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AUSPÍCIOS E RITUAIS DE ADIVINHAÇÃO NA ROMA ANTIGA

Profa. Dra. Regina Maria da Cunha Bustamante


Laboratório de História Antiga (LHIA)
Programa de Pós-graduação em História Comparada (PPGHC)
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

ABSTRACT: The text intends to introduce a specific public divination practice: the auspice, during the last two centuries of the
Roman Republic and the beginning of the Empires (second and first century B.C.) aiming to understand its role in roman society at
this time.

Introdução
Você já leu seu horóscopo hoje no jornal? Apesar de vivermos num mundo dominado pela
racionalidade e pelo cientificismo, o interesse humano em pretender saber o que lhe pode reservar o
futuro ainda se mantém com bastante constância como se observa em qualquer jornal ou revista, seja
popular ou não, em programas de rádio e em revistas televisivas. Mesmo expressando incredulidade,
desconfiança e/ou concordando com as críticas às práticas divinatórias, consideradas como um saber
falso e repudiado pela razão, as pessoas continuam a buscá-las. É a coluna do horóscopo, são as cartas,
é o I Ching, é o Tarô, são as pedras das Runas; é o jogo dos búzios, é a interpretação dos sonhos, são as
linhas da palma da mão, é a bola de cristal, são os números, é a borra de café, enfim proliferam
atualmente uma infinidade de práticas. A adivinhação seria então parte da natureza humana? Para
Raymond Bloch (1985: 7), sim: “Perdido na imensidão de um mundo que não é de sua medida, o homem
busca multiplicar os pontos de apoio nos quais possa se agarrar.” Portanto, não devemos olhar com
estranheza nem com preconceito ao nos debruçarmos sobre este fenômeno na Antigüidade.
Nas sociedades antigas, a adivinhação era um meio privilegiado de contato entre o homem e a
divindade e, especificamente, na sociedade romana, inseria-se no esforço em manter a pax deourum, ou
seja, a paz com os deuses, que garantia o bem-estar da comunidade, sem a qual a cidade não podia
seguir o seu destino. Era, portanto, parte integrante do mundo da religião cívica, da qual inclusive se
constituía num importante ramo. Desenvolveu-se como um sistema preciso e complexo que governava a
vida da comunidade. Enquanto na Grécia Antiga a adivinhação dedutiva e intuitiva inspirada ao homem
diretamente por uma divindade, mediante sonhos ou num estado de êxtase, era mais comum, tal como o
Oráculo de Delfos; em Roma, predominou a adivinhação indutiva ou baseada em sinais, considerados,
mais do que anúncios do futuro, manifestações – geralmente encolerizadas – da vontade das divindades,
que deviam ser apaziguadas com rituais expiatórios para restaurar a pax deorum. Atribuía-se à vontade
divina a capacidade de poder modificar a ordem natural para manifestar a sua presença e expressar o que
queriam. Os romanos eram cautelosos em relação aos oráculos e profecias que escapavam às altas
autoridades do Estado, a tal ponto que, dentro de Roma, não havia templos oraculares, apesar de
existirem no resto da Itália (por exemplo, o templo da Fortuna Primigenia em Preneste). Buscavam
conservar sua liberdade de ação graças a uma sutil disposição de ânimo em relação aos sinais divinos. A
adivinhação em Roma tornou-se uma técnica humana, consciente e precisa, que revelava o acordo dos
deuses com o consultante através de uma consulta empírica e direta com as divindades. Esta consulta
divina assemelhava-se à consulta aos magistrados: uma questão precisa era respondida afirmativa ou
negativamente sendo organizada sob a direção autoritária dos magistrados. Neste aspecto, revela-se o
espírito prático, organizador e zeloso do romano em garantir a vida do cidadão e da cidade e em
conservar o favor divino sem comprometer o desenvolvimento normal e necessário de toda atividade.
Estabeleceram-se assim rituais respeitando rigorosamente a tradição, condizente como uma das
características do paganismo romano: a “ortopráxis”, ou seja, a execução correta dos ritos prescritos
(SCHEID, 1998: 20).
Dentre as diversas práticas divinatórias romanas, havia:
 Omnia: Presságios que se escutavam ao acaso, sendo considerados uma advertência enviada pelos
deuses para guiar os homens. Sua interpretação interessava ao indivíduo e à sua vida diária. Cabia à
inteligência e à sensibilidade do indivíduo inferi-los. O indivíduo podia dar voz e vida ao que se
anunciava se declarava que os aceitava: omen accipere. Mas, também poderia recusá-lo caso fosse
funesto – omen excecrari, abominari – ou ainda transformar o seu sentido por meio de palavras
adequadas que modificassem o seu valor. Assim, conservava-se a liberdade de ação do homem
concomitantemente à preocupação em respeitar os deuses.
 Auspicia: Presságios que se relacionavam à vista. Sua interpretação interessava ao indivíduo e,
principalmente, ao Estado, pois o respeito ao direito augural era condição primordial para a


