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,O do 1~1údn lnM ur sky u M orin Crl!

;jtlnn Leondro Ferrei ta


1~ odlçõo , 199U

71Jdos os dlrol lõ$ d0sln odlçf.i o res ervad os à:


Editora Sagra Luzzatto
Run Joõo Alfredo, 440 - Cidade Btilxa
80050-23 0 - Porto Al e9re , HS - Brasil
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Editor: Darcy Caotnno Luizatto


SupoNts ao odltorl(II: Ells::i Schc in Wenze l Luzzatto
Capa: Carlos Al b erto Grovlna
ProJoto or..'\llco: Fábrica de palavras
Rm:!sl'lo o propnmçõo do originais: H clo lsa Monteiro Rosário

Dndos ln\ornncl onols d o Cotn loQ nç!'ío no Publlcoção (CIP)


( Cl'ltfHH!l Brnsllolrn cio Livro, SP, Brnsll)

Os m(tltlplos torrilórios do /\nóllso do Discurso / Frcda


lndursky o Maria Cristina Leandro Forroira,
o'1) ani:rnd oro s. -· Porto Al egro : Editora Sagra
Lur zotto, 1999.

Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 85-241-0701-4

1. Cultura 2. Lilorotura 1. lndursky, Froda


11. Lc~mdro Ferreiro, Maria Cristlno.

Comlsstío editorial da Coleção Ensaios PPG Lctras/UFRGS:


Freda lndursky, Rita Terezinha Schmidt, Robert Ponge,
Ana Maria Lisboa de Mello, Margarete Schlatter,
Márcia Hoppe Navarro e Rosane Saint-Denis Salomoni

,# É proibida a reprodução total ou mesmo parcial desta obra


sem o consentimento prévio da Editora
CAPÍTULO 1

O chapéu d.e Clé1nentis.


Observações sobre a 1nernóri a
e o esquecünento na enunciação
do discurso político
J ean-Jacques Courline

Milan Kundera abre seu Livre du n:re et de l'oubli 1 co1n un1a


anedota que eu gostaria de relatar. Fevereiro de 1948. O dirigente
comunista Kle1nent Gottwald, da sacada de um palácio barroco de
Praga, discursa para a 1nulridão aglomerada na praça da velha cida-
de. É nessa sacada que começa a história da Boêmia comunista ...
"Gottwald estava cercado por seus camaradas e, a seu lado) be1n
próximo, estava Clémentis. Nevava, estava frio e Gottwald estava con1
a cabeça descoberta. Clémentis, 111uito atencioso, tirou o seu chapéu
de pele e o colocou na cabeça de Gottwald. O departan1ento de propa-
ganda reproduziu centenas de milhares de exemplares da foto grafia da
sacada, de onde Gottwald, con1 um chapéu de pele e rodeado por seus
camaradas, fala ao povo. (...) Todas as crianças conhecian1 essa foto-
grafia de tê-la visto e1n cartazes, nos manuais ou nos 1nuseus.
1
Quatro anos mais tarde, Clémentis foi acusado de traição e
enforcado. O dep artamento de propaga11da fê-lo imediatamente de-
saparecer da história e certamente de todas as fotografias. Desde en-
tão, Gottwald está sozinho na sacada. Ali; onde estava ·cléinentis) há
somente o muro vazio do palácio. De Clémentis, restou apenas o
chapéu de pele na cabeça de Gottwald."
-Eu gostaria, a partir disso, de fazer algumas observações sobre
o estatuto da memória no campo do discurso político. Não nos en-
ganemos: esse processo da anulação 2 de Clémentis; de perda refere n-
cia1 recalque, ap}lgamento da_memória _histórica _que deixa, con10
uma estreita lacuna, a mar:._ca de seu desaparecimento, 1nes1no que se

1
O /irwo do riso e do csq11eci111e11to. (N.T.)
2

"
Em francês , "néancisation", derivada da palavra 11é1111t, que significa nada. Assim
,, • ~ ,, • 't
neant1sac1on sena uma "redução a nada". (N.T.)

