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III

ESCOLARIZAÇÃO E
SENTIDO DOS SABERES:
sobre a obsessão de instruir
a juventude
para o seu bem'

1 Publicado na Revue Suissc de Sociologie, n.° 2, 1985, pp. 213-226.

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em instrução não há salvação. Este credo, que subentende o desenvolvimento da
\ escolarização no decurso dos séculos anteriores, culmina, no século XIX, com a insti-
kJ tuição da escolaridade obrigatória. Depois, a escolarização estendeu-se sem quebras
de continuidade: a obrigação escolar tomou-se uma realidade, a duração da escolaridade
obrigatória cresceu, o ensino pré-obrigatório desenvolveu-se, as formações pós-obrigatórias
multiplicaram-se e prolongaram-se no tempo. Nos anos cinquenta-sessenta, a esperança na
instrução conheceu um novo alento: já não bastava dar a todos um mínimo de instrução que
garantisse a sua integração económica e cívica; era preciso favorecer o acesso do maior
número possível ao nível máximo de instrução. Uns queriam “investir em homens”, “desen
volver as reservas de aptidões” para assegurar o aumento dos quadros e a qualificação
crescente da mão-dc-obra, ou seja, o crescimento económico. Outros falavam da igualdade
de oportunidades, do acesso de todos à cultura. Durante uma década, as políticas de
democratização do ensino conheceram então o sucesso, mas também alguma ambiguidade
devido às estratégias convergentes da esquerda igualitária e da direita modernista. Estas
forças aliaram-se passageiramente para garantirem as reformas da escolaridade secundária,
o prolongamento da duração dos estudos, o desenvolvimento de novas carreiras pós-obriga
tórias. a realização de pedagogias de compensação ou de apoios educativos, que visavam
prevenir o insucesso escolar [Hutmacher. 1982, 1984; Perrenoud, 1978b].
Menos de dez anos após os primeiros choques da crise, estas políticas generosas são
postas cm questão [Girot, 1981], uma vez que não mantiveram todas as suas promessas
igualitárias: as taxas de escolarização pós-obrigatória e universitária aumentaram espectacu- ■

larmenle na maior parte dos países desenvolvidos, a desigualdade entre rapazes e raparigas
diminuiu fortemente, mas os desvios entre classes sociais ou grupos étnicos permaneceram e
as desigualdades regionais não foram reabsorvidas. Os defensores do crescimento também
Picaram desiludidos: a planificação da educação não conseguiu controlar os fluxos, dirigir as
novas gerações para as carreiras correspondentes às “necessidades da economia”. A estrutura
das qualificações, ao sair-se da escola, está longe de corresponder às vagas de emprego no
mercado de trabalho. Uma fraeção dos jovens é superqualificada em relação aos postos de
trabalho disponíveis; outros não têm uma formação suficiente para se reconverterem num
mercado de trabalho que se retrai, e outros passam ainda directamente da escola para o
desemprego. Tudo isto é mais que suficiente para alimentar um discurso apocalíptico sobre a
crise da escola, sobre a sua falência, sobre o seu laxismo, sobre o abandono dos saberes, das
disciplinas, do trabalho, das “virtudes republicanas”. Back to basics é o slogan que fez
sucesso nos Estados Unidos. Em França, os socialistas, então no poder, mantiveram o mesmo
discurso. Em todos os países industrializados, a esquerda no Poder e a direita moderada
reafirmam a importância dos saberes, da instrução, da formação inicial e contínua.
Há dez ou vinte anos, redescobriam-se os métodos activos, as pedagogias novas, a impor
tância do desenvolvimento, do prazer de aprender. Tratava-se de aprender a aprender, ou até
mesmo de aprender a ser. Nos nossos dias, Milner [1984], com o intuito de melhor reinventar
a escola laica e obrigatória, caricaturiza as novas pedagogias. Escreve-se aos “pais dos
futuros iletrados”, denuncia-se o novo “massacre dos inocentes”, a “destruição da univer
sidade”, a conspiração para “tomar as crianças idiotas”... Este reequilibrar da balança, que
não deixa de ter o seu interesse, não deveria encobrir uma constante: a enorme insistência das
sociedades contemporâneas na formação escolar e na aquisição dos saberes. Dos 2 ou 3 anos
até aos 16 ou 18 anos, o que é que fazem as crianças e os adolescentes da nossa sociedade?
Vão à escola, por pressão do meio quando não é por força da imposição legal [Felder, 1984].
Pelo menos, durante nove ou mais anos, muitas vezes durante doze a quinze ou mais anos, os
jovens passam vinte a trinta horas por semana na escola, trinta a quarenta semanas por ano.
Não se pode dizer que o trabalho escolar seja de uma eficácia sem mácula - há uma certa
desproporção entre as horas investidas e as aquisições de uma fraeção dos alunos mas é
absurdo pretender que se abandonou a transmissão dos saberes em proveito do desenvolvi
mento pessoal ou do prazer do momento. As pedagogias evoluíram, são menos baseadas na
coacção directa e nas sanções e dão mais espaço à expressão dos alunos, mas, na maioria das
classes, continuam centradas nas aquisições cognitivas. A crise económica e algumas
desilusões políticas ou pedagógicas alimentam um discurso crítico que finge descobrir a
ineficácia relativa dos sistemas escolares e o interpreta falaciosamente em termos de
abandono dos saberes. A realidade é que os jovens têm, na nossa, sociedade, uma identidade
principal: são alunos, cujo ofício é aprender. E se não aprendem tão depressa e tão bem como
os adultos gostariam, não é porque se tenha renunciado a transmitir-lhes os saberes, mas
talvez porque o sentido desses saberes tenha deixado de ser suficientemente convincente.