Publicado em: BUSTAMANTE, R. M. da C. Auspícios e rituais de adivinhação na Roma Antiga. Cadernos de Centro
de Estudos Interdisciplinares da Antiguidade (CEIA). Niterói, v. 1, p. 149-163, 2008.
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legitimidade de toda a iniciativa política, tanto na paz como na guerra. A etimologia da palavra
auspício advém da junção dos termos latinos avi (aves) e spicium (observação). Assim, em seu sentido
restrito, constituiu-se na observação de aves pelos áugures, que inferiam os sinais dados pelas aves
(categoria da ave, seu vôo, seu comportamento e seu canto) e serviam como conselheiros dos
magistrados nos problemas auspiciais. Entretanto, em seu sentido, mais amplo auspício aplicava-se
também a uma manifestação divina através de qualquer fenômeno visual significativo (por exemplo,
presságios ameaçadores, denominados de auspicia ex diris) ou acontecimentos que extrapolassem a
norma, tais como: problemas no desenrolar de uma cerimônia, fenômenos naturais surpreendentes e
catástrofes naturais. A partir de algum grau de gravidade e raridade, todo sinal se transforma em
prodígio. Sendo um acontecimento contra a natureza, ou seja, uma anomalia das leis da natureza,
expressava a ruptura da paz que a cidade mantém com deuses. Era pois uma advertência que devia
ser interpretada para apaziguar a cólera divina. Para isso, as autoridades superiores do Estado
contavam com um arsenal de medidas propiciatórias e expiatórias visando a saúde do Estado. Os
prodígios podiam ser classificados de ostentum, portentum, monstrum ou miraculum. Os dois primeiros
referiam-se à sua função de sinal, os dois últimos relacionavam-se a qualquer particularidade de um
ser vivo, sendo que o terceiro implicava numa idéia de advertência e o quarto, de admiração. Eram
classificados de acordo com sua natureza em: inanimados (auspicia ex coelo, ou seja, da esfera
celeste: astros, eclipses solar e lunar, parahélio e paraselene, meteoritos, cometas, trovão, relâmpago,
chuva de cinza, pedra e sangue; esfera terrestre: rios de sangue, estátuas com suor e lágrimas,
terremotos, tremores) e animados (auspicia ex quadrupedibus, referentes ao comportamento estranho
de animais quadrúpedes; auspicia ex avibus concernentes ao vôo das aves; auspicia ex tripudiis ou
pullaria relativos ao comportamento das galinhas sagradas; aves ou roedores em lugares
consagrados; deformações em humanos e animais).

Em vista das limitações de espaço para este texto e da importância dos auspícios para a antiga
sociedade romana, optou-se por privilegiar a prática divinatória do auspicium em seu sentido literal, ou
seja, como ornitomancia: adivinhação baseada na observação nos pássaros, atentando para o seu
aspecto ritual e sua interpretação e inserindo-a na sociedade romana dos séculos II e I a.C. Este período é
bem documentado em termos das práticas divinatórias devido, sobretudo, ao tratado ciceroniano em
forma de diálogo intitulado Sobre a adivinhação, no qual o autor apresenta uma seleção de opiniões
eruditas sobre este tipo de prática.

