Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
DE
S. Luiz de Gonzaga
Da Companhia de Jesus
VIRGILIO CEPARI
Companheiro de Religião e Contemporâneo do Santo
――――
Que tendes na mão? Que vos oferecemos? Um livro? Não: um amigo;
esse tesouro em que se encontram profusamente todas as riquezas; esse seio
sempre generoso e aberto para receber nossas alegrias, nossas manias, nossas
aspirações, nossas misérias; esse oceano em que nos podemos lançar confiantes
e certos de sempre achar abrigo; essa imagem do amor de Deus, que se chama
um amigo. Esse amigo, nobre, fiel, dedicado, generoso, benfazejo, oh! não
penseis que seja este livro. Não: esse amigo é S. Luiz de Gonzaga.
No firmamento da Igreja de Deus, poucos Santos haverá, talvez tão
conhecidos, ou antes, tão mal conhecidos como o nosso santo Amigo. Que
ideia se forma em geral de S. Luiz? Sabe-se que foi uma daquelas almas
prevenidas das bênçãos da celestial doçura, que passam sobranceiras pelo
lamaçal do mundo sem macular de leve as asas puríssimas de graça. Sabem-se
quando muito alguns episódios de sua vida, que foi príncipe, morreram
moço; e no mais... quanta ignorância! Muitos são devotos de S. Luiz por
verem suas imagens tão belas, tão atraentes... outros por admiração à sua
inocência. Alguns, finalmente, o consideram de um modo tanto romântico, se
assim nós podemos exprimir; simpatizam com ele porque foi belo, nobre,
abandonou tudo por amor de Deus, morreu na mais formosa idade da vida...
Como é superior a tudo isto o Amigo que ganhastes neste dia! Não foi
uma alma fria, isenta de sentimentos humanos, um coração inacessível, uma
estátua de mármore, como alguns pensam: tanto teve de humano, como de
sobre-humano. Sua inteligência descortinou em seu voo de águia os mais
longínquos horizontes, e quantos monumentos imperecíveis nos teria
certamente deixado se a sede de Deus o não tivera levado tão cedo a saciar-se
plenamente naquele divino manancial em que de leve molhara os lábios, na
terra, e cuja saudade o consumia do mal dos Santos: o amor! Seu nobre
coração, acessível a tudo quanto há de grande e generoso, só uma coisa
desconheceu: a maldade; quanto mais puro, porém, e angélico, mais tesouros
de compaixão e caridade reservava aos infelizes que perderam aquela túnica
nupcial que o revestia, aquela amizade de Deus que o inundava, e fazia
admiração dos mesmos Anjos.
O nosso Amigo foi um Santo bem humano. O principal sentimento que
desperta a leitura de sua vida, é esse afeto, essa ternura, essa comoção, que só
pode excitar o que é profundamente humano. Quem não se enternecerá e
sentirá um aperto bem doloroso no coração vendo aquele principezinho de
quatro ou cinco anos já entusiasmado por tudo quanto há de belo e generoso,
levado pelo seu gênio altivo, e pelo nobre sangue que lhe corre nas veias,
ofuscado pelo brilho da glória militar, inclinado à vida das armas, à frente das
tropas de seu pai, e depois... depois que um arrependimento - coroa de todas
as mercês divinas - vem ainda mais purificar aquela almazinha de faltas que
não cometera, morrer de repente a tudo, com coragem sobre-humana, tão
incompreensivelmente superior à sua idade, sem direção, sem guia, sem
conselho, arrancar as próprias entranhas, por assim dizer, suas aspirações, seus
nobres sonhos, suas ilusões de criança. Com que sublime generosidade
procura reparar aquele passado imaculado em que seus olhos puríssimos,
deslumbrados pelos resplendores da Formosura divina, descobrem manchas!
Aqui o vemos desmaiado de dor aos pés do confessor; ali, vencido pela
fraqueza e pelas austeridades, enregelado pelos grandes frios da Lombardia,
prostrado por terra sem camisa, passando a noite em oração. Com que
sabedoria celeste, com que coragem arranca de sua alma os menores vestígios
de imperfeições, os mais secretos germens das paixões ainda não despontadas;
cerceia tudo que o poderia afastar, ou ainda distrair um momento do Sumo
Bem, em cuja contemplação sua alma enamorada se abisma e perde!
Mas Jesus não se deixa vencer em amor. Ele mesmo se chega àquela
almazinha cândida em que vê refletida sua divina pureza, e dá-lhe a beber o
néctar de suas consolações mais preciosas; abre-lhe no coração aquela
incurável ferida de amor que faz o tormento cheio de delícias e as delícias
cheias de tormentos dos serafins do divino amor; fá-lo penetrar na mais
secreta câmara de seus tesouros, e ostenta a seus olhos deslumbrados aquelas
riquezas que os olhos do homem nunca viram, seus ouvidos nunca ouviram
celebrar, seu coração nunca poderá compreender. Na idade em que os demais
meninos estão entregues aos folguedos da infância, eleva-o à mais alta
contemplação; reveste-o de uma fortaleza, anima-o de uma sabedoria que faz a
admiração de toda a corte e avassala o espírito dos próprios pais. Livra-o de
manifestos perigos, porque não quer que seja outra a sua morte senão a do
amor; manda de Milão S. Carlos Borromeu, não com o fim de visitar o
Bispado, mas para consumar, como sacerdote do Altíssimo, sua união com
aquela alma, oásis de suas delícias. Segrega-o do mundo, e finalmente, colhe-o
para Si, em pleno viço e formosura, adornado de todas as graças, rico de todos
os merecimentos, mártir do amor ao próximo em sua morte, como fora mártir
do amor divino· em sua vida.
Se a pobre criatura humana alguma coisa pôde merecer de seu grande
Deus, S. Luiz, certamente merecia esse amor. Seu coração, como um teclado
dócil, respondia com uma gama de afetos à mais leve pressão dos dedos
divinos; cada graça encontrava nele um reconhecimento; cada carinho, um
sacrifício: - a munificência de Deus se comprazia em porfiar com a
generosidade daquela criança.
