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CLAREZA E MISTERIO DA CRITICA ADOLFO CASAIS MONTEIRO as 4° ay Xe EDITORA FUNDO DE CULTURA RIO DE JANEIRO Bag — Maio -63 Primeira edicao: ji Copyright © by EDITORA FUNDO DE CULTURA S. A. Reservados os direitos de publicacio, total ou parcial, em lingua portuguésa pela EDITORA FUNDO DE CULTURA S. A. Av, Erasmo Braga, 299 — 1° — RIO DE JANEIRO - BRASIL Problemas da Histéria Literdria I. Critica e Hist6ria Literaria ODOS AQUELES que possuem um tudo-nada de cul- tura histérica sabem perfeitamente que o passado nos apa- fece com uma nitidez de perspectivas que contrasta com o quase inextricivel caos do presente. Mas isto nio é uma verdade: € pura ¢ simplesmente aparéncia — e sdbre isto j& nao hi, porventura, um acérdo geral. O conhecimento do pasado e o do presente nio sio do mesmo gévero; e esta diferenca fundamental faz com que, por exemplo, as ligdes do passado constituam um desmoralizadissimo tema, j4 que nio é possivel inserir 0 que sabemos daquele na expe- riéncia que temos déste. A experiéncia do presente € a nossa vida; © passado €, pelo contrério, uma imagem jé emoldurada, alheia, cujo valor se nos impée duma maneira inteiramente diversa. Téda a nossa terminologia é vitima déste décalage, pois cons- tantemente, sem qualquer restri¢do, analisamos 0 passado em térmos de experiéncia, e 0 presente em térmos de conhecimento histérico. A troca de duas linguagens, ou melhor, a auséncia de duas linguagens nitidamente definidas, é responsivel por um sem-nimero de equi- vocos, de permanentes € péssinias conseqiiéncias na formulacio dos ptoblemas. O setor da literatura nfo € dos menos atingidos pelos efeitos désse confusionismo. E Iamentamos ser obrigados a pensar que ninguém € mais responsivel por éle do que os préprios historiadores daquela. Mas o caso déstes ainda é mais complicado que 0 dos outros historiadores. 102 CLAREZA E MISTERIO DA CRILICA A freqiientagio do passado comporta excessivos riscos para quantos nio o abordam armados duma razoivel dose de espirito ctitico. Ora, sucede serem freqiientemente os historiadores da litera- tura destituidos nio sé déle, como até duma formacio filosdfica capaz de Ihes abrir os olhos para a diferenca que ha entre 0 formal € 0 real. Isso escapi-nos muitas vézes, talvez porque quase ninguém leia histérias da literatura, senio para consulta. Caso contrdétio, du- vidamos que as suas mais correntes deficiéncias nio tivessem ainda feito pesar sobre elas a condenagio que merecem, como obras in- capazes de nos pdr em contato com a literatura; reduzindo-se quase sem excecio a um repositério de fatos, apenas melhor ou pior orde- nados, as histérias da literatura servem sémente como elemento de informagio, e nunca de formagio. Sera pedir-lhes demais? Nao estaré cumprida a sua missio ao fornecer-nos essas plantas topogrificas do passado da literatura? Essas certidées de dbito das épocas e dos autores? Nio, nao esta cumprida. E nio esté porque, se fssemos julgar a literatura pelo incomensuravel tédio que provoca a leitura dos seus historiadores, terfamos dela uma idéia completamente falsa. Com raras excegdes, o historiador da literatura nao parece dar-se conta de no serem fatos, mas obras de arte, aquilo que constitui a sua matéria-prima. E é nesta confusio entre o fato e a obra que esté a sua fundamental incon- gruéncia. Incongruéncia que nao é, pessoalmente, atributo de cada historiador, mas é incongruéncia dessa mesma disciplina chamada histéria da literatura. A histéria da literatura deveria ser 0 campo do conhecimento em que melhor se cuidasse de nfo confundir a experiéncia com 0 conhecimento histérico, precisamente porque a sua matéria nao fica esgotada por éste conhecimento. Consoante a literatura do passado esté morta ou continua viva, assim o seu historiador precisatia de dois métodos; mas, ao consideri-la apenas expressio do pasado, éle, quanto mais adjetivos acumula na excelente intengio de manifestar © seu apréso, mais enterta os pobres dos auténticos escritores que, incapaz de distinguir especificamente dos maus, acaba por sepultar na mesma vala comum, embora distribuindo, aqui ¢ ali, cruzes de ouro PROBLEMAS DA HISTORIA LITERARIA 103 e de prata, que sao a sua escala de valores. Mas nao ha divida que os poe a dormir da mesma morte, CaMOzES ao lado de CasTILHO, FER- who Lores lado a lado com qualquer JeRONIMO OsORiO. Diremos entio que o historiador da literatura é um sujeito equi- vouado? Nio: 0 equivoco é a propria histéria da literatura! E essa disciplina, género, ou como se prefita chamar-lhe, que é um engano e um absurdo, como, evidentemente, a sua irma, a histéria da arte. E se estamos em érro, que nos mostrem uma histéria da literatura que seja possivel pér ao lado de algum dos muitos grandes livros que existem sobre uma figura, ou sobre o que é vivo numa época; que nos apontem a histéria da literatura que nao seja o encerramento forcado, nas poucas ou muitas centenas de piginas de cada um de tais livros, de sujeitos que nada tém de comum entre si, e que 0 his- toriador faz herdicos esforcos para nos convencer serem todos éles félhas pendentes da mesma frondosa arvore. Porque nao se pode escrever a histéria da literatura como se ja tivéssemos chegado a uma conclusio sébre o que seja literatura. © seu historiador tem de aceitar o estabelecido, e 0 estabelecido é uma confusa enumeragio de valores ¢ nio valores, é, sobretudo, uma invidvel justaposicdo de coisas-que-aconteceram e de criagbes-que-con- tinuam-vivas. E éste alternar do morto-vivo resulta, por uma lei so- ciolégica que ainda esté por determinar, numa fatal preferéncia do historiador em favor do morto. Ah! se os historiadores dessem conta, finalmente, de que a cronologia é uma coisa; de que a histéria das formas é outra; e so- bretudo de que é muito outra coisa a literatura propriamente dita, que nao pode ser contada como os fatos dum reinado ou a evolucio dos meios de transporte! E se é necessiria uma prova ainda mais evidente, veja-se 0 que acontece quando 0 historiador da literatura se decide a falar da literatura contemporinea, e a maneira como éle se perde no meio dessa estranha fauna dos vivos, que justificadamente © assusta; aqui, a ineficdcia dos seus métodos resulta mais evidente porque quase sempre o leitor esti de melhor partido: quando 0 his- toriador Ihe fala de notdveis figuras que éle (leitor) nunca leu (nem ninguém, possivelmente), aquéle compreensivel crédito que abriu 20 historiador deixa-o numa vaga aceitacio otimista. Mas, quando se 104 CLAREZA E MISTERIO DA CRITICA trata do presente, 0 estranho é 0 historiador. Téda gente leu coisas que éle ignora, € a0 mesmo tempo éle conhece — também ainda nio se estabeleceu a lei que 0 possa explicar — outros contemporaneos nos quais mais ninguém ouviu falar. Os historiadores da literatura tém sempre uns amigos que escrevem coisas e que 0 leitor s6 conhece das histérias da literatura. E por qué? Porque o historiador da lite- ratura no tem senso critico. Quando fala do passado, a opiniio es- tabelecida faz as vézes daquele. Mas, quando do presente se trata. .. E sé ver como é excepcional uma histéria da literatura que chega até ao presente dar o devido Iugar aqueles que realmente 0 tepresentam. Para nio ir mais longe, veja o leitor qual o lugar de FERNANDO Pessoa em qualquer