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Texto base 1 – História do Pensamento Jurídico

O NASCIMENTO DO DIREITO NA HISTÓRIA

Na maioria das sociedades remotas, a lei é considerada parte nuclear de


controle social, elemento material para prevenir, remediar ou castigar os desvios das
regras prescritas. A lei expressa a presença de um direito ordenado na tradição e nas
práticas costumeiras que mantêm a coesão social.
Assim, falar em um direito arcaico ou primitivo implica, contudo, ter presente
uma diferenciação da pré-história e da história do direito e ainda, quanto aos
horizontes de diversas civilizações, no sentido de precisar o surgimento dos primeiros
textos jurídicos com o aparecimento da escrita, tudo dependendo do grau de evolução
e complexidade de cada povo.
Por isso, o direito arcaico pode ser interpretado a partir da compreensão do tipo
de sociedade que o gerou. Se a sociedade da pré-história fundamenta-se no princípio
do parentesco, nada mais justo considerar que a base geradora do direito encontra-se,
primeiramente, nos laços de consanguinidade, nas práticas do convívio familiar de um
mesmo grupo social, unido por crenças e tradições.
Relativamente aos princípios e regras que governaram a sociedade grega e a
sociedade romana, por exemplo, há uma conexão íntima entre as instituições destes
povos, suas crenças religiosas e o direito privado.
É que a comparação das crenças e das leis demonstra que as famílias grega e
romana foram constituídas por uma religião primitiva, que estabeleceu o casamento e
a autoridade paterna, fixou os graus de parentesco, consagrou o direito de
propriedade e o direito de herança. Esta mesma religião, por haver difundido e
ampliado a família, formou uma associação maior, a cidade, e nela reinou do mesmo
modo que reinava na família. Desta se originaram todas as instituições como todo o
direito privado dos antigos. Foi dela que a cidade extraiu seus princípios, suas regras,
seus usos e sua magistratura. É mister, pois, estudar antes de tudo, as crenças destes
povos.
Num tempo em que inexistiam legislações escritas e códigos formais, as práticas
primárias de controle são transmitidas oralmente, marcadas por revelações sagradas e
divinas, vale dizer, constata-se esse caráter religioso do direito arcaico, imbuído de
sanções rigorosas e repressoras, fato que levou os sacerdotes-legisladores a serem os
intérpretes e executores destas leis (recebidas diretamente do Deus da cidade), onde o
ilícito se confundia com a quebra da tradição e com infração ao que a divindade havia
proclamado.
A função da religião, portanto, é suscitar a experiência do sagrado, experiência
esta que estrutura o mudo e o carrega de significações. O homem não pode viver no
caos, não pode existir humanamente sem a convicção de que há algo de
irredutivelmente real no mundo e foi através da experiência humana do sagrado que o
espírito humano aprendeu a diferença entre o que se revela como sendo real e
significativo e o que não é assim. Desta forma, viver como humano é em si, um ato
religioso. Pois a alimentação, a vida sexual e o trabalho tem um valor sacramental. E
isto porque é através da imitação dos modelos paradigmáticos revelados pelos seres
sobrenaturais que a vida ganha um sentido. É o que chamamos de imitatio dei (a
imitação do divino). Todas as tradições religiosas da humanidade consideram a
imitatio dei como a norma e a linha diretriz da existência humana.
SEDENTARIZAÇÃO – UM PASSO IMPORTANTE NA EVOLUÇÃO HUMANA
O processo de sedentarização é fundamental na evolução humana. Ao deixarem
o nomadismo, os homens tornaram mais complexa a teia social e consequentemente
as relações de direito e normatização. Este processo de sedentarização, no entanto não
se deu da mesma forma em todas as regiões. Na Europa, por exemplo, ele foi mais
demorado, enquanto no Oriente Médio ele se deu primeiro, pois antes mesmo da
agricultura, as comunidades primitivas do Oriente já estocavam grãos, como aveia e
cevada, que cresciam nas pastagens sem o controle do homem. Assim, com o tempo,
acabaram desenvolvendo as técnicas de agricultura, e ao mesmo tempo aprenderam a
domesticar os animais, sobretudo ovelhas, carneiros e cabras selvagens, que se
aproximavam das pastagens de cereais para se alimentarem. Na Europa não havia
essas pastagens naturais de cereais, e os homens tinham que continuar se deslocando
para tentar encontrar caça, frutas e raízes.
Uma das consequências da agricultura, da pecuária e da sedentarização foi o
aumento populacional, graças ao aumento da produção alimentar e à estabilidade
gerada pela própria sedentarização. A agricultura e a pecuária facilitaram muito o
sustento e a manutenção das crianças, reduziu o esforço das mulheres (que não
precisavam mais carregar seus filhos de um lado para outro), e isso gerou uma
