Na maioria das sociedades remotas, a lei é considerada parte nuclear de
controle social, elemento material para prevenir, remediar ou castigar os desvios das regras prescritas. A lei expressa a presença de um direito ordenado na tradição e nas práticas costumeiras que mantêm a coesão social. Assim, falar em um direito arcaico ou primitivo implica, contudo, ter presente uma diferenciação da pré-história e da história do direito e ainda, quanto aos horizontes de diversas civilizações, no sentido de precisar o surgimento dos primeiros textos jurídicos com o aparecimento da escrita, tudo dependendo do grau de evolução e complexidade de cada povo. Por isso, o direito arcaico pode ser interpretado a partir da compreensão do tipo de sociedade que o gerou. Se a sociedade da pré-história fundamenta-se no princípio do parentesco, nada mais justo considerar que a base geradora do direito encontra-se, primeiramente, nos laços de consanguinidade, nas práticas do convívio familiar de um mesmo grupo social, unido por crenças e tradições. Relativamente aos princípios e regras que governaram a sociedade grega e a sociedade romana, por exemplo, há uma conexão íntima entre as instituições destes povos, suas crenças religiosas e o direito privado. É que a comparação das crenças e das leis demonstra que as famílias grega e romana foram constituídas por uma religião primitiva, que estabeleceu o casamento e a autoridade paterna, fixou os graus de parentesco, consagrou o direito de propriedade e o direito de herança. Esta mesma religião, por haver difundido e ampliado a família, formou uma associação maior, a cidade, e nela reinou do mesmo modo que reinava na família. Desta se originaram todas as instituições como todo o direito privado dos antigos. Foi dela que a cidade extraiu seus princípios, suas regras, seus usos e sua magistratura. É mister, pois, estudar antes de tudo, as crenças destes povos. Num tempo em que inexistiam legislações escritas e códigos formais, as práticas primárias de controle são transmitidas oralmente, marcadas por revelações sagradas e divinas, vale dizer, constata-se esse caráter religioso do direito arcaico, imbuído de sanções rigorosas e repressoras, fato que levou os sacerdotes-legisladores a serem os intérpretes e executores destas leis (recebidas diretamente do Deus da cidade), onde o ilícito se confundia com a quebra da tradição e com infração ao que a divindade havia proclamado. A função da religião, portanto, é suscitar a experiência do sagrado, experiência esta que estrutura o mudo e o carrega de significações. O homem não pode viver no caos, não pode existir humanamente sem a convicção de que há algo de irredutivelmente real no mundo e foi através da experiência humana do sagrado que o espírito humano aprendeu a diferença entre o que se revela como sendo real e significativo e o que não é assim. Desta forma, viver como humano é em si, um ato religioso. Pois a alimentação, a vida sexual e o trabalho tem um valor sacramental. E isto porque é através da imitação dos modelos paradigmáticos revelados pelos seres sobrenaturais que a vida ganha um sentido. É o que chamamos de imitatio dei (a imitação do divino). Todas as tradições religiosas da humanidade consideram a imitatio dei como a norma e a linha diretriz da existência humana. SEDENTARIZAÇÃO – UM PASSO IMPORTANTE NA EVOLUÇÃO HUMANA O processo de sedentarização é fundamental na evolução humana. Ao deixarem o nomadismo, os homens tornaram mais complexa a teia social e consequentemente as relações de direito e normatização. Este processo de sedentarização, no entanto não se deu da mesma forma em todas as regiões. Na Europa, por exemplo, ele foi mais demorado, enquanto no Oriente Médio ele se deu primeiro, pois antes mesmo da agricultura, as comunidades primitivas do Oriente já estocavam grãos, como aveia e cevada, que cresciam nas pastagens sem o controle do homem. Assim, com o tempo, acabaram desenvolvendo as técnicas de agricultura, e ao mesmo tempo aprenderam a domesticar os animais, sobretudo ovelhas, carneiros e cabras selvagens, que se aproximavam das pastagens de cereais para se alimentarem. Na Europa não havia essas pastagens naturais de cereais, e os homens tinham que continuar se deslocando para tentar encontrar caça, frutas e raízes. Uma das consequências da agricultura, da pecuária e da sedentarização foi o aumento populacional, graças ao aumento da produção alimentar e à estabilidade gerada pela própria sedentarização. A agricultura e a pecuária facilitaram muito o sustento e a manutenção das crianças, reduziu o esforço das mulheres (que não precisavam mais carregar seus filhos de um lado para outro), e isso gerou uma situação mais favorável à reprodução. Esse aumento populacional, ocorrido em comunidades humanas sedentárias, fixas, fez com que as sociedades se tornassem mais complexas: um número maior de pessoas vivendo em comunidade implica um número maior de encontros sociais, de trocas sociais. Se antes um indivíduo se relacionava apenas com uma ou duas pessoas no seu dia a dia, com o aumento populacional, ele vai se relacionar com um número maior de pessoas, e de formas diferentes, com objetivos diferentes. As relações sociais tornam-se mais complexas, e é a partir da avaliação da complexidade das relações sociais que determinamos a complexidade da própria sociedade. Uma mudança importante que ocorreu após a sedentarização, no período neolítico, foi que a mulher deixou de simplesmente coletar vegetais e passou a cultivar os campos, a colher cereais nas épocas de colheita, a fiar e tecer a lã; o homem preparava os cultivos, construía casas – nesse período as comunidades saíram definitivamente das cavernas –, cuidava do gado, fabricava ferramentas bem mais sofisticadas (em pedra polida e