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Midori Takada em concerto na capela Imaculada: Renovar a capacidade


da escuta através do silêncio espiritual

A capela Imaculada, no Seminário de Nossa Senhora da Conceição, em Braga, encheu-se de atenção


para ouvir a compositora e percussionista japonesa Midori Takada, que se estreou pela primeira vez
em Portugal. Interpretou o álbum Trough the looking glass, por muitos considerado uma obra-prima
desde 1983, que foi, entretanto, reeditado em 2017. Além deste, ela interpretou outros temas.

Foi um concerto de enorme expressão espiritual, com a sua liturgia, que nos faz pensar em várias
dimensões da própria liturgia cristã. A Palavra, no livro aberto sobre o ambão (mesmo depois da
liturgia, continua a falar), assinalada por aquela lâmpada, ‘eterna’ mas tão frágil, que nos recorda o n.
21 da Constituição Dei Verbum - («A Igreja venerou sempre as divinas Escrituras como venera o
próprio Corpo do Senhor»), permanecia ali em cima da mesa, em diálogo aberto, no exercício da sua
vocação: gerar um povo da escuta (ex auditu). Recordamos, quanto a este aspeto, palavras de Crispino
Valenziano, numa Carta que nos escreveu: «Já em 787 o Concílio Niceno II afirma que o Ambão com o
Evangeliário no seu atril “fala também quando na Aula não está ninguém presente” (assim como a
presença eucarística no nosso “recente” tabernáculo)».

© Joaquim Félix

Aquela corporeidade, palavra e luz, continuou na sua dança a gerar escuta e a alargar as paisagens do
real, através do serviço de Midori Takada: na percussão dos instrumentos, nas performances teatrais,
na poética verbal. Quem tivesse presente Olivier Clément, reconheceria muitos dos aspetos por ele
refletidos na sua obra Teologia e poesia do corpo, sobre o amor humano, a dignidade do corpo e a

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ressurreição da carne. De recordar que este livro «tem em consideração, recuperando aspetos por
vezes esquecidos do cristianismo – a religião da incarnação –, o sentido do corpo e da corporeidade na
tradição espiritual da Igreja católica e ortodoxa». Este concerto, tomado nesta ótica, ofereceu-se como
o livro de Olivier Clément: «Uma obra cheia de poética, sobretudo onde se fala da ressurreição da
carne quando a inspiração poética se une às certezas teológicas e oferecem imagens sugestivas».

© Joaquim Félix

Imagens sugestivas não faltaram durante o concerto. Só de pensar que elas eram criadas a partir do
‘minimalismo’, enquanto estilo musical, por mais que não se tenha consciência nem se reflita nas
‘certezas teológicas’, projeta-nos para aquela habitação de Deus, que se faz próximo, carne, sensível,
no ‘minimum’ e no detalhe: «Deus está nos detalhes» (Ludwig Mies van der Rohe). Até para O
escutarmos de forma diferente. Não deixa de ser curioso que, tendo solicitado o parecer sobre a
oportunidade de acolher este concerto neste espaço, alguém nos tenha respondido sobre a urgência de
cuidar a qualidade do ouvir e de promover o silêncio espiritual: «A Midora é uma extraordinária
percussionista. A sua estética é minimalista (mas isso, hoje, “são muitas coisas”). Penso que a etiqueta
"sacro" ou "sacra" não é cristã. A música dela procura aquele espaço interior de disponibilidade e
abertura que não impõem, de facto, uma narrativa. Mas que bom que as igrejas cristãs possam ser esse
lugar de transparência e hospitalidade onde as pessoas renovem a sua capacidade de escutar. Talvez,
assim, alguns se tornem ouvintes da Palavra. Esse silêncio espiritual talvez possa ser um átrio
para Deus, mais do que o ruído dos seus altifalantes».

Hoje, as pessoas precisam de espaço imaterial

© Joaquim Félix

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Antes deste concerto, Takada deu várias entrevistas, por exemplo, à Agência Lusa e ao Ípsilon do
jornal Público. O que permitiu dar a conhecer, em primeira pessoa, a estética musical que desenvolve e
circunstâncias da sua vida artística. Em Braga, ela selecionou o repertório e os instrumentos
(‘materiais’, no seu entender), de modo a adequá-los ao ambiente específico da capela Imaculada. E, de
facto, isso resultou num desempenho extraordinário, associado, como sempre faz, à sua performance.
Esta adequação é fundamental, porquanto, em suas palavras, «o espaço é o corpo onde a ressonância
se cria».

«Minimalista», «espiritual», «meditativa» são as qualificações que a imprensa e a crítica musical lhe
atribuem. Segundo o jornal The Guardian, Midori Takada é «criadora de uma sonoridade que é
exclusivamente dela». Não sem raízes. Pois investiu numa dedicada pesquisa etno-musical das
linguagens percussivas da Ásia e de África. Após ouvir muitas das gravações obtidas em trabalho de
campo, confessa: «Depois tentei tocar sozinha aqueles ritmos e estruturas polirrítmicas, e fiz a minha
própria música sem qualquer ajuda». E, além disso, beneficiou da sua experiência jazzística e do seu
trabalho na composição de bandas sonoras para teatro e cinema. Pode dizer-se que, no exercício do
seu instinto musical, é uma verdadeira escultora de sonoridades tridimensionais. Como disse à Lusa,
«sempre criei música pelo meu sentido de mim própria», a partir das suas inquietações, tensões,
esperanças e desejos de relaxamento. No fundo, exprime-se como todas as pessoas. E, por isso, na
sequência da evolução do minimalismo, acrescenta uma das carências atuais, que também pode ser
lida em termos de transcendência da materialidade: «Hoje, as pessoas precisam de espaço imaterial».