1. Ritual e tipos de auspícios


A prática de ornitomancia era típica dos povos de origem indo-européia . Na Península Itálica, esta
tradição estava presente não apenas entre os romanos, mas também nos sabinos e úmbrios. O direito
augural romano tinha como características: o formalismo; o silêncio pois, ao menor ruído durante a
cerimônia, o ato era anulado; a minuciosidade no desenrolar dos ritos; o estabelecimento do campo de
observação; o pragmatismo e a simplicidade das questões colocadas aos deuses para verificar se
estavam de acordo ou não com a atividade projetada; a liberdade para o oficiante pois a observação do
canto e do vôo de diversas categorias de aves não oferecia muitas características de segurança; a
existência de um colégio sacerdotal encarregado de conservar, aplicar e adaptar a todos os casos, que se
pudessem apresentar, às regras relativas aos auspícios.
A “ciência” augural é conhecida graças aos historiadores e gramáticos romanos que concentraram
sua atenção nos rituais e no material conservado nos arquivos dos colégios dos áugures. Os Libri
Augurales agrupam regras, regulamentos, formulários, decisões errôneas e comentários imputados aos
sacerdotes mais sábios. Com isso, era possível organizar, em seus mínimos detalhes, as cerimônias dos
áugures e regular todas as dificuldades que pudessem se apresentar durante a sua execução, visando o
bem-estar de Roma. Assim, consolidou-se o rito augural que consistia em:
1) Estabelecimento do auguraculum: O magistrado estabelecia uma tenda num lugar específico, o
auguraculum, antecipadamente definido e “inaugurado” pelos áugures. Em Roma, existiam três: sobre a
cidadela (o arx), sobre o Quirinal e sobre o Palatino. Como o espaço romano era dividido de maneira
precisa, um magistrado devia renovar os auspícios, isto é, consultar o céu sobre a legitimidade de sua
decisão e de seu poder cada vez que ultrapassasse um de seus limites, freqüentemente um regato ou um
rio. Em Roma, o amnis Petronia, um regato que separava o Campo de Marte da Vrbs, isto é, o Senado e o
Fórum da sede da Assembléia Centuriata, formava um de seus limites. O magistrado também devia tomar
os auspícios antes de entrar em função ou abandonar Roma para uma missão no exterior. Em campanha,
o magistrado instalava o auguraculum no seu campo para os auspícios cotidianos, mas os auspícios de
investidura deviam em princípio ser solicitados somente em Roma.
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2) Repouso do auspicante: O magistrado instala-se na tenda até o momento da tomada dos auspícios
justamente antes da aurora.
3) Tomada de auspícios: Faziam-se gestos e proferiam-se palavras, que se reforçavam reciprocamente e
punham o áugure em relação direta com os deuses. Na República e no Império, a consulta consistia numa
troca de perguntas e respostas entre o auspicante e um assistente, não um áugure, mas um bedel do
magistrado – pullaris. Desde o século III a.C., os magistrados romanos preferiam entretanto a observação
de galinhas (auspicia ex tripudiis) cujo apetite e o comportamento em geral eram observados quando da
tomada dos auspícios (CÍCERO. Sobre adivinhação II, 71-72). Todo magistrado romano em trânsito tinha
gaiolas de galinhas na sua bagagem, guardadas por um pulário. Teoricamente, o fato de que as galinhas
comiam, comiam muito, não comiam ou pouco, dava uma resposta favorável, muito favorável ou negativa.
A resposta era positiva de acordo com a vontade do magistrado, era, portanto, mais um ritual de anúncio
de auspícios positivos que um dispositivo de adivinhação, um rito para anunciar sua firme convicção que
sua decisão beneficiava de acordo com os deuses. É sobre principalmente o sucesso ou fracasso que se
definiam a habilidade divinatória de um magistrado ou de um indivíduo e a benevolência divina.

Dependendo de sua forma de manifestação, os auspícios podiam ser: os impetrativos, quando


