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Este artigo é dedicado à memória de Beata Rank que formulou perguntas e buscou métodos que
esclareceram os primeiros anos de vida.
Selma Fraiberg é Professora de Psicanálise de Crianças e Diretora do Projeto de Desenvolvimento da
Criança, Departamento de Psiquiatria, Universidade de Michigan.
Edna Adelson é psicóloga e Vivian Shapiro é assistente social.
Este artigo é uma versão ampliada do artigo apresentado como Conferência em Memória de Beata
Rank, na Sociedade e Instituto de Psicanálise de Boston, 23 maio 1974.
duas ou mais gerações. Embora ninguém os tenha convidado, os fantasmas fixam
residência e dirigem o ensaio da tragédia familiar a partir de um roteiro desgastado.
Em nosso Programa de Saúde Mental de Bebês, atendemos muitas famílias
assim com seus bebês. O bebê já está em risco no momento em que o conhecemos,
mostrando os primeiros sinais de privação emocional, ou graves sintomas, ou déficits
de desenvolvimento. Em cada caso, o bebê se tornou o companheiro silencioso da
tragédia familiar. Nessas famílias, o bebê fica sobrecarregado pelo passado opressivo
dos pais, desde o momento que chega ao mundo. O genitor, assim parece, está
condenado a repetir a tragédia da sua própria infância com seu bebê em detalhes
terríveis e exatos.
Esses pais podem não procurar orientação profissional. Fantasmas que fixaram
residência privilegiada por três ou mais gerações, podem não ser realmente
identificados como representantes do passado parental. Pode não haver
disponibilidade dos pais para criar uma aliança conosco para proteger seu bebê. É mais
provável que nós, e não o fantasma, sejamos vistos como intrusos.
Pessoas que têm interesse profissional por fantasmas do quarto do bebê ainda
não compreenderam a complexidade e os paradoxos da historia dos fantasmas. O que
determina se o passado conflituoso dos pais será ou não repetido com esse filho? O
determinante primordial seria a morbidade da história parental? Isso nos parece
simples demais. Certamente, todos nós conhecemos famílias nas quais uma história
parental de tragédia, crueldade e sofrimento não foi imposta à criança. O fantasma
não inunda o quarto do bebê nem corrói os vínculos amorosos.
Então, precisamos também refletir que se a história profetizasse com
fidelidade, a família humana, teria se afogado há muito tempo em seu próprio passado
opressivo. A raça se aperfeiçoa. E isso pode ocorrer porque a maioria dos homens e
mulheres que viveram um grande sofrimento encontra renovação e cura para as dores
da infância na experiência de trazer uma criança ao mundo. Nos termos mais simples -
temos escutado muito isso – um dos genitores diz: ”Quero que meu filho tenha algo
melhor do que eu tive”. E oferece algo melhor para o filho. Todos nós conhecemos
jovens pais que sofreram com pobreza, brutalidade, morte, abandono e, às vezes, toda
a gama de horrores da infância e que não impõem suas próprias dores aos filhos.
Portanto, história não é destino e, não é possível prever a partir da narrativa do
passado dos pais, se a paternidade ficará inundada de mágoas e feridas, ou se será um
tempo de renovação. Devem existir outros fatores na vivência emocional desse
passado que determinem a repetição no presente.
No trabalho terapêutico com famílias em prol dos seus bebês, somos todos
beneficiados pelas descobertas de Freud antes do início deste século. Os fantasmas,
como sabemos, representam a repetição do passado no presente. Somos também
beneficiados pelo método desenvolvido por Freud para recuperar os acontecimentos
do passado e eliminar seus mórbidos efeitos no presente. Os bebês, frequentemente
atingidos pelas doenças do passado dos pais, têm sido os últimos a se beneficiarem
das grandes descobertas da psicanálise e da psicologia do desenvolvimento. Esse
paciente, que não fala, aguardou um porta-voz eloquente.
Durante as últimas três décadas, inúmeros psicanalistas e psicólogos do
desenvolvimento têm falado pelos bebês. Os bebês nos têm dado notícias muito
preocupantes. Essa história já é conhecida, e não tentarei resumir a extensa literatura
que surgiu dos nossos estudos sobre o primeiro ano de vida.
Em nosso trabalho no Projeto Desenvolvimento Infantil, ficamos muito
familiarizados com os fantasmas no quarto do bebê. Os intrusos transitórios, que
descrevemos, ou os fantasmas indesejáveis que fixaram residência temporária, não
representam problemas extraordinários para o clínico. Os próprios pais se tornam
nossos aliados para bani-los. O terceiro grupo, o dos fantasmas que invadem o quarto
do bebê e fixam residência, são os que nos apresentam os problemas terapêuticos
mais graves.
Como esses fantasmas do passado dos pais conseguem invadir o quarto do
bebê com tamanha insistência e se apossar, reivindicando seus direitos acima dos
direitos do próprio bebê? Esta é a questão central do nosso trabalho. As respostas
estão surgindo e, na última parte deste artigo retornaremos a essa questão e
proporemos uma hipótese derivada da experiência clínica.
Neste artigo, descreveremos nosso estudo clínico e tratamento de dois bebês
dos muitos em risco que chegaram até nós. Na medida em que o trabalho progredia,
nossas famílias e seus bebês nos abriram portas que esclareceram o passado e o
presente. Nosso conhecimento psicanalítico abriu caminhos para a compreensão da
repetição do passado no presente. Os métodos de tratamento desenvolvidos
conciliaram psicanálise, psicologia do desenvolvimento e trabalho social, nas formas
ilustradas adiante. Os ganhos para os bebês, para as famílias e para nós, foram
imensos.
Nesse nosso trabalho em colaboração, Edna Adelson, psicóloga da equipe, foi a
terapeuta de Mary e sua família. Vivian Shapiro, assistente social da equipe, foi a
terapeuta de Greg e de sua família, e Selma Fraiberg foi a supervisora de caso e
consultora psicanalítica.
MARY
Mary, que veio à consulta aos 5 meses e meio, foi o primeiro bebê
encaminhado para o nosso novo Projeto de Saúde Mental do Bebê. Sua mãe, a Sra.
