Você está na página 1de 10

A INFÂNCIA DOS CHEFES

A socialização dos herdeiros ricos na França*

Miehel Pinçon e Monique Pinçon-Charlot**

E eis o que era, justamente,


Julien: um enorme feixe de
responsabilidades e direitos.
(Sartre, J.-P. L'Enfanee d'un ehefJ

o espírito dinástico está bem presente nas famílias francesas da velha burgue-
',I" e da nobreza afortunada. A transmissão às jovens gerações dos capitais acu-
l1lulados é a condição da reprodução das posições dominantes do ponto de vista
'i()cial.Trata-se de diversos capitais em suas diferentes formas: a riqueza nunca é
IliIramente econômica, pelo menos, para as famílias consideradas neste estudo.
N,\ sociedade francesa, elas ocupam situações eminentes, no mínimo, desde mea-
(1()5 do século XIX e, em grande número, há muito mais tempo. Além da fortuna
lllilterial, a antiga burguesia e a nobreza rica tiveram tempo de adquirir algum ca-
I IIIai na área cultural, em suas relações sociais (o que se pode designar como" capi-
1,,1 social"), na ordem do simbólico (por exemplo, todo o prestígio associado ao
lI! nnc de uma linhagem, o que, por si só, constitui um inestimável capital). A com-
hhmção dessas diferentes formas de capital define a alta sociedade, fixa seus limi-
11'5 e, lendo sido transmitida, garante a permanência da presença das famílias nes-

'a~ nível social. No decorrer das gerações, tal permanência supõe um grande domí-
11\0 das condições da socialização das crianças e adolescentes, assim como um
controle eficaz da educação closjovens futuros herdeiros. Importa que estes este-
1"1 n aptos a receber, administrar e transmitir as múltiplas riquezas que lhes cabem
Ilor herança. Por conseqüência, a educação das jovens gerações é decisiva nos
processos de sua reprodução social.

• Tlndu~'50 .I" Guillll'nne ,Jo~o de Freltas Telxelra. Revisão técnica dos autores .
•• 1110111111 d"I{"d""'d", MH' 11'0 SuclHlos Conll'mporalnes (Imsco).

1I
Essa educação representa um trabalho de grande amplitude, que exige todos cola. Trata-se de grupos de crianças ou adolescentes cuja composição é determi-
os cuidados e toda a atenção das famílias. Estas dispõem dos meios para garantir nada com todo o cuidado pelas mães fundadoras. Tendo sido criados na década
o sucesso de tal tarefa. Esses meios, que mobilizam as diferentes formas de capital de 50, na época em que o recurso à escola pública ou privada se generalizava na
acumulado, não são unicamente econômicos e implicam uma relação privilegiada alta sociedade, ao mesmo tempo que desapareciam os preceptores, esses rallyes
com a cultura, além de relações sociais poderosas e todos os recursos disponíveis. são, antes de tudo, listas de belos nomes, de nomes de famílias importantes, acima
O próprio meio familiar apresenta uma eficácia educativa bastante grande. Toda- de qualquer suspeita, cujos filhos são chamados a viver juntos a juventude e, com
via, essa primeira instância de socialização que, na época em que os preceptores toda a certeza, a vida adulta.
garantiam o enquadramento e a instrução das crianças em casa, poderia ter sido Portanto, pode-se falar de IT§sinstâncias de socialização - a família, a escola e
suficiente até a conclusão dos estudos secundários - até mesmo, superiores - não os rallyes; aliás, presume-se que sua combinação venha a garantir a melhor edu-
está em condições de enfrentar, hoje, aSI1Qvasexigências surgidas com a exacer- cação possível. Com efeito, trata-se efetivamente ç1eeducação e nunca de simples
bação da concorrência no interior do sistema escolar. Assim, sob sua forma públi- instrução: essas instâncias têm a incumbência de formar herdeiros, sendo que tal
ca ou privada, seus serviços são solicitados: até mesmo as famílias mais abastadas formação supõe, entre outras exigências, a interiorização da convicção de terem
sentem a necessidade de proporcionar aos filhos uma instrução (aqui, não se trata direitos fora do comum, o que implica a aprendizagem de dispositivos que levem a
de educação), tão sólida e completa quanto possível. Na prossecução de tal objeti- ilssumir os deveres inerentes a uma posição eminente. Não existem herdeiros sem
vo, essas famílias entraram na lógica da concorrência desencadeada pelos concur- lun habitus condizente, sem uma educação que garanta agentes sociais aptos
sos de acesso às grandes écoles*l (École Nationale d'Administration [Ena], Il(lra assumirem os pesados encargos da fortuna.
Polytechnique) que, na França, garantem o ensino mais procurado e, do ponto
de vista social, o mais eficaz. A pesquisa
O recrutamento dos alunos dos estabelecimentos de ensino é o produto de
uma seleção social severa. Para os estabelecimentos públicos do primário ou se- O trabalho de pesquisa desenrolou-se durante uma dezena de anos. Suas
cundário, ela é o fruto da segregação espacial que concentra as antigas famílias conclusões deram resposta a diversas interrogações e forneceram material
abastadas nos bairros elegantes de Paris ou das grandes cidades da província. pilra a publicação de oito obras *. Os processos da reprodução social são tão
Para os estabelecimentos privados, ela resulta do obstáculo financeiro que faz c<'lltrais na vida dessas famílias que é possível encontrá-Ias, tanto através da
com que sejam reservados para as crianças oriundas de meios abastados e, às ve- ,1Il{lliseda segregação urbana, quanto através do estudo das caçadas a cavalo.
zes, muito ricos. Esse fator é completado, muitas vezes, por critérios sociológicos, Foram realizadas, pelo menos, 150 entrevistas, das quais mais de uma cen-
sendo que a admissão dos alunos é feita também levando-se em conta a reputação I('Ilil no seio de famílias da velha burguesia ou da nobreza afortunada. As res-
das famílias. Mas, mesmo assim, a seleção não poderia ser perfeita e as famílias da Idi dcs foram feitas junto a diversos informantes, entre os quais - em particular,
antiga burguesia e da nobreza afortunada encontraram-se diante da necessidade III ,lu que nos interessa aqui - professores, babás, prestadores de serviços que
de atenuar os inconvenientes inerentes a um recrutamento que, evidentemente, lidl'l'vêm na organização dos rallyes.
não pode ser controlado de forma tão cuidadosa nem garantir a mesma homoge- Essas entrevistas foram completadas por uma considerável massa de ob-
neidade social decorrente da antiga educação transmitida no âmbito familiar. Os ',l'IVilçÕescoletadas ao longo dos anos. Elas foram efetuadas nas mais diferen-
filhos da "elite das elites" são levados a freqüentar jovens de meios menos sofisti- I I"; condições, indo da participação em caçadas a cavalo, até jantares em gran-
cados, novos ricos oriundos do mundo dos negócios com costumes ainda bastan- dI"; apartamentos parisienses, e passando por cerimônias mundanas como o
te primitivos, ou das indústrias midiáticas, em particular, da televisão. Os riscos as- 1'/Ix de Diane (concurso hípico que reúne toda a alta sociedade parisiense) ou
sociados a essa coabitação social, julgada perigosa pelos pais oriundos de várias
gerações da grande burguesia ou antiga nobreza, foram contornados pela criação
de rallyes*2, ou seja, a terceira instância de socializaçãQ depois da família e da es-
'V." I lllllli lus he"ux qu"rtiers. Paris: Seuil, cal. "L'épreuve des faits", 1989. - Quartiers bourgeois, quarti-
", •• / '"ff"lres. Paris: Payot, cal. "Documents", 1992. - La chasse à courre, ses rltes et ses enjeux. Paris: Pa-
\,h 'I, ",i, "j)Oc\lIll"ll(S", 1993 (reeditado na Petite Bibliotheque Payot, 1996).- Grandes fortunes - Dynasti-
"li "llIlil/o1I's 1'1 formes de r/chesse en France. Paris: Payot, cal. "Documents", 1996 (reeditado na Petite Bi-
*1. Instituições de ensino superior, independentes do sistema universitário, que recrutam por concurso e se desti- 111I!llh~'qll •. I'i1Y!J(,]')98). Tmdl.lçüo para a língua inglesa: Grand fortunes - Dynasties of wealth /n France.
nam a formar as elites intelectuais e dirigentes da nação (N.T.). - As notas do tradutor (N.T.) virão indicadils, l'jovo1 11Ilq\w:1\1!l'Jrill'u1Jli"hill~J, 1999. - Voyage en grande bourgeoisie - Journal d'enquête. Paris: Pres-
em toda esta obra, por asteriscos numerados, para se distinguirem das notas do autor, que seguem il nume- O". I 111111"1'''10111,'''d,' 1'l'il1lt"1',1()97. - Les Uolschild: Une famille bien ordonnée. Paris: La Dispute, cal.
ração do texto original. "111111'1111",', 1'1')8. N",llJl'ollx p,,'mlls, nOl.lucllcs dynastics. Paris: Calmann-Lévy. - Soe/ologie de Ia
',,"Otj' .•••'h'''. 1'.11": 1.., i Jón>lIV<'II,', ""I. "J(".I'ÚI'<'S", 2000.
*2. Para uma informação mais detalhada a respeito deste termo, d. adiante ilcrn 3 (NT.).

