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pessimista (“não darei ao fato político o direito de me (p. 77). Esses leitmotive aparecem também em algumas
modificar”, anota numa crônica) e o interesse nos crônicas e são resgatados, viabilizando interpretações
destinos da coletividade. Em termos ficcionais, esse sutis como esta: “Fantasmas e embrulhos são obstáculos
desconforto do intelectual agredido pelo sistema aparece à compreensão do sentido da existência, pontos-cegos,
em Pessach, a travessia, de 1967. Raquel adverte, no desmaterizalização ou materialização ao quadrado.
entanto, que o comprometimento político não se Desmaterizalização, no caso dos fantasmas, e para isso
resolveu, nem se resolveria, pela localização do escritor, basta retomar os sentidos originais dessa palavra, ou seja,
para os que gostam de rótulos, à esquerda. Ele próprio aparências destituídas de identidades, simulacros, visões
recusou os extremos. Essa dualidade (individualismo apavorantes. Materialização ao quadrado, no caso dos
pessimista/combate político) se resolve, para a autora, embrulhos, matéria que esconde matéria” (p. 79). Para
pela admissão de um ajuste (conflituoso) entre o estudar a simbologia do embrulho, Raquel invoca os
anarquista e o humanista, “um livre pensador” estudos de Barthes sobre as embalagens nipônicas e de
interessado, apesar de seu ceticismo, na justiça social. Michel Serres sobre a imagem da caixa. E anota: “Do
Já nessa primeira parte se impõem, invólucro em si ao invólucro como signo, representação,
metodologicamente, estratégias argumentativas o leitor de um romance também percorre esse trajeto,
presentes em todo o estudo. Uma delas, a paráfrase, que depende da passagem do tempo para incorporar
além de atestar reiteradamente o interesse prioritário significados” (p. 82).
pela ficção e essa necessidade de provar as alegações, faz A percepção da temporalidade (duração,
ver mais de perto e objetivamente alguns aspectos frequências, anacronias, tempo físico, tempo
importantes dos romances de Cony. Destacam-se psicológico, simultaneidades, tematização do tempo)
ainda, como estratégias, o cerrado diálogo crítico- pelas personagens ajuda na compreensão dos
ficcional na explicação de tendências e temas, e a símbolos apontados: “O fluxo que leva da matéria à
constante preocupação de buscar implicações, de cruzar memória exige atenção dobrada quando esbarra nos
linhas de raciocínio para atender aos interesses ‘embrulhos’, ‘fantasmas’, ‘casas’, ‘cães’,
investigativos em jogo, entre eles o biográfico. O representações artísticas da matéria e da memória, da
propriamente biográfico, como a experiência no desmaterialização ou da materialização ao
Seminário, se presta a respaldar a explicação do texto quadrado”. O estudo dos embrulhos, ajustado à
literário. Assim, em Informação do crucificado, preocupação com a temporalidade, concentra-se
romance de 1961, a educação religiosa se configura mais em Matéria de Memória e Quase Memória, títulos
como experiência conflituosa possivelmente que indicam, por si só, a importância da memória na
alimentada pelo pessimismo de Sartre, por exemplo. A construção da experiência simbólica. Os
culpa, “legado tormentoso” do Seminário, e tema protagonistas (não apenas os dos romances
“muito importante na obra de Cony”, aparece, por imediatamente citados) sentem dificuldades para
exemplo, em O indigitado, de 2001. escapar do desconforto e da angústia (em torno das
O segundo capítulo, “O tempo e os invólucros”, se “grandes questões do homem”) porque vivem
volta para a expressividade simbólica dos “embrulhos” e também, na sua humanidade inevitável, da memória,
“fantasmas”, motivos recorrentes que “agregam-se a sempre atuante, embora fragmentária e parcial
outros elementos da ficção, revelando aspectos quando sujeita ao ritmo estressante da vida
importantes da visão de mundo de Cony” (p. 63). Trata- contemporânea: “A memória ajuda a embrulhar
se de uma reflexão que “articula-se com a abordagem de fantasmas, mas também alimenta a doce melancolia”
outros aspectos da temporalidade na obra do autor (p. 90). Invocando estudo de Bergson, anota a
carioca” (p. 69). Nessa obra, explica a autora, os autora: “a memória funcionaria como aproximação
fantasmas metaforizam situações e pessoas, algumas entre a matéria e o que não é matéria – por exemplo,
situadas no passado, “como obsessão ou fixação que as realidades mentais e a vida espiritual” (p. 91). Essa
permanece na mente de alguém”. O fracasso pessoal explicação da intersecção entre temporalidade e
pode exprimir-se na expressão “fantasma de mim alguns signos aproveita ainda lições de Santo
mesmo” (p. 69). O cuidado na busca desses fantasmas, Agostinho e de Barthes, num processo
contextualizando situações de vários romances, se repete argumentativo que funde depoimentos de Cony,
na explicação do “embrulho” (correlatos e sinônimos), apreciação teórica e análise textual da ficção. A certa
numa dinâmica interpretativa que permite conclusões altura, a autora pode concluir, considerando já o
como a de que “nas narrativas dos anos 90, os informe biográfico do primeiro capítulo: “Em Cony,
protagonistas seguem embrulhados e perseguidos por o tempo é ‘desperdiçado’ por causa do ceticismo, da
fantasmas, às vezes mais literais, como em O Piano e a sensação de tédio, do cansaço de existir. Esse é um
Orquestra, onde o narrador, capaz de conversar com uma movimento de consciência presente tanto nos textos
vaca, afirma que os seus fantasmas não ao metafóricos” de memória predominantemente autobiográfica
Acta Scientiarum. Language and Culture Maringá, v. 32, n. 1, p. 141-143, 2010
A ficção de Cony: invólucros da memória 143
(como em Quase memória) quanto em ficções que com que argumenta, dialogando com a teoria, invocando
apenas esporadicamente assumem cunho críticos, e algumas vezes fazendo reparos a certas
autobiográfico, como Romance sem palavras” (p. 94). passagens ficcionais de Cony. Mas o enfoque imediato
No último capítulo, “O espaço e os invólucros”, a continua sendo o desencontro afetivo dos protagonistas.