March, fora a uma agência de adoção, algumas semanas antes. Ela queria dar seu bebê
para adoção, mas os planos não puderam prosseguir porque o Sr. March não deu
consentimento. A mãe de Mary foi descrita com “mãe rejeitadora”.
Como naturalmente ninguém gosta de uma mãe rejeitadora, nem em nossa
comunidade, nem em qualquer outra, Mary e sua família poderiam, nesse momento,
ter desaparecido no anonimato de alguma comunidade metropolitana, para talvez
reaparecer quando a tragédia se abatesse. Mas o acaso trouxe essa família para uma
das clínicas psiquiátricas da nossa universidade. A avaliação psiquiátrica da Sra. March
revelou uma depressão severa, uma tentativa de suicídio com aspirina, uma mulher
tão atormentada que mal e mal dava conta das tarefas mais básicas da vida. A “mãe
rejeitadora” passou a ser vista como “mãe deprimida”. Recomendou-se tratamento
psiquiátrico com uma equipe clínica. E então, um dos membros do corpo clínico
perguntou: “Mas, e o bebê?” Nosso novo Programa de Saúde Mental do Bebê tinha
sido anunciado, e se preparava para abrir dali a poucos dias. Recebemos um
telefonema, e concordamos em providenciar a avaliação imediata do bebê e pensar na
possibilidade de tratamento.
Primeiras observações
Quando vimos Mary pela primeira vez, tivemos motivos para grave
preocupação. Aos cinco meses e meio, ela apresentava todos os estigmas de uma
criança que passara a maior parte da sua vida no berço, tendo recebido pouco mais do
que os cuidados obrigatórios. Estava nutrida de forma adequada e cuidada do ponto
de vista físico, mas a parte de trás da sua cabeça não tinha cabelos. Mostrava pouco
interesse pelo ambiente; era apática, quieta demais. Parecia ter apenas uma tênue
ligação com sua mãe. Raramente sorria. Não se aproximava espontaneamente da mãe
através de contato visual ou de gestos de procura. Tinha poucas vocalizações
espontâneas. Em momentos de desconforto ou de ansiedade, não procurava a mãe.
Em nossos testes de desenvolvimento, ela fracassou em quase todos os itens da escala
Bayley relativos à sociabilidade. Em determinado momento do teste, um som
inesperado (o sino da escala de Bayley) ultrapassou seu limiar de tolerância e ela
entrou em colapso, aterrorizada.
A mãe parecia aprisionada em algum terror privado, distante, retirada, ainda
que nos mostrasse raros relances de capacidade de cuidar. Por semanas, ativemos a
uma diminuta vinheta captada em videoteipe, na qual o bebê procurava a mãe de
maneira desajeitada, e a mão da mãe ia espontaneamente em direção ao bebê. As
mãos não se encontravam, mas o gesto simbolizou para a terapeuta a busca recíproca,
e nós nos apegamos a essa esperança simbólica.
Há um momento, no início de todo atendimento, em que se revela algo que
fala sobre a essência do conflito. Esse momento surgiu na segunda sessão do trabalho,
quando a Sra. Adelson convidou Mary e sua mãe para entrarem em nosso consultório.
Por acaso, foi um momento captado pelo videoteipe, porque estávamos gravando as
sessões de testagem do desenvolvimento, como sempre fazemos. Mary e sua mãe, a
Sra. Adelson e a Sra. Evelyn Atreya, que aplicavam os testes, estavam presentes.
Mary começa a chorar. É um choro rouco e estranho para um bebê. A Sra.
Atreya interrompe o teste. No vídeo vemos a bebê nos braços da mãe, gritando
desesperadamente; ela não se vira para a mãe em busca de consolo. A mãe parece
distante, absorta em si mesma. Faz um gesto distraído para consolar sua bebê, e logo
desiste .Olha para longe. Os gritos continuam por cinco terríveis minutos no vídeo. Ao
fundo se escuta a voz da Sra. Adelson, encorajando a mãe, com suavidade: “O que
você faz para consolar a Mary quando ela grita assim?” A Sra. March murmura alguma
coisa inaudível. A Sra. Adelson e a Sra. Atreya estão lutando contra seus sentimentos.
Estão contendo o desejo de pegar a bebê, de embalá-la, de murmurar sons de consolo.
Se se rendessem a esse desejo, teriam feito a única coisa que sentem que não deveria
ser feita. A Sra. March teria visto que outra mulher pôde consolar sua bebê, o que
poderia então confirmar sua convicção de ser uma péssima mãe. São cinco minutos
terríveis para a bebê, para a mãe e para as duas psicólogas A Sra. Adelson mantém a
compostura, e fala de maneira receptiva com a Sra. March. Finalmente, a visita
termina quando a Sra. Adelson sugere que a bebê deve estar cansada e provavelmente
querendo voltar para casa e para seu berço; a mãe e a bebê são ajudadas a encerrar a
visita com planos de uma terceira visita dentro em breve.
Quando assistimos a esse vídeo, mais tarde, na reunião da equipe, dizíamos
umas às outras, incrédulas -”É como se essa mãe não escutasse os gritos da bebê!”
Isso nos conduziu à questão essencial do diagnóstico: -”Por que essa mãe não ouve os
gritos de sua bebê?”
A história da mãe
A Sra. March também foi uma criança abandonada. Sua mãe teve uma psicose
puerperal, logo após o nascimento da Sra. March e do seu irmão gêmeo. Em uma
tentativa de suicídio, destruiu parte do seu rosto com uma arma, e ficou horrivelmente
mutilada pelo resto da vida. Passou então, quase todo o resto da vida hospitalizada, e
sua filha mal e mal a conhecia. Por cinco anos, a Sra. March foi cuidada por uma tia.
Quando a tia não pôde mais cuidar dela, foi transferida para a casa da avó materna,
onde foi cuidada com má vontade por essa mulher idosa sobrecarregada e
depauperada. O pai da Sra. March era inconsistente e duvidoso no quadro familiar.
Quase não tivemos notícia dele, até um momento posterior do tratamento.
