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CAP. 3
A EDUCAÇÃO, NUM CONTEXTO
CULTURAL
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A EDUCAÇÃO, NUM CONTEXTO CULTURAL

Foi comentado, anteriormente, que o significado dado pelo


homem à sua existência provém de um jogo entre o sentir (viven­
ciar) e o simbolizar (transformar as vivências em símbolos). Ou
seja: o mundo humano tem na linguagem o seu instrumento básico
de ordenação e significação. Porém, temos que notar que a lingua­
gem é um fenômeno essencialmente social, produto não de um
indivíduo isolado, mas de comunidades humanas.
Desde o nosso nascimento, a forma como devemos ver e
entender o mundo nos é ensinada pelos nossos semelhantes através
da linguagem. Para a criança, "as coisas lhe vêm vestidas em
linguagem, não em sua nudez física; e esta vestimenta de comuni­
cação a torna participante nas crenças daqueles que a rodeiam",
anota Dewey, um educador norte-americano. Quer dizer: somos
educados primordialmente através do código lingüístico da comu-

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nidade em que estamos. Somos levados a compreendermo-nos no de falar, sentir, entender e agir no mundo. Uma cultura significa
mundo segundo os significados dados por esse código. um grupo humano que apresenta características próprias em suas
construções e formulações: possui um determinado sistema polí­
A partir daí, as significações que encontraremos para nossa
tico, econômico, crenças, língua, religião, arte, costumes etc. Cada
vida se desenvolvem em conformidade com a maneira de ser de
cultura apresenta uma fisionomia particular, um "jeito de ser"
nosso grupo social. Notem ainda que, na realidade, nossa "postura
básico que é compartilhado por seus membros.
humana" é aprendida. Aprendemos a ser humanos: a perceber e a
vivenciar o mundo como homens, através da comunidade. Fora de Pode-se então falar no "estilo de vida do chinês", no "modo
um contexto social não há seres humanos. britânico de ser", no american way of life e no "jeitinho que o
brasileiro sempre dá". Quando fazemos tais afirmações estamos
Este fato é facilmente evidenciável pelo relato de estudiosos
notando que indivíduos de diferentes culturas apresentam determi­
a respeito de algumas "crianças-selvagens" encontradas. Trata-se
nados traços peculiares em sua forma de viver, que os diferenciam
de crianças que, sendo perdidas ou abandonadas nas selvas em
uns dos outros. Por esse motivo diz-se que todos nós apresentamos
tenra idade, foram "adotadas" e criadas por animais (Tarzan e
uma determinada personalidade cultural, ou seja, um conjunto de
Mógli têm um fundo de realidade). Ao serem encontradas,já beirando
traços que são comuns a todos os membros de nosso grupo cultural.
a adolescência, bem pouco de humano havia nelas: andar quadrú­ ,
pede, dentes mais desenvolvidos, grunhir e uivar e�·am suas carac­ Assim, quando somos "socializados" - quando aprendemos
a ser humanos - estamos também aprendendo o estilo de vida de
terísticas. Trazidas ao convívio dos homens pouco conseguiram
nossa comunidade. Estamos adquirindo nossa personalidade cul­
aprender e logo morreram, sucumbindo à sociedade. Elas haviam
tural. Alguns autores chamam esse mecanismo pelo qual somos
aprendido a ser animais, e o mundo humano lhes era estranho.
iniciados no estilo de vida de nossa cultura de endoculturação.
Tornamo-nos humanos, portanto, em decorrência de um Endoculturação é, então, esse processo pelo qual todos nós passa­
processo educativo cujo principal veículo é a linguagem. Por ela mos, "interiorizando" um estilo cultural de viver.
aprendemos a ordenar o mundo numa estrutura significativa e
Nas culturas chamadas "primitivas" - nas tribos indígenas,
adquirimos as "verdades" da comunidade onde deveremos viver.
por exemplo - devemos notar que existe uma certa uniformidade
Tal processo educacional primário - aprender a ser humano - é
na maneira de ver o mundo. Todos os seus membros participam
chamado de socialização, por alguns autores. A criança é sociali­
inteiramente do universo cultural, simbólico, que constitui a co­
zada: adquire uma linguagem e, com ela, uma determinada forma
munidade. Quer dizer: há um saber comum a todos, que é trans­
de falar, pensar e agir, segundo a cultura em que está.
mitido de geração a geração, indiscriminadamente. Todos aprendem
O final do período anterior foi grifado porque precisamos a caçar,a pescar,a construir suas armas,utensílios,vestimentas; todos
notar agora um fenômeno fundamental. Diferentes comunidades aprendem seus mitos, crenças, costumes etc. Todos são mestres de
humanas constituem culturas distintas, isto é, maneiras diversas