O saber obrigatório

m todas as sociedades conhecidas, a transmissão de certos saberes tem importância


para os adultos preocupados em preparar as crianças para lhes sucederem. Mas a
escola obrigatória é uma invenção sem precedentes na História. As sociedades
industriais definiram os saberes e o saber-fazer de base que cada um deve adquirir,
qualquer que seja a sua condição social, o seu desejo de aprender, as suas necessidades e

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os seus projectos. Na prática, esta necessidade traduz-se, para a quase totalidade das
crianças e dos adolescentes, por uma escolarização forçada de, pelo menos, uma dezena
de anos. Submetidos a um trabalho escolar regular que, em princípio, deve assegurar o
seu domínio progressivo dos saberes e do saber-fazer inscritos no programa, os alunos
devem manifestar desde os primeiros anos, face a uma avaliação constante, um mínimo
de sucesso escolar, sob pena de serem objecto de uma repressão que vai das zombarias,
das reprimendas, das troças, do controlo quotidiano até medidas mais graves, tais como
ser sujeito a pesadas penas disciplinares, ser-se excluído da escola ou a ser-se relegado
para carreiras desvalorizadas. Claro que o saber, enquanto tal, não pode ser tornado
obrigatório. A coacção versa, pois, sobre a presença, o trabalho, a aplicação [Perrenoud,
1984].
Durante perto de dez anos da vida de qualquer indivíduo, a relação com os saberes
escolares é, em última instância, baseada numa obrigação legal. Para aquém ou para além
das idades previstas por lei, a pressão familiar e social impõe-se. Isso não quer dizer que a
escolaridade seja sempre vivida, por todos os alunos e em todos os momentos, como uma
coacção, porque os adultos esforçam-se por lhes dar desejo de aprender, por dar um
sentido intrínseco à aquisição dos saberes ou, na sua falta, por valorizar as vantagens que
acompanham o domínio dos saberes e o sucesso escolar, que podem ser para muitos
garantias do sucesso social. O investimento dos alunos no trabalho escolar assenta em
vários mecanismos intrinsecamente associados: 1 ] a força da inércia, ou melhor, o peso
das rotinas, o desejo de fazer como toda a gente, de não complicar a vida; 2] o interesse
pelo trabalho escolar e pelos saberes em si mesmos; 3] o desejo de agradar, de brilhar, de
ter sucesso, de assegurar vantagens sociais imediatas ou posteriores associadas ao
domínio dos saberes e do saber-fazer; 4] o medo da repressão, de sanções simbólicas ou
práticas a curto ou a longo prazo.
Antes de tudo, a escola faz apelo à rotina, ao desejo de aprender, ao realismo: “Dá-me
prazer!” ou “Prepara o leu futuro trabalhando a sério na escola!”. Quando estas
motivações falham, dão lugar a diversas formas de repressão, que vão das penas mais
suaves às mais duras. Contudo, os meios disciplinares das escolas do século XIX ou do
início do século XX - as diversas formas de punição ou de humilhação, tais como a
palmatória, o chicote, as reguadas, as bofetadas, os puxões de orelhas ou dos cabelos, o
ser colocado no canto ou de joelhos - fazem parecer bem inofensivas as sanções ainda em
vigor nas escolas contemporâneas. A coacção física exercida sobre os estudantes tende
cada vez mais a suavizar-se de decénio em decénio. Isso acontece, sem dúvida, porque os
alunos interiorizaram a necessidade de aprenderem e trabalham cada vez mais por
vontade própria: a necessidade da cultura c do sucesso escolar são, aos olhos dos adultos
contemporâneos, tão evidentes que não se compreende como é que as crianças não são
influenciadas por essas ideias. E isso é verdade mesmo para as classes camponesas ou
populares que, no século passado, eram refractárias à escolarização obrigatória, vivida
como uma perda de tempo, um desvio de uma mão-de-obra barata, uma perda da
autonomia familiar ou de identidade cultural. O sentimento de sofrer uma violência
simbólica certamente que ainda não desapareceu completamente, mas os pais, os avós, os

