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Quinta-feira, 20 de Dezembro de 1916

285° dia nas trincheiras

Já desde as manhãs agitadas de setembro de 1914 que o nosso governo se vira obrigado a
enviar tropas para defender o norte e o sul das duas colónias que recentemente haviam
provocado tanto alarido, Moçambique e Angola.
Mas foi apenas no início deste mês que nós, portugueses nos juntamos à guerra militar nas
trincheiras juntamente com os nossos aliados, que desde o início da guerra tinham sido
numericamente diminuídos, fazendo com que as terras de ninguém ficassem preenchidas
com os cadáveres e com sangue dos que embora defuntos, haviam dado tudo contra esses
nojentos da tríplice Aliança.
Muito antes desta guerra começar, vivia-se entre países europeus uma viva disputa pelas
colónias africanas e com o eclodir deste conflito vimo-nos bloqueados, entre a espada e a
parede, receando a neutralidade.
Caso nos mantivéssemos neutros, a Inglaterra coligada desde há muito a Portugal tirar-nos-
ia as colónias que nós tanto trabalhamos para manter, independentemente do lado da
guerra que a nossa valente nação apoiasse, o outro lado ameaçaria sempre ficar com as
nossas terras.

Apesar de todo o alarido e todo o medo que cresce à minha volta, encontrei este caderno e
consegui arranjar tempo para escrever este diário porque com o andar da guerra penso
que seja apenas uma questão de tempo até que estas folhas sejam o único vestígio meu,
um soldado no meio de tantos outros...

Nos meus primeiros dias, embora um pouco contrariado, estava de certa forma feliz por
estar a servir Portugal no lado certo da guerra, mas isso foi antes de saber pelas condições
rudimentares pelas quais estava prestes a passar.

Hoje, ainda de madrugada acordei com um frio indesejável envolvendo todo o meu corpo, e
como se não bastasse com o som de tiros que horrivelmente avolumavam o clima de terror
que se estava prestes a debater sobre o resto do dia, além dos tiros ouviu-se ainda o tilintar
de latas que formou em mim e em todos os outros soldados que me rodeavam na trincheira
desespero e medo.
Os últimos dias haviam sido iguais, o ressoar metálico rompia a manhã avisando todos os
que ainda dormitavam que estávamos a ser atacados.
Pelo que passava na boca dos outros comandantes das brigadas, os germânicos haviam
desenvolvido gases químicos letais, não tinha a certeza se nos estávamos ou não a deparar
com uma quimera, mas preferi não arriscar, tive de me levantar de imediato para defender
qualquer avanço ou ataque que os nossos inimigos haviam preparado , em seguida olhei
em volta para todos os meus companheiros de máscara e logo me lembrei que me tinha
esquecido da minha, tive de ficar com um lenço na minha cara e correr como nunca antes
para ir buscar a minha máscara, quando voltei para a minha linha de formação, já estava
tudo mais calmo, consegui parar e comer a pequena quantidade de comida que tinha sido
separada para mim, a qualidade e quantidade da comida não é das melhores, é rudimentar
e pouco abundante, às vezes, com muita sorte comemos corned beef, uma espécie de
pasta com sabor a carapau, que é ainda assim a comida mais casual, sendo assim também
dividida de igual forma por todos.
Como a tensão e o medo de que os ataques alemães recomecem nunca cessa, as comidas
habituais além de corned beef são simples como leite condensado, compota, marmelada e
diversos enlatados que talvez noutra ocasião fossem de mau gosto, mas considerando a na
qual nos encontrávamos era minimamente degustável e valorizada.

É nestes momentos em que paramos para merendar ou para pensar em geral, que nos
apercebemos do que realmente nos rodeia, reparamos diariamente que as roupas usadas
por nós estão em péssimo estado, a primeira vez na qual notei isto tentei pedir roupas
novas pois as minhas e as dos soldados da minha brigada estavam muito sujas e rasgadas,
mas o que mais me incomodou foi o calçado, ao fim de tantos meses de uso ficaram todos
furados e até com os dedos dos pés, de fora.
Apesar dos fardamentos da nossa brigada serem simples e estarem desgastados há
brigadas onde a má higiene e a sarna não prevalece, brigadas onde os pelicos, casacos
sem mangas de pele de carneiro e os safões estão em melhor estado, e que quando novos
são requisitados, novos são fornecidos.
Por isso nem tudo o que se vive no meu pequeno canto da guerra se aplica ao redor.

Apesar da roupa e do vestuário ser grosseiro e medíocre, não há coisa pior que se compare
às noites e às condições que pareciam inicialmente para todos o menor dos nossos
problemas, as noites gélidas eram de vigia, marcadas pelo alarido esporádico mas ainda
assim existente dos que na escuridão vigiavam e pelo devorar dos alimentos por parte dos
ratos que como enormes pragas demonstravam o nível de higiene presente.
As tais condições inesperadas foram a invasão das trincheiras pela água, agravando o frio
já extremamente insuportável e criando um autêntico lamaçal em nosso redor.

Entre tanta tristeza temos que encontrar algo para nos animar, como o facto de darmos
apelidos as armas, a que o meu batalhão usa é uma lewis, carinhosamente apelidada de
“lewisinha”, o que me deixa a pensar, será que os outros exércitos e batalhões dão apelidos
ao novo armamento, aos veículos blindados, aos tanques, aos canhões, desde que aqui
estou já vi armamento novo para tudo o que é lado deve estar a haver uma revolução no
mundo do armamento.

O armamento é uma coisa espetacular, que apesar de abundante nesta guerra, há que
admitir que é também um fator de medo e insegurança, uma vez que além dos tanques e
das armas que se observavam camufladas lá longe, nenhum dos lados sabe como se está
a dar o avanço da artilharia inimiga.

Além do armamento, há outras coisas que me começam a criar esperanças e felicidade


entre os que lutam, parece que nem tudo na guerra é negativo e nós temos que nos abraçar
e orgulhar das coisas boas que fazemos uns com os outros, correm rumores que para o
natal foi acordado entre os nossos líderes e os do “outro lado” que por um dia que seja, os
tiros pararem e as armas aguardarem ao relento, pois em pleno feriado com os rivais
jogaremos à bola na terra de ninguém, outros dizem que jogaremos às cartas e também ao
jogo da corda.
Imaginem só, em pleno decorrer da guerra, jogos amistosos e divertidos, animando as
pessoas cansadas e com as mãos calejadas de há tanto segurar nas armas e irritando os
líderes políticos, que se dizem inconscientemente saciados da guerra e que em bom senso
comum vêm o pouco sentido dos acontecimentos traçados na guerra.
Estamos quase no final da semana, mas para quê tal contagem se esta guerra parece não
ter fim, se hoje após ter comido, o dia acabou semelhantemente ao de ontem, anteontem ou
qualquer outro dia de que eu me lembre.
No tempo da implantação da república o meu nobre país encontrava-se numa crise política
que se veio a agravar com a entrada na guerra e com as sucedidas quedas do governo que
deu origem a uma grande contestação social, nos dias de hoje os que sobreviverão desta
guerra, não contarão com afinco a sua vida antes deste conflito mas sim os traumas e o
saber que com ela vieram, porque se há coisa que eu e os meus soldados aprendemos é
que a felicidade e honra de servir a nação não paga o desgosto imenso de o fazer numa
guerra sem previsão de acabar!

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