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Resumo Abstract
O presente artigo se propõe a discutir a This article proposes to discuss the via ne-
noção de via negativa forjada por Jerzy Gro- gativa concept created by Jerzy Grotowski and
towski e suas implicações no treinamento fí- its implications in relation to the actor’s phy-
sico para atores. Usaremos como base para sical training. As a base for the analysis we
análise a experiência de apropriação deste will be using the experience of introducing this
modo de treinamento pela companhia teatral method of training to the Studio Stanislawski
carioca Studio Stanislavski. theatre company of Rio de Janeiro.
Palavras-chave Keywords
Via Negativa. Treinamento. Ator. Via Negativa. Training. Actor.
cena n. 21
Dinah Cesare, em sua dissertação de mes- to positivo não poderia alcançar o que esca-
trado, intitulada Pensamento Material: o training pa ao nível consciente no trabalho atoral. Por
como linguagem (2010), esclarece-nos que este motivo, Grotowski (2001, p. 12) opta pela
o conceito ético da via negativa era o “ponto realização de exercícios que tenham um “ca-
nevrálgico” do trabalho desenvolvido por Gro- ráter negativo”. Os exercícios de “caráter ne-
towski. Esta ética estava vinculada não a uma gativo” eram “exercícios-obstáculos” que ser-
técnica ou método específicos para o traba- viam “para descobrir o que não se devia fazer,
lho do ator, mas a uma necessidade constante mas nunca o que e como fazer”. Grotowski
de se pôr em risco de desconstruir, desmon- (2001, p. 12) afirma que “quando os exercícios
tar os saberes. Neste sentido, Constantin Sta- já eram executados com maestria excessiva,
nislavski exerceu uma grande influência sobre eram modificados ou abandonados”.
Grotowski. Em meio às transformações que o No texto O diretor como espectador de pro-
teatro sofreu no século XX, época em que im- fissão5, Grotowski conta que Charles Duits6 se
perava a ideia da imitação no trabalho atoral, apresentava como um guru ocidental que seria
Stanislavski propôs ao ator uma investigação capaz de ensinar as pessoas a levitar. No en-
acerca do que seria necessário ao desenvol- tanto, o objetivo concreto de Duits era ensinar
vimento de sua “condição criativa”. (RUFFINI, as pessoas a atravessar a rua, durante o horá-
2004, p. 2) rio de pico. Sobre esta história, Grotowski faz
No texto Resposta a Stanislavski (2001), Gro- a seguinte consideração:
towski revela que, no início dos seus estudos
Hoje, há uma tal ruptura de toda a
teatrais, Stanislavski foi uma grande referência confiança, um tal sentido de insegu-
para ele: “Achava que ele era a chave que abre rança, que se quer aprender só as
coisas consideradas concretas e pre-
todas as portas da criatividade. Queria com-
cisas. Então, se eu digo a uma pessoa:
preendê-lo melhor do que os outros” (2001, p. quero ensinar-lhe como caminhar com
6). Ao longo dos anos, a relação de Grotowski a perna esquerda de maneira perfeita
e eficiente, ela se esforçará, trabalhará
com Stanislavski teve diversos momentos (ne- comigo, poderá até mesmo obter uma
gação, revolta, compreensão). Todavia, Gro- certa transcendência. Mas, só porque
pensa em trabalhar sobre o movimen-
towski (2001) afirma que nunca deixou de ver to da perna esquerda. (GROTOWSKI,
no mestre russo uma inspiração para as suas 1984 apud FLASZEN e POLLASTREL-
LI, 2007, p. 213)
pesquisas, ainda que em alguns pontos, suas
conclusões fossem divergentes. Podemos perceber por esta afirmação
Grotowski declara, por exemplo, que ele e que, na visão de Grotowski, o trabalho sobre
Stanislavski chegaram a entendimentos dís- a experiência do corpo, sobre aquilo que seria
pares sobre o treinamento do ator. Segun- concreto, pode levar o indivíduo a experimen-
do Grotowski, Stanislavski acreditava em um
“treinamento positivo”, em que o ator aprende
5 Texto publicado no livro O Teatro Laboratório de Jerzy Gro-
uma série de técnicas necessárias a seu ofí- towski 1959-1969, transcrito a partir de uma conferência pro-
ferida por Grotowski em Voltera, em 1984. Foi publicado em
cio. Apesar de reconhecer a importância deste 1986, na revista Teatro Festival n.3.
