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LEITURA

O empreiteiro precisava com urgência se desfazer de seu imóvel. O tempo para


ele naquele momento valia ouro. Entregou-se de corpo e alma à reforma de seu
único bem. Descascou as paredes, tirou o forro de madeira, trocou por gesso
com sancas. Não satisfeito, substituiu todo o piso de tábua corrida por lajotas,
tirou os ladrilhos quebrados, e trocou todo o sistema hidráulico e elétrico. Queria
melhorar a aparência daquele recanto. Terminada a reforma, olhou orgulhoso
sua obra com a certeza inabalável de que faria um bom negócio em poucos dias.

Impaciente com sua tendência a engordar, você procura um endocrinologista.


Exagero? Vaidade extremada? Silhueta desfavorável? São tantas as
possibilidades, tão variadas as respostas. E no fim, ao longo de uma penosa
bateria de exames médicos, o veredicto: comida quase sem sal, hábitos
alimentares saudáveis, caminhadas sob o sol, ginástica localizada, redução
drástica de calorias nas refeições. Nos finais de semana, talvez, apenas TALVEZ,
um copo de refrigerante, ou um copo de duzentos mililitros de cerveja.

Nervosa, a mulher bem vestida equilibrando-se em saltos muito altos gesticulava


histérica expondo-se perigosamente na via pública. Seu semblante crispado era
uma demonstração inequívoca de seu deplorável estado psicológico. Gritava
obscenidades acompanhadas de gestos não menos obscenos. Às vezes parecia
se jogar na frente dos veículos provocando angústia nas pessoas que
testemunhavam a estranha movimentação. A mulher atraía a curiosidade dos
motoristas, que não diminuíam a marcha para verificar o estranho
comportamento.

Benito Falbo, avesso a falcatruas, entregou à freguesa uma sacola de plástico


contendo doze itens hortifrutigranjeiros. Dentre eles, dois cachos de uva Itália,
doze bananas d’água e espinafre. Seu semblante severo sinalizava que havia em
seu íntimo um intenso conflito. Sem que a freguesa, entre atônita e
constrangida, pudesse esboçar o menor gesto que fosse, ouviu Benito murmurar
entredentes: o proprietário da barraca ensacava produtos imprestáveis como se
fossem viçosos. Para agir assim ele contava com a conivência dos fiscais.

Durante anos o velho pároco reinou na pequena localidade de Vila Nova


Granada, cidadezinha de dois mil e oitocentos habitantes, a sudoeste de Mar de
Espanha, Minas Gerais. De idade avançada, conhecia cada morador das
cercanias pelos nomes, conhecia-lhes os problemas, para os quais tinha na
ponta da língua uma solução escavada nos salmos que pregava. Afável, porém
altivo, solícito sem subserviência, ouvia, mas não se envolvia, abençoava
imbuído de fé, reprovava com um olhar para relevar em seguida com um gesto
suave das mãos.

Irascível, áspero, afoito, ríspido no limite da grosseria, aquele político não tardou
a pagar caro por seus erros. Sua índole era conhecida por todos especialmente
pela mídia, sem exceção. Possuidor de índole psicótica, de ideias ultrapassadas,
ostentava uma cultura estranha. Seu passatempo predileto era bizarro: adorava
irritar o Cacique Juruna, provocando-o, expondo-o ao ridículo. Certa vez,
durante uma entrevista tumultuada a jornalistas, a maioria estrangeiros,
declarou com profundo desdém que o autóctone era um aculturado exótico.

Expedito vivia contando vantagens sobre o seu celibato. Mas finalmente seu dia
de homem que procura estabilidade chegou. Terminado o jantar na casa da
namorada, ficou de pé, aprumou-se como a ensaiar um discurso, pigarreou e
pediu a mão de Tereza em casamento. Recebeu um sonoro “NÃO” como
resposta. Chegando em casa, levantou a cabeça, empinou o nariz e disse à mãe
com estudada indiferença que uma simples negativa não lhe tiraria do páreo.
Pensando bem, seria melhor estender um pouquinho mais seu reinado de
celibatário.