Era uma história de pobreza rural desoladora, de sinistros segredos de família,
psicoses, crimes, tradição de promiscuidade das mulheres, de sujeira e desordem na
casa, e de agências de proteção e de polícia ao fundo, fazendo tentativas inúteis de
melhorar a situação. A Sra. March era a criança banida de uma família banida.
No final da adolescência, a Sra. March conheceu e se casou com seu marido,
que, assim como ela, veio de uma família pobre e desorganizada. Mas ele queria algo
melhor para si do que aquilo que sua família tivera. Foi o primeiro da família a lutar
para sair do círculo de fracassos, encontrar trabalho estável e criar um lar decente.
Quando esses dois jovens negligenciados e solitários se encontraram, houve o acordo
recíproco de que queriam algo melhor do que o que tinham conhecido. Mas nesse
momento, depois de muitos anos de esforço, a espiral descendente começara.
Havia enorme probabilidade de Mary não ser filha do seu pai. A Sra. March
tivera um caso curto com outro homem. Sua culpa pelo caso, suas dúvidas acerca da
paternidade de Mary, tornaram-se um tema obsessivo em sua história. Numa espécie
de ladainha de lamentações que ouvimos inúmeras vezes, havia o tema: “As pessoas
encaravam Mary”, ela dizia. “Olhavam para ela com espanto e sabiam que o pai dela
não era seu pai. Eles sabiam que a mãe dela arruinara sua vida.”
O Sr. March, que começou a nos parecer como o genitor mais forte, não estava
obcecado com a paternidade de Mary. Estava convencido de que era o pai dela. E de
qualquer maneira, amava Mary e a queria. A obsessão da esposa provocou muitas
gritarias na casa. “Esqueça isso!”, dizia o Sr. March. “Pare de falar nisso! Cuide da
Mary!”
Tanto na família do pai quanto na da mãe, ilegitimidade não era estigma. No clã
da Sra. March, a promiscuidade das mulheres durante ao menos três ou quatro
gerações, lançava dúvidas sobre a paternidade de muitos filhos. Por que a Sra. March
estava tão obcecada? Por que esse sentimento de pecado a atormentava? Esse
sentimento penetrante e desgastante de pecado, acreditávamos, pertencia à infância,
pecados enterrados, muito possivelmente crimes da imaginação. Em diversas ocasiões,
ao ler os relatos clínicos, tivemos a impressão intensa de que Mary era criança
pecaminosa de uma fantasia incestuosa. Porém, se estivéssemos corretas, segundo
pensávamos, como poderíamos chegar a isso com nossa terapia de uma vez por
semana?
Como devíamos começar? Lembremos que Mary e a Sra. March eram nossas
primeiras pacientes. Não tínhamos modelos de tratamento disponíveis. Na verdade,
nesse primeiro projeto de saúde mental de bebês nossa tarefa era desenvolver
métodos no decorrer do trabalho. Naturalmente, fazia sentido iniciarmos com um
modelo familiar, no qual nosso residente em psiquiatria, Dr. Zinn, atendia a mãe em
psicoterapia, uma ou duas vezes por semana, e a psicóloga, Sra. Adelson, fornecia
apoio e fazia aconselhamento comportamental visando o desenvolvimento do bebê,
em visitas domiciliares. Mas, logo nas primeiras sessões, percebemos que a Sra. March
fugia do Dr. Zinn e do tratamento psiquiátrico. O fato de ficar sozinha com um homem
produziu um terror fóbico, que a levou a quase não conseguir se expressar nas sessões
ou a falar apenas de trivialidades. Todos os esforços para chegar a ela ou para entrar
em contato com suas ansiedades ou o constrangimento com essa relação, levavam ao
impasse. Um tema se repetia inúmeras vezes. Ela não confiava nos homens. Mas,
tivemos vislumbres também, em comunicações indiretas, de um segredo terrível, que
ela jamais contaria a alguém. Mais faltava às sessões do que vinha. O Dr. Zinn
mantinha, com muita dificuldade, seu relacionamento com ela. Aproximadamente um
ano depois, finalmente ouvimos o segredo e entendemos o terror fóbico que levou a
essa enorme resistência.
Não é possível generalizar a partir dessa experiência. Às vezes nos perguntavam
se terapeutas mulheres teriam mais facilidade de lidar com mães que sofreram grave
privação materna. Nossa resposta, depois de quase dois anos de trabalho, é: “Não
necessariamente; e às vezes, de jeito nenhum.” Temos exemplos em nosso trabalho
em que foi especialmente vantajoso ter um terapeuta homem trabalhando com mães.
Tendemos a distribuir os casos sem maiores preocupações com o sexo do analista. A
Sra. March deve ser considerada um caso excepcional.
Mas nesse momento, nos deparamos com um dilema terapêutico. O trabalho
da Sra. Adelson consistia em focar a relação mãe-bebê através de visitas domiciliares.
A Sra. March necessitava um terapeuta, Dr. Zinn, mas o terror mórbido de homens,
despertado na transferência, a impedia de usufruir a ajuda psiquiátrica disponível para
ela. Com muito tempo e trabalho paciente no tratamento psiquiátrico, pudemos ter
esperança de descobrir o segredo que a reduzia ao silêncio e a fugir da transferência
com o Dr. Zinn.
Mas o bebê corria grande perigo. E não podia esperar a resolução da neurose
da mãe. A Sra. Adelson, percebemos logo, não despertava as mesmas ansiedades
mórbidas na Sra. March, mas seu papel como terapeuta mãe-bebê, como psicóloga
domiciliar, não se prestava a facilitar a descoberta dos elementos conflituosos na
relação da mãe com sua filha nem o tratamento da depressão materna.
Como não tínhamos alternativa, decidimos usar as visitas domiciliares para
nosso tratamento de urgência.
O que surgiu, então, foi um tipo de “psicoterapia na cozinha”, por assim dizer,
que surpreenderá por ser tanto familiar em seus métodos e não familiar quanto ao
setting. O método, uma variante da psicoterapia psicanalítica, usava a transferência, a
repetição do passado no presente e a interpretação. Igualmente importante, o método
incluía a observação constante do desenvolvimento do bebê e a educação delicada e
não didática da mãe no reconhecimento das necessidades da sua bebê e dos seus
sinais.