situação mais favorável à reprodução.
Esse aumento populacional, ocorrido em comunidades humanas sedentárias,
fixas, fez com que as sociedades se tornassem mais complexas: um número maior de
pessoas vivendo em comunidade implica um número maior de encontros sociais, de
trocas sociais. Se antes um indivíduo se relacionava apenas com uma ou duas
pessoas no seu dia a dia, com o aumento populacional, ele vai se relacionar com um
número maior de pessoas, e de formas diferentes, com objetivos diferentes. As relações
sociais tornam-se mais complexas, e é a partir da avaliação da complexidade das
relações sociais que determinamos a complexidade da própria sociedade.
Uma mudança importante que ocorreu após a sedentarização, no período
neolítico, foi que a mulher deixou de simplesmente coletar vegetais e passou a cultivar
os campos, a colher cereais nas épocas de colheita, a fiar e tecer a lã; o homem
preparava os cultivos, construía casas – nesse período as comunidades saíram
definitivamente das cavernas –, cuidava do gado, fabricava ferramentas bem mais
sofisticadas (em pedra polida e metais), estocava alimentos e defendia esses alimentos
dos ataques de inimigos.
Foi um período de urbanização e de intensa divisão social do trabalho: a
sociedade se tornou mais complexa, as atividades se diversificaram porque novas
necessidades surgiram. A agricultura e a pecuária exigiram que a mulher se
desdobrasse em outras atividades (colheita e tecelagem); a necessidade de defender os
alimentos estocados de inimigos levou a um processo de militarização; e a
complexidade dos rituais sagrados fez com que surgisse a figura do “chefe do ritual”,
que cuidava dos assuntos religiosos: o sacerdote, espécie de líder que, com o tempo,
passaria a ser a figura mais importante da sociedade, inclusive enquanto ditador de
normas, produtor de direito.
Já não estamos mais diante de uma comunidade primitiva nômade, que trocava de
caverna sempre que a necessidade de alimentos exigia e que era pouco complexa na
sua organização social e divisão do trabalho. As comunidades primitivas do neolítico
eram mais complexas: já havia uma maior divisão do trabalho, ou seja, uma maior
diversidade de ocupações, e, com o tempo, essas mudanças iriam se acelerar cada vez
mais, rumo a uma urbanização cada vez mais intensa.
Como vimos, no período neolítico os rituais sagrados ficam mais complexos e
passa a existir uma figura que vai aos poucos se especializando na organização desses
rituais: o sacerdote. Rapidamente, devido à importância que as comunidades
passaram a atribuir ao Sagrado, o sacerdote passou a ser cada vez mais respeitado –
respeitado inclusive enquanto “ditador” dos costumes, das normas, responsável pelo
cumprimento das normas de conduta, etc.
Começa, então, a haver uma diferenciação hierárquica maior entre as pessoas,
embora não ainda ligada à posse de bens materiais, mas à posição social, ao tipo de
atividade exercida. Os costumes mudaram para se adaptar à nova realidade.
E a revolução continuou: o homem começa a produzir cerâmicas, desenvolve
ainda mais as técnicas de produção de tecidos e, o mais importante, aprimora a
metalurgia.
A sociedade se tornou ainda mais complexa: alguns setores se especializaram
em cerâmica, outros em tecelagem, outros na metalurgia, fora a agricultura, a
pecuária e as atividades religiosas, monopólio dos sacerdotes, que ganhavam cada vez
mais poder.
Imaginem as relações estabelecidas entre elementos desses vários setores: quem se
especializou em cerâmica e precisasse de metal tinha que se dirigir a quem conhecesse
a metalurgia, e vice-versa. Para comer, todos tinham que se dirigir ao pecuarista ou
agricultor, caso não produzissem seu próprio alimento. Entenderam a complexidade
das relações sociais? Surgiram novas situações que precisavam ser normatizadas, por
isso a estrutura normativa (o direito) se tornou mais complexa. A população cresce e
as aldeias aumentam de tamanho, exigindo a formação de estruturas administrativas
mais sofisticadas para coordenar as atividades produtivas, sociais, culturais e de
defesa. Junto com a estrutura administrativa, torna-se mais complexa a estrutura
jurídica, que continua baseada no direito consuetudinário ou costumeiro (não escrito),
o que não o impede de se tornar cada vez mais complexo. O cientista político Norberto
Bobbio diz o seguinte em um de seus livros: "Hoje estamos acostumados a pensar no
direito em termos de codificação, como se ele devesse necessariamente estar encerrado
num código. Isto é uma atitude mental particularmente enraizada no homem comum e
da qual os jovens que iniciam os estudos jurídicos devem procurar se livrar".
Livrem-se, então, dessa idéia. Mesmo não codificado, não escrito, o direito existe
na sua forma consuetudinária.

