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Conto de Otrebor Ozodrac

Da Série: Um Certo Detetive

A CONFISSÃO

— Conto de Otrebor Ozodrac

O PADRE:

Constantino Aliheve, com os seus sessenta e nove anos, dos quais trinta e oito
prestados como pároco da pequena cidade denominada Riacho Seco, com menos de
trinta mil habitantes, era considerado pelos paroquianos como quase um santo. Todos o
estimavam. Quando novo, participava de todas as festas que havia na cidade. Jogava
futebol com a garotada, visitava todos os enfermos, o que continua a fazer até o presente
momento. Orgulhava-se de haver batizado mais de sessenta por cento da população da
cidade. Vivia na casa paroquial, onde tinha como sua fiel governanta dona Mercedes,
que o tratava como fosse ele um santo.

O velho padre costumava seguir um programa semanal e não se afastava dele,


fizesse chuva ou sol. Às segundas-feiras, visitava todos os enfermos, iniciando pelos
que estavam hospitalizados e depois, pelos que estavam em casa acamados; às terças-
feiras, dedicava-se aos estudos da fé e colocava a correspondência em dia; às quartas-
feiras, ouvia as confissões; às quintas-feiras, tirava o dia para fazer visitas aos fiéis que
o convidassem para frequentar as suas casas; às sextas-feiras, voltava a visitar os
enfermos; aos sábados, preparava os sermões para o domingo.

Era uma quarta-feira, deveria ser por volta das onze horas da manhã, o sino da
igreja toca, chamando os fiéis. Mas não era dia nem hora do sino tocar. O que queria o
padre chamando os fieis a essa hora da manhã?

O primeiro a chegar foi o sacristão, que morava nos fundos da igreja. A segunda
foi dona Terezinha da Conceição, que estava rezando.

Logo, uma pequena multidão olhava para o alto e com espanto dizia:

— O padre Celestino Aliheve se enforcou!

O corpo do padre estava suspenso pelo pescoço na corda de badalar o sino. Seus
braços estavam estendidos ao longo do corpo, a cabeça virada para o lado, assegurava
que o pescoço tinha partido. Os bombeiros voluntários foram chamados e o resgate foi
iniciado. Após alguns minutos de preparação, o corpo do padre foi baixado. As beatas
choravam, umas se desesperavam, e aos gritos diziam:

— Foi obra do satanás, ele era um padre tão correto, vivia somente para a sua
paróquia. As beatas formaram um grupo de vigília, que velaria o corpo do vigário
suicida.

O bispo foi chamado e, quando perguntado, ele respondeu que concordava com
as beatas, tinha sido obra do demônio. Que o padre Constantino sempre fora
irrepreensível, sua carreira sacerdotal fora balizada pela retidão de princípio e amor ao

Roberto Carlos Cardozo


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próximo. O velório foi na igreja, onde compareceram quase todos os habitantes do
lugar, deixando mais de dez mil assinaturas no livro de presença.

O bispo oficiou a missa de corpo presente. Em seu sermão, exaltou a vocação do


padre Celestino Aliheve, que tinha sido ordenado padre aos vinte e seis anos, tendo
exercido o sacerdócio por quarenta e três anos. Em todo esse tempo, nunca teve um
único deslize de conduta sacerdotal.

Final da missa, o corso segue para o cemitério, nunca se houve dizer ter havido
um enterro de tamanha proporção. Quadras e quadras de carros e ônibus levaram o
padre Celestino Aliheve a sua última morada. Uma lápide em mármore branco esperava
o féretro que estava chegando. As mulheres estavam todas vestidas de preto, com véu
preto cobrindo a cabeça.

Muito choro, lágrimas eram derramadas, cânticos gnósticos eram entoados. O


caixão desce à cova, a tampa da lápide é forçada por dois homens fortes até se assentar
sobre a murada de contenção do cubículo, onde descansava o corpo do vigário. Flores
foram colocadas sobre a lápide até cobri-la por completo. Aos poucos, a multidão foi se
deslocando, restando apenas um homem solitário, que pega uma rosa vermelha e a
coloca sobre as demais flores que cobriam o túmulo.

A INVESTIGAÇÃO

No dia seguinte ao enterro, na diocese, o bispo procura a lista de anúncio do


jornal e lá encontra nos pequenos classificados:

HERCULAN — O Detetive.

Especialista em desaparecidos.

Investigações de adultério.

Informações confidenciais.

Telefone 011.525.3333

— Alô, é Herculan, o detetive.

— Bom-dia, senhor! Aqui é o bispo diocesano, eu preciso de um trabalho muito


sigiloso. Caso o senhor queira prestar esse serviço, é necessária a mais absoluta
discrição.

— Senhor Bispo! Isso faz parte da minha profissão.

— Eu gostaria que o senhor viesse aqui na diocese para que eu pudesse lhe
explicar no que consistirá o seu trabalho.

— Mire, Senhor Bispo. Meu escritório fica nos fundos da barbearia Central, na
Rua Tiradentes no. 110, no Centro. Amanhã, às dez horas, pode me esperar que ai
estarei.

Roberto Carlos Cardozo


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Herculan Decrois era um homem feliz: holandês, radicado no Brasil, desde a
adolescência, pois seu pai era cônsul da Holanda. O grande detetive, com um metro e
noventa e oito, calçava o n.º 54, por isso tinha que mandar fabricar seus calçados. Tinha
as faces rosadas, com ausência de barba, mais parecendo a face de um bebê, e um nariz
adunco, aquilino, que fazia uma leve curvatura como o bico de um falcão. Seus olhos
cinza-claros eram sempre escondidos por um par de óculos espelhado. Pelo seu grande
tamanho, caminhava arqueado, nem gordo, nem magro, com uma barriga de abundante
dimensão, dado ao hábito de tomar cervejas. Seu escritório ficava escondido no fundo
da barbearia Central, que era sempre atravessada pelos seus clientes, que não raras
vezes ficavam fregueses para o corte de cabelo e barba. Herculan dizia que o local era
estratégico, pois seus clientes não tinham que se cuidar ao procurá-lo, pois poderiam
apenas estar frequentando uma simples barbearia. Enfim, não causava suspeita. Seu
hábito de vestir era o mais normal possível, calça e camisa esporte. Dizia que era para
não causar suspeita. O grande detetive careca estava sentado à mesa de trabalho, com
um charuto entre os dentes manchados, contemplava o livro de anotações à sua frente.