histéria da literatura portuguésa escrita antes de (digamos) 1950... As histérias da literatura falam mais dos reinados do que dos interregnos, e € justo que assim seja, pois é da natureza déstes serem bagos e incaracteristicos; acontece até que tais histérias incluam o in- terregno no reinado, e eis o que j& nao se pode dizer justo. Um in- terregno , na sealidade, aquéle tempo em que nio reina ninguém; € portanto, na literatura, aquéle periodo em que, apagado o fogo sagrado que alimentou a vitalidade duma fase, talvez j& refervam nas profundezas, mas nio chegaram ainda & superficie, as lavas fer- ventes que trazem consigo a renovacao. O interregno nio deve, portanto, ser apresentado como um pro- longamento, porque dai resulta freqiientemente, nas histérias da li- teratura, essa impressio confusa que chega a dar ao leitor a su- gestio de nada ter vida, porque a massa da literatura de interregno afoga, aos olhos daquele (como afogou talvez aos olhos do histo- riador), os autores representativos dum reinado. Assim, veriamos uma grande vantagem numa histéria da literatura que, fazendo corres- ponder efetivamente as suas divisdes aos movimentos reais que dominam a evolugio da literatura, isolasse de cada periodo vivo 0 periodo, nfo diremos morto, mas destituido de férga realmente criadora, que vem fatalmente apés aquéle. Evidentemente que isto implica algo que vai contra uma tradicao secreta da aos valores criadores; menos As teorias em que se procurou fixar istéria literaria; dar menos importancia as escolas, ¢ mais t PROBLEMAS DA HISTORIA LITERARIA : 105 ésses valores do que a Propria demonstragao pritica de tais valores. Assim, por exemplo, a , por €poca de Ega pz Quzirds ganharia em relévo se 0 historiador, ao contrario de pretender anexar-lhe quantos autores fizesse a destringa entre 0 periodo — 0 interregno — em que os autores nao terem fOrcas para criar uma visio foram tedricamente tealistas, criador do realismo e essa fase sao realistas em teoria, s6 por nova da realidade. Isto teria, sobretudo, a vantagem de se poder fazer realmente uma histétia sociolégica da literatura, nfo no sentido vulgar, que consiste em tragar um quadro da historia social, politica e econdmica da época, e tragar em seguida o da literatura do petiodo que aparen- temente Ihe corresponde, mas estabelecendo de fato as cortespon- déncias — e as contradigies, que no sio menos significativas — entre © que acontece naquelas ¢ nesta. Por exemplo, o realismo de ABEL BOTELHO sem davida que nao é 0 de EGA DE QuEIRGs; aquéle, autor do interregno, aplica um método que j4 nao tem vida, exata- mente porque o seu tempo deveria ter criado outra formula. Saber porque nfo a péde a sua época criat, e porque se resignou a utilizar um estilo alheio, estabelecer a relacao entre éste sinal de pobreza e os possiveis sinais de fraqueza visiveis nos outros aspectos dessa época, eis 0 que teria mais interésse do que pretender ignorar que todos os realistas, sejam éles os seus criadores ou nao, pertencem na realidade a épocas diferentes. As histérias da literatura dio-nos, de fato, uma visio demasiado simplista da evolugao da literatura, e talvez sejam as principais res- ponsaveis de ser tao dificil interessar nela estudantes que perante uma floresta de nomes em tal promiscuidade ficam desde logo com a idéia de que as variagdes da literatura se reduzem 4 substituigéo do classicismo pelo romantismo, do romantismo pelo realismo, e pouco mais... As histérias da literatura deviam ser obras para ler, e nao apenas para consultar, 0 que sucede quase fatalmente, pelo menos is pessoas dotadas de bom gésto, e que nao tem Prazer nenhum em acompanhar os autores numa enumeragio fastidiosa, pois outra coisa nio pode resultar dessa tradicional equiparacio dos talentos de segunda, terceira, quarta ordem, etc., 4s figuras de primeiro plano. CLAREZA E MISTERIO DA CRITICA 106 Nio € 0 tamanho que afugenta delas o Icitor: é a confusio € a monotonia resultante de, mesmo involuntiriamente, o historiador da literatuca se caracterizar por um respeito da coisa escrita que nio Ihe permite desconsiderar qualquer sujeito tendo escrito ha mal de cingiienta anos, mesmo que a obra déste haja caido no mais justo dos esquecimentos. A imparcialidade do historiador da literatura é, afinal, uma injustiga contra aquéles que ganharam 0 direito ao pri- meiro plano da literatura, Cremos que a histétia da literatura devia ser escrita da mesma forma que se escreve um ensaio sbre qualquer escritor atual digno do nosso maior apréco, quer dizer, nfo s6 tratando como vivos aos autores que continuam realmente vivos, mesmo tendo morrido ha um, dois ou trés séculos, mas também pensando menos na sua escola do que néles prdprios. Isto sem prejuizo, evidentemente, do que a éste segundo titulo éles podem significar, mas que precisamente s6 conta em fungio do seu proprio valor como criadores, ¢ nio das teorias que possivelmente propuseram e impuseram. Cremos, em suma, que a histéria da literatura nado devia cheirar a cadaver, e que a sua habitual imparcialidade enumerativa s6 pode servit para a tornar indtil como instrumento de cultura, por se reduzir a sé-lo de informacio. Cremos mesmo que nao haveria mal algum em que as suas atuais tarefas se dividissem entre uma histéria neste sentido que advogamos, e outra que o seria apenas das teorias da literatura, de tudo aquilo que, vivendo da literatura e para a lite- ratura, nao constitui na realidade senio um complemento dela. Isto é: poderiamos ter, lado a lado, uma histéria viva, e uma histéria técnica da literatura. Talvez os professdres de literatura ganhassem em tomar sobretudo a segunda a sua conta, deixando a primeira aqueles que, sem preocupagdes pedagdgicas (no mau sentido da palavra...), nos poderiam dar a histéria nio necrolégica da lite- ratura, O divércio entre a histéria e a critica literéria é um dos nume- tosos absurdos que resultam do atraso em que ensino se mantém relativamente 4 cultura viva; divércio que, em certos paises, vai ao ponto de fazer da cultura universitdria uma cidadela da resisténcia aos movimentos pelos quais a literatura se renova, repelindo para PROBLEMAS DA HISTORIA LITERARIA 107 fora das suas portas tudo quanto Ihe parcga moderno, apoiando tédas as formas de academismo que The dio a ilusio duma sandével fidelidade aos valores tradicionais. : nae Cremos que isto possa mudar de vez seniio no dia em que deixe de se ensinar a literatura de tras para diante, acabando-se com © preconceito de decalcar o seu ensino sobre o da historia propria- mente dita. E se escrevemos de tras para diante foi justamente porque esta expressao, que se usa popularmente para designar a mancira errada de fazer uma coisa, define precisamente aquilo que parece ser tido como Unica solugio racional para o ensino da literatura, Mesmo nos paises em que jé ganhou direito de cidade uma con- cepcao nao historicista da critica lite Nio se trata de negar 0 péso de histéria que cada obra literdria carrega, mas sim de reconhecer, para cfcitos pedagdgicos, que ela deva ser ensinada quase como a fisica ou a quimica, ou seja, partindo do que ela € no presente, ¢ integrando 0 passado nessa presenga viva. Disse quase, pois ha, claramente, uma grande diferenga: € que a fisica nio a historia da fisica, ¢ a aprendizagem daquela € por assim dizer