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2017

CADERNO ESPECIAL
Uma publicação da
Campanha Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha
Editada pelo Instituto Patrícia Galvão - Mídia e Direitos

Lei Maria
da Penha realização apoio

Secretaria de Secretaria de
Políticas para as Mulheres Governo

1 CA D E R NO E S PE CI AL L e i M a r i a da P e n ha C L I Q U E AQ U I >> Í N D I C E
Índice

Apresentação Inovações jurídicas na Lei Maria da Penha:


3 32 medidas protetivas e defesa de direitos
Lei Maria da Penha mudou o patamar
5 do enfrentamento à violência contra A importância da equipe multidisciplinar
as mulheres no Brasil 44 para garantir o acolhimento qualificado

Compreender as manifestações violentas Brasil precisa aumentar número de varas


13 da desigualdade de gênero é fundamental 50 e juizados especializados em violência
doméstica e familiar
Lei Maria da Penha desafia Estado a
22 integrar políticas públicas e promover Plena efetivação da Lei Maria da Penha
mudança cultural 55 demanda compromisso político e
investimento orçamentário

2 CA D E R NO E S PE CI AL L e i M a r i a da P e n ha C L I Q U E AQ U I >> Í N D I C E
Apresentação

3 CA D E R NO E S PE CI AL L e i M a r i a da P e n ha C L I Q U E AQ U I >> Í N D I C E
Apresentação

A
pós uma década de vigência para além de criminalizar e definir formas tam que a lei foi fundamental para
da Lei 11.340/2006, popular- de violência doméstica e familiar, esta lei quebrar a invisibilidade e a naturali-
mente conhecida como a Lei garante direitos às mulheres e instaura zação em relação à violência baseada
Maria da Penha, uma pesqui- deveres para o Estado materializar esses no gênero nas relações íntimas, mos-
sa do DataSenado de 2017 in- direitos nas diferentes realidades em que trando que esse não é um assunto da
dica que praticamente 100% das mulheres vivem as brasileiras. esfera privada. Trouxe ainda inovações,
conhecem o marco legal. Apesar do dado como as medidas protetivas de urgên-
reforçar que a Lei Maria da Penha é uma Baseado em consultas a legislações, cia, para os sistemas de segurança e
das mais conhecidas do país, 77% das pesquisas e conteúdos de referência, justiça atuarem de modo protetivo e
entrevistadas dizem conhecê-la pouco, en- além de entrevistas* com representantes preventivo. Apontou ainda o caminho
quanto 18% afirmam conhecer muito. de instituições parceiras da Campanha para uma política pública intersetorial
Compromisso e Atitude pela Lei Maria da que oferecesse respostas em múltiplas
Em homenagem ao aniversário de Penha e profissionais que atuam em ser- frentes, tanto para que as mulheres
promulgação da lei em 7 de agosto de viços responsáveis pela aplicação da Lei, possam romper o ciclo de violência, no
2006, o Portal Compromisso e Atitude o especial demonstra que o marco legal curto prazo, quanto para a desconstru-
publica este especial composto por sete aponta caminhos férteis para a constru- ção de discriminações e desigualdades
matérias que repercutem os conteú- ção de políticas públicas eficazes que, por de gênero e raça que ajudem a preve-
dos e direitos previstos nos sete títulos diversas razões, ainda não foram plena- nir a perpetuação da violência no longo
que estruturam a Lei nº 11.340/2006, mente implementadas no Brasil. prazo. Destacam, portanto, a importân-
buscando abordar o marco legal na sua cia da Lei Maria da Penha, reforçando a
integralidade – ou seja, mostrando que, As especialistas consultadas apon- urgência de sua efetivação. Confira.

* As entrevistas exclusivas para este especial foram realizadas em 2016, portanto, algumas fontes citadas podem ter tido seu cargo alterado.

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Lei Maria da Penha mudou o

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patamar do enfrentamento
à violência contra
as mulheres no Brasil

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Lei Maria da Penha mudou o patamar
do enfrentamento à violência contra
as mulheres no Brasil

O
dia 7 de agosto de 2006 Hoje a Lei Maria da Penha é conhe- cuja implementação pelos poderes públi-
é considerado um mar- cida por 100% da população, conforme cos segue aquém do necessário.
co no campo dos direitos indica o levantamento do DataSenado de
das mulheres no Brasil: 2017. A pesquisa avaliou também a per- Após uma década de vigência da Lei
com a Lei Maria da Penha cepção das entrevistadas sobre o quanto Maria da Penha, especialistas entrevis-
(11.340/2006) o país passou a contar a Lei Maria da Penha protege as mulhe- tados pelo Portal Compromisso e Atitu-
com um marco legal que estabelece res contra a violência doméstica e fami- de apontam inúmeros obstáculos e de-
direitos e aponta caminhos não apenas liar. Para 26%, a Lei protege as mulheres; safios para enfrentar a violência contra
para coibir, como para prevenir a violên- 53% disseram que ela protege apenas as mulheres num país marcado por dis-
cia doméstica e familiar. Por seu caráter em parte; enquanto 20% responderam criminações, mas ressaltam: a Lei Maria
amplo, a Lei foi considerada pela ONU que não protege. Os dados indicam a ne- da Penha foi fundamental para quebrar
como uma das mais avançadas do mun- cessidade de maior efetivação dos direi- a invisibilidade e a naturalização em re-
do neste campo. tos garantidos pela Lei Maria da Penha, lação à violência doméstica e familiar.

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Contexto histórico reforça


importância da Lei
A mudança é importante quando se con-
sidera que, no Brasil, o processo social, his-
tórico e cultural construiu e naturalizou siste-
mas discriminatórios, como o machismo e o
“A primeira mudança substancial que a Lei trouxe foi a racismo, que ainda são estruturantes nas re-
mudança de cultura. É uma lei conhecida por quase toda a lações pessoais e presentes nas instituições
população, o que não ocorre com frequência, e que trouxe e serviços públicos. Esses sistemas discrimi-
para a agenda pública um assunto que antes estava na vida natórios, conforme aponta o Dossiê Violência
privada. Ela tira essa questão da invisibilidade que sempre contra as Mulheres, se materializaram em
permeou as relações domésticas e familiares e pauta como leis também discriminatórias.
um problema público, onde o Estado deve intervir, pois são
violações dos direitos humanos que não podem ser tolera- No caso da violência doméstica e fami-
das”, explica a defensora pública do Distrito Federal, Dulcielly liar, quando ainda não existia a Lei Maria da
Nóbrega de Almeida. Penha a abordagem jurídica dos casos era
baseada na Lei nº 9.099/1995, que propu-
nha punições alternativas para os agresso-
res, como a doação de cestas básicas, sem
oferecer o apoio adequado às vítimas para
que o ciclo de violência fosse rompido e nem
apontar quaisquer medidas de prevenção
em médio e longo prazo.
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Neste contexto, a banalização por meio da impunidade


A história da farmacêutica bioquímica era uma realidade que revitimizava mulheres e violava seu
Maria da Penha Maia Fernandes direito de acesso à Justiça, o que levou à condenação brasi-
deu nome para a Lei nº 11.340/2006 leira no emblemático caso da biofarmacêutica Maria da Pe-
nha Maia Fernandes (veja box ao lado), que acabou dando
Vítima de violência doméstica durante 23 anos, em 1983, o nome à lei de enfrentamento à violência contra as mulheres.
marido de Maria da Penha tentou assassiná-la por duas ve-
zes. Na primeira vez, com um tiro de arma de fogo, que deixou A condenação somou força às mobilizações dos movi-
Maria da Penha paraplégica. Na segunda tentativa, o mari-
do tentou matá-la por eletrocussão e afogamento. Após esse mentos de mulheres por uma lei específica que apresen-
histórico de violência e tentativas de homicídios, a professora tasse respostas para os diferentes aspectos do problema, o
Maria da Penha o denunciou. Passados mais de 15 anos do que culminou num processo participativo entre feministas,
crime sem uma decisão definitiva no sistema de justiça, mes-
mo havendo duas condenações pelo Tribunal do Júri do Ce-
juristas, parlamentares, especialistas e sociedade civil para
ará (1991 e 1996), seu agressor ainda não havia sido preso. a construção do marco legal promulgado em 2006.
Este processo ganhou notoriedade ao ser apresentado à Co-
missão Interamericana dos Direitos Humanos da OEA (Or- “A Lei Maria da Penha é uma conquista que marca o antes e
ganização dos Estados Americanos). Em 2001, a Comissão o depois no mundo jurídico quando o tema é violência contra as
Interamericana dos Direitos Humanos da OEA responsabi-
lizou o Estado brasileiro por omissão, negligência e tolerân-
mulheres”, considerou a secretária Especial de Políticas para as
cia. Considerou que neste caso se davam as condições de Mulheres, Fátima Pelaes, durante 8º Fonavid (Fórum Nacional
violência doméstica e de tolerância pelo Estado definidas na de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher).
Convenção de Belém do Pará, conforme aponta o relatório nº
54/2001 do órgão.
Viver sem violência
>>> Saiba mais é um direito de toda mulher
Um dos aspectos importantes da Lei Maria da Penha
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é reconhecer em seu artigo 2º (ver box ao final do texto) que moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à
toda mulher deve ter garantido o direito de viver sem violência cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência
e preservadas a sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamen- familiar e comunitária.
to moral, intelectual e social – independentemente de classe,
raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional,
idade e religião.

“Com a lei se deu visibilidade às formas de violência que “A violência é algo que somente a resposta jurídica não
atingem meninas, mulheres e idosas e também houve uma vai resolver, é preciso contarmos com olhares multidis-
conscientização por parte de toda a população contra essa prá- ciplinares e com uma rede de serviços, além de muitas
tica. Dessa forma, foi inaugurado um sistema de proteção às ví- políticas públicas, incluindo ações na área de saúde e
timas, que até então não existia no Brasil e que é extremamen- assistência social. Por vezes, as mulheres em situação
te relevante, porque proteger é o principal instrumento para de violência não conseguem participar de um grupo
se evitar a morte de uma mulher”, avalia a promotora Valéria de acolhimento ou de um grupo de capacitação para
Scarance, do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP). o mercado de trabalho, porque elas não têm uma pas-
sagem de ônibus”, aponta a juíza Madgéli Frantz Ma-
Neste sentido, a Lei aponta caminhos para os sistemas de chado, titular do 1º Juizado de Violência Doméstica e
segurança e justiça agirem quando a violência doméstica e fa- Familiar contra a Mulher do Tribunal de Justiça do Rio
miliar acontece, buscando oferecer o apoio que a mulher pre- Grande do Sul (TJRS).
cisa para romper o ciclo da violência, mas não só: ela também
aponta o dever do Estado brasileiro de assegurar às mulheres
as condições para o exercício efetivo de seus direitos à vida,
à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à
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Lei indica caminho para uma


política pública completa
A partir de sua promulgação, a Lei Maria da Penha institui
as diretrizes para “uma política nacional articulada e integrada
para o enfrentamento à violência, ou seja, ela não apenas decla-
ra que a violência contra as mulheres é uma violação de direitos
humanos, mas define a política através de um conjunto de ações
propostas para o poder público”, conforme destaca Leila Linhares, “Esta lei tem uma proposta de articulação vertical – fe-
advogada e diretora da ONG CEPIA – Cidadania, Estudo, Pesqui- deral, estadual e municipal – e de articulação horizontal em
sa, Informação e Ação, que participou do consórcio para a elabo- cada ente federativo para que haja a transversalidade de gê-
ração do marco legal. nero, ou seja, determina que todos tenham uma responsa-
bilidade no enfrentamento à violência contra as mulheres, o
que significa não só a área da justiça, mas também a área da
segurança, da educação, da habitação – um conjunto de áre-
as que tratam de questões que acabam tendo repercussões
em relação à segurança das mulheres”, reforça Leila Linhares
Barsted, que atualmente é a representante brasileira no
MESECVI – Mecanismo de Acompanhamento da Imple-
mentação da Convenção Interamericana para Prevenir, Pu-
nir e Erradicar a Violência contra a Mulher da Organização
dos Estados Americanos (OEA).

