais proletários totalmente alienados pela sociedade capitalista nem


viam seus sonhos de ‘família’ se frustrar já que “[...] a grande indústria destrói
todos os laços familiares dos proletários e transforma seus filhos em simples
artigos de comércio, em simples instrumentos de trabalho” (MARX, ENGELS,
2009), diferente das relações familiares da burguesia capitalista, que tomou
para si os antigos hábitos da nobreza medieval.

A situação da família proletária só piorou com o passar das décadas, já


que o sistema capitalista de produção continuou a evoluir juntamente com o
“projeto ético político” dos detentores do poder (o burguês-capitalistas), que
com as inúmeras renovações tecnológicas, pode aumentar seu acumulo de
riquezas, com o uso de um menor número de trabalhadores, o que gerou no
mundo uma crise crônica do trabalho.

Podemos dizer que a classe trabalhadora está preza na localidade4, já


que depende das manobras dos capitalistas com suas mega-indústrias,
portanto podemos considerar que as famílias vivem em um estado de continua
desconstrução de sua identidade, pois devem se adequar aos mandos do
sistema, que são transmitidos através do Estado e dos meios de comunicação
em massa, favorecendo a alienação e o consumismo, sobre isso nos escreve
muito bem Bauman, “no cabaré da globalização, o Estado passa por um strip-

4
Termo aqui entendido como espaço de conflitos sociais, ou a luta de interesses antagônicos, de um lado
o projeto ético político da classe burguesa e do outro lado o projeto ético político da classe proletária
(trabalhadora).
tease e no final do espetáculo é deixado apenas com as necessidades básicas:
seu poder de repressão”. (OP.CIT., p. 74)

Freres, Rabelo e Segundo (s/d) afirmam que:

Ora, o capital, como já dissemos, gera contradições em todos os


âmbitos da vida humana que não podem ser resolvidos em seu
próprio interior. Esses problemas atingiram níveis alarmantes, mas
não interessa ao capital resolvê-los, e, sim, reduzi-los, já que são
empecilhos para o próprio sistema (e colocam em risco, inclusive, a
existência da própria humanidade). Na tentativa de reduzi-los, o
capital responsabiliza os próprios indivíduos através de mecanismos
ideológicos. Estes devem “fazer a sua parte”, ser solidários, ter
espírito de cooperação, cuidar da sua cidade, seu bairro, sua rua ou,
melhor ainda, sua casa (“pense globalmente, aja localmente”), dando
mais do que recebem. Sob o capital, os indivíduos adotam os
interesses do sistema como seus próprios interesses. (Disponível em
http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe5/pdf/932.pdf)