O setting era a cozinha ou a sala da família. A paciente não falante estava
sempre presente às entrevistas, a menos que estivesse dormindo. A paciente falante
fazia as tarefas domésticas, trocava ou alimentava sua bebê. Os olhos e ouvidos da
terapeuta ficavam sintonizados tanto às comunicações não verbais do bebê, quanto ao
conteúdo das comunicações verbais e não verbais da mãe. Tudo o que acontecia entre
o bebê e a mãe estava ao alcance da terapeuta e no centro da terapia. O diálogo entre
a mãe e a terapeuta centrava-se nas preocupações atuais, e iam e voltavam entre o
passado e o presente, entre esta mãe e a bebê e outra criança e sua família do passado
da mãe. O método se comprovou, e levou-nos, em casos posteriores, a explorar as
possibilidades de um único terapeuta no tratamento a domicílio.
Tentaremos agora resumir o tratamento de Mary e sua mãe, e examinar os
métodos empregados.
Nos primeiros momentos do tratamento, a história da Sra. March surgiu
hesitante, contada com voz distante e melancólica. Foi a história que esboçamos
antes. Enquanto a mãe contava sua história, Mary, nossa segunda paciente, se sentava
apoiada no sofá, ou se deitava esticada sobre um cobertor, e o rosto distante e
melancólico da mãe era espelhado pelo rosto distante e melancólico do bebê. Era um
quarto abarrotado de fantasmas. A história de abandono e de negligência da mãe
estava agora sendo reeditada psicologicamente com seu bebê.
O problema da fase de urgência do tratamento era expulsar os fantasmas do
quarto do bebê. Para tanto, precisávamos ajudar a mãe a perceber a repetição do
passado no presente, coisa que sabíamos fazer num consultório apropriadamente
mobiliado com mesa e cadeira ou divã, mas que ainda não tínhamos aprendido a fazer
na sala ou na cozinha da família. Decidimos que os princípios terapêuticos precisavam
ser os mesmos. Mas, nessa fase de urgência do tratamento, em benefício do bebê,
precisávamos encontrar um caminho que nos conduzisse aos elementos conflituosos
da neurose da mãe que tinham relação direta com sua capacidade de maternagem. O
bebê precisava ser o centro do tratamento no período de urgência.
Começamos nos perguntando: “Porque essa mãe não consegue escutar o choro
do seu bebê?“
A resposta a essa questão clínica já estava sugerida na história da mãe. Tratava-
se de uma mãe cujo choro não tinha sido ouvido. Pensamos então que havia duas
crianças chorando na sala. Consideramos que a voz distante da mãe, seu
distanciamento e retraimento eram defesas contra tristeza e dor insuportáveis. Sua
história terrível precisou ser contada primeiramente de forma factual, sem sofrimento
visível, sem lágrimas. O que estava visível era apenas a expressão triste, vazia,
desesperançada do seu rosto. Ela fechou a porta à criança que chorava dentro de si,
assim como fechou a porta à sua bebê que chorava.
Isso nos levou à nossa primeira hipótese clínica: ”Quando o choro desta mãe
puder ser escutado, ela poderá escutar o choro de seu bebê.”
A Sra. Adelson, então, centrou seu trabalho no desenvolvimento de uma
relação terapêutica em que se pudesse oferecer confiança a uma jovem mulher que
jamais conhecera confiança, e na qual, a confiança poderia conduzir à revelação de
sentimentos antigos que a desligavam do seu bebê. Na medida em que a história da
Sra. March retrocedia e avançava entre sua bebê: “Não consigo amar Mary”, e sua
própria infância: “Ninguém me queria”, a terapeuta abria trilhas de sentimento. A Sra.
Adelson escutava e colocava em palavras os sentimentos da Sra. March enquanto
criança: “Como deve ter sido difícil. ... Isso deve ter doído profundamente ... Com
certeza, você precisava da sua mãe. Não havia ninguém a quem recorrer ... Sim. Às
vezes os adultos não compreendem o que isso significa para uma criança. Você deve
ter precisado chorar... Não havia ninguém para ouvir”.
A terapeuta dava permissão para a Sra. March sentir e lembrar sentimentos.
Deve ter sido a primeira vez na vida da Sra. March que alguém lhe deu essa permissão.
E, aos poucos, como esperávamos – em apenas poucas sessões – sofrimento, lágrimas
e angústia inenarrável por si como criança banida começou a surgir. Era finalmente um
alívio ser capaz de chorar, um consolo sentir a compreensão da sua terapeuta. E agora,
a cada sessão, a Sra. Adelson testemunhava algo inacreditável acontecendo entre mãe
e bebê.
Lembrem que a bebê estava quase sempre na sala no meio dessa nossa terapia
de sala-cozinha. Se Mary exigia atenção, a mãe se levantava no meio da entrevista
para trocá-la ou dar mamadeira. Com mais frequência, a bebê era ignorada se não
exigisse atenção. Mas nesse momento, quando a Sra. March começou a ter permissão
de lembrar seus sentimentos, chorar e sentir o consolo e a compreensão da Sra.
Adelson, nós a vimos se aproximar da sua bebê no meio do seu extravasamento
emocional. Ela pegava Mary e a abraçava, primeiro, distante e absorta em si, mas
abraçando. E então, certo dia, ainda no primeiro mês de tratamento, a Sra. March,
durante um extravasamento de dor, pegou Mary, manteve-a bem próxima de si, e
cantou para ela numa voz desconsolada. E depois aconteceu novamente, e diversas
vezes nas sessões seguintes. Uma torrente de antigas mágoas e a união com a bebê
em seus braços. Os fantasmas do quarto do bebê começavam a partir.