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antepassados dos alunos actuais também, na sua grande maioria, já passaram alguns anos
nos bancos da escola. Mesmo quando não tiveram sucesso ou a abandonaram aos 12 anos,
aprenderam a considerar a escolaridade como um mal necessário, como uma parte
integrante da condição de criança.
Numa sociedade com uma escolarização tão massificada, são precisas circunstâncias
excepcionais para que uma criança ganhe consciência da arbitrariedade da escolari
zação. Isso não exclui nem o aborrecimento nem a revolta, e não significa que todas as
crianças fiquem sempre felizes por irem à escola. Face à imposição de qualquer
actividade escolar, os alunos desenvolvem estratégias de protecção e de resistência,
transmitidas ou reinventadas de geração em geração. Mas, nos dias de hoje, mesmo os
menos interessados pelos saberes e pelo sucesso escolar aparentemente adaptam-se ao
que parece ser a condição normal, “natural” de uma criança ou de um adolescente. O
absentismo sistemático ou a violência física extrema são característicos de uma
fraquíssima minoria. A maior parte daqueles que resistem a aprender manifesta mais
discretamente a sua recusa em investir no trabalho escolar, tomando atitudes de absen
tismo “mental”, escárnio, resistência passiva, investimento mínimo, ou de algazarra
“anémica” [Testanière, 1967; Hamon & Rotman, 1984]. Os jovens vão à escola e
trabalham, uns mais, outros menos. Mas, para a maior parte deles, qual é o sentido deste
trabalho e dos saberes?

O fim dos herdeiros

 natureza do público escolar mudou devido à extensão da escolaridade a adoles-


/■ centes que, com a mesma idade, há trinta ou há cinquenta anos, na sua grande
JL A maioria, teriam já sido postos a trabalhar nos campos ou na fábrica. Durante muito
tempo, os estudos longos foram um modo de socialização quase exclusivo da burguesia.
Certamente que eram admitidos alguns alunos “com mérito”, provenientes das classes
populares e das classes médias mas, no essencial, os alunos provinham das classes favore
cidas e destinavam-se a fazer parte dela na idade adulta, herdando dos pais,
simultaneamente, um património económico, um capital de relações e um capital cultural,
este último transmitido ao mesmo tempo por via familiar e por via escolar. A democrati
zação dos estudos, em sentido lato, devia necessariamente ser acompanhada de um