uma coisa 4 parte do scu descnvolvimento histérico, enquanto cada momento da evolucio da literatura nio é negado pelo que se The segue. Mas, salvo esta diferenga, 0 que pretendemos accntuar € que, ensinada como histéria, a literatura ganha imediatamente, no espirito dos alunos, essa coloracéo de coisa morta, que Jancaré no espirito déles a idéia, dificil de arrancar, de que a Jiteratura nada tem a ver com €les préprios, com a sua experiéncia, com téda ex- periéncia, seja qual for a sua época. Pelo contrario, 0 ensino da literatura a partir do presente per- 0 momento de se voltar atrds, ja se tivesse feito no os a integragio dela no conjunto dos scus interésses ria. mitiria que, ni espirito dos aluni e curiosidades — e éles poderiam ver, quase sem esforgo, que a literatura nao € uma sucessio de mortes, mas uma continuidade da , coisa que 0 ensino, tal como continua a ser permanéncia de vida, 1 feito, mergulhando-os sem qualquer preparacao numa fase da qual ressalta sobretudo aos seus olhos 2 dificuldade técnica de Icitura, torna dificil, sendo impossivel. E MISTERIO DA CRITICA 108 Talvez tal idéia faca confusdo, 4 primeira vista, a quem nio tenha considerado com objetividade éste problema, Para desfazer a confusio, basta, achamos, comparar o ensino da literatura com o da lingua: que lingua se comega por aprender — a do presente ou a do passado? portugués de hoje, ou o da Idade Média? Simplesmente, no ensino da lingua a propria forca das circunstincias evitou que jamais se caisse no érro de ensinar primeiro 0 passado daquilo que € 0 prdprio instrumento vivo da comunicagio entre os homens; pois isso mesmo era preciso que passasse a acontecer com a literatura. E certo que, ao contririo da lingua, a literatura nio comega a ser aprendida no bergo — e pena é! Contudo, quando a crianca tem & sua volta pessoas cujo exemplo, s6 por si, as leva a ter curiosidade pela literatura, comeca ela, senio no berso, mas pelo menos muito cedo, a familiarizar-se com a literatura — e entao jd nao corre 0 mesmo risco que a grande maioria das que sé na escola comegam a ter contato com ela, mas pela via histérica, pela errada via histérica que, por exemplo, faz de CaM@zs (fazia, pelo menos, no nosso tempo de escola) um motivo de penosas anilises gramaticais, com prejuizo dum poeta que nada incita o escolar a sentir. Porventura o fanatismo historicista torna dificil a muitos ad- mitir como legitimas tais evidéncias. Nao é sé 0 ensino da literatura, é a propria histéria dela, e mesmo a critica, que continuam a softer désse enfeitigamento tao prejudicial. Os especialistas da histéria lite- riria sio, com demasiada freqiiencia, mais devotos da historia do que da literatura, e a sua etrada devocao pelos monumentos da literatura nio os ajuda nada a tomar contato com a sua realidade viva — identificando, sem querer, as obras que continuam vivas com os acontecimentos histéricos, que, ésses, s6 vivem nas suas conseqiiéncias, mas estao realmente mortos em si — ou melhor, nao tém em si. Esta historizacéo da literatura € causa da confusio que o seu estudioso comete ao dar importincia a todo o escrito que pretendeu um dia ser literatura, como se a sua qualidade estivesse na intengéo € nao no valor. E certo que a critica Ihe dao exemplo dessa confusio; mas a critica tem a justificagio de ser ela quem faz a filtragem, a qual deveria poupar ao historiador essas mengées de obras mortas a0 mascer, que nio contaram no seu tempo e muito menos contam PROBLEMAS DA HISTORIA LITERARIA 109 hoje, mas o historiador se sente na necessidade ; de conhecer e mencionar. .. Porque se julgaria menos historiador se nfo o fizesse. : E ha aqui, evidentemente, Ingar para uma distincio: entre a historia literéria erudita © a histéria-ctitica, chamemos-Ihe assim. Releguemos aquela para a categoria de tantas subsciéncias necessirias mas subsididrias, e que por si préprias nio constituem fermento de cultura, enriquecimento do espirito, mas apenas dos conhecimentos. E valorizemos a histéria da literatura viva, unica indicada para ser incluida entre as disciplinas necessdrias para a formaca’o duma cultura geral. Isto implica, claro est4, uma valorizagio do seu significado que nfo pode deixar de causar perturbagSes no ramertio do ensino res- pectivo. E muito mais: simples ensinar a histéria da literatura como se fdsse a visita a um cemitério. Mas é muito mais importante let 0 que escreveu um autor do que saber quando nasceu e quando morreu, por quem foi influenciado e a quem influenciou — e é isto s6, ai de nés, aquilo que se sai da escola sabendo de literatura. Na magnifica recolha de ensaios artigos de FDELINO DE Fi- GUEIREDO, que se intitula Ultimas Aventuras, encontramos esta frase: “Estudar literatura ou ensina-la é apenas estudar ou ensinar a ler.” Embora FIDELINO DE FIGUEIREDO seja mais do que um notavel pro- fessor e historiador da literatura — e éste livro 0 prova, entre tantos outros —, nao deixa de ser grato a um literato éste encontro com um pedagogo que sai da norma da sua classe para encarar em ‘ltima instancia a literatura tal como os que a fazem gostam de a ver con- siderada, isto é, na sua nudez imediata perante o leitor. Porque, como a arte, a literatura reclama a pane dum contato direto. Este deve ser 0 objetivo de qualquer dos instrumentos que 0 homem criou para a conhecer; conhecé-la, Pore, Laie de- masiadas vézes, por culpa da histéria da critica literdsias, um vén que a esconde em vez dum auxilio para mais a aproximar do Teitor. De tantas maneiras de a conhecer que 20 longo do tempo tém sido pfopostas, é bem verdade que nunca saiu uma receita tao een aquela, E, com efeito, onde hi maior verdade do que no reg origem? ARELA E MISTERIO DA CRITICA 110 langarmos 4 historia e a critica literarias ao césto dos papéis velhos; se acabamos por reconhecer como “iltima finalidade 0 contato direto entre o leitor ¢ 2 obra, como mais im. la do que tentar desfiar em conceitos o contetido do pocma ou do romance, nao deixa por isso de caber ao historiador ¢ ao critico uma fungio indispensivel no campo da cultura, E, antes de mais nada, reconhegamos ter sido através dos seus erros, dos seus malogros, que se pode chegar, ao fim € 20 cabo, a ver tio em vez de Isto nio implica I portante ensinar a Ié claramente que a mais importante funcao da histéria é, vestir, a de despir a literatura. : Ensinar a ler pode, sem divida, entender-se em mais que um sentido. Todo o historiador, todo o critico, poderdo alegar que nunca pretenderam outra coisa; a verdade é, porém, fazerem-no o mais das vézes para que o Icitor encontre nas obras 0 que nelas julgam ver, e nao vé-las a clas, pura e simplesmente, E é também certo que mesmo no sentido mais intuitivo, exsinar a ler podetia tomar-se como uma muito sutil forma de conduzir o leitor, afinal, a ver o que vé quem tal propde. Mas isto nio importa: porque o estimulo vale por si, con- tém uma adverténcia que deixaré o leitor de sobreaviso; eis preci- samente 0 que nio saberiam fazer o historiador e 0 critico para os quais a literatura deve ter um determinado sentido, e ser portanto lida com a preocupagio de o encontrar. Mas a virtude do historiador e do critico 4 moda antiga no esti apenas na ligéo que podemos tirar das suas limitagSes: conhecer, isto é analisar a literatura com uma intengio explicativa, tem a sua