Eram mais do que gestos transitórios de reconciliação com a bebê. A partir das
evidências dos olhos observadores da Sra. Adelson, a mãe e a bebê estavam
começando a se encontrar. E agora que estavam entrando em contato uma com a
outra, a Sra. Adelson fez tudo que podia dentro da sua capacidade como terapeuta e
psicóloga do desenvolvimento para promover esse vínculo emergente. Quando Mary
recompensava a mãe com um sorriso lindo e especial, a Sra. Adelson comentava que
ela, Sra. Adelson, não ganhava esse sorriso, e que devia ser assim mesmo. O sorriso
pertencia à mãe. Quando a Mary chorosa começou a procurar o consolo da mãe e
encontrava alívio em seus braços, a Sra. Adelson falava por Mary: “É tão bom quando a
mamãe sabe o que você quer”. E a Sra. March sorria tímida, mas orgulhosa.
Essas sessões com mãe e bebê logo tomaram seu ritmo próprio. O Sr. March
frequentemente estava presente, por pouco tempo, antes de sair para o trabalho.
(Realizavam-se também sessões especiais para ele à noite e aos sábados.) As sessões
começavam de maneira típica com Mary na sala e como tema de discussão. De forma
natural, informal e não didática, a Sra. Adelson comentava com prazer o
desenvolvimento de Mary e, em seus comentários, entremeava informações úteis
sobre bebês de seis ou sete meses, e de como Mary estava aprendendo sobre o
mundo, e como sua mãe e o seu pai a conduziam nessas descobertas. Juntos, os pais e
a Sra. Adelson assistiam a experiência de Mary com um novo brinquedo ou postura
nova e, com olhar atento, era possível observar como ela encontrava soluções e
progredia firmemente. As delícias de observar um bebê, que a Sra. Adelson conhecia,
eram partilhadas com o Sr. e a Sra. March e, para nossa grande satisfação, ambos os
pais começaram a partilhas essas delícias e a trazer suas observações sobre Mary e
suas novas conquistas.
Durante a mesma sessão, depois de o Sr. March sair para o trabalho, a conversa
se voltava, em um momento ou outro, para a Sra. March, para seus sofrimentos atuais
e para os sofrimentos da sua infância. Nesses momentos, cada vez mais, a Sra. Adelson
ajudava a Sra. March a ver as ligações entre passado e presente e mostrava para a Sra.
March como “sem perceber”, ela trouxera seu sofrimentos do passado para a relação
com sua bebê.
Em quatro meses, Mary se tornou um bebê saudável, mais responsiva e
frequentemente feliz. Na testagem, aos 10 meses, a avaliação objetiva mostrou que a
ligação com a mãe, o sorriso e a vocalização de preferência para a mãe e o pai, e a
busca pela mãe para consolo e segurança, estavam de acordo com a idade. Ela estava
no nível da idade na escala mental de Bayley. Ainda mostrava certa lentidão no
desempenho motor, mas dentro do intervalo normal.
A Sra. March se tornara mãe orgulhosa e responsiva. Ainda assim nossa
avaliação cautelosa sobre o estado psicológico da mãe permaneceu: “deprimida”.
Verdade que a Sra. March progredia, e observamos muitos sinais de que a depressão
não era mais tão abrangente e constritiva, mas ainda estava ali, segundo pensamos,
ainda nefasta. Ainda restava muito trabalho.
O que tínhamos conseguido, então, nos nossos primeiros quatro meses de
trabalho não era ainda a cura da doença da mãe, mas uma forma de controle da
doença, em que a patologia que se espalhara a ponto de abarcar a bebê agora estava
bastante afastada da criança; os elementos conflituosos da neurose da mãe eram
agora identificados por ela e por nós como “pertencentes ao passado” e “não
pertencentes a Mary”. O vínculo entre mãe e bebê surgira. E a própria bebê estava
assegurando esses vínculos. Para cada gesto de amor da sua mãe, ela dava
recompensas generosas de amor. A Sra. March, pensávamos, deve ter se sentido
amada por alguém pela primeira vez em sua vida.
Tudo isso constitui o que chamaríamos “fase de urgência do tratamento”. Mas,
em retrospecto, podemos contar que levou um ano inteiro, depois desse momento,
para haver certa resolução dos graves conflitos internos da Sra. March e, durante esse
ano, surgiram diversos problemas na relação mãe-filha, mas Mary estava fora de
perigo, e até mesmo os conflitos de desenvolvimento, do segundo ano de vida, não
foram extraordinários nem mórbidos. Uma vez que o vínculo se formara, quase tudo
mais pôde se solucionar.
GREG
A questão era: como poderíamos ajudar Annie e seu bebê? Agora sabíamos por
que Annie tinha medo de ficar muito próxima do seu bebê. Estava com medo dos seus
sentimentos destrutivos em relação a ele. Tínhamos visto esses sinais a partir da
irrupção dos impulsos inconscientes na brincadeira provocativa com o bebê. Não
podíamos interpretar os impulsos sádicos, ainda não conscientes para Annie. Se
cooperássemos com o ego para manter esses impulsos sádicos reprimidos, Annie
precisaria se distanciar do seu bebê. E o bebê também era nosso paciente. Nosso
paciente mais vulnerável.
Estávamos atentos aos pequenos sinais positivos dessa sessão. Depois de falar
dos seus terrores da infância, ainda que durante a narrativa o afeto fosse insípido,
Annie pegara o bebê, mantivera-o bem próximo de si e o embalara. Foi a primeira vez
que vimos proximidade entre a mãe e o bebê em seis sessões. Se Annie pudesse
lembrar e falar dos seus sofrimentos da infância, poderíamos abrir trilhas que
livrassem seu bebê do passado dela e permitissem que ela fosse mãe de Greg? Se
Annie pudesse ser ajudada a examinar seus sentimentos em relação ao bebê, se
pudéssemos extrair os pensamentos inexprimíveis, Annie poderia se aproximar do seu
bebê?
Como exercício de pura teoria e método, estávamos provavelmente no
caminho certo em nosso raciocínio. As considerações sobre o caso derivavam da
experiência psicanalítica. Mas não era uma psicanálise. Como consultora psicanalítica,
Selma Fraiberg recorda que se percebeu de repente destituída de todas as condições e
proteções contra o erro incorporadas na situação psicanalítica.