metais), estocava alimentos e defendia esses alimentos dos ataques de inimigos. Foi um período de urbanização e de intensa divisão social do trabalho: a sociedade se tornou mais complexa, as atividades se diversificaram porque novas necessidades surgiram. A agricultura e a pecuária exigiram que a mulher se desdobrasse em outras atividades (colheita e tecelagem); a necessidade de defender os alimentos estocados de inimigos levou a um processo de militarização; e a complexidade dos rituais sagrados fez com que surgisse a figura do “chefe do ritual”, que cuidava dos assuntos religiosos: o sacerdote, espécie de líder que, com o tempo, passaria a ser a figura mais importante da sociedade, inclusive enquanto ditador de normas, produtor de direito. Já não estamos mais diante de uma comunidade primitiva nômade, que trocava de caverna sempre que a necessidade de alimentos exigia e que era pouco complexa na sua organização social e divisão do trabalho. As comunidades primitivas do neolítico eram mais complexas: já havia uma maior divisão do trabalho, ou seja, uma maior diversidade de ocupações, e, com o tempo, essas mudanças iriam se acelerar cada vez mais, rumo a uma urbanização cada vez mais intensa. Como vimos, no período neolítico os rituais sagrados ficam mais complexos e passa a existir uma figura que vai aos poucos se especializando na organização desses rituais: o sacerdote. Rapidamente, devido à importância que as comunidades passaram a atribuir ao Sagrado, o sacerdote passou a ser cada vez mais respeitado – respeitado inclusive enquanto “ditador” dos costumes, das normas, responsável pelo cumprimento das normas de conduta, etc. Começa, então, a haver uma diferenciação hierárquica maior entre as pessoas, embora não ainda ligada à posse de bens materiais, mas à posição social, ao tipo de atividade exercida. Os costumes mudaram para se adaptar à nova realidade. E a revolução continuou: o homem começa a produzir cerâmicas, desenvolve ainda mais as técnicas de produção de tecidos e, o mais importante, aprimora a metalurgia. A sociedade se tornou ainda mais complexa: alguns setores se especializaram em cerâmica, outros em tecelagem, outros na metalurgia, fora a agricultura, a pecuária e as atividades religiosas, monopólio dos sacerdotes, que ganhavam cada vez mais poder. Imaginem as relações estabelecidas entre elementos desses vários setores: quem se especializou em cerâmica e precisasse de metal tinha que se dirigir a quem conhecesse a metalurgia, e vice-versa. Para comer, todos tinham que se dirigir ao pecuarista ou agricultor, caso não produzissem seu próprio alimento. Entenderam a complexidade das relações sociais? Surgiram novas situações que precisavam ser normatizadas, por isso a estrutura normativa (o direito) se tornou mais complexa. A população cresce e as aldeias aumentam de tamanho, exigindo a formação de estruturas administrativas mais sofisticadas para coordenar as atividades produtivas, sociais, culturais e de defesa. Junto com a estrutura administrativa, torna-se mais complexa a estrutura jurídica, que continua baseada no direito consuetudinário ou costumeiro (não escrito), o que não o impede de se tornar cada vez mais complexo. O cientista político Norberto Bobbio diz o seguinte em um de seus livros: "Hoje estamos acostumados a pensar no direito em termos de codificação, como se ele devesse necessariamente estar encerrado num código. Isto é uma atitude mental particularmente enraizada no homem comum e da qual os jovens que iniciam os estudos jurídicos devem procurar se livrar". Livrem-se, então, dessa idéia. Mesmo não codificado, não escrito, o direito existe na sua forma consuetudinária.
A formação do direito nas sociedades primitivas - O Direito dos povos sem
escrita
Quando se fala de direito dos povos ágrafos, uma dificuldade principal é a
reconstituição do Direito destes povos. Neste sentido, temos enorme dificuldade em conceituá-lo, já que com base em estudos arqueológicos é possível reconstituir os vestígios deixados pelos povos pré-históricos, como moradias, armas, cerâmicas, rituais etc., com os quais é possível determinar a respectiva evolução social e econômica. Mas o direito requer, além desses itens, o conhecimento de como funcionavam as instituições na época em questão, o que é deveras difícil de constituir. Podemos dizer que essa 'pré-história' do direito escapa quase inteiramente ao nosso conhecimento? Não, tendo em vista que, no momento em que os povos entram na história, a maior parte das instituições jurídicas já existem, ainda que misturadas com a moral e com a religião. Como se vê, não se trata, na época, de um direito escrito, mas de um conjunto disperso de usos, práticas e costumes, reiterados por um longo período de tempo e publicamente aceitos. É o tempo do direito consuetudinário. A obediência ao costume era assegurada pelo temor dos poderes sobrenaturais e pelo medo da opinião pública, especialmente o medo de ser desprezado pelo grupo em que se vivia. Naquela época, um homem fora do seu grupo, vivendo isoladamente, podia considerar-se fadado à morte. Registre-se, contudo, que a invenção e a difusão da técnica da escritura, somada à compilação de costumes tradicionais, proporcionaram os primeiros Códigos da Antiguidade, a saber, o de Hamurabi, o Código de Manu, a Lei das XII Tábuas e, na Grécia, as legislações de Dracon e de Sólon.
Fundamentos bibliográficos do texto:
O sagrado e a historia: fenômeno religioso e valorização da historia à luz do anti- historicismo de Mircea Eliade - André Eduardo Guimaraes - EDIPUCRS 2000 A cidade antiga - Fustel de Coulanges - Coleção a obra prima de cada autor. Fundamentos de História do Direito – Antonio Carlos Wolkmer. O positivismo jurídico: Lições de filosofia do Direito – Noberto Bobbio – UNB