Nele escreve: acabo de me comprometer em um trabalho no bispado, nunca


antes lidei com padres e bispos. Mas, há sempre uma primeira vez.

Ele fecha o livro, dá uma baforada no charuto, e o troca de lado na boca. E fica
ali pensando:

— Que terá um bispo para ser investigado? Isso eu vou saber amanhã, agora
vou tomar uma cerveja e comer um lanche, amanhã será um longo dia.

Às dez horas, Herculan Decrois chega à diocese, aperta a campainha, e fica à


espera. Logo a porta foi aberta e um homem em um traje preto, com um colarinho
branco, usado pelos padres, disse:

— Bom-dia senhor Herculan! Estou certo? O bispo está lhe esperando.

— Está certo, sou o detetive Herculan Decrois.

— Por aqui, por favor, me acompanhe.

Um corredor os levara até uma grande sala, onde se encontrava o bispo sentado
em uma poltrona. O recepcionista, se dirigindo ao bispo, disse:

— Vossa Excelência Reverendíssima, aqui está o senhor Herculan Decrois.

Herculan fez uma grande mesura ao se aproximar do bispo e disse:

— Vossa Reverendíssima Excelência, estou muito orgulhoso de poder prestar-


lhe um serviço.

O bispo estendeu-lhe a mão e Herculan beijou o anel episcopal.

— Sente-se, senhor Herculan. Irei logo ao assunto.

Roberto Carlos Cardozo


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Um dos nossos vigários, após haver soado o sino da paróquia, chamando os
fieis, apareceu enforcado na corda de bater o sino. Acontece que este padre era o melhor
de todos os padres que conheço. Nunca, durante anos de bispado, tive qualquer queixa
dele. Era uma pessoa ilibada, muito responsável e um trabalhador inquestionável.

Seu trabalho acontece com o maior sigilo e discrição para investigar o ocorrido.
O que teria levado o padre a cometer o suicídio, parece ter acontecido, ou se houve um
atentado contra a vida dele?

Seus honorários serão pagos pela diocese. O grande detetive levanta, faz uma
mesura, e se afasta. Dois dias depois, Herculan Decrois chega a Riacho Seco. Vai se
hospedar no único hotel da cidade.

— Bom-dia!

— Bom-dia! — lhe disse o atendente.

— Sou Herculan Decrois, enviado do bispo, para verificar as necessidades da


paróquia, já que o padre capelão está morto. Ele quer saber os anseios dos fiéis, para
melhor escolher o padre que mandará substituir o vigário morto. E desejo um quarto por
alguns dias.

— Aqui temos um de primeira classe, com banheiro privativo, ar-condicionado e


televisor.

— Serve esse mesmo. A propósito, há serviço de refeições no hotel?

— Café da manhã e jantar, almoço não, mas tem um restaurante a quilo nesta
mesma rua.

O pé grande se instala no hotel. Como já passavam das dezessete horas, resolveu


que iria iniciar as suas investigações no dia seguinte.

Antes das sete horas, o detetive já levantara e se dirigia ao restaurante para tomar
o café da manhã. Ele abre a porta, dá bom-dia a todos que estavam no recinto, e se
dirige ao balcão do café e sucos, onde estava um senhor servindo-se. O detetive,
aproximando-se diz:

— Bom-dia senhor, bem surtido o desjejum neste hotel, não acha?

— Já estou acostumado, sempre pernoito neste hotel, quando estou pela cidade.

— O senhor é vendedor?

— Sim, sou vendedor de cosméticos e o senhor?

— Sou uma espécie de agente de informação. Agora, vou fazer uma pesquisa
para o bispo, para saber o que a sociedade católica desta cidade espera do novo
sacerdote, que ele deve enviar para cá.

Roberto Carlos Cardozo


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Eles terminaram de servir o café e foram sentar à mesma mesa.

— Mire senhor?

— Ramiro Sartora, às suas ordens, para serviços leves.

— Herculan Decrois, para serviços pesados.

— Mire senhor, Sartora! O senhor vem sempre a esta cidade? Conhece os


costumes da população?

— Não, senhor Herculan, não conheço, venho regularmente a cada dois meses,
para tirar pedidos de reposição de estoques. Permaneço, no máximo, por dois dias.

Logo após o café, eles se despediram e Herculan se dirigiu à casa paroquial,


onde encontraria a zeladora.

O carro surrado de Decrois estaciona na frente da casa, ele olha a casa e pensa:
“Morava bem o padre falecido.”

Bate à porta e espera. Logo ela é aberta e surge uma senhora com mais de
sessenta anos.

— Bom-dia, minha senhora, permita que me apresente, sou Herculan Decrois, e


estou aqui a mando do bispo.

— Se veio me demitir eu posso dizer-lhe que conheço os meus direitos.

— Nada disso, minha senhora. Eu quero saber, a mando do bispo, o que os


paroquianos esperam do novo sacerdote que deverá substituir o vigário falecido.

— Ah, assim tá bom, pode entrar, a casa é sua.

O detetive arria a grande carcaça sobre uma poltrona da sala, a zeladora faz o
mesmo e ele diz:

— Mire dona?

— Mercedes, às suas ordens, senhor Herculan.

Eu a considero a mais importantes paroquianas, por isso, começarei pela senhora


o meu levantamento. Vou lhe fazer algumas perguntas. A senhora esteja à vontade para
las responde como entender melhor.

O que a senhora espera do novo sacerdote que virá para a paróquia?

— Que ele seja tão bom como era o falecido.

— Então me conte como era o falecido?

Roberto Carlos Cardozo


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— Ele era o homem melhor do mundo. Nunca reclamava nada, não exigia nada
de especial. Eu até tinha dificuldade de preparar a comida dele. Ele nunca pedia nada
especial, eu tinha que improvisar as receitas, ele sempre comia e achava bom. Um dia,
eu salguei o feijão, ele comeu sem reclamar, eu só percebi que o feijão estava salgado
quando eu fui comer.

Sim, mas, nos últimos tempos, ele parecia preocupado?

