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TEXTO: CAPÍTULO 1 – COMUNIDADES TRIBAIS: A EDUCAÇÃO DIFUSA.

ARANHA, M. L. de A. História da educação e da pedagogia: geral e Brasil. 3 ed. São Paulo: Moderna, 2006.
Segundo uma explicação literal e, portanto, simplificadora, costuma-se caracterizar a vida tribal, marcada
pela tradição oral dos mitos e ritos, como pré-histórica, por ter ocorrido “antes da história”, quando os povos ainda
não tinham escrita e, por conseguinte, não registravam os acontecimentos.
A pré-história constitui um período extremamente longo, em que instrumentos utilizados para a sobrevivência
humana se transformaram muito lentamente. É bom lembrar que as mudanças não ocorreram de forma igual em
todos os lugares. Também não há uniformidade no tempo, uma vez que o modo de vida das tribos dos primórdios não
desapareceu de todo, tanto que ainda há tribos que vivem dessa maneira na Austrália, na África e no interior do
Brasil.
A Idade da Pedra Lascada (Paleolítico) e a Idade da Pedra Polida (Neolítico) representam momentos diversos,
em que as tribos passam de hábitos de nomadismo – sustentado pela simples coleta de alimentos – para a fixação ao
solo, com o desenvolvimento de técnicas de agricultura e pastoreio.
A terra pertence a todos, e o trabalho e seus produtos são coletivos, o que define um regime de propriedade
coletiva dos meios de produção. Em decorrência, a sociedade é homogênea, una, indivisível.
Com o tempo, a metalurgia, a utilização da energia animal e dos ventos, a invenção da roda e dos barcos a
vela ampliam a produção e estimulam a diversificação dos ofícios especializados dos camponeses, artesãos,
mercadores e soldados, tornando as comunidades cada vez mais complexas.
Veremos neste capítulo as características genéricas das comunidades “primitivas”, bem como a sua educação
difusa. É preciso lembrar que essas populações não tinham uma cultura homogênea, existindo diferenças conforme o
lugar e o tempo.

1. A cultura tribal

Estamos tão acostumados com a escola que às vezes nos parece estranho o fato de que essa instituição não
existiu sempre, em todas as sociedades. Nos demais capítulos, veremos as condições do aparecimento da escola, as
transformações ao longo do tempo, e também a relação indissolúvel entre ela e o modo pelo qual os indivíduos
interagem para produzir a existência. Antes, porém, veremos por que não há necessidade de escolas nas comunidades
tribais.
Por motivos diversos é muito difícil dar as características gerais desse tipo de sociedade. Primeiro porque, por
mais que façamos generalizações, há muitas diferenças entre tais sociedades, e depois porque, com frequência,
corremos o risco de etnocentrismo, ou seja, a tentação de avaliá-las segundo padrões da nossa cultura. Dessa
perspectiva, diríamos: as sociedades tribais não têm Estado, não têm classes, não têm escrita, não têm comércio, não
têm história, não têm escola.
Segundo o etnólogo francês Pierre Clastres, explicar as sociedades tribais pelo que lhes falta impede
compreender melhor a sua realidade e, em muitos casos, até tem justificado a atitude paternalista e missionária de
“levar o progresso, a cultura e a verdadeira fé” ao povo “atrasado”. Uma abordagem mais adequada, no entanto,
consideraria esses povos diferentes de nós, e não inferiores. Mesmo porque, afinal, nem sempre ausência significa
necessariamente falta. Aliás, o antropólogo Lévi-Strauss lembra como nós, urbanos, se por um lado ganhamos muito
com a tecnologia, por outro perdemos algumas de nossas capacidades, por exemplo, por utilizarmos
consideravelmente menos as nossas percepções sensoriais. Por isso mesmo, à falta de um termo melhor, Lévi-Strauss
prefere colocar aspas em “primitivo”, com a intenção de minorar a carga pejorativa do conceito.
De maneira geral as sociedades tribais são predominantemente míticas e de tradição oral. Para esses povos a
natureza está “carregada de deuses”, e o sobrenatural penetra em todas as dependências da realidade vivida e não
apenas no campo religioso, isto é, na ligação entre o individuo e o divino. O sagrado se manifesta na explicação da
origem divina da técnica, da agricultura, dos males, na natureza mágica dos instrumentos, das danças e dos desenhos.
Ao agir, o “primitivo” imita os deuses nos ritos que tornam atuais, presentes, os mitos primordiais, ou seja, cada
um repete o que os deuses fizeram no início dos tempos. Só assim a semente brota da terra, as mulheres se tornam
fecundas, as árvores dão frutos, o dia sucede à noite e assim por diante. As danças antes da guerra, por exemplo,
representam uma antecipação mágica que visa a garantir o sucesso do confronto. Do mesmo modo, os caçadores
“matam” suas futuras presas ao desenhar renas e bisões nas partes escuras e pouco acessíveis das cavernas, como
ainda poderemos ver em Altamira (na Espanha) e Lascaux (na França). Também no Brasil foram descobertos registro
rupestres, como os do centro arqueológico de São Raimundo Nonato, no Piauí, datados de 12 mil anos antes da
chegada dos colonizadores, e os da gruta da Pedra Furada, encontrados no Pará.
Os mitos e os ritos são transmitidos oralmente, e a tradição se impõe por meio da crença, permitindo a coesão
do grupo e a repetição dos comportamentos considerados desejáveis. Assim são constituídas comunidades estáveis, no
sentido de que nelas as mudanças acontecem muito lentamente. Por exemplo, os membros da tribo passam de um
estado a outro pelos ritos de passagem que marcam o nascimento, a passagem da infância para a vida adulta, o
casamento, a morte.
A organização social das tribos baseia-se em uma estrutura que mantêm homogênea as relações, sem a
dominação de um segmento sobre o outro. Mesmo que a divisão de tarefas leve a pessoas a exercerem funções
diferentes, o trabalho e o seu produto são sempre coletivos. Também as atividades das mulheres adquirem um caráter
social, por não se restringirem ao mundo doméstico.
No exercício do poder, algumas pessoas especiais – como o chefe guerreiro ou o feiticeiro xamã – possuem
prestígio, merecem a confiança das demais e geralmente são objeto de consideração e respeito. Em nenhum momento,
no entanto, abusam dos privilégios para estabelecer a relação mando-obediência. O chefe é o porta-voz do desejo da
comunidade como um todo e, nesse sentido, não dá ordens, mesmo porque sabe que ninguém lhe obedecerá. É sua
tarefa apaziguar os indivíduos ou famílias em conflito, apelando para o bom senso, para os bons sentimentos e para as
tradições dos ancestrais1. Dessa forma, as esferas do social e do político não se separam, e o poder não constitui
instância à parte, como acontece nas sociedades em que o Estado foi instituído.
As oposições, inexistentes na própria comunidade, geralmente surgem entre as tribos em guerra, ocasião em que
o chefe assume a vontade que a sociedade tem de aparecer como una e autônoma, falando em nome dela. Aliás, o
“primitivo” é guerreiro por excelência, e dessa disposição decorrem os valores apreciados pela comunidade e que são
objeto da educação.