No sistema capitalista o importante é promover o desenvolvimento


econômico e todos os seres devem ser educados para este sentido, sejam
adultos ou não. Como sistema econômico, no capitalismo os lucros
permanecem para os proprietários e o trabalho assalariado pode ser tomado
como uma de suas marcas. A exploração da força de trabalho, não exclui
jovens, adultos, homens, mulheres. Todos se tornam parte do processo de
produção e são parte dele. Não se trata de uma questão de escolha, a pessoa
é direcionada para fazer parte e nem se dá conta de suas particularidades.
Segundo Guerra (2005), a família enquanto instituição tradicional de
cuidado e proteção, tem passado por grande crise, resultado da
hegemonização do sistema capitalista de produção, que acaba por introduzir
no homem valores ‘avessos’ a sua ‘natureza’ humana, colocando assim em
risco a convivência familiar.
Podemos observar que as crianças são as maiores vitimadas nesse
processo de construção de novos valores nos moldes do atual estágio do
sistema capitalista e no advento da globalização, onde as relações culturais se
tornam cada vez mais liquidas como nos diz Guerra (2005) “A sociedade
responde ás exigências da criança em termos de seu modo de produção, suas
estruturas, sua organização” (OP.CIT., p. 94).
Embora tenha havido um florescer de movimentos pelos direitos da
criança a partir da década de 1950, com a Declaração do Direito da Criança -
(ONU) com repercussão mundial, que motivaram a elaboração de outras
declarações e estatutos pelo mundo nas décadas subsequentes, no Brasil, de
forma mais tardia, em 1990, com a promulgação do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), a criança ainda é extremamente negligenciada em seus
direitos fundamentais, violentada constantemente em âmbito familiar e
comunitário.
As transformações advindas do sistema capitalista na sociedade, em
especial no bojo das relações familiares, não podem ser desprezadas.
Sabemos que a instituição familiar vem sendo colocada em evidência pelas
atuais políticas públicas de controle e proteção social. Na realidade, embora as
políticas públicas se voltem às famílias, no mundo capitalista tudo tem sua
lógica e a dinamicidade dos fatos, a necessidade de providenciar meios de
sobrevivência, dentre outros fatores, levam as pessoas a não reflexão dos
acontecimentos que os cercam e, com isso, sustentam as bases do sistema
vigente.
Partindo dessa premissa, nosso objetivo é trazer parte da realidade da
escola de ensino fundamental “Ciranda” (nome fictício) da rede municipal de
ensino, do Município “Patati-Patata” (nome fictício), onde estagiamos em 2011,
e observamos várias situações que nos conduziram a elaboração deste
material.
Nesse espaço escolar pudemos ver com muita frequência o descuido, a
violência verbal e física dos responsáveis para com os ‘pequenos’, o
esquecimento dos filhos na escola, as marcas de castigos disciplinadores
vindos da convivência domiciliar, a brutalidade no tratamento e nos gestos,
percebemos ainda que essas crianças violadas em seus direitos, por muitas
vezes cometiam atos de indisciplina escolar, sendo esse muito mais um ‘grito
de socorro’ por parte das crianças do que um ato de imoralidade social.
Situações essas acompanhadas pelos conselheiros tutelares do
município de “Patati-Patata” (nome fictício), que têm como princípio promover o
atendimento de crianças e adolescentes, buscando a garantia dos direitos
previstos na Lei 8.069/90 (ECA), dado que essas mesmas crianças se
encontram em situação de risco, sendo também acompanhadas por outras
instituições como o Centro de Referência de Assistência Social (CREAS), e até
mesmo detém passagens pela Polícia Militar e Civil. A nosso ver, essas
situações extrapolam a área de intervenção da escola, que confia ao Conselho
Tutelar o papel de acompanhamento e registro de ocorrências de indisciplina
dessas crianças em estado de vulnerabilidade social.
Para melhor entender o que queremos trazer, iremos apresentar a
análise do resultado da pesquisa de caráter documental (a partir dos relatórios
do Conselho Tutelar do Município de “Patati-Patata”, em casos considerados
como de vulnerabilidade familiar e violação de direitos da criança), que
realizamos para a construção do trabalho de conclusão de curso em Serviço
Social. Foram selecionados três casos desde as primeiras ocorrências
atendidas no Conselho até o ano de 2012. O critério de seleção foi à faixa
etária escolar fundamental, de sete (7) a doze (12) anos incompletos, crianças
que estão matriculadas ou já estudaram na escola “Ciranda”, sendo casos
acompanhados do ano de 2010 a 2012. O uso do material referido foi deferido
pelo Juiz de Direito da 2° Vara Criminal, do Júri e da Infância da Comarca de
Assis/SP.
A partir desses documentos foram realizadas analise de conteúdo,
extraindo-se categorias importantes para o tema estudado, como a violência de
gênero nas suas mais variadas formas, a negligência familiar, a ausência da
criança no meio escolar, a marginalização dos indivíduos, enfim, as mais
variadas expressões da questão social, que se tornam latentes com o evoluir
do sistema capitalista.
Nosso objetivo era de demonstrar a relação existente entre a evolução
do sistema capitalista de produção que esgarçou os tradicionais laços
familiares, trazendo novas formas de se relacionar a partir dos mandos do
senhorio do capital, tornando cada vez mais latente as inúmeras expressões da
questão social, que acometem principalmente as crianças da classe proletária.

Pesquisa e a latente violação do Direito da Criança no contexto capitalista

Ao nos debruçarmos sobre os relatórios de casos contidos no Conselho


Tutelar do município de “Patati-Patata”, observamos grande número de casos,
estando esses em andamento ou já concluídos. São situações onde crianças e
adolescentes se tornam vítimas de seus responsáveis, ou se tornam infratores
e ‘indisciplinados’ perante a sociedade.

Para melhor trabalharmos com análise dos três casos selecionados e


facilitar ao leitor sua identificação e respeitar as normativas éticas, serão
divididos em ‘Caso A’, ‘Caso B’ e ‘Caso C’. Os nomes dos sujeitos envolvidos
na pesquisa são de caráter fictício (conforme determinação do Juiz de Direito
da 2° Vara Criminal, do Júri e da Infância da Comarca de Assis/SP).