Ó nobre alma! Seu gênio é naturalmente altivo; ainda em Religião diz
que considera vileza de ânimo sujeitar-se um homem a obedecer a outro, por
qualquer motivo humano, fora das razões espirituais. Insensivelmente revela
sua natureza aristocrática; em suas comparações e meditações, muitas vezes
fala de cortes, de reis, de ministros, etc. e lembra-se que servir a Deus é reinar.
Fiel às tradições de sua raça, tem sede de glória, quer enobrecer cada vez mais
seus brasões, dilatar seus domínios, não, como seus nobres avoengos, por meio
das armas: ― a seus olhos mais perspicazes, caducas parecem todas as
riquezas, ridículas todas as grandezas, desprezível toda a glória da terra; ―
seu grande coração sobe mais alto: despreza o mundo, atravessa as esferas,
calca aos pés as estrelas, não se detém nos mesmos céus, e só em Deus, no
sumo Rei que a tudo impera, encontra o termo de suas aspirações. Entretanto
o amor de Deus o tritura, o faz pequenino, humilde, último entre os últimos!
“Ut jumentum factus sum apud te1”, diz ele nessa aniquilação completa de
todo o seu ser. Quem penetrar no interior de S. Luiz, certamente sentirá os
olhos molharem-se de lágrimas, ao contemplá-lo limpando as teias de aranha,
trabalhando na cozinha, esmolando pelas ruas, obedecendo como um cadáver,
por amor de Deus.
Seu coração era acessível a tudo quanto há de nobre e generoso,
repetimos. Sedento do Sumo Bem invisível, aplica-se todo em amar e bem-
fazer à sua imagem visível - o homem. Renuncia ao remanso do claustro, onde
seu espírito contemplativo encontraria um paraíso antecipado, e escolhe a
Companhia de Jesus, onde melhor se poderá sacrificar para bem do próximo.
Seus olhos acostumados a contemplar a Beleza divina, procuram, cheios de
simpatia, as misérias humanas. Cada infortúnio encontra nele um eco, cada
mágoa, um conforto. Desde o primeiro alvorecer da razão mostra-se cheio de
caridade com os pobrezinhos; crescendo, procura, a par do corpo, beneficiar à
alma de seus semelhantes; e no meio-dia de sua vida, consumido por um
incêndio de amor vai pelas ruas e pelos hospitais, como o bom Samaritano,
derramando o vinho dos remédios humanos e o óleo das consolações divinas
sobre cada chaga material ou moral; passa, à semelhança de Jesus, fazendo
bem, e finalmente morre, vítima de caridade, no exercício de seu sublime
ministério de abnegação e sacrifício.
Não tínhamos razão de dizer que ganhastes neste dia um amigo? Quem
poderá conhecer S. Luiz, conhecê-lo como foi verdadeiramente, sem amá-lo
com um amor forte e terno, sem experimentar por ele um sentimento
1
Sl. 72, 23
consolador e cheio de doçura? Quem não se ajoelhará com piedade fraterna
aos pés de seu leito de moribundo, para recolher-lhe dos lábios aquelas últimas
palavras tão generosas, tão desprendidas da terra? Quem deixará de chorar a
morte de tão caro Amigo? Diz o historiador de S. Luiz, que o cunho de sua
devoção é essa confiança, esse afeto, essa ternura, essa consolação, que ele sabe
derramar na alma; pois é a esse sentimento inefável que nos comprazemos em
chamar amizade.
De hoje em diante seja. S. Luiz vosso melhor amigo. Chegai-vos a ele
com confiança. Se sois inocente, ninguém o foi mais que ele; se ofendestes a
Deus, ele vos guiará no caminho da penitencia; se estais ancorado na tranquila
enseada do claustro, ele é o modelo da vida contemplativa e da observância
religiosa; se vagais no alto mar do mundo, batido pelos vagalhões dos
negócios, e em risco de naufragar nos escolhos das concupiscências: ele vos
revestirá daquela sabedoria celeste com que resolvia as mais intrincadas
dificuldades, daquela prudência e circunspecção com que conservou ilibada
sua pureza no meio da corrupção das cortes.
S. Luiz é um leal e verdadeiro amigo, anjo custódio da inocência, valido
do grande Rei, em cuja corte, como viu Santa Maria Magdalena de Pazzi
arrebatada em êxtases, talvez nenhum súdito tenha tanta glória. Uni-vos a ele
pelos vínculos de uma amizade terna e confiante; invocai-o em todas as
necessidades materiais e espirituais, e, com tantos milhares de outras pessoas,
vereis como a Rainha do Céu, a quem ele tanto amou na terra, é grata àquele
lírio de virgindade que ele lhe ofereceu um dia na igreja da Anunciada em
Florença, e nada recusa àquele que nada lhe recusou em vida.
S. Luiz é mal conhecido, afirmamos; em Deus, porém, esperamos que,
com a divulgação do presente livro de sua Vida, escrito em circunstâncias bem
particulares, como vereis no prefácio do autor, pelo Padre Virgílio Cepári seu
contemporâneo e companheiro de Religião, seja o nosso querido Santo
melhor conhecido e melhor amado.
A obra é cheia de interesse e encanto pela sua unção, simplicidade e
verdade. É esta a vida de S. Luiz, não há que duvidar. Julgamos, entretanto,
poder afirmar que o autor, como verdadeiro filho de Santo Inácio, escrevendo
numa época em que S. Luiz não fora ainda canonizado, não quis antecipar
sem julgamento ao da Igreja, e procura pôr diques à sua admiração e
entusiasmo, sendo em extremo discreto, prudente e reservado.