© Joaquim Félix

É um tema que remete para a espiritualidade. Não sendo possível apresentar aqui a sua carreira, por
mais de três décadas desconhecida, assegura Gonçalo Frota, no texto que escreveu no Ípsilon: «Ainda
vamos a tempo de nos deliciarmos com uma música que não dá tréguas enquanto navega pela
insistência, pela estranheza, e pela ligação íntima à Natureza e à espiritualidade. Afinal, diz-nos a
japonesa, praticar o minimalismo obedece a uma disciplina muito árdua – semelhante à de um
monge. E ela pratica-o como poucos».

Ainda a propósito do minimalismo, por ela praticado, podemos ler na Pitchfork (publicação diária
online dos E.U.A., sediada em Chicago, dedicada à crítica e aos comentários musicais, a produzir
notícias sobre música e entrevistas a artistas): «Num mundo perfeito seria tão importante quanto
Steve Reich». Em todo o caso, como escreve Gonçalo Frota, «se o minimalismo de Reich não era de
acesso muito complicado para alguém que se movimentava na esfera da música erudita
contemporânea, a pesquisa por músicas tradicionais (por vezes distantes) não era algo que se pudesse
realizar sem uma considerável tolerância à frustração». E isto, porquê? Porque era mais difícil fazê-lo
desde o Japão. Todavia, como declara ao Ípsilon, deixou-se cativar pelo minimalismo, na medida em
que, no seu entender, se trata de «um sistema muito moderno de estrutura, e que por isso não é apenas
expressão». E, nessa medida, defende uma diferença entre este e a música dita ‘clássica’, que está na
base do seu interesse: «A música clássica era pensada como expressão de emoções, de sentimentos e

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de paixões humanas, mas o minimalismo é um sistema que permite estabelecer uma relação com os
outros – outras culturas, outras tribos, outros mundos».

U sem o vo sso co rp o e, assim , irão so bre v iver


Midori Takada associa ao toque dos instrumentos a voz em registo poético e, ainda, a performance
‘corporal’ no espaço, numa narrativa ritual que alastra a semântica das linguagens a infinitas
polissemias sensoriais. De facto, não nos impõe nenhuma narrativa, antes, respeita a de todos os
ouvintes. O seu poder de criação, que tanto a caracteriza, fá-la dizer que «a música é um dos nossos
instintos para tornar o espaço seguro. Daí eu dizer “usem o vosso corpo” e, assim, irão sobreviver».
Usando o corpo, por itinerários instrumentais, Takada atenua o poder ‘simbólico’ do digital e do
automatismo, que, em seu entender, estão na origem do «declínio do corpo humano».

Não obstante o longo silêncio entre a aparição do álbum Through the Looking Glasse a sua reedição,
em 2017, Midori Takada sustenta que permanece fiel ao seu estilo desde o início: «Não mudei desde
essa altura, o que talvez possa ser pelo meu sentido de uma era diferente, já que nasci numa célula de
antiguidade remota». Tendo a oportunidade de agora viajar por todo o mundo, está a oferecer a sua
música, num gesto de generosidade às audiências: «Só toco para dar o meu som à audiência. Se as
pessoas o receberem, a minha música tem conclusão».

© Joaquim Félix

A reação das pessoas que participaram no concerto de Midori Takada traduziu-se em profundo
reconhecimento pela sua generosa partilha; receberam a sua música e deram-lhe, como ela assim
aprecia, a sua ‘conclusão’. Gratidão fez-se notar mesmo da parte de quem acompanhou o concerto à
distância. E porque também estamos agradecidos a Asbjörn Andresen, que tanto se empenhou na
qualificação do espaço da capela Imaculada, não podemos terminar sem transcrever as suas palavras:
«Sinto-me orgulhoso e satisfeito pelo facto de o nosso trabalho na capela Imaculada em Braga,
Portugal, se ter tornado num centro de interpretação contemporânea de alta qualidade de música e
performance! Como aqui. Agradeço aos meus amigos da Igreja Católica e a uma série de outros
amigos íntimos! Não menos para ver a arte sustentar um estado de espírito, uma presença!» Do
concerto neste espaço, deixamos, abaixo, a ligação para quem desejar ver o álbum das fotografias
tiradas por Hugo Sousa.

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© Joaquim Félix

Au d i t ó r i o d e E s p i n h o , d i a 1 7 d e n o ve m b r o
Depois dos concertos no dia 23 de novembro na capela Imaculada, em Braga, e no dia 15 na Culturgest,
em Lisboa, há ainda a possibilidade de participar no último concerto agendado para Portugal, ou seja,
no próximo sábado, dia 17, no Auditório de Espinho. Pela experiência vivida em Braga, seguramente
que voltará a proporcionar-se aquela «mistura fascinante de ambiente contemplativo e delicadeza
infantil», para usar palavras do New York Times.

Texto e fotografias: Joaquim Félix


Publicado em 17.11.2018
 

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