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Os desafios para tornar os direitos, serviços e políticas públi-


cas previstos no texto legislativo uma realidade para todas O que diz o Título I
as mulheres que vivem em diferentes realidades no Brasil, da Lei Maria da Penha
entretanto, ainda são muitos. Passam por obstáculos como DISPOSIÇÕES PRELIMINARES
desconstruir o machismo e racismo institucional, promover
Art. 1o Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir
uma maior conscientização da sociedade sobre as desigual-
a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos
dades de gênero, oferecer respostas para além dos aspec- termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da
tos punitivos da Lei e, para tudo isso, contar com a devida Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
prioridade política e orçamentária – ou seja, com o com- Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana
promisso do poder público para implementação de políticas para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mu-
de Estado que não sejam descontinuadas nas alternâncias lher e de outros tratados internacionais ratificados pela
de governos, conforme apontam especialistas entrevistados República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação
para este especial. dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às
mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Art. 2o Toda mulher, independentemente de classe,
raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível edu-
cacional, idade e religião, goza dos direitos fundamen-
tais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas
as oportunidades e facilidades para viver sem violência,
preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoa-
mento moral, intelectual e social.

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Art. 3o Serão asseguradas às mulheres as condições


para o exercício efetivo dos direitos à vida, à segu-
rança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura,
à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer,
ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao
respeito e à convivência familiar e comunitária.
§ 1o O poder público desenvolverá políticas que
visem garantir os direitos humanos das mulheres
no âmbito das relações domésticas e familiares
no sentido de resguardá-las de toda forma de ne-
gligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão.
§ 2o Cabe à família, à sociedade e ao poder públi-
co criar as condições necessárias para o efetivo
exercício dos direitos enunciados no caput.
Art. 4o Na interpretação desta Lei, serão considera-
dos os fins sociais a que ela se destina e, especial-
mente, as condições peculiares das mulheres em situ-
ação de violência doméstica e familiar.

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Compreender as manifestações

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violentas da desigualdade de
gênero é fundamental

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Compreender as manifestações
violentas da desigualdade de
gênero é fundamental

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pós 10 anos de vigência da moral ou patrimonial. De acordo com das desigualdades de gênero por todas
Lei Maria da Penha no Bra- o Dossiê Violência contra as Mulheres, as áreas envolvidas na sua efetivação.
sil, a efetivação do direito de a Lei Maria da Penha enquanto marco “É importante desnaturalizar o pensa-
viver sem violência no dia a legal representa um reconhecimento mento e entender que o gênero não
dia das mulheres enfrenta do Estado brasileiro de que os papéis está no corpo, não é uma diferença
um forte obstáculo cultural: a incompre- associados aos gêneros feminino e biológica entre homens e mulheres. Ser
ensão da desigualdade de gênero e de masculino e o lugar privilegiado ocupa- homem ou ser mulher é um aprendiza-
seus efeitos, inclusive por uma parcela do pelo masculino nas relações geram do cultural que acontece desde antes
dos profissionais que atuam na rede de vulnerabilidades para as mulheres, que de a gente nascer, sendo que a própria
atendimento a mulheres cotidianamente. acabam sendo mais expostas social- violência dos homens é um aprendi-
mente a certos tipos de violações de zado cultural”, sintetiza a antropóloga
A Lei define violência doméstica e direitos e violências, como as que acon- e pesquisadora Heloísa Buarque de
familiar contra a mulher como qualquer tecem nas relações íntimas. Almeida, do Núcleo de Estudos sobre
ação ou omissão baseada no gênero Marcadores Sociais da Diferença do
que lhe cause morte, lesão, sofrimen- A Lei Maria da Penha reforça, as- Departamento de Antropologia da Uni-
to físico, sexual ou psicológico e dano sim, a necessidade da compreensão versidade de São Paulo.

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Compreender as manifestações violentas
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Quando as desigualdades se No Brasil, dado o histórico escra-


materializam em violências vista, o racismo é uma das principais
barreiras ao direito de viver sem vio-
lência. Os dados do Mapa da Violên-
“Quando a gente diz para um menino que ele não pode cia 2015 revelam que o número anu-
chorar, quando ensina a lutar nas ‘brincadeiras’, pode estar en- al de mortes violentas de mulheres
sinando sem perceber a bater e a xingar quando estiver infeliz, negras aumentou 54% em dez anos,
a ser violento. As meninas, por outro lado, desde criança, são passando de 1.864, em 2003, para
ensinadas a brincar de boneca, de casinha, a sentar de perna 2.875, em 2013. Chama atenção que,
fechada. Ou seja, o gênero tem muito a ver com a educação, no mesmo período, a quantidade anu-
com esses papéis que vamos moldando e com uma moralidade al de homicídios de mulheres brancas
sexual que é diferente para homens e mulheres”, exemplifica diminuiu 9,8%, caindo de 1.747, em
Heloísa Buarque de Almeida, ressaltando que os papéis e 2003, para 1.576, em 2013.
relações de gênero mudam ao longo da história e as desi-
gualdades não são iguais para todas as pessoas, variando Para a defensora pública Dulcielly
não só com base no gênero, mas na raça, idade e classe. Nóbrega de Almeida, as raízes da vio-
lência doméstica e familiar são parte
substancial de uma sociedade pro-
fundamente machista e sexista. Nes-
se sentido, o trabalho para promover
mudanças culturais é essencial.

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da desigualdade de gênero é fundamental

Em sentido semelhante, a major


“A partir do momento em que o homem é criado com a per- Denice Santiago aponta que é funda-
cepção de que a mulher é propriedade dele e não aceita o fim do mental que a Lei Maria da Penha seja
relacionamento – ainda que seja responsabilizado pela violência cumprida integralmente. “Essa lei não
– ele pode voltar a cometê-la, se tiver outra parceira. A sociedade veio para apenas prender o homem
ensina o homem a exercer a masculinidade dessa forma e a usar que agride, mas para educar uma so-
a violência como recurso para a solução dos seus conflitos. E, por ciedade e ressignificar uma conduta so-
outro lado, temos que refletir por que certas violências atingem cial que era naturalizada. Transformar
mais as mulheres, sendo as mulheres negras as mais vulneráveis. uma construção social demanda muito
Se não, ficaremos apenas criando juizados e varas especializadas tempo e 10 anos é pouco, mas já foi
em violência doméstica e familiar, sem que os números reduzam”, um começo muito importante”, avalia.
explica ainda a defensora, que coordena a Comissão de Prote-
ção e Defesa dos Direitos da Mulher do Colégio Nacional dos Enxergar e enfrentar os
Defensores Públicos Gerais (Condege). diferentes tipos de violência
Além de compreender a constru-
ção de relações hierárquicas e desi-
guais que resultam em violações, ou-
tro ponto destacado na Lei Maria da
Penha é a importância de examinar
atentamente cada caso, uma vez que
a violência de gênero pode acontecer

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Compreender as manifestações violentas
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em diversas manifestações e em dife- “Falta capacitação dos profissio- liar contra a mulher. A gente precisa
rentes relações e contextos. nais, especialmente dos que fazem o saber qual é o contexto que gerou a
primeiro atendimento, para entender violência. Não podemos só trabalhar
A Lei Maria da Penha define cinco que a violência física é só mais um tra- com padrões absolutos, temos que
formas de violência doméstica e fami- ço de um contexto muito mais global ir no cerne das relações familiares,
liar, ressaltando que não existe apenas de violência, que inclui a violência mo- compreendê-las. Às vezes, a gente vê
a violência que deixa marcas físicas ral, humilhações, a violência psicoló- alguns padrões, por exemplo, o juiz
evidentes (ver box ao final do texto) e gica, a restrição da autodeterminação pode olhar um caso e dizer ‘mulher
não limita perfis de vítimas e agresso- da mulher. E, por outro lado, muitas contra mulher raramente é violência
res: as agressões cometidas pelo par- vezes a gente só consegue diferenciar doméstica, já homem contra a mulher
ceiro, atual ou ex, podem ser as mais se uma agressão física foi praticada sempre é’ e na prática sabemos que
comuns, mas não são regra e, embora num contexto de violência doméstica pode haver muitas configurações. Es-
apareçam como maioria nas pesquisas, e familiar se há a descrição de todo ses padrões, quando colocados como
os agressores não são necessariamente esse contexto anterior, de como é a absolutos, levam a equívocos, então
homens, conforme explica a defensora rotina das pessoas envolvidas no caso, é preciso analisar em quais bases de
pública do Estado de São Paulo, Juliana já que não é a presença de um homem discriminação de gênero aquela famí-
Belloque, em entrevista ao Informativo de um lado e de mulher do outro que lia ainda trabalha ou não”, explica a
Compromisso e Atitude. configura violência doméstica e fami- defensora Juliana Belloque.

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Em relação aos tipos de violência, as, inventar histórias e/ou falar mal da mulher que busca apoio para romper o
para além da violência física e sexual, há mulher para os outros com o intuito de ciclo de violência e, muitas vezes, acaba
a violência psicológica que geralmente diminuí-la perante o seu círculo social. tendo seu relato minimizado por profis-
dá sustentação para a manifestação de sionais que deveriam acolhê-la no serviço
outras violências. De acordo com a carti- Reconhecer as diferentes violências é ou mesmo sendo de alguma forma cul-
lha Viver sem violência é direito de toda essencial para evitar a revitimização da pabilizada pela violência sofrida.
mulher, a violência psicológica se mani-
festa em ações como xingar, humilhar,
ameaçar, intimidar e amedrontar; criti-
car continuamente, desvalorizar os atos “Quando se fala em Lei Maria da Penha, e isso ficou claro
e desconsiderar a opinião ou decisão nos episódios recentes, ela é associada à violência física, uma
da mulher; controlar tudo o que ela faz, das violências que ela combate. Não é perceptível aos olhos
quando sai, com quem e aonde vai; além das pessoas no geral que existem outras formas de violência,
de usar os filhos para fazer chantagem. como a patrimonial, moral, e psicológica – essa talvez a pior de
todas, porque é lenta – e a violência sexual. A população no ge-
A publicação aponta também ral só se preocupa com a física, mas até chegar a ela, a mulher
exemplos da violência patrimonial – passou por tantas outras violências que não são perceptíveis”,
como controlar, reter ou tirar dinheiro ressalta a conselheira Daldice Santana, coordenadora do
da mulher – e da violência moral, como Movimento Permanente de Combate à Violência Domésti-
fazer comentários ofensivos na frente ca e Familiar do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
de estranhos e/ou conhecidos; humi-
lhar a mulher publicamente; expor a
vida íntima do casal para outras pesso-
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res registrados em 2013, 50,3% foram


cometidos por familiares ou parceiros
– ou seja, das 13 mortes violentas de
mulheres registradas por dia, sete fo-
ram feminicídios praticados por pesso-
mas tanto de violência física como de as que tiveram ou tinham relações ínti-
violência sexual. Segundo a pesquisa, mas de afeto com a mulher, nos termos
a maioria das agressões conjugais re- estabelecidos na Lei Maria da Penha.
flete um padrão de abuso contínuo e
pode ter consequências como dores
pelo corpo, dificuldades para realizar
tarefas cotidianas, depressão, abortos
e tentativas de suicídio.
É importante atentar ainda que, Podem ainda se perpetuar até o
na maior parte dos casos, as diferen- extremo do assassinato, o feminicídio.
tes formas de violência acontecem de De acordo com o Mapa da Violência
modo combinado. No estudo multipa- 2015, dos 4.762 homicídios de mulhe-
íses da OMS realizado no Brasil (Estu-
diomultipaís de la OMS sobre salud de
lamujer y violencia doméstica contra
lamujer, 2002), cerca de 30% das mu-
lheres que disseram ter sido agredidas
pelo parceiro afirmam que foram víti-
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Compreender as manifestações violentas
da desigualdade de gênero é fundamental