1;,J I:J
estadias em palacetes na província. Em todas essas circunstâncias, prestamos
o jogo do implícito e do explícito
uma atenção particular à presença das crianças ou adolescentes; além disso, A educação recorre, ao mesmo tempo, a formas explícitas e implícitas de
observamos cuidadosamente o que, nas conversações, evocava as lembranças aprendizagem e inculcação. No caso das famílias da alta sociedade, a parcela do
dos adultos em relação a sua própria juventude. explícito parece ser maior do que alhures. É verdade que os objetivos a serem al-
Procedemos, igualmente, a uma análise de documentos e estatísticas, le- cançados são mais claramente percebidos e definidos. Enquanto que nas famílias
vando em consideração, por exemplo, os dados relativos ao domicílio ou ori- das classes populares ou médias, as modalidades de estruturação do habitus po-
gem social dos alunos de certos estabelecimentos escolares. dem ser deixadas, muitas vezes, à fatalidade dos costumes, encontros e circuns-
tâncias, nas famílias importantes, a interiorização de numerosas predisposições
Esse trabalho de campo foi mais aprofundado na região parisiense, onde a
passa por uma educação consciente de seus objetivos e pela administração, de
concentração da grande burguesia é considerável. No entanto, empreendemos maneira bem determinada, de seus meios.
algumas pesquisas em cidades de província (Bordeaux) ou em regiões adminis-
trativas (Côte d'Azur), conhecidas pela concentração de elevado número de fa- Para isso, existem razões proporcionais à importância do que está em jogo:
mílias afortunadas. as grandes fortunas estabelecem, de maneira evidente, o problema de sua trans-
missão. Não é isso o que acontece quando a riqueza ou, antes, as riquezas são de
porte médio, modestas ou nulas. Assim, um homem de negócios, banqueiro ou
industrial, não pode deixar de se perguntar a respeito de sua sucessão: quem reto-
1. A FAMÍLIA mará as rédeas dos negócios que servem de fundamento à fortuna material da fa-
mília? Ou ainda, o patriarca não pode ignorar que o palacete, berço da linhagem,
Na nobreza e na grande burguesia francesas, a família encontra-se no âmago santuário da memória dos antepassados, é um considerável encargo e que sua re-
do dispositivo da reprodução social. Ela está no centro dos processos de acumula- tomada por um herdeiro não é automática. Concebe-se que tais interrogações,
ção, conservação e transmissão do capital econômico e das outras formas de capi- freqüentes nesses meios, levem à organização deliberada da herança a ser trans-
tal que formam as grandes fortunas. De tal modo que, em contradição com o sen- mitida; neste caso, será necessário garantir conscientemente a educação que pa-
so comum que vê nas classes dominantes um grupo mais propenso ao individua- rece ser a mais adequada para que seja alcançado tal objetivo.
lismo (burguês) e ao culto da personalidade como realização particularmente aca-
bada das potencialidades individuais, o indivíduo é denegado consideravelmente
nessas estruturas familiares que, de forma natural, cultivam o sentido do coletivo.
o culto dos antepassados
A pessoa é, antes de tudo, o elo de uma linhagem, de uma cadeia dinástica que Existe um espaço privilegiado de inculcação: o palacete familiar ou, na sua fal-
mantém a supremacia em relação ao indivíduo. A importância do nome de família ta, a grande mansão, berços da memória da linhagem. Concebidos para receber,
como emblema da excelência, que não poderia pertencer pessoalmente a nenhum em particular, a família ampliada, tais moradias, lugares de férias e, atualmente, de
dos membros do grupo familiar, é reveladora dessa absorção do indivíduo em um fins de semana, acolhem as diferentes gerações em um ambiente onde viveram as
conjunto que o transcende e lhe fornece sua força. Neste caso, o herdeiro rico é gerações passadas e onde estão guardadas suas lembranças. Os netos do chefe da
passível de prestar contas de suas escolhas e atos diante do grupo familiar que, família, quase sempre em companhia dos primos e primas, passam uma parte das
evidentemente, não se limita à família nuclear, nem mesmo à parentela do presen- férias escolares nesse ambiente em que os adultos - e, de modo singular, os avós-
te, mas engloba os colaterais de outrora, os antepassados e os futuros descenden- empenham-se em despertar e manter o interesse das jovens gerações pela história
tes. Passar o bastão é a pesada obrigação. Qualquer educação deve constituir, en- familiar. Assim, coletamos numerosos relatos nostálgicos desses verões no pala-
tão, o herdeiro como o beneficiário de bens - materiais ou imateriais - que não lhe cete, repletos do mistério das vastas moradias e da epopéia dos antepassados, an-
pertencem pessoalmente, mas são a propriedade da linhagem. ligos marechais do Império ou grandes industriais, cujos retratos ornamentam as
salas de recepção e cujas relíquias - escrivaninha, óculo de ver ao longe, armas de
Essa formação deve ser bastante completa porque não se trata apenas de ar-
caça ... - ocupam, de maneira mágica, as salas e corredores.
mar moralmente o futuro herdeiro. Importa também permitir que ele adquira os
saberes, as habilidades e o conjunto das técnicas sociais que poderão garantir-lhe De modo implícito, imerso no dia-a-dia na lembrança dos antepassados, o jo-
sua posição. Com efeito, trata-se de estar em condições de administrar, aumentar, VQlnherdeiro aprende a cultuá-Ios; aliás, de maneira menos onipresente, irá en-
se possível, e, de qualquer maneira, transmitir as diferentes formas de capital. contrar tal lembrança no domicílio parisiense da família. No entanto, existem for-
Assim, é em campos bastante diferentes que tais aprendizagens e inculcações mo- mas mais voluntaristas e explícitas de iniciação à saga familiar: eis o que acontece,
delam as predisposições e as competências das crianças e dos i1(lnll'~;centcs. como ch(~gmnosa observar, quando o avô conduz o neto, chamado a tomar o en-
CiW!10 do domínio familiar, pnm Ulll pusscio através do palacete e do tempo, co-