Na antevéspera de completar 70 anos o aposentado leu a notícia nos jornais:


ALIMENTOS COMUNS ESTÃO CHEIOS DE AGROTÓXICOS. Contrafeito com o que
acabara de ler, chamou sua esposa. Pousou o jornal nos joelhos, retirou os
óculos que estavam pendurados na ponta de seu nariz e disparou: não vamos
mais comprar alimentos condenados. A partir de hoje só vou adquirir produtos
orgânicos. São mais caros? São, não importa. Tem aspecto feio? Tem, mas
tenebroso é o câncer. O gosto é duvidoso? É. O do remédio é pior ainda.

Taifeiro que dedicou toda sua vida ao trabalho em portos, era dado a fantasias e
elucubrações as mais estapafúrdias. Nos momentos de reflexão, dizia a si
mesmo que era necessário dar um basta a conjeturas vazias. Mas ao se
aproximar da ponte móvel para ganhar a margem oposta do riacho que passava
nos fundos de sua casa, tremia de medo. Suava em bicas. Empacava feito
animal quando pressente o perigo. Não havia quem pudesse lhe convencer que a
ponte era segura. Seus olhos assustados provocavam mais riso do que
compaixão.

Eueli, Yaçanã, e Yara, primas entre si em primeiro grau, mineiras oriundas da


pequena cidade de Cordisburgo vieram passar as férias no Rio de Janeiro. Com
idades de 21 a 24 anos, mal conseguiam conter o entusiasmo aguardando o
ônibus que as levaria a percorrer a cidade maravilhosa. Na primeira parada do
veículo junto a um famoso parque de diversões, resolveram brincar um pouco no
túnel dos horrores. Quase morreram de susto ouvindo os gritos, explosões,
gargalhadas medonhas, gemidos e lamentos dentro do apertado túnel de lata.

Viajou 5 horas seguidas, a maior parte do trajeto debaixo de chuvas intensas,


sem descansar, sem ao menos descer do carro pra ir ao banheiro. Mas
conseguiu realizar o sonho que acalentava desde que era estudante do primário:
conhecer a antiga mina de Morro Velho. O que o atraía? O trabalho dos homens
no ventre da terra? O desejo de ver uma pepita de ouro? Resoluto,
aproximou-se o mais que pode da entrada principal da mina e cantou a linda
canção de Renato Teixeira: “ILUMINA A MINA ESCURA E FUNDA O TREM DA
NOSSA VIDA...”.

Qualquer pessoa educada, com um mínimo de bom senso, toca a campainha


como toda pessoa faz. Menos Ana Elisa. Impaciente, egoísta, dona da verdade,
insegura, ela prega sustos na família esmurrando a porta para chamar a
atenção. De nada valem os apelos dos parentes, que sugerem um tratamento
psicológico para identificar essa agressividade latente. O temperamento difícil de
Ana Elisa a impede de ficar mais do que um mês nos poucos empregos que
conseguiu arranjar. Sentindo-se rejeitada, passou a cultivar um ódio irracional
contra tudo e todos.

Munido de uma câmera digital, um tripé, e binóculos, me postei imóvel à sombra


de uma frondosa amendoeira no parque. A alguns metros de mim, uma touceira
de hibiscos, fonte de alimento deles, brilhava sob o sol da manhã. Eu queria
fotografar essas criaturinhas graciosas, nervosas, ariscas, micro organismos
dotados de energia impressionante. Era uma tentativa – possivelmente inútil –
de fotografar o “ballet” encantador. Mas seu magnífico instinto de autoproteção
denunciava minha presença levando-os a se afastarem na mesma velocidade da
chegada.

Nas feiras livres, as hortaliças e legumes que ficam em primeiro plano são uma
isca infalível. Manipulados por mãos desonestas, os produtos exercem um
grande poder de atração. O cliente incauto, ao tentar escolher os itens, se vê
impedido pelo vendedor que usa as mais deslavadas mentiras pra justificar sua
recusa. O comerciante, mal intencionado, sabe que o cliente é na maioria das
vezes muito passivo. Somente ao chegar em casa o freguês se dá conta de ter
sido vítima da má fé, do vício de enganar disseminado neste tipo de comércio.