Em primeiro lugar, as condições dessa terapia em prol do bebê e da sua mãe
adolescente tornavam imperativo o movimento rápido de proteção para o bebê. Em
circunstâncias normais de terapia, acreditamos na investigação cuidadosa; avaliação
da capacidade egoica de lidar com afetos dolorosos, avaliação da estrutura defensiva
do paciente. Como terapeutas experientes de adolescentes, também sabíamos que
conquistar a confiança dessa jovem hostil poderia facilmente levar meses de trabalho.
E o bebê estava em risco imediato.
Estávamos atentos às defesas contra afetos dolorosos que observávamos em
Annie. Ela se lembrava, de modo fatual, das experiências de maus tratos na infância.
Mas não se lembrava do seu sofrimento. Será que a liberação do afeto na terapia
aumentaria a probabilidade de uma atuação contra o bebê ou diminuiria o risco?
Depois de meticulosa discussão das alternativas, decidimos, com muito temor, que as
chances de atuação em relação ao bebê seriam maiores se a ansiedade e a raiva não
viessem à tona durante o tratamento. Selma Fraiberg recorda: “Falando por mim, me
agarrei à crença de que o genitor que não puder lembrar seus sentimentos de dor e
ansiedade na infância infligirá essa dor ao filho. E, em seguida, pensei – mas, e se eu
estiver errada?”
A seguir fomos também confrontados com outro problema terapêutico nessa
psicoterapia de uma vez por semana. Se trabalhássemos no território dos afetos
enterrados, podíamos prever que o terapeuta que invoca os fantasmas, na
transferência, será dotado com os atributos apavorantes do fantasma. Precisaríamos
estar preparados para os fantasmas da transferência e ir ao encontro deles
diretamente a cada passo do caminho.
Quando revimos essas anotações da reunião, um ano depois, ficamos
satisfeitos, pois nossas formulações do tratamento foram bem sucedidas no teste
prático. Sabemos agora, através do progresso do nosso tratamento, que as diretrizes
principais do trabalho foram bem pensadas.
Mas agora, precisaremos levá-los a um desvio do tratamento, que se mostrou
tão importante para o resultado quanto o plano psicoterapêutico.
Antes que qualquer parte desse plano de tratamento pudesse se realizar, Annie
fugiu da terapeuta.
Tratamento Ampliado
Esse foi o começo de uma nova relação entre Annie e Earl e a Sra. Shapiro.
Passo a passo, a Sra. Shapiro lidou com a desconfiança de Annie, sua raiva da Sra.
Shapiro e de todas “as pessoas que ajudam”, e esclareceu seu próprio papel de
auxiliar. A Sra. Shapiro estava do lado de Annie, de Earl e de Greg e queria fazer todo o
possível para ajudá-los – encontrar as coisas boas que eles queriam e mereciam na
vida, e dar a Greg todas as coisas que ele precisava para vir a ser uma criança saudável
e feliz.
Para Annie, a relação com a Sra. Shapiro tornou-se uma experiência nova,
diferente de tudo que ela conhecera até então. Evidentemente, a Sra. Shapiro
começou tratando francamente a raiva que Annie sentira dela e garantiu que Annie
pudesse colocar sua raiva em palavras. Num padrão familiar em que raiva e ódio
assassino estão fundidos, Annie só conseguira lidar com a raiva por meio da fuga ou da
identificação com o agressor. No teatro familiar, raiva contra a mãe e contra ser
abandonada pela mãe eram temas entrelaçados. Mas Annie aprendeu que podia sentir
raiva e reconhecer a raiva contra a terapeuta, e a terapeuta não retaliaria nem a
abandonaria.
Era seguro vivenciar a raiva na transferência com a terapeuta, e nessa relação
protegida as trilhas de raiva conduziram de volta às mágoas e aos terrores infantis.
Não foi um trajeto fácil para Annie. Sim, ela reconheceu numa sessão pouco depois de
a Sra. Shapiro ter recomeçado as visitas, sim, ela se sentira mal com as visitas da
terapeuta. Sim, ela se ressentira. “Mas de que adianta conversar? Sempre guardei as
coisas para mim. Quero esquecer. Não quero pensar”.
A Sra. Shapiro, com total empatia pelo sofrimento de Annie e a necessidade de
esquecer, discutiu com Annie que tentar esquecer não a livrava dos sentimentos nem
das lembranças. Annie só conseguiria fazer as pazes com seus sentimentos se falasse
deles para a Sra. Shapiro. Juntas, por meio da conversa, a terapeuta poderia ajudar
Annie a se sentir melhor.
Nessa sessão mesmo, Annie não respondeu com palavras. Mas nesse momento
da sessão pegou Greg no colo e aninhou-o bem próximo, embalando-o em seus
braços. Mas a tensão dentro dela se transmitiu a Greg; ela o segurava apertado demais
e o bebê começou a protestar. Ainda assim, víramos Annie buscar espontaneamente
seu bebê, o que era um sinal favorável. (Ao longo do tempo sua falta de jeito
diminuiria, e testemunhamos depois o prazer cada vez maior da intimidade física com
seu bebê.)
Em sessões sucessivas, Annie se permitiu falar dos seus sentimentos. A história
de privações da infância, de brutalidade e de negligência, começou a surgir mais uma
vez, como se a narrativa começada dois meses antes pudesse ser retomada agora.
Nessa ocasião, a Sra. Shapiro soube o que causara a fuga de Annie do tratamento, dois
meses antes, e pôde empregar seu insight em um método que evitaria fuga ou acting
out e, em última instância, levaria à resolução. Não era a narrativa das histórias que
provocara a fuga de Annie, mas o afeto não declarado que se mantivera isolado das
lembranças. Lembrem que Annie descrevera as surras do padrasto com detalhes
exatos e arrepiantes, mas o afeto estava isolado. Ela rira cinicamente durante toda a
primeira sessão. Em algum lugar entre o relato fatual das surras e da negligência e a
fuga da Sra. Shapiro, afeto que fora mantido em repressão parcial surgira e raiva,
medo, e o terror buscaram um objeto, um nome para si, e esse nome foi Sra. Shapiro.