14 I!rl
mentando a galeria dos retratos dos antepassados. À maneira de uma via-crúcis, que dão origem a uma harmonia entre os habitus, os sistemas de predisposições in-
cada quadro suscita uma estação e os comentários do avô que, de bom grado, se leriorizados como uma segunda natureza e as condições da prática2. O meio circun-
entrega a uma das atividades favoritas nesse meio, ou seja, a anedota relatada dante é suficientemente poderoso para induzir nos agentes as atitudes, as expectati-
com toda a habilidade. Narrativa das façanhas ou defeitos de cada um, essas histó- vas, as necessidades, os projetos mais conformes a tais condições. Neste caso, a
rias transformam os desaparecidos em antepassados que ainda vivem nas memó- prática pode ser vivida, paradoxalmente, segundo o modelo da realização da voca-
rias e contribuem para fundar a identidade das jovens gerações. (:üo,da plena realização de si, uma vez que ela é o produto de um habitus perfeita-
Assim, nessas famílias, os mortos são constituídos em antepassados, estatuto mente adaptado às condições que o engendraram. Louis de Monstiers está devota-
(10 ao palacete Fraisse e pretende votar-se e devotar-se a ele na plena realização do
que Ihes permite sobreviver simbolicamente ao seu desaparecimento, sobretudo,
para seus longínquos herdeiros que encontram nessa evocação das origens um en- (Illeé sua identidade, a da linhagem da qual é oriundo. Ele vivena certeza de estar no
h tgar onde toda a história familiar o incita a estar. Com efeito, o sentimento de liber-
corajamento para garantirem a continuidade da linhagem. Tanto mais que existem
outras técnicas pedagógicas que atuam no mesmo sentido. Os diários mantidos (Iilelee plenitude na conduta de sua existência não poderia ser mais íntegro do que
pelo chefe de família, que registram os pequenos e grandes eventos ou, pelo menos, 11(~ssas condições em que o próprio sentido da existência é dado pelo nascimento.
aqueles que podem ser consignados desta forma em vista da educação das gerações
futuras, constituem uma de suas formas mais usuais. As Memórias - às vezes, en- 1\ cultura: uma transmissão imperceptível
contradas à venda nas livrarias, mas, quase sempre, editadas exclusivamente para
os membros da família em número reduzido de exemplares conservados cuidadosa- Apesar de a transmissão de certos elementos do patrimônio exigir uma mobi-
mente nos arquivos do palacete - são uma outra forma de manter viva a memória IIZ.lção voluntarista das gerações mais antigas, na medida em que não é evidente
dos desaparecidos. Essas duas categorias de escritos são também coletâneas de i1':sllmirtal herança, é diferente o que se passa em relação ao capital cultural cuja
conselhos e experiências destinados aos mais jovens; presume-se que estes venham I r,II1smissãono seio do grupo familiar requer uma formalização muito menos ex-
a encontrar aí os exemplos necessários à conduta de sua própria existência. I,licitae realiza-se, insensivelmente, no decorrer do tempo, das atividades de lazer
(' (L 15 relações afetivas com os ascendentes. Todavia, o museu privado que consti-
1111 iI moradia de uma família importante é utilizado para práticas cuja orientação
Uma pesada herança
Ili'(Iilgógica é, às vezes, deliberada. Neste caso, trata-se de tomar como base essa
Um palacete como o Fraisse, na região de Limousin, na encosta ocidental do l'le;cnça constante de obras notáveis, repletas de história e de cultura, para de-
Maciço Central, é um sorvedouro de recursos financeiros. A parte mais antiga da "I '1lvolverpreferências e conhecimentos. São abundantes as Entrevistas e Memó-
construção, que data do século XV, ameaça desmoronar. As estrebarias estão, 1101'. que dão testemunho de uma infância em que o quadro de vida serve de pretex-
praticamente, deixadas ao abandono; a calefação deixa a desejar quando o inver- II , IIam lições de história, literatura e educação artística.
no é rigoroso na região. No entanto, Louis des Monstiers, 27 anos, está pronto a I~isa descrição feita pela condessa Jean de Pange da casa familiar, pertencen-
assumir suas futuras responsabilidades de senhor do castelo. Ele gosta do palace- II' o1i)S avós: "Os magníficos móveis e os objetos de arte da coleção [do avô] enchiam
te, berço da família, escrínio maravilhoso de sua infância. Concebe projetos de re- fi CilSil.Sobretudo, o térreo era um verdadeiro museu,,3. Em seguida, ela relata
forma para o "velho palacete", a parte mais antiga. Afirma que sua verdadeira Ii 'Illt) os elementos desse museu intervieram em sua educação:
existência não está em ser "Louis", mas "des Monstiers". O "nós" está acima do As poltronas e os sofás das grandes salas estavam cobertos com belís-
"eu". É provavelmente nesses meios tradicionais, em todo caso enraizados em simas tapeçarias que representavam fábulas ou cenas da mitologia. Minha
uma longa linhagem, que a ilusão biográfica de que fala Pierre Bourdieu está me- avó inventava um jogo de perseguição entre os móveis, de uma poltrona
nos presente1. Com efeito, o peso da herança é tão grande que acaba p()rse im- para a outra, cantarolando:
por ao herdeiro, enquanto indivíduo. O herdeiro é, antes de tudo, herdado por Passeemos pelo bosque
uma herança, fruto do trabalho dos antepassados, que, por sua vez, deve ser Enquanto o lobo não vem!
transmitida. Esse peso do patrimônio vem contestar a ilusão da individualidaº~. Mas, durante o percurso, ela dava-me explicações a respeito das per-
No entanto, quanto mais fortes e estruturantes forem os determinismos, tanto sonagens e dos animais dos mitos antigos. Ela conhecia perfeitamente to-
das essas histórias dos deuses gregos e romanos 4.
maior será a tendência a passarem desapercebidos e, por conseqüência, maior a
possibilidade de que venham a ser vividos de maneira positiva. Simplesmente por-

'J "1,111" ."1,, 1"11111,ver: Plnçon, Michel. Besolns et IlQbitus. Paris: Centre de Sociologie Urbaine, 1978.
" 1"'11(1", ('''1111.""", ,Imll IJ", Cortlrtlcnt j'ai vu 1900. Paris: Grasset, 1962, p. 21.
1. Bourdieu, P. L'iIIusion biographique. ln: Actes de Ia Recherche en Sclences Soe/ales, 11. (,2·(,:1, JUTl. 1<JS6,
p.69-72. '. 11>111,1'.11:,111 •.