treinamento no contexto e na prática de Sta- 6 Charles Duits (1925–1991) – Escritor francês ligado à cor-
nislavski, Grotowski avalia que o treinamen- rente surrealista. Tem como destaque, em seus romances, a
questão sobrenatural e a relação com o mundo espiritual.
tar algo que está para além desta concretude. processo de “autopenetração”8, ou revelação,
Em Resposta a Stanislavski (2001), ele afirma em prol de um encontro genuíno entre atores e
que o treinamento positivo, por almejar apenas espectadores. Nos textos do encenador, escri-
o ensino de algumas técnicas indispensáveis tos a partir deste momento, o trabalho corpo-
ao ofício do ator, não seria o suficiente para ral era visto como uma atividade que poderia
desenvolver sua criatividade. auxiliar o ator na expansão dos seus limites:
Para Grotowski, a apreensão e consciência
da técnica não consideram o sujeito como um [...] o ator nunca possuirá uma técni-
ca permanente “fechada”, pois cada
ser integrado, no qual há influências de ele- degrau do seu autoescrutínio, a cada
mentos que o bloqueiam a nível inconsciente, definição, a cada excesso, a cada
derrubada de barreiras escondidas,
por isso seria necessária uma abordagem ne- encontrava ele novos problemas téc-
gativa do treinamento, o que aqui denominare- nicos em um nível mais alto. [...] Mas o
fator decisivo nesse processo é a téc-
mos como treinamento negativo. Mas como nica de penetração psíquica do ator.
se daria essa abordagem negativa? Como e (GROTOWSKI, 1971, p. 22)
por que realizar um treinamento no qual o prin-
cipal objetivo não é aprender técnicas? O treinamento pautado pelo conceito de
via negativa não constituía um ponto de che-
gada, mas um caminho que poderia levar o
ator a se investigar, afinal “não é necessário
O conceito de via negativa
saber como fazer, mas não hesitar frente ao
A partir do espetáculo o Príncipe Constan- desafio”. (GROTOWSKI, 1974 In FLASZEN
te (1965)7, penúltimo espetáculo dirigido por e POLLASTRELLI 2007, p. 201. Grifo nosso)
Grotowski na companhia, o entendimento do Neste entendimento, o mais importante para a
ofício do ator tomou outro rumo na prática do criação atoral seria o modo como nos relacio-
Teatro Laboratório. O foco da pesquisa teatral namos com os exercícios em um treinamento
se deslocou da construção de estruturas que ou procedimento cênico.
servissem como elementos de um espetáculo, Ludwik Flaszen, em entrevista pública rea-
para a investigação pessoal do ator. Investiga- lizada no Brasil em 2009, mencionou que a
ção esta que deveria ser desenvolvida em um via negativa – “a pesquisa do essencial pela
eliminação”9 – teria surgido, na trajetória de
Grotowski, inspirada pelo método de denomi-
nação negativa de Deus da teologia mística assim, tudo o que envolve o princípio
das coisas – e impede o seu conhe-
cristã, cuja origem remonta ao Pseudo Dioní-
cimento pelos homens, para chegar à
sio Areopagita10. Personagem da mística cristã união com o incognoscível. (CASTRO,
do século VI, Pseudo Dionísio Areopagita le- 2009, p. 50)
para um como para o outro, o acesso se daria 16 Encontro composto por debates, sessões de cinema e
workshops sobre a arte do ator com artistas brasileiros e es-
através da via da negação, ou via negativa. trangeiros.