O que diz o Título II


da Lei Maria da Penha III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual
DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA o agressor conviva ou tenha convivido com a
E FAMILIAR CONTRA A MULHER ofendida, independentemente de coabitação.
Parágrafo único. As relações pessoais
CAPÍTULO I enunciadas neste artigo independem de
orientação sexual.
DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 6o A violência doméstica e familiar contra a mu-
Art. 5 Para os efeitos desta Lei, configura violência
o
lher constitui uma das formas de violação dos direitos
doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou humanos.
omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou CAPÍTULO II
patrimonial: (Vide Lei complementar nº 150, de 2015) DAS FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E
I – no âmbito da unidade doméstica, compreen- FAMILIAR CONTRA A MULHER
dida como o espaço de convívio permanente de Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar con-
pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive tra a mulher, entre outras:
as esporadicamente agregadas;
I – a violência física, entendida como qualquer
II – no âmbito da família, compreendida como a conduta que ofenda sua integridade ou saúde
comunidade formada por indivíduos que são ou corporal;
se consideram aparentados, unidos por laços na-
turais, por afinidade ou por vontade expressa;

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Compreender as manifestações violentas
da desigualdade de gênero é fundamental

II – a violência psicológica, entendida como


qualquer conduta que lhe cause dano emocio-
nal e diminuição da auto-estima ou que lhe a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou
prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento à prostituição, mediante coação, chantagem, su-
ou que vise degradar ou controlar suas ações, borno ou manipulação; ou que limite ou anule o
comportamentos, crenças e decisões, mediante exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;
ameaça, constrangimento, humilhação, manipu- IV – a violência patrimonial, entendida como
lação, isolamento, vigilância constante, perse- qualquer conduta que configure retenção, sub-
guição contumaz, insulto, chantagem, ridicula- tração, destruição parcial ou total de seus ob-
rização, exploração e limitação do direito de ir jetos, instrumentos de trabalho, documentos
e vir ou qualquer outro meio que lhe cause pre- pessoais, bens, valores e direitos ou recursos
juízo à saúde psicológica e à autodeterminação; econômicos, incluindo os destinados a satisfa-
III – a violência sexual, entendida como qualquer zer suas necessidades;
conduta que a constranja a presenciar, a manter V – a violência moral, entendida como qual-
ou a participar de relação sexual não desejada, quer conduta que configure calúnia, difama-
mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da ção ou injúria.
força; que a induza a comercializar ou a utilizar,
de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impe-
ça de usar qualquer método contraceptivo ou que

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Lei Maria da Penha desafia

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Estado a integrar políticas públicas
e promover mudança cultural

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Lei Maria da Penha desafia Estado a integrar
políticas públicas e promover mudança cultural

A
pós 10 anos de vigência da te contexto, os sistemas de segurança
Lei Maria da Penha no Bra- e justiça acabavam reforçando uma
sil, a efetivação do direito de cenário de revitimização e aceitação
viver sem violência no dia a social e institucional da violência, que
dia das mulheres enfrenta corroboram com a sua perpetuação.
um forte obstáculo cultural: a incompre-
ensão da desigualdade de gênero e de
seus efeitos, inclusive por uma parcela
“Com a Lei Maria da Penha houve uma conscien-
dos profissionais que atuam na rede de
tização maior por parte de toda a população contra
atendimento a mulheres cotidianamente.
essa prática, de que isso não é natural, muito menos
aceitável. Isso foi um ganho muito relevante”, aponta
A Lei Maria da Penha é considera-
promotora de justiça do Ministério Público do Estado
da um grande avanço legislativo por
de São Paulo (MPSP) Valéria Scarance.
profissionais e especialistas que atuam
na sua efetivação. Isto porque antes da
sua promulgação, os casos de violência
doméstica e familiar eram processados Além de apontar a banalização do tensão é ir muito além da resposta
no âmbito dos crimes de menor poten- problema, a Lei Maria da Penha indicou imediata nos sistemas de segurança
cial ofensivo, sob a Lei nº 9.099/1995, também caminhos para a estruturação e justiça, buscando construir as bases
e não havia respostas estruturadas de uma política pública integrada e de uma mudança social e cultural que
para o acolhimento e fortalecimento da multidisciplinar de enfrentamento à ajude a prevenir a violência contras as
mulher em situação de violência. Nes- violência. Mostrou ainda que sua pre- mulheres.

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Políticas públicas integradas “A Lei Maria da Penha traz uma visão


para uma resposta completa integral, mostra que violência contra as
No terceiro título da Lei Maria da mulheres é o ponto máximo de um pro-
Penha – o mais extenso do marco legal cesso de discriminação e que, portanto, é
– estão indicados os parâmetros para a necessário que as mulheres tenham aces-
implementação de medidas integradas so a políticas públicas de modo ampliado”,
de prevenção, assistência à mulher e de explica Leila Linhares Barsted, advogada e “Se o foco fica só no processo, não
atendimento dos chamados pelas auto- diretora da ONG CEPIA – Cidadania, Estu- conseguimos dar conta da complexida-
ridades policiais (ver no box abaixo). do, Pesquisa, Informação e Ação. de de uma violência que afeta relações
íntimas e a organização do cotidia-
De acordo com a assistente social no. É preciso ampliar a visão sobre as
Débora Figureau, que atua no enfren- respostas para a violência – quando a
tamento à violência contra mulher na I gente fala de educação, saúde e assis-
e III Varas de Violência Doméstica e Fa- tência, estamos falando do básico de
miliar contra Mulher, desde 2008, em que essa mulher que chega na rede
Recife (PE), é fundamental que o pro- está precisando”, ressalta a assistente
cesso criminal seja acompanhado da social, explicando que, apesar da violên-
efetivação de direitos sociais para que cia doméstica e familiar acontecer em
a mulher tenha condições de romper o todas as classes sociais, são as mulheres
ciclo de violência. mais pobres e em sua maioria negras
que buscam os serviços públicos, diante
do histórico brasileiro de exploração e
violações baseadas na raça e etnia.
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políticas públicas e promover mudança cultural

A Lei Maria da Penha “Quando a Lei diz que a saúde faz exemplo”, explica.
propõe respostas múltiplas, parte da rede assistencial à violên-
inclusive no campo da saúde cia doméstica e familiar, ela aponta a Para que isto se torne prática nos
Além das respostas múltiplas, a responsabilidade de respondermos de atendimentos de saúde, sobretudo no
preparação dos profissionais da rede forma mais ampla e não só atender sistema público, é preciso, entretanto,
de atendimento é outro ponto funda- pontualmente. A Lei traz a necessida- que haja a capacitação sobre a violên-
mental para que estes não sejam re- de de problematizar que a violência de cia contra as mulheres, mas não só: é
produtores de padrões discriminatórios qualquer maneira tem que ser assistida preciso também sensibilizar os profis-
que são apontados pelas especialistas dentro dos serviços de saúde, e não ne- sionais em relação às desigualdades
como verdadeiros obstáculos para o cessariamente só a violência física, por de gênero, raça e classe no país.
acesso a direitos pelas mulheres.

De acordo com a professora de saú-


de coletiva da Faculdade de Ciências “Não basta a perspectiva de gênero, existem
Médicas da Santa Casa de São Paulo, marcadores importantes de raça e classe social que
Maria Fernanda Terra, no campo da saú- interferem na assistência. Muitas vezes, os profissio-
de, por exemplo, a Lei trouxe um avanço nais – na maioria médicos, brancos, de classes altas
importante ao apontar a responsabili- e que estudaram nas melhores escolas – se veem
dade da área em responder pela violên- distanciados das mulheres que procuram o SUS e
cia não apenas no sentido de dar conta acabam culpabilizando a mulher por viver numa
das lesões decorrentes das agressões, situação de pobreza, por sofrer violência”, pontua a
mas de integrar uma rede com o dever pesquisadora, Maria Fernanda Terra.
de oferecer respostas múltiplas.
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políticas públicas e promover mudança cultural

O problema não se restringe ao Portas de entrada não meiro ciclo, temos que deixar ela forte,
setor de saúde, mas a todas as áreas podem revitimizar empoderada para as suas futuras rela-
que compõem a rede de atendimento O trabalho de sensibilização dos ções”, aponta a major Denice Santiago,
nos parâmetros da Lei Maria da Penha. profissionais é especialmente impor- que atualmente coordena a Ronda
Neste cenário, é fundamental que as tante, apontam as especialistas, na- Maria da Penha na Bahia, um serviço
instituições atuem com perspectiva de queles serviços que são considerados policial que acompanha mulheres para
gênero e se responsabilizem por coibir as portas de entrada para a rede de fiscalizar o cumprimento de medidas
o racismo institucional – definido como atendimento por serem os mais pro- protetivas de urgência.
o fracasso das instituições em garantir curados pelas mulheres numa situação
direitos e acesso das pessoas a serviços de emergência, como a própria área da A major lembra ainda que este traba-
em virtude da sua raça/cor, que se ex- saúde e também os serviços policiais. lho de desconstrução de padrões discri-
pressa tanto no interior das instituições, minatórios não deve se restringir aos pro-
desde os processos seletivos e progra- “A autoridade policial que atende fissionais dos serviços, mas atingir toda a
mas de progressão de carreira, quanto um chamado tem que entender que sociedade, na qual são construídos os pre-
no processo de formulação, implemen- até ligar para o 190 a mulher já passou conceitos dos profissionais que irão atuar
tação e monitoramento de políticas por diversas violências e que essa liga- da rede de atendimento. “A prevenção é
públicas, conforme aponta o Guia de ção é um ato de coragem. Se o Estado fundamental, as escolas devem trabalhar
Enfrentamento ao Racismo Institucional não lhe der uma cobertura para ter o com esse tema, discutir com as novas ge-
e Desigualdade de Gênero (Geledés – direito à vida tutelado, essa mulher vai rações, criar centros para responsabiliza-
Instituto da Mulher Negra, 2013). recuar. E, para além de romper o pri- ção de agressores”, recomenda a major.

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Lei Maria da Penha desafia Estado a integrar
políticas públicas e promover mudança cultural

Igualdade de gênero e
raça nas mídias e escolas
cotidianamente
Neste contexto, as especialistas apontam que as mudan- De acordo com a especialista, implementar ações nesta fren-
ças legislativas foram de grande importância, mas não bastam te tem sido um grande desafio para a plena efetivação da Lei
para o trabalho de prevenção – campo que demanda o enga- Maria da Penha. “Sabemos que vivemos num contexto cultural
jamento das instituições e envolve os sistemas de educação e muito heterogêneo, que não há valores iguais em toda a socie-
ensino, mídia e propaganda em prol de uma mudança cultural. dade. E sabemos também que a cultura muda, que é algo móvel.
Mas é sempre um desafio imaginar como fazê-la mudar”, explica.