Dessa vez, com o início do tratamento, falando propriamente, a Sra. Shapiro
estimulou o afeto juntamente com a narrativa e foi seguro lembrar. Quando, nesse
momento, surgiu a história dos horrores da infância, a Sra. Shapiro comentou. “Como
é assustador para uma criança. Você era apenas uma criança na ocasião. Não havia
ninguém para protegê-la. Toda criança tem o direito de ser cuidada e protegida”. E
Annie disse, com amargura. “A mãe deve proteger os filhos. Minha mãe não fez isso”.
Havia um refrão, nessas primeiras sessões, que aparece na gravação muitas vezes. “Eu
fui ferida. Eu fui ferida. Todos são violentos na minha família”. A seguir, outro refrão:
“Não quero ferir ninguém. Não quero ferir ninguém”. A Sra. Shapiro, escutando
atentamente, disse: “Eu sei que você não quer ferir ninguém. Eu sei quanto você
sofreu e quanto isso dói. Na medida em que conversamos sobre seus sentimentos,
ainda que seja doloroso se lembrar, será possível encontrar formas de aceitar algumas
dessas coisas e ser o tipo de mãe que você quer ser”.
Annie, percebemos, captou os dois lados da mensagem. A Sra. Shapiro estava
do lado do ego que se defendia do desejo inconsciente de ferir e de repetir as feridas
com seu filho; ao mesmo tempo, a Sra. Shapiro dizia, de fato: “Será seguro conversar
comigo sobre as lembranças e pensamentos assustadores, e na medida em que falar,
não precisará mais ter medo deles; você terá outro tipo de controle sobre eles”.
A Sra. Shapiro também preveniu Annie sobre a possibilidade dos sentimentos
transferenciais negativos que poderiam surgir durante as sessões em que as
lembranças dolorosas fossem revividas. A Sra. Shapiro disse para Annie: “Pode ser que
ao falar sobre o passado, você se sinta zangada comigo, sem saber por quê. Talvez
você possa me contar quando isso acontecer e poderemos tentar entender como seus
sentimentos do presente estão ligados às memórias do passado”.
Para Annie, no entanto, não era fácil contar a alguém que estava zangada. E ela
resistia a colocar em palavras seus sentimentos, tão evidentes em seu rosto e na
linguagem corporal. Quando a Sra. Shapiro perguntou a Annie o que ela pensava que a
Sra. Shapiro faria se Annie ficasse zangada com ela, Annie disse: “Às vezes me
aproximo das pessoas – depois fico louca. Quando fico louca, vou embora”. A Sra.
Shapiro assegurou a Annie que poderia aceitar os sentimentos raivosos e não iria
embora. Com permissão para expressar seu rancor, a raiva de Annie surgiu em sessões
sucessivas, frequentemente na transferência, e muito lentamente seu rancor contra os
objetos do passado foram vivenciados novamente e colocados na perspectiva
adequada de maneira que Annie pudesse se relacionar com sua família atual de forma
menos conflituosa.
Durante todas essas sessões, o olho atento da Sra. Shapiro estava em Greg,
sempre presente na sala. Será que a raiva transbordaria e engoliria Greg? Mas, mais
uma vez, como no caso de Mary, testemunhamos mudanças extraordinárias na relação
da jovem mãe com Greg. Em meio ao rancor e às lágrimas, na medida em que Annie
falava do seu passado opressor, ela se aproximava de Greg, tomava-o nos braços,
aninhava-o e murmurava sons de conforto. Soubemos então que Annie não temia mais
seus sentimentos destrutivos em relação ao bebê. O rancor pertencia ao passado, a
outras figuras. E o amor protetor em relação a Greg, que começava a surgir, falava de
uma mudança importante em sua identificação com o bebê. Onde antes estava a
identificação com os agressores da sua infância, agora estava a protetora do bebê,
dando a ele o que não lhe tinha sido ou raramente tinha sido dado, em sua infância.
“Ninguém”, disse Annie certo dia, “ferirá meu filho do mesmo jeito que fui ferida”.
Em seu trabalho, a Sra. Shapiro se movimentava para adiante e para trás entre
a história do passado de Annie e o presente. Ela ajudou Annie a ver como o medo das
figuras parentais da sua infância levou-a a se identificar com s qualidades assustadoras
delas. À medida que Annie se movia para uma relação protetora com seu bebê, a Sra.
Shapiro fortalecia cada uma dessas mudanças com suas observações. Às vezes, falando
para Greg, a Sra. Shapiro dizia: “Não é bom ter uma mamãe que sabe exatamente o
que você precisa?” Em relação a Greg, que já se movimentava e começava a se
aproximar cada vez mais da mãe em busca de afeto, consolo, companhia, a Sra.
Shapiro passou a chamar a atenção de Annie para cada movimento dele. Greg, ela
ressaltou, estava aprendendo a amar e a confiar em sua mãe, e tudo se devia a Annie e
sua compreensão em relação a ele. Annie, agora sustentava Greg, embalando-o de
forma protetora em seus braços. Não observávamos mais ameaças “brincalhonas” de
bater e matar, que testemunháramos meses antes. Annie alimentava seu bebê e usava
as sugestões cuidadosas de Sra. Shapiro para fornecer elementos nutritivos para a
alimentação dele.
Nessa família sem tradição na educação de crianças, a Sra. Shapiro precisou ser
com frequência uma educadora cheia de tato. Nas famílias de Annie e de Earl, até um
bebê de 7 meses era considerado capaz de más intenções, vingança e astúcia. Se um
bebê chorasse, ele “era vingativo”. Se fosse persistente, era “teimoso”. Se não
obedecesse era “mimado”. Se não pudesse ser consolado, estava “tentando apenas
irritar”. A Sra. Shapiro sempre perguntava; “Por quê?” Por que está chorando, por que
está sendo teimoso, o que poderia ser? Os dois genitores, de início, talvez, surpresos
por essa estranha abordagem de um bebê, começaram a assimilar a educação da Sra.