— Agora que o senhor tá falando é que eu estou me dando conta. Há uns dois
meses ou mais, ele começou a ficar quieto. Eu lembro que um dia ele chegou muito
melancólico, eu lembro bem, pois nesse dia eu tinha preparado uma sopa de espinafre
que ele gostava, dizia que o espinafre tinha ferro, que era bom para o sangue. Eu servi a
sopa, ele mal provou e foi logo se deitar. Aquele dia ele quase não falou, parecia que
estava preocupado com alguma coisa.

— Mire, dona Mercedes, ele voltou logo ao normal?

— Não, não, passou vários dias quieto, quase sem falar. Daí em diante, parecia
que não era o mesmo homem. Sabe, seu Herculano...

— Herculan, dona Mercedes, Herculan.

— Pois bem, seu Herculano. Quer saber o que eu penso? Que ele se matou
porque tinha doença braba: câncer, e quando ele soube da doença ficou tristonho e
terminou se matando.

— Faz sentido, dona Mercedes, se ele era um homem tão bom assim, não
merecia uma morte sofrida.

— Veja só, seu Herculano!

— Herculan, dona Mercedes!

— Tá bem, seu Herculano! Na última semana, quarta feira, antes da quarta, que
ele se matou, ele veio para casa, numa tristeza de dar dó. Não quis jantar, ficou até altas
horas da noite sentado na cadeira de balanço, olhando para um ponto fixo. Não é que na
outra quarta-feira ele se matou, antes do almoço, logo após ter terminado de ouvir as
confissões da semana.

— Mas, mudando de prosa, dona Mercedes, como a senhora gostaria que fosse o
novo vigário? Um homem jovem, ou um homem já de certa idade?

— Tanto faz! Desde que seja um homem bom e justo, como o padre Aliheve,
pode ter qualquer idade.

— Bem, dona Mercedes, foi um prazer conhece-la. Devo visitar as autoridades


da cidade.

Herculan Decrois sai e entra no carro. Acomoda-se no banco, pega um charuto,


corta a ponta e acende, tira várias baforadas, e pensa: a nem percebeu que me deu

Roberto Carlos Cardozo


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algumas pistas importantes. Às quartas-feiras, ele ouvia as confissões, e nesse dia é que
ele ficava preocupado.

Desceu do carro, bateu a porta e se dirigiu à igreja, que ficava ao lado da casa
paroquial. A porta estava aberta e ele entrou. O sacristão estava a limpar os castiçais.
Decrois se benzeu, ajoelhou, rezou por alguns minutos, fez o sinal da cruz e levantou,
dirigindo-se ao sacristão. A ele disse:

— Bom-dia, senhor sacristão!

— Bom-dia, se está procurando o padre Aliheve, posso lhe adiantar que ele
faleceu na semana passada. A igreja só está aberta porque eu tenho que fazer o meu
serviço.

— Mire senhor?

— Homero Honório dos Santos, às suas ordens.

— Seu Homero! Sou Herculan Decrois e fui enviado pelo bispo para ouvir os
anseios dos fiéis e da comunidade. Ele quer enviar um padre que atenda tais anseios.

— Vai ser difícil achar um padre com as qualidades do nosso padre Aliheve, vai
ser muito difícil.

— Você gostava muito dele, não é?

— Ele era um pai para mim. Se não fosse ele, eu tinha morrido de tanto beber
pinga. Ele foi o único que me deu uma oportunidade, quando todos na cidade me
desprezavam. Ele conversou comigo e me fez prometer que nunca mais iria beber e eu
nunca mais bebi. Empregou-me como sacristão, isso foi há dez anos.

— Mire, seu Homero! As beatas costumam vir à igreja a que horas do dia?

— Devem já estar vindo, elas chegam por volta das dez horas.

O sacristão continuou seu trabalho, o detetive sentou em um dos bancos e ficou


aguardando a chegada das beatas.

A primeira a chegar foi dona Matilde. Ela entrou na igreja, se benzeu com água
benta, ajoelhou-se e pôs-se a rezar. O pé grande a olhava de longe. Teria que deixa-la
rezar primeiro para depois abordá-la. Outras beatas começaram a chegar. Ele continuou
a esperar uma oportunidade para falar com as mulheres.

O grande detetive levantou e colocou-se à frente do grupo de mulheres que


rezavam e disse:

— Bom-dia, minhas senhoras! Sou Herculan Decrois e estou aqui a mando do


bispo. Ele quer saber o que os fieis esperam do novo vigário que ele mandará para cá.

Dona Matilde, possivelmente a líder do grupo de beatas, disse:

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— O senhor acha que existirá alguém que possa substituir o padre Constantino?
Está enganado, ele era um padre muito competente e organizado. Na igreja, tudo
funcionava com ele. Tinha tempo para ouvir todos os lamentos dos fiéis. Tinha até
gente de fora que vinha se confessar com ele. O senhor sabe que nas últimas quartas-
feiras um homem que, certamente, não era da cidade, vinha se confessar com o padre
Aliheve. Eu sei, pois, sempre estava aqui nas quartas-feiras.

Seguiram-se as intervenções de outras beatas, umas preferindo um padre novo,


outras, um velho, outras, um de meia idade, mas em todos os casos, que fosse um
homem que tivesse o perfil do padre falecido.

O esperto detetive já tinha formado a sua teoria, iria investigar mais a dona
Matilde, que teria certamente muito a informar.

UM SUSPEITO

Herculan Decrois, logo após a reunião com as beatas, as quais deram sua opinião
sobre o futuro sacerdote, se aproximou de dona Matilde e disse em voz baixa.

— Eu ainda gostaria de continuar a falar com a senhora.

As demais beatas se retiraram, ficando somente, na igreja, Herculan Decrois e


dona Matilde. O detetive, dando uma de curioso, disse:

— Mire, dona Matilde! Eu fiquei curioso quando a senhora disse que vinham
pessoas de fora para se confessar com o padre Aliheve.

— Sim, senhor! Eu sou uma boa observadora e estou sempre na igreja,


principalmente às quartas-feiras, que é dia de confissões. Não é por nada, mas eu gosto
de apreciar as pessoas virem se confessar.

— Sim, eu imagino que muita gente venha se confessar.

— Há uns quatro meses a trás, devia ser perto das dez horas, um homem bem
arrumado, me pareceu ter mais de trinta anos, entrou na igreja, se benzeu, rezou um
pouco e ficou na fila de espera da confissão. Voltou a aparecer quatro semanas depois.
E, no dia do suicídio do padre Celestino, assim é que eu o chamava, o homem esteve se
confessando.