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li

todos. O saber é transmitido indistintamente, através da própria ocorre a aprendizagem quando os conceitos e símbolos ensinados
vida do dia-a-dia. se referem às experiências vividas - notamos que entre os primi­
Já em nosso mundo dito "civilizado" essa uniformidade cultural tivos o processo ele aprendizagem é fluente e natural. "Vivendo e
não existe. Dentro de uma cultura encontramos grupos distintos, que aprendendo", a famosa máxima, aplica-se perfeitamente ao caso.
apresentam formas diferentes (e, às vezes, conflitantes) de viver. São Contudo, no decorrer do processo civilizatório operaram-se
as chamadas subculturas. Podemos considerar, numa dada cultura, profundas e radicais transformações. O conhecimento foi se am­
diversas maneiras de se identificar suas subculturas. Por exemplo: em pliando e na sociedade ocorreram divisões entre grupos de indiví­
termos geográficos, etários, econômicos etc. duos. Tais divisões - fundamentalmente econômicas, baseadas na
Vejamos o Brasil. Em termos geográficos, podemos consi­ propriedade privada - implicaram também uma divisão social do
derar o gaúcho, o carioca e o nordestino como pertencentes a subcul­ saber. Havia que se criar especialistas, pessoas que dominassem
turas diferentes; isto é: todos são brasileiros (possuem traços um determinado ramo do conhecimento (médicos, artistas, marce­
comuns), mas apresentam características próprias de viver. Em neiros, ferreiros etc.), através do qual ganhassem a vida. A socie­
termos etários, poderíamos falar na "visão de mundo dos jovens", dade foi se dividindo em castas e classes, e o saber sendo repartido
na "dos adultos", na "dos velhos" etc. E em termos econômicos - entre elas - de forma desigual, é claro.
como muito bem apontou Marx - dividiríamos nossa sociedade Surgiu, então, a figura da escola como um local onde é O(..

em classes: alta, média e proletariado. Essa divisão socioeconômi­ transmitido, às novas gerações, um determinado conhecimento
ca já gerou, inclusive, termos como: "cultura de elite" e "cultura básico - o domínio dos símbolos gráficos, primordialmente - que
popular" (ou "cultura de massas"). as habilitaria a melhorar seu desempenho no mercado de trabalho.
Estamos fazendo esta comparação entre as culturas "primi­ De início o acesso às instituições escolares foi bastante restrito às
tivas" e as "civilizadas" para que compreendamos melhor o pro­ classes altas, às classes dominantes, já que o trabalho exercido
cesso educacional, que evolui desde a transmissão direta do saber, pelas classes subalternas demandava apenas um "conhecimento
entre os primitivos, até a criação das escolas, entre os civilizados. prático" do ofício. Lavradores, ferreiros, marceneiros, pedreiros
etc. transmitiam diretamente a seus filhos ou aprendizes o seu
Como foi assinalado, nas culturas primitivas todos partici­
saber. Ler e escrever, e o conseqüente domínio "teórico" sobre o
pam de seu universo de saber: o acesso ao conhecimento é fran­
mundo, era privilégio das classes dominantes. Observa-se já neste
queado a todos; cada um tem consigo a herança cultural da tribo e
ponto a separação entre o pensar e o fazer, entre aqueles que têm
a transmite às novas gerações. Essa transmissão se dá, ria grande
idéias e aqueles que as executam.
maioria elas vezes, de maneira "informal", isto é, no contato diário
e vivencial entre adultos e crianças. Aprende-se com a experiência. Todavia, com a Revolução Industrial, foi necessário que a
Se recordarmos o que foi dito no capítulo anterior - que somente escola fosse franqueada cada vez mais também às classes subal-