mento físico19, inspirado no treinamento desen- ro da Lapa, no centro do Rio de Janeiro, com
volvido por Grotowski no Teatro Laboratório. a criação do Instituto do Ator. Deste período,
Analisaremos, a seguir, como se deu o tra- foram entrevistados os atores:
balho atoral com este treinamento e as ques- Douglas Resende25 e Evelin Reginaldo26. A úl-
tões decorrentes, ocorridas em três fases20 tima fase data de 2014, quando foi criado o
distintas do Studio Stanislavski. A primeira grupo Os Novos27, no Instituto do Ator28. Desta
fase teve início em 1999, com a chegada de fase, foi entrevistada a atriz Mariana Rosa29.
Saidpour ao Brasil e a transmissão da estru- Por meio destas entrevistas, foram investiga-
tura do treinamento. Deste primeiro momento, das algumas questões apresentadas por Gro-
foram entrevistados os atores21: Dinah Cesa- towski como elementos primordiais ao treina-
re22, Joana Levi23 e Bruce Gomlevsky24. A se- mento. É interessante notar como as percepções
gunda fase incide no ano de 2008, quando a dos atores são distintas e como esta diferença
sede da companhia foi transferida para o bair- está relacionada com o tempo de prática com o
treinamento. Este fato revela a importância do
19 Dinah Cesare (2010) nomeia esta estrutura como treina-
mento físico, seguindo a denominação de Grotowski para a
fator tempo no trabalho de pesquisa com o trei-
relação dos exercícios criados a partir das posturas do Hatha namento físico e o quanto a estrutura necessita
Yoga. A estrutura deste treinamento é fixa e composta por al-
guns elementos como: colocar-se no espaço; andar; 1ª cor- estar aberta a constantes transformações.
rida; dança pessoal; exercícios plásticos; transição; primeiro
exercício individual; transição; segundo exercício individual;
transição; exercícios com os pés; transição; terceiro exercício
individual; transição; quarto exercício individual; transição; se-
gunda corrida com rolamentos acrobáticos; transição; quinto
exercício individual; transição; sexto exercício individual; tran-
sição; rolamentos finais elaborados com asanas e repouso. 25 Douglas Resende – Ator e produtor cultural. Mestrando em
Artes Cênicas pela UNIRIO. Coordenador do espaço cultural
20 Importante ressaltar que, nos seus 25 anos de existência, Instituto do Ator. Ingressou no Studio Stanislavski em 2008,
o Studio Stanislavski teve diversas configurações. A escolha onde participou como ator das peças Fantasmas de Guerra e
do tipo de treinamento a ser realizado sempre foi facultada Paz (2012) e TransTchecov (2009).
aos atores, pela diretora Celina Sodré, de acordo com suas
afinidades, mas a via negativa se manteve como ética nortea- 26 Evelin Reginaldo – Possui Mestrado em Estudos Contem-
dora do trabalho. porâneos das Artes pela UFF, com foco sobre a pesquisa no
trabalho do ator e principalmente no termo Corpo-memória,
21 As entrevistas com os atores e atrizes Dinah Cesare, Joa- desenvolvido por Jerzy Grotowski. Integra o Studio Stanisla-
na Levi, Bruce Gomlevsky, Douglas Resende, Evelin Reginal- vski desde 2008, onde participou de diversas produções.
do e Mariana Rosa figuram na dissertação de mestrado “Em
busca da autonomia criativa – uma investigação da relação 27 O grupo Os Novos foi criado no Instituto do Ator em 2014, a
entre teatro e pedagogia com base no conceito de via negati- partir da entrada de novos sócios no espaço. O grupo realizou,
va”. (GOMES, PPGAC/UNIRIO, 2016) em 2015, a sua I Mostra de Cenas Curtas. São componentes
de Os Novos: Ana Cristina, Amanda Brambilla, Aurea Sepul-
22 Dinah de Oliveira (Dinah Cesare) - Doutoranda em Artes veda, Bruna Felix, Carolina Exaltação, Conrado Nilo, Dandara
Visuais na EBA/UFRJ. Coordenadora Artística do Instituto do Vital, Danielli Cristine, Jony Jarp, Jorran Souza, Ketlen Ca-
Ator. Atriz da Companhia Studio Stanislavski e professora de jueiro, Lucia Chequer Houaiss, Mariana Rosa, Paulo Maia e
treinamento físico para atores. Ricardo Loureiro.