eram solicitados sinais aos deuses; e os oblativos quando os sinais não eram solicitados e surgiam por si
próprios, isto é, por vontade divina. Os auspícios impetrativos não eram prognósticos do futuro nem
revelavam as causas dos acontecimentos passados. Relacionavam-se exclusivamente a uma ação
específica imediata, mais exatamente sobre um ato público a seguir, que devia ser aprovado pela
divindade. Quando referentes à vida pública, os auspícios eram nomeados de auspicia populi romani.
Eram tomados para as investiduras de magistrados e antes de todas as decisões importantes como
convocação dos comícios, votação de leis, batalhas, etc. Duravam apenas um dia e aplicavam-se apenas
para a decisão consultada; se o magistrado ultrapassasse o pomerium ou um outro limite, o aval dos
auspícios era caduco, caso ele não possuísse o privilégio dos auspicia maiores, concedidos às
magistraturas superiores (consulado, pretura, censura e ditadura). Cabia aos magistrados o aceite e o
estabelecimento do significado de todo sinal constatado ou anunciado.
Pelos ritos divinatórios, o magistrado consultava o deus soberano – Júpiter – comprometendo-o
através do seu aceite com o sucesso do empreendimento. Todos os ritos religiosos públicos colocavam
em cena, implicitamente, o serviço benevolente e disciplinado que o povo romano rendia às divindades.
Desta forma, anunciava-se que Roma era gerida em comum pelos magistrados e deuses. Mas, para
participar ativamente nas decisões públicas e para intervir nos destinos do povo romano, uma divindade
devia inicialmente ser apreendida formalmente pelos magistrados. Iguais aos seus “colegas” mortais – os
senadores –, os deuses deviam ser consultados quando os costumes o prescreviam. Deviam participar na
tomada de decisão pública, mas não tinham direito à palavra pelo cargo. O primeiro que falava era o
magistrado e os deuses respondiam. Tal como o Senado, os sacerdotes e a Assembléia Popular, os
deuses deviam esperar que o cônsul lhes desse a palavra. E mesmo então, não podiam desenvolver
livremente sua opinião: se contentavam geralmente em dar uma resposta afirmativa ou negativa.
Tomemos um exemplo. Cada vez que uma lei era votada, que uma eleição se desenrolava ou que uma
decisão pública era tomada, Júpiter devia ser consultado através dos auspícios. O rito anunciava muito
claramente o lugar de Júpiter, pois este último se exprimia antes dos outros cidadãos e autorizava ou não
o magistrado a continuar sua ação: a vontade de Júpiter era então superior a do povo romano. Então, o
deus soberano impunha suas opiniões e sua vontade aos cônsules? Não, pois, na consulta auspicial, não
era o deus que se exprimia: era o magistrado consultante que fornecia, com alguns assistentes, as
questões e as respostas. Ao ponto de Cícero e Dionísio de Halicarnasso concluírem que o sinal pedido ao
deus não tinha em si próprio outro valor que aquele que o magistrado ali colocava. E mesmo se Júpiter,
encolerizado por alguma indelicadeza de seus concidadãos, manifestasse sua irritação por um signo não
pedido e bem real, dependia ainda do magistrado em função aceitá-lo ou não. No fundo, pode-se
considerar que a tomada dos auspícios e a aceitação ou recusa de um signo fortuito constituíam um modo
dramático de anunciar que uma decisão tomada em nome do povo romano se beneficiava da
concordância dos deuses e não violava suas prerrogativas. Ao mesmo tempo, estes ritos, que não podiam
de forma nenhuma ser omissos ou tomados levianamente, moderavam o poder de um magistrado e o
forçavam a ter em conta outros interlocutores além de Júpiter: seus colegas, os áugures. Assim, apesar
das aparências, os deuses controlavam de qualquer modo os jogos do poder, mas discretamente, uma
vez que eram representados por outros humanos.
Um augúrio oblativo, ou seja, não solicitado, poderia ser observado por magistrados, equipe de
magistrados e qualquer cidadão. Os incidentes surpreendentes de toda natureza anunciavam
acontecimentos inquietantes. Todos estes signos possuíam um significado favorável ou desfavorável para
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a cidade ou para o indivíduo. A elite esclarecida recomendava não atribuir tudo à vontade divina e evitar
viver na angústia, ou seja, ser um homem supersticioso que pensa que os deuses são maus, ciumentos e
tirânicos e, por isso, se angustia. Este “receio mau regrado” dos imortais o leva a todos os excessos,
principalmente nos comportamentos servis destinados a atrair a benevolência divina. Ao contrário, a boa
atitude religiosa consiste em pensar que os deuses são bons e respeitam as regras do código social da
cidade: contanto que eles não sejam ofendidos gravemente, as instituições cívicas funcionam, os deuses
não são levados pela vingança nem pela opressão aos fracos humanos. O homem piedoso devia
conhecer o limite entre a calma determinação, fundamentada na confiança da benevolência divina, e a
obstinada recusa de reconhecer os “verdadeiros” sinais. A aceitação ou não de um augúrio oblativo
dependia do magistrado, mas um prodígio geralmente era aceito rapidamente pois ultrapassava os limites
anunciando um acontecimento importante, favorável ou desfavorável. Sua qualidade extraordinária devia
ser reconhecida pelo magistrado. Geralmente, o prodígio consistia num desastre punindo o povo romano:
catástrofe natural, epidemia, derrota como manifestações da cólera divina. No prodígio, exprimia-se a
“verdadeira” natureza divina, diretamente, ao preço de um efeito devastador, para significar que os
interesses dos deuses tinham sido lesados pelos romanos. Era imprescindível purificar a terra literalmente
contaminada por este fenômeno inexplicável e perigoso. O impuro era considerado como um dos pólos
opostos do sagrado e imprimia uma mancha ameaçadora para o mundo terreno, cabendo ao homem
todos os esforços para limpar indivíduos e sociedade, purificando-os por uma catarse ritual e adequada.