vir- tude, e continuara a té-la, na medida em que a literatura nio tem apenas ésse valor essencial que sé cada um, pela sua experiéncia, poderd encontrar. E a virtude de investigar as conexdes entre a li- teratura ¢ © mundo, entre cla e as diversas esferas do conhecimento que ela supée, embora nio constituam os seus limites, Desde que a histéria e a critica néo sejam dominadas pela ptesungio de esgotarem uma obra com a sua anilise, nio se colhe scnao beneficio da sua freqiientagio; e diremos até serem elas in- dispensivel complemento, pois que, embora as obras significativas que vém até nds, de todos os tempos e de todos os quadrantes, per- durem por alguma coisa que se acrescenta ao que pode ser analisado PROBLEMAS DA TUSTORIA LITERARIA 11 — ou seja, se libertem por ai da lei da hi irmar indti istéria —, quem se atreveri a afirmar indtil uma preparacgo q everia que clas requerem? que torne possivel a inocéncia final ae oe “ grandes crlagBes da literatura no sao eter: . a paradoxo fundamental de téda a arte. E para que 9 leitor Se possa encontrar face a face com elas, pata que possa existir entre éle © elas essa comunicagio na inocéncia, indispensavel a cultura que Ihe permita afastar tudo aquilo que, sem esta, talvez Ihe torne impossivel tal encontro. Assim, a histéria e a critica literdrias, ao mesmo tempo que vestem a literatura de véus cuja sobreposicéo a pode encobrir, pot isso mesmo tornam destacado © essencial. Donde podemos concluir que nio hi inocéncia sem que primeico tenha havido ciéncia. © homem s6 ganha perdendo. Intciro, nunca esti em Ingar algum; téda a complexidade implicita ou patente nas grandes obras da literatura tem de ser perdida para se ganhar a visio essencial, 0 supremo valor que assegura a sua eternidade, O que sé por si explica a dificuldade que pesa sobre a histéria e a critica literaria ainda as mais conscientes das suas limitacdes, devido 4 tentagao de transportar para outra linguagem aquilo que sabem todavia reconhecer como in- transponivel. E isto ainda € uma justificagdo da histéria e da critica analiticas, e até da tentagio de procurar o autor através da sua bio- grafia, Porque o homem nao se satisfaz reconhecendo 0 mistério: procura desvendi-lo sempre, a0 mesmo tempo ae ° afirma invio- livel. Como haviam a historia e a critica literdria de se eximir a esta lei? * x * Henei Pevre — autor dum famoso livro sObre Os Escritores ¢ a Critica, e dum talvez menos famoso mas que nao Ihe € inferior © Que é 0 Classicismo? — publicou em 1948 um pequeno sobre As Geragdes Literarias, que devia fazer pensar a peat ii a. historiografi 5 quantos fazem. da literatura, ¢, sobretudo, todo: : literatura, literéria, ndo uma interpretagio, mas uma He a wee cate seriagio por séculos, escolas, perio 112 CLARELA E MISTERIO DA CRILICA que, sob a desculpa de porem em ordem a repiblica das letras, aca- bam afinal por a desarrumar completamente, Um dos propésitos essenciais de Hewrt Pryre foi demonstrar, © que pode fazer gragas a0 seu vasto conhecimento de diversas lite- raturas, a inanidade quase sem excegio de tais determinagdes, a menos de se tratar daquelas épocas ¢ literaturas muito distantes que, por tio mal as conhecermos, petmitem sem perigo de contradita tais ge- neralizages. Mas, quanto mais proximas de nés as épocas, mais as divisdes correntes deixam ver a sua auséncia de fundamento, e re- clamam outras formas de seriagio, de agrupamento, outras formas tanto de oposicio, como de continuidade, Embora nao seja o tema geral do livro de Pryre que vem ao caso, no deixaremos de dizer que é a idéia de geracio que éle estuda, € propde como possivel solucio. Mas 0 nosso objetivo € apenas uma passagem do livro, e nio 0 seu tema principal. O que nos im- porta aqui é a sugestdo que nos oferece As Geragées Literdrias para datar o principio da nossa era: "E sem davida cedo demais para dizer se 1940 ou 1945 tera sido a quebra (cassure) que abre, para a Franga ou para a sua literatura e a sua arte, uma era fundamental- mente nova. Mas parece-nos claro que se houve, atris de nés, uma data-eixo na histéria politica ¢ social da Europa, tal data foi 1848. Na literatura, na pintura, na misica, igualmente 4 volta de 1848-50 situariamos, pela nossa parte, a cisio que merece ser tida como o inicio da idade moderna.” E, depois de enumerar os fatos da arte e da literatura que assinalariam tal cisio, PEYRE continua: “Apa- recem obras cujo eco se faré ouvir durante os cem anos trdgicos que ameagam o mundo: 0 Manifesto Comunista, os esctitos de PROU- DHON, dentto em breve os de Dosrotevsky ¢ de Darwin. E, sobre- tudo, uma poesia de accents nunca antes ouvidos, que ira também abrit, durante um século inteiro, as comportas duma forma liberta, duma sensibilidade diferente em grau e pela sua natureza das efusdes rominticas, duma audacia metafisica inaudita, nasce entre 1885 e€ 1865 ou 1870. Esta poesia aspirard a mudar a vida, e, de CLAUDEL a0s surrealistas, um século intcito de poesia prolongaré ésse novo espirito que surge com os poemas visiondtios de Vicror Huco, esctitos em 1854-55, as Fléres do Mal, as profecias torrenciais de LAUTRI:AMONT, PROBLEMAS DA 11 VORIA LITERARIA 113 as audacias de Rimpaup, Mauanaté s : » VERLAINE € Cornitre, B en- tio, de fato, € nio em 1800 ou 1820, que tem inicio uma nov. eee ji a idade literaria —- ¢ nio deixamos talvez de a viver ainda.” Ora um famoso critico espanhol — um néro critico que nio padece de certos gi end ; ‘ p Saves sendes dos vulgares adeptos da nova estilis- tica on Car.os BousoXo, desenvolve, na recente segunda edicio do seu livro La poesia de Vicente Aleixandre, vod uma idéia que j4 propunha na primeira, mas que trata agora com todo o relévo necessirio a afir- macio de tio grande responsabilidade: a de que houve uma ruptura na poesia espanhola, desde Bé:cquer, que se caracteriza pelo uso de “uma espécie de imagens cuja estrutura difere essencialmente do tipo usado anteriormente”. E acrescenta: “a poesia contemporanea nao parece apenas uma ruptura, quanto as figuragdes imaginativas, com uma escola anterior (digamos, 0 romantismo). £ muito mais. E uma tuptura, se me é licito fazer esta generalizacio, com uma era inteira, na qual se inclui tanto o renascimento, como 0 batroco e neoclassi- cismo” — ¢, para usar a mixima generalizagio que BousoXo ja faz no prefacio: com “toda a tradigfo greco-latina”. Nio foi tendo em vista a poesia francesa, no primeiro caso, € no segundo a espanhola, que nos parecen itil fazer as duas trans- ctig6es, mas pelo que ambas elas podem significar em relacio a poesia européia (e americana) em geral. E nem sequer, para o ponto particular que temos em vista, interessa quais sejam, € como se ex ptima essa ruptura (alias, vista pelos dois autores de pontos-de-vista diferentes). Nao; 0 que nos importa por em destaque é sdmente © fato da ruptura, ¢ a importincia que nos parece ter para a com- preensio do moderno em geral (em qualquer plano da cultura) o reconhecimento de ela se ter dado com a amplitude assinalada pelos dois autores. Com feito, essa ruptura corre oe mundo oposta a tradicional, € implica uma relagio i ae uma relacio nova, entre a arte € os scus ates Mais ne rlinine implica uma critica s6bre 4 yalidade déstes, uma divida sobre a le- gitimidade de todos os princfpios que em iltimo recurso conduziam a i ati ente a