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Cenas que bem poderiam ser de cinema a parte, por volta das nove da manhã
de domingo eu cheguei em Ariquemes. A reunião das sete da manhã estava no
fim, mas eu não teria coragem de ligar para o Emilson para que ele fosse me
buscar na rodoviária. Peguei minha bagagem e tomei um caminho bem longo e
tortuoso para a igreja. Eu tinha muito medo da reação das pessoas em relação a
meu regresso. O Emilson não gostava de mim e ele não fez esforço algum para
esconder dos obreiros isso. Não sabia como seria recebido de volta. Cheguei de
mansinho, sentei no último banco. Um obreiro foi me receber, Everton o nome
dele, tinha 17 anos na época. Era filho da obreira dona Vanda e irmão do obreiro
Giovanni, mas depois eu falo dele. No fim da reunião o pastor Emilson mandou
me chamar no escritório. Na verdade a raiva era recíproca. Eu também não
gostava muito do pastor Emilson, afinal eu nunca dera motivos palpáveis para a
antipatia que ele nutria por mim, não tinha sequer levado minhas roupas para
dentro. Estava preparado para ser despachado naquela mesma hora. Para
minha surpresa eu até fui bem recebido. Ele disse que eu tinha causado muitos
transtornos para ele mas disse também que não tinha o direito de me julgar
precipitadamente, e que já que eu era seu novo auxiliar tínhamos que nos dar
bem.
Posso dizer que nasceu alí uma relação de respeito e admiração pelo pastor
Emilson. Ele era do tipo de homem mais simples possível, chegando a ser
rústico, de uma pureza de sentimentos encantadora que compensava com folga
toda a antipatia de um homem que tinha vivido a vida da maneira mais adversa
possível. Claro que não quero nem vou colocá-lo num pedestal. Como todos os
pastores da Igreja Universal, inclusive eu mesmo, ele sabia muito bem o que
fazia lá dentro. Sabia que para a igreja o povo não valia nada, era uma simples
maneira de se arranjar dinheiro. O que diferenciava o Emilson dos outros era
seu senso de humanidade. Acho as vezes que ele não tinha se corrompido ao
nível de todos os outros pastores que conheci. Não tinha toda a arrogância e
prepotência que se encontram em todos os grandes pastores. Era pai de cinco
filhos, talvez isso fizesse com que ele pensasse um pouco melhor no que fazia.
Era rígido como pastor, mantinha os obreiros na rédea curta, exercia muito bem
sua autoridade de pastor regional sem contudo ser autoritário ou indesejável.
Sabia conversar bem e não diferia muito uma repreensão de um elogio, passava
uma repreenda com o mesmo tom de voz de um agrado. Era instável também,
variando o humor a medida que variava o gráfico de arrecadação da igreja,
sabendo pedir muito bem grandes ofertas e levar a pão-de-ló os empresários da
igreja. Esse era, na minha opinião, seu maior defeito. Era notória sua preferência
com os obreiros de conta bancaria maior, mas não o condeno por isso. Eram
esses obreiros que garantiam a ele o título de pastor Regional.
Aos poucos o monstro que o pastor Reginaldo descreveu e que eu mesmo tinha
criado em meu imaginário foi se transformando. Passei a conviver com o
Emilson. Até então eu havia passado muito pouco tempo com ele. O dia a dia
me mostrou a verdade. Era o que se pode chamar de um homem vivido. Já era
casado e bem sucedido quando se tornou pastor, tinha carro e casa que doou
para a igreja quando assumiu o altar. Havia gasto toda a sua vida naquela obra,
conquistado o amor dos fiéis e obreiros e o ódio dos pastores rivais. Todos os
grandes pastores são rivais. E passei a entender os motivos do Reginaldo
desejar a ruína dele e porque ele tinha tanto rancor da minha pessoa. Eu era
protegido do Reginaldo, representava uma ameaça para ele. Um dia ele me
contou que os dois haviam brigado no passado. Não quis entrar em detalhes, eu
também não insisti para isso. Ele era praticamente o último no estado dos
tempos do pastor Iranildo. Tinha uma doutrina de trabalho totalmente diferente
dos outros pastores. Doutrina que funcionava bem em Ariquemes, igreja que ele
vinha mantendo com um mês constante, sem muitas quedas. Não tive coragem
de lhe falar sobre os planos do Reginaldo e nem dos motivos da minha ida para
a igreja dele.
Sim, Ariquemes pertencia ao pastor Emilson. Ele conhecia cada membro, cada
obreiro. Era amigo pessoal da maioria, sustentava todos os problemas quase
sozinho, era auto-suficiente, era um pai para todos na igreja. Todas as quartas
organizava uma partida de futebol na quadra ao lado da sede regional. Os
obreiros iam para jogar e as obreiras para torcer, até eu acabei entrando na
dança. Sedentário convicto desde criança, cheguei a calçar chuteira e jogar uma
partida de futebol no time contrário a ele. Claro, foi uma derrota humilhante, ele
não gostava muito de perder no futebol. Tudo parecia estar indo bem em
Ariquemes, eu não era cobrado pelo Emilson e a igreja caminhava. Até que o
Reginaldo passou a me cobrar por “resultados” em minha empreitada. Eu me
sentia mal com aquilo. Não queria trair o Emilson que me tratava tão bem, ele foi
o primeiro pastor a me levar para jantar na casa dele. Me trazia almoço todos os
dias. Mas também não queria desapontar o Reginaldo, que tinha mais poder que
ele e que tinha me ajudado tantas vezes. Não posso dizer que não ajudei no
processo de degeneração do nome do Emilson. Eu respondia as perguntas que
o Reginaldo me fazia, muitas delas sabidamente nocivas a reputação do pastor.