O candidato possuía todos os requisitos para obter a vaga oferecida. Muito


jovem ainda, o trainee cometeu uma falha imperdoável: omitiu, sabe-se lá por
que, informações importantes sobre seu reduzido currículo. Ao discorrer sobre o
medo de não saber qual carreira seguir depois de ter passado por etapas difíceis
dos testes, admitiu não estar à altura do cargo pleiteado. Só então, os
funcionários do departamento de recursos humanos, responsáveis pela
convocação equivocada, viram o tamanho da trapalhada em que se meteram.

Calado, imóvel, olhar fixo no infinito, respondeu sem pestanejar as perguntas


formuladas pelo psiquiatra. Com gestos calmos, milimetricamente calculados,
colocou o telefone celular ao lado do aparelho de fax do médico. Estaria
tramando alguma coisa? Estaria insatisfeito com o tratamento recebido? Havia
eletricidade no ar abafado dentro do luxuoso consultório. O silêncio era
perturbador. O psiquiatra, como que obedecendo a um forte impulso, pôs-se de
pé, abriu a porta ao paciente, comunicando que a sessão havia terminado.

Entrou no cinema em estado de alegria juvenil. Aguardou a semana inteira pela


estreia. Escolheu uma poltrona entre as primeiras fileiras. Agarrado ao pacote de
pipocas e um copo cheio de coca cola, olhou para os lados avaliando a plateia
naquela primeira sessão matinal. Esperava ver seu astro predileto em cenas
arrebatadoras. Porém, logo nos primeiros 15 minutos de filme, o fã de
carteirinha do famoso lutador entendeu a mensagem: o filme nada mais era do
que um amontoado de cenas de violência gratuita, brigas, explosões, correrias.

Ninguém no banco disse uma palavra sequer em favor do funcionário demitido.


Clientes e funcionários pareciam aliviados pela ausência do recalcitrante colega
dispensado por justa causa. Eram constantes as reclamações em que ele
figurava como figura central. Áspero, impaciente, mal educado, colecionou
adversários dentro e fora do banco. Vivia isolado, já que ninguém queria sua
companhia mesmo na área da copa onde se servia o cafezinho de todas as
manhãs. Questionado sobre seu comportamento, esquivou-se, dizendo-se
estressado e agitado.

Bruna Bia é linda, bem humorada, simpática, espirituosa, e bastante tímida.


Seus modos suaves, sua pele muito alva, os olhos de um azul transparente,
lembram mais uma princesa, do que uma aplicada aluna do segundo grau. Ela
tem prontas, palavras de incentivo, de solidariedade às colegas de classe que
sofrem de ansiedade à época das provas bimestrais. Não se nega a ajudá-las.
Doa seu tempo sem mostrar qualquer sinal de incômodo. Essa adolescente
encantadora se transforma quando volta ao lar pra conviver com sua irmã
caçula.

Mudar, mudar sempre. Para se renovar. Se reciclar, acompanhar os novos


tempos. Para usar uma palavra muito em voga: se reinventar. Mudar inclusive
de opinião. Por que não? Há que se defender com unhas e dentes os seus
princípios? Aquele cantor, ou cantora que sempre nos incomodou, não poderá
em algum momento tocar nosso coração? Mexendo fundo na nossa emoção? E
quando esse momento chegar, devemos desembainhar a espada da controvérsia
e dizer não? A isso chamamos de radicalismo vazio.

Quinze minutos antes do horário previsto o jovem casal estava na fila do


cinema. Munidos de um enorme saco de pipoca, chicletes e o indefectível copo
de Coca-Cola, transpiravam ansiedade. Meia hora depois de iniciado o filme,
levantaram-se e foram embora cuspindo marimbondos. Alegaram que foram
induzidos a erro, pois jamais assistiriam uma droga como aquela. Indignados,
taxaram os roteiristas de “incompetentes” por não buscarem em clássicos da
literatura alguma história que os remetesse à cultura, ao lazer para qualquer
faixa etária.