análise textual, principalmente de Antes, o verão e de A O tema da culpa, inicialmente desenvolvido no primeiro
casa do poeta trágico, é mais cerrada. A “sinopse” capítulo sob fundo biográfico, converge, na ficção, para
inicial, entre outras coisas, estabelece parâmetros para o esse drama afetivo maior.
estudo da temporalidade (com a indicação, em A casa A ficção de Cony, respaldada por textos do escritor
do poeta trágico, de alguns períodos: o do encontro dos não propriamente literários, se configura, segundo a
protagonistas, o de convivência e o da “visita”). Mas leitura de Raquel I. Bueno, como experiência humana
essa preocupação investigatória associa-se a outras, densa, e não se acuse essa ilação de tautológica. Há, na
como a que se volta para o lastro simbólico de alguns prática literária, outras opções fora do humanismo, ou
“espaços-invólucros”, como, em Antes, o verão: a pouco interessadas nele. Além disso, a ficção de Cony,
Mercedes, o maiô, a lareira; como, em A casa do poeta um tanto alheia a ousadias linguísticas e estruturais
trágico, o navio, Pompéia (onde está a casa inspiradora (ousadias, ressalte-se, que não cauterizam o
do título do romance). A casa é um “espaço-invólucro” humanismo), parece querer destacar o homem e seus
para o homem, um lugar que consagra um conjunto de desencontros, ideário de algum modo reiterado na
fatos, de vivências carregadas de simbologia, e a entrevista em anexo, no final do livro. Talvez essa
explicação dessa simbologia, apoiada em Bachelard e proposta ficcional explique a “paixão” com que a autora
Serres, centra-se na relação amorosa dos protagonistas: realizou seu estudo, que se revela também uma
“Tanto a casa de Cabo Frio [Antes, o verão] como a de
experiência de sensibilidade orientada para conhecer e se
Itaipava [A casa do poeta trágico] se constituem, por
intrigar com o homem. Fiquem, no entanto, da leitura,
um lado, como a imagem bachelardiana de proteção da
para fugirmos da subjetividade autoral, as informações
intimidade e, por outro, como a ‘caixa-preta’ [Serres]
esclarecedoras sobre vários aspectos da ficção de Cony.
capaz de historiar a imperícia de seus habitantes e a
Assim, conhecedor já da visão pessimista de Cony,
provisoriedade de seus truques” (p. 166). A casa, como
exposta no primeiro capítulo, o leitor, lendo o terceiro,
outros invólucros fazem, guarda, portanto, “matéria de
entenderá melhor conclusões como esta: “O tema d`A
memória”. Assim ocorre com o personagem enquanto
ser “misterioso”, “fantasma” (Antes, o verão), e casa do poeta trágico não é a paixão incandescente, nem a
“grosso” (A casa do poeta trágico), transformados em decadência econômica de um homem da classe alta; seu
“embrulhos que carregam algum mistério” (p. 176). tema é a finitude, a dissolução – do amor e da vida”
Esse interesse pela irradiação simbólica dos objetos leva (p. 171). O malogro afetivo, com a vida “em aberto”,
a abordagens mais detidas de alguns deles, como o explica a autora, “acontece para a maior parte das
telefone, uma “caixa-preta” presente nos dois personagens de Cony”. Em A casa do poeta trágico, a
romances. Em Antes, o verão, a Mercedes é símbolo de sedimentação desse negativismo envolvendo amor e
status; a lareira, uma “goela aberta”, símbolo do “vazio” temporalidade se apresenta entremeada por opiniões de
que o casal de protagonistas constrói com o tempo, Faulkner, de Octávio Paz, de Camus, de Serres, de Santo
sensação de desgaste provocada também pela referência Agostinho, de Barthes, viabilizando, a certo momento,
a um maiô (“invólucro”) desgastado. concluir que “todo homem é uma casa habitada por um
A explicação da simbologia de alguns objetos, em poeta trágico que é ele mesmo, aguardando a destruição”
situações contextuais, destaca os desencontros afetivos, (p. 193).
e opera, dialogando com a crítica, o reencontro cíclico O estudo de Raquel I. Bueno supera, na
da análise com os temas da ficção pessimista de Cony. diversidade de proposições e na variedade de
Esse resgate contínuo de “motivos” ficcionais, aspectos abordados, o quadro geral proposto nesta
frequentemente configurado pela paráfrase em recensão. Lê-lo, na íntegra, certamente propiciará
situações de “aplicação”, valoriza o relacionamento um conhecimento melhor da ficção de Cony, autor
amoroso dos protagonistas ao ponto de tomá-lo, em que, de fato, merece mais atenção da crítica
vários momentos, como fator argumentativo de base. acadêmica.
Neste sentido, a análise se apresenta como uma
investigação de dois seres, homem e mulher, em
conflito, a partir da visão cética de Cony e tendo em Received on June 22, 2009.
Accepted on July 20, 2009.
conta as implicações simbólicas de situações e objetos
que envolvem essa relação. O estudo de Raquel, neste
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apuro analítico e tensão subjetiva, tal a determinação and reproduction in any medium, provided the original work is properly cited.