lí, 17
Por esse patrimônio familiar, a cultura erudita entra na esfera doméstica, en- Como acontece com a cultura em seu sentido geral, vemos que as práticas lin-
contra-se enrolada aí como o gato no sofá, ronrona aí completamente à vontade. güísticas não são separáveis da realidade cotidiana das famílias, que a utilização de
Semelhante a um animal familiar, ela é uma companheira de todos os dias, viva e idiomas estrangeiros não depende de uma aprendizagem escolar - pelo menos,
calorosa, reconfortante por sua presença constante que garante a continuidade não somente - e que tal utilização passa, antes de tudo, por outra familiaridade
entre a vida doméstica e a vida pública, entre a cultura familiar e a cultura dos mu- cultural, a saber: aquela que faz do exterior - em particular, do mundo ocidental-
seus, das salas de espetáculo, dos estabelecimentos de ensino. A~ultur? não é a real dimensão geográfica e cultural em que se formam essas jovens existências.
uma competência particular, adquirida por uma atitude deliberadamente extro-
vertida e voltada para os estabelecimentos especializados em sua difusão, D:las
A aprendizagem da posição no espaço social
certa maneira de ser, de viver, um elemento do habitus como a cortesia, o respei-
to pelos antepassados e pelas tradições, o gosto por estarem entre iguais. Assim, De múltiplas maneiras, o meio familiar ensina aos jovens herdeiros que eles
a transmissão cultural pode efetuar-se de um modo deliberado, mas que não exclui ('stão destinados a uma existência fora das condições comuns. Esse tipo de apren-
essa dimensão afetiva suscetível de fazer viver a lição de história antiga como uma dizagem envolve elementos da vida cotidiana, cuja evidência pode dissimular seus
lembrança maravilhosa da infância e do calor da relação com uma avó atenciosa. deitos sociais profundos. Um exemplo de tal situação é a relação social com o es-
Ilaço. Parece ser tão natural que as famílias ricas disponham de grandes aparta-
Famílias cosmopolitas Il1entos,de carrões do ano, de palacetes ou propriedades na província, e também
(Iue tenham a possibilidade de viajar pela França e exterior que, naturalmente,
As famílias importantes da alta sociedade são cosmopolitas: com grande fre- .Icabamos esquecendo os efeitos das experiências precoces associadas às expe-
qüência, incluem uniões matrimoniais com famílias estrangeiras; é prática corren- Iiúncias em r~lação à estruturação dos habitus, à formação das predisposições e
te falarem vários idiomas, inclusive por ocasião de reuniões familiares, além de H ~presentações que induzem uma relação específica ao espaço e uma relação dife-
participarem da viclªculturÇllinternacional. Fora da esfera familiar, a rede das rela- Ilmte do corpo, de seu próprio corpo, com o meio circundante "físico" e humano,
ções transpõe as fronteiras, o que remete a outro cosmopolitismo, ou seja, o dos ("(nn a sociedade incorporada nas coisas, inclusive no ordenamento da "natureza"
interesses econômicos: em determinado patamar de fortuna, os bens - sob forma (11 W é sempre - pelo menos, na Europa - "cultivada", nos dois sentidos do termo.
material (fábricas, minas, imóveis, terras ...) e sob forma financeira (valores mobi- O filho ou a filha de um grande burguês parisiense aprendem, bem cedo, a
liários...) - estão situados ou aplicados em numerosos países. INlfruir de um espaço amplo e seguro. Os apartamentos possuem enormes su-
Nestas famílias é igualmente antiga a preocupação em aprender idiomas: as I)(~rfícies,às vezes, simplesmente inimagináveis para uma família modesta. Viver
babás inglesas, alemãs ou espanholas são uma tradição que remonta, pelo menos, ('111 600 m2 é fazer a experiência de um espaço doméstico bem diferente daquele
ao século XIX e ainda se encontra bem viva com a presença das jovens que traba- ('xperimentado por uma criança que cresceu em um espaço dez vezes menor. No
lham em troca de casa e alimentação, oferecendo às crianças a possibilidade de Ilrilllciro caso, o indivíduo dispõe sempre de lugar sendo que a dificuldade consis-
praticarem, cotidianamente, um ou vários idiomas estrangeiros, antes mesmo da 1(' ('m administrar seu corpo, a apresentação de si no meio circundante que coloca
idade em que essa aprendizagem passe a integrar os programas escolares. Mas ('111cena, expõe os corpos. Pelo contrário, o alojamento popular, exíguo, adap-
será que se trata realmente de idiomas estrangeiros? Não seria mais adequado fa- L, su il displicência das atitudes. No entanto, essas diferenças na experimentação
lar de bilingüismo ou trilingüismo "matemo"? Com efeito, tais idiomas são prati- (h) ('spaço cotidiano induzem grandes desigualdades no controle ulterior das atitu-
cados pelos pais que, às vezes, os utilizam na conversação com os filhos, com ou- I\I'S sociais em que se trata de estar em representação como, por exemplo, tomar
tros membros da família, ou com os amigos em ligações telefônicas, ou então, na fi pdlavra em público, ou simplesmente fazer boa figura em uma reunião.

presença dos filhos no decorrer de viagens ao exterior. De nada serviria tudo isso se a posição ocupada na sociedade não fosse interio-
É claro que as redes familiares e de amizade são mobilizadas, evidentemente, 1 lInda de forma concomitante a essa relação com o espaço. Não é indiferente que
no exterior, para as estadas lingüísticas, cuja eficácia pode ser imaginada levan- 'w Ilsufrua em todas as circunstâncias de um espaço generoso e, desta forma, que
do-se em consideração o contexto em que se desenrolam. O limite é alcançado (wjnll1 experimentadas as diferenças de condição relativamente às outras catego-
com os períodos de escolarização em estabelecimentos no exterior, como aconte- 11011, ~;()ciais,uma vez que, nas grandes metrópoles, o espaço constitui um dos lu-

ceu, por exemplo, com a família Fontmichel cujas crianças foram todas escolariza- XI ,'i mais dispendiosos e raros. Os espaços burgueses são amplos, ventilados e se
das, durante um ano, em um colégio inglês e em um colégio espanhol. Tal situa- IlVlI(·ficiamde um grande número de plantas. Por contraste, os outros bairros apa-
ção pressupõe que a família conheça pessoas no próprio local e disponha de sufi- I('n')l) como acanhados, barulhentos, obstruídos, obscuramente perigosos em ra-
ciente influência para estar em condições de inscrever os filhos em estabelecimen- :i'll da densidade da população e das atividades.
J

tos escolares estrangeiros. Esse "banho Iingüístico" no exterior leva a um perfeito No enlanto, é loda a vida de bairro que ensina à criança o que ela é. Tal fenó-
domínio dos idiomas estudados. IllI'llU niÍo (, característico dos meios "bastados, mas o que é aprendido, neste

18 J I)
caso, f!. a real superioridade de suas origens, cuja legitimidade evidente é reconhe- II limeirasde proceder e de ser que permitem a aceitação da pessoa ou, simplesmen-
cida e manifestada pelo jogo incessante das marcas de deferência dos serviçais e Ií', o seu reconhecimento, como membro da alta sociedade que usufrui de todos os
comerciantes. Assim, além de serem confirmados pelo enquadramento urbano da (Iireitos.Assim, a escola tem a pesadaresponsabilidªde de completar a transmissão
vida de família, os ensinamentos propriamente familiares revezam-se com os do i 1,15 formas de capital, cuja herança é menos automática do que a da riqueza mate-
meio escolar e das redes de amizade estabelecidas na infância: a aprendizagem da li,ll,a saber: o capital cultural, social e simbólico.
vida social pode começar bem cedo e ser interiorizada tão profundamente quanto
a língua materna, tornando-se desta forma um modo de estruturação muito pode- f\.família investe na escola
roso das práticas e representações. Todavia, a escola acaba prodigalizando um
considerável apoio no mesmo sentido.
De maneira um pouco surpreendente, à primeira vista, a importância da es-
i ( I como espaço de transmissão não significa que a alta sociedade se restrinja a
11,