— Mas, a senhora disse que se tratava de um forasteiro, como é que a senhora


sabe disso?

— Ah, seu representante do bispo! Eu sou uma mulher que não dou ponto sem
nó. Enquanto ele estava no confessionário, eu vi um carro com placa de Rio Curvo, só
poderia ser dele. Um carro bonito e novo.

— Mire, dona Matilde, apenas por curiosidade, a senhora, sendo observadora,


certamente viu a placa do carro?

Roberto Carlos Cardozo


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Dona Matilde abriu a carteira, tirou de dentro um pedacinho de papel e entregou
a Herculan. No papel estava escrito IEB 1345, Rio Curvo.

Era tudo o que o detetive queria. Ele, usando a sua memória fotográfica,
registrou tudo, fazendo uma associação das letras e dos números. Não poderia anotar,
pois, dissera que era apenas curiosidade tudo aquilo que perguntara.

— Mire, dona Matilde! Foi um prazer conversar com a senhora. Vou


recomendá-la ao bispo, como pessoa de grande influência na comunidade católica da
cidade.

— Faça isso seu representante do bispo, eu lhe ficarei muito grata.

Herculan Decrois se despediu e foi logo para o carro. Lá anotou todos os


detalhes do levantamento que fizera com dona Matilde: placa do carro IEB 1345 Rio
Curvo.

De volta ao hotel, ele abre o “notebook”, conecta-o na internet e faz a pesquisa


na página do DETRAN. A placa pertencia ao carro de propriedade de José Jovino
Santos.

No dia seguinte, o detetive chega a Rio Curvo, passava das nove horas da
manhã. Ele chega no DETRAN de Rio Curvo.

— Bom-dia meu senhor. Eu sou Herculan Decrois, e estou há procura do senhor


José Jovino Santos. Ele tem um carro com placas IEB 1345, emplacado nesta cidade.
Acontece que nós estivemos hospedados no mesmo hotel e ficamos de nos visitar,
oportunamente, eu perdi a anotação do endereço dele.

— Sinto muito, senhor, mas não prestamos tais informações. Para lhe ajudar,
posso lhe aconselhar que procure o despachante, fica ali na esquina.

— Muito obrigado, farei isso.

Herculan vai ao escritório do despachante.

— Bom-dia! O pessoal do DETRAN, me aconselhou a procura-lo. Eu estou


procurando o senhor José Jovino Santos, ele possui o carro de placas IEB 1345.

— Algum problema com o senhor José Jovino?

— Não, muito antes pelo contrário, eu o estou procurando porque eu estive


hospedado no mesmo hotel. Fizemos amizade e eu fiquei de visita-lo quanto estivesse
na cidade, só que eu perdi o endereço dele.

— Só um instante, vou ver a ficha dele. Ah, aqui está!

O atendente alcança ao detetive a ficha, ele a pega e toma nota do endereço. Rua
Marques do Herval, 425.

Roberto Carlos Cardozo


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— Muito obrigado, senhor, você foi muito gentil, mais uma vez obrigado.

A casa era bem localizada. Estava mais para uma velha casa reformada,
parecendo uma mansão do século 19, do que uma simples residência. O detetive, de
dentro do carro estacionado do outro lado da rua, passou a observar a casa, uma casa de
gente de classe média, talvez não seja correta as informações da dona Matilde. Somente
posso saber batendo a porta para ver se aqui mora o senhor José Jovino Santos.

Ele chega à porta e bate. Uma mulher vem abrir a porta, um garoto de tenra
idade a acompanha grudado a sua saia.

O grande detetive faz uma mesura e diz:

— Bom-dia, minha senhora! Aqui mora o senhor José Jovino Santos?

— Quem está lhe procurando?

Herculan, fazendo uma mesura e tirando o chapéu, diz:

— Sou Herculan Decrois, tenho assuntos de negócios a tratar com o senhor José.

— Sim, senhor, mas ele não se encontra, está viajando.

— Ah, sim! A senhora sabe há que horas ele chega?

— Ele chega somente à noite.

Herculan se abaixa e fala com o menino que, no momento, se escondia atrás da


mãe.

— Como é que você se chama?

O menino coloca o dedo na boca e responde:

— Marco Antônio.

— Que nome bonito, este dedo deve estar gostoso, deixa dar uma provada?

O menino se esconde mais ainda atrás da mãe. Nesse momento, chega outro
menino. O detetive se dirige ao recém-chagado, olha quem está chegando, como é o seu
nome?

— Arthur! Tenho nove anos e o senhor, como se chama?

— Herculan Decrois, seu criado.

O grande detetive passa a mão sobre a cabeça do garoto e levanta.

— Seus filhos? — dirigindo-se à senhora.

Roberto Carlos Cardozo


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— Sim! Mas, o que o senhor quer com o meu marido?

— Como eu disse, negócios, sabe como é, negócios de carros.

— Se o senhor me der licença, tenho lidas de casa a fazer.

— Aqui tem o meu cartão. A senhora pode me dar o seu telefone? Eu telefonarei
à noite para o seu marido.

A mulher dita o número do telefone e o detetive toma nota em seu caderninho de


anotações, que sempre carrega no bolso.

— Passar bem, minha senhora, telefonarei à noite para o seu marido. A senhora
foi muito gentil em me receber.

Herculan se afasta pensando: — ao que estou na pista errada, a tal de dona


Matilde deve ter se enganado. Mas já que estou aqui vou procurar um hotel e pernoitar
para falar com o senhor José.

No hotel, já passavam das vinte horas quando o detetive liga para a residência do
senhor José.

— Alô! É o senhor José?

— Sim, quem está falando?

— Eu me chamo Herculan Decrois, eu sou detetive particular, estou


investigando a morte do padre Constantino Aliheve e tenho que falar com o senhor
sobre esse assunto.

O homem ficou gago e disse:

— Eu, eu irei ao seu encontro, onde posso encontra-lo?

— Estou no Hotel Pascale e fico no seu aguardo.

— Já estou indo, espere um minuto.

Alguns minutos depois, no hotel:

José entra no saguão do hotel e, à sua espera, estava o grande detetive. Ele se
dirige ao balcão de atendimento e pergunta ao atendente:

— Eu estou procurando uma pessoa que me telefonou há pouco.