23 Joana Levi – Atriz, diretora e produtora teatral. Em 1994, 28 O Instituto do Ator é um Instituto de pesquisa da arte do
foi para Itália onde acompanhou processos de criação da Fon- ator que tem como sede um prédio na Rua da Lapa, 243, no
dazione Pontedera Teatro, realizou residência artística com a bairro da Lapa, na cidade do Rio de Janeiro. Nele, são desen-
atriz e diretora Silvia Pasello e participou de sessões de traba- volvidas pesquisas em torno da arte teatral e workshops para
lho no Workcenter of Jerzy Grotowski. Trabalhou com Celina sócios e não sócios do espaço. O Instituto é também a sede
Sodré, como atriz e assistente de direção, de 1995 a 1999. do Studio Stanislavski.
24 Bruce Gomlevsky – Ator, produtor e diretor. No teatro, in- 29 Mariana Rosa – Atriz e fisioterapeuta, associou-se ao Ins-
tegrou, durante três anos, a Companhia de Ópera Seca, sob tituto do Ator, onde desenvolve pesquisa sobre as possibilida-
a direção de Gerald Thomas. Atuou em mais de vinte espe- des do corpo, conduzindo o training e trabalhando como atriz.
táculos teatrais. Foi indicado ao prêmio de Melhor Ator, no III Participou do II Festival Ratos de Palco, sendo indicada como
Prêmio Cultura Inglesa de Teatro. melhor esquete.
1. Não saber, risco e limite trutura que você não sabe. Então, para
mim, isso é um desfazimento, é um
negativo no sentido daquilo que você
Quando Grotowski propõe que a prática do sabe fazer, daquilo que você quer sa-
treinamento seja pautada pela via negativa, o ber fazer e dessa via cultural. Então, é
(eu acho que tinha isso no Grotowski,
que deve ser trabalhado pelo ator é algo que eu entendia muito assim) experimentar
ele não sabe fazer, em busca da “eliminação certas posturas, por exemplo, as de
yoga, eram menos para mim do que
dos bloqueios”. (GROTOWSKI, 1968 In FLAS- é a conexão com esse lugar hindu da
ZEN e POLLASTRELLI, 2007, p. 106) Nesta formalização, mas era conexão com
esse lugar hindu daquilo que não se
perspectiva, o ator se coloca em uma situação sabe, porque eu não sei do yoga, não
de risco tanto no treinamento quanto na cria- sei mesmo e ao mesmo tempo então
tem que construir outro entendimento.
ção, o que permite a expansão de seus limites.
No treinamento físico, notamos que há uma lei
Joana Levi (2016) considera que o contato
específica para trabalhar esta questão: a lei de
direto com o “não saber”, principalmente com
se colocar no limite. Apesar de este princípio
elementos da estrutura do treinamento que es-
nortear toda a estrutura, ele se faz presente em
timulam o risco físico, permitem a ampliação
alguns elementos de forma mais determinante,
da autoconfiança:
como nos exercícios individuais30, na corrida
com rolamentos e no rolamento com as asa- O treinamento me deu uma confiança
nas31. no meu corpo, porque eu tenho um
corpo que é potente, que pode mais
Estas questões do risco e do contato com do que acho que ele pode. [...] A gente
o desconhecido podem ser identificadas nas pode fazer o treinamento de uma for-
ma dogmática, tem que passar do li-
entrevistas realizadas com os atores do Studio
mite, aí você fica ali se autoflagelando,
de forma sistemática, sob várias perspectivas. ou você saca o que é precioso nessa
Dinah Cesare (2016), por exemplo, relata, em regra, [...] sai do controle e percebe
que você pode mais, que tem sempre
sua entrevista, a maneira como a questão do um campo desconhecido. Porque, às
desconhecido foi colocada, para ela e suas vezes, o campo desconhecido é na
resistência física e, outras vezes, é na
companheiras, logo no início do contato com o imaginação, nas associações, na au-
treinamento físico, levando a um “desfazimen- toria, na busca por temas. Afinal, onde
é que está o teu limite em cada mo-
to” cotidiano no ato de treinar: mento?
