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Anne Carson

Prefácio a Eros the Bittersweet

No conto “O pião”, Kafka conta a história de um filósofo que passa o tempo livre perto
das crianças para apanhar seus piões girando. Agarrar um pião em meio ao giro o deixa
feliz por um instante, em sua crença de que “o conhecimento de qualquer insignificância,
por exemplo o de um pião que girava, era suficiente ao conhecimento do geral”. O
desgosto segue-se ao deleite quase instantaneamente, e ele atira o pião ao chão, vai
embora. E, ainda assim, a cada vez que as crianças começam a se preparar para girar o
pião, ele continua a se encher da esperança de entender: “e, se o pião girava, a esperança
se transformava em certeza enquanto ele corria até perder o fôlego atrás do pião. Mas,
quando depois retinha na mão o estúpido pedaço de madeira, ele se sentia mal”.
O conto é sobre o deleite que sentimos na metáfora. O significado gira, mantendo-se
vertical em um eixo de normalidade alinhado às convenções da conotação e da denotação,
e ainda assim: girar não é normal, e dissimular a verticalidade por meio desse movimento
fantástico é impertinente. Qual é a relação entre a impertinência e a esperança de
entender? E o deleite?
O conto tem a ver com a razão pela qual adoramos nos apaixonar. A beleza gira e a mente
se move. Agarrar a beleza seria entender como é possível essa estabilidade impertinente
na vertigem. Mas não, o deleite não precisa ir tão longe. Correr sem fôlego, sem ainda
chegar, é em si mesmo delicioso, um momento suspenso de esperança viva.
A supressão da impertinência não é o objetivo de quem ama. Tampouco posso acreditar
que esse filósofo de fato corra atrás do entendimento. Na realidade, ele se tornou filósofo
(ou seja, alguém cuja profissão é se deleitar no entendimento) para se munir de pretextos
para correr atrás de piões.

(Traduzido por Ligia G. Diniz)

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