Iniciamos então nossa análise com o “Caso A”, na qual os conselheiros


tutelares realizaram acompanhamento a uma família cuja composição é
formada pelo pai de nome João, que trabalha em uma das indústrias de álcool
da região, tendo a carga horária no período noturno. A mãe Anastácia também
trabalha no período noturno. Ambos são assalariados e moram em casa
alugada. O casal tem três filhos, sendo dois adolescentes e uma criança, que
denominamos como Pedro, com nove (9) anos e estuda na escola “Ciranda”,
que pertencente à rede pública municipal de ensino, onde demonstra grande
indisciplina, que aqui pode ser entendido como a desobediência na sala de
aula, xingamentos e agressões feitas contra colegas e funcionários da escola,
gerando registros de ocorrência do Conselho, que em sua maioria têm como
denunciante a escola “Ciranda”.

Em um dos relatórios de atendimento analisados percebemos a


indisponibilidade dos pais em cuidar do filho, devido aos horários de trabalho,
sendo chamados pela escola, constantemente, por situações de denúncia, pela
indisciplina. Os pais não puderam comparecer em reuniões agendadas pela
diretoria local, sendo assim o Conselho Tutelar fora acionado para tentar tomar
frente à situação. Foram feitas várias tentativas para encontrar a família por
telefone, até que em visita em loco conseguiram encontrar a mãe do menino
que estava em dia de folga.

A mãe relatou aos conselheiros que ela e seu marido trabalham a noite,
e de dia têm de dormir, por isso não compareceram as reuniões marcadas pela
escola, o que nos mostra a opressão realizada pelo sistema capitalista de
produção, que suga as forças físicas e até mentais dos trabalhadores,
tornando-os meros espectadores da vida dos filhos.

Nessa situação especifica, após a visita domiciliar, os pais procuraram o


Conselho Tutelar para relatar que não conseguem manter o filho (Pedro) em
casa, sendo que o menino passa muitas horas na rua, inclusive de madrugada,
horário que os pais estão trabalhando. O Senhor João disse ao conselheiro
tutelar que anotou em relatório “Trabalho a noite e de manhã tenho de dormir,
não tenho tempo para ver onde ele anda”. Os genitores disseram ainda que
foram chamados a comparecer na escola “Ciranda” pois o menino estava
aparecendo cotidianamente com os olhos vermelhos e suspeitou-se que Pedro
estaria fazendo uso de substâncias ilícitas.

Vejamos então a gravidade desse caso atendido pelo Conselho Tutelar,


onde não se percebe, dentro da família, o papel dos pais em relação aos
cuidados para com os filhos, sendo que a intensidade do trabalho dos pais não
permite esse cuidado, ou seja, cumprir com o descrito no Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA) Artigo 4°, colocando a família como responsável pelo
cuidado para com as crianças, juntamente com o Estado e a comunidade, o
que acaba se tornando impossível dada à realidade social vivenciada, que têm
no trabalho assalariado a solução alienante para todos os problemas.

Percebemos então a negligência por parte da família de Pedro, que


começa a ser acolhido pela rua, onde possivelmente foi aliciado por traficantes,
servindo de ‘aviãozinho’5 para os criminosos, fato que é percebido na escola,
aonde o garoto cotidianamente chega com os olhos vermelhos. Notou-se
também mudanças comportamentais, e uma situação, em especial onde Pedro
relatou aos colegas e a professora que usava drogas “maconha”, mostrando
até a forma de se usar, sendo possível comprovação de que essa criança
estava sendo objeto de exploração do tráfico de drogas.

É tamanha a despreocupação dos genitores para com Pedro, não em


um sentido moralizante, mas percebendo-se a realidade dos pais inseridos no

5
Nome dado pelo mundo do tráfico a crianças e adolescentes que lhes servem de transporte para drogas, a
fim de tentar passar despercebido pelas autoridades policiais.
mercado de trabalho, lutando supostamente pelo bem-estar da família,
encontrando-se agora em um mar de frustrações. Percebemos isso em um
relatório de atendimento feito pelo Conselho Tutelar devido à denúncia
realizada pela direção da escola “Ciranda”, onde os pais foram chamados na
escola, pois Pedro estava com um colega, ambos sem roupa com uma menina
da mesma idade, onde tinham a intenção de fazer sexo, chegando também ao
conhecimento dos genitores que o menino teria tido relação sexual com um
garoto em um local público, e seu pai estava presente assistindo a atividade.
Ao serem indagados sobre o fato Sr. João disse não ter visto nada, a mãe
Anastácia solicitou ajuda da escola e do Conselho sobre essa situação.