31 As asanas (posturas do Hatha Yoga), escolhidas para o [...] acho que você fica bem treinado,
treinamento, são: “as de três pontas (cabeça e mãos tocam digamos assim, a fazer essas situa-
o chão), a vela (parte posterior da cabeça, nuca e trapézio, ções de risco, que, na verdade, fica
ombros, braços e cotovelos formam a base no chão) e o es- muito natural para você pegar uma
corpião (postura unilateral, cuja base é formada por um dos coisa e encarar [...] Sempre foi um
ombros, o pescoço, um dos braços e a mão)”. (CESARE, momento de muito prazer, dessa sen-
2010, p. 30)
Eu gosto dessa ideia do não ensina- [...] algumas coisas que eu estava tra-
mento, porque você vai para uma es- balhando no corpo acabaram reper-
cola, aprende os códigos da escola, cutindo mais psiquicamente do que
mas isso é uma forma de não trabalhar fisicamente, não era óbvio fisicamen-
a liberdade. Você vai aprender uma te. Mas psiquicamente, sim. [...] Por
técnica, mas o training é você dentro exemplo, eu tinha uma tensão na mão,
daquela estrutura, aprender a desblo- [...] eu nunca conseguia entender por-
quear, porque eu acho que qualquer que a Dinah fazia uma coisa com a
estrutura limita você em uma forma, minha mão. Para mim era porque eu
causa ainda mais bloqueio. estava fazendo o exercício plástico er-
rado ou estava tensionando a mão. Na
verdade, minha mão é um reflexo do
jeito que eu sou, só isso.
32 Nas entrevistas, os atores se referem à estrutura do treina-
mento físico, proposto por Saidpour, como training. O uso da Evelin Reginaldo (2016) conta inclusive que,
palavra training como um termo recorrente na prática da com-
panhia se dá por respeito a uma escolha do próprio Grotowski por vezes, descobertas de associações e ima-
que preferia o uso do termo em inglês.
gens visualizadas durante a execução do trei- com a Dinah e com a Paula... Não sei
por que, eu me irritei, e era a hora de
namento físico foram incorporadas às suas
dar as cambalhotas. Eu dei a camba-
criações como atriz: lhota com a raiva e percebi que tinha
essa possibilidade. Foi engraçado
Que para mim o training é mais do que porque foi algo muito banal, que me
o training só de exercício [...] muitas ve- ensinou muito.
zes, eu criei a partir de algumas estru-
turas que vieram por causa do training.
É nesta relação entre a precisão da forma
[...] Vou começar com a do peixe, a do
Van Gogh33. A imagem do peixe veio e o fluir dos impulsos que ressoa a afirmação
na hora que eu estava fazendo o trai- de Grotowski sobre o objetivo da formação do
ning, depois eu estruturei aquilo, não é
que a estrutura tenha vindo, enquan- ator pelo treinamento negativo: “a liberdade do
to eu estava fazendo o training, mas a intervalo de tempo entre o impulso interior e
imagem surgiu durante o training.