15
:: _: :;·
.,. >-~-.
. . - -- ---
coloque aqui ernj_ogo a materialidade oãa-lingiiísricà de um doeu-
1nento fotográfico, é, antes de tudo, na ordem dq dfrçuún que ele se é
.. "-~ -)
- ..'-- produzido. Ordem_do __ discurso das "línggas d~--~~Jado'',._qµe divi-
Q
-O 'r •
, ,:i dem em pedaços a lembrança dos eventos históricos, P!..~~n~hidos na
..j '·§ memória cófetivã--cie·· C-êúõ·s··eriunéiados, dos quais elas org_aaj_~~P.1_§
,. .J ~~ l~~~-~~ê~~i~, enqu~~r;· ~;~~-~grama outros a anulação ou a queda.
; }!' \~ .j: M~mória s_~turada e lacunar, "memória com eclipses"3, me-
'. mória das tHn~~-~s de madeir'!_:~ cujos ecos ~bafados no~ alc,~nçam,
trazidos pelos ventos do Leste, línguas vindas do fno: drçtwa
mowa" na Polônia, literalmente: língua paralisada, como que imo-
bilizada pelo frio; ou ainda, "nowÓmowa", adaptação de "newspeak",
a "novlangue" do Big Brother de G. Orwell. Em outro lugar, é o que
a dissidência na União Soviética denomina "suko~!!:Ji..iaz~k": _a _lín-
gua de pan·o, rude, áspera, desigual; ou aing._?L !fngua_.PJ1Stosª,--gu.~
pesa na boca e a enche 4• Línguas de peso, talhadas na massa (nas
inass-âs?)fun.did~s ~~ ~~ bloco, línguas de mármore, línguas de fer-
ro. E também_, mais per~e.. n᧠no calor do nbrigo de nossas <le-
11
r} mocracias ocidentais: as t~líng_ggs ~ nstáveis e fluidas, dis-
ft, curso de um Mestre que não ousa dizer seu nome.
1
~ De fato, é preciso insistir, não é da língua que está se tratando,
1

mas de discurso, quer dizer, de uma ordem própria, distinta da mate-


rialidade da língua, no sentido que os lingüistas dão a esse termo,
mas que se realiza na língua : n ão na ordem do gramatical, mas .na
ordem d~ n-~~~~~~e9_~_..?.!~~1.?.fl_o~9Ü_e .c0ii~~uI·~-~~JiI!?~-~a.I_a n t~ _em
e,
sujeito de seu 1scurso e ao qual ele se assujeit , em contrapartida.
~ Como essa naturalidade específica do rscufsÓ histórico, ligada
·., ... ;.,_~~ existência de aparelhos ideológicos constitui -uma modalidade de
à;
,t existência específica da memória histórica? Essa questão faz surgir
'-' outras mais concretas:. como um di-s curso político funciona?_O que é
~~ · ,__ enunciar, manter o fio de um discurso, mas também repetir, lembrar;
,~/ ,. e:quecer, para um_ sujei to el!-_1:1-_n~j-~?.~_r tomado nas_ ~-9-~_t_r~~iç_õ~iÃí~~Q-- \
,~, .._; ncas do campo político? '1 ,\ _,._~)
. <·
0
A es.se--cÓnjunto --d~ questões, eu vou dar aqui alguns elemen- Çy 6)\qJP
:º~de resposta, expondo de início esquematicamente um quadro te- W
onco no qual eles possam ser abordados, depois, descrevendo alguns ·
N

·' Como colocava M. Fennetaux, a respeito do "affaire Faurísson"· cf. Un rrou dans
~ocre g~nération. Lediscourspsicr1110/itiq11e, n. 1, octobre 1981. '
_ Essas informações são devidas a P. Sériot .
.) C'.. D~BRAY,_ R Moe/este co11trib11tio11 011x disco111:r et céri111011ies officie!les d11 dixie111e
a11111r·ersrrtre. Pans, Maspéro, 1978.