2. AS ESCOlAS DA BURGUESIA i'llviar suas crianças para estabelecimentos privados. Na região parisiense, em
11. ,ti icular, ,asegregação espacial é tão pronunciada que as famílias importantes da

I li I[,reza e da antiga burguesia encontram-se nos mesmos bairros. Aqui, a coopta-


Além da instrução propriamente dita, os estabelecimentos de ensino - públicos
ou privados - que acolhem as crianças oriundas da alta sociedade apresentam a par- (,lI< I funciona no plano da escolha da escola mais próxima do local de residência.
ticularidade de garantir o trabalho educacional no sentido mais amplo da expressão. I'(,Iossutis mecanismos dos conhecimentos e das preferências relativas ao aluguel
Ora, em decorrência da laicidade do ensino, de sua neutralidade política e da ética, (I11,\ venda de apartamentos, pela circulação da informação, as antigas famílias es-
todos os outros estabelecimentos escolares estão bem afastados de tais questões. I(\iIpróximas umas das outras: em Paris, moram de forma significativa apenas em
Até uma data recente, a própria educação cívica não fazia parte dos programas ofi- qlldlro bairros - VII, VIII, XVI, XVII - e em alguns municípios do subúrbio mais
ciais. Pelo contrário, as escolas -laicas ou confessionais, públicas ou privadas - es- II1úximo, considerados zonas residenciais. Ou seja, nos bairros parisienses do
colhidas pelas famíliasda alta sociedade garantem uma parte da educação das crian- 11'lliro-oeste, à volta da praça da Étoile, da praça da Concorde e dos Invalides;
ças que lhes são confiadas. Esses estabelecimentos transmitem, é claro, os saberes IliI subúrbio, Neuilly é a região preferida. Nestes bairros, vivem também as famí-
indispensáveis ao bom desempenho nos exames em escala nacional. Além disso, hõl',que estão a seu serviço (zeladores de prédio, empregadas, pequenos comerci-
asseguram uma educação do espírito e do corpo que substitui o trabalho de educa- "Ilil's...), assim como as famílias de novos ricos que podem pagar preços imobiliá-
ção propriamente familiar. Trata-se de tomar a seu encargo também ªinculcação? II,I';lJdstante elevados. Mas, do ponto de vista estatístico e social, elas são suficien-
a interiorização das boas maneiras, assim como a autodisciplina do espírito e do cor- 11'llli'llledominantes para controlarem os estabelecimentos públicos de ensino e
11'1('111 confiança para aí matricular os filhos.
po que é a única a garantir a possibilidade de ocupar, de maneira eficaz, a posição
social eminente que o nascimento permite vislumbrar sem que haja uma automatici- Assim, no bairro Saint-James, em Neuilly, as famílias da alta sociedade não
dade total: a herança é algo que se merece, mesmo se os esforços a desenvolver, I11",11. lln em enviar os filhos para a "communale", ou seja, a escola primária laica e
para simplesmente sobreviver, não possam ser comparados de modo algum com o 11'11111 )licana. Além dos filhos de zeladores de prédio e de faxineiras, originários de
que é solicitado às outras categorias sociais. I "lli lha ou Portugal, que moram no mesmo bairro em alojamentos fornecidos
11

Essa educação deve responsabilizar-se pela totalidade da personalidade dessas 111-,1, I';empregadores, eles convivem nesses estabelecimentos com outras crian-
crianças, sendo que tal procedimento está em sintonia com o que, talvez, seja a ca- ',"" ClljoSpais acabam de fazer fortuna nos círculos da finança ou, ainda pior, na
racterística mais significativada grande fortuna, a saber: a rnultiplicidade das formas li 11li'I':1ria do espetáculo. Mas a supremacia quantitativa e simbólica das antigas
de capital. A simples riqueza econômica não dá acesso ao primeiro círculo, ao nú- fr1llllliilSé suficiente para que elas controlem estreitamente o funcionamento
cleo estreito da elite das elites, cioso de suas prerrogativas e muito vigilante em rela- 11,-"",1,' estabelecimento público praticamente privatizado em seu funcionamento.
1\111\ iles, nos bairros onde dominam as camadas médias, os professores mos-
ção aos limites do grupo. Mais ainda, a própria transmissão da fortuna, a criação de
uma dinastia a partir da acumulação realizada na primeira geração, parece dever línlll se meticulosos demais em relação às suas práticas pedagógicas. Na escola
passar pelos ritos da cooptação que se encontram no centro da vida social da alta dI! HII(, ele Ia Ferme, em Neuilly, eles manifestam uma compreensão exemplar
sociedade. Essa cooptação, que permite aos membros eleger e rejeitar os candida- I(nl,1com as observações, críticas e sugestões dos pais onipresentes na adminis-
tos, diz respeito tanto aos conselhos de administração, quanto aos clubes requinta- 11 rH;.1i I do estabelecimento. Com efeito, seus professores foram até mesmo leva-
dos e aos ra "yes de adolescentes ou, ainda, sob uma forma freqüentem ente menos (I,,,,., le!irar um manual de leitura que tinha desagradado aos pais pelo fato de que
explícita, às escolas que se responsabilizam pela educação das crianças. Tanto isso é tmlt"i Iinlmm julgado seu tom por demais populista, ao colocar em cena crianças

verdade que os estabelecimentos de ensino devem estar em condições de consolidar IIIII!11,11 li ('5 que uliliwvam um vocabulário pouco utilizado nessa cidade. Em qual-

os elementos de socialização transmitidos pela família, ou seja, todos esses códinos, (1111'1IIllriI comtlna, os professores primários nunca teriam aceito tal ingerência
t

1If1 111 kl ]Iil~'i\() pedil[Jógica da escola.