a reação externa em um modo tal que o im-
pulso é já uma reação externa”. (GROTOWSKI,
1968, In FLASZEN e POLLASTRELLI, p. 105)
3. Criação artística
E a diminuição deste intervalo pode revelar ao
e prática do treinamento: precisão e
ator sua própria corporeidade, como comenta
espontaneidade, contato e presença
Dinah Cesare (2016):
Segundo Grotowski (2001), ao ator é sem- A gente fala ‘meu corpo’, a gente não
pre necessário em sua criação compor uma é nada fora do corpo. Não tem uma
coisa pairando aqui, a gente é o corpo.
partitura de ações físicas, baseadas no prin- [...] E você não visualiza fora de você,
cípio da organização e também no fluir dos porque é isso, a gente visualiza, a gen-
te bota a mão na cabeça, porque quer
impulsos. Isto, no treinamento físico, como re-
ter uma hierarquia para cabeça, é o
lembra Joana Levi (2016), pode estar ligado a cérebro. A gente leva a mão à cabeça,
experimentações de novos modos de fazer a mas [...] quando você leva a mão, tem
uma série de musculaturas do corpo
estrutura de acordo com fluxo das sensações, sendo investidas. Então é isso, não é
sem negá-las ou julgá-las: fora do teu corpo essa inteligência por
mais que a gente diga: “aí na cabeça”.
Como é que eu vou impedir que nada
me trave no final das contas? Porque Grotowski (2001) afirma que cada ação físi-
eu posso estar com raiva, Grotowski
é o primeiro a dizer: a gente não co- ca partiria de um movimento subcutâneo que
manda as emoções. Se a gente não seria o impulso, mas que este só existiria na
comanda as emoções para usá-las no
relação com um parceiro. Este parceiro, não
sentido da ação, como é que eu vou
comandá-las para não sentir? Não dá necessariamente o de cena, é a conexão com
para fazer. Porque até hoje, com todas algo externo. Como a ligação com o externo
as apropriações que eu fiz, o que vale
mais para mim é esse lugar de pesqui- é determinante para o impulso e este, por sua
sa sobre meu próprio estado no mo- vez, é crucial na criação do ator, o contato com
mento. Eu lembro um dia que, estava
o externo é fundamental no treinamento nega-
33 Evelin Reginaldo se refere ao espetáculo Dois Jogos e tivo.
Sete Jogadores (2010), dirigido por Celina Sodré. Um dos
textos que compunham o espetáculo eram trechos do livro
Podemos constatar esta determinância se
Cartas a Theo, no qual estão publicadas cartas de Van Gogh analisarmos algumas leis colocadas no treina-
a seu irmão.
mento físico: ver e enxergar; ouvir e escutar; guma coisa ou o training foi ruim”.
equilibrar o espaço; os exercícios devem ser Na criação, a percepção da presença do
realizados em lugares distintos e não podem ator é mais subjetiva, porém, igualmente ne-
levar o ator a se machucar e nem machucar ou- cessária à construção daquilo que Grotowski
tro participante. Se observarmos atentamente, (1968 In FLASZEN E POLLASTRELLI, 2007)
estas leis colocam a realização da estrutura em definiu como a essência da arte teatral – o
contato direto com os elementos externos. Em encontro entre o ator e o público. Sobre isso,
respeito a estas leis, o ator deve se relacionar Bruce Gomlevski (2016) exemplifica: “não, não
com o espaço concreto da sala em que traba- é você conseguir, porque o que é importante
lha, com os parceiros e com qualquer possi- é a tua presença em cena. Isso é o cerne da
bilidade de interferência que possa surgir. Es- questão para mim [...] Teatro é com o público.
tar aberto a esta conexão significa ser afetado Não tem um fim em si mesmo, sabe, não pode
por estes elementos, deixando fluir o impulso. ter um fim em si mesmo”.
