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SHADILI
„Quando você fala do seu irmão o que é verdade, você o difamou, e quando
você fala o que não é verdade você o insultou.‟”
Ele acrescentou uma bênção de paz, se ergueu e saiu com dignidade através
do grande pátio, recolhendo suas sandálias de mim sem uma palavra.
Depois da prece do crepúsculo, ele mandou me chamar e mandou que eu
levasse seu jantar e dá-lo a um homem que ele disse que estaria esperando
no portão norte da Mesquita de Qarawyn. Ele me disse para fazer a prece
do amanhecer com os outros viajantes e vir para buscá-lo uma hora depois,
com as malas e pronto para viajar.
“Sidi Moulá Abd as-Salam, Sidi Moulá Abd as-Salam...” Ele repetiu o
nome várias vezes e então, invocando o Nome Divino, começou a comer.
Tive o desejo de perguntar quem era Moulá Abd as-Salam, mas pensando
que poderia ser simplesmente o nome que ele usava para se referir a todos,
e que ele poderia ser um Majdub, eu o saudei e voltei à Madrassa.
Por três dias nós viajamos até que alcançamos uma cadeia de montanhas.
Nós tomamos o caminho que subia pelos altos montes e a cada passo nosso
tropeiro olhava para trás, como se tivesse ouvido os movimentos de algum
assaltante oculto, mas meu Mestre olhava sempre para cima, como se
esforçasse para ter um vislumbre de algo no mais alto horizonte. Ele nunca
cessava com a Invocação, de um modo que ultrapassava todo trabalho
espiritual que eu já tivesse a honra de observá-lo fazer.
Nós descansamos apenas por um momento ao meio dia e depois mais uma
vez estávamos a caminho sob um sol escaldante. O chão ficou mais
pedregoso e as sombras das árvores diminuíram, dando lugar a uns cactos
secos e espinhosos que se prendia aos flancos de nossas mulas e as
sangrava. Nós tínhamos pouca água, mas duas vezes meu Mestre apeou e
lavou os fumegantes animais com a água do seu cantil – para a reprovação
desconcertada de nosso tropeiro. Era por volta de uma hora para o por do
sol quando o meu Mestre nos deteve com um sinal e subitamente apontou
para fora da nossa trilha, através de um trecho plano de árvores altas e bem
espaçadas. Nem o tropeiro nem eu questionamos a estranha alteração em
nosso curso, pois agora era o Mestre que nos guiava, e ambos tínhamos
uma percepção de que ele sabia aonde ia, embora nós não soubéssemos.
À nossa esquerda, havia uma laje de pedra nua que sobressaia da grama ao
redor. Tinha a forma de uma caixa aberta, e ao notá-la eu percebi que meu
professor estava meio andando, meio correndo para ela. Escutei a sua voz,
engasgada, clamar, “Allahu Akbar” – “Allah é maior que tudo” – enquanto
estendia ambas as mãos para a pedra. Água saia da pedra, porém, quando
eu olhei para onde caía a água, ela parecia que havia começado a brotar
naquele mesmo instante – mas Allah sabe melhor.
Ele se inclinou para frente e sussurou algo para um dos seus discípulos. O
jovem neófito se moveu através do agrupamento até que chegou ao meu
Venerável Mestre. Ele fez sinal que este o seguisse. Meu professor, eu
percebi de repente, estava completamente aturdido e teve que ser guiado
com grande cuidado para aonde o Uáli estava sentado. Eu senti que talvez
devesse ir e explicar que este, na verdade, não era um mendigo, mas sim o
maior doutor da época e que eu, seu pupilo, estava ali para prová-lo, mas
toda esta incrível jornada havia me deixado consciente que o que estava
acontecendo sob esta árvore no topo do mundo não tinha relação com o que
acontecia abaixo nas academias dos homens.
“Eu esperei um longo tempo por você, meu filho. O louvor pertence à
Allah apenas.”
Ao amanhecer, nem o santo, cujo nome eu havia aprendido que era Moulai
Abd as-Salam ibn Mashish – Que Allah derrame bênçãos sobre a sua
majestosa cabeça! – nem o meu Mestre apareceu. Estavam os dois na
pequena caverna onde o santo meditava e mantinha uma vigília solitária.
Foi logo antes do meio dia quando o meu Mestre apareceu. Ele estava
inteiramente mudado, porém eu não conseguia descobrir como. Quando eu
me ergui para saudá-lo, ele me indicou que sentasse. Ele me entregou um
copo de leite de cabra. Eu estava embaraçado que ele me servisse, pois tal
coisa nunca havia acontecido antes. Ele sorriu gentilmente e indicou que o
bebesse. Dizendo o Nome, eu o ergui a meus lábios. O copo desapareceu,
meu Mestre, a montanha e o céu. E então todos estavam lá, nublados como
em uma nuvem, e eu me encontrei afogando em um oceano de água doce.
Eu lutei para me agarrar – mas a que? Eu não podia mais controlar meus
pensamentos ou meus sentidos. No entanto meu medo me deixou. Eu sabia
que o meu Mestre me olhava, me guardando contra qualquer intrusão ou
interrupção que pudesse afetar o doce vinho que agora crescia em mim, me
intoxicando com o seu poder e beleza. Eu chorei, mas nenhuma lágrima
caiu, o amor me enchia - pelos mendigos que na noite anterior eu achara
tão incômodos, pelo santo que parecia tão remoto e que havia levado de
mim o meu amado Mestre. Nas profundezas do meu ser, eu ouvi
novamente o suspiro do Uáli contendo o Nome Divino. Então veio o anjo, e
do que se seguiu eu não posso falar. Apenas isso é permitido. Glorioso é o
Senhor do Trono. Amén. Amén. Amén.”