“Sabemos que não é a punição que faz o cri- Para a pesquisadora, a resposta para este desafio passa
me deixar de acontecer – então, esse é um aspecto pela promoção permanente de ações de reflexão sobre cons-
importante, mas que não é suficiente, porque essa truções culturais discriminatórias e violentas, sobretudo em
violência tem relação com uma forma das pessoas campos que atingem as pessoas no seu cotidiano, como a edu-
pensarem. A Lei aponta que é preciso ter ações edu- cação e a mídia. “A mídia é um campo importante, na medida
cativas, incluir a mídia, que é preciso desnaturalizar em que ela funciona para mudar a cabeça das pessoas com
papéis vistos como de homens e mulheres na socie- aquilo que é mais repetitivo, que é mais recorrente. Ou seja,
dade”, explica a antropóloga, professora e pesquisa- não adianta ter uma campanha pelo fim da violência em mar-
dora da USP, Heloísa Buarque de Almeida. ço, por conta do Dia Internacional da Mulher, e parar por aí,
esse trabalho tem que ser constante, tem que ser repetitivo. A
ideia da igualdade de gênero e raça tem que permear as mí-
dias e os conteúdos das escolas cotidianamente”, recomenda.

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Lei Maria da Penha desafia Estado a integrar
políticas públicas e promover mudança cultural

O que diz o Título III


da Lei Maria da Penha às causas, às consequências e à frequência da vio-
lência doméstica e familiar contra a mulher, para
DA ASSISTÊNCIA À MULHER EM
a sistematização de dados, a serem unificados na-
SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA cionalmente, e a avaliação periódica dos resulta-
E FAMILIAR dos das medidas adotadas;
III – o respeito, nos meios de comunicação social,
CAPÍTULO I
dos valores éticos e sociais da pessoa e da famí-
DAS MEDIDAS INTEGRADAS lia, de forma a coibir os papéis estereotipados que
DE PREVENÇÃO legitimem ou exacerbem a violência doméstica e
Art. 8o A política pública que visa coibir a violência do- familiar, de acordo com o estabelecido no inciso
méstica e familiar contra a mulher far-se-á por meio de III do art. 1o, no inciso IV do art. 3o e no inciso IV
um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do art. 221 da Constituição Federal;
do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-go-
IV – a implementação de atendimento policial es-
vernamentais, tendo por diretrizes:
pecializado para as mulheres, em particular nas
I – a integração operacional do Poder Judiciário, Delegacias de Atendimento à Mulher;
do Ministério Público e da Defensoria Pública
V – a promoção e a realização de campanhas
com as áreas de segurança pública, assistência
educativas de prevenção da violência doméstica
social, saúde, educação, trabalho e habitação;
e familiar contra a mulher, voltadas ao público
II – a promoção de estudos e pesquisas, estatísti- escolar e à sociedade em geral, e a difusão desta
cas e outras informações relevantes, com a pers- Lei e dos instrumentos de proteção aos direitos
pectiva de gênero e de raça ou etnia, concernentes humanos das mulheres;

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Lei Maria da Penha desafia Estado a integrar
políticas públicas e promover mudança cultural

VI – a celebração de convênios, protocolos, ajus- CAPÍTULO II


tes, termos ou outros instrumentos de promoção
DA ASSISTÊNCIA À MULHER EM SITUAÇÃO DE
de parceria entre órgãos governamentais ou entre
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR
estes e entidades não-governamentais, tendo por
objetivo a implementação de programas de erra- Art. 9o A assistência à mulher em situação de violência
dicação da violência doméstica e familiar contra doméstica e familiar será prestada de forma articulada e
a mulher; conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei
Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de
VII – a capacitação permanente das Polícias Ci-
Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre
vil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de
outras normas e políticas públicas de proteção, e emer-
Bombeiros e dos profissionais pertencentes aos
gencialmente quando for o caso.
órgãos e às áreas enunciados no inciso I quanto às
questões de gênero e de raça ou etnia; § 1o O juiz determinará, por prazo certo, a inclu-
são da mulher em situação de violência doméstica
VIII – a promoção de programas educacionais
e familiar no cadastro de programas assistenciais
que disseminem valores éticos de irrestrito res-
do governo federal, estadual e municipal.
peito à dignidade da pessoa humana com a pers-
pectiva de gênero e de raça ou etnia; § 2o O juiz assegurará à mulher em situação de
violência doméstica e familiar, para preservar sua
IX – o destaque, nos currículos escolares de todos
integridade física e psicológica:
os níveis de ensino, para os conteúdos relativos
aos direitos humanos, à eqüidade de gênero e de I – acesso prioritário à remoção quando
raça ou etnia e ao problema da violência domésti- servidora pública, integrante da adminis-
ca e familiar contra a mulher. tração direta ou indireta;

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Lei Maria da Penha desafia Estado a integrar
políticas públicas e promover mudança cultural

II – manutenção do vínculo trabalhista, deste artigo ao descumprimento de medida pro-


quando necessário o afastamento do local tetiva de urgência deferida.
de trabalho, por até seis meses.
Art. 11. No atendimento à mulher em situação de vio-
§ 3o A assistência à mulher em situação de violên- lência doméstica e familiar, a autoridade policial deverá,
cia doméstica e familiar compreenderá o acesso entre outras providências:
aos benefícios decorrentes do desenvolvimento
I – garantir proteção policial, quando necessário,
científico e tecnológico, incluindo os serviços
comunicando de imediato ao Ministério Público e
de contracepção de emergência, a profilaxia das
ao Poder Judiciário;
Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e da
Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) II – encaminhar a ofendida ao hospital ou posto
e outros procedimentos médicos necessários e ca- de saúde e ao Instituto Médico Legal;
bíveis nos casos de violência sexual.
III – fornecer transporte para a ofendida e seus
CAPÍTULO III dependentes para abrigo ou local seguro, quando
DO ATENDIMENTO PELA houver risco de vida;
AUTORIDADE POLICIAL IV – se necessário, acompanhar a ofendida para
Art. 10. Na hipótese da iminência ou da prática de vio- assegurar a retirada de seus pertences do local da
lência doméstica e familiar contra a mulher, a autoridade ocorrência ou do domicílio familiar;
policial que tomar conhecimento da ocorrência adotará,
V – informar à ofendida os direitos a ela conferi-
de imediato, as providências legais cabíveis.
dos nesta Lei e os serviços disponíveis.
Parágrafo único. Aplica-se o disposto no caput

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Lei Maria da Penha desafia Estado a integrar
políticas públicas e promover mudança cultural

Art. 12. Em todos os casos de violência doméstica e criminais, indicando a existência de mandado
familiar contra a mulher, feito o registro da ocorrência, de prisão ou registro de outras ocorrências po-
deverá a autoridade policial adotar, de imediato, os se- liciais contra ele;
guintes procedimentos, sem prejuízo daqueles previstos
VII – remeter, no prazo legal, os autos do inquéri-
no Código de Processo Penal:
to policial ao juiz e ao Ministério Público.
I – ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência
§ 1o O pedido da ofendida será tomado a termo pela auto-
e tomar a representação a termo, se apresentada;
ridade policial e deverá conter:
II – colher todas as provas que servirem para o
I – qualificação da ofendida e do agressor;
esclarecimento do fato e de suas circunstâncias;
II – nome e idade dos dependentes;
III – remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito)
horas, expediente apartado ao juiz com o pedido III – descrição sucinta do fato e das medidas pro-
da ofendida, para a concessão de medidas prote- tetivas solicitadas pela ofendida.
tivas de urgência;
§ 2o A autoridade policial deverá anexar ao documento
IV – determinar que se proceda ao exame de cor- referido no § 1o o boletim de ocorrência e cópia de todos
po de delito da ofendida e requisitar outros exa- os documentos disponíveis em posse da ofendida.
mes periciais necessários;
§ 3o Serão admitidos como meios de prova os laudos
V – ouvir o agressor e as testemunhas; ou prontuários médicos fornecidos por hospitais e pos-
tos de saúde.
VI – ordenar a identificação do agressor e fa-
zer juntar aos autos sua folha de antecedentes

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Inovações jurídicas na

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Lei Maria da Penha: medidas
protetivas e defesa de direitos

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Inovações jurídicas na Lei Maria da Penha:
medidas protetivas e defesa de direitos

C
om objetivo de oferecer res- como as medidas protetivas de urgência para romper o ciclo de violência. Ao
postas práticas e efetivas e a obrigatoriedade do defensor para a mesmo tempo, desafiam os profissio-
para as diferentes situações mulher em todos os atos processuais. nais responsáveis por sua aplicação a
de violência doméstica e fa- É uma lei bastante progressista, com promoverem uma revisão de práticas e
miliar, a Lei Maria da Penha ferramentas importantes à disposição hábitos setoriais.
trouxe inovações para o sistema de do poder judiciário e que, se bem apli-
justiça, como a própria necessidade de cadas, podem promover a prevenção, o Medidas protetivas de
o campo do Direito atuar com perspec- atendimento multidisciplinar integrado urgência cíveis e criminais
tiva de gênero (saiba mais). De acordo e humanizado”, considera a defensora Entre os aspectos mais importantes
com as operadoras do Direito especia- pública Dulcielly Nóbrega de Almeida, da Lei nº 11.340/2006 estão as medi-
lizadas na aplicação do marco legal, a que coordena a Comissão de Proteção das judiciais de proteção às mulheres
Lei n º 11.340/2006 trouxe duas im- e Defesa dos Direitos da Mulher do Co- em situação de violência doméstica –
portantes novidades no campo jurídi- légio Nacional dos Defensores Públicos um dispositivo previsto no quarto título
co: as medidas protetivas de urgência Gerais (Condege). da Lei Maria da Penha (ver box abaixo)
e a previsão de um defensor público ou que prevê que se adotem rapidamen-
advogado para defesa dos direitos da Ambas inovações podem ser decisi- te ações que podem ser fundamentais
vítima, e não apenas do réu. vas para que haja uma resposta eficien- numa situação emergencial, como
te do poder público às necessidades da afastar o agressor da vítima ou sus-
“A Lei trouxe inovações processuais, mulher que busca o auxílio do Estado pender o direito de posse de armas.

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Inovações jurídicas na Lei Maria da Penha:
medidas protetivas e defesa de direitos

As medidas protetivas são aponta- O título IV da Lei informa que o pedido relação parental não se sobreponha ao
das como uma grande inovação da Lei das medidas pode ser feito pela própria resguardo da integridade da mulher.
e uma importante ferramenta para pre- mulher na delegacia, pelo advogado ou
servar a integridade física e psicológica defensor da vítima ou ainda pelo Ministério “Na maioria das vezes o juiz deter-
das vítimas e também para prevenir que Público. O artigo 18 do marco legal esta- mina o afastamento do lar e proíbe a
a violência chegue ao extremo do crime belece que, recebido o pedido, o juízo tem aproximação, mas o rol de medidas
contra a vida, o feminicídio. outras 48 horas como prazo limite para ex- protetivas que constam na Lei é mera-
pedir a medida protetiva. E o artigo 22 apre- mente exemplificativo. Podemos pedir
senta um leque de possibilidades de ações várias medidas protetivas, dependendo
de proteção à mulher (ver box ao final). do caso concreto: restituição de bens,
“As medidas protetivas são funda- suspensão de porte de arma, restrição
mentais, não só para a sensação de São inúmeras as medidas que po- ao direito de visitas aos filhos meno-
segurança da mulher, que se sente dem ser concedidas para proteger a inte- res, suspensão de procuração, proibi-
mais protegida, como também para gridade física, sexual, psicológica, moral ção de venda de determinado bem.
agir como um freio sobre o agressor, ou patrimonial da mulher. As medidas São inúmeras as medidas que podem
uma vez que há um fator coercitivo podem ter natureza híbrida – ou seja, ser concedidas e que visam proteger a
muito importante de fazer cumprir a podem abordar tanto medidas penais, integridade física e psicológica da mu-
decisão do juiz”, frisa a defensora Dul- como o afastamento e monitoramento lher, além de evitar que ela sofra novas
cielly Nóbrega de Almeida. do agressor, quanto cíveis, como preser- violências, seja física, psicológica, mo-
var a segurança alimentar da mulher e ral ou patrimonial”, explica a defensora
dos filhos ou assegurar que o direito à Dulcielly Nóbrega de Almeida.