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ternas. Isso porque a criação de técnicas mais sofisticadas de o lugar ocupado pela verdade teológica na Idade Média; em geral
produção industrial exigia um maior conhecimento por parte dos se acredita apenas nos fatos cientificamente comprovados, rele­
trabalhadores, a fim de que seu desempenho se otimizasse nas gando-se outras formas do conhecimento (arte, filosofia) a um
indústrias. Ler e escrever torna-se então um fator determinante plano inferior. A racionalidade, o "saber objetivo", tornou-se 0
para o manuseio de máquinas mais sofisticadas e para melhor valor básico da moderna sociedade.
enquadramento nas modernas organizações. Nada mais natural, portanto, que as escolas se orientassem
Principalmente para a classe média que começava a se no sentido do conhecimento objetivo, racional da vida. De certa
constituir, ocupando as posições intermediárias no comércio e nas forma, a escola se dirige atualmente à transmissão de conhecimen­
atividades burocráticas, a escola é um fator bastante importante em tos tidos como "universais", isto é, válidos para qualquer indivíduo
sua formação. em qualquer parte do mundo. A escola tem como função a comuni­
cação de fórmulas científicas que, espera-se, habilitem o sujeito a
É claro que o quadro traçado nos parágrafos anteriores é
conhecer racionalmente o mundo e nele operar produtivamente.
bastante esquemático e simplificado, pois não se pode pretender
levantar aqui a história da educação e do surgimento das institui­ Em certo sentido estamos vivendo uma civilização raciona­
ções escolares. Interessa-nos apenas verificar agora algumas ca­ lista, na qual se pretende separar a razão dos sentimentos e emoções,
racterístic�s principais da escola em nossos tempos, especialmente encontrando-se na primeira· o valor máximo da vida. Ocorre que
da escola brasileira. essa separação é ilusória. Como assinalamos no capítulo anterior,
é somente com base nas vivências, no sentimento das situações, que o
Em primeiro lugar é preciso notar que hoje, mais do que
pensamento racional pode se dar. O pensamento busca sempre trans­
nunca, o volume do conhecimento humano é enorme e altamente
formar as experiências em palavras, em símbolos que as signifiquem
setorizado e especializado. Com o advento da ciência, que é
e representem. A razão é uma operação posterior à vivência (aos
bastante recente (cerca de 350 anos), houve que se dividir o mundo
sentimentos). Vivenciar (sentir) e pensar estão indissoluvelmente liga­
e a vida em áreas distintas, para um maior domínio e um conheci­
dos. Comenta Rollo May, um psicólogo norte-americano:
mento mais acurado. Assim é que surgiram ( e a cada dia surgem
outras novas) especializações, como: a biologia, a física, a química,
Mas surgiu urna nova mudança no século XIX. Psicologicamente
a economia, a sociologia, a psicologia etc. A natureza, o homem e
a "razão" foi separada da "emoção" e da "vontade". Para o homem
a sociedade foram repartidos em fatias, e cada especialista se ocupa
de fins do século XIX e princípios do XX a razão respondia a
de uma delas. qualquer problema, a força de vontade o resolvia e as emoções...
A ciência tornou-se a pedra fundamental no edifício do saber bem, estas em geral atrapalhavam e o melhor era recalcá-las.
e do agir humanos, e sobre esse conhecimento científico repousam Vemos então a razão (transformada em racionalização intelectua­
os nossos critérios de "verdade". A verdade científica ocupa hoje lista) ao serviço da compartimentalização da personalidade...

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Quando Spinoza, no século XVII, empregou a palavra razão diante. E máis: dentro da medicina, por exemplo, criam-se ainda
referia-se a uma atitude em relação à vida, na qual a mente unia as mais especializações, fracionando o organismo humano - o car­
emoções às finalidades éticas e outros aspectos do "homem total". Ao diologista vê apenas o coração, separado do resto do organismo, o
usar hoje esse teimo, quase sempre se deixa implícita uma cis�o da
1, oftalmologista os olhos, o dermatologista a pele etc.
personalidade. (O homem à procura de si mesmo. Petrópolis, Vozes, 1'
1973, p. 42) r ,/ '- • r
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O que acontece nas culturas primitivas - uma visão total e
abrangente do conhecimento ali produzido pelos indivíduos -
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Assim, em nosso ambiente escolar, essa separação razão-
7ff', 1

