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Max Horkheimer

TEORIA CRÍTICA
UMA DOCUMENTAÇÃO
TOMO I

K .V

l'-'Z %J EDITORA PERSPECTIVA


25 Anos
Título original em alemão
Kritische Theorie—Band /

© S. Fischer Verlog GmbH Frankfurt am Main, 1968.

Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Horkheimer, Max, 1895-1973.


Teoria crítica: uma documentação / Max Hokheimer ;
tradução Hilde Cohn. -- São Paulo : Perspectiva: Editora da
Universidade de São Paulo, 1990-
-- (Coleção estudos ; 77)

Publicado t. 1.

1. Conhecimento-Teoria 2. Filosofia- Século 20


3. Filosofia alemã I. Título. II. Série.

ISBN 85.273.038.9

CDD-121
-190
90-1195 -193

índices para catálogo sistemático:

1. Filosofia: Século 20 190


2. Filosofia alemã 193
3. Filósofos alemães 193
4. Teoria crítica: Filosofia 121

Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3025

Telefones: 885-8388/885-6878
1990
1. Observações sobre Ciência e
Crise

(1932)

1. Na teoria marxista da sociedade, a ciência está incluída entre


as forças humanas produtivas. Como condição da mobilidade média
do pensamento, que evoluiu com ela nos últimos séculos, além do mais
na forma de conhecimentos simples sobre a natureza e o mundo hu­
mano, aos quais mesmo nos países desenvolvidos têm acesso os mem­
bros das classes mais baixas, e não em última instância como parte do
poder espiritual dos cientistas, cujas descobertas influem decisiva­
mente na forma da vida social, ela possibilita o sistema industrial mo­
derno. Na medida em que se apresenta como um meio de gerar valo­
res sociais, quer dizer, formulada em métodos de produção, também
representa um meio de produção.
2. O fato de a ciência como força produtiva e meio de produção
cooperar para o processo de vida da sociedade não justifica, de forma
alguma, uma teoria pragmática do conhecimento. Na medida em que a
fecundidade de um conhecimento desempenha um papel no tocante
à sua enunciação da verdade, cabe entender, no caso, uma fecundida­
de imanente da ciência, e não uma conformidade a considerações ex­
trínsecas. O exame da veracidade de um juízo é algo diferente do
exame de sua importância vital. Em nenhum caso os interesses sociais
têm de decidir sobre uma verdade, mas valem os critérios desenvolvi­
dos em conexão com o progresso teórico. Sem dúvida, a própria ciên­
cia se modifica no processo histórico, mas a referência a isso nunca
pode valer como argumento para a aplicação de outros critérios de
verdade que não aqueles que correspondem ao nível de conhecimento
no grau de desenvolvimento alcançado. Ainda que a ciência esteja
TEORIA CRÍTICA