Nesse acontecimento em especial, percebemos o grave estado de


vulnerabilidade que se encontra Pedro, apresentando sinais de que possa estar
sendo explorado e violentado sexualmente, pois sabemos que as drogas e o
próprio descuido por parte da família são a porta de entrada para outras
situações de vulnerabilidade social, como o uso da sexualidade de forma
perigosa.

O Conselho Tutelar com o objetivo de proteger a criança que está tendo


seus direitos violados, encaminhou Pedro para o Centro de Saúde Mental,
onde seria realizada triagem, porém a mãe da criança não se prontificou a levá-
lo devido à falta de tempo, uma vez que começou a realizar ‘bicos’ no período
da tarde, a fim de aumentar a renda da família. Percebemos aqui a alienação
posta à classe trabalhadora, que busca incessantemente a satisfação material,
que na verdade favorece a classe burguesa detentora dos meios de produção,
deixando assim o cuidado para com a criança em segundo plano.

Salientamos que foram muitas as intervenções feitas pelo Conselho


Tutelar junto à escola municipal “Ciranda”, devido a situações de indisciplina de
Pedro, o que é relatado em um dos registros de atendimento, onde a
professora da criança afirma que Pedro perde a apostila escolar, agride os
colegas, não faz as tarefas e atrapalha os amigos. Como se vê a falta de
atenção por parte dos pais afeta os serviços que atendem à criança, que sem a
colaboração dos genitores se vê limitada em modificar a realidade na qual
Pedro se encontra inserido. Mais uma vez, percebemos que os pais não
conseguem apurar a gravidade da situação, até mesmo pela necessidade de
prover a subsistência familiar, que provavelmente para eles, seja a prioridade
neste momento. Entretanto, a longo prazo, sabemos que os resultados serão
perversos à criança e à família.

Ademais, é muito comum ver o menino perambulando pela cidade e os


pais sempre que chamados a comparecer na direção escolar alegam não ter
tempo para cuidar do filho devido ao excesso de trabalho. Portanto é clara a
influência que o mundo capitalista exerce sobre família, afetando a relação
parental e influenciando decisivamente sobre eles. É um sistema perverso,
onde aqueles que fazem parte, acabam agindo mecanicamente, sem a
possibilidade de reflexão ampla sobre este contexto. Vê-se a exploração da
mão de obra dos pais em detrimento à educação e formação do filho, de modo
que a situação atual acaba impulsionando a criança ao mundo negro e cruel.
Coloca a família como vítima do sistema capitalista e, apesar do Estado, por
vezes se colocar como aquele que oferece serviços e políticas públicas para
amenizar situações como esta, neste caso, pouco tem atendido à demanda.

Neste sentido, a sociedade em geral, acaba por seguir as determinações


do sistema de produção e, da mesma forma que a situação sócia familiar
apresentada, acaba por se deixar envolver pelas amarras do processo
produtivo do sistema capitalista, tornando-os também vítima deste sistema e
vitimadores das crianças e adolescentes.

Passaremos agora para o “Caso B”, chamaremos as crianças de Ana


que têm sete (7) anos, Beatriz de nove (9) anos, Julia de (11) anos, tendo
também um irmão de quinze (15) anos chamado Antonio. Todas são alunas da
escola “Ciranda”, sendo filhas de Rita, que está desempregada, e Marcos que
trabalha no meio rural, ganhando um salário por mês, quando encontra para
quem trabalhar, já que também é alcoólatra e nem sempre é visto com bons
olhos pelos proprietários agrícolas, moram atualmente em uma casa cedida por
parentes, ambos estudaram até a oitava série, através dos relatórios contidos
no Conselho Tutelar observamos a naturalização da violência física
disciplinadora no seio familiar, como veremos a seguir.
Sabemos que o meio de vivência de crianças e adolescentes podem
levá-los a cometer atos que são imorais perante a comunidade, e até mesmo
se envolver em situações de descumprimento da Lei criminal estabelecida, é o
que vemos em um dos relatórios de atendimento do Conselho Tutelar, devido a
um Boletim de Ocorrência da Polícia Civil, feito pela irmã de Rita, que acusa o
adolescente Antonio de abusar sexualmente de sua filha.

A situação não parou por aí, dado que o cunhado resolveu se vingar,
violentando fisicamente as crianças Ana, Beatriz e Julia. Quando interrogada
pelo delegado Rita quis encobertar a ação violenta do cunhado, dizendo que
era ‘invenção das crianças, ele não bateu nelas tanto assim’. Deduzimos por
esta fala, a fragilidade dos laços familiares da classe proletária, e a
naturalização da violência física, aqui empregada como forma de justiça contra
uma suspeita de um ato delituoso.