Onze meses de trabalho ininterrupto e lá um belo dia vem o aviso de férias do


RH junto com o contracheque. Exultante, o funcionário público afrouxa a gravata
ainda em pleno expediente. Parar. Interromper a rotina de sai-
cedo-de-casa-fica-horas-no-engarrafamento-consegue-uma vaga-na-rua-
sai-correndo-e-marca-o-cartão-faltando-um-minuto-pras-nove. Ufa! Finalmente
as tão esperadas férias. Guardar a pasta na escrivaninha de casa, cobrir o
computador e dizer tchau! Sair, viajar, sol na pele, dormir tarde, andar sem
destino. Isso sim, é que é viver!

O carteiro Max cujo nome rima com o nome da Rua Ajax onde fica o sobrado em
que reside desde que nasceu há cinquenta anos, vai se aposentar. Max está
cobrindo temporariamente a rota do colega Paulo Emílio, antigo nos correios
como ele. Paulo contraiu uma virose resistente o que o impede de comparecer
ao trabalho desde o início do mês. Embora esteja fora de forma, já que passou
aos trabalhos internos, Max começando a entregar a correspondência no Leme
às quatro e meia acaba o estafante trabalho no mais tardar às cinco e meia.

O governo venezuelano sob a égide do militares quis aumentar o preço da


gasolina e do óleo diesel. Sob qual pretexto? O de sempre, a velha desculpa
desgastada de que o preço do barril de óleo cru tinha subido muito. O povo
recusou. Disse não. E foi pras ruas mostrar seu desagrado, produzindo um
barulhão infernal batendo em panelas, latas vazias, tambores, etc. Teve início os
enfrentamentos. O povo destemido fincou pé no terreno como se dissesse:
“daqui só saímos mortos!” As forças de repressão entenderam, e voltaram aos
quartéis.

Bêbado, esforçando-se para não cair, o violonista tentou ficar de pé. Mas contou
com a paciência e uma ajuda discreta do maitre que serviu de escora. Sem se
incomodar com os olhares que atraía, colocou-se muito perto do carrinho onde o
maitre flambava um steak à Diana. Chamou o garçom, pagou a conta sem ao
menos conferir. Seu estado etílico não afetou sua lucidez pois deu generosa
gorjeta ao garçom. Então abraçou o maitre, fitou-o com os olhos esgazeados
dizendo em tom de discurso que deveria tomar uma saideira e partir.

Faça essa experiência. Vá a um shopping, qualquer shopping e faça o teste. Pare


diante de uma vitrine. Demore-se alguns minutos olhando para algum produto
exposto. Mas antes, aperte o cronômetro do seu relógio. Em menos de dois
minutos você será abordado por um sorriso estereotipado, padronizado de um
vendedor que dirá: - “olá, meu nome é Diogo, e o seu?”. Você pode
eventualmente entrar, até comprar o produto, ser bem atendido, mas... É
necessário dizer seu nome? E você? Teve vontade de saber o nome do
vendedor?

Estressado o ilustrador vivia brigando com a namorada. Aos berros.


Temperamental, o rapaz se descontrolava porque a moça reclamava – e estava
coberta de razão – de seus constantes atrasos, chamando-o de relapso. Mas
esta briga em especial tinha um elemento novo: a ameaça da moça de terminar
o namoro já que estava saturada de tanta desavença. Dirigindo feito um bêbado,
em alta velocidade, ziguezagueando feito cachorro fugitivo, o namorado parecia
desejar que o final do romance deles terminasse em tragédia.