compreendida na dinâmica histórica, ela não deve ser destituída do seu


caráter próprio e utilitariamente mal interpretada. Decerto, as razões
que condicionam a recusa da teoria pragmatista do conhecimento e do
relativismo em geral não conduzem de modo algum à separação posi­
tivista entre teoria e prática. De um lado, não são independentes dos
homens nem direção nem métodos da teoria, nem o seu objeto, a rea­
lidade mesma; de outro lado, a ciência é um fator do processo históri­
co. A separação entre teoria e prática é, ela própria, um fenômeno
histórico.
3. Na crise econômica geral, a ciência aparece como um dos
múltiplos elementos da riqueza social que não cumprem seu destino.
Hoje ela ultrapassa de longe o nível de bens de épocas anteriores. Há
sobre a terra mais matérias-primas, mais máquinas, maior força de
trabalho adestrada e melhores métodos de produção do que antes, mas
não beneficia correspondentemente aos homens. A sociedade, na sua
forma hodierna, mostra-se incapaz de fazer uso real das forças que se
desenvolveram dentro dela, e da riqueza produzida no seu âmbito. As
descobertas científicas compartilham o destino das forças produtivas e
dos meios de produção de outro tipo: a medida de sua aplicação está
em grave discrepância com seu alto grau de desenvolvimento e com as
reais necessidades da humanidade; isso impede também seu futuro
desenvolvimento quantitativo e qualitativo. Como demonstram crises
anteriores, o equilíbrio econômico só se restabelecerá após a destrui­
ção, em escala considerável, de valores humanos e materiais.
4. É próprio da mistificação das causas da crise contemporânea
responsabilizar por ela justamente aquelas forças que lutam por uma
melhor estruturação das condições humanas, sobretudo o próprio
pensamento racional e científico. Tenta-se renunciar a seu fomento e
cultivo no indivíduo em favor da formação do “psíquico”, e desacredi­
tar como instância decisiva a razão crítica, na medida em que não é ne­
cessária profissionalmente à indústria. Mediante a teoria de que a razão
é apenas um instrumento útil para os fins da vida diária, que deve emu­
decer, entretanto, frente aos grandes problemas e ceder lugar às for­
ças mais substanciais da alma, estamo-nos desviando de uma preocu­
pação teórica com a sociedade como um todo. Parte da luta da meta­
física moderna contra o cientificismo é um reflexo dessas correntes
sociais mais amplas.
5. De fato, a ciência das décadas anteriores à guerra mostra uma
série de deficiências que, todavia, não resultam do exagero, mas antes
do estrangulamento da sua racionalidade, condicionado pelo crescente
endurecimento das condições humanas. A tarefa, despreocupada com
considerações extracientíficas, de assinalar fatos e determinar as re­
gularidades reinantes entre elas fora formulada, originariamente, co­
mo uma meta parcial do processo burguês de emancipação, em dis­
cussão crítica com os entraves escolásticos à pesquisa. Na segunda
metade do século XIX, porém, esta definição já havia perdido seu
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sentido progressista e, ao contrário, provou ser um instrumento de li­


mitação do processo científico, transformando-se num mero registro,
classificação e generalização de fenômenos, despreocupado com a
distinção entre o desimportante e o essencial. Na medida em que o
interesse por uma sociedade melhor, que ainda predominava no Ilumi-
nismo, foi substituído pelo empenho em consolidar a eternidade do
presente, um elemento obstrutivo e desorganizador se apoderou da
ciência. Se os resultados científicos tiveram aplicação útil na indústria,
ao menos parcialmente, por outro lado ela fracassava exatamente
diante do problema do processo social global, que antes da guerra já
dominava a realidade através das crises cada vez mais acentuadas e
das lutas sociais daí resultantes. Correspondia ao método orientado
para o ser e não para o vir-a-ser considerar a forma da sociedade vi­
gente como um mecanismo de repetidas ocorrências iguais, que, em­
bora pudesse sofrer perturbações temporárias durante um período
mais curto ou mais longo, não exigiria, em todo caso, nenhum outro
comportamento científico que não o de uma eventual explicação de
uma máquina complicada. Mas a realidade social, o desenvolvimento
dos homens historicamente atuantes, contém uma estrutura cuja com­
preensão requer a imagem teórica de decorrências radicalmente
transformadoras e revolucionadoras de todas as condições culturais,
estrutura que de modo nenhum pode ser dominada pelo procedimento
das ciências naturais mais antigas, orientado para o registro de ocor­
rências repetidas. O fato de ter a ciência se fechado contra um trata­
mento adequado dos problemas relacionados com o processo social
causou uma trivialização de método e de conteúdo, que não se expri­
me tão-somente no afrouxamento das relações dinâmicas entre os di­
versos campos de matérias, mas se faz sentir, sob as formas mais di­
versas, no âmbito das disciplinas. Em conseqüência deste isolamento,
podem continuar a ter importância uma série de conceitos não-escla­
recidos, fixos e fetichistas, ao passo que estes poderiam ser esclareci­
dos mediante sua inclusão na dinâmica dos fatos. São exemplos disso:
o conceito de consciência em si como pretenso pai da ciência; além
disso, o indivíduo e sua razão, geradora ela própria do mundo; a eter­
na lei natural que domina todo evento; a imutável relação entre sujeito
e objeto; a rígida diferença entre espírito e natureza, alma e corpo e
outras tantas formulações categoriais. A raiz dessas falhas, porém,
não reside absolutamente na ciência em si, mas nas condições sociais
que impedem o seu desenvolvimento e que acabaram conflitando com
os elementos racionais imanentes à ciência.
6. Mais ou menos desde a passagem do século aponta-se, na
ciência e na filosofia, para a deficiência e inadequação dos métodos
puramente mecanicistas. Esta crítica suscitou discussões de princípio,
relativas a importantes fundamentos da pesquisa, de modo que hoje se
pode falar também de uma crise interna da ciência. Soma-se a ela o
descontentamento extrínseco com a ciência como um dos muitos
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meios de produção que não soube realizar as expectativas que dela se