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Inovações jurídicas na Lei Maria da Penha:
medidas protetivas e defesa de direitos

Expedição das medidas deve so penal, já que, dado seu uso em situ-
ser ágil e independente de ações de urgência, a rapidez na expe-
inquérito ou processo penal dição é essencial para sua efetividade,
As medidas protetivas devem ainda conforme ressalta a promotora Valéria
ter caráter autônomo, independendo Scarance, do Ministério Público do Es-
da instauração de inquérito ou proces- tado de São Paulo (MPSP).

“Apesar de não haver vinculação expressa da proteção a um


procedimento criminal, firmou-se o entendimento – ainda predo-
minante – de que as medidas protetivas devem estar vinculadas
a um inquérito ou processo, dada a sua natureza cautelar. Des-
vincular as medidas protetivas da instauração de investigação ou
processo significa salvar vidas. Significa que a mulher pode ser
prontamente atendida, protegida e resgatada sem carregar mais
um fardo, o de ‘acusadora’ do parceiro e protagonista da prova”, É importante destacar que, se a
explica Valéria Scarance, que também é coordenadora geral da mulher pedir, os agentes de segurança
Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Fami- pública e justiça têm o dever de fazer
liar contra a Mulher (Copevid), em artigo realizado para o Informa- a solicitação das medidas ao sistema
tivo Compromisso e Atitude. de justiça, uma vez que ainda são re-
correntes os casos em que o profissio-

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Inovações jurídicas na Lei Maria da Penha:
medidas protetivas e defesa de direitos

nal considera que a mulher ‘está exa- pelas vítimas ou tornozeleiras eletrônicas que estamos presentes. Muitas vezes,
gerando’ e não reconhece a gravidade de monitoramento pelos agressores. a mulher vítima de violência se sente
da violência doméstica e familiar, mui- abandonada, ela já passou por diversos
tas vezes levando aos inúmeros casos Na Bahia, por exemplo, a Ronda tipos de agressão, e não é incomum
de feminicídio que são considerados Maria da Penha é especializada no que a família ou os amigos achem que
mortes evitáveis (saiba mais no Dos- acompanhamento de mulheres que ela está errada em denunciar. Ainda é
siê Feminicídio). tenham medidas protetivas expedidas comum aquele tipo de pensamento de
pelo Poder Judiciário. “Toda vez que que o agressor ‘é o cara que joga bola
Outro ponto importante para a efe- recebemos uma Medida Protetiva de comigo’, ‘que me emprestou uma gra-
tivação da medida é o acompanhamen- Urgência (MPU) dialogamos com seu na’, que ‘é um bom pai’ – sem enten-
to posterior do seu cumprimento pelo agressor, explicamos passo a passo qual der que esse homem lá fora pode ser
poder público, a exemplo de iniciativas é a medida e que ele poderá ser preso legal, mas que enquanto companheiro,
como as patrulhas e rondas específicas caso a descumpra. Explicamos também marido, é perigoso e violento. Por isso,
para acompanhar essas medidas que para as mulheres que elas receberão é fundamental mostrarmos que esta-
têm surgido em várias cidades brasileiras nossas visitas aleatórias – ou seja, sem mos do lado da mulher, nosso papel é
(conheça algumas iniciativas), e o uso de agendamento, já que a proposta da ron- empoderá-la”, reforça a major Denice
dispositivos ou aplicativos de emergência da é passar segurança e apoio, mostrar Santiago, coordenadora da ronda.

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Inovações jurídicas na Lei Maria da Penha:
medidas protetivas e defesa de direitos

Defesa dos direitos da riscos. “A Defensoria Pública tem uma aponta a promotora Valéria Scarance.
mulher: assistência e atuação muito relevante ao ingressar
Informação com as ações cíveis, como de separa- O acolhimento jurídico vai permi-
Outra inovação jurídica da Lei Maria ção, divórcio, guarda de filhos, medidas tir que a atenção não fique restrita
da Penha é a previsão de um defensor patrimoniais, que também são medidas ao problema da violência domésti-
público ou advogado para defender os urgentes e importantes. Imagine uma ca, abarcando demandas correlatas,
direitos das vítimas – assistência que situação em que há a restrição de visitas como ajuizar uma ação de divórcio, de
pode ser decisiva para que a mulher aos filhos numa medida protetiva de ur- alimentos, de guarda dos filhos, de re-
seja informada e orientada sobre seus gência, como será se na vara de família gulamentação do direito de visitas, de
direitos e se apodere deles para romper for estabelecido o direito de visitas?”, danos morais, entre outras.
o ciclo de violência, conforme aponta a
defensora Juliana Belloque, no livro Lei
Maria da Penha comentada em uma
perspectiva jurídico-feminista (Carmen “Isso vai fazer com que a mulher seja bem assistida e tenha garan-
Hein de Campos, org., 2011). tidos seus direitos, seja para conseguir uma medida protetiva ou para
conseguir uma ação na vara de família. O defensor ou advogado tam-
O trabalho de defesa dos direitos é bém vai zelar para que não ocorram perguntas discriminatórias e que
importante ainda para que haja cone- reforcem estereótipos, para que haja uma boa condução do processo e
xão entre processos que correm em es- para que ela não seja revitimizada. Isso dá segurança para a mulher, que
feras diferentes, ajudando a evitar que sabe que alguém estará ali para recorrer por ela se for preciso e tomar as
uma decisão cível exponha a mulher a medidas necessárias”, explica a defensora Dulcielly Nóbrega de Almeida.

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Inovações jurídicas na Lei Maria da Penha:
medidas protetivas e defesa de direitos

O que diz o Título IV


Nestes casos de defesa dos direitos da Lei Maria da Penha
da vítima, Defensoria e Ministério Pú- DOS PROCEDIMENTOS
blico atuam de forma parceira no pro-
cesso penal. “Na violência doméstica e CAPÍTULO I
familiar, essas instituições estão juntas DISPOSIÇÕES GERAIS
na rede, ambas devem atuar para ga-
Art. 13. Ao processo, ao julgamento e à execução das
rantir a efetivação dos direitos da mu- causas cíveis e criminais decorrentes da prática de vio-
lher e que ela seja protegida, seja pela lência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-ão
medida protetiva ou por meio do bom as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Ci-
andamento do processo penal. O Mi- vil e da legislação específica relativa à criança, ao adoles-
nistério Público atua como fiscal da lei cente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido
e autor do processo penal. É por meio nesta Lei.
dele que a condenação do acusado vai Art. 14. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar
ocorrer. Quando atuamos juntos faze- contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com com-
mos com que a mulher se sinta mais petência cível e criminal, poderão ser criados pela União,
protegida”, complementa a defensor no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados,
para o processo, o julgamento e a execução das causas
decorrentes da prática de violência doméstica e familiar
contra a mulher.
Parágrafo único. Os atos processuais poderão

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Inovações jurídicas na Lei Maria da Penha:
medidas protetivas e defesa de direitos

realizar-se em horário noturno, conforme dispu- CAPÍTULO II


serem as normas de organização judiciária.
DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA
Art. 15. É competente, por opção da ofendida, para os
Seção I
processos cíveis regidos por esta Lei, o Juizado:
Disposições Gerais
I – do seu domicílio ou de sua residência;
Art. 18. Recebido o expediente com o pedido da ofendi-
II – do lugar do fato em que se baseou a demanda;
da, caberá ao juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas:
III – do domicílio do agressor.
I – conhecer do expediente e do pedido e decidir
Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à sobre as medidas protetivas de urgência;
representação da ofendida de que trata esta Lei, só
II – determinar o encaminhamento da ofendida ao
será admitida a renúncia à representação perante o
órgão de assistência judiciária, quando for o caso;
juiz, em audiência especialmente designada com tal
finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvi- III – comunicar ao Ministério Público para que
do o Ministério Público. adote as providências cabíveis.
Art. 17. É vedada a aplicação, nos casos de violência Art. 19. As medidas protetivas de urgência poderão ser
doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Pú-
básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a blico ou a pedido da ofendida.
substituição de pena que implique o pagamento isola- § 1o As medidas protetivas de urgência poderão
do de multa. ser concedidas de imediato, independentemen-
te de audiência das partes e de manifestação do

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Inovações jurídicas na Lei Maria da Penha:
medidas protetivas e defesa de direitos

Ministério Público, devendo este ser prontamente novo decretá-la, se sobrevierem razões que a jus-
comunicado. tifiquem.
§ 2o As medidas protetivas de urgência serão apli- Art. 21. A ofendida deverá ser notificada dos atos proces-
cadas isolada ou cumulativamente, e poderão ser suais relativos ao agressor, especialmente dos pertinentes
substituídas a qualquer tempo por outras de maior ao ingresso e à saída da prisão, sem prejuízo da intimação
eficácia, sempre que os direitos reconhecidos nes- do advogado constituído ou do defensor público.
ta Lei forem ameaçados ou violados.
Parágrafo único. A ofendida não poderá entre-
§ 3o Poderá o juiz, a requerimento do Ministério gar intimação ou notificação ao agressor.
Público ou a pedido da ofendida, conceder novas
medidas protetivas de urgência ou rever aquelas já
concedidas, se entender necessário à proteção da Seção II
ofendida, de seus familiares e de seu patrimônio,
Das Medidas Protetivas de Urgência que Obrigam o
ouvido o Ministério Público.
Agressor
Art. 20. Em qualquer fase do inquérito policial ou da ins-
Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e
trução criminal, caberá a prisão preventiva do agressor,
familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz
decretada pelo juiz, de ofício, a requerimento do Minis-
poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou
tério Público ou mediante representação da autoridade
separadamente, as seguintes medidas protetivas de ur-
policial.
gência, entre outras:
Parágrafo único. O juiz poderá revogar a prisão
I – suspensão da posse ou restrição do porte
preventiva se, no curso do processo, verificar a
de armas, com comunicação ao órgão compe-
falta de motivo para que subsista, bem como de
tente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de

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Inovações jurídicas na Lei Maria da Penha:
medidas protetivas e defesa de direitos

dezembro de 2003; aplicação de outras previstas na legislação em vigor,


sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias
II – afastamento do lar, domicílio ou local de con-
o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao
vivência com a ofendida;
Ministério Público.
III – proibição de determinadas condutas, entre as
§ 2o Na hipótese de aplicação do inciso I, encontrando-se
quais:
o agressor nas condições mencionadas no caput e incisos
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e do art. 6o da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, o
das testemunhas, fixando o limite mínimo de dis- juiz comunicará ao respectivo órgão, corporação ou insti-
tância entre estes e o agressor; tuição as medidas protetivas de urgência concedidas e de-
terminará a restrição do porte de armas, ficando o superior
b) contato com a ofendida, seus familiares e teste-
imediato do agressor responsável pelo cumprimento da
munhas por qualquer meio de comunicação;
determinação judicial, sob pena de incorrer nos crimes de
c) freqüentação de determinados lugares a fim prevaricação ou de desobediência, conforme o caso.
de preservar a integridade física e psicológica da
§ 3o Para garantir a efetividade das medidas protetivas de
ofendida;
urgência, poderá o juiz requisitar, a qualquer momento,
IV – restrição ou suspensão de visitas aos depen- auxílio da força policial.
dentes menores, ouvida a equipe de atendimento
§ 4o Aplica-se às hipóteses previstas neste artigo, no que
multidisciplinar ou serviço similar;
couber, o disposto no caput e nos §§ 5o e 6º do art. 461
V – prestação de alimentos provisionais ou pro- da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de
visórios. Processo Civil).
§ 1o As medidas referidas neste artigo não impedem a