20 /1
São numerosos os exemplos da onipresença dos pais nesta escola que, de pú- .,"OS ao meio circundante: não há cercas nem portão que devam ser transpostos di-
blica, conselVa apenas seu estatuto. O material informático - desta vez, abundan- ilnte do olhar inquisidor de um porteiro desconfiado. De fato, os métodos pedagó-
te - é pago pelos pais por intermédio da caixa escolar, que existe também em ou- ! licos instituídos atualmente estão baseados em uma responsabilização das crian-
tros bairros, que contam, entretanto, com muito menos recursos. Os cursos de lín- ',;15e adolescentes de tal modo que a ausência - aparente - de vigilância susci-
gua, inexistentes no ensino primário francês, foram criados e, apesar de toda re- t,,-Ihes, no mínimo, a percepção de seu meio de vida diante das respectivas res-
gulamentação, funcionam durante as horas normais de aula. Os pais dão confe- Jlonsabilidades. É assim que na École des Roches, assim como no Institut Le Ro-
rências às crianças, sem dúvida, para despertar vocações: banqueiros, presidentes 'H~Y, os prédios do internato, dispersos pelo parque e pelas terras cultivadas, são
de grandes firmas, ministros, membros do Institut de France vêm falar de seu tra-
rllltogeridos por um coletivo de alunos sob a responsabilidade direta dos mais ve-
balho e estudos. A lista não termina aí. Esses exemplos, porém, são suficientes
11J( )5. Além de terem de assumir importantes heranças, esses jovens deverão trans-
para colocar em evidência a preocupação em controlar os meios pedagógicos uti-
111i1 ir a seus herdeiros a posição adquirida. Para o desempenho de tão pesada tare-
lizados com as crianças, assim como a eficácia temível de famílias que não dis-
1.\, lorna-se indispensável cultivar o espírito de responsabilidade; ora, nunca é
põem apenas de recursos econômicos excepcionais.
• (,do demais para inculcá-lo. Ao disporem de uma grande liberdade aparente, em
No entanto, tal utilização de estabelecimentos públicos diz respeito, essencial- 1 rlzi"íode sua fortuna, os jovens herdeiros devem aprender muito cedo a se contro-
mente, aos níveis da escola materna e primária. Posteriormente, as implicações tor- Inn'l11, a serem a autoridade para si mesmos. Com efeito, não existe autoridade
nam-se delicadas demais, em especial com o surgimento das relações entre condis-
'i' le possa ser superior à deles. Portanto, não é surpreendente que essas escolas
cípulos e os programas dos adolescentes de ambos os sexos, no decorrer dos quais
1,'IIII<1madotado bem cedo, antes mesmo das escolas das classes médias, os méto-
despontam, em particular, os relacionamentos amorosos, que, para a continuidade
•h "; que colocam a ênfase na responsabilização dos alunos, a saber: os métodos
dinástica, tomam-se elementos cruciais. Um enquadramento mais sistemático, uma
MOlllessori e Freinet6•
continuidade ainda maior entre o universo familiar e o universo escolar exigem esta-
belecimentos ainda mais seletivos; aliás, por si só, a segregação espacial não conse-
gue uma homogeneidade satisfatória da população escolar. Aprendizagens da apresentação de si e da sociabilidade
Pma além das aprendizagens puramente escolares e lingüísticas, as crianças
Uma responsabilização dos futuros responsáveis
II'M'I n aprender a viver entre iguais e controlar as técnicas de gestão de seu capital
Os grandes estabelecimentos escolares freqüentados pelas crianças ou ado- •••lli,ll, as quais, mais tarde, ser-lhes-ão tão preciosas. As técnicas utéis vão de con- '
lescentes oriundos da grande burguesia são instituições que, além de garantirem ~ld"lilções, aparentemente, mais fúteis às habilidades mais complexas e capazes
uma educação total, recrutam alunos de diferentes nacionalidades5. Na França, 11.· nssegurar a classificação social. Assim, ªr~presentação de si não é deixada à
podemos citar a École des Roches, em Verneuil-sur-Avre, na Normandia. Quanto lI! ),1 vontade dos alunos. As roupas amarrotadas são proscritas em todas as cir-
à Suíça, tomou-se um país voltado especialmente para esse gênero de instituição, , \IlI'iWncias, embora durante o dia seja admissível uma certa descontração na ma-
levando-se em consideração o grande número de estabelecimentos existentes em IWI);l de se vestir: na maior parte dos colégios suíços ou na École des Roches não é
seu território, destinados a acolher os descendentes das famílias de grandes fortu- llllll! I',lúrio o uso da gravata para assistir às aulas. Entretanto, para o jantar, consi-
nas, assim como, acessoriamente, de algumas famílias reinantes. O Institut Le Ro- d"1'1do representação de um momento importante da sociabilidade burguesa, é
sey, perto de Lausanne, à beira do lago Leman, é uma das escolas mais conheci- l1id!llda a troca de roupa, ou seja, o uso do uniforme estrito do estabelecimento:
das desse tipo. Encontramos, igualmente, na Suíça, mas também em Paris, ou I nllllsiI branca e gravata comum ou borboleta. Com o decorrer do tempo, tal ma-
ainda em São Paulo, as escolas de Notre-Dame-de-Sion que se disseminaram por Iwhil de vestir acaba ficando incorporada aos hábitos cotidianos. Toma-se algo
toda parte. Na Grã-Bretanha, existem estabelecimentos como o colégio Eton para Ilntllrnllrocar de roupa para o jantar e, desta forma, é com a maior naturalidade
meninos e Roetquidam para meninas, em Brighton. 1lllrll('llle que, mais tarde, na própria casa, até mesmo na intimidade do casal, as
Ao visitar tais estabelecimentos, que acolhem desde as primeiras classes do I 11-'''';( lil') não irão sentar-se à mesa sem terem trocado a roupa usada, durante o
secundário *3 até as classes de terminale*4, causa impressão a abertura dos espa- dln, pill'il apresentarem-se com uma certa elegância.
I~'iSe5estabelecimentos colocam a ênfase também na prática de esportes que,
dl1••d,! o século XIX, tomou-se uma especialidade do ensino para os filhos das fa-
5. Ver: Faguer, Jean-Pierre. Les effets d'une éducation totale: Un collégejésuite. [n: Actes de Ia Recherche en
Sciences Sociales, n. 87-88, mar. 1991; tradução brasileira na revista Educação e Sociedade, n. 58, jul.
1IIII1rl';
(lilS cklsses altas. Neste campo, os colégios ingleses gozam de grande repu-
1997, p. 9-53.

*3. Corresponde à 5" série do ensino fundamental (N.T.).


*4. Corresponde ao 3° ano do ensino médio (N.T.). fi I i~lll"IIIl', Llullnnl. L't:ducullot) tlOlwel1(' - L'f;co!" d"s Raches. Paris: Librairie Paris et Cie, 1901.