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alargamento do recrutamento das carreiras “nobres”, visto que a quase totalidade das
crianças provenientes das classes favorecidas era já escolarizada. A extensão fez-se
sobretudo na direcção das crianças provenientes das classes médias, depois das franjas
mais qualificadas da classe operária, de tal forma que coexistem cada vez mais, em
estudos de longa duração, alunos de condições muito diversas.
Alguns devem ainda à sua origem social uma relativa familiaridade com a língua,
as obras, mas mais ainda com os modos de pensamento e de relação com o saber
característicos do ensino secundário longo [Bourdieu & Passeron, 1964, 1970]. Isso
não quer dizer que todas as crianças da classe média tenham uma grande facilidade
em aprender, ou tenham também um gosto acentuado pelo trabalho escolar. A resis
tência à escolarização existe também no seio das classes privilegiadas. Mas a
familiaridade, adquirida de longa data com os saberes e as relações com os saberes
valorizados pelos pais, ajuda os mais refractários a darem um mínimo de sentido aos
conteúdos de ensino. Actualmente não podemos proceder como se a cultura escolar
fosse a versão escolarizada da cultura burguesa clássica. Historicamente, a aristo
cracia e a burguesia delegaram nos primeiros liceus a missão de transmitirem a
cultura humanista, na qual, com razão ou sem ela, reconheciam a sua própria cultura.
Hoje, a proximidade cultural explica-se também pelo movimento inverso: os
membros das classes privilegiadas reconhecem-se na cultura escolar porque tiveram
uma longa escolaridade. Apesar da renovação dos conteúdos e da evolução das hierar
quias entre saberes literários ou científicos, os quadros médios e superiores, os
engenheiros e os médicos, os professores e os trabalhadores intelectuais estão familia
rizados com o saber que decorre da escola, porque o interiorizaram durante a sua
própria escolaridade. Ora, actualmente, as carreiras nobres do secundário e as escolas
pós-obrigatórias acolhem uma fraeção crescente de alunos cujos pais não tiveram uma
escolaridade prolongada, não estão familiarizados com a relação livresca e teórica dos
saberes abslractos separados de qualquer utilidade prática imediata. A escola procura
substituir se à família, tenta dar aos adolescentes da classe média ou popular o gosto
pela cultura literária ou científica, formar neles um habitus intelectual que progressi
vamente substituirá os valores e os gostos da sua classe de origem. Mas esta
assimilação produzir-se-á tanto melhor quanto os alunos provenientes das classes
populares ou médias, que serão os sobreviventes de um processo de superselecção
que garanta, simultaneamente, o seu sucesso escolar e o zelo da sua identificação com
as normas do seu novo grupo de referência, permanecerem minoritários no seio de um
público de herdeiros. A partir do momento em que a democratização do ensino levou
de forma mais massificada à frequência de estudos de maior duração alunos que não
tiveram desde o berço a relação com o saber que, mesmo no caso dos mais
“diletantes” dos “herdeiros” parece “um dom natural”, a Escola não consegue muito
bem dar um sentido à cultura que procura transmitir.

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B

Uma relação estratégica com a escolaridade

avena alguma ingenuidade se acreditássemos que os alunos do liceu, antes da guerra,