A formação do direito nas sociedades primitivas - O Direito dos povos sem


escrita

Quando se fala de direito dos povos ágrafos, uma dificuldade principal é a


reconstituição do Direito destes povos. Neste sentido, temos enorme dificuldade em
conceituá-lo, já que com base em estudos arqueológicos é possível reconstituir os
vestígios deixados pelos povos pré-históricos, como moradias, armas, cerâmicas,
rituais etc., com os quais é possível determinar a respectiva evolução social e
econômica. Mas o direito requer, além desses itens, o conhecimento de como
funcionavam as instituições na época em questão, o que é deveras difícil de constituir.
Podemos dizer que essa 'pré-história' do direito escapa quase inteiramente ao nosso
conhecimento? Não, tendo em vista que, no momento em que os povos entram na
história, a maior parte das instituições jurídicas já existem, ainda que misturadas com
a moral e com a religião. Como se vê, não se trata, na época, de um direito escrito,
mas de um conjunto disperso de usos, práticas e costumes, reiterados por um longo
período de tempo e publicamente aceitos. É o tempo do direito consuetudinário. A
obediência ao costume era assegurada pelo temor dos poderes sobrenaturais e pelo
medo da opinião pública, especialmente o medo de ser desprezado pelo grupo em que
se vivia. Naquela época, um homem fora do seu grupo, vivendo isoladamente, podia
considerar-se fadado à morte. Registre-se, contudo, que a invenção e a difusão da
técnica da escritura, somada à compilação de costumes tradicionais, proporcionaram
os primeiros Códigos da Antiguidade, a saber, o de Hamurabi, o Código de Manu, a Lei
das XII Tábuas e, na Grécia, as legislações de Dracon e de Sólon.

Fundamentos bibliográficos do texto:


O sagrado e a historia: fenômeno religioso e valorização da historia à luz do anti-
historicismo de Mircea Eliade - André Eduardo Guimaraes - EDIPUCRS 2000
A cidade antiga - Fustel de Coulanges - Coleção a obra prima de cada autor.
Fundamentos de História do Direito – Antonio Carlos Wolkmer.
O positivismo jurídico: Lições de filosofia do Direito – Noberto Bobbio – UNB

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