Herculan Decrois se aproximou e disse:

— Senhor José? Sou Herculan Decrois, me acompanhe, por favor.

Herculan Decrois se dirigiu a um reservado. E lá, o homem disse:

Roberto Carlos Cardozo


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— Senhor detetive, o que o senhor quer saber de mim?

— Mire, senhor José! Eu tive informação de que o senhor foi a última pessoa
que se confessou com o padre Constantino Aliheve, antes da sua morte.

— O senhor não está achando que eu o matei?

— Não, não me passa pela cabeça tal ideia, apenas eu tenho que investigar todas
as possibilidades. Eu fico apenas imaginando porque alguém viaja mais de cinquenta
quilômetros para se confessar.

— Como o senhor chegou até mim?

— O senhor sabe que em toda a igreja há sempre as beatas, mulheres que


costumam preencher o vazio de suas vidas, na igreja, onde passam a acompanhar a
vidas dos outros. São pessoas chamadas vulgarmente de bisbilhoteiras. Imagine que
uma delas chegou a tomar nota da placa do seu carro, pois achou estranho você ter
procurado o padre Aliheve por quatro vezes.

E mais, disse ele que o padre ficava nervoso após havê-lo confessado.
Coincidentemente, a zeladora da casa paroquial me informou que o padre ficou
meditabundo há uns quatro meses atrás, mudou completamente o seu comportamento,
justamente depois que o senhor apareceu pela primeira vez. O senhor sabe que o padre
Constantino Aliheve se suicidou, amarrou a corda do sino no pescoço e jogou-se da
torre, tendo o pescoço partido e a morte imediata.

Ao ouvir isso, José ficou pálido e começou a chorar. Herculan deixou-o chorar
até que ele se recuperou do susto. Olhou para o detetive e disse:

— Eu não tive essa intenção, eu apenas queria que ele sofresse a culpa de seus
atos no passado.

— Quer me contar tudo o que aconteceu? Prometo que ouvirei toda a sua
história.

REMINICÊNCIAS

Alguns meses antes:

A pequena cidade de Riacho Seco amanhecera com uma serração que não
permitia enxergar um palmo à frente do nariz. Era domingo e cedo da manhã, os fiéis já
se dirigiam ao culto religioso. A primeira missa começara às seis horas. Nesse horário,
eram poucos os fiéis e o padre Celestino Aliheve, nesse momento, começava o seu
sermão dominical.

— Meus caros, irmãos e irmãs em Cristo! Estamos na quaresma, os santos todos


cobertos com panos na cor roxa. Celebramos hoje a entrada de Jesus Cristo em
Jerusalém, seus seguidores o cortejavam com ramos de palmas, ficando consagrado este
dia como o Domingo de Ramos.....

Roberto Carlos Cardozo


Conto de Otrebor Ozodrac
Terminada a missa, por volta das sete horas, aos costumes, o padre Celestino iria
se colocar no confessionário para ouvir os pecados dos fiéis, pois, somente voltaria a
celebrar missa às nove horas.

Mal se acomodara no confessionário, chega a primeira penitente. O padre diz:

— Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Louvado seja Deus.

O confessando responde:

— Para sempre seja louvado. Padre, perdoa-me porque pequei!

— Podeis confessar, minha irmã. — responde o padre.

— Não sei como vou dizer! Eu me sinto muito mal, muito arrependida com o
que fiz.

— Podeis dizer sem constrangimento, apenas eu e Deus estamos lhe ouvindo. E


Deus está sempre pronto para perdoar.

— Estou arrependida, não sei o que deu em mim para fazer isso.

Eu sou uma mulher casada, tenho dois filhos, meu marido é um homem bom.
Trabalha de dia e estuda à noite. Eu tenho que ficar com as crianças, elas dormem cedo,
pois um tem cinco anos e outro, três. Eu me sinto muito só. Quando meu marido chega,
eu já estou dormindo. Ele sai muito cedo para o trabalho, eu ainda estou dormindo.
Dessa forma, eu passo a semana toda sozinha. Até que um dia, eu conversava com uma
vizinha e notei que seu filho que me olhava. Ele é um garoto com um pouco mais de
quinze anos, porém, forte e alto, o que me chamou a atenção, da mesma forma com que
eu a ele.

Embora com grande diferença de idade, ele passou a brincar com meu filho de
cinco anos. Acho que, como desculpa, para se aproximar de mim. Um dia, passava das
nove horas, meus filhos estavam dormindo, ele bateu à porta, e eu, instintivamente, abri
a porta e ele entrou. Fechei a porta, ele me abraçou, me beijou e tudo o mais aconteceu.
Quando tudo terminou é que eu percebi a tremenda enrascada em que me tinha metido.

— Minha filha, Deus lhe perdoará, mas terá que se arrepender e não mais voltar
a cometer adultério. Imagine se o seu marido descobrir, o que poderá acontecer. Eu a
perdoo em nome de Deus. Reze um terço junto ao altar de São Benedito e não volte
mais a pecar. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo amém.

A mulher se retirou e outra pessoa se aproximou. Assim, terminaram as


confissões daquele Domingo de Ramos. Na quarta-feira, dia de confissões, o padre
Constantino Aliheve, por volta das dez horas, se coloca dentro do confessionário. Já
havia ouvido três confissões de pouca importância, quando um homem, a quarta pessoa
do dia, toma lugar no confessionário. Apos cumprir o ritual de início da confissão, o
homem disse:

— Padre! Perdoai-me porque pequei!

Roberto Carlos Cardozo


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— Podeis dizer o teu pecado, meu filho!

— Eu pequei contra o sexto mandamento, padre, e estou arrependido e quero o


seu perdão.

— Mas, meu filho, não é possível, este mandamento diz: “Não matarás.”

— É isso mesmo, padre, eu matei uma menina de dez anos, após violá-la.

— Meu filho, isso é muito grave.

— Sei disso, padre, mas espero que esteja sob a proteção do sigilo da confissão.

— Com toda a certeza, meu filho, o sigilo da confissão será preservado, somente
eu e Deus tomaremos conhecimento de sua confissão, mas conte com mais detalhes
sobre o ocorrido.

— Eu vi aquela menina, fofinha, meiga, graciosa, sempre sorrindo. Despertou


em mim um estanho sentimento, desejei possuí-la a qualquer custo. Sua imagem não me
saía do pensamento. Passei a ficar por longas horas à espera que ela passasse ou saísse
de casa, só para vê-la. Era uma espécie de compulsão, era mais forte do que eu.