manifestavam todos um imenso amor pelo saber. 0 conhecimento pode ser uma fonte
de satisfação pessoal e pode ser um meio de compreender ou de controlar a natureza
ou os homens. Mas a relação com a escola tem inevitavelmente uma componente estratégica
a partir do momento em que os sucessivos graus de formação e os diplomas obtidos são
convertíveis em vantagens diversas, entre as quais o acesso a uma almejada condição social.
Mesmo quando os estudos de longa duração eram reservados, no essencial, às crianças
oriundas da burguesia e apenas serviam para lhes confirmar a sua condição de herdeiros,
existia entre elas uma certa competição pelos lugares e, logo, também, pelos títulos acadé
micos. Mas hoje, mais do que nunca, a obtenção de certos diplomas pode ser
encamiçadamente perseguida, independentemente dos conteúdos das formações correspon
dentes. Como demonstra Berthelot [1983], as carreiras nobres mudaram em vinte anos. Já
não são as letras e a filosofia que dominam, mas a matemática e as ciências naturais. Que
importa! As classes favorecidas reviram as suas estratégias, e jogaram novas cartadas. Hoje
em dia visam as novas carreiras nobres, mesmo quando o conteúdo do currículo não tem
qualquer relação com a formação dos pais nem com os seus próprios gostos.
Desde então, como sublinha ainda Berthelot [1983], toda a escolaridade precedente e,
particularmente, as orientações-chave são regressivamente investidas de um valor estra
tégico: é preciso não se perder nenhum ano na escola primária para se estar em boa posição
no momento da primeira selecção, e para se poder então ser admitido nas carreiras mais
exigentes ou nos estabelecimentos mais bem cotados do ensino básico. Ao finalizar o
ensino obrigatório, tem de se garantir um lugar nas vagas que permitam ingressar nas vias
mais valorizadas do ensino secundário em estabelecimentos considerados de alto nível.
Mas nem todas as famílias e nem todos os alunos têm estratégias tão ambiciosas:
alguns não têm nenhumas e não arriscam tão longos voos; outros contentam-se em aspirar
a uma formação profissional qualificada ou a ingressar numa escola técnica ou comercial
que lhes possa garantir possibilidades de emprego, um salário conveniente c uma eventual
progressão na carreira até se atingir funções mais elevadas. Mas, para todos aqueles que
têm objectivos a longo prazo, qualquer que seja o seu nível de aspirações, o sistema
escolar toma-se um “percurso de combatente”: o essencial é “ultrapassar” as provas, fazer
boa figura face à avaliação do momento, para poder aceder às vias que conduzem não às
escolas médias, mas aos estabelecimentos de maior prestígio. Contrariamente ao que
sustentavam Baudelot & Establet [1971], não há apenas duas alternativas no interior dos
sistemas escolares. E isso tornou-se ainda menos verdadeiro a partir dos anos cinquenta-

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-sessenta, porque as reformas da escola secundária diversificaram as carreiras. As famílias
e os alunos encontram-se, pois, face a um grande leque de opções de escolarização. Entre
o percurso sem falhas que conduz aos estudos universitários e o percurso que, face ao
insucesso e atraso escolar, leva a abandonar a escola antes de se ter atingido o último ano
da escolaridade obrigatória, para ocupar, no melhor dos casos, um emprego não quali
ficado. há lugar para uma larga gama de carreiras e ainda para percursos individuais mais
ou menos atípicos.

Uma relação utilitarista com o saber

T T ma relação estratégica com o percurso escolar leva, frequentemente, a uma relação


f / utilitarista com o saber. Se o conteúdo das carreiras e dos diplomas é menos deter-
V/ minante que a sua posição na hierarquia dos cursos, hierarquia construída em termos
de valor de iroca, no mercado de trabalho, daí decorre que se aprende cada vez menos para
dominar um saber valorizado enquanto tal, e cada vez mais para satisfazer as exigências de
selecção. A relação com o saber participa cada vez mais de uma aritmética utilitária, em
virtude da qual os desejos de dominar as matérias são eslritamente decalcados das
exigências do sistema de avaliação. Os alunos e as famílias calculam os seus investimentos
da forma mais acertada, visando a obtenção dos melhores resultados nos ramos principais
do currículo e desinvestindo nos domínios menos rentáveis. O que implica, nas matérias
ditas secundárias, a ausência de trabalho e de interesse que muitas vezes ocasiona tanta
consternação nos professores de Música ou de Desenho, ou até nos de Geografia ou
Filosofia, quando estas disciplinas não são determinantes para a carreira escolar. Mesmo
nas disciplinas principais, esta relação utilitarista ou cínica com o saber perverte provavel
mente uma parte do trabalho escolar e da relação pedagógica. Os professores que foram
educados com uma relação pessoal e muito emocional com a cultura vêem, como
“estranhos cm casa’’, os alunos c os estudantes que “só trabalham para a nota”, que
querem, antes de tudo, saber se o curso é matéria “que sai nos exames”.
Esta relação utilitária com o saber parece que é agravada por dois fenómenos: por um
lado, a desvalorização dos diplomas, c, por outro, a entrada diferida no mercado do trabalho.
Desde há uns vinte anos que a taxa de conversão dos diplomas em estatuto social evolui
desfavoravelmente. É a inflação dos diplomas [Bourdieu, 1979; Passeron, 1982]. Houve
tempos em que um título universitário parecia garantir um emprego, e, simultaneamente,
uma posição invejável na administração pública ou nas profissões liberais. Ora, hoje em dia