Para a tradução adotamos uma edição moderna (1862) italiana que, por
muito ampliada e aumentada, abreviamos, desejando apresentar aos nossos
leitores a obra original do Padre Cepári. Para este fim muito nos ajudou a
antiga tradução portuguesa do Padre Jerônimo Alvares, também da
Companhia de Jesus e contemporâneo de S. Luiz, publicada em Lisboa em
1610, menos de vinte anos depois da morte do Santo. Cremos que foi esta a
única tradução da obra em língua portuguesa, livro hoje raro, e de poucos
conhecido. Por ele nos guiamos em quase tudo, especialmente na Terceira
Parte. Julgamos apenas conveniente trocar o título de Beato pelo de Santo,
fazer algumas pequenas modificações que a mudança de época exigia, e
acrescentar à obra um pequeno Apêndice, extraído do Padre Miguel Tavani,
da Companhia de Jesus, também historiador de S. Luiz, em que vêm referidas
sua beatificação e canonização.
Maria Santíssima, nossa boa Mãe, a quem consagramos e entregamos
este livro, se digne tomá-lo debaixo de seu patrocínio, e derrame sobre ele suas
bênçãos, para que possa acender em todos os corações a devoção a S. Luiz, e
suscitar-lhe muitos imitadores e fiéis amigos, que derramando na terra o bom
odor de Jesus Cristo, tornem mais conhecido, amado e servido o nosso grande
Deus, a Quem seja glória eternamente, e apressem o advento de seu reino, que
tão instantemente pedimos cada dia na oração que nos ensinou seu divino
Filho: Adveniat regnum tuum.
VIRGILIO CEPÁRI
da Companhia de Jesus.
Beatíssimo Padre)
Sendo o Beato Luiz de Gonzaga, de quem sou indigno irmão menor, tão
glorioso pela santa vida que levou na terra, e pelos milagres que obrou depois
de sua morte, que, na Itália e fora dela são geralmente venerados seus retratos e
medalhas, como de Santo; e costumando, de ordinário, as famílias conservar
os retratos de seus gloriosos antepassados, para ilustre memória: tinha eu, a
fim de perpetuar seu santo e glorioso nome, determinado conservar em minha
casa, para meu bem particular e de meus descendentes, esta presente história,
como retrato não do corpo, mas da alma, que é em nós a parte tanto mais
digna de apreço, quanto mais é a principal causa dos feitos admiráveis do
homem, e tanto mais excelente quanto nela mais tem lugar toda obra de
merecimento.
Sendo-me, porém, encomendado, que tornasse este bem mais universal,
pelo Papa Clemente VIII, de santa memória, que muito bem se lembrava da
santidade com que ele viveu e morreu, e sabia a fama que corria de seus
milagres, mudei de propósito e resolvi mandá-la imprimir. Não pude,
contudo, efetuá-lo em vida de Sua Santidade, porque faleceu no mesmo ano
em que fui forçado a partir desta corte, chamado à Alemanha pela Majestade
do Imperador meu Senhor.
Agora, que Vossa Santidade lhe sucedeu com aplauso universal, e não só
aprovou a minha determinação, mas ainda, depois da relação que a Vossa
Santidade se fez em consistório de sua exemplar e santa vida pelos ilustríssimos
Senhores Cardeais para este fim deputados, lhe pareceu bem, no Breve que
me dirigiu há dias passados, honrá-lo com o título de Beato; ofereço a com
toda a humildade a Vossa Santidade, não só com os milagres que tinham
sucedido até àquele tempo, mas acrescentando também outros que de então
para cá sucederam. Esta oferta faço, assim por estas e outras obrigações que
tenho a Vossa Santidade, como porque, recebendo os cidadãos do Céu, as
honras cá na terra da suprema corte e consistório de Vossa Santidade, diante
de cujo tribunal agora pende a resolução de sua canonização, veja Vossa
Santidade quanto ele as merece, e com quão grande fundamento se lhe podem
conceder.
Aceite, portanto, Vossa Santidade tudo isto como me promete sua
benignidade, e seja servido de ouvir em breve, não digo só a todos nós da casa
Gonzaga e a nossos vassalos, mas também a tantos outros Príncipes cristãos,
que instantemente pedem a dita canonização para sua particular consolação e
dos povos a eles sujeitos. Entretanto beijo os pés a Vossa Santidade, e por
último lhe peço sua santa benção.
De Vossa Santidade humílimo e devotissimo servidor
PRIMEIRA PARTE
――――――
CAPÍTULO I
Parece-me não menos digno de nota ter sido este o primeiro casamento
celebrado na Espanha de acordo com a ordem e solenidade decretadas pelo
sagrado Concílio de Trento; as quais justamente naqueles dias começaram a
ser observadas no Reino da Espanha.
Depois de casado, obteve o Marquês licença do Rei e da Rainha para
tornar a seu Marquesado, na Itália, levando consigo a Marquesa, sua esposa.
Antes de deixar a corte, nomeou-o o Rei seu camareiro honor e concedeu-lhe,
no Reino de Nápoles e no Ducado de Milão vários títulos honoríficos,
extensivos à sua vida e a de um filho; e pouco depois o fez na Itália capitão de
gente de armas, dignidade com que ali se honram os maiores príncipes e
duques.
Chegados a Castiglione, vendo-se a Marquesa livre das ocupações e
impedimentos da corte, como fora sempre inclinada à piedade cristã, tendo
mais comodidade e liberdade que antes; começou a entregar-se à devoção
mais; do que nunca, fiel aos propósitos que formara em Espanha. Sentia em
particular grande desejo de ter um filho que servisse a Deus em alguma
Religião observante, e, firme nesta santa intenção, muitas vezes e com fervor
pedia a Deus em suas orações estas graças. Os acontecimentos parecem
demonstrar terem sido ouvidas por Deus suas preces, pois concebeu este
primeiro filho, S. Luiz, o qual entrou para a Companhia de Jesus, onde viveu e
morreu santamente.
Não deve causar estranheza que o filho tão santo e para tão santo fim
desejado, pudesse ser alcançado pelas orações da mãe, pois lemos nas sagradas
histórias quão benigno se tem Deus mostrado sempre em satisfazer
semelhantes desejos. É o que lemos de Ana, mãe do santo Profeta Samuel, a
qual sendo estéril e pedindo a Deus no templo um filho para dedicá-lo a seu
serviço, logo o alcançou; de S. Nicolau de Tolentino, também obtido pelas
orações de mãe estéril; de S. Francisco de Paula alcançado de pais também
estéreis, de Santo André Corsino e outros semelhantes. Por aí vemos que
aquele que inspirou a Marquesa a pedir tal mercê, também pode
benignamente ouvi-la, e escolher para si o primeiro fruto de suas entranhas.