2. Interpretação dos auspícios


O colégio dos áugures era composto de três, seis, quinze e depois dezesseis sacerdotes
encarregados de interpretar a vontade dos deuses quando da tomada dos auspícios pelos magistrado. Os
áugures públicos do povo romano eram bem conceituados e constituía-se em título de prestígio, tanto que
Sula, Cícero e Augusto sentiam-se honrados por ostentar este título. Inicialmente, este cargos eram
reservados aos patrícios e depois foram franqueados aos plebeus; eles não eram hereditários nem obtidos
por eleição ou desígnio divino. Os áugures possuíam como insígnias distintivas: a capis (capuz), o
lavatório (jarro e a bacia para lavar mãos e rosto) e o lituus, bastão curvo com o qual se praticava a
captação dos auspícios.
O primeiro áugure romano foi o próprio fundador da cidade: Rômulo. Sendo Rômulo e Remo
gêmeos, a idade não poderia ser um critério de primazia e, em vista da incapacidade de determinar o
lugar exato para a fundação da cidade, os irmãos recorreram aos augúrios para orientá-los e dirimir o
conflito que se formava entre os irmãos pela indecisão na escolha do lugar (TITO LÍVIO. História de Roma
I, 64). Cada um então se instalou no seu templum. O templum era o espaço de observação traçado pelo
lituus, a partir de duas linhas perpendiculares (cardo: sentido norte-sul e decumanus: sentido leste-oeste),
sendo o ritual acompanhado com orações, que evocavam os lugares (effari loca). A concepção do templo
(templum concipere) liberava os lugares terrestres de toda a servidão profana e, no seu interior,
observavam-se os sinais divinos. Rômulo instalou-se no monte Palatino e Remo no Aventino1. De acordo
com os preceitos etruscos sobre adivinhação, Rômulo teria sido favorecido pela divindade na medida em
que teria visto doze abutres2, superando assim o seu irmão, que vira seis abutres. Além disso, prevalecia
quem vira por último e não, o primeiro. Conservava-se religiosamente no Palatino, na Curia Saliorum, o
lituus de Rômulo, como um talismã da Vrbs, fonte e garantia e sua grandeza.
Quando ocorria um prodígio era necessária a expiação com os remedia através da procuratio
prodigiorum, uma técnica para desviar prodígios funestos. Para Raymon Bloch (1985: 122), a expiação
dos prodígios era puramente ritual e conforme um procedimento religioso determinado, condizente com o
espírito preciso e jurídico do povo romano. Geralmente, o prodígio assinalava ou punia uma omissão ou
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Plutarco (Vida de Rômulo 9, 4) denomina o templum de Rômulo de Roma quadrata enquanto que o Aventino, por ter sido
escolhido por Remo, foi nomeado de Remoria e, posteriormente, de Rignario. Dionísio de Halicarnasso é contraditório: enquanto,
em História Antiga de Roma I, 85, não identifica Remoria com o monte Aventino, em História Antiga de Roma I, 86, hesita entre
duas localizações possíveis para a observação de Remo: o local onde queria estabelecer a colônia (Remoria) e o monte Aventino.
Para Mircea Eliade (1999: 40), a escolha de um lugar alto para fundar o espaço sagrado seria adequada na medida em que é o
ponto mais próximo do Céu podendo assim atingi-lo. Entretanto, Cícero (A República II, 4-30) apresenta uma razão bem
pragmática para esta escolha: a defesa física do lugar. Deve-se considerar também que os vales entre as colinas de Roma eram
insalubres, o que demandou todo um trabalho de drenagem realizado durante o período de dominação etrusca na região.
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Plutarco (Vida de Rômulo 9, 6-7) apresenta uma explicação para considerar o abutre uma ave de bom augúrio: lembrando a
referência de Herodoro, o Pôntico sobre a alegria de Héracles com o aparecimento de um abutre, o biógrafo afirma que este
animal é o que menos prejudica o homem na medida em que não se alimenta daquilo semeado, cultivado ou criado pelo homem
e, apesar de comer o corpo dos cadáveres, não mata nem fere nenhum ser vivo, nem se aproxima dos restos de aves devido ao
seu parentesco com estas. Tal comportamento o distingue das outras aves que ferem e matam os seus congêneres. Outro
elemento distintivo do abutre é a sua raridade, principalmente no tocante a encontrar as suas crias, induzindo assim a
extraordinária suposição de que os abutres fossem de outra terra e baixassem até aqui como mensageiros divinos.
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um erro cometido no culto e devia-se oferecer um sacrifício expiatório para se reconciliar com a divindade