uma identificagio da arte com a raziio. Mais esquematicam: a corresponde a uma concepgio do ACM, 8 114 CLAREZA E MISTERIO DA CRITICA ainda, podemos dizer que uma nova posicio do homem no universo est4 na raiz de tal ruptura. Como se poder entender seja o que for (e seja qual fér o sen- tido em que se interprete) desta ruptura, com uma histéria da lite- ratura que, quer o diversifique em sucessivas escolas ou correntes, quer o inclua a todo éle sob o signo do romantismo, vé afinal no século XIX uma continuidade que, se devemos acreditar nos dois autores, nao corresponderia a nada? Este é o problema que urge es- clarecer. Se a meio — digamos — do século XIX alguma coisa acaba outra comeca (embora reconhecendo-se que nio ha uma quebra total de continuidade, mas antes o aparecimento de um elemento ndvo — elemento que é, porém, de importincia fundamental), hé que saber se a quebra é realmente com téda a tradigio greco-latina, como diz BousoNo, e esté também implicito nas afirmacées de HENRI Pryre, ou se € apenas, dentro do século, uma vitagem por assim dizer interna, isto é, sem caracteristicas de coméco duma nova era. Trata-se, sem davida, de problema da maior complexidade, o que nao nos parece ser, porém, motivo para a histéria da literatura © ignorar... Ignorando-o, dé ela mais uma prova do seu caréter arbitrario, resultado da superficialidade da sua concepcio da li- teratura, ao mesmo tempo que do seu carater ancilar, de escrava dos métodos da histéria, mas que s6 nao parece sé-lo quando nio nos perguntamos qual o motivo por que ela se chama histéria, e nio outra coisa. E éste problema é ou, pelo menos, parece insoltivel, pois que na idéia de histéria est implicita a de cronologia, 0 que im- plica um processo descritivo que por si s6 determina a superficia- lidade a que se resigna o estudo da literatura na sua evolugéo; 0 que vemos, © que nos mostra o panorama atual da histéria da literatura, € um contraste profundo entre ela e a evolugio das idéias sébre a literatura, O seu evidente atraso s6 podera ser resolvido pela total subversio dos seus processos tradicionais. Ora, entre as conclusdes de PrYRE, conta-se uma que parti- cularmente nos agtada, a bem do ponto-de-vista por nés afirmado PROBLEMAS DA HISTORIA LITERARIA 115 acérca das literaturas_portugu i ésa_e brasileira, ou 0 inv : oluntario, expresso ou inexpresso nat ticos, apostados em dar 4 segunda das referid autonomia que, 20 ouv’ ratura brasileira teria cabeca de Jupiter... Na realidade, * contra o voluntirio ivismo de alguns cti- t las um estatuto de tal ‘los, ficamos com a impressio de que a lite- saido do solo déste pais como Minerva da pelo que toca a éste ponto, Peyre nao faz mais do que pér em destaque algumas evidéncias familiares a todos quan- tos tém contatos efetivos com a literatura, © nio a conhecem apenas por ouvir falar. Ble nao pretende inventar, mas apenas Jembrar 0 que, embora seja conhecido da critica, nio parece ter sido levado na de- vida conta pelos historiadores da literatura. E é verdade que a lite- Fatura comparada, como, se bem lembramos, éle proprio observa noutra parte do seu livro, se perde demasiado na busca de paralelos sem sentido, & base de semelhancas que, s6 por si, nada podem sig- nificar. O que nos faz lembrar a conhecida anedota dum doutorando em literatura cuja tese se baseava inteiramente na influéncia dum autor sdbre outro... que Ihe era anterior: tinha confundido dois nomes muito parecidos. Mas eis as prdprias palavras de PEYRE, ao resumir as suas conclusdes: “Tomamos como centro a Franca; mas sem de modo algum forcar a verdade das datas, mostramos que, em muitos casos, os pélos destas sucessivas geracées, na Franca, também tinham cons- tituido, na Inglaterra ou na Alemanha, e mesmo na Rissia ou nos Estados Unidos, os pontos mais altos duma curva paralela. Isto ve- rifica-se sobretudo a partir de 1750 ou 1800, mais ainda de 1850 ou 1880, quando as grandes literaturas dos paises ocidentais multiplicam. entre si as trocas e evoluem num clima analogo. A literatura com- parada, e talvez algum dia a literatura geral, deveriam tirar Partido da dlassificacio por geragdes. Ingléses, alemies, franceses, americanos, nascidos 4 volta de 1885 ou de 1900, por exemplo, tendo atravessado na adolescéncia a mesma guerra, tendo lido igualmente Dostorevsky ou FReup, Marx ou Proust, tém entre si ra pontos de contato ou semelhanga que importaria especificar. A divida de determinada 1 — Vz neste livro, 0 ensaio Tradigéo, Cultura, ¢ Autonomia Nacional. 116 CLAREZA E MISTERIO DA CRITICA gera¢io francesa pata com D. H. LAWRENCE, duma outra para com KAFKA ou WILLIAM FAULKNER, forneceria fecundos temas para investigacio, tanto como admiracio, de sbito proclamada, de uma getacio inglésa (a de Srracuy, Exior, BARING, etc.) por Ra- ciNE, de um grupo de poetas alemfes da mesma idade por MALLAR- Mé ou por VALERY. Mais ¢ mais, os mestres ou os intercessores duma mesma geragio na Europa, em cinco ou seis paises, si0 Os mesmos gtandes nomes, bruscamente aclamados por juventudes que comu- nicam 0 seu entusiasmo por sobre as fronteiras nacionais ¢ lin- gilfsticas: Rick, Karxa, Sr. JoHN Persr, ELUARD, Garcia Lorca, Hart CRANE, Boris PASTERNAK.” Nio inventei o senhor HENRI PEyRE — a0 qual, melhor do que nés, devem conhecer alguns dos criticos atr4s aludidos, profissionais do ensino de literaturas estrangeiras. Mas no nos consta que éles tenham pegado na pena para combater as teses de PeyRE (cujo livro j4 tem dez anos de idade). Combaterem, porém, a idéia duma colegio (Nossos Clasicos), em que a literatura portuguésa ¢ a bra- sileira apareciam perigosamente confundidas... Quando tal colegio Ihes oferecia, precisamente, um étimo elemento de confronto, para facilitar a destringa das semelhangas e das diferencas, s6 Ihes ocorreu reclamar que os clissicos nfo podiam ser nossos, pois que havia duas literaturas. Idéia de propriedade que se torna bastante ridicula quando, como precisamente mostra PEYRE, os contatos internacionais se tornam cada vez maiores, por férca duma interpenetragio sempre mais larga, e por via da qual nem Lorca deixa de ser espanhol, nem ELIor... inglés ou norte-americano. Bste caso de Exior surgiu a propésito: inglés ou norte-ameri- cano, realmente? Que volta dario a0 problema os nossos nacio- nalistas assanhados? Como conseguirio éles descobrir de qual das literaturas éle sera cléssico? E Pounp? E AUDEN? Coitados, os nossos criticos remetem-nos com certeza para uma reparticio da O.NW., para cla Ihes dar passaporte de apatridas... Enfim, voltemos as geracées: 0 fato é que, como diz Peyre, “a nogio de geracio é transmissivel, € valida portanto para varias literaturas”. Os mestres @ intercessores tém vindo das mais diversas partes do mundo, e é 0 cardter universal da sua obra que Ihes faz desempenhar tal papel. PROBLEMAS DA HISTORIA LITERARIA 117 Nem éles ficam menos nacionais por isso, nem cada literatura tam- pouco se desnacionaliza, Porque isto de nacionalidade é mais com- plicado do que a demarcagio de fronteitas. O espirito sopra onde quer. E, note-se, o aspecto influéncia de mestre a discipulo é mais que secundirio. A histéria da literatura explorou-o excessi- vamente por pura e simples mediocridade dos que a cultivaram. Na maior parte dos casos — precisamente nos mais significativos — nao ha um