Shapiro. Cada vez mais, na medida em que as semanas e os meses passavam, vimos os
próprios pais buscando causas, aliviando o sofrimento ao buscar o que acontecera
antes. E Greg começou a florescer.
Isso não quer dizer que em poucos meses tínhamos desfeito os efeitos cruéis
da infância de Annie. Mas que agora tínhamos acesso a esse passado. Quando a voz de
Annie às vezes ficava estridente e ela tratava Greg com brusquidão, Annie sabia tanto
quanto a Sra. Shapiro que um fantasma da sua infância tinha invadido novamente o
quarto do bebê. E juntas elas podiam encontrar o significado do humor que de repente
a subjugara.
À medida que o bebê progrediu e o passado conflituoso de Anne foi esmiuçado,
começamos a ver surgir uma figura da infância de Annie que representava proteção,
tolerância, compreensão. Era o pai biológico de Annie, que morrera quando ela estava
com 5 anos. Na memória de Annie, ele era gentil e leal. Nunca bateu nela. Jamais
permitiria que outras pessoas fossem cruéis com ela, se tivesse permanecido com a
família. Quando falou do pai, o amor e a recordação da perda a inundaram. Se a
lembrança de Annie a respeito do pai era exata ou não, com certeza, isso não tem
importância. O que importa é que na vivência de caos e de terror da sua infância
houve uma pessoa que lhe deu a sensação de amor e de proteção. Ao investigar seu
passado em busca de algo bom, alguma fonte de força, foi o que ela encontrou, e a
Sra. Shapiro manteve essa lembrança boa viva para Annie. Agora, ela entendia outra
parte do quebra-cabeça. Quando nos encontramos pela primeira vez com a família
Beyer, lembrem-se, Annie não só se recusava a cuidar do seu bebê, mas geralmente o
dava para o marido, o pai do bebê, para cuidar. Nos meses que se passaram tudo isso
mudou quando Annie aprendeu, através da sua terapeuta, que a mãe também pode
proteger seu filho.
Greg começou a mostrar o estreitamento do seu vínculo com a mãe desde os
primeiros meses de trabalho. Aos 10 meses, pouco antes de a Sra. Shapiro tirar férias,
o comportamento de Greg em relação à mãe mostrava resposta seletiva e a procura
por ela, sorrisos e busca de contato, aproximação com a mãe em busca de consolo e
companhia. Mas ainda havia certo medo em relação à mãe, percebemos, quando a voz
estridente dela o interrompia no meio de alguma travessura trivial.
Durante esses meses, devemos lembrar, Annie estava grávida. Raramente
falava do bebê por nascer. Era como se a gravidez não fosse real para ela. Não havia
fantasias a respeito do bebê. Estava totalmente preocupada com seu próprio self e
com Greg, que se tornava o centro para ela.
Em julho, durante as férias da Sra. Shapiro, Annie deu à luz um natimorto.
Quando a Sra. Shapiro voltou, Annie estava triste e sobrecarregada pela culpa. A morte
do bebê, ela pensou, era uma punição para ela. Ela não queria o bebê, e segundo
pensava Deus não queria que um bebê que não seria amado viesse ao mundo. Foram
usadas muitas sessões para reunir a vivência de perda e de culpa.
Durante esse período também, Annie começou a compreender com ajuda por
que não estava pronta para outro bebê. Na verdade, ela mobilizava todos os seus
recursos emocionais empobrecidos para cuidar e dar amor a Greg e sentia-se
esvaziada com essa doação. Muitas vezes tivemos a impressão que ela se sustentava
através do calor e cuidado da sua terapeuta, pedindo força emprestada, aumentando a
pobreza da sua experiência de amor através da relação com a terapeuta. Era sempre
uma relação profissional, certamente, mas para uma jovem que sofrera de inanição
emocional e de maus tratos, esse cuidado profissional e compreensão eram vividos
como oferta de amor.
As fomes insatisfeitas da infância eram fantasmas persistentes no domicilio
familiar. Com frequência, quando a terapeuta chegava, Annie e Earl estavam assistindo
televisão. Os programas preferidos eram os infantis e os desenhos animados. Não era
por causa de Greg, pois ele não tinha interesse nesses programas. Durante o verão dos
inquéritos de Watergate, que passava em quase todos os canais, a Sra. Shapiro viu
Annie e Earl mudarem de canal até encontrarem um programa do qual gostassem. Era
o Jolly Green Giant.
Quando a Sra. Shapiro trouxe brinquedos cuidadosamente selecionados para
Greg (como sempre fazemos para nossas crianças quando sabemos que os pais não
têm recursos), surgiu uma expressão conflituosa no rosto de Annie. Era inveja,
percebeu a Sra. Shapiro, e uma lembrança nostálgica. Certa vez, quando a Sra. Shapiro
trouxe alguns brinquedos simples de plástico para o bebê, Annie disse, em voz muito
sentimental: “Na próxima semana será o meu aniversário. Farei dezessete anos”. A
Sra. Shapiro compreendeu, evidentemente, que Annie queria que o presente fosse
para ela. A terapeuta, respondendo rapidamente, falou do aniversário vindouro de
Annie, e do seu desejo de que fosse um dia muito especial. Annie disse: “Nunca tive
um aniversário. Nunca tive uma festa. Estou planejando uma festa para Greg em
agosto. Minha mãe provavelmente esquecerá meu aniversário”. (A mãe realmente
esqueceu.) Para o aniversário de Annie, a Sra. Shapiro trouxe um pequeno presente,
cuidadosamente escolhido.
No aniversário de Greg, a Sra. Shapiro trouxe um ônibus de brinquedo para o
bebê. Annie abriu o pacote. Ficou extasiada. Examinou cada uma das pequenas figuras,
abriu a porta do ônibus, colocou todos os bonequinhos nos assentos, e só quando
terminou de brincar ela o ofereceu a Greg e compartilhou sua animação com ele.
Referência
Freud, A. (1936) The Ego and the Mechanisms of Defense. New York: International
Universities Press, rev. ed., 1966
Tradução:
Iara de Souza Noto
Tania Mara Zalcberg
Março 2015