Um dia, ela saía da escola e, por qualquer motivo, sua mãe não foi busca-la. Ela
ia sozinha pela rua. Eu parei o carro e lhe disse que sua mãe me mandara busca-la na
escola. Ela sorriu para mim, e entrou no carro, que já a esperava com a porta aberta.

Dei partida no carro e levei-a para um campo ermo e distante. Eu não sabia o
que estava acontecendo, parecia que não era eu que estava fazendo aquilo. Ela
gritava, mas eu não parava. Quando tudo terminou, eu a tinha em meus braços,
sem vida. Caí em mim, e chorei muito, me amaldiçoei, me flagelei, dando socos
nos pneus do carro. Quando passou a minha fúria de arrependimento, cavei uma
cova profunda e a enterrei.

O padre, que ouvia sem interromper a narrativa, respirou fundo e disse:

— O que você fez é muito grave! Você chegou a avaliar o sofrimento a que
submeteu a menina, e aos pais dela que, certamente, a estão procurando até hoje.
Quantos dias faz do acontecimento?

— Isso ocorreu na semana passada, padre.

O padre estava tão emocionado com a narrativa que não sabia o que dizer.
Nunca tinha recebido tal tipo de confissão, em toda a sua vida.

— Padre, este é o meu único pecado, peço que Deus me perdoe.

— Eu te perdoo, em nome de Deus, mas terá que prometer que nunca mais
cometerá tal pecado. Como penitência, deverá rezar diariamente, até o final de sua vida,
três Pai-Nosso e cinco Ave-Marias, à noite, ao deitar e ao levantar, firmando o propósito
de não mais cometer tal crime. Vá com Deus!

Roberto Carlos Cardozo


Conto de Otrebor Ozodrac
O homem se afastou. O padre suava aos borbotões, esperou por alguns instantes,
quando chegou a próxima pessoa a se confessar.

— Padre, perdoa-me porque pequei!

— Dizei o teu pecado, minha filha, e Deus te perdoará.

— Não resisti a tentação e voltei a cometer adultério.

— Conte mais, minha filha, para que eu veja a gravidade de teu ato.

— Eu estava resoluta, não iria mais cair em tentação, mas foi mais forte do que
eu. Ele bateu à minha porta, eu fui abrir, sabendo que era ele, eu estava resolvida a
manda-lo embora. Mas, ao vê-lo, não resisti à tentação e o puxei para dentro de casa.
Ele me contou que uma vizinha o tinha visto pular o muro, mesmo assim fomos para a
cama e fizemos amor. Quando a volúpia havia passado, eu fiquei preocupada e em
conjunto arquitetamos um plano. Dei a ele algumas roupas, camisas e calças do meu
marido, para que ele levasse. Quando meu marido chegou, eu lhe disse que havia
esquecido as roupas no varal e que ouvira barulho, nos fundos, acendera as luzes para
ver o que havia acontecido e as roupas haviam desaparecido. Com isso, se a vizinha
dissesse alguma coisa a respeito, teria a ver.

Eu não sei o que fazer, isso é mais forte do que eu, não consigo dominar o desejo
de ficar com ele. O que faço, padre, não quero só o seu perdão, mas também um
conselho de como fazer para me livrar dessa tentação.

— Minha filha, não sou a melhor pessoa para lhe aconselhar.

Mas, lhe aconselho a procurar uma psicóloga.

— Então, padre, peço-lhe perdão por esse pecado.

— Eu te perdoo, em nome de Deus. Como penitência, rezai um terço junto à


Nossa Senhora das Dores.

Naquele dia, todas as demais confissões foram de coisas fúteis, sem qualquer
relevância.

O padre não parava de pensar na confissão mais importante de sua existência e


pensava: ao longo do meu ofício, nunca pensei ouvir tal confissão, trinta e cinco anos
como confessor, já ouvi de tudo, mas nunca algo parecido. E, pior que isso, não me sai
do pensamento, e se ele voltar a cometer o mesmo tipo de pecado. Eu não posso fazer
nada, estou preso ao sigilo da confissão, embora não tenha tomado conhecimento de
nenhum desaparecimento na cidade. Isso pode dizer que ele é de outra cidade.

Os dias foram passando e o padre conseguiu atenuar o seu estado de prostração


causado pela confissão que ouvira. Passaram-se quatro semanas da estranha confissão.
Era mais uma vez quarta-feira, o padre Constantino se coloca no confessionário.
Exatamente na quarta confissão.

Roberto Carlos Cardozo


Conto de Otrebor Ozodrac
— Padre! Estou aqui porque pequei contra o sexto mandamento.

O padre Celestino reconhece a voz, a mesma que, há quatro semanas a trás, lhe
havia confessado um estupro seguido de assassinato. Mas ele sabia que não poderia
associar um pecado já confessado e perdoado com outro que ainda não tinha sido
confessado. Fez como se não houvesse reconhecido a voz e disse:

— Dizei-o o seu pecado, filho, que Deus lhe perdoará.

— Eu rezei como o senhor determinou em minha penitência, mas eu tive um


novo surto, não resisti, desta vez, foi um menino de doze anos. Eu o vi pela primeira vez
ao sair da escola e não resisti. Ele ia sozinho, eu parei o carro e lhe pedi uma
informação. Ele me deu a informação e eu lhe perguntei se não queria me levar ao meu
destino. Ele embarcou no carro e o resto o senhor já sabe. Levei-o para o mesmo local
ermo e distante, e enterrei-o ao lado da menina.

— Mas o seu voto de contrição, as suas orações diárias, pedindo para que não
voltasse à tentação de cometer mais um crime?

— Eu não sei o que está acontecendo comigo, eu certo momento parece que não
sou eu, faço isso sem saber o que estou fazendo, planejo todos os atos nos mínimos
detalhes, mas não tenho o domínio das minhas ações. Somente depois do ato realizado e
que eu caio em mim, choro, excomungo, grito em desespero. Desta vez, o meu
desespero foi tão grande, que cheguei a mutilar um dedo, cortei-o com uma faca de
trinchar carne. Eu preciso de ajuda, o senhor não quer me ajudar a não cometer mais
esses crimes hediondos?

— Meu filho, você está precisando de um tratamento psicológico. Procure um


psiquiatra, ele saberá o que fazer. A propósito, você não é desta cidade? É?