Mas o declínio do mês da igreja foi o principal fator para que ele fosse
substituído. Não sabíamos o que estava acontecendo, simplesmente o mês da
igreja passou a decair. Quando o pastor foi transferido estava em apenas R$
12.000,00, um valor muito baixo para os padrões de Ariquemes.
Até agora eu só falei aqui das desgraças nos pequenos níveis na igreja, da
pobreza dos membros, da humilhação dos obreiros e da vida dura dos
auxiliares. Esses são com certeza as maiores vítimas da quadrilha de Edir
Macedo, mas queria parar e falar um pouco da história do pastor Emilson. Foi
com o exemplo dele que eu vi a “família Universal” que tanto era pregada por
bispos e pastores ruir por completo. Foi com o exemplo dele que eu vi, de uma
vez por todas que estava dentro de um cartel ou coisa parecida, vamos a ela.
Choque. Foi o que eu senti ao ver aquele grande homem desolado, e eu não
estou exagerando nem protegendo a moral do Emilson. Não, estou sendo justo.
Ele e eu sabíamos bem que não seria fácil devolver o fôlego à igreja. Os
obreiros estavam exauridos, três deles já haviam declarado falência. Não se
tinha mais de onde tirar, não em época de crise como a que o país já vivia
quatro anos atrás. Só havia uma solução, uma possibilidade, orar e jejuar, contar
com Deus para que a situação mudasse.
A tortura psicológica foi terrível, a cada dia o estado do pastor piorava. Era triste
ver um homem animado e cheio de vida como Emilson naquelas condições, era
desolador. A renda mensal dele era de R$ 1000,00, tirando dizimo, contribuição
para uma espécie de clube de pastores, previdência social, e um plano de saúde
que ele pagava, sobravam menos de R$ 600,00 para sustentar uma casa com 5
filhos. Eu sei que para os padrões do Brasil é até uma renda razoável, mas ele
precisava manter o padrão de vida de um pastor regional. Precisava se vestir
bem e não deixava de lado os prazeres da mesa. A ameaça do bispo Milton
reduziria o salário dele a R$ 600,00, com todos os descontos ele sobreviveria
com cerca de um salário mínimo. Teria de voltar a andar de ônibus, seria
humilhado na frente de mulher e filhos na catedral, seria demais para ele. Os
bispos da igreja me ensinaram que o diabo dá a seus filhos. Ele dá com uma
mão, mas tira com as duas, diziam eles. Não me pareceu diferente com a
própria igreja, que dá de tudo para um pastor que está por cima, arrecadando
bastante, e tira tudo de um pastor que não cumpre com suas metas financeiras.
Pastores que arrecadam bem tem boa renda, podem ser o que for, solteiros ou
casados, não importa se um pastor tem um ou dez filhos, o que importa é que
ele arrecade bastante. Se não pedir dinheiro dos fiéis ele e sua família são
escorraçados da igreja. O motivo pelo qual eu estou defendendo o pastor
Emilson agora está no fato de que ele não explorou seu povo ante a
necessidade de arrecadar mais. Eu acho que ele deu a volta por cima.
"Mas a fé, como um chacal, pasta entre os túmulos e por certo, nas
dúvidas profundas firma sua presença mais vital."
Foram dias de fé onde eu senti novamente o fogo que me movia antes. O tal
“primeiro amor”. Por um momento senti que iríamos vencer o desafio, a cada
noite em claro, visitando cemitérios, chutando trabalhos de macumba, jogando
sal na rua, me sentia mais vivo, mais “homem de Deus”. O pastor Emilson me
devolveu o amor pelo que eu fazia e eu voltei a sentir prazer em viver na igreja.
Finalmente chegamos no fim do mês. Tínhamos conseguido um acréscimo de
R$ 3000,00, uma vitória difícil de ser conquistada, mas não foi suficiente.
Voltei a cena do escritório, só que dessa vez quem chorava era eu, olhando nos
olhos do pastor Emilson, que a esta altura já havia superado a primeira
decepção. Eu não pude conter as lágrimas, abracei-o e confessei tudo que eu
tinha feito, os reais motivos da minha ida pra Ariquemes e implorei de joelhos
por perdão. Ele colocou as mãos sobre minha cabeça e disse: Meu filho, Deus já
te perdoou há muito tempo e eu te perdôo. Só o Emilson sabe o que ele sofreu
depois disso. O bispo Milton realmente o humilhava nas reuniões da catedral,
fazendo ele dar corridas (ele era gordo) no meio da igreja lotada, xingando ele
na frente de todos os pastores do estado, chamando a mulher dele de vulgar, os
filhos de desobedientes. Eu entendo os motivos dele em agüentar tudo aquilo.
Como a maioria dos pastores casados, Emilson não tem onde ficar, não tem
profissão, nem família. Tudo que ele possui na vida é a Igreja Universal. É o
passado, o presente, e tem que ser o futuro dele. Não há saída, a igreja é como
uma grande máfia, isso sim, onde na maioria dos casos só se sai morto. Ele
perseverou, e acabou sendo designado para a igreja do 4 de janeiro.
Emerson Silva
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