tinham no sentido de mitigar a calamidade geral. Se particularmente a
nova física superou, em ampla medida, as imperfeições da maneira
tradicional de observar dentro da sua própria especialidade e subme­
teu a uma revisão os fundamentos teóricos do conhecimento, então é
mérito da metafísica do pós-guerra, sobretudo de Max Scheler, ter de
novo chamado a atenção da ciência em geral para uma série de maté­
rias e ter aberto, em alguns pontos, o caminho para um modo de ob­
servação menos obstruído pelo estreitamento visual convencional.
Principalmente, a descrição de importantes fenômenos psíquicos, mais
a representação de tipos sociais de caráter e a instituição de uma so­
ciologia do conhecimento atuaram de modo bastante frutífero. Con­
tudo, sem mencionar que as tentativas metafísicas apresentaram como
realidade concreta quase sempre “a vida”, ou seja, ainda uma essência
mítica e não a sociedade real e viva na sua evolução histórica, elas se
comportaram frente à ciência não como forças propulsoras, mas como
forças meramente negativas. Em vez de mostrar as limitações que so­
fre a ciência por causa de suas restrições classistas e finalmente rom­
pê-las, elas identificavam a ciência, em certo sentido insuficiente, da
época passada com a racionalidade em geral, negavam o próprio pen­
samento crítico e se abandonavam tanto a matérias escolhidas arbitra­
riamente quanto a uma metodologia desembaraçada da ciência. Nas­
ceu uma antropologia filosófica que, se sentindo independente, esta­
beleceu como absolutos certos traços no homem, e à razão crítica
contrapôs a intuição certa de uma visão genial e que se julgava acima
da sujeição a critérios científicos. Com isso, esta metafísica se desvia
das causas da crise social e desvaloriza até os meios de investigá-la.
Cria uma confusão especial, quando hipostasia o indivíduo encarado
abstratamente e, assim, minimiza a importância de um entendimento
teórico dos processos sociais.
7. Não é somente a metafísica que é ideológica, mas também a
própria ciência que ela critica, na medida em que conserva uma feição
inibitiva do esclarecimento das causas efetivas da crise. Isto não sig­
nifica, de modo algum, que seus próprios representantes não estives­
sem interessados na verdade pura. Todas as formas de comporta­
mento humano que escondem a verdadeira natureza da sociedade edi­
ficada sobre contradições são ideológicas, e a verificação de que atos
de fé filosóficos, morais e religiosos, teorias científicas, normas jurídi­
cas e instituições culturais exercem esta função não diz respeito ab­
solutamente ao caráter de seus autores, mas ao papel objetivo que
aqueles atos assumem na sociedade. Opiniões em princípio corretas,
obras teóricas e estéticas de alta qualidade indiscutível podem atuar
ideologicamente em certas concatenações, e muitas ilusões nada têm
de ideologia. As aparências ideológicas, nos membros de uma socie­
dade, surgem precisamente em virtude de sua posição econômica; so­
mente quando as circunstâncias atingiram um ponto tal e os contrastes
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de interesses alcançaram uma agudeza tal que até uma visão mediana
pode penetrar a aparência, é que se costuma constituir um aparato
ideológico próprio com tendências autoconscientes. Numa sociedade
ameaçada pelas tensões a ela imanentes, crescem as energias orienta­
das para a salvaguarda da ideologia e são afinal redobrados os meios
de preservá-la pela força. Quanto mais o Império Romano era amea­
çado por tendências explosivas, mais brutalmente tentavam os impe­
radores renovar o velho culto do Estado e, assim, restaurar o minado
sentimento de unidade. As épocas que se seguiram às perseguições