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Inovações jurídicas na Lei Maria da Penha:
medidas protetivas e defesa de direitos

Seção III pelo agressor à ofendida;


Das Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida II – proibição temporária para a celebração de atos
e contratos de compra, venda e locação de pro-
Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo
priedade em comum, salvo expressa autorização
de outras medidas:
judicial;
I – encaminhar a ofendida e seus dependentes a
III – suspensão das procurações conferidas pela
programa oficial ou comunitário de proteção ou
ofendida ao agressor;
de atendimento;
IV – prestação de caução provisória, mediante
II – determinar a recondução da ofendida e a de
depósito judicial, por perdas e danos materiais
seus dependentes ao respectivo domicílio, após
decorrentes da prática de violência doméstica e
afastamento do agressor;
familiar contra a ofendida.
III – determinar o afastamento da ofendida do lar,
Parágrafo único. Deverá o juiz oficiar ao
sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda
cartório competente para os fins previstos
dos filhos e alimentos;
nos incisos II e III deste artigo.
IV – determinar a separação de corpos.
Art. 24. Para a proteção patrimonial dos bens da socie-
CAPÍTULO III
dade conjugal ou daqueles de propriedade particular da
mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as se- DA ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
guintes medidas, entre outras:
Art. 25. O Ministério Público intervirá, quando não for
I – restituição de bens indevidamente subtraídos parte, nas causas cíveis e criminais decorrentes da violên-

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Inovações jurídicas na Lei Maria da Penha:
medidas protetivas e defesa de direitos

cia doméstica e familiar contra a mulher. a mulher em situação de violência doméstica e familiar
deverá estar acompanhada de advogado, ressalvado o pre-
Art. 26. Caberá ao Ministério Público, sem prejuízo de
visto no art. 19 desta Lei.
outras atribuições, nos casos de violência doméstica e fa-
miliar contra a mulher, quando necessário: Art. 28. É garantido a toda mulher em situação de vio-
lência doméstica e familiar o acesso aos serviços de De-
I – requisitar força policial e serviços públicos de
fensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos
saúde, de educação, de assistência social e de se-
termos da lei, em sede policial e judicial, mediante atendi-
gurança, entre outros;
mento específico e humanizado.
II – fiscalizar os estabelecimentos públicos e par-
ticulares de atendimento à mulher em situação
de violência doméstica e familiar, e adotar, de
imediato, as medidas administrativas ou judiciais
cabíveis no tocante a quaisquer irregularidades
constatadas;
III – cadastrar os casos de violência doméstica e
familiar contra a mulher.

CAPÍTULO IV
DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA
Art. 27. Em todos os atos processuais, cíveis e criminais,

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A importância da equipe

5
multidisciplinar para garantir
o acolhimento qualificado

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A importância da equipe multidisciplinar
para garantir o acolhimento qualificado

A
o completar 10 anos de vi- No quinto artigo da lei (ver box áreas psicossocial, jurídica e de saúde.
gência no Brasil, a Lei Maria abaixo), está prevista a formação de Isso porque a resposta processual aos
da Penha tem caminhado uma equipe de atendimento multidis- casos nem sempre dará conta de ofe-
para consolidar um impor- ciplinar para atuar nas varas de violên- recer para a mulher aquilo de que ela
tante avanço: demonstrar cia contra as mulheres, a ser integrada precisa para romper o ciclo de violência
para toda a sociedade que a violência por profissionais especializados nas e reestruturar sua vida cotidiana.
doméstica e familiar tem características
próprias e raízes culturais complexas,
que, portanto, demandam respostas
em múltiplas frentes e, ao mesmo tem- “Para poder enfrentar a violência doméstica e familiar, precisamos
po, específicas aos diferentes contextos entender que é um problema complexo e que muita gente tem que ser
em que vivem as mulheres. envolvida na resposta. A Lei reforça a importância da interlocução e do
diálogo ao indicar, por exemplo, a atuação conjunta do juiz ou juíza
Neste sentido, a Lei determina a com a psicóloga e a assistente social. A Lei Maria da Penha trouxe, as-
criação de juizados e varas especia- sim, a possibilidade de maior comunicação e integração, o que amplia
lizados na sua aplicação e aponta a muito nossa capacidade de atuação no enfrentamento”, considera a
necessidade de estes equipamentos assistente social Débora Figureau, que atua no enfrentamento à vio-
contarem com profissionais de dife- lência contra mulher na I e III Vara de Violência Doméstica e Familiar
rentes áreas para construírem conjun- contra Mulher em Recife (PE).
tamente o acolhimento da mulher e a
compreensão das respostas que ela
busca no sistema de justiça.

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A importância da equipe multidisciplinar
para garantir o acolhimento qualificado

CNJ recomenda criação de


varas especializadas com
“Um dos objetivos dessa política é a estruturação das varas, tanto
equipes multidisciplinares
da capital quanto do interior, com a criação de uma equipe multidisci-
Em março de 2017, o Conselho
plinar, que tem que ter uma interlocução com a rede, porque o que a
Nacional de Justiça (CNJ) instituiu a
gente evita é a revitimização da mulher, que tem que passar por tantas
Política Judiciária Nacional de Com-
etapas para chegar ao judiciário. Um dos objetivos dessa Política é a
bate à Violência contra as Mulheres
parceria com os outros órgãos, governamentais e não governamentais,
por meio da Portaria nº 15/2017,
para minimizar esse sofrimento, esse percurso, e ter um acolhimento
que prevê as diretrizes para a atua-
mais adequado àquela situação de constrangimento”, explica a conse-
ção do Poder Judiciário com base na
lheira Daldice Santana, coordenadora do Movimento Permanente de
legislação brasileira atual e nas nor-
Combate à Violência Doméstica e Familiar do CNJ.
mas internacionais (saiba mais). Entre
os pontos do documento – assinado
pela presidente do CNJ e do Supremo
Tribunal Federal, a ministra Cármen De acordo com a Lei Maria da Penha, nas audiências. Ou seja, o atendimento
Lúcia – está justamente a instalação a equipe de atendimento multidisciplinar pela equipe multidisciplinar é importante
das varas e juizados especializados deverá desenvolver trabalhos de orien- tanto para subsidiar o trabalho de ope-
nos Estados com a atuação da equipe tação, encaminhamento, prevenção e radores do Direito e o bom andamento
multidisciplinar. outras medidas voltados à mulher, ao do processo penal, como para saber da
agressor e aos familiares – além de for- mulher que tipo de apoio ela precisa, o
necer subsídios por escrito ao juiz, ao que ela espera daquele serviço e, sobre-
Ministério Público e à Defensoria Públi- tudo, para que se sinta amparada e não
ca por meio de laudos ou participando questionada ou culpabilizada.
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A importância da equipe multidisciplinar
para garantir o acolhimento qualificado

“A mulher que está nessa situação em geral precisa de apoio


para quebrar o silêncio e romper esse ciclo. É importante não pre-
sumir o que a vítima precisa, mas sempre perguntar o que ela violenta explosão de toda a tensão acumulada.
quer, o que podemos fazer por ela. Temos que seguir perguntan- Depois, chega a fase de fazer as pazes (ou da
do, manter sempre os ouvidos abertos e lembrar que cada vítima ‘lua de mel’), em que o parceiro pede perdão
é uma nova pessoa, com uma história única”, reforça a especia- e promete mudar de comportamento, ou então
lista dos Estados Unidos Nicole Hauspurg, gerente de programa age como se nada tivesse ocorrido e, ao mesmo
da Vital Voices, organização responsável pela metodologia do tempo, fica mais calmo e carinhoso e a mulher
Workshop Internacional de Acesso à Justiça do Programa “Res- acredita que a agressão não vai mais acontecer.
postas Eficazes à Violência Contra as Mulheres”, promovido pelo
Instituto Avon no Brasil (saiba mais). Esse ciclo costuma se repetir, com episódios
de violência cada vez mais graves e intervalo
menor entre as fases. Por isso, permanecer em
uma situação de violência sem procurar ajuda,
Um acolhimento qualificado pode seja de familiares, amigos ou da rede de aten-
representar o fim do ciclo de violência ção, pode representar riscos e trazer consequ-
De acordo com o Dossiê Violência contra as Mulheres, o cha- ências graves. “O acolhimento necessariamente
mado ‘ciclo de violência’ é uma forma muito comum de a violên- deve ser humanizado, tem que ser empático
cia se manifestar, geralmente entre casais. Começa com a fase da e atento à condição emocional da mulher que
tensão, em que as raivas, insultos e ameaças vão se acumulando. chega em busca de justiça. Buscamos mesmo
Em seguida, aparece a fase da agressão, com o descontrole e uma propiciar a ela um acolhimento caloroso, sem

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A importância da equipe multidisciplinar
para garantir o acolhimento qualificado

julgar, sem revitimizá-la, sem infantilizá- destaca a juíza Madgéli Frantz Macha-
-la – esse é um cuidado que temos que do, titular do 1º Juizado de Violência
tomar e espraiar por toda a equipe”, “A Lei traz a importância das equi- Doméstica e Familiar contra a Mulher do
destaca a psicóloga Mara Cabral, que pes multidisciplinares nos juizados Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
atua em vara especializada do Tribunal especializados para que, juntamente (TJRS), que presidiu o Fórum Nacional de
de Justiça do Rio de Janeiro. com o jurídico, possamos oferecer Juízes de Violência Doméstica e Familiar
um apoio efetivo e criar espaços de contra a Mulher (Fonavid) em 2016.
Na contramão das necessidades da acolhimento para uma mulher que
mulher, porém, não é incomum que os chega ali logo após ter sofrido uma Para a magistrada, além de ser fun-
profissionais que atuam nos serviços agressão. Se a gente não der uma damental a criação de juizados especia-
demonstrem impaciência com o tempo alternativa viável para a mulher que lizados, é preciso dotar esses juizados
da mulher ou mesmo a culpabilizem busca o sistema de justiça, ela pode com as equipes técnicas e estruturá-los
por permanecer numa situação de vio- acabar permanecendo na situação de forma que consigam oferecer res-
lência, promovendo sua revitimização e de violência e pode, inclusive, ser ví- postas concretas às diferentes mulheres
não o acolhimento humanizado previs- tima de feminicídio”, que buscarão o sistema de justiça em
to no marco legal. contextos diversos num país extenso e

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A importância da equipe multidisciplinar
para garantir o acolhimento qualificado

O que diz o Título V


da Lei Maria da Penha
desigual como o Brasil. “O juiz precisa DA EQUIPE DE ATENDIMENTO MULTIDISCIPLINAR
do psicólogo e do assistente social para
compreender melhor aquela situação e Art. 29. Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
fazer os encaminhamentos para os ser- que vierem a ser criados poderão contar com uma equipe de atendimento
viços adequados”, aponta. multidisciplinar, a ser integrada por profissionais especializados nas áre-
as psicossocial, jurídica e de saúde.
Neste sentido, um desafio impor- Art. 30. Compete à equipe de atendimento multidisciplinar, entre outras
tante a ser superado para a plena efe- atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer sub-
tivação da Lei Maria da Penha após sídios por escrito ao juiz, ao Ministério Público e à Defensoria Pública,
10 anos de vigência do marco legal é mediante laudos ou verbalmente em audiência, e desenvolver trabalhos
justamente a ampliação das varas e de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltados
juizados especializados pelos Tribunais para a ofendida, o agressor e os familiares, com especial atenção às
de Justiça nos Estados, com recursos crianças e aos adolescentes.
humanos e financeiros suficientes para Art. 31. Quando a complexidade do caso exigir avaliação mais aprofun-
a composição completa da equipe, dada, o juiz poderá determinar a manifestação de profissional especiali-
conforme determina a Lei. zado, mediante a indicação da equipe de atendimento multidisciplinar.
Art. 32. O Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta orçamentária,
poderá prever recursos para a criação e manutenção da equipe de atendi-
mento multidisciplinar, nos termos da Lei de Diretrizes Orçamentárias.