Com efeito, parece que Deus foi servido tomar posse de S. Luiz ainda no
seio materno; pois sem dúvida à Divina Providência se deve atribuir o fato de
ser ele batizado antes de totalmente vindo ao mundo, e de ter-lhe assigualado
o nascimento com seus favores à Santíssima Virgem, Rainha os Céus, de
quem ele foi desde pequeno tão devoto.
Costumava contar a Marquesa, que, chegada a ocasião de dar à luz a este
filho, foi assaltada por dores tão fortes, que chegou às portas da morte, sem
que pudesse nascer a criança. O Marquês fez ir muitos médicos, e
recomendou-lhes que, se não podiam salvar vivo o filho, salvassem-lhe ao
menos a alma, e a vida da mãe. Eles, porém, depois de terem empregado sem
resultado vários meios e remédios, desenganaram e deram por perdida a vida
da mãe e do filho.
Sabendo isto, a Marquesa, vendo que lhe faltam os socorros humanos,
resolveu recorrer aos divinos, especialmente à intercessão da Santíssima
Virgem, Mãe de Misericórdia, e fazendo ir à sua câmara o Marquês, de acordo
com ele, fez voto de ir à Santa Casa de Loreto, se escapasse, e de levar também
o filho se este, nascendo, sobrevivesse.
Apenas feito o voto, cessou o perigo, e daí a pouco nasceu a criança; e
porque continuam os médicos a afirmar que não era possível esta escapar, e o
Marquês instava que lhe procurassem salvar a alma, a assistente, assim que a
viu em termos de poder ser batizada, ainda antes de inteiramente nascida, a
batizou.
Deste modo, pela intercessão da Santíssima Virgem, foi salva a vida à
mãe e ao filho, e o mesmo não nasceu para o mundo antes de renascer para
Deus e em sua graça; favor singular, que se deve atribuir a Deus, que o quis
possuir desde o seio materno. Neste privilégio foi ele semelhante a Santa
Matilde, virgem, a quem, como se lê em sua vida, o Senhor revelou que pela
divina vontade lhe fora por idêntico perigo acelerado o batismo, a fim de ser
sua alma imediatamente dedicada a Deus, como templo onde o Senhor
habitasse, prevenindo-a desde o nascimento com a divina graça.
Nasceu S. Luiz no castelo de Castiglione, lugar principal do Marquesado
de seu pai, agora Principado, na diocese de Brescia, sob o pontificado de Pio
V; no ano do nascimento de Nosso Senhor 1568, numa terça-feira, 9 de
março, perto da noite.
Apenas o viu nascido, a mãe fez sobre ele o sinal da Cruz, e deu-lhe a
benção. Por espaço de uma hora conservou-se o menino tão quieto e imóvel,
que quase não se podia saber se estava vivo ou morto; depois, como
despertando de um profundo sono, soltou um só pequeno vagido e aquietou-
se, não chorando mais como costumam fazer os recém-nascidos; o que foi
talvez o indício da sua mansidão futura, e da amenidade inata de seus
costumes.
A solenidade do Batismo realizou-se afinal com grande pompa a 20 de
abril do mesmo ano, também numa terça-feira, na Igreja de S. Nazário, sendo
celebrante Mons. João Batista Pastorio, Arcipreste de Castiglione. Puseram-
lhe o nome de Luiz, por assim chamar-se o pai, já falecido, do Masques.
Foi padrinho o Sereníssimo Dom Guilherme, Duque de Mântua, o qual
mandou a Castiglione um primo seu e do Marquês, o ilustríssimo Senhor
Dom Prospero Gonzaga, que apresentou a pia batismal a criança, como
consta do livro de assentados da Paróquia. No mesmo livro vi, entre outras
coisas, que, estando todos os assentados de batismo daquele tempo escritos
em língua italiana, só o de S. Luiz, ou pela distinção de sua pessoa, ou por
inspiração particular de Deus, trazia no fim algumas palavras latinas que não
vi em mais nenhum, nem mesmo no de seus irmãos, e que nele se verificaram.
São as seguintes: Sit feliz, carusque Deo, ter optimo, terque máximo, et
hominibus in aeternum vivat; isto é: “Seja feliz e amado de Deus três vezes
bom, três vezes grande, e para os homens viva eternamente”.
CAPÍTULO II
Com quanto cuidado e esmero foi educado S. Luiz na sua infância, cada
um bem pode imaginar. Como primogênito devia ser herdeiro não só do
Marquês, seu pai, mas também de dois tios paternos, D. Affonso, senhor de
Castel-Goffredo, e D. Horácio, castelão de Solferino, dos quais o último por
não ter filhos, e o primeiro por ter somente uma filha, haviam necessariamente
de deixar seus feudos imperiais a Luiz, seu sobrinho.
Desejava a Marquesa, como pia senhora, que este seu filho se
acostumasse desde pequeno às práticas de devoção. Apenas o menino
começou a desembaraçar um pouco a língua, ela própria lhe ensinou a
persignar-se com a Cruz, a proferir os santíssimos nomes de Jesus e de Maria, a
recitar o Pai Nosso, a Ave Maria e outras orações; e o mesmo queria que
fizessem as outras pessoas que o serviam e acompanhavam. O menino tornava-
se tão devoto, que pela claridade daquela aurora, se podia inferir quão grande
havia de ser o resplendor do seu meio-dia.
Testificaram as damas que estavam naquele tempo a serviço da
Marquesa, particularmente incumbidas de despir e vestir o menino, que nele
viram, desde pequenino, grandíssima devoção e temor de Deus. Duas coisas,
entre outras assaz notáveis constam-se dele. Uma é que se mostrava muito
compassivo para com os pobres; e, quando os via, lhes queria dar esmola; a
outra, que, depois de poder já andar por si, muitas vezes se sumia, e, quando o
buscavam, o encontravam em algum lugar escuso onde quedara a fazer
oração; do que ficavam todos admirados, prognosticando desde então que
seria um Santo.