16 l~L~ .1:-
1 .. ,
=-
-- ?
~ / J)va~oP •
. . línguas de ma deira n acío~al,_~
___ ·- -- - --· - · ·- ~- --- , ·
d anatomia ele uma de n os~ai_lacão
~raços _a . - - - -- - p articular a m emon_a 9~e
discurso comun1s1 ~, enqu~_n_!o ~~~ _re . ~ -· .. - --- · · - ··•
--
-·· . 6
se efeuva nela • _ d _ · ta é O de um lin-
U ma p rime ira observaçao : esse _po~to-_ e vis . . lica· ele
1
güista e julgando- o como tal, com as ll mnaçoes que iss o mUp . ' .
' . d. . 1· daquelas de q ue a ru vers1- b
não vi sa uma sín tese inter 1sc1p 1nar - · .
dade é apreciador a, d e ter de preencher a fragmenta çã? _de s_e u .~~ ~r
- que no modo ecumênico-com':!~itfiriot_Y-~rj_a_ ~~f O!lC!l!a~ ~h ~~lStl-
fi enc1as no
' - - - ·-·•·- -----·--
ca, psicanálise e ~ i-~t_6_ria_. E sse traba lh o b~sca suas _r~ er
domínio da análise do discu rso, desenvo lvi mento ad1c1ona l recente
0
da lingüística , qu e aparec e no fi nal dos anos 60 e cuj o i~ te~~~se pe!
discu rso é, no enta n to, o lu gar de um paradoxo : ser linguista ~n_ao
predispõe p articul armente a fa lar de discurso, bem ao contran_?.
\ Sabe-se por que : 8 <l 1cOtom1aâ o s1 ste1na da hngua e do suJelto fala n -
) te, colocaâãp eío co-rte saUSsüfi ano e prolõnga-d âpelorr :rmrt~ .
· -Chomsky, d eu fo nna à configu raçã o do saber da lingüís ti ca con te~-
porânea, sepa rando a ordem da lí n gu a da ordem d o di scu-rsô ; -edis- r-- .

cu rs o aí n ão fi gu r<1 1na is sen ão como resíduo, ob jeto reb aixado~ cuj ~1 -- ~:


1

p erda fo i o p reço a pagar parasc constru1 r a co n sistência das t eorias {~


(

das lin güís ti c~s. . . · ~:_)


Essa perda fo i difícil de adm it ir, e, q u anto ma is ele é d eixado .. ·---: . ·
7
d e lad o, m ai s está lá, trab alh ando so b a língu ::1 : o dese nvolvime nto - ·
no interior da lin güística das prob lem álicas da enunciação , concebi- ~!;
da co1no a " apropri ação su b jetiva da lín gu a por um ato indiv idu al de ~ ~
üririzãção" (Benveni stc\ éõnsiste nu rr{ sin toma disso. As -concepçõ es~
h ngü ísticas de enunc iação, h erdei ras da tradição de u rna "lingüísti f'"-~
···,:·., ca da-fal a", que ten ta caracteriza r as 1nodalidad es da pres ença do . . . ._
suj eito fa lante no di scurso a parti r da ide:Rtificaç ão de certas marcas
lingü ísti cas (pressupos t os, dêiticos, ma rcas de pessoa, perfonnat ivos,
"em brayeurs" ... ) assegu rãm, d e fato, por intermédi o de uin sujeito da
enunciação pensado como _ponto de origem, causa p_rimeira e _op_e~~-
dor psicológico de seu discurso; a passagem linear e contínua da or-
dem da língua para a do discurso. Elas impedem, assim, que se pen-

'' Dessa "memó ria di sc urs iva'', eu estu d ei em outro lugar um aspecco especifico , o
do di sc urso comu nist a diri gid o aos cristãos - a pol ítica da " mão escend ida" - de
1936 n 19 76. Os e leme n ros teó ricos e descri ri vos aprese ntad os aqui estão ma is
longa mente d ese nvolvid os 11; esses exe m p los introduzido s mais abaixo são trechos
do co rpus desse tr:ib~lho; cf. COURTlN E, J.-J. Analyse du di scours poli cíque.
J.!!!!J:ogeJ·, Paris, n. 62J_~ l 98 1_. - - ·- · - - ·
7
Cf. , sobre esse ponw: GADET, F.; PÊCHEUX , M. La /angue ;111,""!.''!-~bk. Paris,
M:1spéro, 1981.