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Brasil precisa aumentar número

6
de varas e juizados especializados
em violência doméstica e familiar

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Brasil precisa aumentar número de varas e
juizados especializados em violência doméstica e familiar

U
m diagnóstico é constante um dever do Estado brasileiro criar os a Mulher (JVDFM) no Brasil continuam
entre os operadores do Di- Juizados de Violência Doméstica e Fa- sendo uma reivindicação constante
reito que atuam na aplica- miliar contra a Mulher – órgãos da Jus- dos profissionais, que já foi reiterada
ção da Lei Maria da Penha: tiça com competência cível e criminal, inclusive pelo Conselho Nacional de
é preciso interiorizar os destinados ao processo, julgamento e Justiça em sua recomendação nº 9, de
equipamentos que aplicam a Lei, pro- a execução das causas decorrentes da 08/03/2007 (Criação dos Juizados de
movendo acesso à Justiça no extenso prática de violência doméstica e fami- Violência Doméstica e Familiar contra
território nacional. Um estudo compa- liar contra as mulheres. Em seu sexto a Mulher) e ainda mais recentemente
rativo sobre a aplicação da Lei Maria título (veja box ao final), o marco legal na Política Judiciária Nacional de Com-
da Penha em cinco capitais, realizado aponta que as varas criminais poderão bate à Violência contra as Mulheres.
pela CEPIA - Cidadania, Estudo, Pesqui- processar estes casos na ausência dos
sa, Informação e Ação, identificou que juizados especializados, mas ressalva: A política, instituída em março
o primeiro obstáculo para que as mu- esta é uma disposição transitória – ou de 2017 pela ministra Carmén Lúcia,
lheres tenham acesso à Justiça e aos seja, que deve ser provisória e acom- presidente do CNJ, por meio da Por-
seus direitos é a própria inexistência panhada da criação dos equipamen- taria nº 15/2017, traz o objetivo de
dos serviços e órgãos previstos pela Lei tos país afora. “fomentar a criação e a estruturação
Maria da Penha, ou seja, a insuficiência de unidades judiciárias, nas capitais e
da rede de atendimento, reforçando a Embora tenham sido criados em no interior, especializadas no recebi-
importância de criar novos serviços e muitas cidades brasileiras, sobretudo mento e no processamento de causas
garantindo sua qualidade. nas capitais, o aumento do número e cíveis e criminais relativas à prática de
a distribuição das Varas e Juizados de violência doméstica e familiar contra
Segundo a Lei Maria da Penha, é Violência Doméstica e Familiar contra a mulher baseadas no gênero, com

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Brasil precisa aumentar número de varas e
juizados especializados em violência doméstica e familiar

a implantação de equipes de atendi- gundo notícia do CNJ sobre o Mapa de tenso território nacional, outro ponto
mento multidisciplinar”. Produtividade Mensal de 2016, elabo- importante é a capacitação dos profis-
rado pelo Conselho. sionais que irão atuar nestes equipa-
Em 2013, o CNJ promoveu uma mentos, conforme resume a advogada
pesquisa para avaliar a quantidade Por maior investimento para Leila Linhares Barsted, representante
de varas existentes à época – o es- estruturação dos juizados e brasileira no Mecanismo de Acompa-
tudo mostrou que os equipamentos capacitação das equipes nhamento da Implementação da Con-
não só eram insuficientes, como ainda Além da criação das varas no ex- venção de Belém do Pará, o MESECVI:
estavam bastante restritos às capitais,
além de distribuídos de modo despro-
porcional nas cinco regiões brasilei-
“É preciso promover uma mudança na cultura dessas instituições
ras. Na época do estudo, o Conselho
para que todos percebam a magnitude e a gravidade da violência con-
constatou que existiam 66 unidades
tra as mulheres e percebam, como consequência, o alcance que a Lei
especializadas, recomendando que o
Maria da Penha deve ter. E passem, a partir do reconhecimento de que
número subisse para ao menos 120.
existe de fato a discriminação contra as mulheres e que existe uma lei
Em 2017, o relatório Justiça em Nú-
específica na área de segurança para responder a isso, dotar os juiza-
meros mostrou que as varas e juizados
dos de maior eficiência, maior número de funcionários, para que os
haviam chegado a 105 e este número
juizados possam investir efetivamente na capacitação dos seus mem-
já aumentou para 114 unidades que
bros”, sintetiza a advogada Leila Linhares, que é diretora-executiva da
atuam exclusivamente na aplicação
Cepia – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação.
da Lei Maria da Penha, mas ainda com
grande concentração nas capitais, se-

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Brasil precisa aumentar número de varas e
juizados especializados em violência doméstica e familiar

se ressentem da falta de equipes mul- buscar parcerias com universidades,


tidisciplinares para receber e processar hospitais e onde mais possa haver
essas causas. Sabemos que se tem um esse tratamento multidisciplinar”,
“Se antes se falava que a mulher pessoal que atende adequadamente, aponta, reforçando, entretanto, que
tinha medo, falta de informação, isso vai facilitar o julgamento e a condu- um dos objetivos da política é justa-
hoje há um encorajamento para que ção daquele caso. O acolhimento pode mente a estruturação das varas, tanto
seja diferente, mas temos que dar mostrar quais são as medidas urgentes da capital quanto do interior, com a
instrumentos. Para isso, os servido- e que são mais necessárias, se a pessoa criação da equipe multidisciplinar.
res e juízes precisam estar capacita- precisa mudar de emprego, de cidade
dos para isso, entender que aquele ou receber um benefício da LOAS (Lei Para a presidente do 8 o Fórum
contexto é diferente dos outros”, Orgânica da Assistência Social)”. Nacional de Juízes de Violência Do-
explica a conselheira Daldice San- méstica e Familiar contra a Mulher
tana, coordenadora do Movimento Uma alternativa que a conselheira (Fonavid), realizado em 2016, a juíza
Permanente de Combate à Violência aponta diante das restrições finan- Madgéli Frantz Machado (Tribunal de
Doméstica e Familiar do CNJ. ceiras é a busca de parcerias com Justiça do Rio Grande do Sul), além
outros atores da rede de serviços, um de ser fundamental a criação de jui-
dos pontos previstos nas diretrizes zados especializados, é preciso que
condensadas na Política Nacional de os tribunais invistam nestes equipa-
A conselheira destaca também a im- Combate à Violência contra as Mulhe- mentos, a partir da compreensão de
portância da equipe multidisciplinar res do CNJ: “às vezes o tribunal está que a violência doméstica e familiar
nestes equipamentos: “muitos juízes com problemas financeiros, mas pode não é um problema menor.

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Brasil precisa aumentar número de varas e
juizados especializados em violência doméstica e familiar

“Não adianta criar um juizado que vai ter entre 20 mil e


30 mil processos e ter apenas um juiz, um promotor e um de-
fensor público. Tudo isso tem que ser pensado, porque a cele-
ridade é crucial nestes casos – e até porque, quando o Brasil O que diz o Título VI
foi condenado pela OEA, ele foi desafiado a criar uma lei que da Lei Maria da Penha
desse mais agilidade para o trato das questões da violência DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS
doméstica. Então, quando a gente pensa na criação desses jui-
zados, a gente precisa pensar também na demanda que exis- Art. 33. Enquanto não estruturados os Juizados de Vio-
tirá naquele local, pensar quantos servidores serão necessários lência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas
para um trabalho de qualidade e efetivo”, frisa. criminais acumularão as competências cível e criminal
para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática
Outro ponto destacado é a necessidade de atuação arti- de violência doméstica e familiar contra a mulher, ob-
culada entre o Executivo, Legislativo e Judiciário. “É imperioso servadas as previsões do Título IV desta Lei, subsidiada
destacar que o enfrentamento à violência contra as mulheres só pela legislação processual pertinente.
acontece com uma rede de forte atuação, ligando os três pode- Parágrafo único. Será garantido o direito de
res. E reforço ainda mais a parceria entre Judiciário e o Executivo, preferência, nas varas criminais, para o proces-
pois nós podemos ter a melhor rede de atendimento às vítimas so e o julgamento das causas referidas no caput.
de violência doméstica, mas, sem a rede de proteção que vem
do judiciário, estaremos apenas secando gelo”, ressaltou a se-
cretária Especial de Políticas para as Mulheres, Fátima Pelaes,
durante o 8º Fonavid (saiba mais sobre o evento).

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Brasil precisa aumentar número de varas e
juizados especializados em violência doméstica e familiar

Plena efetivação da Lei Maria

7
da Penha demanda compromisso
político e investimento
orçamentário

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Plena efetivação da Lei Maria da Penha
demanda compromisso político e
investimento orçamentário

A
conjugação das normas de agressões para uma parcela signi- mas se não houver uma gestão pública
internacionais com a pro- ficativa das mais de 100 milhões de que dê prioridade para o enfrentamento
mulgação da Lei Maria da mulheres que vivem no Brasil, levando à violência, não vamos conseguir imple-
Penha no Brasil, em 2006, o país a um destaque perverso: ocupa mentá-la plenamente, nem conseguir
foi fundamental para tirar a 5ª colocação entre as piores taxas de chegar a uma igualdade material entre
a violação dos direitos humanos das mortes violentas de mulheres no mun- homens e mulheres”, reforça a juíza de
mulheres da invisibilidade e corrigir le- do, segundo o Mapa da Violência 2015. Direito do Tribunal de Justiça do Rio
gislações discriminatórias. Os avanços Grande do Sul, Madgéli Frantz Machado.
legislativos indicaram um caminho para Especialistas enumeram
a implementação de políticas públicas e desafios no horizonte Assim, o primeiro grande desafio
construção de serviços, além de fortale- O insuficiente compromisso político passados 10 anos de vigência do marco
cer a atuação de profissionais e ativistas e a ausência de dotação orçamentária legal é que a Lei Maria da Penha seja
engajados na promoção da igualdade adequada estão no centro das dificulda- plenamente efetivada e incorporada por
de gênero e prevenção às violências. des de implementação de ações e servi- todas autoridades que atuam na área da
ços previstos no marco legal (ver box ao violência contra a mulher, aponta a pro-
Tais avanços, porém, ainda não re- final do texto), apontam as operadoras motora do Ministério Público do Estado
presentam a garantia de uma vida livre do Direito entrevistadas. “A Lei é ótima, de São Paulo (MPSP) Valéria Scarance.