— Não, não sou! Eu viajo muito e por isso nunca estou no mesmo lugar. Quanto
a procurar um psiquiatra, não posso, ele certamente me entregará à polícia. O senhor
não, pois está sob o juramento de não revelar os segredos das confissões. Só o senhor
poderá me ajudar. Eu não quero cometer mais crimes, mas é irresistível. Por isso, eu
acho que se não tiver ajuda, voltarei a cometê-los.

— Eu tenho apenas noções de psicologia, sinto que não possa ajuda-lo.

— O senhor era a minha única esperança.

Ele se afasta, deixando o padre num estado de torpor, que parecia lhe faltar o ar
dentro do confessionário, saiu para tomar água e viu de costas o homem que acabava de
sair da igreja.

Foi à sacristia e tomou grandes goles de água gelada. Sentou em uma cadeira,
colocou ambas as mãos na cabeça e pensou: “Eu, estou sendo conivente, tenho que fazer
alguma coisa, ou ele voltará a matar.”

Roberto Carlos Cardozo


Conto de Otrebor Ozodrac
Assim pensando, o padre Aliheve firmou o propósito de estudar mais um pouco
de psicologia, para ajudar o seu penitente. Entre as patologias estudadas, ele se
encaixava como psicótico de alto grau.

E tal patologia poderia ser criada em seu subconsciente por alguma coisa que o
tivesse afetado no passado. Quando aparecia algo parecido com a ocorrência mãe, ele
tinha um surto psicótico irresistível, que passava a dominar todas as suas ações. Chegara
à conclusão de que teria que investigar a causa dos seus surtos psicóticos. Ele pensava:
passivelmente, ele continuará a cometer crime. Ele é um psicopata, os psicopatas, não se
arrependem, ele disse que ficou arrependido, isso deixa em dúvida, quanto a ele ser ou
não ser um psicopata. Mas pode ser que não volte mais a me procurar, já que não me
dispus a ajuda-lo. O que me deixa muito preocupado, posso ser culpado de crime que
não cometi, por omissão de ajudar quando tive oportunidade.

Os dias se passaram, e a quarta-feira chegou. Eram dez horas em ponto quando o


padre terminara de atender à terceira confissão.

No confessionário, chegava a quarta pessoa do dia. O padre diz:

— Louvado seja nosso senhor Jesus Cristo.

A voz baixa e rouca disse:

— O senhor não quis me ajudar. Ontem ocorreu novamente. Estava numa


danceteria, quando ela se aproximou de mim, uma jovem que deveria ter, mais ou
menos, dezoito anos. Ela me convidou para dançar, eu aceitei, dançamos algumas
músicas e ela disse que o ambiente estava quente e que queria ir para fora, para poder
respirar ar puro. Fomos para o estacionamento, onde estava o meu carro. Lá chegando,
ela disse, vamos dar uma volta, a noite está linda. Eu a levei para aquele lugar ermo e
distante, lá eu a peguei a força, estuprei-a e a matei. Logo em seguida, enterrei o corpo
junto com os outros dois. Eu não precisava fazer isso, ela teria consentido na relação
carnal. Mas, mais uma vez eu fui dominado por aquela fúria assassina.

— Meu filho, eu acho que posso lhe ajudar. Estive pesquisando, e essa sua
atitude está ligada a algum fato ocorrido em sua vida, talvez, em um tempo remoto,
quando ainda era pequeno. Você se lembra de algum fato parecido com isso que lhe
tenha acontecido em algum momento de sua existência?

— Lembro quando garoto, eu era apaixonado por uma menina, mas nunca tive
coragem de abordá-la e dizer que estava apaixonado por ela. Ela terminou namorando
outro garoto, eu a via passar com ele, e me amaldiçoei por não ter tido coragem para
namorá-la.

— Ora, isso acontece com todos os garotos, e eles não ficam matando, por causa
disso. Não deve ser esse o motivo. Tente lembrar mais, talvez antes disso.

— Tentarei, padre, se me lembrar irei contar ao senhor.

Roberto Carlos Cardozo


Conto de Otrebor Ozodrac
O homem se retirou e o padre ficou meditabundo: que caso complicado! Eu
estou preso ao sigilo do confessionário, não adianta, nada posso fazer. A não ser que,
não seria quebra de sigilo, não posso fazer isso.

O mês passou e a quarta-feira chegou. Exatamente na quarta confissão. Era ele,


que disse:

— Voltou a acontecer, invadi uma casa, e peguei uma menina, de no máximo,


dez anos. Quando eu a estava sufocando, sua mãe apareceu e eu tive de mata-la.

— Você tem que parar com isso! — disse o padre, em tom enérgico.

— Mas, tem uma esperança, talvez o senhor possa me ajudar, eu me lembrei de


um fato que pode ter relação com os acontecimentos atuais.

— Conte, conte, talvez possamos elucidar o caso.

— Eu tinha apenas nove anos, e estava na catequese, para fazer a primeira


comunhão. O padre catequista nos ensinava o que era pecado, e que todos os pecados
tinham de ser confessados a Deus, através do padre, que, na confissão, o representava.
Que o padre poderia perdoar os pecados em nome de Deus, que também poderia
excomungar uma pessoa, condenando-a ao inferno para todo o sempre. Após dias de
catequese, estávamos prontos para fazer a primeira comunhão. Quando eu estava me
confessando, era quarta-feira, o padre me disse que, após a confissão, eu deveria ir à
sacristia e espera-lo lá, que ele queria conversar comigo. Com toda a inocência de um
menino de nove anos, eu fui e lá o esperei. Quando ele chegou, me disse:

— Vou lhe mostrar o que é um pecado, já que você não sabe o que é ou não é
pecado. Ele desafivelou a minha cinta e baixou as minhas calças e a cueca. Ele me virou
de costas para ele, levantou a batina e se encostou, me fazendo sentir aquele membro
duro entre as minhas coxas. Logo senti um líquido correr pelas minhas pernas abaixo.
Ele me afastou, mandou que eu suspendesse as calças e afivelasse a cinta. Ele me pegou
pelos ombros e disse: isso é pecado, mas eu te perdoo. Terá que prometer que não
revelará a ninguém, muito menos aos seus familiares. Se revelar, eles ficarão
automaticamente excomungados e arderão pela eternidade no inferno. Na próxima
quarta-feira, venha se confessar.