17
se a esp ecif icid ade do d · · - · ·
. 1scurs1v
baix ando -os a uma prob l~ , · o· e a questao do assu1 ,
e1tarnent o re-
. . ~ . . m auca ins tru men tal da ling ua em uso . '
. ,_ , ., . Um desv 1? foi, entã o,_nece ssár io, que é o próp rio luga r do
pa-
·:,c.. . ·~ e r~do xo qu,e eu t1n,h~ anun ciad o: para trabalha.LCDm a_ca
tego
-,: :-:.Y} discursQ,__e._n.e_c_es.sar:to ser ling üista -e qeixar__de sê-l o-ao ~sm oriatem- de
po. _Esse desv i o t omo u, assim, a form a, para cen as li n .. istas
" passagem" pe 1 de u~
as teses alth usse rian as sobr e a ideol ogi , que .) fora m
d ~senvolv idas ~ pr_olongadas em anál ise do aisc urso
P ech e~ . Aos ling üista s que cons ider am o suje ito fa lant
por (B.
e com o su-
j eitll -Õrige m, plen o e sem mem ória , as teses sobr e a existênc
ia h istó-
rica e m ater ial das ideo l · s lemb rava m a eles que " há umip
reii- um
"· _disc urso ", ou seja, qu o enunciáve l é exte rior ao suj eito ~nu
ncj a~ 1
\'-··/ '7'-v Out ro pon to de pass agem obd gatoi-iõ_:.ãan âií se;-·e mpreend 1
ida
._ ·-~~~-\. por M. _Fouc~ult, em A arqueolog~a do sabe~, da ~at~
~,or~a do enunciaqo
_ .., · _0. r. ue n ao esta send o usad o aqui no ·sent ido hngu1st1co do
·-.,~>,, dist inta da cate gori a da enu nciação: se a enun ciação é neut raterm pJ;
1

izad a,
seu
seu tempo e luga r, o suje1t-o·-que a realiza e as op erações que esse
suje ito u tiliz3:, "o gu~:se dest aca é uma form a gue é inde finid
ame nte
- -): repe tível e pod e dar luga r a enun ciações m:uito disp
ersa s". A exis -
tênc ia do enun ciad o está, assim , ligad a à noção de uma rep
etiçã o " se
dest ina, de acor do com uma dime nsão de algu ma form a
vert ical, às
cond içõe s de exis tênc ia dos dife rent es conj unto s sign ifica ntes 9
" •
Dess as obse rvaç ões, pode-se conc luir que : pens ar o assu
j ei-
tam ento do suje ito falan te na orq.e m do disc urso é n eces
saria mente
diss ocia r e artic ular dois níve is cl~~-desc rição : 1) o nível da
enunciação
por um suje ito enun ciad or em uma situa ção de enun ciaç
ão dada (o
"eu" , o "aqu i" e o "ago ra" dos disc urso s); 2) o nível do enun
ciado, no
qual se verá, num es a o ver ic~l estra tific ado e desn ivel
ado dos
disc urso s, que eu cham aria nterdiscurso 1 série s de form ula
1 ões mar -
.can elo ~-- uma enun ciac ões a 1st1ntas e disp ersa s, artic
ulan do-s e
entr e elas em form as ling üísti cas dete rmin a as c1 an o-se
1--; --- -~ ;:- --- ;-- ~- --- --- --.-- ~~- ---- , repe tin-
\ do-se, 2ara frase ando -se, opon do-s e entr e s1, tran sfor man.:--- "--~ ,
do-s e ... ). E
\ ness e espaço inte rdis curs ivo, que se pod eria deno min ar,
seg_uindo
l M. Fou caul t, domínio de memória, que cons titui a exte rior
idad e do
\enu nciá vel para o suje ito enun ciad or na Íorm ação dos
enun ciad os
\ '.prec onst ruíd os", de que sua enun ciaç ão apro pria -se.
Mas conv ém tão logo acre scen tar que, ness e inte rdis curs
o, o
suje ito não tem nen hum luga r que lhe seja assin aláv el, que
ressoa no
---
i;Cf. notad amen te: Lesr'éritésdelapalice. Paris, ivfospéro, 1975
.
•> Cf. FOU CAU LT, M. L'orchéologiedu
sm•oi1 ·. Paris, Galli mard , 1969. p. 134.