Outras pessoas, entre as quais Camillo Mainardi, com juramento
depuseram, que, muitas vezes, carregando o pequenino, sentiam-se
interiormente mover-se à devoção, parecendo-lhes ter nos braços um Anjo do
Paraíso. Sentia a Marquesa grande gosto por ver tornar-se o filho tão piedoso
devoto; mas o Marquês, que se prezava de ser soldado e seguir a carreira das
armas, que lhe valeram do Rei Católico vários cargos honrosos, desejava que
Luiz seguisse o mesmo caminho. Apenas completou este quatro anos,
mandou fazer expressamente para ele arcabuzes, bombadas e outras armas,
todas pequenas e próprias para serem manejadas naquela idade; e, tendo que ir
a Tunis, comandando três mil homens de infantaria italiana, a mandado do
Rei Católico, e devendo passar revista aos soldados em Casalmaior, terra junto
a Cremona no Estado de Milão, arrancou Luiz, que não tinha mais que
quatro a cinco anos, dos braços das amas e aos cuidados maternos, e levou-o
consigo. Durante o tempo que duraram as manobras punha-o à frente das
fileiras, revestido de leve armadura, com um piquezinho ao ombro; e gostava
de ver o prazer com que o menino acompanhava os exercícios.
Esteve Luiz em Casal alguns meses, e, como nessa idade se costuma
aprender rapidamente quanto se vê fazer, por brincar e conversar cada dia
com os soldados, tomou um certo espírito marcial, e parece que deu indícios
de ser inclinado àquela glória a que com as palavras e o exemplo o incitava o
pai. Aconteceu muitas vezes que, manejando armas, e principalmente
arcabuzes, esteve em manifestos perigos de vida, dos quais foi quase
miraculosamente salvo pela divina Providência, que a melhor estado o
reservava.
Uma vez, em particular, disparando um arcabuz, queimou a face toda
com a pólvora. Outra ocasião, no estio, enquanto o Marquês e muitos
soldados dormiam à sesta, tomou um pouco de pólvora, e sozinho (coisa que
verdadeiramente admira em tal idade), carregou uma pequena peça de
artilharia que havia no castelo, e pôs-lhe fogo. Pouco faltou para que a carreta
da peça, recuando com a descarga, o esmagasse debaixo das rodas. O Marquês
acordou com o estrondo, e, receando qualquer reboliço ou sublevação entre
os soldados, mandou imediatamente ver que novidade era aquela, e, tendo
sabido tudo, quis castigar a criança; mas os soldados, que se alegravam por ver
tanta bravura em tão tenra idade, apadrinharam-no com suas súplicas e
obtiveram-lhe o perdão.
Estas e semelhantes coisas contava depois Luiz, em Religião, como
provas da divina bondade, que o livrara de tantos perigos. Ainda lhe restava
algum escrúpulo de ter tirado aquela pólvora aos soldados, ainda que se
consolava com pensar que, se a houvesse pedido, eles de boa vontade lh’a
dariam.
Partindo o Marquês com a soldadesca para Tunis, mandou levar Luiz a
Castiglione, onde este seguiu o mesmo modo de vida que em Casal tinha
aprendido. E como no conversar com os soldados os tinha a miúdo ouvido
usar palavras livres e desordenadas, como é geral costume entre essa gente,
começou também a tê-las na boca, posto que não soubesse o que significavam,
como ele mesmo contou ao Pe. Jeronymo Piatti, a cujo pedido narrou toda a
sua vida secular.
Ouvindo-o um dia, o Senhor Pedro Francisco del Turco, seu aio, o
repreendeu, e, como me contou o mesmo aio, nunca mais lhe saíram da boca,
em toda a sua vida, palavras que não fossem honestas e decentes; antes, se as
ouvia usar a outrem, ou punha os olhos no chão, com pejo, ou os desviava,
dando mostras de não atender ao que se dizia, e mesmo de sentir enfado. Por
aí se pode ver que, se tivesse consciência do que dizia, nunca houvera usado
semelhantes termos.
Essas palavras que pronunciou naquela idade pueril, sem lhes saber a
significação, constituem a maior falta que encontro na vida de S. Luiz, das
quais, tanto que foi avisado que eram más e indecorosas à sua pessoa e
nobreza, se envergonhou de tal modo, que, como ele disse mais tarde, nem se
podia resolver a declará-las ao confessor; tão grande o pejo que sentia! Toda a
sua vida chorou-as como um gravíssimo pecado; e, como jamais cometeu
maiores faltas ele que se pudesse doer, para mortificar-se e humilhar-se
costumava contar esta, em Religião, a alguns de seus amigos, para lhes dar a
entender que fora mau desde menino.
É de crer que permitisse Deus nele esta falta por singular providência,
para que entre tantos dons sobrenaturais e virtudes com que a divina bondade
enriqueceu depois sua alma, tivesse ele alguma ocasião de humilhar-se,
reconhecendo culpa onde provavelmente, pela pouca idade e falta de
advertência, não a havia; e para que (como de S. Bento escreveu S. Gregório)
retirasse o pé que já quase tinha posto no mundo.
Chegando à idade de sete anos, época em que, segundo o comum
parecer dos filósofos e sagrados doutores costumam os meninos, de ordinário,
ter uso de razão, e começam a ser capazes de virtude e de vício, entregou-se de
tal modo a Deus, e com tanto fervor dedicou-se e consagrou-se à Divina
Majestade, que a esse tempo costumava ele chamar o de sua conversão.
Assim, quando dava conta de sua alma aos diretores espirituais que o
instruíam e guiavam, contava como uma das assinaladas mercês que da divina
Mão havia recebido, o ter-se com a idade de sete anos convertido do mundo
para Deus.