Tendo em vista a proteção dessas crianças que já estão violadas em


seus direitos fundamentais e o atendimento a família que está em estado de
vulnerabilidade, o Conselho Tutelar encaminhou o caso para o Centro de
Referência Especializado de Assistência Social, porém a genitora Rita não
aceitou realizar o acompanhamento, afirmando que sua família está muito bem,
sendo ela uma ótima mãe e Marcos um bom pai, e que suas filhas têm
‘regalias’ até demais.

Devemos considerar que cada família está inserida em um contexto


cultural, e têm total liberdade em decidir sobre o que é melhor para sua
vivencia, porém o ECA dessacralisa o poder familiar, quando esse coloca em
risco a vida de seus membros, protegendo crianças e adolescentes até mesmo
da ação dos pais quando necessário.

Novamente neste caso, fica latente a violação dos direitos das crianças,
pois são agredidas fisicamente, contrapondo o disposto no ECA. O ranço
cultural e muitas vezes a desinformação ocasionada pela ausência de acesso
escolar e ou outro tipo de formação pessoal, limita a atenção às crianças e as
coloca como vítimas de um processo dentro do sistema capitalista de
produção. Mais uma vez, a ação efetiva do Estado, em proteger as crianças se
torna ineficaz e deixa as crianças a mercê dos pais.
Sendo assim, o Conselho Tutelar passou a acompanhar diariamente a
família de Rita e Marcos, fazendo várias visitas domiciliares, indo também a
escola Ciranda onde estudam as crianças, a fim de cruzar alguns dados, e
fazer com que os pais se sensibilizem a participar de programas de proteção a
família no CREAS.

Porém o conselheiro sempre que teve oportunidade de conversar com


Rita, a percebeu bastante arredia as orientações, afirmando que sua família é
‘perfeita’ e que não precisa de nenhuma ajuda, afirmando ainda que não
aceitaria levar as crianças no atendimento psicológico, pois essas seriam
‘normais’, ou seja, embora o apoio esteja sendo oferecido pelo Conselho
Tutelar e pela rede de proteção a família, a genitora desconsidera que essa
seja uma demonstração de cuidado dela para com as filhas.

Em outra visita realizada pelo Conselho Tutelar, devido uma denúncia de


um vizinho, onde a mãe fora acusada de violentar as crianças fisicamente, e
explorar a filha mais velha de onze anos no trabalho doméstico para sair
‘passear’, ao chegar no local percebeu-se que a criança Ana apresentava
sinais de agressão pelo corpo, sendo que a própria genitora afirmou ter ‘batido’
nela e nas irmãs com o cinto, inclusive mostrou para os conselheiros o cinto
utilizado para desferir os golpes. Criticou ainda, a postura dos conselheiros
tutelares, dizendo que continuaria a ‘educar’ as filhas dessa forma para que
elas não se tornassem ‘biscates’, motivo pelo qual foi lavrado Boletim de
Ocorrência pelo Conselho Tutelar contra Rita.

Percebemos então a aplicação da violência física com um propósito


disciplinador, assim como era utilizado no país em seu período colonial, sendo
esse um traçado cultural que está presente no cotidiano das famílias
brasileiras.

Ao visitar a escola “Ciranda” o conselheiro teve a oportunidade de


conversar com a diretora da unidade que relatou o descuido da mãe para com
as filhas, que chegam sempre sujas e marcadas com sinais de ‘pancada’ pelo
corpo. O conselheiro conversou também com as meninas que disseram ter um
bom relacionamento com a mãe, porém salientaram que ela ingere bebida
alcoólica um pouco e não trabalha.
É possível, que a exclusão social – da economia formal, e a
precariedade da renda familiar expressa sua revolta e frustração nas filhas,
inclusive agredindo fisicamente, o não aceitar ajuda profissional também pode
significar a proteção de um espaço que lhe é privado. O marido sendo
trabalhador rural não consegue acompanhar diretamente a educação dos filhos
e prova-los de agressões por parte da mãe, pois o principal é prover o sustento
familiar. Assim, não consegue dar grandes garantias no sustento familiar,
estando todos estigmatizados pelo Sistema Capitalista de Produção.

No “Caso C” temos uma família formada pela mãe, Silvia e seu filho,
Tiago de nove (9) anos. O genitor teria os abandonado há pouco tempo,
perdendo-se assim a segurança econômica do domicilio, estando à mãe
‘encostada’ do trabalho por problemas emocionais, sendo requerida a visita do
Conselho por vizinhos da família, por notarem a dificuldade vivenciada na casa.