Na próxima quarta-feira, após a confissão, ele me disse que eu deveria espera-lo


na sacristia. Eu lhe disse que não iria, ele me ameaçou de excomunhão se eu não fosse.
Eu fui. Desta feita, ele me pegou da mesma forma, desafivelou a cinta e baixou as
minhas vestes, e, se encostando me fez sentir aquela coisa dura e lubrificada, e fez a
penetração. A dor foi horrível, parecia que aquilo me rasgava por dentro. Ele logo
retirou, baixou a batina, arrumou as minhas calças, eu ainda sentia uma forte dor por
dentro, quando ele disse:

— Se doeu isso, passa logo, vá e não te esqueças da excomunhão e de se


confessar na quarta que vem.

Assim, se passou um ano, eu sendo estuprado, sempre às quartas-feiras. Até que


um dia meu pai foi transferido para outra cidade e eu me livrei do padre. É isso aí,

Roberto Carlos Cardozo


Conto de Otrebor Ozodrac
padre, a cada pessoa que eu mato, eu me lembro do senhor, padre Constantino Aliheve.
Você é o culpado de todos os crimes que estou cometendo, além dos crimes que
cometeu contra mim. Eu virei todas as quartas-feiras lhe relatar o crime que você acaba
de cometer.

O padre, ouvia tudo em silêncio, lágrimas corriam de seus olhos, o suor lhe
brotava por todo o corpo. Isso tinha acontecido quando ele tinha apenas trinta e cinco
anos, quando ainda lutava contra os desejos da carne. Tudo agora lhe caía na cabeça de
uma forma trágica. Eram onze horas quando a última confissão terminara. Ele não sabia
como tinha conseguido realizar as confissões, após tudo o que ouvira. Mortificado pelo
remorso, ele vai até à torre onde estava o sino, amarra a corda no pescoço, bate o sino e
se joga da torre.

EPÍLOGO

José Jovino Santos conta a Herculan Decrois todo o seu drama e, ao final, o
detetive lhe pergunta:

— Mire, senhor José, eu apenas não estou entendendo uma coisa, senhor José. O
senhor, pelo que ouvi, quando estive em sua casa, o senhor é casado e tem dois filhos?
E, pelo estado emocional que ficou, quando soube da morte do padre, o senhor não é um
psicopata, então o que disse ao padre era apenas para fazê-lo ficar com remorso, estou
certo?

— Quando meu pai foi transferido, eu me livrei do julgo do padre, mas me


restou um grande distúrbio emocional. Eu não tinha nenhuma queda para ser
homossexual, o que me levou a fazer tratamento psicoterápico, por três anos, o que fez
com que eu voltasse a ter uma vida normal. Tudo estava quase que esquecido, apenas
havendo no meu subconsciente um tênue desejo de vingança. Acabei namorando a
minha esposa, contraímos matrimônio, concebemos dois filhos. Há seis meses, eu
estava trabalhando e no hotel onde estava pernoitando, ao ler o jornal, havia uma
reportagem do padre Constantino Aliheve. Tudo me veio à lembrança, e eu fiquei com
aquelas lembranças renovadas. Quando olhava para o meu filho, que hoje tem a mesma
idade quando fui abusado pelo padre, de tanto pensar no caso, concebi o plano de dizer
que era um serial killer e, que, ele era o responsável pelo que ele havia feito comigo. Eu
juro que nunca pensei na hipótese de que ele poderia se suicidar. Se cometi algum
crime, estou disposto a pagar por ele.

— Mire, senhor José. Eu fui contratado pelo bispo para investigar sem alarde o
que teria acontecido com o vigário não sou da polícia, por isso não tema nada de mim.
Levarei o resultado das minhas investigações ao bispo e ele é que decidirá o que fazer
com o resultado.

Na diocese:

— Bom-dia Vossa Excelência Reverendíssima, espero ter acertado desta vez.

— Sim, detetive, acertou. Um bom dia para o senhor também. Teve êxito em
suas investigações?

Roberto Carlos Cardozo


Conto de Otrebor Ozodrac
— Sim, fiz as minhas investigações sem causar suspeitas. Fiz-me passar por um
seu enviado que queria auscultar as expectativas dos fiéis sobre o futuro vigário que o
senhor enviará para a paróquia.

— Foi muito perspicaz, meu caro detetive, mas quais foram os resultados.

— Eu costumo escrever em relatórios as minhas investigações, e está tudo


escrito em vinte e uma folhas, dentro desse envelope.

O detetive alcançou o envelope. O bispo o segurou e disse:

— Vamos nos sentar que examinarei o resultado do seu trabalho.

— Mire, Vossa Excelência Reverendíssima, se quiser, eu posso retornar amanhã,


após o senhor haver tomado conhecimento do meu relatório.

— Agradeço imensamente, assim poderei fazê-lo com a devida parcimônia.

O detetive se despede do bispo e se retira, prometendo voltar no dia seguinte, na


mesma hora.

No dia seguinte, o grande detetive retorna à presença do bispo.

— Senhor Herculan Decrois, não só li como estudei e conjecturei, refleti sobre


tudo o que consta no seu relatório. Devo lhe esclarecer que a religião católica é fundada
em princípios de que todos nós, humanos, somos passiveis de cometer pecados. Estes
pecados, quando com um real arrependimento, são perdoados, em nome de Deus, dentro
do que preceitua o sacramento da confissão. Quando algum sacerdote comete algum
pecado, diga-se de passagem, que isso é uma minoria, eles confessam e tudo é
esquecido.

No caso vertente, me parece que a vítima não esqueceu o ocorrido e resolveu


vingar-se, mas não com a intenção de matar ou de leva-lo ao suicídio.

Por outro lado, se quisermos acusar o vingador, certamente, vamos desrespeitar


a memória do falecido, que teria o seu passado exposto.

Por isso, peço-lhe que esqueça o caso e que apresente seus honorários na
tesouraria da diocese. E que mantenha o mais absoluto sigilo sobre o resultado do seu
trabalho.

— Alô, é José, às suas ordens!

— Herculan Decrois, só para aliviá-lo. O bispo não fará uma representação


contra você. E de minha parte, prometo o mais absoluto sigilo sobre tudo o que me
contou.

FIM

Roberto Carlos Cardozo

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