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isso deixou de ser verdade. Paradoxalmente, tal não autoriza os actores “racionais” a desin
teressarem-se pela corrida aos diplomas. Pelo contrário, devem investir ainda mais na
competição escolar, devem ser supcrqualificados em relação aos empregos para preten
derem obter um posto de trabalho que corresponda às suas ambições. Hoje, em Genebra,
observa-se que, à saída da escolaridade obrigatória, para obter um lugar de aprendiz numa
profissão procurada e qualificada, é preciso ter um curso geral, ou até mesmo liceal, do
Ciclo de Orientação2, quando estas qualificações se destinavam, ainda há dez anos atrás,
prioritariamente à continuação dos estudos [Amos, 19841. O que sublinha a separação
crescente entre as exigências escolares e as práticas para as quais o diploma dá acesso: os
saberes e o saber-fazer deixaram de ser a condição primeira para uma prática competente, e
tomaram-se o critério mais legítimo de selecção na competição para os postos desejados.
Quanto à entrada diferida no mercado de trabalho, à sua maneira, também ela desva
loriza o sentido dos saberes: permanece-se na escola para não se ser desempregado ou para
escapar a um emprego subalterno. Dado que o trabalho escolar se torna o meio de sobre
viver no sistema escolar e de retardar a confrontação com o mercado de trabalho, os alunos
acumulam então conhecimentos que fazem crescer o seu nível de aspirações e preparam
frustrações. Poderíamos, evidentemente, sonhar com uma sociedade na qual a aquisição
dos conhecimentos fosse considerada mais como um enriquecimento pessoal do que como
uma promessa de emprego ou de estatuto. Constata-se, porém, que para a maior parte dos
alunos e das famílias o domínio de saberes e do saber-fazer escolares é definido, antes de
tudo, como um “passaporte para o emprego” e um garante do sucesso social.
Desvalorização dos diplomas e entrada diferida no mercado de emprego são outros
tantos efeitos perversos da democratização do ensino que contribuem para enfraquecer o
sentido do trabalho escolar. Mas não são os únicos em causa: os sistemas escolares são
hoje imensas máquinas burocráticas, nas quais o sentido do trabalho, constantemente
reafirmado no discurso dos adultos, é, muitas vezes, negado na prática.

B
Aprender numa organização

iologicamente, o ser humano está “condenado” a aprender, porque tem bastante


capacidade para o fazer... mas não em quaisquer condições! E agora, em que o
JL/ trabalho produtivo, na indústria e mesmo no terciário, se acomoda a uma fraca
implicação pessoal dos seus produtores, o mesmo não sucede com a aprendizagem.
Podemos, certamente, à custa de repetições e de sanções, aprender a ortografia ou a