lesada e repetir o rito esquecido ou, por vezes, desvirtuado, objetivando reparar as perdas causadas ao
patrimônio divino. Todo o prodígio devia ser relatado ao cônsul que o levava anualmente, no final de seu
mandato, ao Senado e expiado sob sua ordem. Este decidia os que eram de âmbito privado e os de
âmbito público. Para os mais comuns, o próprio Senado decidia os rituais expiatórios, mas para os
incomuns – os taetra prodigia –, considerados especialmente ameaçadores ao Estado, o Senado
consultava os pontífices, os arúspices e os duoviri sacris faciundis. Anualmente, os pontífices romanos
registravam nos Annales todos os prodígios ocorridos durante o ano em Roma e nas cidades romanas
para examinar seu significado e as expiações em Roma e os casos acontecidos na Itália. Os arúspices,
sacerdotes de origem etrusca, especialistas da arte da adivinhação em especial da extispicina (exame das
entranhas de animais sacrificados para conhecer as intenções divinas), eram consultados em caso de
monstra ou queda de raios (fulgura). Quanto aos os duoviri sacris faciundis, inicialmente, eles eram em
número de dois (condizente com a própria etimologia da palavra duoviri) e de origem exclusivamente
patrícia, depois passaram a ser dez (367 a.C.) e incluíam plebeus e chegaram a ser quinze durante o
governo de Sula (82 a 79 a.C.). Cabia-lhes a importante responsabilidade de cuidar e consultar os Libri
Sibilyni, os Livros Sibilinos, que se acreditavam conter os segredos para manutenção do poderio romano.
Segundo a tradição, os Livros Sibilinos surgiram na época do reinado etrusco dos Tarquínios em Roma
(final do século VI a.C.)3. Mesmo esta forma de adivinhação inspirada permaneceu sempre em Roma
controlada e utilizada apenas em momentos graves, quando então se encontrava orientação sobre
eficazes rituais contra as desonras infligidas à cidade por fenômenos anormais e terríveis.
Como referido anteriormente, qualquer ato político era antecedido pela tomada dos auspícios, cuja
aceitação dependia do magistrado. Os auspícios acabaram tornando-se assim um dos elementos formais
necessários para que uma decisão fosse legítima no direito público. Por esta razão, durante a República,
foram geralmente atacados e contestados por adversários políticos. Numa posição igual ou superior, um
magistrado poderia contestar a legitimidade dos auspícios anunciando um sinal oblativo desfavorável
(obnuntiatio) ou denunciando um erro de forma na sua tomada ou na sua interpretação. A única forma de
contestar os auspícios de um magistrado supremo (possuidores do imperium) era fazer o colégio dos
áugures e o Senado denunciarem um erro de forma qualquer. Somente os áugures tinham o direito de
adiar as assembléias anunciando o alio die (adiamento), subentendendo-se que observaram um sinal
desfavorável durante as assembléias. Sob a República, os auspícios eram um dos fundamentos da
liberdade política. Ao mesmo tempo em que se garantia de liberdade de ação dos magistrados, os
auspícios impunham regras e limites aos magistrados, pois sua legitimidade podia contestar ou anular um
ato público. Sendo a legitimidade do rito estabelecido, a decisão e seus efeitos também eram legítimos
pois tinha aprovação do deus soberano. Os auspícios foram um elemento na disputa de poder no final da
República que contrapôs facções da elite oligárquica, deixando, portanto, de ser garantia da liberdade
política para ser um elemento do poder pessoal. Esta situação se modificou com ascensão de Augusto ao
poder. Este tomou de facto posse dos auspícios. Em 27 a.C., recebeu do Senado o imperium maius
(administração das províncias) e os auspícios militares, tornando-o único comandante legítimo do exército.
A guerra se fazia sob a condução (ductu) de um general, mas sob os auspícios do imperador. Colocando-
se como restaurador da República, Augusto procurou ressuscitar a tradição arcaica por aves em vôo
(SUETÔNIO. Vida de Augusto 95) e manteve a prática dos magistrados consultarem as galinhas, mas
cessou o conflito de legitimidade auspicial ao monopolizar este direito. Para John Scheid (1998: 101), este
tipo de conflito era a razão pela qual os historiadores mencionavam os auspícios e, na medida em que
estes conflitos foram eliminados, as informações sobre esta prática divinatória foram desaparecendo. No
novo contexto do Império, os auspícios paulatinamente se tornaram puras regras formais necessárias
juridicamente para os atos de investidura e as decisões públicas importantes.