A abundância da graça celeste com que ele, ao despontar do uso da
razão, foi prevenido e ajudado, pode-se claramente avaliar pelo seguinte:
quatro padres, seus confessores, que em vários tempos e lugares ouviram-lhe
confissões, algumas gerais (um deles é o Ilustríssimo Senhor Cardeal Roberto
Belarmino que ouviu a última geral de toda a vida, que fez não muito antes de
morrer), todos depõem por escrito, sem saber um do outro que ele em todo o
tempo de sua vida, jamais cometeu pecado mortal, nem perdeu aquela graça
que, ao nascer havia recebido no Baptismo.
Isto nos deve parecer ainda mais digno de espanto, porque ele na sua
mais perigosa idade, não esteve recolhido em claustros ou mosteiros de
religiosos, nos quais pelo afastamento das ocasiões, pela santa convivência
com tantos servos de Deus, e pela abundância dos socorros espirituais, é
muito mais fácil, que no mundo, conservar a graça de Deus. Pelo contrário,
desde menino começou a frequentar as cortes, e, além de ter nascido e crescido
na de seu pai, passou alguns anos na do Grão-Duque de Toscana, do Duque
de Mântua e do Rei de Espanha; teve sempre que tratar com príncipes e
fidalgos, e lidar com toda sorte de homens, conforme exigia a ocasião.
Todavia, entre as delícias da casa paterna, como no meio dos perigos e
tentações das cortes, conservou sempre pura e limpa a branca veste da
inocência baptismal. Por isso, com muita razão, o Cardeal Belarmino,
discorrendo um dia sobre as insignes virtudes de S. Luiz, sendo este ainda
vivo, e, em presença de muitos, entre os quais estava eu, dizendo com razões
bem fundadas, que se deve provavelmente crer que a divina Providência
sempre mantém na Igreja militante alguns santos que são em vida
confirmados na graça, acrescentou estas formais palavras: “Eu por mim tenho
como certo que um desses confirmados na graça é o nosso Luiz de Gonzaga,
porque sei o que se passa naquela alma”.
Acrescentou o mesmo Cardeal naquele seu belíssimo testemunho, outra
coisa que será considerada mais admirável por quem quer que entenda as
normas da vida espiritual, e considera a competência da pessoa que afirma; e é
que S. Luiz desde os sete anos de idade até a morte levou sempre vida perfeita.
Quão insigne privilégio seja este, deixo ao juízo dos entendidos.
Parece ter Deus querido que os mesmos demônios dessem testemunho
da santidade do menino, e da glória que lhe estava reservada no Paraíso. Com
efeito, passando um dia por Castiglione, um frade de S. Francisco, dos
Observantes, tido por toda parte em grande conceito de santidade, e
demorando-se em um convento de sua Ordem, chamado de Santa Maria, a
quase uma milha de Castiglione, acorreu grande multidão para vê-lo e
recomendar-se às suas orações. E porque corria a fama que ele fazia milagres,
levaram-lhe vários possessos do demônio para serem esconjurados. Ora,
enquanto o frade estava na igreja, em presença de muito povo, e pessoas muito
ilustres, entre os quais estava Luiz ainda pequeno com seu irmão mais moço,
começaram os espíritos malignos a gritar, apontando para Luiz: “Estais vendo
aquele menino? Aquele, sim, irá para o Céu e terá grande glória”. Estas
palavras foram guardadas e divulgadas em Castiglione, e ainda vivem pessoas
que se acharam presentes ao fato, e o confirmam em seus depoimentos.
Bem que se não deva dar créditos aos demônios, que são pais da mentira,
contudo são algumas vezes, para maior confusão sua, constrangidos por Deus
a dizer a verdade; e neste caso se pode crer que a disseram, porque já naquele
tempo era tido este santo menino como um Anjo pela vida e costumes. Cada
dia rezava em casa, de joelhos ou só ou acompanhado, os exercícios
quotidianos, os sete salmos penitenciais e o ofício de Nossa Senhora; e ainda se
entregava a outras devoções; e querendo os outros por-lhe debaixo dos joelhos
ou coxins ou outras coisas, não consentia e gostava de ajoelhar por terra.
Por esse mesmo tempo foi Luiz atacado de sezões que lhe duraram
dezoito meses, e o fizeram sofrer bastante, principalmente no princípio; se
bem que depois nem sempre o obrigavam a estar na cama. Ele tudo sofreu
com grandíssima paciência, e não quis deixar nem um dia de rezar o ofício de
Nossa Senhora, os salmos graduais, os sete penitenciais e outras orações
costumadas. Quando se achava mais abatido que de ordinário, chamava
alguma das damas da Marquesa sua mãe, para que o ajudasse. Tais são os
fundamentos que, de seu edifício espiritual, lançou S. Luiz, com a idade de
sete anos, pelo que não é ele admirar que chegasse depois a tão alto grau de
perfeição, como diremos na continuação de sua vida.
CAPÍTULO III.
Como foi levado pelo Marquês a Florença, onde fez voto de
castidade, e aproveitou grandemente na vida espiritual.
CAPÍTULO IV
CAPÍTULO V.
CAPÍTULO VI.
Capítulo VII.
2
Unidade de medida de massa, com dois valores diferentes, dependendo do sistema
que é utilizado: No sistema avoirdupois (usado para pesar objetos em geral)
uma onça equivale a 28,349523125 gramas, ou seja: 437,5 grãos.
Acrescentava o santo moço a estes jejuns e penitências corporais muitos
exercícios mentais, especialmente a oração, à qual era tão assíduo, que alguns
oficiais da corte depõem no processo de canonização, nunca terem entrado em
seus aposentos, que o não achassem em oração, e ser-lhes necessário bem
frequentemente esperar fora um bom pedaço primeiro que acabasse.
Todas as manhãs, apenas se levantava, fazia uma hora de oração mental,
medindo-a mais pelo fervor e devoção que pelo relógio: e depois rezava suas
costumadas orações vocais. Ouvia, cada manhã, uma ou mais Missas, e muitas
vezes acolitava com particular satisfação. Além disso, tomava parte no ofício
divino, que recitavam os Religiosos do lugar, servindo de exemplo e edificação
a todos. No tempo que sobrava, estava quase sempre retirado, ora lendo livros
espirituais, ora meditando e contemplando.