2 Escola média integrada.

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tabuada de multiplicar sem nos interessarmos nada por isso. Mas hoje a Escola exige de
todos os seus alunos muito mais do que estas competências elementares. É preciso
aprender a exprimir-se, a raciocinar, a organizar-se, a ser autónomo, a tratar das infor
mações, a aprender a aprender: outras tantas aquisições complexas que se estendem por
longos anos e que pressupõem um interesse pessoal e a confrontação quotidiana com
problemas, situações novas, com outras formas de dizer e de pensar.
Poder-se-ão organizar estas aprendizagens em larga escala segundo uma lógica
burocrática, com programas, horários, idades, métodos, critérios estandardizados? Para
um ser humano, aprender consiste, em larga medida, em apropriar-se dos saberes e do
saber-fazer existentes, por imitação, impregnação, ou interiorização gradual dos modos de
fazer ou de pensar. Muitas vezes, a aprendizagem não é consciente c não passa por uma
acção pedagógica deliberada. Na escola, sem se saber, aprende-se a viver numa organi
zação, que se constrói através da aprendizagem do ofício do aluno, um habitus adaptado à
vida nas sociedades modernas. Noutro lugar [Perrenoud, 1984; ver também os capítulos I,
II e VIII desta obra], analisei estes aspectos do currículo escondido. Mas a escola é, por
definição, um lugar onde se vem para aprender. Nenhum aluno pode ignorar que “está lá
para isso”. Desde os primeiros anos que sabe perfeitamente que se lhe pede para se
apropriar dos saberes e do saber-fazer constituídos que estão “no programa”. Espera-se
dele um trabalho que ninguém pode fazer em seu lugar, um trabalho de atenção, de
compreensão, de memorização, de esquecimento ou de recalcamento dos antigos
esquemas de pensamento, do exercício das noções e procedimentos adquiridos, de genera
lização, de transposição. Tal trabalho passa por uma série de actividades essencialmente
simbólicas e interiorizadas, cuja dinâmica, em última instância, provém da equação
pessoal de cada um, do seu desejo e da sua forma de aprender, das características
afectivas, relacionais e sociológicas do seu funcionamento intelectual. Como controlar
estes processos muito pouco acessíveis à acção directa, como impor a um indivíduo
aprendizagens definidas a concretizar num período de tempo previamente definido?
A esta questão, as sociedades respondem com diversas formas de violência simbólica:
a educação familiar não controla as aprendizagens da mesma forma que a instrução
militar. Na família, as aprendizagens passam por uma relação carregada de sentimentos e
de emoções; a aprendizagem inscreve-se num fluxo complexo de trocas afectivas e cogni
tivas e de identificações mútuas. Ora, falando da escola, a criança entra numa organização
excessivamente burocrática para que a aprendizagem se possa fundir constantemente
numa interaeção personalizada com uma forte componente afectiva. As tentativas de
diferenciação do ensino e das pedagogias aclivas esforçam-se por inscrever a aprendi
zagem numa relação calorosa e pessoal. Mesmo na escola primária, estas tentativas
chocam-se com a lógica da organização [Perrenoud, 1982; Favre & Perrenoud, 1984,
1985|. A aprendizagem, nos seus primeiros anos, fundamenta-se, sobretudo, em fortes
relações afectivas: até aos 10 anos, algumas crianças trabalham apenas para agradarem ao
professor, para serem gratificadas com o seu afecto e a sua admiração. Mas, em seguida, a
relação evolui para uma relação de trabalho quotidiana, tal como existe, na maior parte

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das organizações, entre aqueles que julgam e que detêm o poder e aqueles que obedecem
e são julgados. Para a grande massa dos alunos, a relação pedagógica situa-se desde então
entre a simpatia artificial e o conflito aberto.
Outra forma “provada” de levar uma criança a aprender, ou até mesmo um adulto, “o
que se quer quando se quer”, é a coacção disciplinar, em última instância, apoiada na
violência física. A escola não pode, e já não quer, fundamentar as aprendizagens em tais
métodos, tendo perdido, em larga medida, os seus recursos coercivos mais “convin
centes”. As novas pedagogias estão longe de terem tido sucesso em todas as classes, mas
o espírito do tempo já não é compatível com atitudes disciplinares como as que Foucault
[1975] descreveu, atitudes que, ainda hoje, caracterizam as instituições totalitárias ou
penitenciárias e, até certo ponto, as organizações militares ou industriais. Vincent 11980]
demonstrou a violência destes métodos na escola primária no século passado. Mas a
escola mudou. E verdade que, em 1972, Oury & Pain denunciavam ainda a escola-
-caserna, mas a caserna, do seu ponto de vista, figurava como o arquétipo das grandes
organizações: concentração de numerosos indivíduos num espaço delimitado, regras
formais que se propunham governar o conjunto das relações quotidianas, a divisão das
tarefas, a separação estrita dos espaços, a separação do tempo, a regulamentação das
comunicações e das circulações, controlo social fundado sobre a vigilância e um sistema
de sanções, omnipresença das hierarquias e das relações de autoridade. E um facto que
tudo isto permanece, mesmo que as regras e o controlo social se tenham tornado mais
flexíveis. A Escola não poderia conter - no duplo sentido do termo - tantos alunos e
professores se não funcionasse, em parte, como uma caserna. Mas a Escola não pode ou já
não quer controlar as aprendizagens apenas através das virtudes do exercício da repetição,
do drill, do cumprimento minucioso de gestos que pressupõem permitir, sem os alunos o
saberem ou contra a sua vontade, a apropriação de saberes e de saber-fazer. A escola já
não tem meios para impor tais atitudes: as relações entre jovens e adultos mudaram, na
família, na cidade, na escola [Perrenoud, 1978]. Os jovens já não permitem que lhes
imponham a sua conduta, negoceiam, pedem justificações, embora nem sempre as
obtenham.
Os próprios professores são muito ambivalentes: desejam conservar um certo poder,
condição do seu sucesso ou, pelo menos, da sua sobrevivência na profissão, mas sem
darem aos outros uma imagem muito autoritária. Alguns sonham com uma pedagogia
democrática, com uma relação igualitária, com um “contrato educativo” negociado, mas,
em qualquer dos casos, com uma disciplina “livremente consentida”. Outros desejam
viver em paz: muitos professores de hoje já não vivem como os “guardiões da República”
ou os padres do conhecimento. Hoje são funcionários das novas classes médias, que
retiram da sua pertença ao aparelho escolar uma identidade e um rendimento cm troca dos
quais fazem o seu trabalho; mais nada. Os mais militantes, aqueles que lutam contra o
insucesso escolar ou contra a burocratização da relação pedagógica, sabem e dizem que,
para dar um sentido e uma motivação à aprendizagem, seria necessário, principalmente
para os alunos menos favorecidos, inscrever o trabalho escolar numa outra relação. Isto