18
do111ínio de n1e1nória so mente uma voz sem nome.
--- - -· f't~1 !J~·opus n1Úis acirna cons id_~ra r a ordó? -~º _d iscurso 1:º
ca1npo político, como urna das mod~d1d.ad cs de ex1stencia <la 1nemo-
ri a históri ca. Co1110 J) 0J c1nns ver o cli sc11rso co n1unisL~1) tomado aqui
con10 cxc111p lo, ~ lu z de al eun s ele m en tos i- eóri cos que ,1 cab:J m d e ser
fornn1bdos? 1
Isso c 6nduz inicialmente a interrogar as n1oualidadcs el e
constituiç:io, no intcrdiscurso) de séries d e fo nnula çócs : con10 um
espaço de repetição inscreve-se nu1n con junto desnivelado de; di s-
curso?
A resposta a essas questões i1nplica que se leve e1n conta todas
as formas de discurso relatado, através das quais _1na terializa n1-se as
renlissões de discurso a discurs o e, notadamente) a relação e a cicar_ão
ao tex to primeiro: no discurso comunista dirigido aos cri::; tãos,
pode-se encontra r, entre as formul ações-origen1 do domínio d e 1ne-
mória C'a r eligião é o ópio do povo"); ("a críti_ca d a religião é D con-
dição preliminar de toda a crítica ... "), que podem fornecer os clássi-
cos do marxism o, e os dis cursos que trazem essas formul ações, no
imediatismo de uma retomada, sob a anulação da distânci a interdis-
cursiva que constituem os efeitos imaginários próp rio_s__~()- ~is~~!.~º
direto, uma camada espessa de citações e de retornos ao interior de
estratos discursivos que se interpõem entre a irregularidade d o t ex -
to primeiro e o texto que o cita. As formulações-orige1n derivam as-
sim em um traj eto na espessura estratificada dos discursos., t rajeto
em cu jo curso elas se transformam (assin1: "as lutas de classe são o
motor da hi stória", torna-se, na fala dirigida aos cris tãos: "as lutas
de classe são o motor do progresso"); truncam-se, esconden1-se para
reaparecer mais a frente, atenuam-se .ou desaparece1n, misturando
inextricavelmente memória e esquecin1ento (assim, a religião como
"ópio do povo" cede lugar à religião con10 "suspiro da criatura
oprimida").
A constituição de um espaço do repetível ton1 a a forn1c1 de
uma retomada palavra por p alavra, de discurso en1 discurso, de nu-
merosas formulações ("existe uma oposição entre a filosofia n1ateri-
ali sta e o princípio de toda religião"; "s ão os próprios crisúos que
tém que decidir co m.o eles querem ser cristãos,, ... ). Essas re toniadas
apagam, com o desaparecim ento das m~rcas sintáticns do discurso
relatado [X diz qu e P: X diz: (citação)]; os vcstíp;ios d e codo des ni-
velamento interdi scursivo. O qu e 1w ord cnl litc.r~hia constituiria
plágio, trai, antes, aqui, a p rá t:i ca escolar ela recita~:io e da sub1nissão
1

j
l<J
1
da or<len1 doutrinal do disc urso político ao cfa letra e ao da escola. A
retornada de u'n1a formub çfio, nessa forma d.e repetição, si1nplcs re-
citação, vale somcn te pelo cven to d e ~eu rctorn o.
O interesse pelas fonnas Iingüísticas nas qu::ijs a repetição
1 '
inscreve-se na orde1n do discurso, leva a estudar, cnfi1n, a formação
1

1
do prcconsrrufdo no d ~ nivdamcnto interdiscursi~o enquanto ela
1 1
fornece u1na base de constituição das séries de formulações; no
1
exemplo seguinte, uma fonnulação anterior, já dita, vem se encaixar
como preconstruído, sob u1na fonna no1ninalizada (marcada aqui
entre colchetes) numa formulação posterior, produzindo um efeito
de cadeia na série: «os comunistas são materialistas em filosofia" -
(( [O materialismo dos comunistas] está longe da fé religiosa dos ca-
tólicos." - "Ora, nós podemos perfeitamente trabalhar todos juntos
apesar de [nossas divergências filosóficas]".
Citação, recitação, fonnação do preconstruído: é assim que os
objetos do discurso, dos quais a enunciação se apodera para colocá-
los sob a responsabilidade do sujeito enunciador, adquirem sua es-
_ _ . , ,) tabilidade referencial no domínio de memória como espaço de re-
corrência das formulações. ...
Eu coloquei acima que não havia suj eito no interdiscurso, a ·\ -
não ser para designar um lugar propriamente inominável; o que se