À noite, antes de deitar-se, costumava ficar uma e duas horas em oração,
e parecia não poder acabar. Os camareiros que estavam fora esperando para o
deitarem na cama, em lugar de impacientar-se ficavam edificados, e, ora pelas
gretas espreitavam os atos de devoção de seu senhor, ora, movidos pelo
exemplo, também se punham a fazer oração. Em suma, vivia tão retirado e
meditava tão amiúde, que se pode com verdade dizer que tinha contínua
oração.
O Marquês, muitas vezes, lamentava-se de não podê-lo arrancar do
quarto e contou ao P. Prospero Malavolta, que frequentemente achava
banhado de lágrimas o lugar em que o filho fazia oração.
Se, por qualquer negócio que sobrevinha, era constrangido a sair do
quarto, não se distraía de suas meditações, porque tudo que meditava pela
manhã, ou sobre a Paixão do Senhor, ou sobre outro assumto, de tal modo se
lhe imprimia na lembrança, que em qualquer outra coisa que fizesse estava
sempre com o pensamento preso ao que meditava. Nem se contentava com a
oração que fazia à tarde e durante o dia: queria ainda orar e contemplar
durante a noite. Levantava-se da cama, de ordinário à meia noite, sem que os
de casa o advertissem; e, enquanto os outros estavam repousando, ele na
escuridão e no silêncio, ajoelhado no meio da câmara, só com a camisa do
corpo, sem nenhum encosto, levava boa parte da noite em santa
contemplação.
Isto fazia não somente no estio, mas ainda em pleno inverno, na época
dos grandes frios na Lombardia. O ar glacial fazia-o todo tremer, dos pés à
cabeça, chegando o tremor a impedir algum tanto a aplicação do espírito; mas
ele, tendo isto como imperfeição, resolveu vencer-se, e tanta violência fez para
conservar o espírito atento ao que meditava, que, quase alheio aos sentidos, já
não sentia mais o tormento do frio. É bem verdade que no corpo ficava tão
falto de vitalidade, tão debilitado, que não podendo, pela grande fraqueza,
suster-se ajoelhado, e não querendo sentar-se ou encostar-se, deixava-se, assim
em camisa, cair no chão nu e frio, e deste modo, estendido por terra,
prosseguia suas meditações.
É de admirar não ter ele então contraído alguma grave enfermidade, e
não ter morrido gelado pelo frio e exausto de fraqueza, tanto mais que ele
mesmo disse a alguns amigos seus, a quem em Religião confiou o que ele
chamava suas indiscrições passadas, que, às vezes, quando assim estava
prostrado por terra, ficava reduzido a tanta fraqueza, que nem para cuspir
tinha alento.
Deste esforço e violência que a si mesmo fazia para conservar o
pensamento preso à oração, resultou-lhe uma dor de cabeça que por toda a
sua vida grandemente o afligiu; porém ele, pelo desejo de padecer e de
conformar-se a Cristo Nosso Senhor na coroação de espinhos, não buscou
remédio para melhorar, antes procurou por vários modos conservá-la e
aumentá-la para que aquela dor, sem impedir de ordinário suas ocupações, lhe
servisse de memorial da Paixão e lhe fosse ocasião de merecimento.
Aconteceu, porém, que, por esse tempo, sendo uma vez entre outras,
mais gravemente que de costume, atormentado pela dor, foi forçado a ir para
a cama mais cedo. Lembrando-se, porém, depois de deitado, que não havia
naquele dia rezado, como costumava, os sete Salmos Penitenciais 3, resolveu
não fechar os olhos antes de recitá-los. Tendo feito o camareiro deixar junto
ao leito uma vela, despediu-o. Acabando de rezar os sete Salmos, vencido pela
dor da cabeça e pelo som no, adormeceu, sem se lembrar de apagar a vela, que
se consumiu toda, e acabou pegando fogo na cama. O incêndio, lavrando
pouco a pouco, a foi cercando toda em roda, sem labareda, de modo que
queimou o cortinado, o enxergão e três colchões.
Ora, enquanto queimavam, despertou Luiz, e, sentindo-se todo
abrasado, cuidou que tinha febre, tanto mais que se lembrava de se haver
deitado com aquela intensa dor de cabeça; mas estendendo as mãos e os pés
pela cama e achando-a toda escaldando, ficou grandemente maravilhado, sem
poder atinar com a causa daquela extraordinária quentura. Procurou
adormecer de novo, mas não conseguiu; e vendo que cresciam o calor e a
fumaça e quase o sufocavam, resolveu levantar-se; e, pulando da cama, abriu a
porta do quarto para chamar algum dos criados. Apenas tinha posto o pé na
soleira da porta, levantou-se a chama e queimou todo o restante do leito, que
foi pelos soldados do castelo, que acorreram, lançado pela janela ao fosso para
que não comunicasse o fogo à casa.
3
Salmos 6, 32, 38, 51, 102, 130 e 143
Sem a menor dúvida, se ele tivesse demorado mais um instante a sair da
cama, teria morrido, ou queimado pelo fogo, ou sufocado pela fumaça; tanto
mais que o quarto era pequeno e estava fechado. Porém Deus, que o tinha
reservado para a Religião e sabia o que o pusera em tal perigo, salvou-o com
singular providência; e todos consideraram particular milagre de Deus o ter ele
escapado.
Até aos ouvidos dos Duques de Mântua chegou a notícia de ter
acontecido um milagre ao primogênito do Marquês, e a Sereníssima Dona
Leonor' d'Áustria, depois de não sei quanto tempo, pediu informações sobre
o caso ao mesmo Luiz, que muito se envergonhou de o ver conhecido.
Assim, sabendo por experiência a particular providência e proteção de
Deus a seu respeito, primeiro que tudo, em todos os sucessos e também nos
negócios seus e de seu pai, recorria S. Luiz à oração, e entregava-se nas mãos de
Deus, rogando à Sua Divina Majestade, que, pois, tudo sabe, o dirigisse de
modo a acertar com o melhor, tais são as palavras textuais com que costumava
recomendar a Deus os negócios.