mestre que ensina a fazer, mas sim que encontra primeiro um caminho necessario, ou que Ihe dé a melhor expresso: quer isto se deva a circunstincias exteriores ou a forga da sua personalidade. Nio se trata de aprendizado, mas de uma descoberta comunicada, ou talvez mais concretamente: de um fermento. Particularmente pelo que respeita ao critério de geracio, embora éle nao possa resolver tédas as dificuldades da histéria literatia, é bem verdade que permite formas mais maledveis de setiagio. Resta saber a que ponto os historiadores da literatura serio capazes de o aproveitar, tendo ao mesmo tempo em conta outras judiciosas obser- vagdes de HENRI Pevre — ¢ de todos aquéles que j4 reconheceram ‘os absurdos resultantes de se isolar a literatura da histéria da cultura em geral, e da historia social e politica, sem todavia fazer daquela uma resultante, como que um epifendmeno destas iltimas, 0 que resulta em ndvo beco sem saida. Nenhuma literatura vivendo exclusivamente de e para si propria, © que importa nio é buscar aflitivamente a marca nacional e intransmissivel de cada uma, mas reconhecer como e porque as literaturas sio ao mesmo tempo auténomas e interdependentes. A originalidade de cada uma nao consiste em nao deverem nada a qualquer outra, mas no que de propriamente seu se revela ao mesmo tempo que se integram em correntes ¢ movimentos que excedem 0 Ambito nacional. Na sealidade, todos os classicos da literatura mun- dial so classicos de cada literatura —- mesmo quando nio tenham exercido influéncia nenhuma direta sObre ela. E nada disto pode set integrado na histéria literdria enquanto ela continuar escravizada 3s sempre repetidas fSrmulas que s6 sabem dividir 0 tempo da lite ratura em sérics de escolas, ou entio de individuos isolados — 18 CLAREZA E MISTERIO DA CRITICS 1 2 mesmo quando os autores adotem pontos-de-vista desfavorveis 4 existéncia do individuo isolado como férca criadora. Alids, 0 caso déstes diltimos € bem curioso: admitindo numa versio esquemitica, e portanto deformada, os principios do mar. xismo a idéia de ser a cultura um reflexo das condigdes sociais que envolvem o esctitor, 0 historiador marxista da literatura nio faz em geral mais do que alinhar dum lado as condigdes € do outro os reflexos, sem que o leitor compreenda muito bem que éstes ti- vessem sido o resultado inevitdvel daquelas. Devem ser muito raras (pois nio conhecemos nenhum, € nfo somos dos mais ignorantes) as historias da literatura que ndo sofram de tal esquematismo. E certo que, se bem vemos, tal tipo de historia da Jiteratura nao se poderia escrever; no nosso entender, nio € possivel fugir-se a essa falta de nexo entre as cansas e os efeitos, precisamente por nao se tratar de causas e de efeitos. De fato, estamos mais uma vez perante a conhecida confusio entre uma filosofia adiantada e uma cultura atrasada, que nao per- mite entender-se aquela senio em térmos que forcosamente a de- formam. O historiador marxista da literatura aceita a idéia de que as coisas se passam da maneira referida, mas nfo tem a experiéncia da passagem da infra para a superestrutura; conhece a teoria, tal como foi proposta em generalizacées sofrendo todos os males, nio s6 de serem armas politicas, mas de nunca terem sido formuladas concretamente em relagéo a literatura, E, assim; éle descreve, dum Indo a situagio histérica, e do outro a situagio da literatura, em dado periodo, convicto de haver uma passagem direta daquela para esta, mas reduzido, pois apenas sabe que hi, mas nio sabe como, a ver, da literatura, aquilo que realmente reflete a situagio histérica, ou, coisa muito pior, a supor reflexos onde nada thos mostra. Este simplismo, € os disparates a que tio freqiientemente deu lugar, n30 nos devem, porém, impedir de reconhecer a importancia duma interpretacdo que deixe de considerar a literatura como se ela caisse do céu, que saiba encontrar o seu Iugar entre as formas da ividade humana, nio sem divida como um reflexo, mas como encruzilhada pela qual passam todos os caminhos, que reflete, mas gue também age, que recebe e di, ¢ na qual a parte da sociedade PROBLEMAS DA HISTORIA LITERARIA 119 i Pitt oe ae ser oe para que se possa oo = e ser, © uma funcio a exercer. S maneiras para se chegar a éste re- sultado, para se poder chegar um dia a escrever realmente uma his- toria da literatura em que a vissemos nascer da prépria evolugio do homem (e nao da sociedade no sentido afinal restritivo em que os maus propagandistas usam a palavra, ¢ que faz do homem uma abstrasio), seria dar mais importincia do que se costuma ao grupo, 4 reuniio de uns tantos homens unidos por uma consciéncia comum, que esta longe de ser apenas consciéncia literria, digamos assim, mas € sempre a atracio mitua, a confluéncia de aspiracées, a iden- tidade de reagdes perante o presente e a identidade de imperativos de acio futura. Nio pensamos que isto se devesse substituir ao estudo das obras nem ao das tendéncias. Pensamos, porém, que o estudo de cada grupo, quando éle seja possivel (e 0 € tanto mais quanto mais proxima a época, escusado seria dizer), poderia inclusive acabar com essa idéia ainda tao arraigada que faz ver o escritor como um fendmeno, homem, sem divida, mas diferente dos outros homens, e do qual se pasma que éle tenha qualquer coisa de semelhante aos outros. Re- conhecer-se que éle é escritor por ser um hhomem semelhante aos outros, e no apesar disso, teria a maxima importincia pata se com- preender aquilo que é diferente, ou em que parece diferente, Comecat pot insistir sobre sua diferensa no pode deixar de impedir que se compreenda a sua vinculagio fundamental & sociedade de que faz parte, e impede sobretudo que se compreenda porque, to freqiien- temente, éle tem que ser adversirio dela. Isto no tem nada a ver com o génio. O problema do génio é uma incégnita, para a qual todas as interpretagoes tém ‘Sido vis. Deixemo-lo de parte, pois que, quer © escritor seja um inspirado, quer seja um reflexo, isso no alterati 0 sentido da sua fungio. Génio ou operdrio, & coisa que pode continuat em divide sem que isto nos impeca de estudar a mancira como ale participa na_ vida social, e sobretudo no setor particular da vida literaria, pois é éste aspecto que estamos considerando. Ora, 0 jugar que as histérias da Tiseratere concedem 20 grupo esté Jonge de corresponder — quando 120 CLAREZA E MISTERIO DA CRITICA algum Ihe é dado! — 4 sua importincia, As histérias da literatura (referimo-nos is modernas, que jé apresentam as condigdes sociais da literatura) saltam, é 0 térmo, do quadro histérico, dado alias sem- pre em térmos abstratos, para uma série de monografias, sem que entre aquéle e estas nos seja dado ver como surgem os homens que virio a ser cada um daqueles escritores estudados individualmente. O prdprio artificialismo das divisdes dos géneros dé uma idéia errada da formagio dos espiritos, que acabam por parecer predestinados a ter uma fisionomia que afinal s6 surge da sua obra. Em suma, advogamos uma histéria do que os homens que de- pois foram escritores quereriam ter feito... O que nao seria uma histéria das suas aspiragées, mas daquilo que éles realmente foram em dado momento, no momento crucial em que o destino os escolhe, ou éles escolhem o seu destino (0 lcitor escolheré a versio da sua pteferéncia). E para se conhecer o escritor