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légio Nacional dos Defensores Públicos


“Nós sabemos que a Lei não é aplicada em todo o país e Gerais (Condege).
nem por todas as autoridades. E também que não é aplicada
corretamente, sob uma ótica de gênero. Então, é essencial que Para a farmacêutica Maria da Penha
esta Lei deixe de ser um livro esquecido no armário, como acon- Maia Fernandes, cujo processo levou à
tece em muitas cidades e estados brasileiros, e seja aplicada condenação do Estado brasileiro que
com seriedade e sem preconceitos”, frisa a promotora e atual culminou na Lei Maria da Penha (saiba
coordenadora geral da Comissão Permanente de Combate à mais), falta investimento do poder pú-
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Copevid). blico para a criação das políticas públi-
cas necessárias: “O poder público não
investe na questão da violência contra
as mulheres, criando os canais para
que a mulher tenha onde denunciar –
Diante da falta de prioridade en- “Um desafio constante que se colo- os centro de referência, as delegacias
tre as políticas públicas nas diferentes ca é a sensibilização dos profissionais da mulher, as casas abrigo, os juizados
esferas administrativas – nacional, e a capacitação para questões de gê- especializados. Infelizmente, os peque-
estadual e municipal, a expansão dos nero. Além da formação, a prevenção nos e médios municípios estão muito
serviços responsáveis pela aplicação é outro campo que precisa ser melhor desassistidos e nos grandes municípios
da Lei com qualidade, infraestrutura e trabalhado”, complementa a defensora os equipamentos, muitas vezes, não
equipes devidamente capacitadas se- pública Dulcielly Nóbrega de Almeida, funcionam nos finais de semana e nem
gue sendo uma barreira ao direito das que coordena a Comissão de Proteção nos feriados, o que representa uma ne-
mulheres de viverem sem violência. e Defesa dos Direitos da Mulher do Co- gação do compromisso dessas políticas

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públicas”, reforçou em evento realizado da sociedade também”, frisa a advo- serão destinadas a elas. E também
pela Estratégia Nacional de Justiça e gada, que é também diretora da ONG que o poder público adote meios,
Segurança Pública (ENASP) do Conselho CEPIA – Cidadania, Estudo, Pesquisa, como a produção de indicadores e es-
Nacional do Ministério Público (CNMP). Informação e Ação e representante tatísticas, para mensurar os resultados
do Brasil no MESECVI – Mecanismo de e reavaliar a efetividade das ações im-
Prevenção e avaliação Acompanhamento da Convenção de plementadas periodicamente.
periódica das ações Belém do Pará da OEA.
De acordo com a advogada Leila Em sentido semelhante, a professo-
Linhares Barsted, num primeiro mo- Para maior efetividade nas respos- ra Marília Montenegro, doutora em Di-
mento foi dada maior ênfase ao aspec- tas oferecidas, a especialista indica reito e docente da Universidade Fede-
to penal da Lei Maria da Penha – que ainda ser preciso que o poder públi- ral de Pernambuco (UFPE), aponta que
é importante, mas, ao mesmo tempo, co conheça as diversas realidades em a ação no campo da educação e ensino
insuficiente. “A Lei Maria da Penha não que vivem as mulheres no Brasil, for- é um passo fundamental para a cons-
é uma lei de repressão, é para prevenir a mulando respostas adequadas a cada trução de relações menos discrimina-
violência e promover a atenção a mulhe- contexto e livres de preconceitos. É tórias que revertam a perpetuação da
res em situação de violência. Ela precisa importante ainda que as próprias mu- violência. “Precisamos da implementa-
ser aplicada na sua integralidade e não lheres tenham acesso à formulação e ção desde o ensino básico de progra-
só pelo Estado, mas com a participação construção das políticas públicas que mas sobre as questões de gênero, raça

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e classe social. Se a gente não começa de violência, o trabalho com homens artigo 35 (ver box ao final do texto) que
a mudar a formação dessa criança, ela autores de agressão é ainda mais com- sejam criados, pela União, Estados e
vai reproduzir a sociedade machista prometido. “É urgente mais centros de Municípios, centros e serviços para rea-
em que a gente vive, reproduzindo pa- responsabilização e grupos reflexivos lizar atividades reflexivas, educativas e
drões violentos. A Lei Maria da Penha é para autores da violência que estejam pedagógicas voltadas para os agresso-
muito mais do que o processo penal, a à disposição do Poder Judiciário e da res. Os resultados esperados seriam a
gente precisa fortalecê-la em todos os sociedade. Hoje, já temos muitas ex- responsabilização do agressor pela vio-
seus ângulos, penso que esse é o nosso periências exitosas com os grupos, que lência cometida, em paralelo com a des-
grande desafio”, avalia. vem dando um resultado, e precisamos construção de estereótipos de gênero e a
fazer com que esse serviço esteja à dis- conscientização de que a violência contra
Trabalho com os autores posição”, apontou a secretária Especial as mulheres, além de grave crime, é uma
de agressão de Políticas para as Mulheres, Fátima violação de direitos humanos.
Diante da falta de orçamento para Pelaes, durante 8º Fórum Nacional
efetivação da Lei Maria da Penha e num de Juízes de Violência Doméstica e Dessa forma, o trabalho se somaria
cenário em que as políticas públicas Familiar contra a Mulher (Fonavid). a ações educativas e preventivas que
são insuficientes para garantir a segu- buscam coibir o problema em duas
rança e saúde da mulher em situação A Lei Maria da Penha prevê em seu frentes – evitando que o agressor volte
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a cometer violências, em sentido mais


imediato, e mudando mentalidades, O que diz o Título VII
para resultados no médio e longo pra- da Lei Maria da Penha
zos. Para alcançar estes objetivos, po- DISPOSIÇÕES FINAIS
rém, a abordagem da desigualdade de
gênero, que contemple uma reflexão Art. 34. A instituição dos Juizados de Violência Domés-
sobre as relações desiguais de poder, tica e Familiar contra a Mulher poderá ser acompanhada
é um elemento fundamental para di- pela implantação das curadorias necessárias e do serviço
de assistência judiciária.
ferenciar o trabalho pedagógico e de
responsabilização de uma ação com ca- Art. 35. A União, o Distrito Federal, os Estados e os Mu-
ráter assistencial ou de ‘tratamento’ do nicípios poderão criar e promover, no limite das respec-
agressor, uma vez que a minimização da tivas competências:
gravidade da violência cometida teria I – centros de atendimento integral e multidisci-
efeito contrário ao esperado, conforme plinar para mulheres e respectivos dependentes
aponta o Portal Compromisso e Atitude em situação de violência doméstica e familiar;
em matéria sobre o trabalho com ho- II – casas-abrigos para mulheres e respectivos
mens autores de agressão (saiba mais). dependentes menores em situação de violência
doméstica e familiar;
III – delegacias, núcleos de defensoria pública,
serviços de saúde e centros de perícia médico-le-
gal especializados no atendimento à mulher em
situação de violência doméstica e familiar;

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IV – programas e campanhas de enfrentamento ções relativo às mulheres.


da violência doméstica e familiar; Parágrafo único. As Secretarias de Segurança
V – centros de educação e de reabilitação para os Pública dos Estados e do Distrito Federal pode-
agressores. rão remeter suas informações criminais para a
base de dados do Ministério da Justiça.
Art. 36. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Mu-
nicípios promoverão a adaptação de seus órgãos e de seus Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os
programas às diretrizes e aos princípios desta Lei. Municípios, no limite de suas competências e nos ter-
mos das respectivas leis de diretrizes orçamentárias,
Art. 37. A defesa dos interesses e direitos transindividu- poderão estabelecer dotações orçamentárias específi-
ais previstos nesta Lei poderá ser exercida, concorrente- cas, em cada exercício financeiro, para a implementa-
mente, pelo Ministério Público e por associação de atua- ção das medidas estabelecidas nesta Lei.
ção na área, regularmente constituída há pelo menos um
ano, nos termos da legislação civil. Art. 40. As obrigações previstas nesta Lei não excluem
outras decorrentes dos princípios por ela adotados.
Parágrafo único. O requisito da pré-constitui-
ção poderá ser dispensado pelo juiz quando Art. 41. Aos crimes praticados com violência domés-
entender que não há outra entidade com repre- tica e familiar contra a mulher, independentemente da
sentatividade adequada para o ajuizamento da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de
demanda coletiva. setembro de 1995.

Art. 38. As estatísticas sobre a violência doméstica e fa- Art. 42. O art. 313 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de
miliar contra a mulher serão incluídas nas bases de dados outubro de 1941 (Código de Processo Penal), passa a
dos órgãos oficiais do Sistema de Justiça e Segurança a vigorar acrescido do seguinte inciso IV:
fim de subsidiar o sistema nacional de dados e informa- “Art. 313. …………………………………………….

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IV – se o crime envolver violência doméstica e fa- “Art. 129. …………………………………………......


miliar contra a mulher, nos termos da lei específica,
§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente,
para garantir a execução das medidas protetivas de
descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou
urgência.” (NR)
com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda,
Art. 43. A alínea f do inciso II do art. 61 do Decreto-Lei no prevalecendo-se o agente das relações domésti-
2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a cas, de coabitação ou de hospitalidade:
vigorar com a seguinte redação:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 3
“Art. 61. ………………………………………...…….. (três) anos.
II – …………………………………………………………
………………………………………………….....
§ 11. Na hipótese do § 9o deste artigo, a pena será aumen-
f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de tada de um terço se o crime for cometido contra pessoa
relações domésticas, de coabitação ou de hospitali- portadora de deficiência.” (NR)
dade, ou com violência contra a mulher na forma da
Art. 45. O art. 152 da Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984
lei específica;
(Lei de Execução Penal), passa a vigorar com a seguinte
…………………………………………………..” redação:
(NR)
“Art. 152. ……………………………………………
Parágrafo único. Nos casos de violência domés-
Art. 44. O art. 129 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezem- tica contra a mulher, o juiz poderá determinar o
bro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar com as seguin- comparecimento obrigatório do agressor a pro-
tes alterações: gramas de recuperação e reeducação.” (NR)

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Secretaria
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Sobre a Campanha Compromisso Sobre o Instituto


e Atitude pela Lei Maria da Penha Patrícia Galvão

A F
Campanha Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha – A lei é undado em 2001, o Instituto Patrícia Galvão –
mais forte é uma ação de cidadania que busca compromisso e atitude Mídia e Direitos é uma organização social sem
em relação à Lei 11.340/2006, a fim de alterar os comportamentos fins lucrativos que atua nos campos dos direitos
de violência contra as mulheres, garantir seus direitos e responsabilizar os das mulheres e da comunicação. Sua missão é con-
agressores. É resultado da cooperação entre o Poder Judiciário, o Ministério tribuir para a qualificação do debate público sobre
Público, a Defensoria Pública, o Congresso Nacional e o Governo Federal, por questões críticas para as mulheres no Brasil, a partir
meio da Secretaria de Políticas para as Mulheres e do Ministério da Justiça e de produções de conteúdos, dossiês, sugestões de
Segurança Pública. Tem como objetivo unir e fortalecer os esforços nos âm- pautas e notícias junto à imprensa e mobilização
bitos municipal, estadual e federal para garantir acesso à justiça e a correta de mídias sociais, além de realização de pesquisas
aplicação da Lei Maria da Penha e dar celeridade aos julgamentos dos casos de opinião, eventos e campanhas para fomentar a
de violência contra as mulheres. reflexão social e demandar respostas do Estado e/
Conheça o Portal Compromisso e Atitude e saiba mais: ou mudanças na sociedade e na mídia.
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