perde-se irremediavelmente em nossa civilização. Falta às pessoas


· uma visão cultural do todo em que vivem. Cada um possui conhe­
emoção é não só mantida como estimulada. Dentro de seus muros
cimentos parciais, desconexos, sem uma visão de mundo que os
� eve penetrar despindo-=. se de toda e qualquer emotividade.
integrem num todo significativo. Hoje um homem pode trabalhar
Sua vida, suas e�periências pessoais não contam. Ele ali está apenas
numa fábrica de armas, ser membro de uma sociedade de defesa da
para "adquirir conhecimentos", sendo que "adquirir conhecimen­
ecologia, ir a teatros e ser um defensor intransigente da censura,
tos", neste caso, significa tão-somente "decorar" fórmulas e mais
como se tais atividades não fossem contraditórias entre si. Há uma
fórmulas, teorias e mais teorias, que estão distantes de sua vida
esquizofrenia (em grego literalmente= mente dividida) latente na
cotidiana. Por isso, pouca aprendizagem realmente ocorre em
organização de nosso mundo.
nossas escolas: somente se aprende quando se parte das experiên­
cias vividas e sobre elas se desenvolve a aplicação de símbolos e Nestes termos, a escola surge para produzir mão-de-obra ( � !, �·1-

1
conceitos que as clarifiquem. para O mundo moderno. Se este mundo está fracionado, que se
, eduque os indivíduos fracionadamente. Que se encaminhe desde f�
A escola, por conseguinte, inicia-nos desde cedo nas técnicas
cedo o cidadão para uma visão parcial da realidade. Que se separe
dQ_es_ uarteJàrriento mental, se�arando razão e sentimentos. Isto é
,( , _ a razão da emoção.
·\.J j compreens1vel segundo a log1ca que rege a moderna sociedade
1 industrial: os indivíduos devem produzir, num esquema raciona­ Convém também observar que a visão transmitida pela
lista, sem deixar as emoções e os valores pessoais interferirem no escola é sempre_a_visão determinada.. elas elas.ses dominantes. Não
processo. int� que as pessoas elaborem a sua visão de mundo, com base
na realidade concreta em que vivem. Importa, sim, a padronização
E para esta sociedade também não interessa a existência de
�do pensar, segundo os d�ames da lógica de produção in-du�trial.
pessoas com uma visão geral, do todo da vida. Pelo contrário:
<:-Todos devem ver o mundo da maneira como querem os dominan­
interessam indivíduos com uma visão cada vez mais setoriz.ada.
especializada, do mundo. O médico só entende de
medicina, �
tes, para que a atual situação se mantenha inalterada. Se cada um
começasse a formular o seu pensamento de acordo com a sua
economista de economia, o psicólogo de psicologia e assim por

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situação existencial pode ser que descobrisse determinadas verda­ Resumo das idéias principais
des que o fizessem lutar pela alteração dessa situação.
Daí o desinteresse da escola pela situação de cada um e a ® Nossa postura humana é aprendida através da socializa­
imposição de conceitos desvinculados de situações vividas. Apren­ ção, que se dá basicamente pela linguagem.
de-se que "a família é a unidade harmônica da sociedade", mesmo � Adquirimos desde cedo uma personalidade cultural, que
que a nossa esteja vivendo em total desarmonia. Aprende-se que é a maneira corno a cultura em que estamos vê, sente e
"o índio e o negro são raças importantes e determinantes na interpreta o mundo.
formação do brasileiro", mesmo que, atualmente, eles estejam � Nas culturas primitivas a educação se dá com a expe­
sendo dizimados e discriminados. Ou ainda, aprende-se que "nos riência.
tornamos independentes corno Nação em 1822", mesmo que atual­ ® No mundo civilizado e industrial separam-se as emoções
mente nossa economia esteja totalmente atrelada e dependente das e as experiências da razão e do pensamento.
grandes potências. A lista de "mentiras objetivas" fornecidas pela � A escola mantém e estimula essa separação, pois sua
escola é infindável... finalidade é preparar mão-de-obra para a sociedade in­
A educação, que deveria significar o auxílio aos indivíduos dustrial.
para que pensem sobre a vida que levam, que deveria permitir urna � A escola transmite conceitos desvinculados da vida con­
visão do universo cultural em que estão inseridos, se desvirtua nas creta dos educandos, ,·impondo a visão de mundo das
1;

escolas. Impõe-se uma visão de mundo e transmite-se conhecimen­ classes dominantes.


tos desvinculados das experiências de vida. Em suma: preparam-se
pessoas para executar um trabalho parcializado e mecânico, no
contexto social; pessoas que se preocupem apenas com o seu
trabalho (com o seu lucro), sem perceber corno ele se liga a todos
os outros no interior da sociedade. No fundo isto se constitui mais
num adestramento do que numa educação. É bom que se recorde
aqui a famosa frase do escritor irlandês Georges Bernard Shaw:
"Minha educação só foi interrompida nos anos em que freqüentei
a escola".

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