nesse momento, seria fundamental que 0 grupo fdsse estudado com plena consciéncia do que significa. E isto aproximaria realmente a literatura do seu meio natural, que € a vida de todos e de cada um, € nio essa vida com seu qué de artificial do homem acorrentado j4 a um trabalho que realmente o isola — mas que, sobretudo, visto & luz da histéria, © faz parecer mais alheio A realidade do que éle realmente jamais estéve. Il. Novos Conceitos de Hist6ria da Literatura D UAS HisTORrAs da literatura portuguésa introdu- ziram, €M anos recentes, novos processos nessa tio ingrata matéria de estudo, Uma delas, de proporcées razodveis, por Oscar Loves e ANTONIO Jost SARAIVA (2' ed. cortigida, Pérto Editéra, 1956), € outra, pequena, do segundo dos referidos autores, na colegio Saber (Publicagdes Europa-América, 3* ed., 1955). Uma e outra, com tudo quanto possam ter, em nossa opiniio, de deficiente, e mesmo errado, neste ou naquele ponto, parecem-nos ser as tinicas que correspondem ao conhecimento atual do nosso passado literirio (quanto ao presente sio, particularmente a segunda, como sempre acontece, bastante discutiveis e até confusas), € as Gnicas merecendo ser tomadas hoje como guias por quem aborde o estudo da respectiva matéria. £ a primeira vez que se procura situar a nossa literatura no panorama geral da vida portuguésa. Sendo a primeira vez que tal é realizado, n’o podiam elas deixar de softer, evidentemente, de certo simplismo no estabelecimento da conexio entre a literatura e a vida social € politica do pafs, sobretudo pelo que toca a artiscada deter- minagio das causas, matéria em que, 0 mais das vézes, o historiador determina apenas caracteristicas alheias & obra literdria em si. Mas © objetivo é tio louvavel, e a sua execucio era tio necessiria, que os sendes devem ser olhados com a compreensio que reclama uma obra 122 CLAREZA E MISTERIO DA CRITICA pioneira, que, para desbravar caminho, corre riscos de cuja licéo sé os seguidores poderio tirar todo o proveito, numa visio mais ajustada as sutis gradacdes, as quais, por outro lado, mesmo as quase mil pi- ginas da obra de O. L. e A. J. S. nao permitiriam ter em conta. F inicamente um ponto da pequena, das duas obras referidas, que pretendemos comentar aqui. Ponto muito restrito: a afirmacio (pig. 101) de que 0 prdprio nacionalismo medievalista dos ro- minticos é “no fundo artificial”, e importado, da mesma forma que “os temas, os géneros literdrios, as idéias”. Quer-nos parecer que se trata duma afirmagio impensada, pura aplicagéo de teoria preesta- belecida, sem procura da necessiria verificagio. De fato, e antes de mais nada, parece-nos evidente que essa nogio das idéias importadas esti longe de corresponder a qualquer realidade. Esse critério € que é profundamente artificial, pois se funda sobretudo na prioridade de tempo e de lugar, numa identificacio da histéria literéria com o critério de quem chega primeiro meta. $6 por si, tal prioridade nao significa uma imitacio nos movimentos idénticos das literaturas que chegaram depois ao mesmo ponto. Acresce, porém, que, no caso do nacionalismo medievalista, outros fortes motivos, particulares ao caso em questio, se opdem 4 aceitagio do ponto-de-vista negativo de A. J. S., como tentaremos mostrar. A histéria portuguésa da Idade Média €, essencialmente, a da luta pela constituigio e consolidagio da nacionalidade; é, por outro lado, a fase da nossa historia em que o carater primitivo, elementar da vida e das instituigdes, estabelece uma unidade de vida que, jun- tamente com o permanente alerta que faz do pais como que uma trincheira em permanente atitude de defesa, enche a cena medieval duma vitalidade criadora que deixard de existir quando se the subs- tituir o absolutismo, a drenagem do povo para a emprésa maritima, € sobretudo, finalmente, a vida artificial dum pais que acaba por viver & custa dos tesouros (quer 0 tesouro seja ouro, pedras preciosas, agicar ou pimenta) arrebanhados pelos audazes devassadores do mundo desconhecido, pata os quais se transfere téda a vitalidade da nagio. Assim se compreende que Portugal se tenha tornado sebastia- nista, deixando de crer em si proprio para esperar de fora a solugio de todos os problemas, num marasmo de séculos. PROBLEMAS DA HISTORIA LITERARIA 123 E precisamente 0 renascimento de Portugal como nacio em sf prépria que © romantismo traduz, Mas nio traduz uma realidade ¢ sim um anelo, um voto, um esférg0, uma série de esforcos 0 mais das vézes malogrados. E até POF isso esta certo que se unifique toda a nossa literatura, desde 0 segundo quartel do século XIX até aos nossos dias, sob a designacio ‘nica de romantismo, como O. L. ¢ A. J. 8. fizeram na historia grande, pois tal integracéo continua até ao Presente. Mas isto € outro assunto, que da pano para mangas, € Por isso mesmo esté fora destas cogitacdes, Os primeiros grandes rominticos, isto é, GARRETT ¢ HERCULANO, sto, até pela coincidéncia que os féz a ambos soldados das lutas li. berais, emigrados, que vém de fora com o exército libertador para testituir Portugal a si proprio, ao mesmo tempo que literatura uma realidade que \he faltara desde o fim da Idade Média, Para encontrar essa realidade, 0 século da histéria nao podia evidentemente deixar de recorrer a esta. Mas nio € sé por essa formagio caracteristica da €poca que a Idade Média se tornard seu tema predileto, mas também Porque, como ja ficou apontado, era antes do Renascimento que éles podiam encontrar a nacio, no seu berco ¢ na sua verdade. A nacio anterior & corrupcio do govérno em poder, e da aventura em am- bicdo de miseras riquezas. A Idade Média fornecia-lhes temas vivos, até por ser com ela que o estudo da histéria nascia, e a0 entusiasmo pelo passado se juntava o proprio entusiasmo duma criagio nova, do mundo acrescentado de uma dimensio até ai ignorada: a historia como vida rediviva. Mas € sobretudo como recuperacio do pr6prio espirito nacional que devemos entender 0 nacionalismo medievalista. Recuperagio dum mundo que os rominticos descobriam vivo nas piginas de FERNAO Lopes, sobretudo, pois que éle € a expressio maxima da nossa Idade Média, expresso que nao podiam encontrar jé nos séculos em que 4 conjugasio dos mais diversos erros levatia, pela mio da falsa de- vogio, da falsa gloria e da falsa grandeza, aquela eecadeneia dat povos peninsulares que, malgrado tédas as correcdes que haja a fazer, continua a ter o diagnéstico essencial nas famosas paginas de ANTERO, 124 CLAREZA E MISTERIO DA CRITICA Nao era um regresso 4 Idade Média que os nossos rominticos pretendiam; muito menos se pode interpretar o scu medievalismo como fuga & realidade. O seu entusiasmo, 0 seu estudo, iam ao cn- contro das verdadeiras raizes, passando por cima dos séculos con- taminados. Era um trabalho de purificagio que realizavam. Eles eram afinal, com o Exército Libertador de D. Pedro, a unica resposta que a realidade podia dar ao sebastianismo: surgiam de entre 0 nevociro, ‘A sua descoberta do passado, da nagio que nio perdera ainda o norte, quer dizer que éles quiseram por pé em terra, e no em fantasmagorias. Pela primeira vez depois de séculos de alheamento, durante os quais as grandes figuras da literatura s6 podiam ser de irremediaveis isolados, as grandes figuras da literatura seriam figuras piblicas, e o grande escritor poderia ser vindos