Douglas Resende (2016) comenta, por exem-
plo, esta ligação com os elementos externos a
partir do elemento espaço e sua influência no Conclusão
seu trabalho artístico:
Ao analisar as percepções dos atores do
Em relação à consciência do espaço,
eu tinha uma facilidade de saber onde
Studio, notamos que através do treinamento
estavam os objetos, onde estavam as físico foi possível eles experienciarem as pro-
pessoas no espaço em relação a mim, posições de Grotowski sobre o ofício atoral.
me mover pelo espaço com muita faci-
lidade, equilibrar o espaço com muita É interessante perceber, no entanto, que esta
naturalidade, é muito fácil. Como, por possibilidade de experimentação está atrela-
exemplo, andar na rua, até hoje quan-
do eu ando na rua, eu posso estar dis- da, de forma mais contundente, aos princípios
traído com o celular na minha mão e que regem a sua estrutura do que aos elemen-
se vem uma pessoa na minha direção,
naturalmente meu corpo desvia da tos concretos que a compõem. Tal fato nos
pessoa. Então, o treinamento me aju- permite concluir que considerar uma estrutu-
dava nisso.
ra como um treinamento negativo requer uma
Na percepção dos elementos externos, co- vinculação com o princípio da via negativa.
loca-se a questão da necessidade do ator es- Grotowski (1997 apud SODRÉ, 2014) afirma,
tar presente e atento ao que se passa, o que por exemplo, que a escolha de utilizar postu-
Grotowski (2001) denominou como “hic et ras do yoga como base para o treinamento do
nunc”, ou seja, “aqui e agora”. Esta necessi- Teatro Laboratório apenas se deveu ao fato
dade percorre tanto a criação quanto o treina- deste ter sido o material mais acessível a ele
mento. No treinamento físico, o aqui e agora na época. O que realmente importa, na esco-
pode ser verificado no depoimento de Evelin lha deste ou de outro exercício para compor
Reginaldo (2016), quando identifica como no um treinamento, é o modo como um ator se
“training isso fica claro, obviamente, se você relaciona com ele e não o exercício em si. A
está presente ou não, porque se você não está abordagem negativa do treinamento tem como
presente ou você se machuca, ou acontece al- principal finalidade a “percepção de si”, o que
se torna evidente pelas entrevistas aqui anali- FLASZEN, Ludwik, POLASTRELI, Carla. O
sadas. Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959 a
É possível averiguar esta questão, por 1961. Tradução: RAULINO, Berenice. São Pau-
exemplo, em relatos como o da atriz Joana lo: Perspectiva, 2007.
Levi, quando ela deixa fluir a sua emoção du-
rante a execução de um exercício ou de Eve- GOMES, Carolina Almeida. Em busca da au-
lin Reginaldo, quando ela percebe a relação tonomia criativa - uma investigação da relação
da tensão que escapa em sua mão. Ou ainda, entre teatro e pedagogia com base no conceito
no depoimento de Mariana Rosa, quando ela de via negativa. Dissertação de Mestrado. Rio
comenta ter escolhido esta prática de treina- de Janeiro, PPGAC/UNIRIO, 2016.
mento por causa da ideia do não ensinamento. GROTOWSKI, Jerzy. Em busca de um teatro
Neste sentido, o treinamento físico praticado pobre. Tradução: CONRADO, Aldomar. Rio de
no Studio Stanislavski, no Rio de Janeiro, pode Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.
afinar a autopercepção do artista cênico, con-
tribuindo para a elaboração de um processo __________ O Príncipe Constante de Ryszard
autônomo, aqui considerado, como um treina- Cieslak. In BANU, GEORGE. Ryszard Cieslak
mento negativo. – Ator Símbolo dos Anos Sessenta. Tradução:
MALLET, Roberto. 2015.
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GOMES, Ricardo. In: Revista Folhetim, Rio de
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RUFFINI, Franco. Stanislavski e o teatro labo-
CASTRO, R.C.G., Negatividade e Participação: ratório. Revista da FUNDARTE. Montenegro,
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São Paulo, 2009. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro, PPGAC/
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CESARE, Dinah. Pensamento Material: O Trai-
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Cênicas, UNIRIO, 2010.
Recebido: 01/12/2016
Aprovado: 23/12/2016