cristãs e ao ocaso do império estão cheias de outros terríveis exemplos
destas decorrências regularmente repetidas. Na ciência de um tal pe­
ríodo, o elemento ideológico costuma aparecer menos no que ela
contém de falsos juízos do que na sua falta de clareza, na sua perple­
xidade, na sua linguagem esotérica, na sua colocação dos problemas,
em seus métodos, na direção das suas análises e, sobretudo, naquilo
que ela finge não ver.
8. Atualmente, o laboratório de ciência apresenta um retrato da
economia contraditória. Esta é altamente monopolística e mundial­
mente desorganizada e caótica, mais rica do que nunca e, ainda assim,
incapaz de remediar a miséria. Também na ciência surge uma dupla
contradição. Em primeiro lugar, vale como princípio que cada um dos
ssus passos tem uma base de conhecimento, mas o passo mais impor­
tante, ou seja, a definição da sua tarefa, carece de fundamentação
teórica e parece entregue à arbitrariedade. Em segundo lugar, a ciên­
cia está empenhada no conhecimento de relações abrangentes; porém,
é incapaz de compreender na sua vivência real a relação abrangente de
que depende sua própria existência e a direção do seu trabalho, isto é,
a sociedade. Ambos os momentos estão estritamente ligados. No fato
de iluminar todo o processo da vida social está contida a descoberta da
lei que se impõe na aparente arbitrariedade tanto dos empreendimen­
tos científicos quanto dos outros; pois também a ciência, segundo a
envergadura e a direção dos seus trabalhos, é determinada não só pe­
las tendências que lhe são próprias, mas também, no fundo, pelas ne­
cessidades sociais da vida. A dispersão e o desperdício de energias in­
telectuais que marcaram, apesar desta regularidade, o caminho da
ciência no último século e sempre foram criticados pelos filósofos
desta época, certamente não podem, tanto quanto a função ideológica
da ciência, ser dominados por mero conhecimento teórico, mas
tfio-somente pela alteração das suas condições reais na práxfe histó­
rica.
9. A teoria da conexão entre a desordem cultural e as condições
econômicas e os confrontos de interesses daí resultantes nada informa
nobre o grau de realidade ou sobre a hierarquia dos bens materiais e es­
pirituais. Ela se opõe, é claro, ao ponto de vista idealista de que o mun­
do de veria ser encarado como produto e expressão de um espírito abso­
luto, pois cia não considera o espírito como um ente separável e inde-
12 TEORIA CRÍTICA

pendente da existência histórica. Mas, se o idealismo for visualizado,


não pelo ângulo desta metafísica duvidosa, porém muito mais pelo es­
forço de realmente fazer desabrochar as potencialidades espirituais do
homem, então a teoria materialista de dependência do ideal corresponde
melhor a este conceito da filosofia clássica alemã do que a uma grande
parce-a da metafísica moderna; pois a tentativa de conhecer as causas
sociai! da atrofia e destruição da vida humana e de realmente subordi­
nar a economia aos homens, é mais adequada àquela aspiração do que à
afirmação dogmática de uma prioridade do espiritual independente do
curso da história.
10. Por mais que se fale com razão de uma crise da ciência, ela não
pode separar-se da crise geral. O processo histórico trouxe consigo um
aprisionamento da ciência como força produtiva, que atua em suas par­
tes, conforme seu conteúdo e forma, sua matéria e método. Além disso,
a ciência como meio de produção não está sendo devidamente aplicada.
A compreensão da crise da ciência depende da teoria correta sobre a si­
tuação social atual; pois a ciência como função social reflete no presen­
te as contradições da sociedade.

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