Será mesmo possível que tendo 30, 40, 50 canais a cabo à disposição no
controle remoto, alguém não se interesse em zapear? É possível que alguém
seja tão acomodado? Tanto faz ter um ou 20 canais? É normal sentar-se diante
da TV sem demonstrar interesse no que os outros inúmeros canais mostram?
Tereza Esmeralda é diferente. Nutre verdadeira ojeriza pelos apresentadores de
talk shows.​ Com a sua franqueza peculiar, reclama deles por se acharem mais
interessantes e brilhantes que os próprios entrevistados.

Aglutinador. Envolvente. Tentador. Excitante. Disputado. Pode-se dizer tudo isso


e tantas outras coisas mais sobre o BAILE DOS COROAS. É um Evento anual
promovido no Clube Olímpico. Aguardado com ansiedade pelos sócios da terceira
idade, é uma tradição que causa furor em todos os anos de sua realização.
Porém, a cada ano, avolumam-se as queixas contra a falta de planejamento da
festa. Quando os encarregados pela distribuição do ​buffet c
​ omeçam a circular no
exíguo espaço do salão de baile, começa o empurra-empurra.

Do apartamento situado numa zona de tráfego intenso a moradora fechou


pensativa a janela. Há semanas debruçada no parapeito do seu imóvel no quarto
andar, chegou a uma desoladora certeza: os motoristas teimam em desobedecer
as regras do trânsito. O guarda, em seu uniforme impecável, semblante severo,
porém simpático, completava exausto sua jornada de trabalho. Pessimista, a
moradora não via mais solução. Mas ela esperava o quê? Que os mal educados
tivessem consciência? Que as autoridades não fossem omissas?

Amplexos contra plexos agitados chegaram ao clímax entre os convivas depois


de duas horas de exaustiva reunião. Estavam todos, sem exceção, exultantes.
Mais do que exultantes, estavam aliviados. Ações de solidariedade empreendidas
durante o mês foram determinantes. Um grupo de voluntários, a maioria
aposentados, percorreu as redondezas durante dias a fio. A prefeitura então
abriu uma nova escola no bairro para abrigar crianças pobres. Estava em curso
um movimento para conduzir essas crianças carentes rumo ao futuro.

Cheirando a Almíscar e a Alfazema, a recém-formada engenheira estava linda.


Trajando vestido listrado de bege e azul, saiu apressada do elevador de serviço.
Seu motorista a aguardava dentro do carro. Quando ele deu partida, a
engenheira mudou de ideia, desceu do carro, voltou em casa e trocou de roupa.
Agora estava vestida com um conjunto amarelo-ouro e marrom. Olhou-se no
espelho. O resultado não a agradou. Despiu-se de novo. Colocou uma
indumentária de seda que incorporava o roxo e o cinza. Estava pronta pra
entrevista.

Altivo o frentista do posto de gasolina parou de abastecer o caminhão.


Caprichoso, muito dedicado ao trabalho, era, porém, muito lento. Lerdo o
definiria melhor. Ignorando a buzinaria histérica e a impaciência dos motoristas
que aguardavam para também abastecer, pôs a bomba no automático. Alheio ao
tumulto ao seu redor atendeu a um entregador de pizza. O motoboy estava
perdido e queria informações sobre determinada rua. O frentista com toda a
calma do mundo orientou o entregador como chegar rápido à Praia de Icaraí.

Paulo Henrique Espinosa, diretor adjunto de engenharia de tráfego do Detran de


Juiz de Fora chegou cedo ao trabalho. Com um rápido olhar perscrutou o
ambiente à procura de sua secretária. Não a viu. Sua linha de raciocínio estava
de novo saindo para uma bifurcação. Conforme observou, um engarrafamento
nunca é igual ao anterior. As razões são infinitas. Nunca seguem um padrão.
Sem dúvida, não há estratégia especial que possa resolver as intrincadas
retenções verificadas todos os dias entre as ruas Halfeld e Aulus Altamirando.