-
vê funcionar, em revanche, são posições de sujeito que regulam o pró-
prio ato de enunciação: o interdiscurso, sabe-se, fornece, sob a forma
de citação, recitação ou preconstruído, os objetos do discurso em
• que a enunciação se sustenta ao mesmo tempo que organiza a identifi- 1)
cação enunciativa (através do regramento das marcas pessoais, dos /
tempos, dos aspectos, das modalidades ... ) constitutiva da produção 1-
da formulação por um sujeito enunciador. E que acaba, assim, por
desaparecer aos olhos de quem enuncia, garantindo, na aparição de ·
CC " (C • ,, (C ,, fi ,, . d . . /, J \
um eu ., aqui e agora , a e 1_cac1a o assuJe1tari:ento. ~\Â.,"\·n. .~3,.,_.~l' , .-~
Um exemplo: a expressao do tempo no d1scurs9/ comuh1sta.
Identificam-se nele, com efeito, .llQ fio do _discurso~- formulações
constitutivas de uma relação imaginária do momento da enunciação
com o domínio de memória: isso pode ser ercebido, or exemplo,
no que eu chamarei~ rituais -·SCursi~os da continuid~de, ue pro-
duzem um corte temp ... ·1gan o o presente da enunciação ao pas-
sado - e tâm6ém ao futuro - discursivo, em uma anulação ÍJP:ªgi_~-ª:.,
n~ do processo hTsror1co, com sua êl~~(!Çao esÜas
contradiç_Q..~s__p_ró-=
pnas, constitutivas do próprio interdiscurso: essas formulações ins-
crevem, assim, no fio do discurso de um sujeito, upntinuiçl_ªd~Ji:...
near de uma sucessão temporal passado-presente~üiuro (uma s1n-

20
,. d s cessão das ma· rca-s tem por ais
atra ves ªmou ver bo a uuh zaç ao e a d ver
· d ,. -
- o
atização da dur aça ' · ")
tag •das pelas reto ma as de um mes . - (((ainda" ' "um a vez m ais . ,
m d
traz1 . . d. am a rep euç ao fer ind o a tem pos da enu nci -
bios de tem po que ~n l Ç__ .- - -- ~ .
ou a equiparaçã o dé ~~ _:r s de te_ :?~ le
ação distintos: . _. .·él ,.. lan çad a pelos com uni stas seg uiu
"Mas, com sem pre, a 1Imp eia,. ·mp or- se- á ma is e m ais" .
. h El a se 1.mp ôs 1
os-se e "No Par tid o com uni sta ,
_ ,, sso
seu cam1n o. ,. ·
" "E am anh ã? Am anh ã
i.
t "Um a vez mais, nós nnh am o~ razao; ...d ,. o nós o fi-
amanhã como ontem, e:tem a inte"nça o"O e... fut uro ser a com
como hoje, nós nos esJ.orçaremos .. .
1:1
---.........,·;r ~· . ,, . l as é ~
... _,
zermos jun tos hoje.~. " . o da h1s ton a rea_, m , '\
O discurso com uni sta é um pro,dut · o s "ef,eitos de _ me -
...
a
· ton·a fi1ct1,. cia,
h1s )
ão de um
J
. esmo tempo, pro duç ,
' --f zid o con stro em a ficç ao
r i .
•. -· mória" que ele suscita no exemplo intr odu
po que não pas sa, con -
de um a his tóri a imóvel his tóri a de um tem
for ma a dis cur siv ida de. ,;
gelament e do tempo histórico no qua l se __ -/'
i, o poi ític o.
Hi.s_tória imóvel, eterna: -o.religioso capta, aqu sum ari a-
-A s formas de repetição que eu acabo de des crenvere eu 10
cha -
seu con jun to ao q.ue-J . . . ara ndi
me nte env iam em
~~........ _.1.. ...