22 ~:J
tação, mas a École des Roches ou os colégios suíços nada Ihes ficam a dever: equi- lIma educação cosmopolita
tação, tênis, rúgbi, natação e, inclusive, aviação em certos casos, são modalidades
esportivas intensamente praticadas. Durante o inverno, os alunos do Institut Le A aprendizagem sistemática de línguas estrangeiras é também escolar. Mas
Rosey são levados para a cidade de Gstaadt, no centro dos Alpes suíços, local onde I,11'li lrendizagem se beneficia de condições excepcionais na medida em que as cri-
se dedicam aos esportes de invern07• Trata-se, ao mesmo tempo, de exercer con- ,1111,'IS e os adolescentes, que vivem em regime de internato, são oriundos de diver-
"li', lIacionalidades e usam diferentes idiomas. Assim, a regra é a imersão total,
trole sobre o corpo, conferir-lhe a imponência, o garbo que faz com que se diga de
1"'1,)menos, em relação ao inglês - evidentemente, para os jovens que não têm
alguém que ele "tem classe", ou por outras palavras, que se apresenta bem, assina-
1'0',('idioma como língua materna. Por exemplo, na École des Roches, o ensino
lando com a hexís corpora/*5 seu pertencimento às classes superiores. Além dessa
!1'1"línguas estrangeiras faz-se, integralmente, no idioma que está sendo aprendi-
simbologia corporal - da qual participa, é claro, a roupa, mas também os cuidados
111,Mas sobretudo, de maneira freqüente, os professores organizam jornadas du-
com o corpo -, trata-se de ganhar uma certa coragem, opor-se aos efeitos nocivos
"1Ii1,~as quais, em todas as atividades, em toda a vida em comum das crianças, a
que poderiam advir de uma existência ultra-sensível. É assim que, em parte, deve ser
I !)IIVI~rsação deve desenrolar-se em determinada língua, como o inglês ou o espa-
compreendida uma prática como a das caçadas a cavalo, da qual participam tam-
i 111111,inclusive nos momentos de lazer ou repouso. Na verdade, a obrigação não é
bém as crianças, ainda pequenas, independentemente das condições climáticas.
I~\I) Ii'stritiva quanto poderia parecer, uma vez que as crianças que falam línguas
!lIkli'.l1les, comunicam-se quase sempre espontaneamente em inglês. Todavia,
A familiarização cultural I"ti '1 completar o domínio da expressão escrita ou oral, são promovidas, regular-
1111'1111', permutas de estadas em estabelecimentos similares, situados nos países
Nesses estabelecimentos escolares, a vida é marcada pelas viagens de desco- •!I1,1"süo utilizados os idiomas em questão.
berta cultural que trazem uma familiaridade profunda com as obras de arte e a his-
I':ssc cosmopolitismo vai mais longe, uma vez que tende a apagar as clivagens
tória. Também neste plano, a escola - mas, é claro, não qualquer uma - pode to-
! Ijll! )';OIS.Neste nível de ensino, são poucos os estabelecimentos
11I confessionais: as
mar o lugar do meio familiar. Como é descrito por Eva Thomassin - filha de uma
t"U 1II'lSsão realmente particulares, estabelecimentos com fim lucrativo, avaliados
rica família originária da Argentina, pensionista em um estabelecimento escolar
itljUlIII( lu seus resultados, mas independentes das Igrejas. Existe um ensinQ religioso,
de Lausanne, freqüentado por filhos de reis e por herdeiros de grandes fortunas
!11'1"l'cllmênico, que pode ser ministrado por padres católicos, pastores protestan-
internacionais -, essas escolas privadas excepcionais reproduzem a relação de co-
nivência com o universo cultural. Inl)1IIOSou imames. Acontece mesmo que representantes do livre pensamento
Hljlllir1lllfazer conferências: a diversidade das atitudes e crenças religiosas é apre-
Foi promovida uma viagem na Itália, de Milão a Nápoles. Toda a Itália '11'11111111.1 como merecedora de respeito; aliás, neste campo, é manifestada uma
com a intenção de visitar os museus. Trata-se de uma viagem que nunca es- lj! AI \! I" t olerância. Tanto é verdade que, sem dúvida, divergências tão secundárias
quecerei: os maravilhosos trens dessa época, os quadros que vi nos mu-
"A.) 111I1SI'!JUiriam perturbar a unidade profunda de uma burguesia internacional,
seus. Com certeza, estávamos muito e muito bem acompanhadas para que
111111" liIlmesses bem compreendidos são fundamentalmente convergentes.
fôssemos levadas a gostar tanto de pintura, dos quadros de Fra Angélica ...
Inesquecível! A tal ponto que, atualmente, quando vejo um quadro, consi- A"'ili li, o que vai sendocQnstituído, igualmente, durante esses anos de juventu-
go reconhecê-Ia imediatamente. Outro dia, pude afirmar: Ah! trata-se de b 11111
cOIpitalprecioso de relações internacionais, um capital social único, feito de
um Filippo Lippi. Isso não se esquece. IUlll wili nentos, cumplicidades e amizades através do mundo, que ligam ex-colegas,

Essa imbricação da cultura com a sociabilidade que, neste caso, se apóia na li"!' 111,ClIInplicidades da infância, para além das fronteiras, crenças e línguas. A as-
!!! li lrtl,A" dos ex-alunos da École des Roches e de Normandia conta com 1.800 só-
viagem coletiva durante a qual a boa vontade cultural das crianças privilegiadas
tJtil)i1lhados por todo o mundo, que ocupam eminentes posições sociais. Esse
evita as brincadeiras e a bagunça de crianças separadas, por seu meio familiar,
,ltrll tj( ,d,,1 mobilizável em qualquer instante, em escala planetária, já existia nas
dos bens culturais, poderá ser encontrada, de uma forma ainda mais manifesta,
t\I'IHf,trv,; precedentes, bem antes da mundialização da economia.
nos ral/yes, ou seja, outra instituição central na socialização dos jovens herdei-
ros de famílias ricas. ( 1I1J1(wdque as famílias deleguem tanto poder a esses estabelecimentos.
,ihl, I I;~'I),1SSacomo se, no fundo, essa delegação não fosse senão a expressão da
H" llh111(;,1IJr()funda que o meio tem em si mesmo. É tanto mais fácil confiar as cri-
1'1111,.'1; fi' I ll'Upo, quanto mais rigorosa for a seleção social que prevalecer em sua

7. Jay, Édouard. La socialisation des élites transnationales: L'exemple de l'lnstitut Le Rosey. Monografli1
ti 11' 'I li ,,,11/11I. O fato de viver entre iguais, que é realizado nas melhores condições
de mestrado em Ciências Sociais, Université de Lausanne, out. 1997. 111 i Illllc'(1\1H'Slll'ilo aos professores para os quais o nível de exigências é bem supe-
*5. No original, hexis corporel/e: conjunto de propriedades associadas ao uso do corpo, C'1ll que" ('xl"ri"rl,,,,I,, "'I; '111,,11< 1.1d"spcda~lógicas, é quase perfeito em relação aos alunos, escolhidos
a posição de classe de uma pessoa (N.T.). li í11111r '1;1111 WI11 to ) wlil dupla seleção do dinheiro e do exame de dossiês nos quais o

/Ir! ~[j
nome de família é um dos elementos mais relevantes. É essa lógica do grupo dos tln wande burguesia e, muitas vezes, é com uma taça de champanhe na mão que
pares, como elos entre meios familiares muito próximos, que se encontra em ação rmpessoas observam os quadros no decorrer de uma vernissage, ou em traje de
na instituição dos rallyes. no/rée que vão assistir a uma estréia na Ópera. Ora, os rallyes se constituem em
1IIIId preparação íntima para essa maneira de manter relações de familiaridade
I 11111o mundo da cultura, das artes e das letras.
3. OS RALLYES
As saídas culturais são uma ocasião de experimentar a conivência profunda
Os rallyes são organizados desde o início da década de 50. Seu surgimento 111m a arte e seu meio social. Assim, acompanhadas por algumas mães, as crian-
JI

poderia ser associado ao desaparecimento quase total do sistema de preceptoria. ',n" fazem a visitação de museus, igrejas, palácios ou da embaixada da Grã-Breta-
O ensino tinha deixado de ser feito em casa e as famílias já não podiam deixar de lill,', cujos prédios são tombados. No entanto, à sua chegada, são recebidas e gui-
recorrer a estabelecimentos de ensino nos quais - sobretudo quando se tratava de 1111"" pelo diretor do museu, pelo pároco, pelo proprietário do palácio ou pelo em-
colégios ou liceus situados na cidade e sem internato - o recrutamento dos alunos, I,,,Ix, ,dor - todos eles personagens importantes, amigos pessoais dos pais de algu-
embora bastante seletivo, não garantia um relacionamento exclusivo entre iguais, Illn" crianças que fazem parte do ra llye. Em vez de serem considerados estrangei-
como nos bairros, inclusiveos mais elegantes; neste caso, parece que as mães pres- 11''', os jovens são pessoas íntimas, recebidos como tais e, assim, ficam conhecen-
sentiram a. necessidade de estruturas de lazer acima de qualquer suspeita. De que ,", 'ol1i.1relação de exceção com essas obras e com quem está encarregado delas.
modo conseguir mais segurança em relação a uma instituição a não ser pelo contro- 1\lIul,\ mais: como vêm em grupo, entre amigos, a visitação é acompanhada por
le estreito dos membros que a compõem? Os rallyes são, portanto, grupos de cri- 11111 Iliquenique nos jardins do palácio ou do presbitério; eles misturam a vida so-
anças e adolescentes cuja composição é definida cuidadosamente pelas mães fun- I Inl, ;1 vida do grupo a que pertencem, com a prática cultural que se torna insepa-