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Conta a tradição que uma mulher idosa e de aspecto misterioso propôs a um dos reis etruscos de Roma vender-lhe nove livros
de profecia. Era a Sibila de Cumas, profetiza grega um tanto mitológica da colônia helênica da Magna Grécia que, distintamente
da pitonisa do oráculo de Apolo em Delfos, não estava presa a um santuário oracular e possuía uma vida errante. O rei etrusco
não aceitou o alto preço pedido pela coleção de profecias. A Sibila então queimou três livros e depois outros três e continuou
cobrando o mesmo preço inicial pelos que sobraram. Diante da selvagem obstinação e aconselhado pelos áugures, o rei comprou
os últimos três livros e a misteriosa anciã desapareceu. Os livros foram guardados num cofre de pedra no subterrâneo do templo
de Júpiter Capitolino sob os cuidados dos duoviri sacris faciundis. Em 85 a.C., um incêndio no Capitólio destruiu a coleção e
foram enviadas missões a diferentes partes da Itália, Grécia e da Ásia Menor, onde se dizia que se conservavam as profecias
sibilinas, para reconstituir a coleção agora com nove livros. Augusto fez com que esta coleção reconstituída fosse conservada no
templo de Apolo palatino e passou a ser consultada somente a pedido dos imperadores, perdurando até o final do paganismo.
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Conclusão
A analisarmos as práticas religiosas das sociedades antigas, é preciso evitar preconceitos e
anacronismos que desvirtuam o seu significado para estas sociedades. Convém considerar a religião
romana em seu contexto histórico, buscando compreender que um dos princípios fundamentais que
condicionava a atitude religiosa dos romanos era sua relação com a relação com a comunidade. Assim
como em outras práticas religiosas, a adivinhação romana caracterizou-se pela observância de rituais que
seguiam regras e casuística rígidas, ou seja, estavam conforme a “ortopráxis”, constitutiva da teologia
cívica que dava visibilidade ao compromisso dos romanos com os deuses e garantia o bem-estar da
comunidade, sem a qual a cidade não podia seguir o seu destino. Neste contexto, entende-se portanto a
importância concedida aos auspícios pela sociedade romana.

DOCUMENTAÇÃO TEXTUAL
CÍCERO. Da República. trad. Amador Cisneiros. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Col. Os Pensadores)
CICÉRON. De la divination. trad. Charles Appuhn. Paris: Garnier, s/d.
DIONYSIUS. The Roman antiquities. transl. Earnest Cary. London: William Heinemann, 1948-1950. 7 v. (The Loeb Classical
Library)
PLUTARQUE. Vies. trad. Robert Flacelière, Émile Chambry e Mrcel Juneaux. Paris: Les Belles Lettres, 1957-1966. 4 v. (Coll. des
Universités de France)
SUÉTONE. Vies des douze Césars. trad. Henri Ailloud. 2. ed. Paris: Les Belles Lettres, 1961. 3 v. (Coll. des Universités de
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TITO LÍVIO. História de Roma. trad. P. M. Peixoto. São Paulo: Paumape, 1989. (dir. P. M. Peixoto, Col. Biblioteca Paumape de
História, 1 - v. 1)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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