nsão ~ lem ent os que nós


t,,'
-~ . . . . . '1r.:. ma mo s de um a~ etição de elementos em exte
frag me nto de dis cur so
~
ide ntif ica mos qua ndo con siâê-râmos um
't)
tom and o lug ar" , ou seja,
'----2 corno det erm inado por um enu nci ado e aí
"" ia, satu rada. O tra bal ho
-------:-'-- um a rep etiç ão na ord em de um a memória che
dis cur so pol ític o, con vi-
da categoria de assujeitam ent o na ord em do
~ rep etiç ão: um a repetição
da-nos a conceb er um a out ra mo dal ida de da
/1~\ ~ vertical, que não é aquela da série de for
mulações que for ma m enu n-
um não -sa bid o, um não -
4

.,;{ ciado, mas o que se rep ete a par tir disso,


enu nci ado : um a rep eti-
,..,, r~c onh eci do, deslocado e des loc and o-s ~ no
te na sér ie de for mu la-
•.,J

ção que é ao me smo tem po aus ent e e pre sen


,.)
-._' j mo do do des con hec ime n-
~1.,! ções: aus ent e por que ela fun cio na aí sob o
na ord em de um a mem ó-
~ to; e pre sen te em seu efeito, um a rep etiç ão
ria lacunar _o u com falhas.
i
V
Um exe mp lo, e~t re vár ios out ros , usa do aqu
ce ser o equ iva len te dis cur siv o da ane dot a
i no que me par e-
con tad a por M. Ku nde ra.
tãos des de a ori gem
O discurso com uni sta end ere çad o aos cris
lações: "N ós não ped imo s
de sua formulação e sob diversas reformu
us / nós me sm os não re-
aos católicos par a par ar de acr edi tar em De
tas" .
nun cia mo s às nossas concepções ma teri alis

111
, -~--].; MARAND
C?Y~!I~Ers1r: IN, J.-M. Quel objet pour l'analyse du discours
.

Mo1erwlttesdisc11 es, Pres ses Universicaires de Lille, 1981.

21
Quan do aparece., na série de formulacões un1 deslo came nto
ligad o à prod ução d_e un1a form ulaçã o, na oca;i ão' do XIX Congresso
do PCF ( em fever eiro de 1970)., que viu ª· exclusão de R. Gara
udy
"As-
c~m o uma das c~ns eqüê ncias da invas ão da Tche coslo váqu ia:
cris-
sim, em conf ormi dade com noss a polít ica da mão esten dida aos
ser
tãos, não pretendemos escolher, no lugar dos cristãos, como eles devem
cristãos (... ) Ao cont rário de R. Gara udy, nós não esco lhem os uma
part e dos crist ãos em detri ment o. dos outro s".
A parti r dessa formulação, instaura-se no processo discursivo
. uma nova forma de repetição: "São os próprios cristãos que têm que
decidir
~s, de
~ -::; como eles devem ser cristãos", como vestígio, num a série de formulaçõ
/f / u~-~·-9.~"~~.~.nti_~uidade gu:.5_~~~ f~ as_~f~~~~~~~~- ,)· e di''la
1 cu-
na": repetição-~e um caco, de um fragmento, de "migalhas âeün ipas sa-

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·
:::~;~~·~f~-~!a~ª:;;·ãusentê·cno-ae-
A análi se do proc esso de assuj eitam en.t o cond uz, assim , a
cia-
./·/ / cons idera r dois mod os ligad os de deter mina ção do ato de enun
dis-
,:; ção pela exter iorid ade do enun ciáve l, ou inter discu rso: o inter
cia
>:-:···'j curs o como pxe.enchiJJI.ef1:tQ.,__Rr_odutor de um efeito de cons istên 1

ênci a
came nto, cuja inter venç ão ocas iona um efeit o de inco nsist
(rup tura, desc ontin uida de, divis ão) na cade ia do refor_!llulável.
Mem ória e esqu ecim ento são, assim , indis sociá veis na enun -
ciaçã o do polít ico. Até no retor no inve rso das coisa s: é Gott
wald ,
daqu i para frent e, que a histó ria fará usar o chap éu.

Traduzido por Marne Rodrigues de Rodrigues.

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