de longe, para redimir a pitri um grande cidadao. Se isto foi apenas um momento imperfeito, uma grande alvorada logo interrompida, nem por isso deixa de ser ver- dade que, pela primeira vez, a uma fase da literatura portuguésa se pode dar o nome de movimento, o que é muito significative. E, em tal movimento, o papel do nacionalismo medievalista, para con- tinuar empregando a expressio de A. J. S., nfo s6 é de primeiro plano, como, sobretudo, de modo algum pode ser tido como ma- nifestagéo artificial e importada. Oscar Lopgs e ANTONIO José Saraiva nio alargam 4 fase moderna da nossa literatura a designagio de romantismo, a0 con- tratio do que se depreende do indice. Com efeito, no corpo do livro é sémente ao Romantismo ¢ ao Realismo que éles dio aquela desig- nagio tinica, Se isto ja € um progresso em relacio as divisdes ha- bituais, maior seria éle, cremos, se pusessem o corpo da obra de harmonia com o indice, pois nos parece, realmente, de todo legitimo que se entre na fase de procurar a unidade, embora sem prejuizo do necessitio reconhecimento da diversidade. E para tal unificagio ser completa torna-se igualmente necessitio que a Epoca Moderna, ou Modernista (j4 pelo visto temos de nos resignar a esta ultima de- signagio, enquanto nfo aparecer outta melhor), passe também a ser incluida no Romantismo. E dlaro que as divisdes da histéria liter’tia nao séo coisa que afetem na sua esséncia a prdpria histéria literaria, Estamos tio ha- PROBLEMAS DA HISTORIA LITERARIA 12 5 bituados a nio corresponderem a qualquer efetiva sucessio de épocas contrastantes! Seja como fér, no haveria mal nenhum em dar-lhes algum sentido, e, pelo que toca aos tempos modernos, setia curioso que da inovacio feita pelos referidos autores saisse um debate fru- tuoso sébre o assunto. Pela nossa parte, queremos apenas procurar as justificages que nos parece ter a generalizagio do nome de Ro- mantismo a téda a literatura dos séculos XIX e XX. E claro que nos habituamos a ver no Realismo, essencialmente, 4 oposi¢éo a0 Romantismo. Mas isso significa apenas que a nossa critica nfo féz ainda um grande esférco para olhar de cima as ba- talhas literdrias em que se formulou tal oposi¢io, e para transcender os térmos polémicos em que nio podia deixar de se ter expresso um conflito imediato, sujeito as habituais simplificagdes que ésses combates implicam. Outra coisa deve ser o estudo critico, nio da maneira como os interessados formularam as suas posicdes respectivas, mas do sentido geral das obras realmente significativas de ambas as fases. Em tal estudo, ha que fazer, a seu turno, uma distingdo entre a importancia dos valores que se afirmam com mais evidéncia e a destringa, sobretudo, do que possa ter-se mantido através dum e doutro, e porventura dé continuidade a uma época, por cima das querelas das escolas. Ora, a verdade € que a geracio de 70 vem dar continuidade, e sob mais que um ponto-de-vista, a um programa iniciado com o movimento roméntico. Esta continuidade parece-nos sobretudo im- portante dum ponto-de-vista que, se nio estamos em érro, os autores em questo deixaram de lado: 0 do esforco pela integracio do homem real na literatura. Independentemente de tal caracteristica, ha, é certo, diversas outras linhas de prolongamento que estabelecem a con- tinuidade. B naquela, porém, que nos parece estar a razio essencial que justifique generalizar-se 2 designagio de romantismo, ¢ nao 36 as duas épocas referidas, mas igualmente a terceira, isto é, 4 atual. Cremos evidente que, tanto sob a forma de renacionalizagio da literatura (que se manifesta sobretudo na atracio pela Idade Média), como sob a da expanso livre (ou aspirante a livre) dos sentimentos, como ainda nas timidas tentativas de libertagio formal, 0 Roman- tismo tem sua evidente continuagéo nas teivindicagdes sociais do 126 CLAREZA E MISTERIO DA CRITICA Realismo; sdmente, éste segue outro caminho, mas prossegue, na realidade, em busca do homem auténtico, o que facilmente salta a vista se confrontarmos estas duas fases, juntas, ao Classicismo, com © seu Homem abstrato. Pois, no veremos entaéo que tanto roménti- cos como realistas tém como tema os homens, e nio 0 Homem? Nio se torna patente que tédas as querelas de bom ou mau gésto se es- batem, perante esta oposigio fundamental, ao seu comum contrdrio? O Romantismo assinala com efeito a reivindicagio para a lite- ratura de uma responsabilidade inteiramente nova; tédas as geracbes subseqiientes vio, melhor ou pior, mais ou menos conscientemente, continuar a elaboracio dos direitos da literatura. Todas as oposigdes de tendéncias, dai em diante, ou sio choques entre maneiras dife- rentes de interpretar ésses direitos, ou o choque dos remanescentes do passado (0 formalismo, sob tédas as suas formas) contra a ten- déncia condutora e dominante para a conquista da autonomia. A dificuldade de situar determinados autores, em particular CamiLo — do qual uns o fazem roméintico e outros nio o fazem nem roméntico nem realista —, resulta precisamente da impossi- bilidade de lhes restringir o 4mbito 4 definigao restrita duma fase, e de nao haver acérdo quanto 4s caracteristicas que fixariam por exclusio um autor déste ou daquele lado da fronteira entre 0 Ro- mantismo e 0 Realismo. Os autores que, como CaMILo, ficam sempre com um pé dum lado e um pé do outro, exemplificam magnifi- camente o problema em questio, permitindo-nos dar conta de que deve haver uma razio superior as razdes que fariam pender para um dos lados. Podem tais casos mostrar, em primeiro lugar, a necessi- dade duma escala de valores que nos permitisse verificar, de entre éstes, quais os de importincia fundamental, e quais os secundarios. Nio se trata, escusado seria dizé-lo, de eliminar as contradicées, mas de reconhecer que elas podem ser reduzidas por um elemento comum e fundamental, que nio as faz desaparecer, mas por assim dizer as completa. Efetivamente, se concebermos a oposigio Realismo- -Romantismo nos mesmos térmos que a oposicio Romantismo-Clas- sicismo, como sera possivel compreender que nesta tiltima hd uma continuidade real, que se trata de fases sucessivas do mesmo processo de desenvolvimento duma idéia, e que, naquela, pelo contrdrio, uma PROBLEMAS DA HISTORIA LITERARIA 127 idéia que acaba de amadurecer (a de homem natural e medida de tédas as coisas) destréi outra idéia, cujo conteddo se esgotara? Ao lado disto, as escolas, © combate dos credos opostos, esba- tem-se, mas nem por isso perdem significacéo; pelo contrario, 0 re- conhecimento de haver um fundo comum sob as tendéncias em conflito permite que se compreendam os casos de ambivaléncia, di- gamos assim, que se tornario dlaros, sabido que a oposi¢éo entre os valores rominticos € realistas nio € uma oposicio de valores contririos, mas de valores que se completam — como precisamente se completam em CaMILO. © alargamento da nogio de Romantismo s6 pode, portanto, ser benéfico & compreensio da literatura moderna, tornando mais clara uma sucessio de expressées € de movimentos literérios que nos habitudramos a ver como uma série de saltos € de interrupcoes. £ claro que muitos outros problemas afins restam por esclarecer, mas o ponto de partida est4 precisamente no passo que tZo acerta- damente deram Oscar Lopes ¢ ANTONIO José Saraiva.

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