Junte um abacaxi médio, doze folhas de hortelã, três cerejas, um raminho de


dill, e doze gotas de angustura. Bata no liquidificador. Por 10 segundos no
máximo. É importante que o abacaxi não seja totalmente desmanchado. Deixe
descansar. Adicione meia fatia de laranja ácida, maçã verde com a casca, gelo
moído, açúcar ou adoçante. Para enfeitar a borda da taça, prenda uma “estrela”
de carambola. A vodca pode ser a STOLISHNAYA, a WIBOROWA, a ABSOLUT, ou
a pobrezinha da SMIRNOFF. Você terá um delicioso drinque de cítricos.

A tarde morria melancólica. No velório repleto de pessoas próximas à família do


ilustre defunto, lá estava o indefectível Pascoal. Simplório, sob a ação de
incontáveis doses de aguardente, disparava frases de efeito. Esbarrando nos
presentes, se desculpava com sua fala entrecortada por soluços etílicos.
Movendo-se com dificuldade, esgueirou-se no ambiente apertado, estampou no
rosto a expressão que lhe pareceu mais adequada, tomou fôlego, localizou a
viúva amparada pelos filhos a um canto, e disparou: “a vida é bela” para
espanto dos presentes.

Diante da porta cujo verniz semiapagado indicava desleixo, o cobrador deteve-se


em dúvida. Abriu a pasta, conferiu os papéis, fechou a pasta, sempre
segurando-a com a mão esquerda. A temperatura no corredor escuro, mal
iluminado, sem exagero era 5 graus superior à externa. Resoluto, tocou a
campainha. Quando foi atendido, falou rispidamente que o seu patrão aguardava
uma solução definitiva para aquele problema que se arrastava há meses. Ato
contínuo virou as costas sem dar tempo ao inquilino inadimplente de proferir
alguma palavra.

Admoestado de que a proposta era inócua, deduziu que estava ouvindo errado.
Antes de interromper o que estava fazendo, avaliou com esmero suas chances
reais de ser bem sucedido. Levou as duas mãos à cabeça, espalmando-as sobre
a calvície precoce, franziu a testa, trancou os lábios, ficando assim por longos
minutos. Capricorniano, não era de seu estilo desistir na primeira queda
resultante do enfrentamento. Entretanto, obedecendo à intuição – que podemos
chamar também de sexto sentido – calou seus argumentos, ficando, porém na
defensiva.

Maria Auxiliadora se beliscava pra saber que não estava sonhando, ou


imaginando coisas. Tinha sido aprovada em todas as etapas de testes. Como o
próprio nome indica, era uma auxiliar valiosa, esforçada, generosa, solidária.
Jovem ainda, estava radiante por causa de sua contratação. Podia afirmar com
muito orgulho: “não obtive ajuda de ninguém, superei todas as expectativas, por
méritos próprios!” Preencheu todos os requisitos ao se candidatar ao emprego,
contrariando a resistência do RH que não lhe reconhecia o talento.

Pouco afeito a relações sociais, o livreiro dava pouca ou nenhuma importância


aos clientes que procuravam seu estabelecimento. “Já acabou!” – “ Não saiu
ainda!” – “Está esgotada!”- Passe outra hora!” Brindava seus clientes com
respostas assim, ríspidas, definitivas, à maioria das indagações sobre livros
didáticos. Porém certo dia um fato impensável ocorreu: ele foi visto entre os
bairros de Benfica e Caju, circulando absorto no meio do engarrafamento. Numa
das mãos, levava doze xeroxes com autenticação.

Numa área bucólica, desabitada, de difícil acesso, um seleto grupo de rapazes se


exercita sob o sol causticante. São os recrutas da aeronáutica. A pesada rotina
de treinamentos começa muito cedo. Acordam às 6 da manhã, tomam seu café
em menos de dez minutos, mal têm tempo de escovar os dentes e são
convocados para a formação. Treinados para suportar tensão, medo, ansiedade,
desconforto, cansaço, enfrentam com bravura e abnegação os exercícios
militares. Muitos querem seguir carreira. A maioria desiste nos primeiros seis
meses.