Nem se achou jamais enganado nesta esperança e confiança que tinha
em Deus; pois ele próprio contou uma coisa verdadeiramente espantosa, e é
que nunca recomendou a Deus uma coisa, quer grande, quer pequena, sem
alcançar o fim que desejava, ainda que fosse, não poucas vezes negócios
embaraçados com muitas dificuldades e, ao parecer de todos, quase
inteiramente perdidos: tão propício inclinava Deus o ouvido às suas preces!
Deste seu trato tão frequente com Deus, parece que adquiriu S. Luiz
aquele dom que ele dizia estimar acima de todos: uma sabedoria e grandeza de
ânimo, com que desprezava e tinha em nada tudo que há no mundo. Quando,
nos palácios dos Príncipes e nas cortes, via a prata, o ouro, as tapeçarias, as
cortesias dos palacianos e coisas semelhantes, a custo se podia ter que não risse;
tão vis lhe pareciam todas as coisas e indignas da estima dos homens.
Muitas vezes, conversando com a Marquesa sua mãe, disse-lhe em
confidência, que não podia deixar de espantar-se, e não sabia achar a razão pela
qual todos os homens não se fazem Religiosos, sendo tão patentes os grandes
bens que traz consigo a Religião, não só para a vida futura, mas até para a
atual; pois que as coisas do mundo acarretam danos presentes e vindouros, e
depressa se acabam. Por estas palavras, a Marquesa adivinhava a resolução que
o filho tomara e o que se havia de seguir, mas ainda não o dava a conhecer.
O pouco que ele conversava neste tempo era com Eclesiásticos e
Religiosos que viviam em Castiglione. Da mesma cidade há também em várias
Religiões, pessoas respeitabilíssimas, que não moram em Castiglione, mas
tornam, contudo, às vezes à pátria. O santo moço, em o sabendo, logo os ia
procurar para com eles praticar das coisas do Deus, e empenhava-se por obter
dele contas bentas, Agnus Dei e outros objetos de piedade, recebendo-os com
admirável devoção.
Gostava em particular quando chegavam monges Beneditinos da
Congregação do Monte Cassino. Estes foram inquiridos no processo feito em
Modena, e depuseram várias coisas acerca de sua devoção e santidade.
Não consagrava menor veneração a alguns Padres da Ordem de S.
Domingos, que no estio lá iam descansar, e com os quais tratava
familiarmente das coisas espirituais. Um destes foi o Reverendo Frei Cláudio
Fini, doutor e lente de teologia, e pregador de nomeada na Lombardia, o qual,
sendo depois inquirido no tribunal do Bispo de Modena, fez, pouco antes de
morrer, o seguinte depoimento que quero transcrever por ser da pessoa que é.
Diz ele:
« Conheci pessoalmente e tive trato familiar com o Excelentíssimo
Senhor D. Luiz de Gonzaga, a quem revertia o Marquesado de Castiglione,
por ocasião de passar com meus companheiros algum tempo ali e em outros
lugares, feudos de sua família. A Senhora Marquesa sua mãe gostava de fazê-lo
discorrer conosco, e comigo em particular, porque me via ficar edificado e
arrebatado de gosto espiritual à vista do procedimento, dos discursos, modos e
sentimentos do dito Senhor D. Luiz, no qual resplandecia exemplaríssima
santidade. Seu trato e conivência denotavam assinalada humildade, e
frequentemente louvava o desprendimento das grandezas e dignidades
mundanas. Disse-me, uma vez, entre outras, em Castiglione: — Não é bem
que pelo nascimento nos queiramos engrandecer: de nenhum modo se
discernem as cinzas de um Príncipe, das de um pobrezinho, senão em terem
talvez cheiro pior.
Não mostrava, naquela tenra idade, coisa que denotasse meninice.
Tinha singular modéstia, vivia recolhido e quase sempre em silêncio,
pensativo, grave e devoto. Tinha muitas vezes na boca estas palavras: — Ó
Deus, quisera amar-Vos com fervor que merece vossa tão grande Majestade, e
corta-me a alma ver a ingratidão de tantos cristãos!
Acerca da modéstia e honestidade, tinha uma pureza tão singela e
sincera, que mais não pode haver. Se, ainda por brinquedo e desfastio, diziam
alguma coisa que cheirasse de algum modo a pouca modéstia, corava, e, com
semblante modestíssimo, mostrava íntimo sentimento.
Quando lhe falavam acerca de coisas espirituais, e contavam que alguém
entrava em Religião, mostrava grande júbilo, e, fazendo por tornar sereno o
rosto, quase mudando de cor, dizia suspirando: — Ai como devem ser grandes
as alegrias do Céu, gozadas em verdade, se só de tratar delas na terra tanta
consolação se experimenta?
Às vezes ia com ele à igreja, e, conquanto tão menino, excedia os mais
antigos Religiosos em lágrimas e atos de mui humilde devoção. Não raro
fixava os olhos em uma imagem de santo ou de santa, com tanta atenção, que
parecia quase fora de si. Se em tais ocasiões o chamassem ou lhe dissessem
alguma coisa, não sentia nem respondia às primeiras investidas.
Disse-me muitas vezes, que tinha singular devoção à Santíssima Virgem,
e que só em ouvir pronunciar-lhe o nome, todo se enternecia.
Não o conheci Religioso, embora advertisse pelos seus modos, que ele
tinha interior desígnio de deixar o mundo; mas ouvi de pessoas
respeitabilíssimas em Milão, Brescia, Cremona, Ferrara, Genova, Mântua e
outros lugares, que ele mais tarde entrou para a Companhia de Jesus, onde
viveu com aplauso e reputação de santo. Em particular, muitos Religiosos de
autoridade me falaram de sua grande santidade e da sua morte; e muitos me
disseram que têm por coisa mais segura encomendarem-se a ele, do que
encomendá-lo a Deus em suas orações. Corre também fama de seus milagres,
de graças e sinais; são tidas em devotíssima conta suas relíquias. »
CAPÍTULO VIII.
____________
CAPÍTULO IX.
CAPÍTULO X
CAPÍTULO XI
CAPÍTULO XII