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I
não impede a imensa maioria dos professores de limitarem a sua prática ao que a organi
zação escolar lhes pede: respeitarem uma certa equidade na relação e na avaliação,
gerirem racionalmente o tempo e os recursos, cobrirem o essencial do programa, contri
buírem para o funcionamento do sistema. Não esqueçamos que os professores de hoje,
que, na sua grande maioria, têm menos de 40 anos, provêm já do sistema escolar que
agora fazem funcionar. Alguns aprenderam nele a relação utilitária com os saberes que
reencontram nos seus alunos. Para muitos, como o demonstram Hamon & Rotman
11984], o ensino não é nem uma vocação, nem um prazer. Pertencem já às gerações para
as quais foram apontadas as vantagens dos estudos e dos diplomas. Uma vez professores,
estão em condições de, sem acreditarem muito nisso, proferirem o mesmo discurso...

Ainda uma crise de sentido?

i daptando-se à evolução, quer dos professores e dos objectivos pedagógicos, quer


/I das relações entre jovens e adultos, a organização escolar não pode nem quer
1. A fundamentar as aprendizagens em fortes sanções disciplinares e em valores cívicos
indiscutíveis que asseguraram, ainda na primeira metade deste século, a instrução escolar
mínima das crianças. Por isso, toma-se então mais dependente do que nunca da coope
ração activa dos alunos. Ora, é justamente o que é mais difícil de suscitar, num tempo em
que cada um se desdobra segundo o estrito cálculo dos seus investimentos, em que os
alunos e as famílias se tomaram consumidores da Escola [Ballion, 1982], preocupados
mais com os seus interesses do que com o encanto dos saberes....
Em conclusão, se há uma “crise do ensino”, não é porque a Escola tivesse abandonado
a transmissão dos saberes, dado que continua a consagrar-lhe o essencial do seu tempo. A
avaliação c a selecção continuam fundamentadas no domínio de saberes e de saber-fazer
intelectuais. Em compensação, há talvez uma crise de sentido dos saberes, da relação com
o saber. A nossa sociedade colocou o domínio dos saberes no centro do seu sistema de
valores, mas não conseguiu dar-lhe outro sentido que não fosse o estratégico como trunfo
na corrida para o sucesso social. Paralelamente, insere a aprendizagem de massas,
aventura pessoal, em organizações que esperam geri-la como uma produção industrial.
Este é talvez o fracasso mais manifesto daquilo que Monjardet & Benguigui [1982]
denominam como a utopia gestionária, utopia das novas classes médias para quem o
sistema escolar, entre outros aparelhos, se tornou a cidadela.

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