dadoras (quase sempre, duas, três ou quatro) do rallye que, aliás, muitas vezes, os- IlÍwl de sua identidade social. Assim, a cultura torna-se um dos elementos consti-
tenta seus nomes (Rallye La Bretesche-Broglie-Montmorin). Essa criação aconte- liIllvosda vida mundana, da vida de sociabilidade tão intensa e importante nesse
ceu quando algumas meninas estavam chegando à faixa etária dos onze aos treze U!"pO. E os programas dos jovens do rallye prefiguram os dos adultos, ou seja, as
anos. Assim, à volta desse núcleo fundador, foi constituído um grupo de uma vinte- \!fÍt, 11~;si.1ges,
estréias e concertos que guarnecem a vida social das classes altas.
na de crianças de ambos os sexos. É claro, as famílias devem ser irrepreensíveis e
está fora de questão convidar o filho do porteiro que, no entanto, freqüenta a mes- I\prcmdizagem das técnicas sociais da mundanidade
ma escola e é amigo da menina cuja mãe participou de tal fundação.
No decorrer dos anos, o rallye vai crescendo com a admissão de novos mem-
hllrc as técnicas sociais da mundanidade que é bem útil saber controlar em
!1t;11'Illlinadasocasiões, podemos citar o ra llye-bridge. O mesmo acontece com a
bros, todos escolhidos criteriosamente. Em sua fase final, nas grandes noites dan-
dI'lIH.n: numerosas sessões do rallye são reservadas para a sua aprendizagem. Em
çantes, o grupo chega a atingir, às vezes, o número de 200 ou 300 jovens. Anterior-
!'lI I 11)(
)~;()$ casos, as aprendizagens não se limitam às técnicas explicitamente em
mente, já houve o estágio das visitas culturais, da aprendizagem do bridge e da dan-
I !'lI 111n, IJilra além delas - e, talvez, principalmente --estão todas as cortesias e suti-
ça; todas essas atividades são promovidas sob o controle meticuloso das mães que
lti,""> (1,1 vida de salão que, progressivamente, vão sendo inculcadas nas crianças
investem somas consideráveis neste negócio, sobretudo durante o último estágio;
í 1ftn (1lwm esses saberes não são evidentemente inatos. Trata-se de controlar as
1
ora, tudo isso pressupõe uma infra-estrutura musical, recintos alugados a peso de
dllli .+. lécnicas da apresentação, a arte da conversação, os usos e costumes da
ouro e bufês carissimos. Mas o que está em jogo justifica plenamente essas fabulo-
1I1~llt-,ll't1 de se vestir. É necessário que a pessoa saiba estar sempre no tom que
sas despesas: não se trata de nada menos do que de completar uma educação perfei-
1IIIIVhll, não dar nas vistas e, assim, manifestar, discretamente, sua perfeita ade-
ta, dar o último retoque a uma obra de arte frágil e preciosa, ou seja, tornar um her-
qllf'\l.nll 1\0 mundo onde vive e que, evidentemente, não é o mundo habitual.
deiro ou herdeira dignos do destino excepcional que lhes é oferecido.

M.ICCSSO dos
"lvll (.' ) dlcLlZde essas deve-se
rallyes
todas à suasem
habilidades eficácia na inculcação
as quais não existe tranqüila,
homem, nemprogres-
mu- \
Uma cultura mundana
1111:-'1,I 'I '111vida social. É notável que essas crianças e adolescentes modelem-se tão
A cultura da alta sociedade, da grande burguesia e da nobreza, não é exata- 11'111\1Iml wnle a partir dos comportamentos dos pais. Por exemplo, no que diz res-
mente a dos professores universitários, intelectuais, pesquisadores e outros artis- 111:-'1111 fll I Vl.'sluário:são poucos os grupos sociais em que os adolescentes se ves-
tas. Ainda que, no meio social considerado, encontremos também zoologistas, es- hjlll 11IIIHI o pai e a mãe para se divertirem no sábado à noite. Ora, a partir dos de-
'" ,11" 111111'1, os rapazes usam de bom grado o smokingeasjovens, o bustiê, se não
critores ou pintores. No entanto, uma das características essenciais que, natural·
mente, faz sorrir os intelectuais das classes médias, é o caráter mundano de tal cul· I1'I I1w"lldo longo. De tal modo que o rallye alcança quase sempre o seu objetivo
tura. Com efeito, tal forma de educar está estreitamente associada à sociabilidadn 1I111111nl" w"t (! explícilo: proceder de forma que esses jovens não acabem deslus-

2() 'j,"
trando, estragando um futuro brilhante, um destino fora do comum, por um casª-
mento desigual que acabaria por romper o fio da dinastia, nobre ou burguesa. No
decorrer da infância e adolescência, por meio dessas reuniões comuns, dessas saí-
das coletivas, dessas noites de festa, os jovens aprenderam a identificar, sem mar-
gem de erro, seus semelhantes e amá-Ios, de tal modo que os encontros amorosos'
não serão fruto do acaso e ocorrerão freqüentemente fora do rallye, de tal manei- I
ra que a feliz eleita(o), encontrada(o), bem entendido, pelo mais inusitado dos aca-j
sos - mas de qualquer forma no decorrer de um baile na embaixada da Grã-Breta-
nha -, será também, como que por acaso, do mesmo mundo e, muitas vezes, doi
mesmo bairro de seu pretendente.
E, tendo chegado à idade adulta, esse prazer extremo de viverem entre iguais,')
que foi possível articular através dos meios à disposição dos jovens herdeiros de"
família rica, será reencontrado no círculo de amizades ou clube; assim, longe do
mundo comum e das promiscuidades inevitáveis da cidade, a pessoa poderá apre-
ciar na presença do outro, seu semelhante, uma outra encamação da perfeição.

CONCLUSÃO

Quanto mais fortes e estruturantes forem as determinações sociais, tanto maior;


será a tendência para passarem desapercebidas e ainda mais: para serem percebi-j
das como a própria expressão da personalidade profunda, da identidade última do'
indivíduo. O que de uma certa maneira não é assim tão falso, salvo que o sentimento
de liberdade que acompanha essa "realização de si" nunca é senão o produto de
uma perfeita adequação entre as predisposições interiorizadas, o habitus, e deter-
minadas condições da prática que pode ser controlada e que a pessoa realmente;
consegue dominar. De tal modo que os projetos, as expectativas, as necessidades
estão perfeitamente sintonizados com as condições da prática. Esta pode, então,
ser vividasegundo o modelo da realização da vocação, como puro cumprimento de'
uma vontade soberana quando, afinal, não se trata senão da instalação de um habi-
tus em condições semelhantes àquelas que o engendraram.
Sem dúvida, essa ilusão bem fundada é assim tão forte somente na medida
em que a educação dos jovens herdeiros de família rica $.~ l:>eneficiade u01a homo-l
geneidade sem falhas. Não é isso o que se passa com a maior parte das outras cri-
anças cujos meios familiares e escolares, assim como suas expectativas em rela-
ção ao futuro profissional, não oferecem a mesma coerência, fonte de uma confi-
ança em si e de uma serenidade que, talvez, seja uma das características dominan-
tes das predisposições dos dominadores.

~H

Você também pode gostar