Trabalhadores apressados, ziguezagueando num balé neurótico, avançando com


ímpeto ao destino. O mesmo ocorre nas estações ferroviárias. Esse panorama
imutável surpreende por se tratar de um dia de trabalho normal. A balbúrdia
está no ar. O barulho é ensurdecedor. Há histeria no semblante das pessoas,
faltam poucos minutos para começar o confronto entre as duas torcidas. Mas
sem qualquer explicação plausível, o trânsito segue seu fluxo normal entre
Gramacho e Caxias, o mesmo acontecendo entre Saracuruna e Vila Esperança.

Depois de várias horas de exaustivos ensaios no Teatro Municipal, o maestro


ufanista colocou a batuta na estante à sua frente. Dispensou os músicos para
um rápido intervalo, mas ele próprio permaneceu em seu posto. Olhou a rés do
palco, caminhou na boca de cena com a mão direita espalmada sobre o beiral,
olhando nessa posição e voltou ao pódio. No camarim, Jessye Norman
recusava-se a ouvir sua empresária. Extenuada, ríspida até, reclamava do
número de vezes em que teve que repetir NOBODY LOVES ME da ópera PORGY
AND BESS.

Nossa lógica é furada? Sim, isso já se sabe. Retrógrada? Antropofágica? A


aceitar esses adjetivos e argumentos não seria lógico uma retomada de
consciência pra avaliação de nossos erros? Esses rótulos se devem à nossa
prudência em lutarmos contra um mercado organizado? Agressivo? Seu sistema
de vendas é dinâmico, moderno, inovador. Isso por acaso é defeito? Não temos
que condenar a concorrência por ameaçar nossa hegemonia. Temos sim, é de
rever nossa filosofia empresarial e deixar de atacar as técnicas de abordagem do
concorrente.

Ir às compras em shopping centers aos sábados é um desafio à sua paciência.


Os andares ficam apinhados de pessoas que mais circulam do que compram. E
então você tem que ir a um aniversário. Ou levar um presente pra filhinha do
seu colega de trabalho. Pior: tem que comprar pra sua mulher o presente do dia
das mães. E lá vai você, incauto, munido de cartão de crédito e de nenhuma
paciência. Se resolver parar diante de uma vitrine qualquer você ganha logo a
amizade íntima da vendedora: “olá, meu nome é Bianca, e o seu? Posso ajudar?”

Gripado, afônico, olhos injetados, cabelos em desalinho, temperatura beirando


os 38 graus e meio, mesmo assim queria ir trabalhar. De nada valeram os
apelos para desistir do intento. Precisava ir à empresa. Era questão de foro
íntimo. Havia um surto de gripe grassando naqueles dias, portanto seria natural
que fosse contaminado e não pudesse trabalhar. Tal hipótese simplesmente não
foi aventada. Levantou-se da cama, endireitou o corpo, tossiu muito, queixou-se
de dores no ouvido, mesmo assim, num impulso exibicionista, saiu de casa pra ir
trabalhar.

Contrariando todos os prognósticos, o pestinha mais uma vez passou de ano.


Esses eventos já haviam se tornado recorrentes na escola em que ele estudava.
Indisciplinado, negligente, descuidado com seu material didático, dava a
impressão de que desta vez seria jubilado. Passou todo o ano letivo perturbando
os professores, desafiando os inspetores, irritando os colegas de classe. Porém
nas provas finais, tirou as melhores notas. Para espanto geral ainda ouviu
comentários simpáticos de seus pais alienados sobre seu execrável
comportamento social.

Pode parecer exagero. Pode parecer tentativa de indução, ou podem até taxar
de capcioso esse conceito, mas nenhum cantor brasileiro conseguiria se igualar a
Caetano Veloso na precisão articulatória. Talvez seja difícil que algum cantor ou
cantora pronuncie com tanta perfeição os vocábulos “rapte-me” – “capte-me” –
“adapte-me” – “adote-me” – “​touch me​” na música RAPTE-ME CAMALEOA.
Porém há quem discorde dessa opinião e se arrisque a dizer que Emílio Santiago
é ainda mais perfeccionista do que o irmão de Maria Bethânia.

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