2. A educação difusa

Nas comunidades tribais as crianças aprendem imitando os gestos dos adultos nas atividades diárias e nos
rituais. Tanto nas tribos nômades como naqueles que já se sedentarizaram, para se ocupar com a caça, a pesca, o
pastoreio ou a agricultura, as crianças aprendem “para a vida e por meio da vida”, sem que ninguém esteja
especialmente destinado para a tarefa de ensinar.
A cuidadosa adaptação aos usos e valores da tribo geralmente é levada a efeito sem castigos. Os adultos
demonstram muita paciência com os enganos infantis e respeitam o seu ritmo próprio. Por meio dessa educação
difusa, de que todos participam, a criança toma conhecimento dos mitos dos ancestrais, desenvolve aguda percepção
do mundo e aperfeiçoa suas habilidades.
A formação é integral – abrange todo o saber da tribo – e universal, porque todos podem ter acesso ao saber e
ao fazer apropriados pela comunidade. É bem verdade que alguns se destacam, detendo um conhecimento mais amplo
ou especial – como no caso do feiticeiro – , o que, no entanto, não resulta em privilégio, como já foi dito.
O conhecimento mítico imprime uma tonalidade especial à educação, pois os relatos aprendidos não são
propriamente históricos, no sentido da revelação do passado da tribo. Diferentemente, o mito é atemporal e conta o
ocorrido no “início dos tempos”, nos primórdios. Daí os diversos ritos que marcam as passagens, como o nascimento e
a morte ou ainda a iniciação à vida adulta (ver leituras complementares).

3. Para além da vida tribal

A escrita surge como uma necessidade da administração dos negócios, à medida que as atividades se tornam
mais complexas. As transformações técnicas e o aparecimento das cidades em decorrência da produção excedente e da
comercialização alteraram as relações humanas e o modo de sua sociabilidade. Com o tempo, enquanto nas tribos a
organização social era homogênea, indivisa, foram criadas hierarquias devido a privilégios de classes, e no trabalho
apareceram formas de servidão e escravismo; as terras de uso comum passaram a ser administradas pelo Estado,
instituição criada para legitimar o novo regime de propriedade; a mulher, que na tribo desempenhava destacado papel
social, ficou restrita ao lar, submetida a rigoroso controle da fidelidade, a fim de garantir a herança apenas para os
filhos legítimos.
Finalmente o saber, antes aberto a todos, tornou-se patrimônio e privilégio da classe dominante. Nesse
momento surgiu a necessidade da escola, para que apenas alguns iniciados tivessem acesso ao conhecimento. Se
analisarmos atentamente a historia da educação, veremos como a escola, ao elitizar o saber, tem desempenhado um
papel de exclusão da maioria.
Algumas dessas transformações e suas consequências para a educação serão vistas nos próximos capítulos.

1
Pierre Clastres, Arqueologia da violência: ensaio de antropologia política. São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 108.

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