Ao chegar à residência, a mãe relatou que a criança se submete ao


acompanhamento psicológico, pois é muito agressiva, sendo que ela já foi
chamada muitas vezes na escola por atos de indisciplina do garoto. A genitora
ainda disse estar muito preocupada com a situação econômica da família, já
que não têm condições de trabalhar e o médico perito do INSS quer
interromper seu benefício, pois segundo o doutor, Silvia já está em condições
de trabalhar.

Isso nos reporta a situação de vulnerabilidade vivida por essa família,


onde não existe possibilidade de inserção no mercado de trabalho capitalista
por questões de saúde, ou seja, o próprio sistema, que deveria protegê-la e a
seu filho, a impulsiona a possibilidade de mais uma vez excluí-la, estando à
criança e a mãe marginalizados pelo próprio sistema, pertencentes agora ao
exército industrial de reserva, ou seja, proletários incapazes de produzir lucros
para a classe burguesa. Vê-se que neste caso, a referida senhora não conta
com outros métodos ou formação que lhe possa retirar desta possibilidade,
ameaçando-a e aos que dela dependem econômica e socialmente.

Num outro atendimento feito pelo Conselho Tutelar, devido à denúncia


de uma vizinha, o menino estava com uma faca na rua querendo atacar a neta
da moradora do lado de sua casa, ameaçando também as pessoas que
passavam na via pública. A mãe então relatou aos conselheiros que estava
certa de que o problema de seu filho era de fundo espiritual, pois Tiago não
gosta de ir aos cultos da igreja que a família frequenta.

Podemos destacar aqui a forte religiosidade presente na vida de nosso


povo, que muitas vezes acaba mistificando problemas de fundo social e
emocional, que devem ser atendidos de forma séria, por políticas públicas bem
elaboradas, mas tudo isso é muito agradável ao Capital que não precisa arcar
com suas responsabilidades perante as mazelas sociais em suas múltiplas
expressões.

Nesse caso devemos salientar que o Conselho Tutelar fora chamado


com muita frequência na escola “Ciranda”, devido à agressividade da criança
para com seus colegas, atitudes que começaram a ‘marcar’ o menino perante
as outras crianças da escola, que passaram a se afastar do garoto, excluindo-o
das brincadeiras, situação que fora notada pela diretora da escola que relatou
aos conselheiros tutelares.

Notamos então que Tiago passa a ser re-vitimizado dentro da própria


escola por seus colegas, que devido as suas atitudes de agressividade passa a
ser excluído da convivência social, o que aumenta seu estado de
vulnerabilidade dado que sua família já está sofrendo um processo de exclusão
por parte do Sistema Capitalista de Produção. Primeiro por seu pai que
sofrendo a enculturação e as incertezas do atual estágio do sistema capitalista
abandona o seio familiar, e sua mãe Silvia cercada pela frustração diante da
vida, e a impossibilidade de trabalhar devido a problemas de saúde, que não
são percebidos pela perícia do INSS, o que lhes causam insegurança e medo
diante do futuro.

Estando os conselheiros tutelares bem inseridos na compreensão dessa


realidade, decidiram se articular com a rede de serviços públicos,
estabelecendo contato com o Centro de Referência de Assistência Social
(CRAS) e o Centro de Referência Especializado em Serviço Social (CREAS)
para que possam tomar as devidas providências acerca da grave situação de
vulnerabilidade social que se encontra essa família.
Assim, este caso, como os demais aqui apresentados, para nós, sinaliza
a perversidade do sistema capitalista de produção em seu atual estágio de
desenvolvimento, já que a grande massa populacional pertencente à classe
proletária é excluída do usufruto dos bens produzidos, onde as relações
familiares são cada vez mais transformadas e enfraquecidas a partir das
refrações do sistema econômico vigente, sendo as crianças as maiores vítimas
nesse processo de metamorfose da sociedade, dado a sua qualidade de ser
humano em franco desenvolvimento.

Referências

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de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2010.

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sociedade capitalista: uma análise onto-histórica. Disponível em
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GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Violência de Pais Contra Filhos: a


tragédia revisada. 5° Edição. São Paulo: Cortez Editora, 2005.

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MORGAN In ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade


privada e do estado. São Paulo: Expressão Popular, 2012.

Recebido: 28/03/2019

Aprovado: 01/06/2019

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